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Ciência Hoje | A antropologia como problema do Ocidente 23/04/20 11(05

A ANTROPOLOGIA COMO PROBLEMA DO OCIDENTE


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Em trabalho recente, discuti as condições mais gerais de afirmação do projeto antropológico de conhecimento da alteridade cultural. Tomava como m
acepções da expressão “paradoxo de Bergson”, ambas apontando a existência de uma alteridade interna ao Ocidente, ao mesmo tempo silenciosa e
onipresente. Sem ela não poderia sequer ter-se configurado aquele projeto de conhecimento; mas com ela, por outro lado, todo movimento de busca d
diferença acaba por se revelar, de algum modo, expressão de uma profunda ‘mesmidade’.

A primeira acepção remete a uma passagem do livro O totemismo hoje, do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Ele comenta a interpretação q
Bergson (1859-1941), filósofo atento à ‘experiência vivida’, faz do totemismo e a considera mais próxima desse desafiador modo de classificação do que
excessiva racionalização desses mesmos fenômenos totêmicos desenvolvida por Émile Durkheim (1858-1917), um dos fundadores da sociologia e da
antropologia modernas.

A segunda acepção, mais propriamente filosófica, descreve a condição paradoxal em que se encontrou o pensamento de Bergson ao tentar expressar
do fluxo temporal (a ‘duração’, como ele denomina, para diferenciar de ‘tempo’, com suas demarcações compartimentadas) em uma linguagem – a noss
espacializante, objetivista e, assim, violadora do sentido da fluida experiência vital.

Meu ponto central é o do reconhecimento, cultivado na cultura ocidental desde finais do século 18,
de uma lógica da experiência humana que não se podia explicar apenas pela aplicação dos Meu ponto central é o do reconhecimento
princípios e métodos da ciência ‘normal’, aquela que se desenvolvera a partir das propostas de uma lógica da experiência humana que nã
Galileu e Newton, baseadas numa noção ‘realista’ de ‘natureza’ e numa estratégia de conhecimento podia explicar apenas pela aplicação dos
empírica imediata (a ‘experiência’ científica). princípios e métodos da ciência ‘normal’

O reconhecimento dessa ‘outra lógica’ teve grandes dificuldades em ter sua legitimidade aceita, já
que facilmente podia ser confundida com a dimensão religiosa ou com alguma renúncia à prática de um pensamento crítico, reflexivo, sistemático.
Filosofia da natureza
A publicação por Goethe de sua Doutrina das cores, em 1810, foi um dos grandes marcos desse processo, já que aí se buscava demonstrar que uma outr
podia ser feita dos fenômenos físicos; uma leitura que, ao denunciar o ‘materialismo’ ou o ‘reducionismo’ da teoria newtoniana da luz, afirmava a possib
de uma reflexão séria e coerente sobre o fenômeno humano da ‘visão’.

A obra fez parte de um movimento abrangente de ideias, característico do campo germânico, a que se veio a chamar de Naturphilosophie. Essa ‘filosofi
natureza’ teve a ambição de antepor ao princípio naturalista um outro princípio, em que o mundo pudesse ser compreendido como algo de maior e mai
complexo do que as evidências sensíveis podiam testemunhar, e em que a experiência vital, propriamente humana, não estivesse dissociada da definiç
descrição dos fatos e dos objetos.

O vitalismo, como corrente filosófica interna ao próprio establishment científico, fez parte desse
movimento amplo, que envolveu também o que se designa hoje como ‘idealismo’, ‘historicismo’ ou Em minha análise, privilegio o ‘romantism
‘romantismo’. Em minha análise, privilegio esta última categoria – a de romantismo – para designar para designar essas resistências e antepa
da maneira mais abrangente possível essas resistências e anteparos ao pensamento iluminista, ao pensamento iluminista característico d
característico da tradição central, ou hegemônica, da ciência ocidental. ciência ocidental

O surgimento de todas as ‘ciências humanas’ esteve comprometido com esse deslizamento bastante
peculiar da noção de ciência, na direção de um acolhimento da totalidade, do fluxo, da indissociabilidade entre sujeito e objeto; em oposição à ênfase n
e na redução objetivante.

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A história da antropologia, em sua acepção moderna, é indissociável da afirmação dessa filosofia romântica, da sua maneira de conceber a observação
análise dos fenômenos sociais e culturais humanos. Sua tarefa, em relação aos saberes irmãos, foi a de descrever e interpretar os testemunhos da
experiência humana em outras culturas, contemporâneas.

Alteridade

A tarefa da antropologia, em relação aos saberes irmãos, ‘foi a de descrever e interpretar os


testemunhos da experiência humana em outras culturas’, afirma antropólogo. (foto: Ron
Mueck/ Divulgação)

A alteridade, em seu caso, era assim de caráter imediato: os seres humanos, fora do âmbito da cultura ocidental, se comportavam, pensavam, sentiam
modo diverso do que se considerava normal, ‘civilizado’.

A solução inicial foi a que se conhece como ‘evolucionismo social’, ou seja, a hipótese de que essas outras formas não fossem mais do que estágios ‘atr
de um processo histórico linear coroado por nossa própria cultura.

A compreensão da alteridade cultural em seus próprios termos afastou-se lenta e conflituosamente da redução evolucionista e passou a propor esque
interpretativos que se aproximassem cada vez mais da lógica interna de cada uma dessas outras ordens simbólicas e sistemas sociopolíticos.

Nessa tarefa, a antropologia reconheceu que a própria cultura ocidental, particularmente em sua versão ‘moderna’, deveria ser objeto de uma observaç
comparativa sistemática; até porque crescia a consciência de que a análise da alteridade se embaralhava com nossos pressupostos culturais, configu
que se chamou, negativamente, de ‘etnocentrismo’.

Mas também porque os pressupostos da racionalidade formal, característicos do pensamento letrado, erudito, não davam conta do modo de agir e pen
maior parte das populações de nossos próprios países – por mais ‘modernos’ que se quisessem e por mais persistentes que fossem as iniciativas de
‘esclarecimento’ e ‘civilização’.

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Escultura Ron Mueck

Em busca de interpretações que se aproximassem cada vez mais da lógica interna de outras
ordens simbólicas, a antropologia reconheceu que a própria cultura ocidental deveria ser
objeto de uma observação comparativa sistemática, reflete Duarte. (foto: Flickr/ Charlievdb –
CC BY-NC-ND 2.0)

Consolidou-se assim um volumoso corpus de informações etnográficas, trabalhadas por hipóteses controladas, constituindo um cenário complexo de
alternativas investigativas a respeito de toda a experiência humana – ora focalizadas na compreensão de pontos precisos da vida cultural de tal ou qua
sociedade, ora dedicadas à elaboração de esquemas interpretativos mais ambiciosos, generalizantes ou universalizantes.

O pensamento de Bergson pode servir, então, como uma dobradiça fascinante entre as dimensões anti-iluministas ocidentais e a ‘outra’ lógica de comp
desafiadoras instituições exóticas, como o dito totemismo. A partir daí, considerei dois objetivos específicos: o de argumentar pela necessidade de um
consideração do romantismo como parte da complexidade ideológica da cultura ocidental e o de explorar o enigma subjacente ao paradoxo de Bergso
como formulado por Lévi-Strauss: o da afinidade ou ‘analogia’ entre o ‘pensamento selvagem’ e as modalidades consideradas não hegemônicas do próp
pensamento cultivado ocidental.

Procedi para tanto a uma interpretação de um conjunto de possibilidades epistemológicas hoje muito presentes e fortemente expansivas, que se pode
agregar sob a rubrica de um ‘horizonte pós’, em que uma série de categorias, nem sempre concordes (pós-moderno, pós-estruturalista, pós-social etc.
proclama a derrota da configuração ‘moderna’ dos saberes sociais e anuncia o advento de uma alternativa mais sensível e complexa.

Retornando ao pensamento de Bergson, considero que é um testemunho eminente da tradição romântica, ao se constituir explicitamente como denún
reação à tradição iluminista. Quando Lévi-Strauss elogiava sua capacidade de percepção do que estava realmente em jogo na lógica totêmica, aproxim
claramente essa longa e complexa tradição do cerne do trajeto antropológico: uma outra lógica ocidental capaz de se dispor a compreender as outras
humanas, consolidadas no vasto arco da experiência cultural extraocidental.

O ‘horizonte pós’, que reverencia Bergson, ao lado de Nietzsche, de Merleau-Ponty e de Deleuze, pode
ser assim visto como o mais recente reavivamento da reação romântica – após contribuições tão A complexidade ideológica do Ocidente in
marcantes quanto as de Franz Boas, Max Weber, Bronislaw Malinowski, Gregory Bateson ou Clifford uma tradição romântica claramente
Geertz, entre tantos outros e por variadíssimas vias. discernível, que reponta com força, a todo
momento, na filosofia, na arte e nas ciênc
A complexidade ideológica do Ocidente inclui uma tradição romântica claramente discernível, que
humanas
reponta com força, a todo momento, na filosofia, na arte e nas ciências humanas. Não há, assim,
como entender nossa atividade simbólica sem reconhecer e tornar explícitos os sentidos dessa
tradição.

A antropologia, por mais que se dedique com afinco à compreensão de experiências ‘outras’, só o faz porque atende à demanda daquela tradição e – ao
– sempre conserva o traço desse mandato original, ali mesmo onde mais lúcida e intensamente se dispõe a representar a alteridade cultural.

A antropologia é, assim, um problema ‘do’ Ocidente; porque é próprio de sua cosmologia constituir-se na lâmina divisória entre identidade e diferença,
ambição de um saber do mundo purificado de toda subjetividade e uma pulsão de compreensão da absoluta subjetividade de todo fenômeno humano.

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também no sentido de ser um problema ‘para’ o Ocidente: por mais ocidental que seja, ninguém mais criticamente aponta para os limites e riscos de no
ambições mais profundas.

Você leu o artigo de abertura do sobreCultura 12. Clique no ícone a seguir para baixar a versão integral do suplemento.

Luiz Fernando Dias Duarte


Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Matéria publicada em 06.07.2013

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