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UMA POLÊMICA
Robson Pedrosa
RESUMO
ABSTRACT
During the 1970s and 1980s, there was a surprising growth of the historical production about
black slavery, and this attracted many researchers to debate, specially near the anniversary of
the abolition. In this context, it was evident the Catholic Church's role in the process of
legitimation and reproduction of slavery in the Ocidental World, leading, however, many
activists of the institution to speak out. Thus, the purpose of this paper is to revisit this
controversy by analyzing the production of members of the Study of Church History in Latin
America (CEHILA) and of scholars that have reacted to such writings. They criticized the
stance of "complaint" contained in the works of this revisionist group, triggering a fierce
debate among many researchers of Church History. Thus we present a discussion of these two
"tendencies": on the one hand, a group that sought to build a new theoretical apparatus more
"scientific" or "critical", and on the other hand, researchers who questioned these assumptions
and revisions considered "falsifications of history."
1 INTRODUÇÃO
decorrer da História.
religioso dos escravos negros, no qual estes souberam se apropriar dos ensinamentos da
Igreja, interpretando-os totalmente diferente do senhor e do missionário (HURBON, 1987;
LAMPE, 1987).
Lampe nos traz ainda uma discussão acerca das estratégias de resistência escrava que
muito dialoga com as tendências que então se configuravam entre os estudiosos da
escravidão, afirmando que os escravos construíram outra forma de fazer política, através de
uma resistência do dia a dia “contra a desumanização e a estratégia de sobrevivência, que
luta para fazer do cotidiano algo suportável”. Nesta estratégia, “a religião dos escravos
desempenhou um papel fundamental”, assumindo, então, um caráter dialético de
“resistência-acomodação”. (LAMPE, 1987, p. 197).
Maximiliano Salinas, discutindo sobre a “presença africana na religiosidade colonial
do Chile”, procurou demonstrar a trajetória conflituosa que marcou as relações entre o
catolicismo oficial e sua apropriação pelos escravos. Segundo o autor, esta presença pode ser
dividida em “três atitudes da população negra”: a rejeição, o encontro e a conversão.
Segundo Salinas, o caminho da evangelização e a conversão real dos negros deveriam passar
pela identificação com o mistério do sofrimento e da justiça, “na qual se revela a justiça de
Deus [...]” (SALINAS, 1987, p. 212). É nesta perspectiva que o autor procura evidenciar a
trajetória de opressão e conversão do negro ao catolicismo, que passou a caracterizar a
religiosidade popular do Chile no decorrer dos séculos.
Apesar das peculiaridades de cada estudo até aqui apresentado, percebemos como
fio condutor destes escritos a preocupação com os aspectos teóricos e metodológicos,
apontando dificuldades documentais e tratamento “científico” no trabalho com as fontes.
Seguindo uma perspectiva social e a dialética “opressão-libertação”, buscaram apontar o
compromisso da Igreja Católica com o Estado colonizador, sem retoques e sem discursos
“apologéticos”.
Dessa forma, a CEHILA abriu um importante espaço de debate no qual o negro e
demais grupos “oprimidos” passaram a ser revisitados. Contudo, é importante destacar que,
apesar dos avanços e da proposta crítica, seus membros fazem parte de um grupo que buscava
sim revisitar as omissões e compromissos da Igreja com a escravidão, mas isso não
significava uma ruptura com a primeira, apesar de alguns acabarem se desligando mais tarde
de sua esfera de poder. Assim, o cristianismo permanecia como o fio condutor de tais
reflexões. Buscava-se aperfeiçoar as estratégias pastorais, e não destruir seus alicerces. Afinal
de contas, direta ou indiretamente, seus membros estavam ligados à hierarquia da Igreja,
como padres, frades, leigos, etc.
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missionário italiano frei José de Bolonha, que teria denunciado a imoralidade e injustiça do
comércio escravocrata. Sua atitude teve repercussões nas instâncias superiores, tanto no
episcopado quanto na Coroa. Esta última acaba por afastar preventivamente os capuchinhos
italianos do Brasil. Conclui, assim, que competia ao monarca, “como chefe efetivo da Igreja
implantada no Brasil, definir as normas éticas” (AZZI, 1991, p. 190). Contudo, não deixa de
afirmar que os interesses econômicos da Metrópole contavam com a colaboração do
episcopado, numa relação íntima entre o altar e o trono.
Como pudemos perceber, o tema ocupa pouco espaço nesta obra, chegando a apenas
nove páginas. Na verdade, este será o tratamento predominante em vários estudos, não
merecendo um espaço mais privilegiado em tais obras, ficando a cargo de alguns poucos
intelectuais da Igreja abrir uma brecha, em seus trabalhos, apenas como fragmento da história
da instituição.
A exemplo disso temos o livro de Martin N. Dreher, “A Igreja Latino-Americana no
Contexto Mundial”, publicado em 1999, período posterior às discussões da década de 1980,
mas que apresenta a mesma linha de pensamento dos demais estudos apresentados. Assim
como a obra citada de Riolando Azzi, esse estudo de Dreher foi produzido de forma
independente das publicações da CEHILA, mas apresentando como linha mestra as
orientações deste grupo. No primeiro capítulo, procura esclarecer alguns conceitos que
permeiam sua obra e os demais estudos sobre a História da Igreja. Procura esclarecer o
conceito de “pobre” – criticado por alguns estudiosos –, que passa a ser figura central na
Igreja Católica a partir do Concílio Vaticano II, e consolidado em Medellín e Puebla.
Segundo o autor, “da junção dos despossuídos europeus e dos despossuídos indígenas
surgiu o ‘pobre’. Ambos formam, juntamente com a massa de escravos negros, o plantel
básico da economia colonial [...]. É a partir desse povo pobre que se constitui a Igreja na
América Latina” (DREHER, 1999, p. 09). Este conceito, como já demonstramos, marcou
fortemente os diversos trabalhos sobre a História da Igreja, principalmente aqueles ligados a
Teologia da Libertação. Outro ponto que procura esclarecer refere-se ao tema Teologia.
Segundo Martin Dreher, para quem vai se ocupar com a Igreja, “o historiador não vai poder
se furtar ao tema da Teologia” (DREHER, 1999, p. 10).
Seguiremos agora analisando o capítulo nove, intitulado “Igreja e escravidão: a
América Negra e a História da Igreja”. O autor dá início à discussão levantando uma
questão facilmente constatada quando nos debruçamos sobre a historiografia acerca do tema:
“Há um capítulo da História da Igreja na América Latina que, via de regra, é deixado de
lado nos compêndios. Trata-se do capítulo relativo à América Negra. Muitos historiadores o
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O autor aponta que, durante muito tempo, a História da Igreja era escrita por
eclesiásticos e fazia parte dos Cursos Teológicos de preparação sacerdotal, dentro de uma
visão ortodoxa da fé, e “sob o olhar da fé se podia discernir a ação providencial de Deus na
história humana” (TERRA, 1984, p. 21). Mas a história eclesiástica tornou-se
“desprivatizada” ou “desclericizada” (TERRA, 1984, p. 22).
É interessante observar como o autor constrói todo um aparato que visa desconstruir a
“nova historiografia” que então se configurava, principalmente os estudos produzidos pelos
membros da CEHILA, notadamente as obras de Eduardo Hoornaert. Segundo Terra, esta nova
produção,
Igreja” que se emprenharam de forma mais adequada a tal pastoral (MIRA, 1983, p. 14). Esse
autor apresenta, de forma crítica, ações da Igreja e de seus membros no processo de
construção do escravismo no Novo Mundo, aproximando-se do discurso dos integrantes da
CEHILA. Utilizando-se, muitas vezes, das mesmas fontes que os dois autores acima, traz
interpretações completamente diferentes, buscando demonstrar o compromisso da Igreja na
legitimação da escravidão, através dos escritos de religiosos e teólogos, desde a Idade Média
até os letrados do período colonial.
Este autor, assim como alguns estudiosos ligados a CEHILA, traz à tona grandes
polêmicas, entrando em choque com visões mais “conservadoras” sobre a Igreja. Contudo,
como é notório em outros autores dedicados a História da Igreja, João Manuel Lima Mira
escreve para os seus pares, refletindo, principalmente, sobre a missão evangelizadora da
instituição e propondo uma nova postura para com o negro. Apesar de crítico e contrário a
uma postura “apologética”, seu estudo está comprometido com a Igreja, como os demais
trabalhos até então analisados. Mas, afinal, não poderíamos esperar postura diferente, dado o
envolvimento desses com a instituição, direta ou indiretamente.
1
Para uma visão mais geral acerca da produção sobre a escravidão, Cf.: SCHWARTZ, Stuart B. A historiografia
recente da escravidão brasileira. In Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001.
1
No livro Escravidão Negra e História da Igreja na América latina e no Caribe encontram-se alguns estudos
acerca da relação entre a Igreja “Protestante” e a escravidão. Cf.: MARSHALL, Bernard. Missionários nas ilhas
ocidentais britânicas; CAMPBELL, Carl. Missionários e marrons em accompong, Charles Town e Moores Town
(Jamaica), 1837-1838; MCGOWN, Winston. Cristianismo e escravidão: o escravo, o colonizador e a reação
oficial ao trabalho da sociedade missionária de Londres, em Demerara (Guiana), 1808-1813.
1
Como a maioria dos estudos sobre o tema voltou seus olhares para o período colonial, muitos historiadores
acabaram por destacar o papel dos jesuítas no processo de implantação e consolidação da escravidão negra no
Novo Mundo. Além dos estudos citados, Cf.: VAINFAS, Ronaldo. 1986. Ideologia e Escravidão: os letrados e a
sociedade escravista no Brasil Colonial. Petrópolis: Vozes; ALENCASTRO, Luiz Felipe. O Trato dos viventes:
formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000; MARQUESE,
Rafael Bivar de. Feitores do Corpo, Missionários da Mente: senhores: letrados e o controle dos escravos nas
Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004; NEGRO, Sandra; MARZAL, Manuel M.
(Comps). Esclavitud, economía y evangelización: las haciendas jesuitas en la América virreinal. Lima: Editorial
de la Pontificia universidad católica del Perú, 2005.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ano de 1988 teve grande impacto na produção intelectual sobre a herança escrava
brasileira, levando muitos pesquisadores a revisitar arquivos e teses há muito consolidados. E
a Igreja não poderia ficar de fora desta revisão. Livros, artigos de revistas e jornais
contribuíram para a polêmica em torno do papel da Igreja Católica na legitimação e
compromisso com a escravidão. Mas a instituição não ficou de braços cruzados.
A exemplo disso, além das publicações revisionistas – críticas ou moderadas – sobre a
História da Igreja, a Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB) lançou, em 1988,
como tema da Campanha de Fraternidade, a questão negra, com o slogan “Ouvi o Clamor
deste Povo” (CARVALHO, 1988, p. 34). Por pressão ou por “consciência coletiva”, o
“clamor deste povo” foi ouvido, levando a instituição a construir novas diretrizes para
aqueles que trazem marcas profundas deixadas pelo cativeiro. Os limites e impactos da
Campanha e outras ações nesta direção não serão avaliados aqui. Até porque, não é nosso
objetivo adentrar nas discussões pastorais. Aliás, este foi o principal fio condutor das
discussões em torno do tema, marcando os debates de grande parte dos escritos do CEHILA,
do CELAM e outros estudiosos que se dedicaram à História da Igreja neste período. O
exemplo citado acima evidencia a tomada de “consciência” da Igreja católica em relação ao
negro, relegado durante muito tempo tanto das preocupações intelectuais quanto pastorais da
instituição, como pudemos observar ao longo deste estudo.
No entanto, consideramos todos os estudos analisados, neste artigo, de grande
importância para o debate sobre a relação entre Igreja e escravidão negra na América. Mesmo
aqueles que apresentam um caráter mais “apologético”, trazem-nos informações e fontes
relevantes para a temática, contribuindo para que outros pesquisadores avancem na discussão.
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REFERÊNCIAS
AZZI, Riolando. A Crise da Cristandade e o Projeto Liberal. São Paulo: Edições Paulinas,
1991.
HURBON, Läernnc. A Igreja Católica nas Antilhas Francesas no Século XVII. In CEHILA.
Escravidão Negra E História da Igreja na América latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes,
1987.
MIRA, João Manoel Lima. A Evangelização do Negro no Período Colonial Brasileiro. São
Paulo: Edições Loyola, 1983.