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DOI: 10.1590/1413-81232014194.

12052013 1065

ARTIGO ARTICLE
A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde

The narrative in qualitative research in health

Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos 1

Abstract The marked interest of the human and Resumo O forte interesse das ciências sociais e
social sciences in health in narrative studies has humanas em saúde nos estudos narrativos levou
led to many forms of incorporation of these con- a várias formas de incorporação das contribui-
tributions in qualitative research in health. It is ções desses estudos na pesquisa qualitativa em saú-
important to reflect on the contexts and charac- de. Torna-se importante refletir sobre os contex-
teristics of this incorporation. To accomplish this, tos e as características dessa incorporação. Para
we highlight the core theoretical issues involved tanto, destacamos as principais questões teóricas
and also situate this incorporation in the broad- aí envolvidas, assim como situamos essa incorpo-
er context of the scientific production in the hu- ração no contexto da produção científica mais
man and social sciences in health. We also stress ampla das ciências sociais e humanas em saúde.
the contribution of the narrative studies for re- Apontamos, também, a contribuição dos estudos
flection upon the relations between social struc- narrativos para reflexão sobre as relações entre
ture and action or between specific contexts of estrutura e ação social ou entre contextos especí-
social interaction and broader societal contexts. ficos de interação social e contextos societários
This contribution can be identified in relations mais amplos. Essa contribuição pode ser identifi-
established through narrative between interpre- cada na análise das relações narrativamente esta-
tation, experience and action throughout the belecidas entre interpretação, experiência e ação,
health-disease-care process. It is argued that nar- ao longo do processo de saúde-doença-cuidado.
ratives not only organize interpretations, but can Argumenta-se que as narrativas não somente or-
also represent a specific form of social agency. In ganizam interpretações, mas também consistem
this sense, the narrative interpretations and nar- em uma forma específica de agenciamento social.
rative performances can be seen as core elements Nesse sentido, as interpretações narrativas e as
in the social construction of experiences and tra- performances narrativas podem ser vistas como
jectories of illness and care. elementos centrais da construção social de expe-
Key words Narratives on illness, Narration, riências e trajetórias de adoecimento e cuidado.
1
Qualitative research, Sociology of health, Anthro- Palavras-chave Narrativas de adoecimento, Nar-
Instituto de Saúde
Coletiva, Universidade pology of health, Narrative analysis ração, Pesquisa qualitativa, Sociologia da saúde,
Federal da Bahia. R. Basílio Antropologia da saúde, Análise narrativa
da Gama s/n, Canela.
40.110-040 Salvador BA
Brasil.
mcastellanos73@gmail.com

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Introdução o mundo. Um contexto de crise de legitimidade


de instituições sociais (trabalho, escola, etc.) res-
O crescente questionamento da natureza ponsáveis por integrar, com certa estabilidade,
da narrativa nos convida a refletir sobre a grupos específicos em contextos sociais mais
própria natureza da cultura e [...] da hu- amplos, ou por inserir problemas sociais em
manidade [...] Como fato panglobal de cul- quadros explicativos e planos de ação (a exem-
tura [...] a narrativa deveria ser conside- plo das interpretações universalistas da história
rada uma solução para uma preocupação e da sociedade). A sociedade contemporânea, se-
geral humana, isto é, o problema de como gundo alguns5,6, se caracterizaria pela crise de le-
traduzir saber em contar, o problema de gitimidade das instituições como centro organi-
moldar a experiência humana em uma for- zador da vida social, em contrapartida à afirma-
ma assimilável às estruturas de significa- ção de um caráter mais volátil e efêmero das re-
dos que são genericamente humanas, mais lações sociais contemporâneas, assim como pela
do que culturalmente específicas1. presença da noção de risco7 nas relações cotidia-
nas, inscrevendo a ameaça e a incerteza nos pro-
As narrativas permeiam nossas vidas, em di- cessos de significação do viver. Essas situações
ferentes instâncias, em diferentes lugares, com- são propícias à (re)construção identitária a par-
pondo a espessura do viver. Do nascimento à tir da reflexividade sobre si mesmo.
morte, nos encontramos entremeados em nar- As ciências sociais e humanas vivenciaram
rativas. Não apenas pessoais ou familiares, mas uma verdadeira guinada para os estudos narrati-
também em grandes narrativas sobre o mundo e vos, nas últimas décadas, empreendendo forte
o viver. Por isso mesmo, despertam interesse em influência nas ciências sociais em saúde (CSS)8-12.
muitos campos das artes e conhecimentos – fil- Essa influência expressou-se, por exemplo, em
mes, teatros, textos literários, filosofia, linguísti- várias formas de incorporação das contribuições
ca, teoria literária, psicologia, ciências sociais. dos estudos narrativos na pesquisa qualitativa
Desde a filosofia clássica, Aristóteles já apon- em saúde. Assim, torna-se importante refletir
tava a existência de diversos gêneros narrativos sobre os contextos e as características dessa in-
(ou dramáticos) como a tragédia, a epopeia, a corporação.
comédia. Recentemente, outros gêneros podem Neste trabalho, procuraremos situar o inte-
ser apontados, como novelas, crônicas, contos. resse e o lugar das narrativas nas pesquisas qua-
Vivemos imersos em “grandes”2 e “peque- litativas em saúde. Privilegiaremos questões teó-
nas”3,4 narrativas. As grandes nos situam em cos- ricas relacionadas aos estudos narrativos em saú-
mologias e sistemas explicativos do mundo de de, sem descuidar de algumas reflexões metodo-
ordem religiosa, científica, filosóficas, etc. Ao mes- lógicas importantes.
mo tempo em que ordenam eventos e ações em Primeiramente, apontaremos elementos do
temporalidades mundanas ou sagradas, essas debate teórico das CSS que compuseram um pano
narrativas são reafirmadas ou transformadas de fundo para o crescente interesse pelos estudos
através de ações e eventos que afetam tais tempo- narrativos de adoecimento e cuidado, apontan-
ralidades (revolução copérnica, iluminismo, etc.). do suas repercussões para as direções e limites
As pequenas narrativas estão presentes em dife- desse interesse. A seguir, descreveremos a passa-
rentes contextos cotidianos, como família, escola, gem das narrativas do lugar de técnica de pes-
trabalho, consultório. Essas narrativas podem quisa e para o de objeto de conhecimento. Então,
consistir em histórias curtas, produzidas em con- discutiremos desafios encontrados nas relações
textos interativos cotidianos; mas, também, po- entre registro, análise e apresentação das narra-
dem orientar-se pela perspectiva biográfica. Em tivas na pesquisa qualitativa. Finalmente, discu-
ambos os casos, podemos identificar instâncias tiremos algumas questões exploradas nos estu-
de significação da relação eu/mundo. Aliás, a par- dos narrativos (auto)biográficos sobre a expe-
tir da modernidade, a dimensão biográfica torna- riência de adoecimento crônico.
se uma forma central de organização narrativa de
experiências pessoais e sentidos de ser e estar no Narrativas nas ciências sociais em saúde:
mundo, de maneira mais ampla na sociedade. contextos, usos e lugares
O interesse pelas pequenas narrativas tem
crescido bastante em um contexto histórico de As críticas à medicalização social e aos qua-
fragilização de teorias científicas e quadros ideo- dros teóricos macro-sociais (em particular, ao
lógicos que forneciam grandes narrativas2 sobre funcionalismo) compuseram um pano de fundo

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das CSS, a partir do qual cresceu o interesse pelas jetiva da experiência de adoecimento e cuidado
narrativas de adoecimento exploradas pelas pes- vivenciada pelo doente, em diversos contextos de
quisas qualitativas. cuidado20. Essa tendência se verificou especial-
A medicalização engendra um amplo proces- mente na literatura socioantropológica norte-
so de disciplinarização social do corpo13, relacio- americana sobre o adoecimento crônico21, com
na-se a processos de estratificação social das prá- forte emprego de estudos narrativos16, especial-
ticas de cuidado14 e produz efeitos iatrogênicos15. mente a partir dos anos 1980.
Se o projeto de medicalização social e a expansão Estudos orientados pela grounded theory, pelo
da medicina tecnológica avançaram a passos lar- interacionismo simbólico, pela teoria do rótulo,
gos, intensificaram-se também posicionamentos pela etnometodologia, passaram a explorar di-
acadêmicos críticos ao “imperialismo médico”16 e ferentes perspectivas e relações de conflito16,19 ins-
cresceram as práticas sociais de contestação do tauradas em práticas de saúde presentes em di-
modelo biomédico em favor da presença do plu- versos espaços cotidianos, a partir de conceitos
ralismo terapêutico e da diversidade de racionali- como carreira do paciente, trajetória de adoeci-
dades médicas17. Foucault18 mostrou como o olhar mento, estigmatização, processo de normaliza-
da clínica moderna fundamenta-se em discursos ção, dentre outros que exploram a dimensão pro-
e saberes, produzidos por um giro epistemológi- cessual e relacional do adoecimento. Os quadros
co relacionado a um modo específico de espaciali- teóricos, antes dirigidos à perspectiva macro-es-
zação do conhecimento e da intervenção sobre o trutural, orientaram-se, então, para os contex-
corpo, responsável por deslocar o foco do doente tos micro-sociais.
para a doença (biomedicamente definida). A definição do adoecimento como uma ex-
Esses fatores seriam responsáveis por refor- periência pessoal e social, através dos conceitos
çar a dominação (bio)médica na definição dos de illness e sickness22, e a formulação do conceito
problemas e intervenções terapêuticas em saúde, de modelos explicativos23, também, reforçaram
em detrimento de outras perspectivas e sujeitos. o interesse pelas narrativas de adoecimento. Klein-
Nesse contexto, o interesse pelas narrativas pes- man é um dos principais representantes da pers-
soais de adoecimento surge como um contra- pectiva “interna”, interessada na análise de nar-
ponto à perspectiva biomédica, ao procurar “dar rativas dos adoecidos crônicos a respeito de sua
voz”16 àquele que deveria ser o centro das aten- própria experiência24. Esses trabalhos influencia-
ções (doente), mas que permanece subordinado ram a literatura das CSS brasileiras, particular-
às práticas biomédicas e subjaz “apagado” nas mente, em estudos que exploraram os conceitos
análises funcionalistas dessas práticas. de representação social e de narrativa25-27.
O funcionalismo parsoniano contribuiu, na Caracterizado esse amplo contexto teórico de
década de 1950, para o entendimento da prática favorecimento do interesse sobre as narrativas
médica como uma prática social – definida como nas CSS, torna-se importante discutirmos alguns
uma agência de regulação social de situações des- dos seus lugares e usos na pesquisa qualitativa.
viantes. Porém, essa análise não se dirigiu aos Inicialmente, a antropologia e a sociologia uti-
conflitos inerentes à relação médico-paciente19. lizavam as narrativas de maneira instrumental,
Os conceitos parsonianos de “papel de médico” e tomando-a como uma estratégia de acesso ao real
de “papel de doente” previam a existência de su- objetivado em um dado plano teórico. Assim, as
jeitos abstratos que assumiriam homogênea e entrevistas realizadas com “informantes-chave”
acriticamente seus deveres. No caso do médico, por Malinowski consistiam em recursos para aces-
o dever de julgar a realidade da situação desvian- sar informações sobre a vida social dos trobian-
te (patologia) e de reestabelecer a normalidade deses do início do século XX, em um quadro de
do organismo (possibilitando o retorno do in- referência da antropologia social nascente. A Es-
divíduo a suas atividades cotidianas), com base cola de Chicago, nas décadas de 1930-40, utilizou
em condutas neutras e éticas, pautadas por sabe- histórias de vida para entrecruzar dados biogra-
res esotéricos socialmente legitimados. No caso ficamente informados com dados relativos a
do doente, desejar a cura ou reestabelecimento, amplos contextos sociais, visando a análise da
aderindo ao diagnóstico e tratamento. Assim, se sociabilidade urbana nascente na sociedade nor-
o funcionalismo parsoniano adotava uma “pers- te-americana. Nesses estudos, as narrativas figu-
pectiva de fora” sobre as práticas e concepções de ravam como uma técnica de pesquisa (algo ainda
saúde, a sociologia médica crítica a essa perspec- presente em diversas investigações atuais).
tiva enveredou por uma “perspectiva de dentro”, Porém, no transcorrer do século XX, com a
expressa predominantemente pela dimensão sub- crescente teorização das narrativas, realizada em

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diversos campos do conhecimento, as pesquisas Portanto, as narrativas realizariam media-


qualitativas em saúde passaram a tomá-las como ções entre o “interior” e o “exterior” ao “eu” na
objeto de conhecimento. relação ser-no-mundo.
Para tanto, as pesquisas apoiaram-se em for- A narrativa é um meio fundamentalmente
mulações teóricas sobre as narrativas, produzi- humano de dar significado à experiência. Ao con-
das em diferentes campos do conhecimento, tar e interpretar experiências, a narrativa estabe-
como aquelas dos formalistas russos, da socio- lece uma mediação entre um mundo interior de
linguística, da fenomenologia hermenêutica, den- pensamentos-sentimentos e um mundo exterior de
tre outras. ações e estados de espírito observáveis11.
Os trabalhos dos formalistas russos contri- As narrativas mantêm íntima relação com o
buíram para a construção de um quadro teórico domínio da cultura, uma vez que empregam si-
dedicado à identificação e análise de estruturas nais diacríticos1 do próprio sistema social/sim-
internas das narrativas (e para a tomada das bólico e que acionam formas narrativas cultu-
narrativas como um objeto autônomo de estu- ralmente ordenadas, em que são delimitadas iden-
do). Nessa abordagem28, cada parte da narrati- tidades, juízos morais, categorias classificatórias
va deve ser vista a partir de sua relação com o que orientam e conformam nossas experiências
todo, de sua função para o desenvolvimento da e interpretações sociais.
intriga organizada no enredo. Uma pergunta disparadora da análise sobre
Personagens e eventos devem ser analisados as relações existentes entre o contexto de produ-
como funções relacionadas à passagem de uma ção e a estrutura narrativa (e destes com o uni-
situação inicial a uma fase de transformação, verso cultural mais amplo) pode ser: por que a
culminando em uma situação final. Aí reside o história foi contada dessa maneira?10 A resposta
princípio de coerência narrativa, marcado pela pode ser buscada, por exemplo, através da identi-
presença de continuidade mais do que pela au- ficação da posição do narrador em relação à nar-
sência de contradições. rativa produzida e do foco e gênero da narrativa.
Bastante influenciado pelo formalismo rus- Hydén29 propõe a existência da: “doença como
so, Labov procurou identificar elementos míni- narrativa”, quando narrador, doença e narrativa
mos estruturantes das narrativas, a partir do combinam-se numa só pessoa (doentes/pacien-
enfoque da sociolinguística. Ele identificou fun- tes), produzindo assim narrativas em “primeira
ções estruturantes que se dirigem não apenas à pessoa” (sobre a própria experiência); “narrativa
análise interna da narrativa, mas também da sua sobre doença”, elaborada sobre a experiência de
dimensão avaliativa. Neste último caso, chama- adoecimento de outra pessoa, apresentando co-
se a atenção para os juízos de valor tecidos ao nhecimentos e ideias sobre a doença e eventos
longo da narrativa, através de reflexões do nar- relatados (ex. médicos, familiares, etc.); “narra-
rador sobre posicionamentos relativos aos even- tiva como doença”, quando uma doença envolve
tos narrados, explicitando as motivações das distúrbios na narração. Essa tipologia enfoca os
ações empreendidas. efeitos da posição do narrador sobre a elabora-
Os elementos encontrados pelo autor são: ção narrativa.
resumo, orientação, complicação, resolução, ava- Bury30 propõe uma tipologia que ressalta os
liação, conclusão (coda). Esses elementos per- principais temas, focos e estilos das narrativas de
mitem uma fácil identificação de unidades nar- adoecimento. As narrativas contingentes descre-
rativas a serem analisadas; porém, não levam em vem eventos que atuam como causas próximas
consideração elementos contextuais presentes na do adoecimento ou que expressam seus efeitos
produção narrativa, de grande relevância para a mais imediatos no corpo, no self e na vida cotidi-
análise da experiência. ana. Elas admitem uma visão “em espectro” que se
Gradativamente, a narrativa passou a ser to- apropria de conhecimentos biomédicos, integran-
mada pelas ciências sociais como lócus privilegia- do-os em narrativas pessoais fundamentadas em
do de análise da cultura, da ação social e da expe- categorias e valores que não estão pautados por
riência (pessoal e social). Nesse caso, a narrativa uma cultura “profissional”, mas sim pela experi-
é considerada uma forma universal de constru- ência de adoecimento. As narrativas morais ex-
ção, mediação e representação do real que parti- pressam a dimensão mais propriamente avaliati-
cipa do processo de elaboração da experiência va das dinâmicas e posições pessoais e sociais im-
social, colocando em causa a natureza da cultura plicadas nas alterações das relações entre corpo,
e da condição humana (conforme apontado na self e sociedade, engendradas ao longo do proces-
epígrafe do artigo). so de adoecimento e cuidado. Podem consistir em

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estratégia para manter uma distancia social ou Assim, podemos dizer que as narrativas pos-
controle moral sobre os eventos relatados, atra- suem um caráter performático, situacional e re-
vés de uma performance narrativa que defende uma lacional. Não há neutralidade na produção nar-
determinada visão de si mesmo e de sua experiên- rativa35, uma vez que língua e linguagem não são
cia de adoecimento e cuidado. As narrativas nu- transparentes, nem devem ser reduzidas a ins-
cleares estabelecem conexões entre experiência de trumentos comunicacionais neutros36. A narra-
adoecimento e níveis profundos de significado do tiva é um objeto inscrito em materialidades sim-
sofrimento. Implicam análise mais formal da nar- bólicas que não se constituem como sistemas fe-
rativa, a exemplo da identificação de seus gêneros chados, porém indicam campos de possibilida-
(heroico, trágico, cômico, etc.) e do uso particular des para seus sentidos e formas de estruturação.
de linguagens e metáforas (clichês, repertório sim- As narrativas colocam em causa os contextos de
bólico e linguístico). Permitem a análise da dire- produção e os processos de legitimação de dife-
ção das trajetórias narrativas de adoecimento (es- rentes interpretações inscritas nos contextos so-
táveis, progressivas ou regressivas)31. ciais em que são produzidas.
Essas tipologias são bastante úteis para res- Ouvir uma narrativa de adoecimento impli-
saltar aspectos mais gerais das narrativas, ainda ca testemunhar o sofrimento alheio através da
que não delimitem bases teóricas específicas para escuta ativa. Essa escuta pode manter em relação
se processar a análise. ao relato diferentes graus de entendimento, com-
A hermenêutica fenomenológica de Ricouer preensão e reconhecimento, conferindo-lhe ou
oferece uma base teórico-epistemológica para a não legitimidade e abrindo-se ou não ao estabe-
compreensão das espessuras significativas da expe- lecimento de empatia pelo relato e narrador.
riência humana na análise da instância narrativa. Frank37 defende fervorosamente a ideia de que
O mundo exibido por qualquer obra narrativa as narrativas consistem em recurso para lidar
é sempre um mundo temporal. Ou [...] o tempo com o sofrimento e “remoralizar” sujeitos adoe-
torna-se tempo humano na medida em que está cidos que tiveram sua identidade ameaçada. As-
articulado de modo narrativo; em compensação, a sim, para o autor, o mais comum e imediato pro-
narrativa é significativa na medida em que esboça blema daqueles que contam uma estória de ado-
os traços da experiência temporal32. ecimento é ser escutado, é encontrar aqueles que
Para o autor, como modalidade fundamen- responderão ao chamado de sua estória para o
tal de organização das complexas relações entre estabelecimento de um relacionamento ético (e
experiência-linguagem-interpretação, a narrati- não só intelectual) entre pesquisados e pesquisa-
va institui temporalidades da ordem do vivido. dores, por exemplo. Nesse sentido, restringir a
Com Ricouer, podemos dizer que o homem é narrativa a um texto a ser analisado pode perder
necessariamente um ser narrativizado, em con- de vista o propósito que motivou as pessoas a
traposição à ideia da morte do narrador33 nas engajar-se no relato.
sociedades urbano-industriais. Essas colocações nos convidam à reflexão
Se os estudos baseados nas contribuições dos sobre as relações estabelecidas entre pesquisados
formalistas russos privilegiam a análise da estru- e pesquisadores, por ocasião do uso de técnicas
tura interna da narrativa, aqueles baseados na específicas de produção narrativa, como as en-
hermenêutica privilegiam a abordagem da nar- trevistas. Mas também sobre os parâmetros éti-
rativa como uma obra textual que permite dife- cos e as relações (micro)políticas mais amplas
rentes relações interpretativas. da investigação. Para quem realiza pesquisa qua-
Uma terceira vertente seria dada pela reflexão litativa no campo da saúde, as implicações dessa
sobre o contexto de produção narrativa, interes- reflexão são complexas e profundas. Estas não
sada, por exemplo, nas performances narrati- devem nos imobilizar, mas, pelo contrário, mo-
vas34. Nessa vertente, a produção narrativa é con- tivar a conjugação entre relações dialógicas e ri-
siderada um ato relacional que envolve narrador gor científico, em posturas científicas e éticas
e audiência – um ato dimensionado no entrecru- comprometidas com a análise e a legitimação da
zamento do contexto cultural mais amplo e das polifonia. Trata-se, portanto, de uma conjuga-
interações sociais travadas na situação específica ção do interesse e do espírito crítico direcionado
de produção narrativa. às narrativas.
Criar uma narrativa, assim como escutar a Uma maneira de evitar uma análise ingênua
uma, consiste em um processo ativo e construtivo, das narrativas é assumi-las como uma instância
o qual depende de recursos tanto pessoais quanto de agenciamento social – portanto, perguntan-
sociais11. do-nos ao mesmo tempo pela sua especificidade

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e pelas suas inter-relações com diferentes dimen- A incorporação de importantes graus de teo-
sões da ação social. rização sobre as narrativas – seja em relação à
No início do século XXI, narração e narrativa sua estrutura interna, à sua participação na ela-
são modalidades eleitas como elementos-chave em boração da experiência social ou à sua dimensão
uma série de epistemologias orientadas para a ação performativa – nestes estudos em saúde permi-
social (por exemplo, Bakhtin, Foucault, Rorty)38. tiu aumentar sua criticidade e rigor analítico.
A narrativa é uma ação social que deve ser Atkinson tem feito diversas críticas à fragili-
analisada nos contextos específicos de interação dade do rigor científico de alguns desses estudos.
em que é produzida, mas também na interpela- Tais críticas não devem ser tomadas como ver-
ção das estruturas sociais (levando-se em conside- dades absolutas, mas certamente contribuem
ração as relações de poder e de distribuição social para o debate sobre os propósitos e as bases da
dos capitais em jogo nos contextos narrativos). produção do conhecimento nas ciências sociais
A narrativa não deve ser colocada em oposi- em saúde41.
ção ao domínio da ação social, como se as inter- Sem desconsiderar as contribuições de Klein-
pretações nela engendradas estivessem inscritas man para o entendimento da experiência de so-
em uma instância reflexiva completamente sepa- frimento, Atkinson12 aponta limites em sua abor-
rada dos demais tipos de agenciamentos sociais. dagem, em parte, porque esta desconsideraria a
Se, por um lado, os relatos obtidos em entrevis- não neutralidade das performances narrativas.
tas não equivalem à observação direta de even- Além disso, Kleinman realizaria uma aproxima-
tos e ações; por outro lado, toda observação pres- ção indevida entre etnografia e clínica, ao enfati-
supõe a instância interpretativa (muitas vezes, zar que consultas e entrevistas serviriam como
narrativamente organizada) e performances nar- estratégias para produzir performances narrati-
rativas que sustentem a posição de observador vas reveladoras de uma experiência biográfica
naqueles contextos de interação e que orientem “autêntica”, pois que realizadas por pessoas “re-
as interpretações dos eventos observados. ais” que vivem na pele o sofrimento. De fato,
Essas resalvas possuem importantes desdo- Kleinman defende que na etnografia e na clínica
bramentos para a exploração dos campos de pes- o profissional deve exercitar uma escuta empáti-
quisa. Ao tomar as narrativas como forma especí- ca das narrativas, considerando o encontro clí-
fica de agenciamento social, somos levados a con- nico como uma espécie de “minietnografia” indi-
siderar, por exemplo, que interações sociais tra- vidual.
vadas no contexto de pesquisa envolvem perfor- Para Atkinson, a etnografia não se resume a
mances narrativas em que são realizadas escolhas uma abordagem empática das pessoas e de seus
(conscientes e inconscientes) sobre as formas de relatos e Kleinman supervaloriza o ponto de vis-
(re)apresentação do eu (tanto do pesquisador ta individual daquele que sofre. Assim, privilegi-
quanto do pesquisado) e das motivações, valores ando um domínio específico de significados (do
e interesses que permeiam essas interações. paciente) e acentuando o poder autorrevelador
Good39 e Good e Good40 analisaram narrati- das narrativas (“autênticas”), Kleinman acaba-
vas sobre epilepsia na Turquia como representa- ria por impor a primeira ordem interpretativa
ções e agenciamentos sociais que se caracteriza- (dos pesquisados) à segunda (do pesquisador),
ram por estarem: orientados pelo contexto cul- estabelecendo uma hierarquia reversa daquela
tural mais amplo; abertos às incertezas relacio- encontrada no positivismo.
nadas à cronicidade; e, sensíveis aos contextos de Essa colagem da experiência na narrativa es-
interação social específicos em que são produzi- taria, portanto, conectada ao que Atkinson con-
das. Eles identificaram o que denominaram efei- sidera uma visão “neorromântica” do ator soci-
to de “subjuntivação” da realidade produzido nas al. Ao exacerbar o protagonismo desse ator em
performances (“táticas”) narrativas analisadas. detrimento da análise das interações sociais pre-
Essas táticas foram identificadas em diferentes sentes na elaboração da experiência e das narra-
arranjos entre as posições sociais ocupadas pe- tivas de adoecimento, o rigor metodológico seria
los narradores (vozes) e os tipos de justaposição substituído pela ética terapêutica (das atividades
das histórias contadas, produzindo uma subjun- clínicas, mas também de pesquisa) e a avaliação
tivação que suporta o caráter ambíguo da expe- crítica de diversas formas de representação do
riência de sofrimento, em um contexto cultural “eu” substituída pela afirmação da autenticidade
propício para a interpenetração de diversos mo- da revelação autobiográfica.
delos explicativos (mágico, religioso, científico) Atkinson considera importante o compro-
sobre a epilepsia. misso ético com os pesquisados, contanto não

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conduza à fragilização de posturas metodológi- rativos relacionados a internações compulsórias,
cas críticas. Atkinson12 identificou a formação de conluios e
Temos que colocar a narrativa em seu lugar, alianças em que se dão diferentes relações de po-
abordando-a no contexto dos múltiplos modos de der entre vozes dominantes e subordinadas.
performance, de ordenamento, de acionamento da Enfim, vemos que a perspectiva narrativa está
memória e de interação. A narrativa é apenas uma intimamente relacionada a um quadro geral de
das diversas formas de ação social12. discussões teóricas e de produção do conheci-
A abordagem narrativa dos profissionais de mento nas CSS, tornando-se um tema relevante
saúde, por exemplo, pode ampliar a compreen- de reflexão. Se não há definições amplamente
são dos contextos narrativos em que a perspecti- aceitas do que vem a ser uma narrativa11, isso
va do adoecido se constrói. Afinal, como bem ocorre porque as definições variam de acordo
lembra Henderson, em uma entrevista com o com a perspectiva teórica assumida em relação à
paciente: narrativa, à pesquisa e ao objeto analisado. Por-
Você deve ouvir, primeiro, o que ele deseja con- tanto, de acordo com o arranjo dado aos polos
tar-lhe, em segundo lugar, o que ele não deseja con- metodológicos47 da prática investigativa – epis-
tar-lhe, em terceiro lugar, o que ele não pode con- temológico, teórico, técnico e morfológico – en-
tar-lhe42. contraremos uma determinada correlação entre
Contar um caso é um elemento essencial da a definição, o lugar e o uso da narrativa na pes-
prática clínica, responsável por integrar diferen- quisa qualitativa. Porém, seja qual for essa cor-
tes representações biomédicas do corpo/sofri- relação, é fundamental que ela se dirija à especifi-
mento – produzidas de modo disperso no tem- cidade da narrativa, evitando classificar uma pes-
po e no espaço pelas tecnologias diagnósticas e quisa como um estudo narrativo na ausência
terapêuticas – em uma narrativa coerente e con- dessa especificidade.
vincente sobre a doença43,44. Hunter45 explorou Sem prejuízo de outras definições, assumimos
ao máximo o caráter interpretativo da clínica neste trabalho que, de um ponto de vista mais
médica, ao analisar diversos contextos e práticas formal, a narrativa se caracteriza: pela ordenação
narrativas dessa profissão. A dimensão narrati- sequencial de ações e eventos; pela configuração
va está presente nas práticas educacionais e pro- de personagens e cenários em que essas ações e
fissionais da clínica médica, consubstanciando- eventos são agenciados, colocando em causa a
se inclusive em uma competência narrativa46. sua relação com os contextos diegéticos (espaços
Atkison12 lembra que as performances nar- narrativamente estruturados ou internos à nar-
rativas dos médicos estão presentes nos encon- rativa); pelo enredamento desses elementos em
tros formais com o paciente ou com os profissi- histórias (que conformam um todo ou um uni-
onais, mas também espaços informais de diálo- verso temporal diegético). Porém, mais do que
go; e envolvem não apenas o relato de casos exem- uma mera descrição sequencial de ações e even-
plares, raros ou surpreendentes, mas também tos, entendemos que a narrativa consiste em uma
de casos anedóticos. O tipo de participação dos forma de estabelecimento do sentido de ser-no-
membros da equipe médica nas elaborações nar- mundo, na medida em que situa os eventos e as
rativas fundamenta-se em relações de poder. As- ações em “dramas” instituídos na ordem tempo-
sim, os médicos seniores, além de dominarem os ral do vivido. Nesse sentido, as narrativas são
diálogos, estão autorizados a falar de sua experi- modos de elaboração da experiência social. Isso
ência pessoal livremente, incluindo histórias ane- ocorre não somente nas narrativas autobiográfi-
dóticas, causos e outros gêneros narrativos. Os cas ou em primeira pessoa, mas também nas nar-
médicos juniores atuam como uma atenta audi- rativas que descrevem situações vivenciadas por
ência, limitando-se a pequenas complementações. personagens que não representam o narrador.
Essa situação aponta para a estreita relação entre
narrativa, memória e hierarquias profissionais Lógica da investigação e lógica
(e para a existência de uma economia simbólica da apresentação dos estudos narrativos
efetuada nos intercâmbios narrativos).
Extrapolando os serviços de saúde, interes- A narrativa pode ser considerada realização
santes análises podem ser feitas em relação con- estética e científica48 que, inserida no contexto do
textos narrativos em que há fortes conflitos ou pós-positivismo, procura resituar as relações
disputas – por exemplo, quando questões de saúde entre pesquisados e pesquisadores. Ela permite
mental são enfrentadas no âmbito judicial. Ex- diferentes entrelaçamentos entre as interpreta-
plorando o caráter polifônico de contextos nar- ções de primeira e de segunda ordem16, desafian-

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do as relações estabelecidas entre observação, lidade em novos estudos, sem procurar com isso
registro e interpretação e questionando as rela- diminuir a importância de tomarmos a narrati-
ções existentes entre a lógica da investigação e da va do pesquisado como material de análise con-
apresentação do conhecimento. sagrado nos estudos narrativos.
Em recente trabalho49, refletimos sobre esta Os comentários acima indicam que não há
questão. Lembramos que não apenas o formato relação necessária entre os polos metodológicos
da entrevista, mas as características do local, do da pesquisa narrativa. Diferentes arranjos entre
entrevistador e das estratégias de apresentação de esses polos podem resultar em perspectivas ana-
si podem influenciar o endereçamento das narra- líticas pertinentes, caso incluam reflexividade, sen-
tivas produzidas no contexto de investigação. sibilidade, teorização e criatividade, tanto na ló-
A entrevista narrativa50 vem sendo valoriza- gica da investigação quanto da apresentação da
51
da como recurso técnico específico para pro- pesquisa. Nesse sentido, rigor não deve ser igua-
dução de narrativas. Sem desconsiderar a con- lado à rigidez.
tribuição desse recurso para a consolidação dos
estudos narrativos nas pesquisas qualitativas (es- Das narrativas do “eu”
pecificando seu polo técnico), é importante reco- no contexto do adoecimento crônico
nhecer que boas narrativas também podem ser
geradas em entrevistas em profundidade52 ou Dada a relevância do enfoque biográfico nos
semiestruturadas43. Ademais, podemos identifi- estudos narrativos, com destaque para aqueles
car narrativas nas conversas cotidianas não mo- dirigidos à experiência de adoecimento crônico,
tivadas em um contexto de pesquisa, e ainda as- comentaremos algumas questões de interesse
sim com alto interesse científico3. para a presente discussão, sem tratá-las de modo
As análises narrativas pressupõem sua deli- sistemático. A contemporaneidade oferece um
mitação em unidades. Portanto, possuem uma amplo contexto de reflexividade sobre o “eu”.
orientação teórica que atravessa não apenas o A publicização da esfera privada da vida indivi-
conceito de narrativa, mas escolhas que confe- dual pode ser largamente identificada nas redes
rem materialidade a esta, a exemplo do modelo sociais e midiáticas53, mas também nas experiên-
de transcrição das narrativas10. Sem discordar cias de adoecimento35. Assim, quando a contami-
dessa premissa, lançamo-nos o desafio49 de rom- nação por HIV/AIDS conduz à militância54, a pu-
per com uma primeira instância narrativa (deli- blicização do eu-doente é uma prática social rele-
mitada na transcrição da fala do entrevistado) vante para a transformação da cronicidade em um
em direção a uma reconstrução narrativa (reali- ofício19. Essas práticas de narrativização do eu ocor-
zada pelo pesquisador). rem em espaços institucionais e não institucionais.
Assumimos a defesa de que a “narrativa do Bourdieu55 nos lembra que somos instados,
pesquisador” compõe um segundo nível interpre- a cada passo, a reafirmar nossa identidade bio-
tativo que, embora distinto do primeiro, tam- gráfica através do nome próprio, dos documen-
bém pode ser objeto de análise tanto quanto a tos de identidade, dentre outros marcadores res-
narrativa do entrevistado. Sustentamos essa po- ponsáveis por produzir o que ele provocativa-
sição em três ideias. Primeiramente, devemos con- mente nomeia de “ilusão biográfica”. Além disso,
siderar que a narrativa do entrevistado é afeita ao inspirados no enfoque foucaultiano56, podemos
contexto de pesquisa, portanto, não deve ser afirmar que as instituições de saúde comportam
naturalizada em sua “originalidade”, nem toma- arquiteturas intersubjetivas “confessionais” acio-
da como realidade neutra. Em segundo lugar, a nadas por tecnologias discursivas do self, pre-
própria transcrição e identificação das unidades sentes nos aconselhamentos, entrevistas, orien-
narrativas presentes no depoimento são frutos tações, etc. Ao explorar a apresentação do eu
de escolhas teóricas que orientam a pesquisa. Fi- como uma dramaturgia social, Goffman57 cha-
nalmente, a perspectiva do pesquisador pode e ma a atenção para os processos conflitivos de
deve ser objeto de análise nos estudos narrativos, negociação das interpretações e significados das
em um exercício de reflexividade metodológica que identidades pessoais, presentes nos contextos de
avance em um terceiro nível interpretativo – ou interação social. Nesse sentido, palavras, gestos,
seja, sobre a análise do processo de produção de roupas podem ser considerados estratégias per-
uma síntese que expresse a interpretação do pes- formáticas de apresentação do ‘eu”.
quisador sobre o material analisado. Há uma estreita relação entre o enfoque bio-
Essa análise narrativa apresenta uma possi- gráfico e os estudos narrativos58. O trabalho de
bilidade a ser experimentada com maior radica- Ochs e Capps59 destaca-se em uma corrente de

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estudos mais propriamente dirigidos à narrati- tes contextos de interação64, exigindo um intenso
vização do self. Para os autores: trabalho sobre si mesmo65, ao longo da trajetória
As narrativas pessoais ao mesmo tempo advêm de adoecimento. A reconstrução narrativa61 é uma
da e moldam a experiência. Nesse sentido, narrati- dimensão desse trabalho, a qual pode acionar re-
va e self são inseparáveis. Self é aqui entendido cursos e alterar relações de poder66,67.
mais amplamente como o desdobramento de uma A condição crônica joga o doente e seus cui-
consciência reflexiva de estar-no-mundo, inclu- dadores no lugar da incerteza, alimentando suas
indo sentidos do seu próprio passado e futuro59. preocupações com o devir e a reinterpretação do
Bruner60 considera as narrativas como um passado. Ela fomenta o enredamento da experi-
meio de ordenamento da experiência através da ência de adoecimento em elaborações narrativas
criação de dois cenários: da ação, o qual enfoca o sobre a trajetória de vida. Em um estudo sobre a
que os atores fazem em situações particulares e; construção social do processo de adoecimento
da consciência, o qual se refere àquilo que os per- crônico de crianças com asma ou fibrose cística,
sonagens sabem, pensam, sentem ou não sabem, procuramos analisar narrativas de adoecimento
não pensam e não sentem. As narrativas autobio- e cuidado em um enquadramento biográfico que
gráficas permitem a análise das escolhas toma- levasse em conta as trajetórias individuais e fa-
das nas formas de (re)apresentação do eu, tanto miliares43. Ao se perguntarem “por que eu?” e
no que se refere ao “mundo interior de pensa- “por que agora?”, os entrevistados produziram
mentos-sentimentos” (cenário da consciência) narrativas que estabeleciam (mais do que sim-
quanto ao “mundo exterior de ações e estados de plesmente retratavam) as direções de suas traje-
espírito observáveis” (cenário da ação) descritos tórias pessoais e familiares. Nesse sentido,
pelo narrador. A narrativa imita a vida, a vida imita a nar-
Ao longo do processo de adoecimento crôni- rativa [...] não existe essa tal coisa psicologica-
co, ocorrem reconstruções narrativas61 responsá- mente dita ‘a vida ela mesma’. Em último caso,
veis por reenquadrar as trajetórias de vida ao situ- trata-se de um trabalho seletivo da memória; além
ar o adoecimento em novos contextos de signifi- disso, relatar a vida de alguém é um fato interpre-
cação. Em trabalho clássico da sociologia das do- tativo60.
enças crônicas, sobre narrativas de mulheres com A análise das narrativas mostrou que os en-
artrite reumatoide, Bury62 formula o conceito de trevistados recorreram a suas histórias de vida
ruptura biográfica para analisar a maneira como para identificar elementos (de ruptura62 e de rea-
a experiência de adoecimento crônico afeta cen- firmação biográfica54) centrais para a organiza-
tralmente suas trajetórias de vida. Paralelamente, ção de suas experiências e para o direcionamento
Charmaz63, procurou compreender como o ado- de suas ações ao longo do processo de adoeci-
ecimento crônico pode ser dilacerante para a iden- mento crônico. Ao fazê-lo, integraram três tipos
tidade pessoal (self), requisitando a (re)elaboração de trajetórias: de adoecimento, de vida e das pró-
do sentido da vida e do viver (ou sua relaboração prias narrativas31.
narrativa). Esses trabalhos mostram que as nar- Não se tratou, portanto, de reificar o “eu”,
rativas participam como importante elemento de pressupondo acesso direto à experiência pessoal
agenciamento das dinâmicas que consubstanci- através do diálogo (entrevista), nem de sugerir
am a experiência de adoecimento crônico, ao or- uma suposta liberdade interpretativa sem limi-
ganizar interpretações e orientar ações sobre o cor- tes. Partindo do princípio de que os entrevista-
po, a vida, o cuidado e a identidade. dos adotaram performances narrativas para
Portanto, as narrativas de adoecimento crô- apresentar-se, por exemplo, como cuidadores
nico podem agenciar processos de ressignificação competentes e comprometidos de seus filhos,
da experiência cotidiana, “reparando” eventos dis- entendemos que eles buscaram, nessas narrati-
ruptivos que ameaçam as relações entre mente, vas, se legitimar frente a um representante do
corpo e mundo61, ao apoiar o reestabelecimento saber instituído (entrevistador-pesquisador).
dessas relações em novos termos e contextos. A Isso não diminui a pertinência científica das nar-
cronicidade implica movimentos de estabilização rativas, mas, pelo contrário, permite refletir so-
e de desestabilização não apenas dos sintomas e bre as escolhas responsáveis por estabelecer rela-
tratamentos, mas também das identidades e pro- ções entre experiência e trajetórias de vida, assim
jetos de vida que são postos em jogo em diferen- como entre pesquisador e pesquisado.

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Considerações finais quisador em relação à produção do conhecimen-


to, a serem exploradas no campo das ciências
Procuramos mostrar que os estudos narrativos sociais em saúde41.
levantam questões fundamentais para a produ- Não focalizamos as contribuições empíricas
ção do conhecimento nas CSS, provocando in- das pesquisas qualitativas centradas na análise
tenso debate sobre sua pertinência e seu rigor narrativa, pois privilegiamos a apresentação e a
analítico. Essas questões remontam às contribui- discussão de questões teóricas e metodológicas
ções e limites dos grandes quadros teóricos e bases de maior interesse. Privilegiamos algumas abor-
epistemológicas das ciências sociais, na medida dagens em detrimento de outras. Enfatizamos a
em que perguntam sobre as possibilidades de descrição de contextos dos estudos narrativos
análise das relações entre sujeito e estrutura, ação existentes nas CSS, sem explorarmos mais deti-
e experiência, público e privado, individual e so- damente sua diversidade temática.
cial. Seus processos de consolidação e de especifi- Finalizamos, lembrando que as pequenas e
cação teórica, técnica e morfológica atuam sobre grandes narrativas permeiam nossas experiências
os polos metodológicos da pesquisa qualitativa, enquanto pesquisadores inscritos em determina-
abrindo novas possibilidades de enfrentamento dos campos científicos. Se há uma crise das gran-
de velhas questões. A análise das articulações en- des narrativas totalizadoras, ainda assim, isso não
tre narrativa e ação social, sem reduzir um termo retira a importância de integrarmos nossas expe-
ao outro, foi destacada como um dos principais riências enquanto pesquisadores em narrativas
desafios enfrentados em parte dos estudos nar- mais amplas sobre esses campos. Na saúde coleti-
rativos. O investimento na análise da experiência va – talvez, mais do que em outros campos – isso
social representa um caminho frutífero para isso. nos leva a um eterno trabalho de Penélope, ou seja,
Defendemos que os estudos narrativos abrem a intensas reconstruções narrativas em direção aos
caminhos para o exercício de diferentes orienta- objetos desejados, trilhando assim antigos e no-
ções teórico-metodológicas e posturas do pes- vos caminhos em que estes se delineiam.

Agradecimentos

Agradeço a SS Coelho pelas indicações e revisão;


e a ED Nunes pelo incentivo e comentários.

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