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RESENHAS BOOK REVIEWS 2249

morte. Segundo o autor, não é a capacidade de decretar to acanhados na compreensão desse campo. Grande
a morte que faz do poder, poder, como historicamen- parte dos trabalhos desenvolvidos está muito atrelada
te é pensando. Mas, o contrário e paradoxalmente, é à análise e proposições de políticas e serviços de saúde.
a estratégia de obrigar a viver que acaba por consti- É importante chamar a atenção de que, por um lado,
tuí-lo. Em resumo, “o risco de morte é um pressuposto o êxito das possíveis transformações na reabilitação ou
absoluto de libertação”, daí as tentativas do poder em atenção psicossocial não depende apenas de formula-
conservar a vida dos seus súditos, incutindo nos domi- ções de estruturas políticas e institucionais. Para isso,
nados o medo da morte e o pânico de deixar de existir. devemos nos aproximar mais do ponto de vista dos su-
A morte é transformada em tabu. Por isso o suicídio é jeitos que vivenciam o sofrimento, isso é, compreender
condenado, ele subverte a relação de poder, corroen- melhor a cultura do outro de quem pretendemos tratar.
do-a. Teme-se a morte e aceita-se a vida vivida, esta é a É preciso levar em maior consideração o “usuário”, po-
idéia subjacente. “Ao negar e banir a morte, o poder age tencial ou não, nesse processo. Nesse sentido, é salu-
coerentemente: sabe que a liberdade do homem exige a tar um certo e dosado “distanciamento” dos contextos
existência da morte e que é esta existência – não temida institucionais. Por outro lado, não podemos esquecer
– que impele a ousar e a não esperar”, conclui o autor. que o sofrimento não é algo circunscrito ao corpo ou
E aponta para um então novo pensamento na proble- ao psíquico, mas que envolve os demais aspectos da
mática antropológica, desfocando o pensamento das vida. Assim, sem perder de vista um diálogo com as
mortes presentes e passadas para se preocupar com as instituições de saúde mental, é fundamental que os
mortes futuras, dos nossos filhos e as que estão sendo nossos pesquisadores ouçam mais as experiências e si-
disseminadas pelo planeta. tuações vividas pelos indivíduos fragilizados pelo sofri-
É urgente uma discussão sobre os limites da vida e mento psíquico. Um ouvir que pressupõe inclusive um
a quem os pertence. Viver extrapola as funções fisiológi- refinamento teórico-metodológico capaz de analisar e
cas, é uma trajetória que inclui experiências, sensações, expressar diferentes dinâmicas de conflitos e interesses
memórias e relações. A “boa morte” é o fechamento de presentes na vida cotidiana desses indivíduos. É com
uma boa vida. Por isso surge com força a noção de cui- essa perspectiva em vista que Bernadete Maria Dalmo-
dados paliativos, e com ela uma nova representação lin desenvolve o seu trabalho, Esperança Equilibrista.
social do morrer. Atualizam-se assim os estudos sobre a Cartografias de Sujeitos em Sofrimento Psíquico.
morte, construindo-se para ela, um novo modelo. Doutora em Saúde Pública (Universidade de São
Paulo) e professora titular do Curso de Enfermagem da
Gabriela Oigman Universidade de Passo Fundo, Dalmolin procura reno-
Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz,
var a discussão sobre reforma psiquiátrica no Brasil ao
Rio de Janeiro, Brasil.
examinar, mediante abordagem antropológica, a car-
tografia de sofredores psíquicos em um bairro (Cande-
1. Menezes RA. Em busca da boa morte: antropolo-
lária) de município de porte médio no Rio Grande do
gia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Edi-
Sul. Trata-se de um livro que aposta no investimento de
tora Garamond/Editora Fiocruz; 2004.
outras propostas terapêuticas para além dos recursos
da institucionalização. Nesse sentido, estimula a refle-
ESPERANÇA EQUILIBRISTA. CARTOGRAFIAS DE xão tanto para os profissionais da área da saúde mental
SUJEITOS EM SOFRIMENTO PSÍQUICO. Dalmo- quanto para o mundo acadêmico.
lin BM. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. O ponto de partida fundamental da pesquisa está
214 pp. na constatação de que, embora tenham existido vá-
ISBN: 85-7541-084-9 rias modificações na assistência especializada à saú-
de mental, a qualidade desses serviços deixa muito a
Há no Brasil uma intensa produção bibliográfica sobre desejar. Como diz a autora, “se, por um lado, podemos
questões relacionadas à saúde mental. Essa temática reconhecer que as alterações dos serviços especializados
tem sido objeto de estudo desde o século XIX, mas, a não deram conta de aprofundar e explicitar mudanças
partir dos finais do século XX, encontramos um recru- mais radicais, por outro, os indivíduos, suas famílias e
descimento significativo nessa produção. As razões são a própria comunidade buscam, em seu cotidiano social,
várias. Uma delas diz respeito às mudanças ocorridas responder às necessidades dos cidadãos portadores de
no campo da saúde mental, mais especificamente nas uma saúde mental que necessita de permanentes ‘reto-
transformações da organização da atenção ao sofri- ques’, de afetos diferenciados e escuta [não apenas tera-
mento psíquico. Em termos muito gerais, é possível pêutica] sensível” (p. 12). Assim, a tese proposta é que o
identificar o início dessas mudanças a partir da década modelo de atenção que predomina no campo da saú-
de 1960 com a proposta norte-americana de se esten- de mental ainda é refratário às possibilidades de vida
der a prevenção primária e comunitária na promoção dos sujeitos que vivenciam a situação de sofrimento
da saúde mental. Surgem dessa proposta duas grandes psíquico. A questão fundamental que nos traz a autora
linhas de pensamento sobre a organização do “modelo é que esses serviços tendem a homogeneizar, padro-
de atenção”: reformulação do tratamento em hospital nizar e tolher as produções subjetivas dos seus “usuá-
psiquiátrico e abertura de serviços comunitários. As rios”, condicionando-lhes muitos dos comportamentos
reflexões sobre essas duas diretrizes, especialmente a dentro e fora das instituições. Visto como “portador de
segunda, ocupam grande parte da atenção dos estu- transtorno mental”, dotado de uma possível “periculo-
diosos. Trata-se de uma preocupação importante para sidade social” e excluído da discussão de seu próprio
um país como o Brasil que vivencia uma reforma psi- projeto terapêutico, o sujeito em sofrimento psíquico
quiátrica e em que a qualidade da assistência à saúde passa ao domínio de uma instituição que desconsidera
mental continua se agravando. “a autonomia e a liberdade como elementos necessários
Embora tenhamos uma significativa produção in- às expressividades do sofrimento e à centralidade des-
telectual na área da saúde mental, ainda somos um tan- sas pessoas” (p. 12). A proposta do estudo é justamente

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(9):2248-2252, set, 2007


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identificar e caracterizar como o “usuário” de serviços lo das inter-relações entre os cinco protagonistas e os
de saúde mental constrói suas experiências. Elege a di- serviços de atenção à saúde. Observando que “há um
mensão da cidade (no caso específico, um município contraste entre um código moderno e humanizado que
de médio porte no Rio Grande do Sul) como lócus para perpassa os discursos e os projetos institucionais e ou-
compreender o modo de vida dessas pessoas e consta- tro conservador, presente nas interações cotidianas en-
ta que, se existe uma lógica típica dos serviços de saú- tre quem usa e quem opera os serviços. O primeiro não
de, há também uma outra lógica na prática cotidiana, a consegue romper com as práticas que, na sua maioria,
qual não é levada em devida consideração no percurso desvalorizam e fazem desaparecer o sujeito do sofrimen-
da institucionalização. Em síntese, o tema fundamen- to” (p. 180). Em seguida (capítulo 6), analisa duas situ-
tal da pesquisa é contrastar por um lado “o contexto da ações que refletem o caráter dialógico entre normas e
cidade [como um] pano de fundo homogêneo para um valores cifrados socialmente e as trajetórias de outras
poderoso recurso articulado ao mundo subjetivo e ex- práticas que procuram escapar a essas determinações
presso em ricos itinerários urbanos [e de outro lado] as sociais. O primeiro item refere-se aos impasses e ten-
instituições de saúde [que] se constituem em ‘tortuosas’ sões resultantes nos exercícios do direito de cidadania
tramas ao serem apreendidas nas microrrelações coti- promovidos pela Promotoria e Defensoria públicas em
dianas de quem vive, sofre e precisa lançar mão desse prol da saúde mental; o segundo, à busca pela sobrevi-
recurso em diferentes momentos da vida” (p. 194). vência de uma prática “tradicional” psiquiátrica apre-
Além da apresentação e conclusão, o livro está divi- goada pela mídia.
dido em seis capítulos. O primeiro traça uma breve his- A conclusão final é que, paradoxalmente ao que
tória da organização dos serviços. Inicialmente discute tem mostrado a história da psiquiatria (os loucos de-
em breves linhas as modificações e estratégias propos- vem ser retirados da sociedade por não conseguirem
tas no campo da saúde mental. Observa que a organi- seguir as regras mínimas de convivência), os protago-
zação da atenção à saúde mental do município estu- nistas estudados “vivem fraternalmente e apropriam-se
dado ocorreu de forma semelhante àquela das demais da cidade de tal maneira, que podem não só viver nela
cidades brasileiras. Resultante de um intenso processo como, ainda, estabelecer estratégias de vida, de reforço
migratório, o crescimento da cidade em questão passou de suas referências, de escolhas, o que torna esse ‘peda-
a demandar, sobretudo a partir de 1970, uma reorgani- ço’ um exercício vital para enfrentar outros momentos
zação dos serviços hospitalares. O hospital psiquiátrico da existência” (p. 196). Ou seja, cartografando as tra-
do município, cuja construção foi iniciada nos fins de jetórias desses indivíduos, Dalmolin chama a atenção
70, o Centro Comunitário de Saúde Mental desenvolvi- para o fato de que a rua permite “diversidade para
do pelo curso de psicologia da Universidade local e os (re)compor os cenários velozes e, por vezes, imaginários
Centros de Atenção Psicossocial (Caps) constituem os do campo psíquico, dando novos sentidos à existência e
principais serviços de saúde nesse campo. Todos eles concretizando projetos com tamanho valor social e sub-
refletem de formas diferenciadas as grandes linhas de jetivo” (p. 199). É no mundo urbano que esses protago-
pensamento sobre reforma psiquiátrica que atual- nistas “aprendem regras, constroem estratégias, exercem
mente ocorre no país. Conclui afirmando que pensar trocas, forjam alianças, driblam as repressões, criam
“num modelo pautado na reforma psiquiátrica requer saídas ou, no limite, mantêm-se conectados ao territó-
colocar questões como as do lugar social do sujeito em rio imaginário, como a via possível para sobreviver ao
sofrimento psíquico, suas potencialidades e possibilida- turbilhão do adoecimento” (p. 201). Tal proposição não
des, sua autonomia diante da vida e sua diferença, no retira a importância dos serviços de atenção à saúde.
centro de nossas discussões, enquanto trabalhadores de Muito pelo contrário. O argumento básico de Dalmolin
saúde mental. Esse modelo requer, ainda, a proposição é de que os profissionais de saúde devem desenvolver
de práticas em diferentes níveis, numa reorganização uma melhor compreensão do universo cotidiano dos
permanente com os diferentes atores sociais, capaz de “usuários” desses serviços para além do espaço institu-
produzir outras possibilidades de vida, mais inclusivas cional. A grande missão da reforma psiquiátrica consis-
e mais dignas da condição humana” (p. 40). te justamente em estabelecer laços entre “tecnologias
O segundo e o terceiro capítulo oferecem, respec- de saúde” e o mundo sócio-cultural dos indivíduos e
tivamente, informações sobre o espaço urbano onde grupos sociais.
a pesquisa e o referencial teórico foram realizados. A
autora identifica cinco sujeitos reconhecidos pela co- Paulo César Alves
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
munidade como “doentes mentais”. Todos eles foram
Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil.
designados com nomes de pássaros (bem-te-vi, João-
de-barro, beija-flor, pomba-rola e sabiá). Com objetivo
de apreender as experiências desses indivíduos que, no
seu cotidiano, vivem/convivem com o sofrimento psí-
quico, Dalmolin parte do pressuposto de que conhecer
esse sujeito, na ótica etnográfica, requer saber localizá-
lo em um espaço específico na multiplicidade de espa-
ços sociais existentes do mundo urbano. Daí recorrer
ao conceito de “cartografia” para caracterizar os distin-
tos mapeamentos delineados pela pesquisa. O capítulo
3 está destinado a uma breve incursão nas concepções
psicológicas e antropológicas utilizadas na pesquisa. O
capítulo seguinte é dedicado a mapear os percursos ou
trajetórias percorridas pelos cinco sujeitos de estudo e
as estratégias que desenvolvem nos movimentos que
realizam pelo bairro. A autora trata no quinto capítu-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(9):2248-2252, set, 2007

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