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Em seu discurso preliminar, Bachelard aponta que, a tarefa primordial do espírito

científico, a geometrização da representação de uma experiência – isto é, seu delineamento e


ordenação em uma série de acontecimentos decisivos –, se encontra “[...] numa zona intermédia
em que o espírito1 busca conciliar matemática e experiência, leis e fatos”, ou seja, a zona de
intersecção entre o conhecimento empírico e racional. Ressaltando que tal ato de geometrização,
diante da falha epistemológica da avareza – definida por Gaston como a ruminação e
cristalização de conhecimento já adquirido, que se torna fator ofuscante para a produção de
novos saberes – já havia em alguns momentos considerada realizada, como diante do sucesso de
determinadas ciências físicas, o autor demonstra a frequente insuficiência desse esforço, devido
ao fato de que, numa primeira representação geométrica – pautada numa ingenuidade empírica –
implica em relações ocultas não aparentes em tais representações, que tendem a ser
consideravelmente contrárias as relações métricas aparentes. Diante dessas considerações, afirma
que o pensamento científico é levado para construções demasiadamente metafóricas, onde a
experiência empírica torna-se um pobre exemplo.

Bachelard aponta como exemplo de superação da descrição geométrica simplista o


papel matemático na física contemporânea, onde este deixa de ser descritivo para tornar-se
formador – passando do como fenomenológico para o porquê matemático. Dentro desse contexto
descreve que, ao examinar a evolução espiritual científica, destaca-se um deslocamento do
geométrico visual em direção à abstração completa – a primeira formulação de uma lei
geométrica seria, essencialmente, mera ordenação que abre perspectivas para a abstração, que
levará, enfim, para a organização racional da fenomenologia como ordem pura, onde a ordem é
uma verdade, e a desordem, um erro, tornando-a ordem provada. É vital para a obtenção de
clareza provisória que se divida a história do pensamento científico em 3 grandes etapas:

1. Representa o estado pré-científico, compreendendo desde a Antiguidade Clássica Até


os séculos do renascimento, como os sécs. XVI, XVII até XVIII;
2. Retrata o estado científico, começando ao fim do séc. XVII, se estendendo até o séc.
XIX e início do séc. XX;
3. Iniciando-se em 1905, com a Relatividade de Einstein, é o início da era do novo
espírito científico, onde através de sua teoria, Einstein deforma conceitos primigênios

1
Neste resumo compreendido como a vontade humana curiosa, que visa fazer ciência.
tidos como imortalizados – a razão multiplica objeções, dissocia e religa noções
fundamentais, propondo abstrações mais audaciosas, processo primordial para o
início do processo de abstração das experiências empíricas.

Vale ressaltar que o autor aponta que, apesar da mente lúcida apresentar restos da antiga
psique científica, o retorno a esses estágios não se caracteriza como prova da permanência da
razão humana, todavia, uma representação da sonolência do saber e da avareza do erudito – a
reconstrução do saber aqui se mostra, novamente, como etapa fundamental da abstração da
razão. Vale notar aqui que a ciência é posta como que em contradição a experiência comum, isto
é, a experiência sensível imediata – consiste na retificação de erros passados para enfim
construir-se a abstração, único meio que a torna verificável. Tal noção implica que, devido ao
caráter constante da reconstrução do conhecimento epistemológico, tais demonstrações tendem a
se beneficiar da desconsideração da ordem histórico e foco no âmbito de questões individuais ou
particulares, sempre passando de uma imagem pitoresca – correspondente a fenomenologia
primeira – para a formulação geométrica adequada, e, enfim a abstração. Bachelard aponta então
os três estados da passagem de uma imagem pitoresca para o estado final (a abstração):

1. Estado concreto: O espírito é entretido com as imagens primeiras do fenômeno, num


estado de glorificação da unidade do mundo e de sua diversidade;
2. Estado concreto-abstrato: O espírito acrescenta à experiência física esquemas
geométricos, paradoxalmente seguro numa abstração representada por intuição
sensível;
3. Estado abstrato: O espírito assume informações voluntariamente desligadas da
experiência sensível imediata e da realidade primeira.

Tais estados seriam guiados pelos diferentes interesses da alma, que formam a base
afetiva do espírito, e torna a paciência científica não sofrimento, mas sim vida espiritual:

1. Alma pueril/mundana: Animada pela curiosidade ingênua, assombrada pelos


fenômenos sensíveis primeiros;
2. Alma professoral: Imobilizada após sua primeira abstração, fica presa em seu
dogmatismo e fixada em antigos sucessos, ruminando seu saber e impondo
demonstrações através de dedução2
3. Alma com dificuldade de abstrair e chegar a quintessência: Consciência científica
dolorosa, entregue aos interesses indutivos3 imperfeitos, sem suporte experimental
estável e constantemente perturbada pelas objeções da razão, porém certa da
necessidade da abstração.
Ao analisar as condições psíquicas do conhecimento, Gaston encontra a convicção de
que o conhecimento científico deve ser colocado em termos de obstáculos – não externos ou
necessariamente internos, mas no próprio ato do conhecer. O primeiro desses obstáculos é a
opinião, que carrega preconceitos de conhecimentos anteriores e ofusca o processo de
reconstrução do saber – “[...] a opinião não pensa, traduz necessidades em conhecimentos” –
designando o objeto do conhecimento por utilidade, se impedindo de conhece-lo, não bastando
apenas, portanto, retificar e construir uma suposta retidão provisória através da opinião, criando-
se a necessidade de destruí-la por completo, já que a tendência com os anos é o seu
fortalecimento e o consequente enrijecimento do espírito, que cede ao espírito conservativo.
Outro grande obstáculo epistemológico é a noção de unidade na ciência, isto é, fatores filosóficos
de fácil unificação como o Criador ou a Natureza. O obstáculo epistemológico é, enfim, um
contra pensamento, que torna estagnada a evolução espiritual, cessa os questionamentos e
enrijece preconceitos, tendendo a generalização para objetos particulares, e não a formulação de
uma generalização a partir destes. Apenas o esforço da racionalidade – que parte da primeira
experiência empírica, que tem como intuito apenas abrir os horizontes para a abstração – dentro
do eixo racional-empírico, pendendo sempre, porém, para o lado racional, pode levar à
verdadeira abstração.

O autor conclui enfim, dizendo que não há verdade sem erro retificado – “A psicologia
da atitude objetiva é a história de nossos erros pessoais. ” O objeto não deve ser designado como
objetivo imediato, e deve haver uma ruptura entre o conhecimento sensível/empírico e o
conhecimento científico – as tendências normais do conhecimento empírico vêm carregadas de
pragmatismo e realismo imediatos, envolvendo o espírito de satisfação íntima e não evidência
2
Dentro deste contexto mencionada como em lógica, onde se parte de uma teoria geral para deduzir conclusões
sobre questões particulares.
3
Como em lógica, parte-se de elementos particulares para se chegar a uma lei ou teoria geral.
racional. O inicial estímulo psicológico fornecido pela necessidade de sentir o objeto não é um
estado de espírito científico, mostrando-se apenas como valor de convicção, que não chega
sistematicamente ao controle objetivo. Para atingi-lo, são necessários o freio e a repreensão do
estímulo, através do fracasso, já que sem o tal, tornar-se-ia o estímulo puro valor e, portanto,
embriaguez. Entretanto, não se admite que o conhecimento pode ter como ponto de partida o
conhecimento sensível freado e corrigido pelo comportamento – a impureza original do estímulo
não foi corrigida por repreensões do objeto e valores continuarão ligados aos objetos permitidos,
permanecendo, portanto, um compromisso falho.

A única forma de se ter certeza de que o estímulo deixa de ser a base da objetivação é a
reforma, ou o controle social – a objetividade deve ser fundada no comportamento do outro, ou
seja, deve-se escolher os olhos do outro para que se veja a forma abstrata. A dúvida e o controle
social deve ser prévia e atingir o fato, suas ligações – a experiência e a lógica. Utilizando o
exemplo da dificuldade em deslocar um objeto um milímetro de uma mesa, o autor aponta que
para tanto é necessário um aparelho, e, portanto, um corpo de técnicos, e ainda, uma academia de
ciências – o esforço do conhecimento científico dá-se, portanto, através da precisão social,
destruidora de insuficiências intuitivas e pessoais. A dualidade aparelho-teoria já não é mais
oposição, mas sim, reciprocidade.

Vale dizer ainda que é mister a caracterização do erro não como distração da mente
cansada, e sim, algo positivo e potencialmente útil – a partir do momento em que se considera
erro mera distração, exalta-se o orgulho e impede-se que a teoria seja adaptada ao erro,
favorecendo a adaptação do erro a teoria. O objeto ensina tanto quanto o espírito, da mesma
maneira que quem é ensinado, ensina – e deve ensinar, já que a não transmissão favorece a
formação do espírito sem dinamismo e autocrítica, enrijecido por dogmatismo. Sem o exercício
social de convicção racional, a razão age na alma como rancor. Uma lição recebida é,
psicologicamente, um empirismo – eu o escuto: sou todo ouvidos – e uma lição dada é,
psicologicamente, um racionalismo – eu lhe falo: sou todo espírito. Mesmo que a mesma coisa
seja dita, o que é ouvido sempre é um pouco irracional, e o que é falado, sempre é um pouco
racional – a atitude psicológica consiste, em um lado, resistência e incompreensão, e de outro,
impulso e autoridade, tornando-se elemento decisivo no ensino real. O dinamismo psíquico entre
racionalismo e empirismo é fundamental para tal.

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