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Uma biografia improvável – Roberto Kaz

O vírus é uma ameaça à humanidade, mas também, em certo sentido, um elo com a nossa versão celular
mais arcaica. No princípio, antes do verbo, nós talvez fôssemos um tipo de vírus CREDITO: VITO
QUINTANS_2020

Cena 1: planeta Terra, 4 bilhões de anos atrás. É um típico dia de sol, a temperatura oscila entre 75 e 100ºC. Não
há plantas nem bichos, apenas rochas, que se deslocam como seres vivos, tamanho é o número de terremotos,
tsunamis e erupções vulcânicas. Vez ou outra, o horizonte de furacões e raios é entrecortado pela queda de um
meteoro, evento comum num sistema solar ainda jovem, na flor dos seus 500 milhões de anos. Mais explosões,
mais terremotos, mais tsunamis.

Cena 2: Estados Unidos, 1952. Os cientistas Stanley Miller e Harold Urey, da Universidade de Chicago, tentam
reproduzir em laboratório o que seria a atmosfera daquela Terra vulcânica. Colocam água, hidrogênio, metano e
amônia dentro de um recipiente, que é depois aquecido, até que o líquido vire vapor. Bombardeiam o vapor com
descargas elétricas para induzir as reações que resultariam de uma tempestade de raios, e voltam a condensá-lo,
imitando a cadeia natural da evaporação seguida de chuva. Após uma semana de processo intermitente, a solução
aquosa antes estéril passa a abrigar cinco aminoácidos.
O experimento de Miller e Urey foi um divisor de águas na bioquímica por comprovar uma tese até então restrita
ao campo teórico: a de que moléculas inorgânicas, como o metano e a amônia, poderiam dar origem a elementos
orgânicos, como os aminoácidos. “O aminoácido não tem vida, mas é uma molécula complexa, que serve de base
para a formação das proteínas”, explicou o virologista Francisco Murilo Zerbini, da Universidade Federal de
Viçosa, em Minas Gerais. “E, se numa semana o experimento gerou essas moléculas, não é absurdo pensar que
numa escala de milhões de anos a atmosfera pudesse gerar os nucleotídeos.” Os nucleotídeos são moléculas
também complexas – as famosas letrinhas A (de adenina), T (timina), G (guanina) e C (citosina) que, combinadas,
servem de base para a estrutura do DNA.

O fóssil mais antigo já encontrado até hoje tem 3,5 bilhões de anos de idade. Trata-se de uma cianobactéria, um
organismo unicelular que, a exemplo de nós, humanos, e de qualquer protozoário, fungo, planta ou animal,
armazena sua informação genética em hélices duplas de DNA. Mas como foi que a natureza saltou de um cenário
de reações químicas elementares para um mundo de enorme complexidade biológica, em que uma célula é capaz
de se repartir ao meio, produzindo uma cópia de si mesma, de forma a se perpetuar?

Não são poucas as teorias que tentam explicar o surgimento da vida, questão fundamental que inaugura a ciência,
a filosofia e a religião. Uma tese razoavelmente bem aceita, ao menos entre virologistas, é a do “Mundo do RNA”,
assim cunhada em 1986 pelo bioquímico norte-americano Walter Gilbert, que ganhou o Prêmio Nobel de Química
antes disso, em 1980. Segundo a tese, a sopa primordial de elementos químicos pode ter levado os nucleotídeos
a se agruparem inicialmente em moléculas de RNA, que são mais frágeis, instáveis e, por assim dizer, mais
manobráveis que as de DNA (a molécula de RNA, que também é composta de quatro nucleotídeos, seria como
uma casa de alvenaria e a de DNA como um bunker de aço).

Em algum momento, essas moléculas de RNA teriam aprendido a se reproduzir. “O RNA é reativo, ele pode atuar
como se fosse uma enzima, ao contrário do DNA, que é estático”, explicou Zerbini. Enzimas são moléculas
dotadas de propriedades catalisadoras, ou seja, que podem induzir reações químicas. “A gente sabe que algumas
das enzimas são capazes de fazer o RNA se dividir. Se existe essa capacidade, não é exagerado pensar que outras
moléculas de RNA pudessem catalisar o processo inverso de juntar duas moléculas que estivessem próximas.”
Esse potencial de recombinação teria aberto caminho para uma infinidade de mutações genéticas, que podem ter
levado o RNA a consolidar o processo de reprodução e, em última instância, a “subir na vida”, evoluindo para o
invólucro mais seguro do DNA.

Hoje, todo ser vivo – a ameba, o mosquito, a bromélia, a água-viva, a gaivota, o baobá ou a baleia-azul – armazena
sua informação genética em DNA. A única exceção é o vírus, que pode armazená-la em DNA, mas também em
RNA, como é o caso do Sars-Cov-2, nome técnico do novo coronavírus responsável pela atual pandemia. Ele é
uma ameaça à humanidade, mas também, em certo sentido, um elo com a nossa versão celular mais arcaica. No
princípio, antes do verbo, nós talvez fôssemos um tipo de vírus.

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