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O objetivo da publicação deste dicionário


foi o de produzir e socializar uma síntese de
compreensão da Pesquisa Narrativa hoje,
com base nas criações cotidianas defendidas
por aqueles que há muito produzem neste
campo. Visa a atingir um público diversificado
de pesquisadores, educadores, estudantes e
outros interessados.

Os verbetes aqui apresentados convidam


ao diálogo com possíveis leitores da obra.
Alguns têm referência direta com experiências,
sujeitos e narrativas concretas que compõem
o movimento da Pesquisa Narrativa na
atualidade. Outros verbetes nos atravessam,
enredando conceitos que passeiam em
diferentes campos de conhecimento e se
fazem presentes também em nosso modo de
pesquisar.

Esta primeira edição do Dicionário inclui


40 verbetes e envolveu 49 autores em sua
produção, permanecendo aberta a novas
contribuições, ajustes e mudanças, como é
próprio dos dicionários. Assim, xs leitorxs já
estão de antemão avisados: não encontrarão
aqui definições como se o mundo dos conceitos
e das categorias analíticas fosse estático. Tudo
o que aqui se traz já tem tradição e, ao mesmo
tempo, carrega abertura para possibilidades.
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Copyright © 2022 Graça Reis, Inês Barbosa de Oliveira & Patrícia Baroni
Copyright © 2022 Ayvu Editora

CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO


Adrianne Ogêda Guedes (UNIRIO)
Alberto Roiphe (UFS)
Aline Dornelles (FURG)
Ana Regina e Souza Campello (INES)
Carmen Sanches Sampaio (UNIRIO)
Carlos Skliar (Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Argentina)
Elizabeth Orofino (UFPA)
Fábio Mariani (IFMT)
Francisco Ramallo (Universidad Nacional de Mar del Plata, Argentina)
Gary Anderson (New York University, EUA)
Iris Verena Oliveira (UFBA e UNEB)
José Domingo Contreras (Universitat de Barcelona, Espanha)
Leonardo Peluso (Universidad de la Republica, Uruguai)
Neila Ruiz Alfonzo (CPII)
Rafael Marques Gonçalves (UFAC)
Ricardo Januário (INES)
Valdeney Lima da Costa (UESPI)

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Rafael de Souza
REVISÃO
Nathalia Pereira Jardim
PROJETO GRÁFICO DE CAPA
Israel Silva

Direitos desta edição reservados à editora Ayvu


Proibida a reprodução total e parcial

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ayvueditora.com | ayvueditora@gmail.com
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Esta obra foi avaliada por um pesquisador


integrante do Conselho Editorial Acadêmico
da Ayvu Editora e um parecerista Ad hoc.
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sumário
prefácio 9

apresentação 15

a
(auto)biografia 19
(auto)formação 33
afetos 41
afirmação 50

c
complexidade 57
confissões (auto)biográficas 68
constelações (como narrações) 75
contra-hegemonia 84
conversa 92
corpo-oralidades 98
cotidiano 106
cuidado de si 114

d
decolonialidade 122
diferença 131
diversidade 138
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e
ecologia de saberes 145
escrevivência 153
escuta visual 161
escutatória 169
experiência 178

f
formação contínua 186

g
glocalidade 194

h
homem ordinário 203

i
intimidade 211

m
memória, narrativa e pedagogia 221

n
narrativa como forma de conhecer as
experiências do mundo 228
narrativas da, com a e na educação
de jovens e adultos 236
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narrativas docentes 244


narrativas e bakhtin na educação: narrativas
pedagógicas e metodologias narrativas de
pesquisas em educação 251
narrativas indígenas 261
narrativas interseccionais 268
narrativas míticas 274
narrativas na educação antirracista 280

o
o outro como legítimo outro 289

p
pesquisaformação 297
práticasteorias 308

s
singularsocial 316

t
a testemunha, o testemunho 325
tempo e narrativa 331
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prefácio

Este livro tem o destino de todo o dicionário. Do


ponto de vista de sua produção, ele é um retrato de um
tempo. Em seu emprego habitual, como “repositório”
do léxico de uma língua, ora apresentado em contra-
ponto a outra língua que o traduz e que usamos para
a leitura em línguas estrangeiras, ora como tentativa
ingrata de “definir” sentidos para cada item lexical,
o que necessariamente implica o emprego de outros
itens lexicais, também estes “definidos” no mesmo di-
cionário, razão pela qual poderá apresentar traços de
circularidade. Como “retratista” do léxico de um tem-
po, sabe o autor que ao dar seu trabalho como pronto,
também o entrega como já incompleto. Mas o dicioná-
rio exerce um poder espúrio e normativo que não lhe
cabe: na emergência de uma palavra não dicionariza-
da, aparecem aqueles que sempre defenderam a per-
– sumário –

manência no passado da língua a esbaforir anátemas


condenatórios sobre o faltoso inventivo, numa atitude
prima-irmã do conservadorismo político, científico e
metodológico.

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graça reis, ines barbosa de oliveira & patricia baroni (orgs.)

Na apresentação deste Dicionário de Pesquisa


Narrativa, a exclusão da normatividade se torna evi-
dente em dois de seus componentes: é um dicionário
de verbetes ensaísticos – próprios do gênero enciclo-
pédia – em que se circunda um tema sobre um con-
ceito, mas aqui, fugindo mesmo ao estilo enciclopédi-
co, alguns dos verbetes são narrativos, de modo que
caberá axs leitorxs extrair de um relato um conceito
para a expressão que lhe abre um espaço de emergên-
cia; em segundo lugar, as apresentadoras dizem cla-
ramente que esta primeira edição do Dicionário inclui
40 verbetes e envolveu 49 autorxs em sua produção,
permanecendo aberta a novas contribuições, ajustes
e mudanças, como é próprio dos dicionários. Assim,
xs leitorxs já estão de antemão avisados: não encon-
trarão aqui definições como se o mundo dos conceitos
e das categorias analíticas fosse estático. Mas não se
creia que admitir pluralidade de sentidos é fugir ao ri-
gor. Apenas não se confunde rigor com ranço e rancor.
Tudo o que aqui se traz já tem tradição e, ao mesmo
tempo, carrega abertura para possibilidades.
O gênero escolhido do verbete ensaístico per-
mite, para benefício dxs leitorxs, que cada autor/a
nos apresente uma espécie de arqueologia e, ao mes-
mo, tempo um panorama atualizado de cada concei-
to. O conjunto dá axs leitorxs um “estado da arte” da
investigação narrativa, desde seus primórdios como
herdeira das (auto)biografias até os mais avançados
percursos possíveis que tomam a narrativa ou relato
de experiência como objeto e alavanca da construção
de conhecimentos.
Do ponto de vista dos múltiplos empregos que
podem ser feitos, o dicionário é algo que se consulta
e que por isso mesmo oferece pistas de compreensões
porque condensa, como o faz toda língua, uma histó-
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dicionário de pesquisa narrativa

ria que se projeta para o futuro. Este é, portanto, um


livro de consulta. Não deve ser lido de sua primeira
à última página de um só fôlego. Ele é necessário, é
preciso tê-lo à mão, disponível, manuseável. Xs pes-
quisadorxs que o consultam encontrarão aqui pis-
tas para um caminho que necessariamente deverão
construir. O dicionário lhe oferece alavancas, lentes e
alertas conceituais.
Para aquelxs que consideram a investigação
narrativa como uma facilitação da pesquisa como se
fosse um “contar histórias”; a variedade e a comple-
xidade dos conceitos analíticos envolvidos neste tipo
de pesquisa recebem aqui um convite: achegue-se e
compreenda. Não há apenas uma verdade: a verdade
é uma construção e a investigação narrativa não é a
narrativa, não é o relato. Este oferece as pistas porque
condensa saberes, mas quais saberes serão postos em
evidência é produto da análise. Um/uma investigadxr
busca nos desvãos do dito e do dizer os sentidos que os
fundam. Seu instrumento de trabalho são os concei-
tos analíticos ou categorias. Cada um de seus sujeitos
é singular, e em cada história singular, um aconteci-
mento singular, ainda que a narrativa tenha um mes-
mo fato como seu tema. Mas a análise detecta que o
singular somente existe no plural. A experiência se
conduz por saberes postos em movimento, tais como
presentes no aqui e agora do acontecimento.
A palavra que narra a experiência não é uma pa-
lavra ontofônica que tem o poder de fazer aparecer ex-
plicitamente o saber que lhe subjaz. Há que escová-la a
contrapelo, não esqueçamos. E há que ter os cuidados
para que esta escovação não exclua os tons emotivo-a-
valiativos que aparecem na narração, como se fossem
impurezas de que o conhecimento deva escapar como
o diabo escaparia à cruz. Por muito tempo, a pesqui-
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sa em humanidades, especialmente aquela gerada no


positivismo, buscou apagar as vozes e seus múltiplos
tons em suas compreensões. A verdade expressa por
estes tons, sem os quais não haveria enunciação, cor-
relaciona a avaliação, que vem da ordem do geral ao
momento único, irrepetível e singular do acontecer. E
a vida se dá aqui, no único e singular.
Assim, a investigação narrativa faz um trânsito
contínuo entre o singular e o social que o funda, não
recusa a mobilidade e nem exclui outros horizontes de
compreensão: convive com o múltiplo em diálogo. Não
se trata de construir exclusões, mas mostrar incom-
patibilidades de compreensões e até mesmo as razões
de desvios das compreensões. Não se trata de dizer
“a verdade” como se esta somente fosse aquela que se
repete sempre igual a si mesma. Ensina-nos Bakhtin.

É um triste equívoco, herança do racionalismo,


imaginar que a verdade (pravda) só pode ser a ver-
dade universal (istina) feita de momentos gerais, e
que, por consequência, a verdade (pravda) de uma
situação consiste exatamente no que esta tem de
reprodutível e constante, acreditando, além disso,
que o que é universal e idêntico (logicamente idên-
tico) é verdadeiro por princípio, enquanto a verda-
de individual é artística e irresponsável, isto é, iso-
la uma dada individualidade. (Para uma Filosofia
do Ato Responsável, p. 92).

Nos tempos em que vivemos, com ataques contí-


nuos à ciência, reeditando como arremedo um tempo
que esperávamos sepultado, defender a ciência é gesto
de resistência. E faz parte do fazer científico a crítica,
como muitas críticas que aparecem nos verbetes à ci-
ência dita moderna, mas não é do fazer da ciência a
destruição, própria da ignorância ambulante. Por isso,
nada mais necessário para nós, pesquisadorxs, do que
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dicionário de pesquisa narrativa

um dicionário que ofereça, no emaranhado da comple-


xidade em que nos movemos, algumas possibilidades
de percurso altivo: eles passarão, nós continuaremos
a produzir conhecimentos, compreensões do mundo
e do cotidiano em busca de outro mundo em que este
tipo de ignorância não tenha mais espaço. Desejar fa-
zer desaparecer a truculência e a desumanização não
é excluir, porque esta supõe encerrá-las em guetos em
que refermentem para reaparecer. Ao captar as trucu-
lências e as violências do cotidiano, busca-se explicá-
-las e não as justificar. É impossível não encontrar a
faceta da maldade egocêntrica nos fatos, porque ela é
matriz do sistema sob o qual vivemos. A ciência não é
egocêntrica: é gesto de amor.
Quem narra, ama e deixa uma herança e um re-
cado. Quem o escuta, aprende e segue adiante, acumu-
lando narrativas com outros tantos recados: história
humana. Apesar das imposições da ordem – ela só
pode existir como imposição –, as experiências são
múltiplas e plurais em seus sentidos. Narrá-las é ofe-
recê-las à escuta. E a escuta exige silêncio, quando a
ordem nos comanda: repita, repita. Mas não esqueça-
mos: a ordem é ditame do senhor, e o senhor somente
permanecerá existente enquanto houver escravos. Ao
narrar o contido, visibilizá-lo e buscar construir com-
preensões, resiste-se ao desaparecimento de vozes
antes inaudíveis.
A beleza deste Dicionário está no fato de, ao
nos mostrar a complexidade, oferecer à consulta um
conjunto de conceitos que podem ser compaginados,
ainda que provenham de teorias distintas. Cada uma
das ferramentas conceituais escova de certo modo e,
ao desdobrar as palavras, faz emergir outros sentidos.
A totalidade inalcançável ficará sempre no horizonte,
reconhecendo que não há uma essência, um princípio
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único a ser extraído pela abstração, mas uma interpre-


tação enriquecedora e de grande valor gnosiológico e
humano.

Barequeçaba, novembro de 2021

Corinta Geraldi
João Wanderley Geraldi

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apresentação

O Dicionário de Pesquisa Narrativa é uma obra


de produção coletiva com termos e conceitos muito
utilizados em nossas pesquisas, publicizando, assim,
nossas experienciações no campo. Sua elaboração
envolve um número significativo de pesquisadores,
do Brasil e do exterior, dispostos a compartilhar ex-
periências e reflexões com a pesquisa narrativa de-
senvolvidas em suas redes, com tessituras produzidas
em outras tantas redes acerca das múltiplas relações
envolvendo movimentos sociais, culturas, práticas
educativas e (re)existências. Nosso objetivo foi o de
construir e socializar uma síntese de compreensão da
Pesquisa Narrativa hoje, com base nas criações coti-
dianas defendidas por aqueles que há muito produzem
neste campo. Os verbetes aqui apresentados convidam
ao diálogo com seus respectivos leitores.
– sumário –

Assim sendo, este Dicionário visa a atingir um


público bem diversificado: pesquisadores (narrativos
ou não), educadores, estudantes e todos aqueles que
compreendem que a abordagem metodológica em

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uma pesquisa desenha a reflexão política e epistemo-


lógica da própria pesquisa.
Alguns verbetes têm referência direta com expe-
riências, sujeitos e narrativas concretas que compõem
o movimento da Pesquisa Narrativa na atualidade.
Outros verbetes nos atravessam, enredando conceitos
que passeiam em diferentes campos de conhecimen-
to e se fazem presentes também em nosso modo de
pesquisar. Esta primeira edição do Dicionário inclui
40 verbetes e envolveu 49 autores em sua produção,
permanecendo aberta a novas contribuições, ajustes e
mudanças, como é próprio dos dicionários.
A Pesquisa Narrativa é compreendida nesta obra
com base na noção e na percepção do conhecimento
como rede tecida pelos praticantes da vida cotidiana,
voltando-se, portanto, para a valorização das redes de
conhecimentos cuja validade epistemológica e políti-
ca vem sendo negada pela modernidade. Nesse bojo,
as narrativas se apresentam como modo de compre-
ender o que se passa nos cotidianos pesquisados, que
exercita o não desperdício das experiências vividas,
em diferentes espaçostempos e por diferentes sujeitos,
valorizando-as pelo modo como nos aproximamos dos
campos. Dessa maneira, podemos perceber, por exem-
plo, o quanto a formação é um processo singularsocial
ou o quanto os currículos praticadospensados são teci-
dos nos cotidianos, podendo, assim, superar as expli-
cações abstratas sobre o que se pesquisa, substituin-
do-as por modos de compreensão da complexa rede
de práticas, conhecimentos e valores que fazem parte
dos diferentes cotidianos pesquisados. Entendemos
que, além de imprecisas, essas explicações abstratas
ignoram os múltiplos fazerespensares que habitam os
cotidianos, enredando-se uns aos outros, bem como os
sujeitos que os protagonizam.
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dicionário de pesquisa narrativa

Por meio da pesquisa narrativa, pode-se com-


partilhar experiências e práticas locais, legitimando a
criação dos diferentes sujeitos e dos diversos conheci-
mentos tecidos cotidianamente. Nesse sentido, a pes-
quisa que envolve as narrativas tem nos mostrado que
há experiências epistemológicas diversas, formado-
ras e emancipatórias que, quando narradas e compar-
tilhadas, se traduzem em realidades emancipatórias
(Oliveira, 2012). Entendemos que o ato de partilha re-
força a ideia de autoria, de solidariedade e de pertenci-
mento, transformando em conhecimento-emancipa-
ção aquilo que é local, criado e disseminado através do
discurso argumentativo e que só pode haver discurso
argumentativo dentro de comunidades interpretativas
(Santos, 2010, p. 95).
Central em todas as pesquisas que vimos conhe-
cendo e desenvolvendo é a opção teórico-epistemoló-
gico-metodológica pela busca do estabelecimento de
relações mais ecológicas (Santos, 2004) entre diferen-
tes conhecimentos e práticas sociais, privilegiando
uma concepção de mundo mais integrada e democrá-
tica, aspecto relevante das pesquisas narrativas.
De modos diferentes e com objetivos também
próprios, o conjunto de verbetes elencados nesta obra
pretende incorporar a riqueza de diferentes pesquisas
com as narrativas, revelando outros modos de pesqui-
sar e produzindo conhecimentos necessários às teo-
rizações acadêmicas sobre o campo. Busca também a
compreensão das realidades singulares em sua rique-
za própria e possibilidades de existir, para além das
explicações sobre elas baseadas em estudos de textos
oficiais, em análises estruturais e, muitas vezes, em
preconceitos epistemológicos e políticos.
No tempo presente, abraçar a pesquisa narrati-
va em suas dimensões metodológica e epistemológica
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graça reis, ines barbosa de oliveira & patricia baroni (orgs.)

implica afirmar a opção política por um ler, dar-se a


ler e se ler solidários. Neste movimento ecológico em
que ler o outro atravessa o dar-se a ler e o se ler, e vi-
ce-versa, afirmamos um pesquisar horizontalizado, e
com isso, um repertório infindável de experiências so-
ciais diversas, potentes e formativas.
A produção do Dicionário foi atravessada por um
tempo de pandemia. Confinados em prol da sobrevi-
vência da população, tecemos nossos verbetes como
tática. Segundo Certeau,

as táticas são procedimentos que valem pela per-


tinência que dão ao tempo as circunstâncias que
o instante preciso de uma intervenção transforma
em situação favorável, à rapidez de movimentos
que mudam a organização do espaço, às relações
entre momentos sucessivos de um ‘golpe’, aos cru-
zamentos possíveis de durações e ritmos heterogê-
neos, etc. (1994, p. 102).

Assim, como tática, nosso confinamento se


transformou em verbetes livres para circularem por
onde puderem e quiserem, na companhia de nossos
possíveis leitores e parceiros.
Agradecemos a disponibilidade, a disposição e o
trabalho solidário do conjunto dos autores dessa obra,
sem o que ela não teria sido possível nesse tempo e
nem teria a forma que agora apresentamos aos nossos
interlocutores.

Graça Reis
Inês Barbosa de Oliveira
Patrícia Baroni

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ayvu

Aa

(auto)biografia
elizeu clementino de souzai

i
Doutor em Educação pela Tesoureiro da Associação Bra-
UFBA (Universidade Federal sileira de Pesquisa (Auto)bio-
da Bahia). Professor Titular do gráfica (BIOgraph). Membro do
Departamento de Educação, Conselho de Administração da
Campus I, da Universidade do Association Internationale des
Estado da Bahia, vinculado ao Histories de Vie en Formation et
Programa de Pós-graduação em de La Recherche Biographique
Educação e Contemporaneidade en Education (ASIHIVIF-RBE).
(PPPGEduC/UNEB), Pesquisador Editor da Revista Brasileira de
1B CNPq. Membro do CA-ED/ Educação – RBGE/ANPEd e da
CNPq. Coordenador do Grupo de Revista Brasileira de Pesquisa
Pesquisa (Auto)biografia, For- (Auto)biográfica (RBPAB).
mação e História Oral (GRAFHO/ E-mail:
UNEB). Pesquisador associa- esclemrentino@uol.com.br
do do Laboratoire EXPERICE
(Université de Paris 13-Paris 8).
– sumário –

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(auto)biografia

No contexto latino-americano1, antecedem as


pesquisas biográficas na área educacional os estudos
com histórias de vida, como um fenômeno do pós-
-guerra, demarcando análises de sua estrutura socio-
político-econômica, como já destacado por Camargo,
Hipólito e Lima (1984), no que se refere ao mapeamen-
to da produção científica sobre as pesquisas com his-
tórias de vida. Além dos estudos desenvolvidos por
pioneiros, destacam-se a criação de museus e arqui-
vos de história oral, como, por exemplo, o Programa
de História Oral (1972), no México, onde se instalaram
o Archivo de la Palabra (1976) e o Museo de la Palabra
(1976), cujas interfaces com o método etnográfico ad-
quiriu importância estratégica, bem como no Peru, com
a criação do Instituto de Estudios Peruanos (IEP), em
1964. Buenos Aires se configura como o mais impor-
tante centro de irradiação do método, exercendo papel
fundamental o Instituto Torquato di Tella (1958), tendo
como marco a publicação, por Jorge Bálan (1974), do li-
vro Las historias de vida en las ciencias sociales, além
de outras produções que se seguem. No Brasil, pesqui-
sas desenvolvidas por Bastide (1953), Queiroz (1953),
Fernandes e Gattás (1956) inscrevem-se como produ-
ções iniciais sobre a utilização da História de vida em
pesquisas, bem como o trabalho com memórias polí-
ticas no Centro de Processamento e Documentação da
Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV).
As contribuições das Ciências Sociais e Humanas
para a constituição da pesquisa com Histórias de vida
e pesquisa biográfica na América Latina emergem
de princípios da fenomenologia, da hermenêutica
1
O verbete corresponde à atualização do trabalho de Souza (2019),
como síntese do verbete La recherce biographique en éducation
en Amérique Latine, em Vocabulaire des Histoires de vie et de la
recherche biographique, organziado por Delory-Momberger (2019).
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(auto)biografia

e do interacionismo simbólico, implicando em ou-


tros modos de pensar e fazer pesquisa na área. Sem
dúvida, a Escola de Chicago vai demarcar, nos anos
de 1930, mudanças paradigmáticas e confronto com
ideais positivistas para o estatuto das histórias de
vida e biográficas.
A pesquisa biográfica nasce das experiências em-
preendidas pelos pesquisadores da Escola de Chicago
(Coulon, 1995), ao tomarem como objeto de estudo, na-
quele momento histórico, anos 20 e 30 do século pas-
sado, histórias individuais e coletivas de migrantes e
também fontes não usuais (cartas, diários, fotografias,
autobiografias) mediante movimentos de implicação
e distanciamento entre pesquisadores e colaborado-
res, possibilitando compreensões simbólicas, valores
e costumes diante das interações sociais vividas pelos
sujeitos e suas relações com questões políticas e estru-
turantes da sociedade capitalista. A sociologia ameri-
cana de Chicago não somente desenvolveu pesquisa
empírica, como também cunhou uma sociologia qua-
litativa, utilizando novos métodos originais de inves-
tigação, como os documentos pessoais, cartas, diários,
fotografias, junto a um trabalho de campo sistemático,
no sentido de estudar a sociedade em seu conjunto.
Essas transformações ocorrem no campo da educa-
ção, historiografia, sociologia, literatura, antropologia
e psicologia social, valendo-se das experiências e re-
sistências construídas pela Escola de Chicago.
A pesquisa (auto)biográfica inscreve-se na tradi-
ção fenomenológica constitutiva do social, com base
em um enraizamento antropológico e ancorando-se
na descrição densa de Geertz (1989), no interacionis-
mo simbólico de Mead (1982), na dramaturgia social
de Goffman (2011) e nas implicações teórico-episte-
mológicas da Escola de Chicago. Por isso, parte essen-
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(auto)biografia

cialmente de uma teoria do social, de como as pessoas


compreendem e resolvem seus problemas sociais e
cotidianos, através dos modos como vivem, experien-
ciam e narram suas histórias individuais e coletivas.
A utilização da história de vida e do método autobio-
gráfico é recente na área educacional. Sobre tal ques-
tão, afirma Nóvoa (2000) que os métodos biográficos, a
autoformação e as biografias educativas começaram
a ser utilizados a partir do final dos anos de 1970, o
que demarca outras percepções sobre o percurso de
formação, bem como se confronta com os métodos do-
minantes no cenário da pesquisa educacional.
O campo de pesquisa na América Latina vai se
constituindo a partir de interfaces entre áreas das
Ciências Sociais e Humanas, com forte influência da
antropologia, sociologia, da psicologia social, da histó-
ria, da literatura e de estudos das relações raciais em
seus diferentes países.
No contexto brasileiro, destaca-se a utilização da
história de vida em diálogo com princípios da História
Oral, instaurando-se nos anos 60 com o programa de
História Oral do CPDOC/FGV. Tal programa teve o pro-
pósito de colher depoimentos da elite política nacio-
nal, demarcando produções e expansão nos anos 90,
inclusive com a criação e influência exercida pela
Associação Brasileira de História Oral (ABHO), em
1994, frente à realização de seminários e a divulgação
de pesquisas da área.
Estudos sociológicos realizados no Brasil a partir
dos anos 50, com financiamento internacional e publi-
cados na Revista Anhembi, coordenados por Bastide
(1953), sobre negros e relações raciais com utilização
de histórias de vida como dispositivo metodológico de
pesquisa, apresentam contribuições importantes para
a configuração e expansão da abordagem de pesqui-
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(auto)biografia

sa. Da mesma forma, pesquisas realizadas pelo CERU


(Centro de Estudos Rurais e Urbanos), a partir do ano
de 1976, com a utilização da História Oral (Demartini;
Tenca; Tenca, 1985), demarcam-se como expressão
dessa produção, ao discutir, especialmente, questões
que envolvem diferentes procedimentos de recolha e
trabalho das narrativas dos atores sociais.
No campo da História e história oral, Ferreira
e Amado (2000) são autores que tematizam sobre as
histórias de vida como fonte de pesquisa e o trabalho
como a memória e as narrativas, possibilitando dife-
rentes entradas e análises sobre populações e diversos
sujeitos sociais.
Embora tenham se consolidado no contexto ibe-
ro-americano os estudos na vertente da investigação
biográfico-narrativa em educação, diferentemente,
no Brasil, o movimento e expansão da pesquisa (auto)
biográfica com a utilização do (auto) entre parênteses,
contrariamente às demais denominações que evitam
a presença do eu (auto) no cenário europeu e latino-a-
mericano. Tal opção epistêmico-metodológica emer-
giu com a edição do Primeiro Congresso Internacional
de Pesquisa (Auto)biográfica (CIPA), em Porto Alegre
(2004), até a sua oitava edição, em São Paulo (2018).
O modo de circulação e apropriação de trabalhos
no campo da pesquisa biográfica e (auto)biográfica,
no campo educacional brasileiro, sofre influências da
tradição lusófona, ao ser utilizado os parênteses pela
primeira vez por António Nóvoa e Matthias Finger
(1988), no livro O método (auto)biográfico e a forma-
ção. De fato, a opção pelo uso dos parênteses, confor-
me utilizado por Nóvoa e Finger, remete para a dimen-
são subjetiva do método, em Educação, e para a função
formativa do discurso autobiográfico como dispo-
sitivo de pesquisa-formação. A pesquisa biográfica,
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(auto)biografia

ao centrar-se no estudo de práticas sociais, seu inte-


resse recai sobre a atitude do ser humano para con-
figurar narrativamente sua experiência e com ela
reinventar-se.
Na educação, diversos movimentos vêm se cons-
tituindo, desde o início dos anos 90, com a utilização
da pesquisa biográfica, com o método (auto)biográfi-
co e com as narrativas de formação no contexto la-
tino-americano. Como já sistematizado por Passeggi
e Souza (2017), a opção por pesquisa (auto)biográfica
vai ao encontro de tradições de pesquisa já consagra-
das em diversos países da Europa e nas Américas,
tais como a Biographical research, no mundo anglo-
-saxão, a Biographieforschun, na tradição alemã, a
Recherche biographique en Education, na França, e a
Investigación biográfico-narrativa en educación, no
mundo ibero-americano.
A emergência das experiências de pesquisa-for-
mação com as histórias de vida possibilitou a cria-
ção e consolidação dos grupos e redes de pesquisa no
contexto latino-americano, ao adotar aproximações e
distanciamentos terminológicos, embora ancorados
em princípios da pesquisa qualitativa. Neste domínio,
destacam-se os estudos sobre Documentação narra-
tiva de experiências pedagógicas (Suárez, 2016, 2015),
conforme desenvolvidos na Argentina e, também,
no México, Colômbia e Chile, além das pesquisas so-
bre investigação biográfico-narrativa no México e no
Chile, numa dimensão dialógica entre os pesquisado-
res, grupos e parcerias construídas entre instituições
e associações e redes de pesquisa.
A documentação narrativa de experiência pe-
dagógica organiza-se a partir de ateliês de oralidade,
escrita, reescrita e publicação de experiências peda-
gógicas coparticipadas, configura-se como um dis-
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(auto)biografia

positivo epistêmico-político-pedagógico, na vertente


da investigação-formação-ação, cunhada por Suárez
(2016, 2011). Tal perspectiva epistêmico-metodológica
assenta-se em princípios da etnografia em educação,
da investigação narrativa e (auto)biográfica e da in-
vestigação-ação-participativa, em diálogo com ques-
tões da formação e do desenvolvimento profissional
docente, em uma perspectiva horizontal entre pares,
que adota a indagação, mediada por disposições de es-
crita, socialização (leituras e comentários entre pares)
e publicação de documentação narrativa de docentes
em formação inicial ou continuada. Uma rede de pes-
quisa, que implica pesquisadores e docentes, tem mar-
cado experiências singulares no contexto argentino
do trabalho com documentação narrativa, através do
processo de construção de narrativas, em articulações
de sindicados, coletivos de docentes e docentes que fa-
zem investigação desde o cotidiano da escola.
No México, a sistematização construída por
Serrano e Ramos (2014) evidencia que o método bio-
gráfico se disseminou como trabalho da antropologia,
sendo recente sua utilização como dispositivo e práti-
ca de formação em educação. Os estudos biográficos
em educação configuram-se enquanto campo de pes-
quisa, centrando-se nos domínios da formação, das
trajetórias de formação, através da utilização de fon-
tes biográficas, autobiográficas, da história oral, das
narrativas de formação, e das histórias e trajetórias de
vida-formação-profissão dos professores, alunos e das
instituições educacionais.
Na Colômbia, além das experiências empreen-
didas com estudos sobre “Pedagogia da Memória”,
na vertente de narrativas sobre memórias de guerra,
como movimento socioeducativo pós-ditadura, impli-
cando em ações de formação de cidadania democrá-
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(auto)biografia

tica e de direitos humanos, revelando férteis contri-


buições para visibilização e dignidade das vítimas dos
cinquenta anos de guerra e reconfiguração do contexto
e trama social. Da mesma forma, intensificam-se ex-
periências com documentação narrativa de experiên-
cias pedagógicas e narrativas de coletivos de docentes
contadores de histórias, além de práticas de formação
inicial e continuada, com ênfase na pedagogia da me-
mória e da pesquisa biográfica em educação.
A gênese das pesquisas e práticas de forma-
ção no campo educacional no Brasil foi desenvolvi-
da pelo Grupo de Estudo sobre Docência, Memória e
Gênero, da Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo (GEDOMGE/FEUSP), sob a coordenação de
Catani, Souza, Bueno e Sousa. Por isso, cada vez mais,
ganham corpo e expressão estudos sobre formação
inicial e continuada de professores que tematizam os
percursos de formação com enfoque nas histórias de
vida, nas autobiografias e nas narrativas de formação.
O trabalho biográfico implica o uso de fontes biográfi-
cas e autobiográficas, sinalizar a partilha entre a pes-
soa que narra e o pesquisador que a escuta e abre di-
versas possibilidades de interpretação partilhada.
A análise desenvolvida por Souza, Passeggi,
Delory-Momberger e Suárez (2010) sistematiza as-
pectos relacionados à importância e ampliação de
articulações entre redes de pesquisas e associações
científicas. Destaca-se, assim, a criação da Rede
Latino-americana de Pesquisa Narrativa, (Auto)bio-
grafia e Educação (RedNAUE), com sede na Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de
Buenos Aires, a qual propiciou aproximações teórico-
-metodológica das pesquisas nos domínios e territó-
rios da (auto)biografia no contexto latino-americano.
Assim também a criação, no contexto brasileiro da
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(auto)biografia

Associação Norte e Nordeste das Histórias de Vida


em Formação (ANNIHVIF), em 2006, da Associação
Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica (BIOgraph),
em 2008, quando da realização do terceiro CIPA e em
2016 da Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfi-
ca (RBPAB), ancorados em princípios epistemológicos,
deontológicos e metodológicos da pesquisa (auto)bio-
gráfica, ao admitir como pressuposto que as narrati-
vas autobiográficas contribuem para a auto(trans)for-
mação de sentidos histórico-culturais concernentes à
representação de si.
Outros estudos, desenvolvidos no Brasil ao ma-
pearem as produções do campo, destacam modos
como as pesquisas com histórias de vida e narrati-
vas autobiográficas no domínio da formação contri-
buíram para a consolidação do campo de pesquisa no
país. Sobre essas questões Bueno, Chamlian, Sousa e
Catani (2006), realizam análise sobre histórias de vida
e formação em pesquisas e publicações no Brasil no
período de 1985 a 2003, Souza, Sousa e Catani (2008),
discutem as produções no período de 2004 a 2006, em
relação às produções das duas primeiras edições do
CIPA, além da pesquisa de Stephanou (2008), relativa
ao período de 1996-2006, através da análise de resu-
mos de teses e dissertações defendidas no país nes-
te período. Souza (2008) sistematiza em colaboração
com diferentes pesquisadores brasileiros modos pró-
prios como tem se desenvolvido estudos e práticas
de formação no Brasil, na perspectiva da pesquisa
autobiográfica. Outros trabalhos são também impor-
tantes para o campo de pesquisa no Brasil, ao discutir
sobre perspectivas de análise de fontes biográficas e
(auto)biográficas (Souza, 2014) e análises relacionadas
às publicações do CIPA, especialmente a pesquisa de
Mignot e Souza (2015) sobre o VI CIPA, além do traba-
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(auto)biografia

lho de Abrahão e Bragança (2016) sobre a primeira e


quinta edição do CIPA. Tais análises evidenciam que
a ampliação das pesquisas com as histórias de vida e
(auto)biografias na área educacional, seja como prática
de formação, como investigação ou investigação-for-
mação, tem sofrido uma diversificação de temáticas e
entradas, remetendo-nos a entender que a diversidade
de produção característica no Brasil sofre influência
teórica e metodológica de diferentes disciplinas e áre-
as do conhecimento.
A publicação da Revista Mexicana de Investi-
gação Educativa (Souza; Serrano; Ramos, 2014), ao
centrar-se na discussão sobre autobiografias e edu-
cação, buscou situar tradições, diálogos e dimensões
metodológicas, através de contribuições de diferentes
autores latino-americanos e europeus que têm se de-
dicado à investigação narrativa. Da mesma forma, o li-
vro organizado por Monteagudo (2015) sobre histórias
de vida na América Latina, situa perspectivas do tra-
balho com pesquisa biográfica, história oral, histórias
de vida e memórias de formação, através de colabora-
ções de diferentes pesquisadores de língua espanhola
no contexto latino-americano.
Atualmente, a ampla utilização da pesquisa (auto)
biográfica, em diferentes áreas das ciências humanas
e da formação, ancora-se em princípios epistemoló-
gicos e metodológicos da abordagem qualitativa de
pesquisa, implicando em outra lógica para se pensar a
formação, mediante a possibilidade de colocar-se em
um processo de escuta e de partilha de conhecimentos
e histórias sobre o vivido, que revela saberes tácitos ou
experienciais, mediante dispositivos de metacognição
ou metarreflexão de conhecimentos construídos sobre
si e sobre a própria vida-formação-profissão.

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(auto)biografia

Conforme destaca Delory-Momberger (2012a, 2012b),


a pesquisa biográfica ocupa-se dos processos de gê-
nese e de devir dos sujeitos vinculados a um espaço
social. Para tanto, busca compreender os modos como
os sujeitos dão forma a suas experiências e como sig-
nificam os acontecimentos de sua existência, sendo
que o vivido e o narrado são atravessados pelo tempo,
instaurando uma temporalidade biográfica (Delory-
Momberger, 2012a).
A configuração do campo da pesquisa biográfica
em educação na América Latina inscreve-se no do-
mínio da formação docente, valendo-se das histórias
de vida e das narrativas autobiográficas como fonte
e método de investigação qualitativa, possibilitando
reflexões sobre as práticas docentes, as trajetórias de
formação, questões de gênero, condições de trabalho
docente e desenvolvimento profissional, na vertente
da pesquisa-ação-formação.
O trabalho com a pesquisa biográfica na América
Latina tem se desenvolvido a partir do processo de
compreensão e apreensão de experiências de vida de
uma diversidade de sujeitos implicados em contextos
educacionais e sociais. Esta opção epistêmico-meto-
dológica advém justamente da possibilidade de aces-
sar mundos individuais e coletivos, através dos modos
próprios como os sujeitos narram e dão sentido a suas
experiências. Ao narrar suas histórias e tecer redes de
significação de suas experiências, os narradores são
capazes de produzir um conhecimento de si (Souza,
2006) do ponto de vista ontológico e social.

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(auto)biografia

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ayvu

(auto)formação
thais da costa motta rochaii

ii
Professora EBTT de Educação e investiga a formação inicial
Especial do CAp-UFRJ, douto- e continuada de professores
randa pelo Programa Processos e professoras; as infâncias; a
Formativos e Desigualdades Educação Especial na perspec-
Sociais pela UERJ/FFP, Mestre tiva da Educação Inclusiva; o
em Educação pela UERJ-FFP, Ensino Colaborativo e políticas
Psicopedagoga pela UCAM, Pe- de inclusão em educação..
dagoga pela UFF. Integra o Gru- E-mail:
po de Pesquisa-Formação Po- mottathais2015@gmail.com
lifonia (UERJ-FFP/UNICAMP)

Quando recebi o convite para refletir sobre o


conceito de (auto)formação, imediatamente recorri a
mim, ao meu processo de (auto)formar-me nesses vin-
te anos como professora da Educação Básica. Foi um
movimento quase imediato de buscar referências na
minha própria experiência (auto)formativa para justi-
ficar, de modo mais sensível e aproximado, os sentidos
desse conceito em um dicionário narrativo.
Foi, então, que comecei a indagar as minhas me-
mórias sobre o que tem significado para mim, cons-
cientizando-me da minha própria formação. Nesta
busca pelos sentidos, encontrei-me com a primeira
experiência docente, recém-formada no curso normal,
– sumário –

no encontro com uma turma de Educação Infantil nos


anos 2000, a qual provocou-me estranhamento e des-
locamento das ainda poucas referências do saberser
professora. Naquele tempolugar, vivi a radicalidade do

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(auto)formação

encontro com Bruno, uma criança com Síndrome de


Dawn, que me provocou a fazer perguntas à minha
docência e a mover-me em ação-reflexão-ação, cotidia-
namente. Demarco, então, esta experiência de encon-
trar-me com Bruno como “o” momento-consciência,
no qual senti o desejo de (auto)formar-me professo-
rapesquisadora. Foi nessa experiência, hoje, buscada
por meio da memória, em que percebo ter encarnado
o sentido do que Paulo Freire (2013) dizia-me: Não é no
silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no
trabalho, na ação-reflexão.
Mas, o que significa conceitualmente (auto)for-
mação? Qual é a relevância desta ideia-conceito para
as pesquisas narrativas e, principalmente, para as
pesquisas narrativas em Educação? Para as pesquisas
no campo da Formação de Professores?
A etimologia da palavra “formação” advém do la-
tim formatĭo, ōnis, que significa “dar uma forma”, “con-
figurar”. Nesse sentido, ao pensarmos na multiplicida-
de de perspectivas que a palavra “formação” adquire
no campo da formação de adultos, como a formação
inicial, continuada e em serviço, percebemos que há
encaminhamentos variados em seus usos, dentre eles,
inclusive, a ideia de “dar forma” à pessoa pressupondo
formatação, indução, prescrição. No bojo das pesqui-
sas que intentam romper com essa lógica prescritiva
ou pouco consciente, temos na (auto)formação uma
abertura de sentidos.
Mas, antes de buscarmos indícios que nos aju-
dem a compreender o conceito de (auto)formação, é
importante refletir sobre o ato de pesquisar narrati-
vamente e como esse conceito é imbricado e confere
sentido a esta opção investigativa.
Pensarfazer pesquisa narrativa é, antes de tudo,
assumir uma posição política, ética, estética e episte-
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(auto)formação

mológica de produzir uma investigação que, de acordo


com a professora Inês Bragança, convida a vida a en-
trar. E, nesta pesquisa, que dialoga com a vida, cabe
tudo o que, como diria Larrosa, nos move, nos toca e
transborda de nós: memórias, histórias, músicas, po-
esias, imagens, perguntas, saberes, ainda não sabe-
res, emoções, atravessamentos, ou seja, as experiên-
cias. Uma pesquisa que, comprometida eticamente
(Bakhtin, 2012) com os sujeitos que dela fazem parte
– pesquisadores e coparticipantes – e com as suas
histórias de vida, faz do ato de pesquisar um aconte-
cimento também convocatório à narratividade. Isso
porque, no processo de constituí-la narrativamente,
também é (trans)formadora e (per)formativa para os
que dela participam, e, justamente por essa razão, a as-
sumimos como pesquisaformação.
Quando pensamos em uma pesquisa que (trans)
forma e (per)forma, partimos do pressuposto que, ao
mesmo tempo em que a investigação acontece, ao fa-
zermos esse processo de modo desejante e consciente,
nos forma e, por isso, (trans)forma, provocando (per)
formatividades. São mudanças, aprendizagens novas,
(re)invenções, (re) criações de nós mesmos e de nos-
sas práticas.
De acordo com Pineau (2003), nesse movimen-
to formativo, as histórias de vida abrem espaço como
uma arte democrática, não apenas reservada aos pes-
quisadores e acadêmicos, mas como uma arte funda-
dora da existência, possibilitando que as pessoas se
percebam, se vejam e se articulem a si mesmas, no in-
tuito de aprender sobre a própria existência ao contar
a vida, ao passá-la a limpo.
Para dialogar, então, sobre o conceito (auto)for-
mação, tão caro às pesquisas narrativas e que mar-
ca o movimento da própria pessoa em compreender
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(auto)formação

melhor a sua aprendizagem contínua na profissão,


convoco para esta conversa alguns autores com os
quais tenho dialogado e que nos ajudam a pensar o
campo da formação inicial e continuada de professo-
res e professoras.
De acordo com Gaston Pineau (2003), o concei-
to da (auto)formação começa a aparecer nos estu-
dos de ciências sociais, a partir das contribuições de
Schwartz B., 1973. Para Schwartz B., o termo autofor-
mação catalisa, ou seja, desencadeia-se no processo
de compreender a própria existência. Um ato de com-
preensão da autonomia dos protagonistas, que provo-
ca um movimento de personalização, individuação,
subjetivação. Para ambos, este termo é o que mais nos
faz trabalhar no sentido de buscar entender as forças e
as formas dos processos pessoais de formação. Porém,
chamam a atenção para o fato de que o protagonista
da formação no processo de autoformar-se não o faz
de maneira isolada. O protagonista da própria forma-
ção, segundo Pineau, está carregado de outros, atra-
vessado por múltiplas sociedades e relações sociais e,
nesse sentido, ele destaca a dimensão formativa (auto)
como a mais complexa, pois está constantemente em
tensão, visto que é, ao mesmo tempo, paradoxalmente,
individual e coletiva.
Assim, ao buscar os sentidos do conceito de
(auto)formação, opto por dialogar a partir das três
dimensões formativas definidas por Gaston Pineau
(2003) – a teoria tripolar da formação. Segundo o au-
tor, a formação humana acontece em três movimen-
tos singulares, porém, profundamente entretramados,
logo, inseparáveis: (auto)formação, (hetero)formação
e (eco)formação. Porém, Pineau nos chama a aten-
ção, afirmando que a dimensão (auto)formativa é o
primeiro movimento formador acionado pelas histó-
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(auto)formação

rias de vida. Desse modo, ele nos diz que a (auto)for-


mação é a dimensão em que, paradoxalmente, permite
a formação permanente das pessoas envolvidas nesta
experiência pragmática performativa.
Nesse sentido, ao trazermos para a cena a bus-
ca pela compreensão da (auto)formação, é perceptível
que, inclusive nos movimentos singulares, individu-
ais, anunciados pelo prefixo (auto), ao empregarmos
o uso dos parênteses neste prefixo, demarcamos um
movimento que, apesar de ser pessoal, não é encer-
rado em si mesmo, mas ao contrário, é carregado de
muitos outros. Outras pessoas; outras histórias; outros
atravessamentos sociais, políticos, culturais, econô-
micos e relacionais.
E é justamente pelo fato de o prefixo (auto) indi-
car uma ação específica do sujeito que, de acordo com
a compreensão de Pineau, faz com que este conceito
não seja benquisto na ciência objetiva clássica. Na
verdade, chegou a ser rechaçado desta epistemologia.
Isso porque, segundo a lógica canônica, a dimensão
(auto) “disfarçaria” as verdades objetivas, as quais
este tipo de ciência intenta buscar. Não só a dimensão
da (auto)formação foi apartada das pesquisas clás-
sicas, mas, segundo o mesmo autor, os substantivos
que a acompanham: autobiografia, autorreferência,
autointerpretação.
Nessa análise, Pineau destaca as contribuições
de Dany-Robert Dufour, filósofo francês, no livro Les
Mystères de la Trinité, (Mistérios da Trindade), na
qual convoca a abertura de um novo campo de autor-
referência, que denomina como unário, em oposição à
exclusividade da lógica binária. Ele diz que é unário
um enunciado em que o predicado retome exatamente
o sujeito da frase (Dufour, 1990, p. 37 apud Pineau, 2003,
p. 200). Mas a dimensão (auto) não é dada nas pessoas
37
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graça reis, ines barbosa de oliveira & patricia baroni (orgs.)

como algo que exista a priori no sujeito e que precise


ser expresso ou afirmado. A constituição da (auto)for-
mação precisa ser buscada, pois é ação e movimento,
sendo congregadora de dois processos: o dobrar-se re-
flexivo para dizer “eu” com o desdobrar-se narrativo
para exprimi-lo (Pineau, 2003, p. 201). Na centralidade
desta articulação de dobrar/desdobrar, acontece o mo-
vimento do si por si (com) o não si.
Nessa dimensão complexa, discutida por Pineau,
convido para a continuidade do diálogo os estudos
de Marie-Christine Josso (2010), em sua Teoria da
Formação Humana. Josso, bebendo em fontes de pes-
quisadores que dialogam a partir da racionalidade sis-
têmica e da complexidade, compreende o processo de
(auto)formação em um sentido de “caminhar para si”,
de autoconhecimento. Sendo assim, emite novas com-
preensões a respeito de: verdade, identidade, apren-
dizagem, experiência como prática consciente dos
processos de formação e de conhecimento, interior/
exterior, o si próprio, a invenção de si, projetos de vida,
profissionalização (Josso, 2006, p. 13).
As discussões relativas a essas ideias-força são
apresentadas por Josso no livro Caminhar para si.
São, porém, essas discussões que darão tônus à cons-
tituição pela autora do paradigma singular-plural. Um
paradigma diretamente associado ao paradigma expe-
riencial, ao ser dado a ver/perceber/compreender pela
ótica da abordagem narrativa (auto)biográfica.
Como visto, a defesa de que há na narrativa uma
via de compreensão da própria experiência individual
e coletiva foi uma égide de muitos autores das ciên-
cias sociais. De diferentes maneiras e por diferentes
percursos, teóricos defenderam que há um movimento
humano de busca pela compreensão da própria histó-
ria. E este processo, quando feito de modo consciente,
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dicionário de pesquisa narrativa

amplia-se, ressoa, reverbera, dando a ver pelo sujeito


não apenas as dimensões restritas a si mesmo, mas
profundamente imbricadas a outras dimensões hu-
manas, nas interfaces com os outros que nos formam
e nas relações político-sociais das quais participa-
mos como fazedores de histórias em um determinado
tempolugar.
Ainda para dialogar com autores que me ajudam
a compreender os sentidos da (auto)formação, cha-
mamos para a conversa Boaventura de Souza Santos.
Há em seu pensamento uma defesa, a qual penso ser
fundamental para uma epistemologia que traga para a
centralidade os processos de (auto)formar-se. É uma
convocação às ciências sociais para uma necessária
transição de um paradigma limitado a um conheci-
mento prudente (paradigma científico) para uma vida
decente (paradigma social). Nessa proposição, des-
loca a valoração da produção do conhecimento nas
ciências, dando importância para os considerados
“saberes do senso comum”, “saberes marginais”, “sa-
beres menores”, “histórias de vida”. Nesse chamado,
Santos apresenta quatro teses, das quais pelo menos
duas estão profundamente ligadas ao conceito de
(auto)formação.
Todo conhecimento é autoconhecimento: abre
caminho à compreensão da própria formação pela
pessoa e o seu papel como sujeito nesta formação.
Uma dinâmica que lança luz à evolução autointerpre-
tativa de nós mesmos.
Todo conhecimento é local e total: aprender de
si, como uma prática local, dá-se fundamentalmen-
te em virtude da conscientização sobre o eu, sobre os
outros, e sobre a relação estabelecida nas interações
no contexto da experiência dialógica e, por isso, é um
conhecimento total, uma vez que diz sobre o nós. Um
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(auto)formação

exercício de objetivar conhecer o próprio saberfazer,


buscando fazer melhor o que já se faz.
Desse modo, dialogando por ora, (com) e a partir
de alguns autores que se dedicaram a contribuir para
constituirmos um conceito de (auto)formação, (re)sig-
nifico o conceito em mim como um ato, uma escolha,
uma decisão. Uma ação que intenta aprender a apren-
der sobre mim mesma e sobre o meu saberfazer que
é social. Isso, pois, a partir do diálogo com os tantos
outros (pessoas, contextos, opções, situações) os quais
também me atravessaram e me formaram, e, em uma
interação dialógica também os formo. Um mergulhar
ético (Bakhtin, 2012) e intencional na dimensão priva-
da de mim e desdobra-se em um movimento de tornar
público, por meio da narrativa, os sentidos de aprendi-
zagem que intento aprender.

Referências
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. 2ª
ed. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra,
2013.
JOSSO, M. Caminhar para si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
PINEAU, G. Temporalidades na formação: rumo a novos
sincronizadores. São Paulo: TRIOM, 2003.

40
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ayvu

afetos
alexandra garciaiii

Doutora em Educação, Profes-


iii
Vice-presidente da Associação
sora Associada, Procientista Brasileira de Currículo (ABdC/
UERJ e Jovem Cientista do 2021-2023). Coordenadora do
Nosso Estado (FAPERJ), pro- Grupo de Pesquisa e Extensão:
fessora do Programa de Pós- Diálogos escolas-universidade:
graduação em Educação processos de formação docente

- Processos Formativos e e a produção dos currículos nos
Desigualdade Sociais (PPGedu cotidianos.
/FFP/UERJ) e do Progra- E-mail:
ma de Pós-graduação em alegarcialima@hotmail.com
Educação (PROPEd/UERJ).

Quarta-feira, 8 da madrugada. Enquanto tomo


um gole de café e abro uma página em branco no edi-
tor de texto para começar esse verbete, aguardo as co-
nexões entre um corpo que desperta e as ideias ainda
sonolentas fazerem download até a ponta dos dedos,
onde encontram as teclas. Estamos no segundo ano
de pandemia e o medo, a revolta, a esperança depo-
sitada na contagem regressiva para a vacina de al-
guns se misturam diariamente com o trabalho remoto
no horário do contínuo espaço-tempo do expediente,
com início e fim próximos a zero, portanto infinitos.
– sumário –

Parte dos corpos confinados em casas, parte em leitos


de hospitais, parte se decompondo, parte ambulando
em nome da economia ou esperando a hora de sabe
lá o que.

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afetos

Conhecer o que e como essa vivência nos afeta


mobiliza outra forma de pensar como conhecemos
e como podemos considerar conhecimento aquilo
que se produz nas redes que nos formam. Questões
que podem provocar às pesquisas que se interessam
em interrogar como e o que conhecemos e produzi-
mos conhecimentos. Também interessa para pensar,
particularmente no trabalho com narrativas, o modo
como somos afetados, pois esse conhecimento do afe-
to (Spinoza, 2010) é o que movimenta nosso agir. É di-
fícil falar sobre isso, pois a escrita onde uma palavra
sucede a outra é pouco leal à relação que se estabe-
lece entre afeto e conhecimento ou em conhecimento
como afeto.
Olho pela janela...Vontade de viajar não para um
lugar, mas para uma confluência de afetos. Estou eu
lá em uma noite fria e chuvosa há 7 anos para encon-
trar minha filha ainda na infância usando seus ado-
rados “casaco e chapéu de detetive”. Ali pisamos pela
primeira vez na praça de uma cidade mineira que se
tornaria uma de nossas experiências preferidas em fa-
mília. Buscamos nos equilibrarmos no calçamento de
pedras irregular e escorregadio para ver as poças de
chuva e um carro antigo de passeio noturno que faz
parte das experiências pitorescas oferecidas aos turis-
tas. O frio daquela noite de julho só não era maior que
os sorrisos de surpresa e contentamento. O pequeno e
precário hotel que acolhia o “orçamento das férias” fa-
zia parte da aventura e nem a necessária travessia até
o quarto entre galinhas da angola, cachorros e outras
peculiaridades que eu dispensaria faziam os bolos
fresquinhos do café da manhã parecerem menos con-
vidativos. Queríamos provar tudo, o frio, o doce, o café,
as ladeiras, o poente naquelas montanhas que fazia
cair sobre os ossos o frio de fim de tarde e, como canta
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afetos

um compositor, “quase arromba a retina de quem vê1”!


Tudo o que afetava o corpo tornava o sentir e viver e
pensar aquela experiência mais intensos.
O afeto é uma forma de conhecimento, o conhe-
cimento de maior potência. É ele que está movendo as
direções e conexões por onde caminham ou saltam as
ideias e nossas ações. E quando narramos ou ouvimos
ou lemos uma narrativa, o que provoco pensarmos
aqui é como nesses momentos o afeto pode ser ainda
mais perceptível. Esse convite implica deslocamen-
tos, pois essa palavra muitas vezes é mais presente em
nossa comunicação tendo o sentido de afeição. Esse
não é um sentido totalmente distante do que tratamos
aqui, mas está numa intensidade menor em relação ao
uso que pode ter a palavra afeto quando buscamos ati-
çar os sentidos assentados nela com algumas lufadas
de ar inspiradas em Baruch de Spinoza. Também pode
chamar de Benedito, pois, certamente dará outros sen-
tidos à expressão brasileira “Mas será o Benedito?”
Com as ideias de Benedito, podemos considerar
que corpo e pensamento são atributos de uma mes-
ma substância. Aquilo que afeta e como afeta o corpo
movimenta o pensamento e a ação. Sem que a força
de um se oponha ao outro, formam a unidade que se
move em favor da vida. Ou, como gostamos de expres-
sar em tempos recentes, na perseverança por existir
cotidianamente. Como humanos, somos afetivos, em-
bora tenhamos aprendido desde muito cedo que as
emoções atrapalham o agir e o pensar. Aprendemos
isso, sobretudo, com a modernidade. Cartesianismos
que se difundiram culturalmente e embalam aquilo
que “a gente sabe”. Sabe que se deve ignorar (ou apa-
rentar que ignoramos intencionalmente) aquilo que
1
A referência na canção Carioca (Chico Buarque, Biscoito Fino,
2006) é feita a outra cidade diferente da que narro aqui.
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afetos

nos afeta e agir com base na tal razão, acreditando


mesmo que é possível uma razão que não sente. Sabe
que é sinal de sensatez e maturidade não deixar vir à
tona aquilo que nos afeta. Aprendemos que “muito riso
é sinal de pouco siso” e que aqui o sentido dúbio da pa-
lavra siso faz referência ao chamado “dente do juízo”,
marcando a passagem para a vida adulta e a exigência
de “ter juízo”. Ter juízo, de certo modo, é abandonar as
afecções, premissa impossível, que coloca a razão e o
pensamento em um plano distinto da emoção. Então, a
gente “sabe” porque aprende assim, mas como provoca
Marina Colassanti, “eu sei, mas não devia”. Talvez seja
tempo de desaprender o já sabido.
Alguns deslocamentos são, no entanto, impor-
tantes para trocarmos esse “dedo de prosa” com os afe-
tos. Afinal, o que estou chamando aqui de afeto? Uma
palavra pouco usual ajuda a nos aproximarmos da
ideia que tento colocar em movimento enquanto você
lê este texto: Afecção. Não é uma que precise ser usada,
apenas ajuda a ter em mente que um corpo é afetado
pela imagem que fazemos das coisas a partir de como
estão representadas pela maneira como as imagina-
mos. Pode chamar de imaginação também, mas pre-
cisa lembrar que o corpo imagina com a mente aquilo
que o afeta e do modo como é afetado. Em Educação,
essa é uma ideia que mexe com uma força importante
pois tem a ver com os modos como a Educação pode
provocar afetos que corroborem um viver mais livre e
a autonomia. Também tem muito a ver com pensar o
trabalho com narrativas docentes e discentes, na me-
dida em que as narrativas trazem e provocam afetos.
Elas nos afetam. Os afetos colocam em movimento ou
alimentam nossa vontade de agir, nossa possibilidade
de perseverar em nossa vida.

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afetos

Pensamos incialmente com base em palavras,


como provoca Larrosa (2004), não com pensamentos,
mas com palavras. E são as palavras encharcadas
de sentidos e imagens que delas fazemos. Ainda que
os sentidos em torno das palavras possam ser mui-
tos, não é incomum que alguns sentidos nos toquem
mais facilmente e mais profundamente do que outros.
Alguns sentidos estão tão fortemente envolvidos em
nossas formas de perceber o mundo que sequer os es-
tranhamos. Um sentido muito profundamente assen-
tado pode ser entendido como uma representação.
É quase possível (e muitas vezes é até bem recor-
rente) que uma representação se materialize em ima-
gens. Isso acontece, por exemplo, com a palavra-ideia
escola e com a palavra-ideia professor. Se você bus-
car por essas palavras em um navegador na internet,
é bem provável que se depare com imagens ligadas a
um padrão ou ao avesso disso, imagens caricatas com
um tom negativo. A palavra professor também é muito
afetada por representações de cuidado maternal, não
raramente correspondendo a figuras femininas. Outras
vezes, as imagens ficam no plano da imaginação, mas,
ainda assim, fortemente marcadas por sentidos mais
hegemônicos e tristes. Quando falamos de escolas e
de docência, esses sentidos são comumente demeri-
tórios, pois, se alimentam em discursos que circulam
com maior frequência nos vários espaçostempos que
nos formam. Eles intensificam percepções negativas
ou desencantadas sobre a docência e sobre as escolas
que embaçam a percepção das escolas como espaços-
tempos educativos potentes.
Daí que quando pensamos em escolas e quando
pensamos na palavra professora, o modo como essa
palavra nos toca, aquilo que sentimos não costuma ser

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afetos

muito animador. Não foi por distração eu usei a pa-


lavra no gênero feminino, a palavra professora é tão
mais representativa da docência quanto também é
mais negativamente afetada pelas representações do
que a palavra professor. Algo que os estudos sobre gê-
nero nos ajudam a problematizar.
Ou seja, as representações, aqui, têm um papel
des-animador (aquilo que subtrai a ânima) para o pen-
samento e na mobilização do agir. Representações de-
sencantadas e tristes mobilizam afetos de tristeza que,
junto com a alegria e o desejo, formam os três afetos
básicos que nos movem, segundo Spinoza. Um afe-
to mexe com aquilo que nos anima, ou com a nossa
Ânima. Por isso ele está associado a como sentimos
antes mesmo de relacionarmos, nos identificarmos
ou elaborarmos uma ideia com base em um sentido.
Podemos, de algum modo, dizer que sentimos antes
mesmo de dar sentido.
O afeto como forma de pensar o conhecimento e
aquilo que nos afeta em sua produção também pare-
ce apropriado para pensar que fazemos as escolas e
as práticas educativas a cada dia diante do possível,
mas nunca no imobilismo. Muitas vezes, criamos e
nos pomos em movimento diante de uma contingên-
cia. O desejo é um afeto permanente. Se algo frustra a
realização do desejo, ficamos tristes. No entanto, não
queremos permanecer num estado de tristeza. Nossa
perseverança em existir nos colocará em movimen-
to desejante e esse mover-se desejante impulsiona
outras formas de encontro. Com base no pensamento
de Spinoza (2010) a noção de “bons encontros” é mui-
to adequada para pensarmos com as dinâmicas dos
afetos os processos de formação, as narrativas e a pro-
dução de saberes docentes. Essa noção está ligada às
situações que mobilizam afetos alegres. O estudo das
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afetos

narrativas docentes sobre as produções curriculares


nas práticas cotidianas vem permitindo perceber que
a alegria produzida num bom encontro aumenta o es-
forço necessário à vontade de agir (Spinoza, 2010). Um
bom encontro mobiliza afetos e, ao fazê-lo, favorece
deslocamentos de representações hegemônicas que
mobilizam afetos tristes sobre docência e escola.
A noção de alegria, nesse sentido, é apropriada
e discutida a partir do pensamento espinosiano dos
afetos, ela é um afeto. É entendida como um estado
ativo, político e de enfretamento dos contextos vivi-
dos nos cotidianos pelos professores na educação pú-
blica, frequentemente negligenciada nas políticas de
estado. Não precisamos explicar alegria, sentimos.
A mobilização de afetos alegres diante de contextos
percebidos pelos docentes como tristes e desencanta-
dos é um aspecto que emerge em narrativas pontuais
de suas práticas com as turmas com as quais lecio-
nam. Não é uma condição permanente, muito menos
ingênua. Ela aparece no tom de suas narrativas e na
escolha dos episódios e situações que trazem para
compor suas produções curriculares quando contam
sobre suas práticas. Pode estar associada ao que iden-
tificam como experiências bem-sucedidas, surpresas
do cotidiano na interação com os alunos, identifica-
ções entre suas escolhas e práticas e outras experiên-
cias docentes que tomam conhecimento nas Rodas de
Conversa do projeto Café com Currículo ou em outras
conversas informais.
É também importante dizer que não podemos es-
tabelecer relações causais entre sentir e sentido, pois
os sentidos estão cultural e profundamente envolvi-
dos nos modos como aprendemos a sentir, a perceber
o que nos cerca e nos acontece. A mente está ligada
aos sentidos, ao que nos toca, às vivências e, por isso,
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afetos

aos processos culturais. Dessa forma, mudar as per-


cepções e quiçá as formas de operar, mudar nosso re-
gistro de funcionamento é algo que tem forte relação
com aquilo que nos afeta e como nos afeta, tem a ver
com os afetos. Por isso muito frequentemente encon-
traremos em alguns textos que usam a noção afeto
também a ideia de deslocamentos. Muitas vezes esse
deslocamento tem a ver com o que fala Spinoza quan-
to a somente um afeto poder modificar outro afeto. E
isso não raramente envolve a produção de afecções no
corpo, com o corpo. Pois também não há relações de
causalidade entre mente e corpo, eles são pensados
num mesmo plano e sem que a mente tenha qualquer
tipo de primazia sobre o corpo.
Todo deslocamento físico é também um deslo-
camento simbólico. Nem sempre estamos sensibili-
zados a perceber esses deslocamentos e a conhecer
como nos afetam. Estarmos atentos ao modo como
operam os afetos para percebermos o que corrobo-
ra ou desintensifica a capacidade de agir é algo que
para a docência e para pensar os encontros nos pro-
cessos educativos, sobretudo nas escolas parece ser
importante. Conhecer nesse sentido é uma tarefa que
envolve conhecer como algo nos afeta e como agimos
movidos por aquilo que nos afeta. Essa é uma forma
de conhecimento entendida como de maior perfeição
(Spinoza, 2010). É para essa forma de conhecimento
como autoconhecimento que podemos nos movimen-
tar numa tarefa que não pode ser individual, pois os
bons encontros mobilizam afetos, especialmente afe-
tos alegres, entre corpos. Para Spinoza, somente um
afeto pode mudar outro afeto. É por isso que o afeto
aqui não é algo distinto do pensamento, a ideia dita
racionalista, espinosiana, seria melhor expressa por
uma expressão que usamos nas pesquisas com os co-
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afetos

tidianos sentirpensar e, por isso, é importante escla-


recer que é uma ideia que se afasta da premissa car-
tesiana. A palavra afeto, então, vem sendo adequada
às compreensões quanto ao que favorece a descons-
trução e ressignificação de representações hegemôni-
cas e demeritórias sobre docência e escola pública nas
pesquisas e naquilo que envolve a produção dos co-
nhecimentos encarnados para pensar formação e pro-
dução dos currículos. Também em outras temáticas
que as pesquisas com narrativas se mostrem potentes.

Referências
COLASANTI, M. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro:
Rocco, 1996.
LARROSA, J. Nietzsche & a Educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
SPINOZA, B. Ética. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

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ayvu

afirmação
ornella zallocoiv

iv
Doutoranda bolsista do em Educação, Imagens e Mí-
Conselho Nacional de Pesqui- dias na FLACSO (Argentina)e
sas Científicas e Tecnológicas cursou uma especialização em
(CONICET, Argentina). Em seu Construção de Projetos de Pes-
projeto a bolsista investiga as vi- quisa em Ciências Sociais com
sualidades e experiências do ci- enfoques qualitativos em IDES.
clo menstrual. Indagando sobre Formou parte da ideia, gestão
as narrativas autobiográficas e realização conjunta do CIVU
com respeito às experiências (Coletivo de Investigação Visu-
sensíveis dos estudantes no en- al Urbana) e do projeto itineran-
sino médio obrigatório. Gradua- te ANDO com os pés na terra,
da em Design de Comunicação desenvolvido em 11 países en-
Visual e Professora de Design tre maio de 2012 e novembro de
de Comunicação Visual pela 2014.
Faculdade de Artes da UNLP E-mail:
(Argentina). Depois se formou obaronezallocco@gmail.com

Nestes textos, procurou-se escrever sem definir, mas


sim dialogar com as possibilidades, por isso foram
feitas uma série de fotografias e foram escritos qua-
tro textos curtos que (a)bordam e conversam com a(s)
afirmação(ões) possível(eis), para que possam ser li-
das e compreendidas de diferentes formas, multiver-
sos, polissêmicos, com o objetivo de potencializar e
multiplicar as inteligibilidades possíveis de quem se
– sumário –

sente convidadx a fazer a leitura.

Afirmação como palavra, como lança, como ges-


to necessário. Afirmar-se diante das contingências,
diante das luzes e das sombras, afirmar-se diante do
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afirmação

saber todo-poderoso e das epistemologias fundadoras,


afirmar-se como a alegria de um sistema polarizador,
afirmar-se diante dos olhos dos outrxs e de si mesmo
(in) corporado.
A-firmar-se, escrever na carne, o corpx etéreo,
a pele, escrever-se na história e talvez para algumas
histórias.
A afirmação é potência?
Ruminar as palavras, mastigando-as com todos
os (in)conscientes, sob todos os olhares, e sob todos
os seus efeitos... senti-la como um respiro, no sussur-
ro do vento, na comunicação precisa, nos momentos
necessários.
Que sensações a afirmação possibilita no corpo?
Quais registros? Com que experiências ela nos
compromete?
Como se sente a afirmação? Qual é seu cheiro?
Que gestos ela cultiva em nossxs corpxs? Com quais
visualidades associamos a afirmação?
O que afirmamos com as suas pesquisas? Com as
nossas narrativas?
Escrevemos a(s) afirmação(ões) como possibili-
dades múltiplas e fractais ou como narrativa e verso
únicos e onipotentes?
Por que AFIRMAÇÃO como palavra em um dicio-
nário de pesquisa narrativa?

Movicertos, flashes
fractais e afirmações
no parque epistémi-
co, de Ornela Barone
Zallocco.
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afirmação

A afirmação é usada para se posicionar ou ficar


firme sobre algo, esse algo pode ser tangível como um
espaço ou objeto, ou intangível como uma ideia, cate-
goria, texto, conceito, esquema, pensacerto e outras. De
qualquer forma (para mim) a afirmação é algo que se
faz de umx para o outrx e com os outrxs, ou seja, diante
da necessidade de definir, demarcar, (se) registrar nas
agências sociais. Nesse sentido, a pesquisa narrativa
utiliza os modos de afirmação como encontro com o
próprio, com as narrativas fractais, multiversas, afeti-
vas, (auto)biográficas e das experiências.

Afirmar (creio) implica certezas mesmo nas maiores


incertezas, implica convicções mesmo com um pu-
nhado de dúvidas, implica confiança mesmo com te-
mores, implica conhecer-se mesmo sem se conhecer
completamente. A prática investigativa como afirma-
ção implica a curiosidade vital do corpx, do desejo e
do “fa-ser”.

Movicertos radiais,
brotos, ventos e afir-
mações no parque
epistêmico, de Ornela
Barone Zallocco.

A afirmação está visualmente associada a um


hábito positivo, com características alegres, porém, a
afirmação implica necessariamente escolha, seleção e
perda, cruzamento, busca. Tudo isso não aparece na

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afirmação

visualização midiática do termo afirmação, talvez por-


que visto como uma atitude de “new age” de predis-
posição à vida, se inviabilizam as muitas práticas e
expressões a que o termo se refere. Portanto, aqui não
procuro redobrar a aposta epistêmica da arrogância
na definição, mas sim o regozijo pelas muitas possibi-
lidades de pensar, ruminar, narrar e apimentar a mes-
ma nas pesquisas narrativas como portal para múl-
tiplas possibilidades de apoio, como de orientações
necessárias.
De que lugar de enunciação afirmamos nosso
fa-ser, nossas buscas, nossas pesquisas? Poderia tentar
dizer que (para mim) afirmar ou afirmar-se talvez requei-
ra a atitude de agarrar-se, posicionar-se ou comprome-
ter-se com algo, entendendo esse algo como a possibili-
dade de encontrar vetores de rizomas das possibilida-
des compartilhadas, capazes de conter e (des)orientar
curiosas experiências de vida.
A afirmação é associada habitual e visualmen-
te a uma tônica positiva, conforme e de acordo a isso
orienta nossos discursos para o registro do suave, do
perfeito, hegemônico e privilegiado, por outro lado, o
que acontece quando nossas afirmações se sustentam
em superfícies porosas, cabeludas, escamosas, doídas,
gastas, espinhosas?... O que acontece quando a afir-
mação não carrega uma tônica doce e de acordo com
o sistema do universo, mas revela e descobre os vie-
ses da desigualdade, da dor, das memórias quebradas,
conquistadas, cativas? A afirmação (com)tem o poder
de germinação, de cultivo, de des(ordem) e caos. A
afirmação também é o lugar a partir de onde podemos
sentipensar e criar mundos onde muitos mundos se
encaixam, narrativas fractais, horizontes imperfeitos
e multiversos.

53
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afirmação

Como se afirmar definitivamente de forma rude


e solvente quando todas as estruturas sucumbem,
quando as instituições se rompem, quando os desejos
e esforços são pulverizados, quando as monoculturas
da mente (Shiva) são plantadas, quando os relatos es-
tão presos entre a mente e a utopia; entre a realização
e a saturação ou o niilismo.
De onde então se enunciar e se afirmar, de quais
corpxs, gêneros, territorialidades, visualidades, nar-
rativas, mundos e cosmogonia? Com que punhado de
experiências e cicatrizes afirmar-se e acreditar-se na
posição de?

M ov i m e nt o s ,
rupturas, capi-
tais e afirma-
ções no parque
epistêmico, de
Ornela Barone
Zallocco.

As dobras do exterior afirmam o interior sensí-


vel, às vezes (in)visível comovido pelo distanciamen-
to dos processos e sua elaboração. O exterior corrupto
dxs corpxs, dos desejos e vontades precisa de traços
de espinhos epistêmicos de fogo que possibilitem os
sentimentos em seu dizer, em proposições ouvidas, in-
conscientes inocentes às vezes impossíveis. Será obri-
gação do assunto afirmar tudo o que fazemos? Será ne-
cessário afirmar-se para estar presente em um mundo
ciborgue quase transumano capaz de nos limitar a
dígitos binários insensíveis? Onde nos afirmaremos,

54
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afirmação

em quais superfícies (in)tangíveis, reais ou virtuais,


fictícias, narrativas?...
Segundo nossas orientações históricas, o corpo
só faz, o corpo só se afirma na razão necessária, indis-
pensável para um sistema baseado em afirmações ra-
cionalistas, extrativistas e muito indesejáveis. Agora
vem, quase de repente, a questão sobre a necessária
definição do conceito de afirmação, se continuar afir-
mando possibilidades fechadas, universais reificadas,
obsoletas e com programação expirada; afirmar várias
narrativas já citadas e (re)conhecidas, ou criar possí-
veis constelações que nos vetorizem a ânsia, o desejo,
a vontade vital de tentar, de (trans)mutar, para (e)labo-
rar posições e afirmações possíveis e transitórias, mu-
tantes, errantes, necessariamente em movicerto (em
busca de algo). Então, talvez seja (contra)fundamental
propor narrativas como textos oportunos que se con-
videm, afetem e ressoem de maneiras diferentes de
acordo com cada ser. Cultivar gestos eróticos que nos
permitam ficar parados sem gravidade, nos habilitem
a ser sensíveis em mares de fumaça, nos despertem
os hormônios anestesiados, as chamas do desejo e a
pele ardente.
A proposta que faço é duvidar, fracassar, (mal)-
entender e (des)encontrar, a sentir as narrativas como
possibilidades contínuas de movimento, imobilida-
de e (des)aceleração em sinestesia e em organização.
Afirmações como pólen pulverizando cosmocimentos
vitais. Afirmações porosas em diálogos com fractais
narrativos circundantes que nos afetam sensivelmen-
te de acordo com nossos gestos, tempos e elaborações.

Textos que conversam com a escrita


AHMED, S. Fenomenología Queer: orientaciones, objetos,
otros. Barcelona: Bellaterra, 2019.
55
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afirmação

COCCIA, E. La vida de las plantas. Una metafísica de la mix-


tura. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2017.
HAUDRICOURT, A. El cultivo de los gestos. Hacer mundos
con gestos. Buenos Aires: Cactus, 2019.
MIGNOLO, W. Educación y decolonialidad: aprender a desa-
prender para poder re-aprender. Revista del IICE, n. 35, 2014.
RIBEIRO, D. Lugar de enunciación. Buenos Aires: Ediciones
Ambulantes, 2020.
SHIVA, V. Los monocultivos de la mente. México: Editorial
FINEO, 2008.
WITTIG, M. Guerrilleras. Buenos Aires: Hekht, 2019.

56
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ayvu

Cc

complexidade
denise najmanovichv

v
Mestre em Metodologia da cionadas com a complexidade,
Pesquisa, Doutora pela PUC-SP a subjetividade e o laço social,
sob orientação de Suely Rolnik. a saúde, a educação, a arte e a
Professora e pesquisadora da arquitetura, a convencionalida-
Universidade de Buenos Aires de, a ética do cuidado e a cida-
e da Universidade Nacional de dania. Em todas suas pesquisas
Rosário. Professora convidada tratou de dar lugar a um pen-
em diversas universidades da sar vital, complexo, implicado
Espanha, Costa Rica, Colômbia, e enredado, transdisciplinar e
Peru, Chile, Brasil, México, en- indisciplinado. A linearidade e
tre outras. Professora, pesqui- a esquematização não formam
sadora‘ e polinizadora do pensa- parte de sua estética, uma vez
mento. Transitou por diversos que o pensar é um processo ati-
territórios do saber e das práti- vo sempre em curso, que não
cas coletivas levando nutrien- possui fronteiras.
tes do pensar entre entre uns E-mail:
– sumário –

e outros. Suas contribuições denisenajmanovich@gmail.


compreendem temáticas rela- com

A complexidade é dita de várias maneiras.


Alguns batizaram suas teorias com esse termo e há
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complexidade

quem proponha como um novo paradigma, enquan-


to outros sustentam que é uma revolução do conhe-
cimento que atinge todas as áreas da vida. O termo
vem do latim complexus, que significa entrelaçado, e
mostra um novo olhar que tenta abandonar a disso-
ciação da cultura moderna. Em vez de entidades inde-
pendentes e isoladas, é uma estética que nos permite
ver a unidade na diversidade e o singular entrelaçado
no comum. Para dar lugar às complexidades da com-
plexidade, e perceber as suas várias propostas, o seu
alcance e as suas tensões, irei abordá-la seguindo as
distinções que proponho no quadro seguinte:

Transformação em Metáforas Globais


Do universo mecânico ao pluriverso
entrelaçado.
Da partícula isolada para a rede.
Transformação Epistemológica
Da razão pura individual e dissociada, ao co-
nhecimento coletivo.
Da ilusão de objetividade ao pensamento
responsável envolvido.
Do discurso impessoal às narrativas
polifônico-polissêmicas.
Transformação em Estratégias de Abordagem
De teorias a priori às práticas situadas.
Da intervenção à conversação.
Da disciplina à inter, trans-disciplina e
indisciplina.
Da reivindicação de neutralidade ao cuidado
e envolvimento
Transformação dos Paradigmas nas Ciências
Da conservação à dinâmica não linear
Da homeostase à criatividade longe do
equilíbrio
Da linearidade à não linearidade
58
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complexidade

Transformação em metáforas globais


A partir do século 18, com o triunfo da teoria new-
toniana, a “simplicidade” reinou com altivez na cultu-
ra ocidental. O termo “complexidade” apenas começou
a ser mencionado com respeito e interesse, com status
científico e legitimidade cultural, em meados do sé-
culo XX, com o desenvolvimento simultâneo de novos
paradigmas na ciência e no pensamento complexo de
Edgard Morin. No final do século passado e no início
do século XXI, vários autores como Pedro Sotolongo e
Denise Najmanovich, argumentaram que é uma ver-
dadeira revolução do conhecimento que inclui os nos-
sos modos de conhecer e a noção de conhecimento, e
ao mesmo tempo, da geração de profunda metamorfo-
se em nossa concepção da natureza, de nós mesmos e
de nosso lugar nela.
A ciência moderna foi construída a partir de
metáforas e modelos que tomavam como certa a sim-
plicidade da natureza, construindo uma imagem do
universo como um vazio infinito povoado por átomos
que colidiam entre si, e eram compostos apenas me-
canicamente (como as engrenagens de uma máquina
que, em teoria, são afetadas apenas externamente).
Essa construção conceitual foi o resultado da aplica-
ção do método analítico que consiste em separar tudo
em unidades elementares independentes (átomos, pa-
lavras ou fonemas, indivíduos, células, etc.). Uma vez
que a natureza foi desunida, sua matriz geradora este-
rilizada e invisibilizados os elos, os sistemas foram re-
compostos mecanicamente, o que os torna previsíveis,
controláveis e manipuláveis.
Egdar Morin chamou de Paradigma da
Simplicidade à concepção científica mecanicista, se-
gundo a qual tudo o que acontece no universo pode

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complexidade

ser explicado a partir do conhecimento da posição e


velocidade das partículas graças às leis da mecânica.
Embora a perspectiva analítico-mecânica, ain-
da típica da simplicidade que apresenta o universo
como um relógio, ainda esteja em vigor em muitas
áreas, está perdendo sua hegemonia. Ao mesmo tem-
po, novas formas de investigação e novas concepções
nos convidam a pensar a natureza como uma rede
dinâmica em todos os níveis da organização. Em vez
de partículas independentes colidindo no vácuo, en-
contramos uma natureza ativa, generativa e criati-
va, totalmente entrelaçada, onde nenhuma entidade
existe isolada.
Já no início da modernidade ocidental, Baruj
Spinoza havia concebido uma concepção da natureza
como uma atividade geradora infinita, uma trama em
que o ser humano era uma das infinitas criaturas com
as quais estava profundamente entrelaçado. Mas não
foi a sua proposta que triunfou, mas o modelo disso-
ciado de Descartes, que assumiu a humanidade como
uma exceção na natureza puramente mecânica que se
defrontava e que devia dominar.

Transformação Epistemológica
As contribuições pioneiras de Edgar Morin e
sua proposta de Pensamento Complexo nos permitem
pensar a natureza e o nosso conhecimento dela, de
uma perspectiva multidimensional. Abandonando o
modelo lógico e normativo do positivismo, este autor
se propôs a conhecer o conhecimento, seus limites e
sua potência, como ele realmente ocorre na vida.
Essa forma de abordar os problemas implica uma
mudança radical de atitude: de uma que pressupõe a
distância e a independência do sujeito e do objeto (o

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complexidade

olhar transcendente) para outra que toma como pon-


to de partida a interação com a natureza e a implica-
ção do pesquisador. Seguindo o modelo mecanicista, a
concepção positivista do conhecimento pressupunha
que ele era um fiel reflexo interno do mundo externo.
Nesta ideia, assume-se a dissociação radical entre
quem sabe e o que sabe, tornando invisíveis as media-
ções e interações entre o ser humano e seu mundo, e
reduzindo a experiência a uma racionalidade incorpó-
rea em vez de pensá-la como vivente e, portanto, ne-
cessariamente interativo.
Em vez de impor um esquema lógico à natureza,
as abordagens da complexidade buscavam compre-
endê-la e, assim, conhecer reflexivamente o conheci-
mento. Ao mudar nossa concepção de natureza, nossas
crenças sobre o ser humano, o aprendizado e o conhe-
cimento também são afetados: longe de ser produto da
razão pura, o saber é o resultado da atividade que de-
senvolvemos como seres vivos e, portanto, corpóreos,
afetivos, sensível, imaginativos e ativos, sempre en-
raizada na natureza e em permanente “entre-câmbio”
com o meio ambiente. Por que “entre-câmbio” e não
“troca”, como estamos acostumados? Porque a palavra
“troca” é usada para se referir a meras interações ex-
ternas (mecânicas), e a complexidade proposta é en-
tender que os encontros dos quais participamos nos
afetam e nos transformam intimamente, uma vez que
o ambiente não só nos rodeia, mas também nos atra-
vessa e constitui. A humanidade não se confronta com
a natureza, mas está inserida nela, o eu não se opõe ao
outro, mas se produzem e se afetam. É por isso que co-
nhecer é uma atividade de ligação multidimensional e
não o produto de uma lógica abstrata dissociada.
A pesquisa contemporânea sobre a percepção,
juntamente com a reflexão sobre o conhecimento das
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complexidade

abordagens da complexidade, tem mostrado que nos-


so conhecimento não surge do isolamento, mas da
exploração ativa: apreendemos o mundo interagindo
com ele como organismos vivos, somos afetados por
ele e participamos de sua transformação permanente.
Nossa experiência perceptiva e cognitiva não é indi-
vidual nem passiva, mas culturalmente moldada, cor-
poralmente encarnada e construída coletivamente.
Somos capazes de uma ampla multiplicidade de siste-
mas de formação de sentido e foco. Nenhum conheci-
mento humano representa o próprio mundo, mas an-
tes expressa nossa maneira de entendê-lo, que não é
universal nem objetiva. Todo conhecimento é media-
do, tanto em sua gestação quanto em sua expressão:
ativamente produzimos significados em nosso encon-
tro multidimensional com a natureza e os expressa-
mos de muitas maneiras diferentes.
A concepção epistemológica positivista só admi-
tia um modo de expressão impessoal em um modelo
narrativo que eliminava o sujeito da enunciação. Essa
retórica que finge não ser é crucial para sustentar a
crença na objetividade, razão pela qual foi (e geral-
mente continua sendo) uma condição sine qua non
para publicação. Atualmente, vários grupos de pes-
quisa que buscam homenagear a complexidade de seu
trabalho estão se abrindo a novos modos de expressão,
uma diversidade de texturas narrativas e meios de co-
municação, semelhantes a um modo transdisciplinar
e “indisciplinado” de investigação dialógica!
O “Pensamento Complexo”, em sua infinita diver-
sidade, assume que o conhecimento humano é sem-
pre parcial e está em contínua transformação. Nessa
corrente ele também colocou a proposta de aborda-
gens imanentes à complexidade proposta por Denise
Najmanovich. Ao contrário de Morin, que concebeu
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complexidade

a complexidade como um paradigma, o autor propõe


pensá-la como uma ética, uma estética, uma políti-
ca que promove o conhecimento como uma aventura
aberta de pensamento que não pode ser encerrada em
nenhum paradigma, ao mesmo tempo que pode aco-
modar a todos, renomeando-os como focos parciais.

Transformação em Estratégias de Abordagem


Abordagens complexas nos mostram uma paisa-
gem ativa e vital, capaz de abranger múltiplas aborda-
gens, incluindo dentro dela uma variedade infinita de
narrativas, dispositivos e estilos de investigação. Ao
abandonar as abordagens disciplinares, podemos am-
pliar, diversificar e entrelaçar as práticas de pesquisa
não apenas entre o conhecimento científico, mas tam-
bém em um diálogo fecundo com a filosofia, as artes, o
ativismo político e o conhecimento popular.
Ao contrário do modelo quadrado e fechado da
ciência disciplinar, as abordagens complexas conce-
bem a natureza como um enredo e, portanto, também
devem investigá-la a partir de um diálogo fecundo
entre diversos saberes-práticas. Admitindo nosso en-
volvimento na produção de sentido, não buscamos
descrever um mundo independente para melhor ma-
nipulá-lo e controlá-lo, mas sim participar ativamen-
te do tecido da natureza. Em vez da ética-estética da
intervenção, promovemos conversas fecundas para
gerar campos problemáticos férteis, em vez de teorias
enquadradas e conclusivas.
Abordagens complexas pressupõem que um in-
vestigador não pode ser neutro, porque nenhum ser
vivo é. Todo conhecimento é construído a partir de
uma perspectiva, de uma linguagem, de uma forma de
interação, que são necessariamente situadas e cultu-
ralmente modeladas e moduladas.
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complexidade

Admitir a falácia dos pressupostos da neutrali-


dade e da imparcialidade é essencial para a gestação
de um saber responsável e uma investigação cuidado-
sa do outro (humano e não humano). Fazer essa trans-
formação supõe passar de uma produção de sentido
teórico, abstrato e mecânico para um conhecimento
poiético, situado, implícito, o que requer também uma
mudança na organização institucional e no modo de
participação de cada pesquisador. É por isso que a pro-
posta da complexidade é ao mesmo tempo uma ética,
uma estética e uma política de transformação que nos
envolve como pessoas e como comunidades.

Transformação dos Paradigmas nas Ciências


A partir do início do século XX, novos paradig-
mas começaram a surgir na ciência que, de forma
heterogênea e com intensidades diversas, abando-
nou os modelos causais lineares típicos da explica-
ção mecanicista, abrindo a experiência para dinâmi-
cas não lineares e sistemas evolutivos complexos.
Algumas das propostas mais destacadas do que tem
sido chamado de “Ciências da Complexidade” são:
Termodinâmica não Linear, Ciências do Caos, Teorias
de Auto-organização e Autopoiese, Cibernética de
Segunda Ordem, Abordagens Enativas, matemática
Fractal, Sistemas Emergentes e Projetos, Ciência de
Redes, Teoria da Vida Artificial, Modelos de Algoritmos
Genéticos, Teorias de Gaia e Simbiogênese, Teorias de
Sistemas Evolucionários Complexos, a concepção de
Holomovimento e Ordem Envolvida.
Esses novos paradigmas apresentam algumas
convergências, embora não constituam um campo ho-
mogêneo. A maioria tende a incorporar a não lineari-
dade, pensar em sistemas abertos e auto-organizados,
abandonar o reducionismo e reconhecer a emergência.
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complexidade

Outra característica comum é a capacidade de


pensar temporalidades criativas e transformações
qualitativas. Em conjunto, podemos argumentar que,
apesar das muitas diferenças, há uma reformulação
clara das formas de saber que se afastam das concep-
ções essencialistas e abandonam a ilusão de indepen-
dência para tomar como ponto de partida e estética
conceitual a dinâmica da vinculação.
As ciências da complexidade abriram um novo
mundo, se o compararmos com o conhecimento insti-
tuído pelo paradigma da simplicidade.
Mas essa amplitude adquirida não deve nos fa-
zer esquecer que nenhuma ciência, nenhum modelo,
nenhuma teoria pode abranger o infinito ou conden-
sar toda a experiência humana. Toda teoria é inevita-
velmente uma simplificação. Essa afirmação é válida
mesmo para aquelas concepções que usam (e às ve-
zes abusam) do termo complexidade. É claro que seus
modelos podem ser mais amplos do que os da ciência
clássica e de suas ferramentas mais poderosas, mas
não podem, e nunca incluirão, a infinita variedade de
experiências humanas ou configurações do mundo. O
infinito ultrapassa qualquer paradigma, escapa à re-
presentação; não suporta enquadramentos nem aceita
limitações. Por isso, a complexidade não pode ser con-
cebida como um objetivo a ser alcançado, mas como
uma forma de investigação, um estilo cognitivo, uma
abordagem sempre atual, uma aventura de pensamen-
to. Uma revolução do conhecimento ético, estético, po-
lítico, prático e sensível.
Proust disse que A verdadeira viagem de des-
coberta não consiste em procurar novas terras, mas
em olhar com novos olhos. E é precisamente isso que
está no centro da revolução do conhecimento, pro-
posta pelas abordagens da complexidade ao conceber
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complexidade

a natureza como um tecido sem tecelão, sem dono e


sem patrão.

Referências
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zação do ser vivo. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
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MORIN, E. O Método 1: a natureza da natureza. Porto Alegre:
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MORIN, E. O Método 2: a vida da vida. Porto Alegre: Sulina,
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MORIN, E. O Método 3: O Conhecimento do Conhecimento.
Porto Alegre: Sulina, 2012.
MORIN, E. O Método 4: As Ideias. Porto Alegre: Sulina, 2011

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complexidade

MORIN, E. O Método 5: a humanidade da humanidade. Porto


Alegre: Sulina, 2012.
MORIN, E. O Método 6: Ética. 3ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.
NAJMANOVICH, D. Mirar con nuevos ojos: nuevos paradig-
mas en la ciencia y pensamiento complejo. Buenos Aires:
Biblos, 2008.
NAJMANOVICH, D. Complejidades del saber. Buenos Aires:
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NAJMANOVICH, D. El mito de la objetividad: la construc-
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PRIGOGINE, I.; STENGERS, I. A nova aliança: metamorfose
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VARELA, F. J.; THOMPSONE, R. E. De cuerpo presente: las
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2001. Disponível em: http://www.finchpark.com/arts/com-
plex/index.htm. Acesso em: 5 nov. 2004.

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ayvu

confissões (auto)biográficas
gabriel jaime murillo-arangovi

vi
Doutor em Estudos Históri- e Pedagogia Histórica. Profes-
cos em Educação, Didática e sor do Programa de Investiga-
Pedagogia/ Universidade de ção Narrativa e (Auto)Biográ-
Antióquia, Colômbia. Professor fica/ Doutorado em Educação/
da Faculdade de Educação da Universidade Nacional de Ro-
Universidade de Antioquia. In- sário (UNR), Argentina.
tegrante do Grupo de Investiga- E-mail:
ção em Formação, Antropologia gabriel.murillo@udea.edu.com

Não são poucos os pensadores que ao longo da


história reivindicaram e ainda reivindicam uma fi-
losofia concebida não como um discurso teórico abs-
trato, mas como uma prática de exercícios capazes de
se tornarem gestos, habitus e tarefas da vida cotidia-
na. Fazer filosofia na Grécia Antiga equivale, antes de
tudo, a uma imersão profunda na busca do conheci-
mento com o intuito de formar mais do que informar,
ensinar a raciocinar, internalizar um saber que não se
divide nem se dispersa, por meio de exercícios concre-
tos e vivos que treinem na navegação pelos meandros
da lógica, da física e da ética. Desde então, a filiação
remota de toda filosofia é reconhecível como um re-
– sumário –

aprender a ver o mundo com espanto e a perceber as


coisas com a estranheza que a interrogação promove.
Tarefa partilhada pelo filósofo, o artista e o cientista,
que embarcam numa viagem de exploração e marcam
presença no mundo, ao mesmo tempo que se abrem
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confissões (auto)biográficas

para as marés no interior do sujeito que observa, refle-


te, comunica, e assim por diante, torne-se sábio.
É a paideia representada por Hadot (2006, p. 49)
na figura do tetraedro da aprendizagem: aprender a
viver, aprender a dialogar, aprender a morrer, apren-
der a ler. Aprender, enfim, da jornada ao desconhecido,
ao encontro dos outros, e a retornar a si mesmo como
outro: uma jornada biográfica. Sob essa ideia também
se identifica o antropólogo “pós-moderno” ao desen-
volver sua tarefa entendida como toda etnografia é
em parte filosofia, e uma boa dose do resto é confissão
(Geertz, 1987, p. 287).
O trabalho genealógico desenvolvido com in-
tensidade na segunda metade do século XX permitiu
decifrar as relações que entrelaçam as técnicas de
autocuidado, as artes de viver, com os exercícios es-
pirituais, e as diversas teorias pedagógicas que emer-
gem nos diferentes períodos históricos. No seu conjun-
to, as técnicas de si designam o conjunto de hábitos,
procedimentos, operações, exercícios físicos e men-
tais, que constituem uma prática pessoal voluntária,
destinada a aperfeiçoar o ser do indivíduo de acordo
com o propósito do bem viver. Em uma definição tão
ampla e vasta, é possível distinguir variações do tema
autobiográfico que vão desde o autoexame estoico, o
exame de consciência e a confissão cristã, a autobio-
grafia pietista, até a cura psicanalítica ou o curricu-
lum vitae que circula profusamente nos ambientes
burocráticos. As motivações, intenções e propósitos
mudam sem dúvida, embora seja necessário atender
aos contextos e às condições de enunciação que as
tornam possíveis.
Na pesquisa biográfica narrativa, aponta-se o
alvo formado pelos propósitos, objetos e ações trans-
formadoras de si mesmo, seja o caso dos antigos exer-
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confissões (auto)biográficas

cícios espirituais a serviço da filosofia como modo de


vida, seja das histórias de testemunho, ou a escrita
intimista, ou as diferentes mediações biográficas dis-
poníveis para qualquer um no vasto mercado de ma-
nuais de autoajuda para a satisfação do narcisismo
contemporâneo. Portanto, o projeto formativo é o cri-
tério de classificação decisivo que orienta o percurso
do espaço biográfico.
Todos os caminhos na história da autobiografia
conduzem às Confissões de Agustín, um relato de con-
versão religiosa que combina uma prestação de contas
a Deus e o leque de questões que nos parecem fami-
liares até hoje, cujo poder de fascinação não diminuiu
ao longo dos séculos, deixando uma marca indelével
em muitos círculos de crentes do nosso tempo. Em
sua estrutura e estilo, a obra trata em grande parte do
evento de conversão, com o sacrifício de um itinerá-
rio biográfico próprio, enquanto o restante aborda os
temas da meditação, da memória e do tempo, além da
contemplação divina. O propósito do autor está longe
de legar um relato de sua vida mundana à posterida-
de, exceto na medida em que serve como um exemplo
da glória de Deus, que continua a nos confundir hoje
como leitores modernos supostamente ímpios. Em
suma, com Delory-Momberger (2000, p. 31), a obra de
Agustín nos leva da mão de uma autobiografia a uma
auto-teo-grafía.
A progressiva instauração da modernidade foi
acompanhada pela consolidação de um gênero in-
distintamente denominado romance de formação ou
de educação ou de aprendizagem, que não esconde
suas especificidades para além das barreiras linguís-
ticas. Nos romances românticos emerge, por um lado,
a intenção pedagógica explícita nas obras de língua
francesa que incitam uma mudança de atitude nas
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confissões (auto)biográficas

relações com a natureza e o mundo, juntamente com


a adesão aos ideais da vida burguesa, enquanto do
outro lado da fronteira, o enredo narrativo é mais su-
jeito à introspecção e exame de consciência interno
– conspicuamente, As tribulações do jovem Wilhelm
Meister, de Goethe. Assim como na França, o roman-
ce de formação se reveste de preocupações sociais,
ostentando uma consciência subversiva dos valores
aristocráticos e clericais que adornavam o Antigo
Regime, o Bildungsroman busca um ideal pleno de
harmonia interior e equilíbrio em um ser sempre in-
satisfeito consigo mesmo, com base em exercícios de
meditação espiritual retirados do legado filosófico que
caracteriza o movimento da autobiografia pietista. Na
verdade, o romantismo na Alemanha é mais do que
uma tendência literária ou estética, é um paradigma
com aspirações de um “conhecimento total” que reúne
uma teoria do conhecimento, uma antropologia, uma
cosmologia, uma ética e uma política. Nessa encruzi-
lhada de saberes que circulou na Alemanha da virada
do século XVIII para o século XIX, ocorreu a expansão
de um gênero discursivo onde convergiu o interesse
em desvendar os mistérios do cosmos com o apoio de
uma “filosofia natural”, e a revelação dos sonhos e pe-
sadelos nascidos nas profundezas do coração peneira-
do pela consciência racional de um sujeito autônomo.
Nessas brasas é cozida a obra de Juan Jacobo
Rousseau, cuja escrita simboliza a perda da inocência
por uma prática de introspecção ou autoexame corpo-
rificado em uma escrita de si que começa por ques-
tionar o suposto leitor, a quem ele pede uma atitude
indulgente frente ao relato de sua vida atormentada.
Uma dessas obras exemplares da literatura biográfi-
ca, há apenas duzentos e cinquenta anos o seu ápice
foi anunciado durante as animadas noites de salão da
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confissões (auto)biográficas

elite burguesa, embora só tenha entrado na imprensa


até depois da morte do seu autor, em 1778. É bastante
conhecida a anedota a que se refere o Livro VIII das
Confissões sobre o episódio da conversão à maneira de
São Paulo: Rousseau passa bem em frente ao asilo onde
há muito abandonara um de seus filhos, a caminho
de uma visita à prisão onde estava o amigo Diderot,
quando lê o anúncio da convocação do concurso da
Academia de Dijon que levanta a questão de saber se
o progresso das ciências e das artes contribuiu para
a corrupção ou purificação dos costumes. Então, na-
quele momento único, ele não só teve que mudar sua
própria vida, mas também iluminar o fundamento fi-
losófico de toda uma obra, apesar do que não demorará
muito para revelar que este não foi o único momen-
to, nem foi a primeira vez que em Las Confesiones se
refere a tantos eventos milagrosos que deixaram uma
marca em sua identidade. A intriga da história recorre
a uma operação de transdução, por meio da qual, con-
tra o pano de fundo das repetições cíclicas, certos mo-
mentos da existência se reconfiguram como cristais
que captam os flashes em diferentes tonalidades que
iluminam o sentido de uma trajetória de vida.
Em suas palavras, o principal motivo de Las
Confesiones é expor os pensamentos íntimos que
acompanham as situações cruciais de sua vida (“a
história de minha alma”, “meu ser interior”), como um
testemunho genuíno de que ele é quem é, através de
um ato de nomeação de si mesmo, a quem a histó-
ria não cessa de nomear na terceira pessoa de “Jean
Jacques”. Por meio desse ato de fala, é selado o pacto
entre a individualização de si e o exercício da escrita.
Com Jean Jacques Rousseau, a narração da inti-
midade cruza a linha que separa o público do privado,
constitutiva do próprio fundamento da ordem burgue-
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confissões (auto)biográficas

sa, para se instalar definitivamente nas áreas de nossa


contemporaneidade. Desde então, a história de vida e a
revelação de segredos íntimos denunciam uma reação
à força invasora do poder público que induz à norma-
lização de comportamentos, colocando a “voz interior”
em primeiro lugar como garantia de autenticidade e
validação do que foi dito em gesto de solicitação de lei-
tor cúmplice. Com o autor de Emilio, Las confesiones,
Las ensoñaciones de un paseante solitario, entre ou-
tros títulos, se desencadeia uma economia e uma po-
ética de histórias de vida de corações solitários que se
recria em sua história, em meio a uma natureza exal-
tada como guardiã dos bens originais antes da queda
- uma certa ideologia naturalista que não renuncia a
seus direitos mais de dois séculos depois. Sobre esta
operação ambígua do coração aberto à natureza e à
história, a filósofa e poetisa María Zambrano comenta:

Nasce a vida do romance, a vida literária. Vida que


em sua própria expressão encontra seu objeto. “O
pássaro que rasga o peito / e das suas entranhas
como alimento por amor “ da poesia medieval, tor-
nou-se o pássaro que se alimenta de suas próprias
entranhas. Logo se formará aquele doce filtro que
será a literatura da semiconfissão, a poesia litera-
turada, a poesia ficcional, feita história, em que a
vida secreta do coração se oferece para ser bebida,
consumida por uma avidez cada vez maior. Será o
Romantismo. Mas, enquanto essa forma de confis-
são não for substituída por outra, a literatura vive-
rá, continuará a viver do romantismo, continuará a
ser a busca cada vez mais exasperada de um para-
íso artificial. (2004, p. 88).

Aquela criança que percorre as primeiras pági-


nas de Las Confesiones, tal como foi pintada anos an-
tes no Emilio, será também protagonista da epifania

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confissões (auto)biográficas

das histórias infantis como objeto da literatura, pro-


cesso paralelo ao surgimento de saberes especializa-
dos em e na infância que conquistaria uma posição
privilegiada no campo das ciências humanas. Com
Emilio, surgiu uma noção de infância com traços
identitários próprios, que reconhece o lugar do sujeito
infantil na ordem natural da vida humana, aberta ao
desenvolvimento de poderes afetivos e cognitivos, já
vistos de forma diferente daquela pessoa em miniatu-
ra sem liberdade e poder de escolha refletido no olhar
infalível do adulto nos tempos clássicos. Desde então,
o horizonte da formação exige que essa história possa
ser contada desde a infância.

Referências
DELORY-MOMBERGER, C. Les histoires de vie. De l´inven-
tion de soi au projet de formation. Paris: Anthropos, 2000.
GEERTZ, C. La interpretación de las culturas. Barcelona:
Gedisa, 1987.
HADOT, P. Ejercicios espirituales y filosofía antigua. Madrid:
Siruela, 2006.
ROUSSEAU, J. Las confesiones. Madrid: Alianza, 1997.
ZAMBRANO, M. La confesión: género literario. Madrid:
Siruela, 2004.

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ayvu

constelações (como narrações)


rossana del pilar godoy lenzvii

vii
Doutora e Mestre em Edu- tamentos regionais e organiza-
cação pela Universidade de ções educativas, trabalhando a
La Serena, Pós-graduada em transformação e inovação edu-
Administração de Organizações cativa com enfoque inclusivo.
Educativas pela Universidade Atualmente é Diretora Acadê-
Pontifícia Católica do Chile e mica da Fundação Incluir Tarea
Pós-doutorada em Educação de Todos e atua como Docente e
e Antropologia na UBA, Pesquisadora do Departamento
Argentina. Especializada em de Educação da Universidade
Apego e Complexidade Infantil. de La Serena. Representante
Colaborou com a UNICEF na da Rede Internacional de
implementação da política pú- Investigações-Vidas. Publicou
‘ Educação Inclusiva na
blica em sobre temáticas de pedagogia
América Central e no Caribe. comunitária, narrativas inves-
Assessorou equipes profissio- tigativas e vozes da infância.
nais do Ministério da Educação E-mail:
do Chile (MINEDUC), de depar- rossanagodoylenz@gmail.com

Somos corpo, somos texto,


somos vidas e narrações;
formas de aprendizagem e significado,
narrações como constelações.
– Godoy.
– sumário –

Os modelos narratológicos atualmente se con-


centram em dois fatores diferentes. Por um lado, na
natureza estrutural e formal das narrações, onde po-
demos reconhecer a contribuição de teóricos estrutu-
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constelações (como narrações)

ralistas (Cf. Niccolini, 1977). Entre eles, encontramos


Wladimir Propp, Claude Lévi-Strauss, Algirdas Grei-
mas e Roland Barthes como seus maiores expoentes.
Por outro lado, a dimensão geradora das múltiplas
formas de linguagem e as relações possíveis que nos
constituem na experiência humana como força vital,
produtiva e transformadora.
O presente texto não aborda as narrações a partir
de uma abordagem estilística, pseudoliterária e line-
ar da comunicação humana; também não é reflexivo
e representativo da realidade que pode ser capturada
por meio de adaptação conceitual (Lather, 1992). Es-
tamos interessados na dimensão geradora das for-
mas de significar a experiência humana, a vida, dadas
as relações entre o narrador e sua própria narrativa
(consigo mesmo) que nos constitui, e as tramas com
significados referentes a expressões narrativas com-
partilhadas (relações em comunidade) que nos confi-
guram. Ambas estão inter-relacionadas, onde o texto
é o sujeito e as histórias, a vida vivida (Ricoeur, 2006).
O alcance de tipo investigativo, exploratório e ab-
dutivo que apresentamos nos permitem interpretar e
tecer o significado da experiência vivida como síntese
do permanente e do mutável (Ricoeur, 2000). As nar-
rativas não devem ser vistas como algo separado do
corpo e nos permitem acessar a vida, por meio de ex-
periências, onde as histórias se desenvolvem em situ-
ações para quem as vive (Merleau-Ponty, 2013). A vida
narrada como possibilidade de recuperar ou reexpe-
rimentar as vivências para reabitar uma trama com
novos significados, novos sentidos.
As experiências narrativas no mundo nos per-
mitem construir realidades múltiplas e diversas, res-
gatando a ideia de unificar o mundo natural total do
qual fazemos parte (Bateson, 1997) como seres rela-
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constelações (como narrações)

cionais complexos em unidade. Esse processo de rela-


ções entre as narrativas e seus narradores, e entre as
narrativas compartilhadas entre os narradores, confi-
guram o tecido comunitário de onde emerge o enredo
narrativo. A partir das contribuições de John Barnes
(1954), o conceito de rede social entendida como laços
sociais que se ramificam por meio de nossas relações
no mundo permite visualizar a ideia de enredo ou te-
cido social como uma rede de narrativas relacionadas.
Da maneira como se relacionam umas com as outras,
vão tecendo e formando o que chamamos de matriz
narrativa. Esse processo de constituição da experiên-
cia narrativa, por meio da qual os sujeitos elaboram
diferentes significados e sentidos de sua existência
(Gonçalves, 2002), vai gerando aquela estrutura nar-
rativa comunitária vital que chamamos de narrações
como constelações.
Essas experiências narrativas e narradores em
inter-relação e interdependência, geram consigo mes-
mos, com os outros e com o mundo, a possibilidade de
apresentar e explorar a identidade e a diferença dos
universos que habitamos, sem serem vistos como ins-
trumentos de divisão, mas como forças unificadoras
(Orner, 1999, p. 129). A automontagem das narrações
como processo gerador refere-se à natureza espontâ-
nea das relações que existem entre as propriedades de
um sistema ou universo (Valdetarro, 2015). Narrativas
e narradores, narradores e interlocutores envolvidos,
que se encontram e geram relações e transformações
(Bernasconi, 2011; Capella, 2011), que compartilham
sentimentos, pensamentos, de uma forma atemporal.
A experiência humana ou narrativa individual, como
também coletiva, pode ser sentida e compreendida
quando compartilhada por uma comunidade (Feixas;
Villegas, 2000).
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constelações (como narrações)

Compartilhamos experiências narrativas desde


bebês, através de nossos corpos, gestos, suspiros, cho-
ros, olhares. Essas narrativas vitais situadas na expe-
riência cotidiana de convivência em comunidade vão
expressando e deixando rastros na realidade históri-
co-cultural não linear que acontece nos diferentes ter-
ritórios; narrativas vivas que nos transformam porque
nos reconfiguram, dando conta das histórias de nosso
sentimento social, político, vinculante, afetivo, inclu-
sivo e transformador.

Narrativas a partir do corpo e do movimento


A experiência humana desencadeia múltiplas
mudanças e transformações constantes, que surgem
e se desenvolvem nos diversos contextos em que ha-
bitamos. Quando o bebê acompanha suas mãos com o
olhar, quando não para de prestar atenção aos pés que
se movem ou quando se detém no gesto do olhar en-
quanto ouve uma música; quando ele sorri ao sussurro
das canções de ninar de sua mãe, pausado no tempo,
ele parece mergulhar na experiência sentida, visual,
auditiva, temporal-espacial e vibrar com a narrativa
desta, sua primeira história como uma das milhares
que ele vai ouvir ao longo de sua vida. Essa narrativa
precisou do corpo, da voz, do silêncio, do encontro dos
olhares, das mãos que sentem a umidade, a tempera-
tura, o aroma do leite. Ambos os narradores incluídos
na experiência total configuram o ethos da narrativa
envolvente e vinculativa onde o corpo se torna um re-
cipiente de histórias: mensagens, voz, poesia e movi-
mento. Convidamos você a recordar aquelas canções
de ninar como uma experiência de ternura emocional
e poética onde o sussurro abraça, e onde a narrativa
nos torna ternura, dedicação implícita, narrativa vital.

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constelações (como narrações)

Nas canções de ninar de Julián Bozzo (2018), o sorriso


sempre acalma, é aí onde se vive a doce semente do
amor sincero, dos olhares sem disfarces; como pipa
e âncora, o mais bonito é vivido1 . Narrativas de can-
ções transmitidas com os dedos e as mãos2. Podemos
trazer e recuperar uma narrativa fácil, mas comple-
xa como uma experiência lúdica, onde mãos, orelhas,
braços, língua, afetos, avós, irmãos, ritmo e amor nos
constituem em unidade.
Quando somos bebês, estendemos os braços e
abrimos as mãos para encontrar a mão daquele que
está ali, à nossa frente. Nosso corpo, que é expressão,
se estende como narrativa. Gesto e movimento como
narrativa corporal nos comunicam e nos ligam, alcan-
çando o abraço no encontro. Um corpo que fala, uma
narrativa que representa o bebê e a mãe. São narra-
tivas como histórias em um estado nascente, diz Ri-
coeur (2006). Não se articulam isoladamente, mas são
apresentados ao mundo com um outro, e nessa cons-
trução da própria linguagem geram-se relações com
os outros (Karmiloff; Karmiloff-Smith, 2005). Nos es-
paços do quotidiano, podemos reconhecer-nos como
narrativas comunitárias, onde corpos parados ou em
movimento, sonoros ou silenciosos, nos mostram no-

1
Letra do tema Verano improvisado, canção de ninar de Julián
Bozzo, do álbum En el corazón de la hembra maga. Referência de
vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IjuA-
5S8ILzY. Acesso em: 13 ago. 2021.
2
Contos com dedos e mãos. Onde o corpo, o gesto, a voz, o movi-
mento dos dedos e as rimas nas palavras possibilitam a narrativa
como uma experiência lúdica. Referência em vídeo de práticas na
educação infantil disponível em: https://www.youtube.com/wat-
ch?v=onkDhUG0zdk, Acesso em 13 ago. 2021; rimas com movimen-
to na interpretação de Tamara Chuvarosky disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=UJjE3biof6g. Acesso em: 13 ago. 2021.
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constelações (como narrações)

vos horizontes nos diferentes cenários partilhados, es-


paços-tempos vividos em comunidade.
A palavra em um estado nascente (Merleau-Pon-
ty, 2013) e as histórias em um estado nascente (Rico-
eur, 2006) nos mostram essa inteligibilidade narrativa
da experiência vivida: semântica da ação, midiatiza-
ção simbólica e qualidade pré-narrativa da experiên-
cia humana (Freydell, 2019). Na cena anterior do bebê
e sua mãe: a semântica da ação desenhada na mão do
bebê que se levanta para encontrar a mãe faz com que
a ação se torne familiar na medida em que o corpo da
mãe está ali, para abraçá-lo e sorrir; e, assim, as histó-
rias articulam essas ações como familiares. Por outro
lado, a midiatização simbólica faz com que a ação do
abraço com sorrisos entre a mãe e o bebê possa ser
articulada em uma história, pois, a partir desse encon-
tro, as canções de ninar, sussurros e histórias passam
a ser compartilhadas; isso é uma ilação de sinais cul-
turais. E assim, a cada vez que essas mãos do bebê se
estendem e surgem o abraço e os sorrisos, as canções
e as canções de ninar se abrem, para que surjam os
balbucios, as palavras ou outra qualidade pré-narrati-
va da experiência humana que se referem a histórias
em um estado nascente. Este encontro atemporal no
espaço aparece como uma estrutura ou matriz narra-
tiva como constelação.
As experiências ou narrativas vitais que surgem
nas trocas humanas ocorrem no encontro de nossas
palavras com as palavras dos outros; na intersecção
de meus gestos, imagens e seus significados com os
gestos, imagens e significados dos outros; nos silên-
cios, movimentos e respirações que ressoam nos si-
lêncios, movimentos e respirações dos outros. Essas
experiências em que somos naturalmente narrações

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constelações (como narrações)

nos mostram diante do mundo e nos constituem e nos


reconstituem, nos despem e nos transformam. Per-
cebemos, assim, o surgimento de um novo sentimen-
to, uma reflexão, uma nova história para significar,
um novo mundo para habitar. Nossas múltiplas for-
mas de expressão ou narração sempre se manifesta-
ram, com ou sem intenção; somos narrativas, porque
somos vida.
O caráter significativo das narrativas não se dá
apenas pelo conteúdo do discurso ou pela natureza
dos movimentos ou gestos, ou pelas qualidades rela-
cionadas ao silêncio e aos afetos. Essa multiplicidade
de significados só é possível, como aponta Gonçalves
(2002), graças às múltiplas linguagens, que presentam
um caráter fundador da experiência. Além disso, nota-
mos que essas histórias emergem na superfície tem-
poral como uma voz que une o que foi dado e o que foi
sedimentado para configurar ou produzir novos mo-
dos de significação, histórias de vida que serão ouvi-
das por outrem para sua transformação.
As narrações como constelações nos permitem
recuperar e gerar processos de investigação sobre nos-
sas próprias trajetórias ou linhas de vida, de aprendi-
zagem. Configuramos e nos constituímos nesse ema-
ranhado, reconhecendo-nos em múltiplos contextos
como diversidade, como unidade, como um todo ar-
ticulado, integrado, e surge uma forma de abordar a
investigação das vidas humanas.
As narrações como constelações ganham força
comum e se manifestam como expressões dessa re-
lação, como emaranhado de palavras, tecelagem de
gestos, rede de sussurros, matriz de aromas, nos são
oferecidas como experiência de criação comunitária,
de aprendizagem em uma unidade. Consequência dos

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constelações (como narrações)

fios da vida que se entrelaçam e se movem em direção


à obra coletiva, se tratando de uma construção com-
plexa de novos horizontes, de novos mundos possíveis.
As narrativas como constelações nos dão a pos-
sibilidade de despir esses significados em comuni-
dade, a partir do encontro para desabitá-los, para re-
nascer e criar novos tecidos narrativos da vida, novos
cenários para aprender.
Será que habitamos a vida como flashes de cores
em narrativas comunitárias, desenhados em tecidos
vazios e com fios do tempo, entre sentimentos e ima-
ginações que nos rodeiam e se tornam realidade, en-
quanto sons e silêncios recuperam o dom da poética,
do infinito natural.
Somos narrativas... somos narrativas como
constelações.

Referências
BATESON, G. Espíritu y Naturaleza. Buenos Aires: Amorror-
tu, 1997.
BERNASCONI, O. Aproximación narrativa al estudio de fe-
nómenos sociales: principales líneas de desarrollo. Acta So-
ciológica, n. 56, 2011.
FEIXAS, G.; VILLEGAS, M. Constructivismo y psicoterapia.
Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000.
FREYDELL, G. Configuración de identidad en la narrativa
del cuerpo vivido. Encuentros, v. 17, 2019.
GONÇALVES, O. Psicoterapia cognitiva narrativa: Manual de
terapia breve. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2002.
KARMILOFF, K.; KARMILOFF-SMITH, A. Hacia el Lenguaje:
del feto al adolescente. Madrid: Ediciones Morta, 2005.
LATHER, P. El postmodernismo y las políticas de ilustraci-
ón. Revista de Educación, n. 297, 1992.
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception.
Paris: Gallimard, 2013.
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constelações (como narrações)

RICOEUR, P. Narratividad, fenomenología y hermenéutica.


Anàlisi: quaderns de comunicació i cultura, n. 25, 2000.
RICOEUR, P. La vida: un relato en busca de narrador. Ágora,
v. 25, n. 2, 2006.
VALDETARRO, S. Epistemología de la comunicación. Una
introducción crítica. Rosario: UNR Editora, 2015.

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ayvu

contra-hegemonia
regina coeli moura de macedoviii

Professora titular, recente-


viii
ProPEd/UERJ. Participante do
mente aposentada, do Colégio Laboratório de Estudo e Parti-
Pedro II, onde trabalhei por 34 lha de Práticas Emancipatórias
anos nos anos iniciais do en- nos Anos Iniciais – LEPPEAI,
sino fundamental. Professora no Colégio Pedro II.
da Rede Municipal do Rio de E-mail:
Janeiro por 8 anos. Mestra- regininhamacedo@uol.com.br
do e Doutorado realizados no

Vivemos tempos difíceis!!!! Estamos em uma


pandemia de Covid 19 que já matou mais de 450.0001
pessoas no Brasil, um terço das mortes de todo o mun-
do. Nossa situação é dramática!!
Vivemos tempos desafiadores!! Instados, os que
defendemos a vida, a nos mover, nessa situação dra-
mática, buscamos preservar a vida e a sanidade, com
medidas sanitárias, humanitárias e solidárias. As es-
colas, espaçostempos de criação, têm sido desafiadas
a acontecer de forma inédita nesse contexto, em mo-
vimentos contra-hegemônicos vitais.
Chamamos contra-hegemônicos esses movi-
mentos, porque eles vão em sentidos contrários a inte-
resses e propósitos de determinados grupos, no poder
– sumário –

em nossa sociedade, estabelecidos como se fossem de


todos, através de um sistema de alianças e adesão de
1
Este texto foi escrito em maio de 2021. Infelizmente, desde então,
esse número só aumentou.
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contra-hegemonia

outros grupos. Esses interesses, fundamentados na


ideologia desses grupos dominantes, são hegemôni-
cos, ou seja, prevalecem sobre outros (Paro, 1993).
Temos sido vítimas de uma política de morte
implantada, principalmente, pelo governo federal, res-
ponsável pela gestão nacional da saúde, e por parte
dos governos estaduais e municipais. Desde o início
da pandemia, esses governos foram contrários às me-
didas de contenção, prevenção e tratamento da do-
ença, muitas vezes incentivando e defendendo, com
palavras e ações, comportamentos que contribuem
para a propagação da doença e para o aumento do nú-
mero de casos graves e de mortes, além de garantir,
apenas por alguns meses, auxílio financeiro satisfa-
tório para os mais pobres, muitos deles trabalhadores
desempregados.
A enorme desigualdade econômico-social do
país tem sido cruelmente agravada e exposta pela au-
sência de políticas de proteção da vida e prevalência
da política de morte em vigor. Como consequência, te-
mos a intensa precarização da forma de viver de boa
parte da população, com ainda mais pessoas em si-
tuação de vulnerabilidade em relação a seus direitos
básicos de comer, de morar, de vestir, de se divertir, de
ir à escola, de trabalhar, etc.
A escola é uma das instituições mais afetadas
nesse contexto. Estamos há mais de um ano sem o
seu funcionamento na forma presencial e, em gran-
de medida, também na forma remota. Professoras e
demais profissionais da educação estão, de suas ca-
sas, tentando chegar aos e às estudantes e estabelecer
com eles algum contato e relações de ensinoaprendi-
zagem, ainda que remotamente. Podemos dizer que as
professoras estão a inventar uma outra escola, mui-
to diferente de tudo que já experimentamos. Seja em
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contra-hegemonia

atividades síncronas, onde todos se veem ao mesmo


tempo, nas telas, seja através dos materiais pedagó-
gicos que estão sendo elaborados e enviados aos estu-
dantes para que realizem em sua casa. Em ambos os
modos de fazer, é tudo muito diferente do que existia
antes da pandemia e está tendo de ser criado a cada
dia, conforme as características e condições de cada
rede – municipal, estadual ou federal – de cada esco-
la, seus profissionais e de cada grupo de estudantes. A
invenção de modos inéditos de fazer, que buscam al-
cançar os e as estudantes, mesmo remotamente, para
que se efetivem relações de ensinoaprendizagem e a
manutenção da existência das escolas, cumprindo o
seu papel social e político, são atos de contra-hegemo-
nia, em relação ao poder de morte exercido pelos go-
vernos, porque vão ao encontro da vida dos sujeitos e
da própria escola.
A participação de mães e pais, ou outros adultos,
principalmente das crianças pequenas, nesse contex-
to, tornou-se essencial. Eles têm sido exigidos e busca-
do cumprir com um papel que até então não tinham,
pelo menos não na medida desse momento, de me-
diar os contatos diretos e indiretos entre professoras e
crianças, além de orientar a realização das atividades
pedagógicas em casa.
Em algumas poucas escolas, particulares, a situ-
ação é bastante distinta. Elas continuaram a funcio-
nar remotamente e, em nenhum momento do ano de
2020, suspenderam totalmente as suas atividades e
nem perderam o contato com os seus estudantes. Na
grande maioria das escolas públicas, onde estão mais
de oitenta por cento dos estudantes de todo o Brasil,
esse contato e vínculo se perderam ou estão muito frá-
geis pela falta de condições materiais, de vida digna,
ou de equipamento e de acesso à internet. Esses fato-
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contra-hegemonia

res se somam aos demais no agravamento, ao mesmo


tempo que em consequência das históricas condições
sócioeconômicasculturais desiguais de vida entre es-
tudantes de algumas poucas escolas particulares e os
que estudam na maioria das escolas públicas do país.
A criação da escola possível a que temos assis-
tido e participado no contexto de pandemia e afasta-
mento social acontece através de celulares, tablets e
computadores, dentro das casas de professoras e es-
tudantes, seus sujeitos praticantes (Certeau, 1994), os
quais têm se proposto ou sido obrigados a buscar su-
perar, como numa corrida de obstáculos, uma série de
dificuldades que se colocam concretamente no cami-
nho. Essa escola inventada e praticada nesses tempos,
por esses sujeitos, tem sido uma das formas de en-
frentar, contra-hegemonicamente, a política de morte
em vigor.
Numa escola federal, no Rio de Janeiro, o Colégio
Pedro II, um grupo de professoras do primeiro ano
do ensino fundamental, de um dos campi, o de São
Cristóvão I, vem buscando fazer acontecer essa escola.
As crianças passaram o ano de 2020 distantes, fi-
sicamente, da escola. Assim, fora resolvido pela maio-
ria dos e das profissionais e estudantes do colégio em
seus fóruns. Havia a possibilidade de, acessando o
blog do colégio, realizarem as sugestões de atividades
que nós, professoras, tínhamos feito, mesmo não sen-
do obrigatórias, já que nosso ano não tinha validade
como ano letivo, a não ser para o terceiro ano de en-
sino médio, e assim mesmo, para os estudantes que
optaram por isso.
A participação das crianças nas atividades do
blog foi sempre muito pequena. Poucos davam respos-
tas às atividades e não tínhamos notícias da maioria
deles. Pelo desenrolar da pandemia em nosso país, de-
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contra-hegemonia

moraríamos a ter as condições sanitárias necessárias


para voltar a pisar o chão da escola, como fora definido
pela comunidade escolar.
Pensávamos que o contato virtual, indicado para
esse momento, seria muito difícil para alguns, no con-
texto da política de morte em vigor, pela já sabida falta
de equipamentos ou internet adequados, ou por des-
conhecimento das mães e dos pais sobre como aces-
sar esses equipamentos e lidar com os desafios da in-
formática para a presença nos encontros e realização
das tarefas, através das plataformas que deveriam fre-
quentar, e por fim, pela falta de tempo desses familia-
res para acompanhar os momentos em que as crian-
ças precisariam deles.
Como profissionais da escola, experimentáva-
mos uma tensão permanente: se essa era então a al-
ternativa possível, como chegar a esse momento do
reencontro virtual sem cair nas armadilhas político-
-tecnológicas da rede mundial de computadores, da
internet e das condições do trabalho em casa? Eram
muitos os debates sobre essas questões, dos quais não
tínhamos como fugir. Tínhamos vivido o ano de 2020
de um modo bem diferente do de outras escolas, já que
não havíamos promovido o chamado ensino remoto e
o nosso ano escolar não havia tido validade como tal.
Em meio a toda essa tensão, no contexto da polí-
tica de morte hegemônica, precisávamos saber e ir ao
encontro de nossos alunos e alunas. Nós e a maioria
das famílias desejávamos que pudessem retomar seu
contato conosco e com os colegas para conversar, can-
tar, ouvir histórias, ler, escrever, desenhar, brincar e
aprender juntos. O colégio conseguiu comprar equipa-
mentos e chips para acesso à internet, através de edi-
tais, para estudantes que se inscreveram. Conseguiu
também criar condições de uso para todos da plata-
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contra-hegemonia

forma que já era utilizada por alguns cursos. Assim,


começamos, entre aulas síncronas e assíncronas, em
fevereiro de 2021, um novo ano letivo. Ainda não par-
ticipam dele todos os estudantes e esse continua sen-
do o principal problema e limite, apesar de continuar-
mos tentando encontrar meios de conseguir garantir
esse direito.
A seguir, conto um desses tantos movimentos da
escola das e nas telas.
Já aposentada2, fui convidada pela professora da
turma para a Festa do Pijama. Estávamos todos ves-
tidos a caráter, as crianças, seus convidados e nós,
professoras. Espreguiçando-nos, mostramos as es-
tampas dos pijamas com unicórnios, ursos, macacos,
gatinhas, leões, girafas, super-heróis, personagens de
quadrinhos, estrelas e luas. Mãe e filha vestidas com
pijama de bolinhas, na mesma cor e feitio, estavam
lá, assim como gatos e cachorros de verdade, alguns
de pijama também. Todos queriam mostrar os cená-
rios que haviam preparado para compor o clima: ca-
baninhas, sequência de luzes na escuridão, barracas
de camping montadas em quintais ou na sala de casa,
quartos com camas bem fofas. Alguns, muito interes-
sados no lanche especial preparado para a festa, não
aguentaram esperar o momento combinado, pediram
licença para saboreá-lo e o fizeram.
A história Viviana a rainha do pijama, de Steve
Webb, nos levou a esse momento mágico de alegria e
imaginação. A personagem principal, Viviana, curio-
sa sobre como seria o pijama dos animais, convida-os
para uma festa. Lá haveria um concurso e o pijama
mais “animal” ganharia um prêmio sensacional. Os
animais aceitaram o convite e a festa com música,
2
Quando o ano começou, estava aguardando a publicação da apo-
sentadoria.
89
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contra-hegemonia

dança, brincadeiras e bolo aconteceu. Na hora de esco-


lher o pijama mais animal, os bichos se reúnem e de-
cidem que Viviana é a vencedora, pois seu pijama tem
a imagem de todos os animais. Depois de conhecerem
a história e conversarem sobre ela, crianças e profes-
soras combinaram que também fariam uma festa do
pijama, mesmo que pela tela do computador, tablets
ou celulares. E aí, a festa aconteceu. A preparação, e
depois os desdobramentos, os fizeram viver situações
riquíssimas de ensinar e de aprender, cheias de vida
porque cheias de encantamento, de criação, de inven-
ção do novo, de leituras e de escritas do mundo.
Pedindo licença a Conceição Evaristo, ouso fazer
referência ao título de um de seus contos A gente com-
binamos de não morrer, sobre a morte e a vida de ne-
gros e negras, alvos da política que mata e tenta elimi-
nar certos grupos na nossa sociedade, colocados em
situação de subalternidade, invisibilização e discrimi-
nação social, política, econômica, cultural, negando a
sua condição de cidadãos com direito à vida digna.
As escolas e nós, seus sujeitos, também não que-
remos morrer! O mergulho (Alves, 2001) nos seus mo-
vimentos aqui narrados me possibilita percebê-los
como movimentos contra-hegemônicos de vida, que
pulsam, que são feitos junto, coletivamente, com as
crianças e as famílias, pela sobrevivência da escola e
das relações de ensinoaprendizagem que ela deve pro-
mover e as crianças têm o direito de participar. Esses
movimentos são uma negativa à política de morte, de
eliminação dos socialmente mais vulneráveis, que
hoje vem conseguindo se impor no nosso país atra-
vés das ações políticas governamentais que orientam
erradamente a população ou deixam de implementar
medidas que podem barrar a circulação e propagação
do vírus, ou ainda, que deixam de efetivar em tempo
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contra-hegemonia

compras de itens essenciais, como as vacinas, único


meio de salvar da doença, com argumentos que ten-
tam naturalizar os fatos, dizendo, por exemplo: “não
tem jeito, parte da população vai morrer mesmo na
pandemia de covid 19”, além de não promover para
todas as escolas e redes de ensino as condições ne-
cessárias para o funcionamento dessa escola possível.
Todas essas políticas afetam diretamente a vida da es-
cola e a de seus sujeitos.
Diante disso, tecemos com firmeza e esperança
as nossas redes de criação, de ensinareaprender, todos
juntos, insistindo em continuar vivos e vivas, tentan-
do manter a existência da escola e para todos. Isso é
contra-hegemonia!

Referências
ALVES, N. Decifrando o pergaminho: o cotidiano das escolas
nas lógicas das redes cotidianas. In: OLIVEIRA, I. B.; ALVES,
N. (orgs.). A pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre
redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: 1. As artes de fa-
zer. Petrópolis: Vozes, 1994.
EVARISTO, C. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas/Fundação
Biblioteca Nacional, 2016.
PARO, V. H. Administração escolar: introdução crítica. São
Paulo: Cortez, 1993

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ayvu

conversa
tiago ribeiroix

ix
Doutor em Educação. Profes- po de Pesquisa ArteGestoAção/
sor do Instituto Nacional de] INES/ CNPq.
Educação de Surdos (INES). E-mail:
Coordenador da RIV (Rede de tribeiro@ines.gob.br
Investigações-vidas) e do Gru-

Uma conversa não tem a ver com o às vezes


indigno “colocar-se no lugar do outro”. Esse é
o lugar do outro. O que a conversa habilita é a
tentar narrar esse lugar, torná-lo mais profun-
do, quiçá mais transparente. E seguirá sendo,
sempre, “o lugar do outro”.
– Carlos Skliar

Antes do começo, uma explicação desnecessária,


se é que alguma explicação é necessária... Ela é tão pe-
quena perto da experiência... Li, de Luciana Ostetto, no
livro Pesquisa, alteridade e experiência: metodologias
minúsculas (2019), que a experiência é sempre muito
maior que a explicação. Suas palavras roçaram minha
pele. Deixei entrar essa imagem sonora. Abriguei: En-
contros. Coisa de pele, de química. Isso que acontece
– sumário –

no meio, em meio, em diálogo. Pedagogias. Pedagor-


gias. Polifonias. Conversações.
Não, não há começo nem fim; só meio: estar sen-
do, sempre, em reticências e vírgulas. Nenhuma exis-
tência encontra ponto final; é devir... De modo que a
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conversa

explicação diminui as cores e cheiros do mundo. Ao


contrário, quero o arco-íris, a impossibilidade de fixa-
ção, o movimento, o fluxo. Já nem sinto tesão em ousar
qualquer explicação sobre o começar com uma vírgula
um texto como este, por exemplo. Uma vírgula é uma
pausa no mundo, um convite a olhar bem o que habita
as frestas; um respiro às nossas explicações tão indo-
lentes. Uma provocação a darmo-nos tempo e silencia
para escutar o outro – sua voz, corpo e existência.

Conversar é escutar com o corpo todo a experiên-


cia da alteridade do outro?

Como saber? Em seu Uma aprendizagem: ou o


livro dos prazeres, Clarice Lispector bem já nos dis-
se que textos, como pessoas, como a própria vida, não
começam, mas continuam. Não são assim também as
conversas? Uma conversa, como nos lembra Carlos
Skliar (2018), poderia ser uma experiência de conver-
sação nas diferenças; conversação que não começa-
mos, porém, em que entramos? Uma conversa é uma
experiência na qual se entra e se vive a possibilidade
de espichar modos de ver, sentir e compreender? De
viver experiência no sentido larrosiano (2011), trans-
formacional, acontecimental? Gente-acontecimento,
vida-acontecimento, texto-acontecimento, amor-a-
contecimento, tesão-acontecimento, conversa-acon-
tecimento.

E o que pode ser, meu Deus, conversar?


Conversar?
Versar com o outro?
Com-Versar?

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conversa

Sei; eu sei. Nossos caminhos e caminhadas vão


longe da explicação e da definição. Trata-se, aqui, de
um texto-conversa, e uma conversa é todo o contrário
do reino das certezas e dos pontos finais. Ela é movi-
mento, abertura, encontro, busca, atenção, escuta, cui-
dado. É descolamento do pensar. Tempo e espaço. E
pensar em meio a tanta desigualdade e fascismo soa
tão árduo nesses nossos tempos e espaço... É que ten-
tar pensar em meio a tanto barulho, pressa, tiros, pre-
conceitos, racismos, homofobias, transfobias e ódio é
ainda um movimento muito abrupto que corta como
faca gelada e afiada ávida por sangue pulsante e mor-
no. Navalhas têm cortado a fio tênue de tantas vidas...
Algumas dessas navalhas se chamam silenciamento:
o avesso da conversa.
E nós, em meio a nosso desconhecido que não
é nada mais do que nossos próprios outros eus possí-
veis, ficamos estupefates com a possibilidade e a ver-
dade de não sabermos de nós mesmes. Não saber nos
constitui. Ignorância também nos constitui. Mas não
um não saber fabricado e massificado que, às vezes,
despotencializa nossos corpos, negam nossas expe-
riências, silenciam nossos desejos. Como “não saber-
mos de nós mesmes”, quero dizer, dessa força, dessa
potência que nos faz sempre estar em processo de, em
vias de; formando-se, transformando-se. Somos pon-
tos; pontos que constelam, constelações. Ressoamos
nossos corpos, estamos feites de muitos outres. Não
saber de si mesme como possibilidade de se re-inven-
tar sempre, artisticamente, esteticamente, eticamente,
politicamente, eroticamente. Somos corpos que dese-
jam, e o desejo é a força mais transformadora.
Será a conversa uma expressão do desejo de co-
nhecer em comunidade? De criar constelação? Con-

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conversa

versar é constelar biografias e presenças? Existências,


histórias e vozes?
Quem saberia dizer de si na estrada de curvas e
sem curvas porque não há um tipo único de linhas?
Quem saberia dizer de si na peça na qual todo ensaio
é ainda improviso? Quem saberia dizer de si e do ca-
minho percorrido antes de vivê-lo? A experiência se
explica ou se compartilham as ressonâncias que ela
produz em nós? Quem poderia dizer de si sem o outro?
Quem poderia estar sendo quem é senão por meio de
presenças outras?
É a conversa um dispositivo de pluralização do
mundo e de nós mesmes? É a conversa o que ressus-
cita os vivos de suas mortes diárias? Conversa como
movimento vital? Hum... viver é de uma surpresa tão
incontestável! Puro tremor. Tremores: No meio de uma
vida se morre, porque o contrário da vida não é a morte,
mas o desencanto – aprendi com as ciências encanta-
das da macumba de Luiz Simas e Luiz Rufino (2018)...
E é. Mas não sabemos por que se morre em ple-
na vida. Não é próprio da vida morrer. Ela sempre se
transforma: pura encantaria... A pressa do mundo
e sua cobrança sobre regras que impõe e não segue,
hipocritamente, talvez obliterem um pouco da vida
como encanto, como conversação. A violência apaga
vozes. Às vezes, mata alguns corpos, apaga sorrisos e
brilho no olhar. Por isso, a aposta na conversa.
O encontro na conversação vai na direção da in-
venção, da potência de afirmação de mundos. Convida
a pensar sobre o que dão a ver as imagens para além
das próprias imagens... porque uma imagem é um
signo grávido de mundo e uma narrativa sobre nos-
so estar sendo enquanto gente e enquanto sociedade.
Visualidades compõem nossos corpos e pensamentos,

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conversa

in-visibilizam nossos corpos e existências. Conversar,


talvez, poderia ser colocá-las em evidência?
Com-versar: Pluralizar modos de saber e ver por
meio da conversação entre vozes e visualidades que
compõem a vida desde a experiência educativa de
afirmar modos de vidas livres e bonitas, como pensa
Suely Rolnik (2019)?
Conversar convida a descobrir; sim, descobrir:
precisamos descobrir. E descobrir é sempre ir se dando
conta; nunca acaba. E toda descoberta fala sempre de
nós mesmes. Ela, a descoberta, se arrasta incauta e ao
mesmo tempo silente que, se não a soubéssemos, não
a veríamos. Porém, às vezes vemos (nos damos conta
com todo o corpo) que já somos outres de nós mesmes.
Vemos? Algo dentro de nós estremece acenando que a
visão é um ato de inventar o olhar e experimentar re-
des de conversação. Conversações. Não sabemos bem
o que ver, não sabemos bem o que vemos muitas vezes,
mas sentimos como uma força constelar que une vo-
zes gritantes por liberdade, afirmativas vozes de que
ser e estar desde a experiência é uma artesania singu-
lar e ancestral de escuta e cuidado consigo próprie e
com os outres.
Seguimos tentando conversar... Poderemos
re-inventar nossos olhares? Pode a conversa ser vi-
venciada como pesquisa? Como gesto investigativo?
Deixo as perguntas. Conversar é plantar pergun-
tas e colher inquietudes, compor sentidos. Faz-se ne-
cessária, talvez, nessa aventura, uma dose de audácia
epistêmica e irreverência metodológica para enxergar
mais além de nós mesmos, pensar mais além de nós
mesmos, abraçar a possibilidade de desobedecer a
cânones das “sagradas escrituras do método”. Assim,
em caminhadas compartilhadas com tantos outres,

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conversa

em meu estar sendo grávido de outros, temos vivido


deslocamentos, assombros, emocionalidades contes-
tadoras. A partir delas e suas afetações em mim, pelo
limite do presente texto, encerro com a pergunta: é a
conversa uma rebelião dos modos de ser investigação,
mais do que fazê-la?
Conversa como rebelião: extenuação do silencia-
mento na ponta dos dedos que linguageiam, dilace-
ração da normalidade em seu oposto: as diferenças –
mil e muitos cristais que faíscam e refletem a força do
acontecimento, do encontro... Rebelar-se é um acon-
tecimento. Pensar é um acontecimento... E abrir-se ao
acontecimento é uma rebelião, uma conversa?

Referências
OSTETTO, L. E. A pesquisa em círculos tecida: ensaios de
metodologia errante. In: GUEDES, A.; RIBEIRO, T. (orgs.). Pes-
quisa, alteridade e experiência: metodologias minúsculas.
Rio de Janeiro: Ayvu, 2019.
ROLNIK, S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não
cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018.
SIMAS, L. A.; RUFINO, L. Fogo no mato: a ciência encantada
das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
SKLIAR, C. Elogio à conversa. In: RIBEIRO, T.; SOUZA, R.;
SAMPAIO, C. S. (orgs.). Conversa como metodologia de pes-
quisa: por que não? Rio de Janeiro: Ayvu, 2018.

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ayvu

corpo-oralidades
andré bocchettix

x
Professor da Faculdade de do e doutorado interessadas no
Educação e do Programa de entrelace entre corporeidades,
Pós-Graduação em Educação educação e filosofias da dife-
da Universidade Federal do Rio rença. Nesse contexto, estão
de Janeiro. É membro da Red incluídas as análises educa-
de Investigación de y desde los cionais de práticas somáticas
Cuerpos e coordena o CorPes como plataforma de pensamen-
– Zona de Estudos e Pesquisas to – entre elas a Biodanza, da
em Corporeidades e Pedagogias qual também é professor.
Sensíveis, no qual tem desen- E-mail:
volvido e orientado pesquisas andreb.ufrj@gmail.com
de iniciação científica, mestra-

Falar é ser capaz de empregar determinada


sintaxe, é se apossar da morfologia de uma ou
outra língua, mas é acima de tudo assumir uma
cultura, suportar o peso de uma civilização.
– Frantz Fanon.

Aquela era uma noite onde pessoas se disponi-


bilizavam, algumas pela primeira vez, a experimen-
tar uma prática de educação corporal1 que lhes pedi-
– sumário –

1
Trata-se da Biodanza (ou Biodança), uma abordagem voltada à
produção de si a partir do movimento, da música e dos encontros. O
termo “prática de educação corporal”, aqui, tem um sentido genera-
lista; em outros textos, tenho tratado a Biodanza como uma prática
de “educação somática”, o que, aí sim, marca um posicionamento
acerca de seus sentidos (cf.: Bocchetti, 2017).
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corpo-oralidades

ria que se movessem, se encontrassem, se tocassem.


Estávamos todos sentados, formando um grande cír-
culo que dava início à aula, e tal momento seria se-
guido por um conjunto de proposições de exercícios,
pelos quais seríamos todos(as) convidados(as) a cami-
nhar, a nos olharmos, a darmos as mãos, a nos abra-
çarmos. Em dado momento daquela conversa inicial,
a propositora do encontro afirma ser aquele um traba-
lho que convida a processos de cura. Sabrina, uma das
participantes, se inquieta. Dias depois ela me contaria
que se sentira obrigada, a partir daquele enunciado, a
dançar naquela noite com “o peso do sagrado”, para ela
tão inadequado a uma abordagem apresentada em sua
leveza e potencialidade de encontros. “A gente não tá
no hospital”, “a gente não tá no centro espírita”...2
Que força é essa, exercida pela palavra sobre o
dançar? O que está em jogo entre o enunciado e o cor-
po? A oralidade e a produção de corporeidades estão
imbrincadas de modo complexo. Podemos dizer que
elas se agitam sobre um mesmo plano, promovendo
composições diversas: corpo e fala escorregam um so-
bre o outro e se produzem mutuamente. Isso é possível
porque, como nos lembra o pensamento espinosista de
Gilles Deleuze (2002), um corpo é definido não por sua
forma, mas por seu movimento e por sua capacidade
de afetar e ser afetado, ou seja, pelas relações de movi-
mento e de repouso, de lentidão e de velocidade entre
partículas (p. 128), por um lado; e, por outro, por sua
habilidade de gerar ou ser movido por variações que
modificam suas possibilidades de ação ou as de outro.
Algo que não nos impede de pensar objetivamente um

2
As falas constam em uma entrevista que compõe um acervo que
vem sendo produzido desde 2017, a partir de relatos dos praticantes
de Biodanza em cursos dados no contexto acadêmico.
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corpo-oralidades

corpo, mas que exige sua circunscrição tanto no plano


afetivo de suas capacidades quanto no plano cinético
das composições que com ele se estabelecem em dado
momento: a pedra de granito não pode o mesmo que a
formada por grãos de areia; mas esta, tomada por uma
criança na praia, tem agora outras possibilidades.
Qualquer corpo é, então, a materialidade (extensiva e
intensiva) de uma posição definida no cruzamento de
diversas forças, sejam elas sensíveis, políticas, histó-
ricas, etc. Por seu caráter instável, merece ser sempre
pensado como corporeidade.
Ancorada em tais composições e afetos, a orali-
dade pode ser vista como elemento originado ou efetu-
ador de corporeidade(s). Podemos chamar de corpo-o-
ralidades, portanto, esses modos de imbricamento por
meio dos quais se estabelecem relações de naturezas
diversas entre a fala e a produção dos corpos.
A construção oral tem, por um lado, a capacida-
de de tomar corpo, ou seja, de assumir um papel ativo
nas composições que de algum modo modificam o es-
tatuto de uma corporeidade. O filósofo José Gil (2018),
por exemplo, narra uma magia da palavra (p. 24) nas
relações entre a mãe e a criança. Muitas vezes a pala-
vra dita nesse encontro, diz ele, não transporta infor-
mação nem um sentido proposicional, mas sensações,
forças, intensidades, quer dizer, uma energia vital (p.
24) que irrompe em produções efetivas na produção
infantil da corporeidade. Apoiando-se à sua manei-
ra na psicanálise de Françoise Dolto, Gil nos fala da
palavra-força que comunica inconscientes, já que,
no caso de sua recepção pelas crianças, ela carrega
a emoção que a contamina; ela é, antes de mais, essa
força e toma o seu sentido (p. 22).
Mas a força da palavra que atua emocionalmen-
te na construção do corpo infantil toma rumos igual-
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corpo-oralidades

mente complexos além dele. Os estudos focados em


tradições culturais afro-brasileiras têm sido particu-
larmente profícuos nesse mapeamento. Julio Cesar
de Tavares (2020), por exemplo, se debruça sobre a
mediação cinética (p. 49) da palavra “ginga” – os mo-
vimentos que ela convoca ao ser enunciada, conver-
tendo-a em uma dinâmica impossível de ser reduzida
à linguística. Ao entrevistar residentes da comunida-
de da Mangueira, no Rio de Janeiro, Tavares salien-
ta que quando as pessoas definem a ‘Ginga’, revelam
uma espécie de memória específica de movimentos
corporais mínimos que são muito constantes entre
elas e também muito presentes em sua vida cotidiana
(p. 46). “Ginga”, portanto, instaura um plano no qual
sua enunciação e os estados de corporeidade se fun-
dem em uma espécie de compreensão sintética (p.
54) que não é, senão, o corpo permeado pela palavra,
sua incorporação.
Mas, assim como a palavra toma (o) corpo, há
igualmente modos de corporeidade que derivam em
voz, fundando um segundo vetor nas análises atentas
às corpo-oralidades. Podemos, aqui, pensar nas irrup-
ções sonoras bradadas por aqueles(as) que afirmam
sua existência, preenchendo palavras com a própria
vitalidade do corpo que se converte em enunciação.
Como aquelas dos estudantes que, reunidos em traba-
lho corporal, foram incitados a construir, lenta e aten-
tamente, um gesto de resistência3 acompanhado da
vocalização de um “não!” que seria fruto de tal cons-
trução. Alguns corpos hesitam, as negativas saem
estremecidas. É que parece se fundar, aí, uma corpo-
-oralidade que, dessa vez, surge pelo déficit entre a ex-
periência e a capacidade de organizadamente anun-
3
O gesto: uma das mãos elevada à frente do peito, com a palma para
fora, em posição que impede o outro de se aproximar.
101
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corpo-oralidades

ciá-la. É nesse extravasamento da corporeidade que


outras vozes surgem.
Mas o vetor analítico que reconhece a conversão
do corpo em fala parece ainda mais complexo por agre-
gar a situação-limite na qual a fala que emerge do cor-
po não se converte em valor linguístico preciso, mas
tem a receptividade dos significados que carrega ga-
rantida. Algo evidente, por exemplo, na afirmação con-
tumaz de Judith Butler (2018) sobre as assembleias: os
corpos reunidos ‘dizem’ não somos descartáveis, mes-
mo quando permanecem em silêncio (p. 24). Sobre as
palavras que jazem nesse silenciar, Stephanie Power-
Carter (2020), ao estudar os modos de comunicação
entre duas jovens negras americanas em uma sala de
aula predominantemente branca, encontra um silên-
cio particularmente produtivo, associado à construção
de estratégias de apoio mútuas frente aos modos de
calar, notáveis sobretudo na comunicação gestual mí-
nima, por meio de piscadelas e olhares.
Essa relação de algum modo oral com o silên-
cio parece possível por ser ele o lugar onde descan-
sa a própria voz. Paul Zumthor (2018), no contexto de
seus estudos sobre poesia oral, é bastante elucidativo
nesse ponto:

A voz repousa no silêncio do corpo. Ela emana


dele, depois volta. Mas o silêncio pode ser duplo;
ele é ambíguo: absoluto, é um nada; integrado ao
jogo da voz, torna-se significante: não necessaria-
mente tanto como signo, mas entra no processo de
significância. (p. 78).

Seja pela incidência das palavras na produção


de corporeidade, ou pela força afetiva que desde os
corpos incide na enunciação, os elementos da corpo-
-oralidade ampliam na mesma medida em que tensio-
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corpo-oralidades

nam os limites dos dois termos que lhe constituem,


não podendo ser jamais reduzidos a qualquer de seus
dois componentes. O que os estudos voltados às rela-
ções entre produção oral e corporeidade comumente
visibilizam é um espaço intermediário entre ambas.
Espaço que precisa ser alçado à centralidade analítica
por, pelo menos, dois motivos. Em primeiro lugar, por-
que permite enxergar a incidência afetiva fundamen-
tal de qualquer narrativa. O narrar(-se) está sempre
necessariamente ancorado no corpo, seja por surgir
a partir das composições que efetuam uma corporei-
dade em um momento específico, seja por participar
ativamente de sua produção.
Mas a análise desse espaço que deriva da relação
entre corporeidade e oralidade tem, sobretudo, uma
importância política. Nele jazem forças que anun-
ciam performatividades peculiares, modos discursi-
vos de repetição provisória (Martins, 2020) capazes
de construir e fixar identidades. Tais produções têm
comumente, como argumenta Tavares (2020) no que
tange aos sentidos adquiridos por formações discursi-
vas afro-brasileiras, uma natureza cinestética, na me-
dida em que, junto à manifestação de movimento que
provocam ou que lhes dá origem, materializam certo
estilo de vida (p. 58), acompanhado por valores, for-
mas de vitalidade, forças, etc. Leda Martins (2020), por
exemplo, enxerga claramente essa operação ao estu-
dar os festejos dos Congados que, em sua ritualística
sincrética, fazem funcionar performances que atuali-
zam, em meio às representações simbólico-religiosas,
modos de existência e movimento:
Na genealogia performática dos Congados, a pa-
lavra vocalizada ressoa como efeito de uma lingua-
gem pulsional do corpo, inscrevendo o sujeito emissor
num determinado circuito de expressão, potência e
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corpo-oralidades

poder. Como sopro, hálito, dicção e acontecimento, a


palavra proferida grafa-se na performance do corpo,
lugar de sabedoria. Por isso, a palavra, índice do sa-
ber, não se petrifica num depósito ou arquivo imóvel,
mas é concebida cineticamente. Como tal, a palavra
ecoa na reminiscência performática do corpo, resso-
ando como voz cantante e dançante, numa sintaxe ex-
pressiva contígua que fertiliza o parentesco entre os
vivos, os ancestres e os que ainda vão nascer (Martins,
2020, p. 107).
Há que se salientar, entretanto, que essas mes-
mas forças performáticas derivadas de corpo-oralida-
des distintas podem ser, evidentemente, capturadas
por processos diversos de governamento dos corpos
e seu potencial enunciativo. Frantz Fanon (2020), por
exemplo, já encontrava, nos anos 1950, tal captura e
seus efeitos na imagem do negro martinicano que vol-
tava de suas vivências na França: Ao encontrar um
amigo ou colega, não é mais o amplo gesto do braço
que o anuncia: discretamente, nosso ‘vindouro’ faz
uma reverência. A voz, normalmente estridente, deixa
intuir um movimento interno pontuado por sussurros
(p. 33). E trinta anos depois, motivado por questões
um tanto distintas, Michel Foucault (2014), marcan-
do outras operações de governo das condutas, narra-
ria a acoplagem da fala confessional ao corpo supli-
ciante desde os catecúmenos dos primeiros séculos
da era cristã...
Enunciações incorporadas, mediações cinéticas
(Tavares, 2020), vozes viscerais, silêncios-enunciado.
O estudo desse plano intensivo que agencia corpos e
oralidades abre espaço para explorações diversas que
provém da Filosofia, da Linguística, da Antropologia,
das Artes, da Educação. Tais análises nos ajudam a
mapear as forças, as composições e as políticas que
104
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corpo-oralidades

incidem continuamente naquilo que podemos ser, di-


zer e (re)inventar.

Referências
BOCCHETTI, A. O furor como método: sentidos educacionais
de uma prática somática. Revista Cocar, n. 4, 2017.
BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas
para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2018.
DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta,
2002.
FANON, F. Peles negras, máscaras brancas. São Paulo: UBU
Editora, 2020.
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos: curso no Collège de
France (1979-1980). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.
GIL, J. Caos e Ritmo. Lisboa: Relógio d’Água, 2018.
MARTINS, L. Performances da oralitura: corpo, lugar de me-
mória. In: BRYAN-WILSON, J.; ARDUI, O. (org.). Histórias da
dança: vol. 2, Antologia. São Paulo: MASP, 2020.
POWER-CARTER, S. Re-theorizing silence(s). Trab. Ling.
Aplic., v. 59, n. 1, 2020.
TAVARES, J. C. de. “Ginga” como pensamento orgânico: polí-
ticas cognitivas e o projeto ontológico da diáspora africana.
In.: TAVARES, J. C. de (org.). Gramática das Corporeidades
Diaspóricas: perspectivas etnográficas. Curitiba: Appris,
2020.
ZUMTHOR, P. Performance, recepção, leitura. São Paulo:
UBU Editora, 2018.

105
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ayvu

cotidiano
janete magalhães carvalhoxi

xi
Doutora em Educação pela de Federal do Espírito Santo
Universidade Federal do Rio (DEPS/CE/UFES). Professora
de Janeiro (UFRJ). Pós-doutora permanente do curso de Douto-
em Sociologia da Vida Cotidia- rado em Educação no Programa
na pelo Instituto de Ciências de Pós-Graduação em Educação
Sociais da Universidade de Lis- da Universidade Federal do Es-
boa (ICS/UL/PT). Pós-doutora pírito Santo (PPGE/CE/UFES).
em Currículo pela Programa de Coordenadora do Grupo de Pes-
Pós-Graduação em Educação quisa Com-Versações com a
pela Universidade do Estado do Filosofia da Diferença em Cur-
Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ). rículos e Formação de Professo-
Professora Titular (aposentada) res. Pesquisadora 1D do CNPq.
do Departamento de Educação, E-mail:
Política e Sociedade do Centro janetemc@terra.com.br
de Educação da Universida-

Evidentemente, não existe uma única perspecti-


va teórica de compreensão de cotidiano e, sendo as-
sim, destacam-se algumas visões predominantes do
que vem a ser o cotidiano.
Do ponto de vista das perspectivas filosóficas que
atravessam as distintas perspectivas da sociologia do
cotidiano, sobressaem o formismo, o interacionismo, a
fenomenologia, o marxismo, o neomarxismo, o movi-
– sumário –

mento antifundacional.
De acordo com Pais (2003), o formismo desen-
volvido com base em Simmel, Balandier e Maffesoli
propõe-se tanto a ressaltar aspectos despercebidos da
vida cotidiana quanto a questionar processos e méto-
106
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cotidiano

dos tradicionais de abordagem do social, consideran-


do que o cotidiano constitui uma forma relativamente
oposta à estrutura social e o estudo ocorre pela ob-
servação do jogo das formas e forças sociais que lhe
são associadas.
Nessa perspectiva, a vida cotidiana é vista como
uma realidade carregada de simbolismo, manifesta-
ções de sensação e recordação. Então, a vida cotidiana
para os formistas é produto de microatitudes, de cria-
ções minúsculas, de situações pontuais e efêmeras,
questionando objetos sobre os quais há de fazer incidir
um conhecimento do cotidiano, visto que a realidade
social pode se manifestar tal como é ou por meio de
aparências enganosas.
Sobre o interacionismo, Pais (2003) pontua seu
surgimento como uma reação crítica à sociologia que,
deixando de lado as unidades de interação social, se
concentra apenas nas estruturas e organizações, con-
cebendo a ação social como expressão dessas estrutu-
ras. Desse modo, a dinâmica das instituições sociais
só pode ser analisada em termos desses processos e
a conduta social ser explicada pela interpretação dos
mundos da intersubjetividade, rejeitando os determi-
nismos culturais. Sendo assim, o interacionismo des-
valoriza dimensões importantes em outras aborda-
gens macrossociológicas, tais como história, sistema
de produção, classe social. Ao privilegiarem a subje-
tividade dos atores, as abordagens interacionistas se-
cundarizam as variáveis sociais mais estruturais.
A etnometodologia revela-se, nesse contexto,
como uma corrente radical no meio do interacionis-
mo, dada sua perspectiva dominante ser fundada num
esquema interpretativo que convida a apreender a re-
alidade social em que se encontra [...] atrás dos olhos
do ator, considerando como importante o descobri-
107
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cotidiano

mento do universo categorial dessa própria realidade


por meio de métodos tão elementares como o senso
comum (Pais, 2003, p. 95).
Na fenomenologia (como para formistas, inte-
racionistas e etnometodólogos), os significados sub-
jetivos da ação social devem constituir pontos de re-
ferência básicos da sociologia da vida cotidiana. Os
fenômenos sociais objetivos devem ser vistos à luz
da subjetividade dos atores sociais. Segundo Husserl
(passim, apud Pais, 2003, p. 99), a fenomenologia não
é o estudo dos fenômenos compreendidos como fatos
aparentes distintos da realidade em si, mas é a pró-
pria realidade presente no pensamento como é, ma-
nifestando-se como fenômeno à consciência na sua
essência genuína.
A perspectiva marxista da vida cotidiana foi de-
senvolvida por teóricos como Agnes Heller (1970) e
Henri Lefebvre (1991), que consideram que a vida co-
tidiana parece centrar-se sobre o indivíduo e a rotina.
Desse modo, para alguns estudiosos do cotidiano que
se dizem marxistas, a vida cotidiana compõe-se na e
da trivialidade, na repetição (gestos, movimentos me-
cânicos, dias, meses, repetições cíclicas).
Pais (2003, p. 78), argumentando contra Agnes
Heller, para quem a característica da vida cotidiana
seria a espontaneidade, considera o cotidiano um es-
paço não apenas de realização de atividades repetiti-
vas, sendo também um lugar de inovação, haja vista
o desafio e a inseparabilidade entre o cotidiano e o
social e, portanto, do estabelecimento de ligações en-
tre os grandes dispositivos sociais e os dispositivos
microssociais que regulam ou [...] informam o que se
passa no social quando aparentemente nada se passa.
Entretanto, cumpre destacar que, para Lefebvre
(1991), o cotidiano não é somente rotina, pois a in-
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cotidiano

cidência do falar repetitivo e do adaptativo sobre o


transformador na vida moderna trouxe a vida coti-
diana para o primeiro plano da existência das socie-
dades, valorizando não mais uma analítica da certeza
científica, mas, sim, uma ontologia do presente, que, de
modo instituinte, alçou a cotidianidade para um modo
de ser dominado pelo presente, pelo fragmentário e
pela incerteza.
Para o historiador e filósofo neomarxista Michel
de Certeau (2001), o cotidiano é plano de invenção dos
seus praticantes ordinários. Certeau (2001) nos faz
percorrer um plano de análise que se baseia em es-
tudar práticas cotidianas como modos de ação, ope-
rações realizadas pelos indivíduos no processo de
interação social.
Em vez de ter o indivíduo como centro e foco de
análise, o autor parte do pressuposto de que é a relação
social que determina o indivíduo, e não o inverso, por
isso só se pode apreendê-lo mediante suas práticas
sociais. De modo analítico e sensível, Certeau percebe
a individualidade como o local onde se organiza, às
vezes de modo incoerente e contraditório, a pluralida-
de da vivência social.
Para afirmar o conceito de cotidiano como o con-
junto de operações singulares que, às vezes, dizem
mais de uma sociedade e de um indivíduo do que a
própria identidade, Certeau (2001) passeia pelas teo-
rias de Kant, Freud e Bourdieu. Embasado em um estu-
do dinâmico, que caminha entre grandes pensadores e
entrevistas com pessoas comuns, Certeau exalta sen-
tidos em práticas cotidianas que passariam desper-
cebidas, por serem consideradas irrelevantes. Para o
autor, mergulhar na invenção do cotidiano é perceber
que as “artes do fazer”, talvez, sejam o lugar por exce-

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cotidiano

lência da liberdade e da criatividade, dois elementos


fundamentais para a sociedade contemporânea.
Destacamos, enfim, a perspectiva de cotidiano
derivada da perspectiva antifundacional, a qual, ins-
taurando uma perspectiva diferencial e baseando-se
em estudos, aqui simplificados sob o denominador co-
mum de movimento antifundacional1, envolve teorias,
como as da filosofia da diferença, dos estudos pós-co-
loniais, da teoria da complexidade, da teoria naturalis-
ta do conhecimento, do conhecimento em redes, entre
outras. Tais discursos teóricos são bastante diversos
entre si, guardando, entretanto, como característi-
ca comum, a descrença no sujeito autocentrado e/ou
numa consciência autônoma.
Nessa perspectiva, o cotidiano é considerado
como o plano de imanência no qual as relações de po-
der, macro e micropoliticamente, atuam nos corpos
coletivos, potencializando uma vida em composição
com forças heterogêneas. A imanência é o plano da
existência, dos afetos, de uma vida na qual as pessoas,
os grupos e as populações se abrem às intensidades,
às forças de contágio do mundo. Desse modo, o plano
de imanência constitui-se como um plano de coexis-
tências em que os heterogêneos se compõem em uma
multiplicidade de simbioses, em devires de passagem
possibilitados pela experimentação.
Nesse sentido, não há oposição entre as formas
e forças macrossociais compostas por linhas duras,
molares, e microssociais, moleculares, bem mais fle-
xíveis, que nos atravessariam não apenas como indi-

1
O movimento antifundacional, como o nome indica, coloca-se
contra o pressuposto do conhecimento fundado no sujeito como ló-
cus de verdade ou certeza e, nesse sentido, contra qualquer espécie
de essencialismo, na perspectiva racionalista, empirista e dialética
clássica, de base idealista ou materialista.
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cotidiano

víduos, mas também como sociedade e grupos, pois


são linhas entrelaçadas e intercambiantes. Tanto
o molecular como processo pode nascer no macro,
como o molar pode instaurar-se no micro. Assim,
não há lógica de contradição entre os níveis molar e
molecular, pois esses mesmos tipos de componentes
estão em jogo num determinado espaço social e po-
dem funcionar em nível molar, de modo emancipador
e, coextensivamente, em nível molecular, reacioná-
rio ou microfascista. Os problemas se colocam sem-
pre e simultaneamente nos dois níveis. A questão
micropolítica é a de como reproduzimos (ou não) os
modos de subjetividade dominante (Guattari; Rolnik,
1986, p. 133).
A cada relação, portanto, em toda relação de es-
paço, saberes, mídia, sujeitos, há uma relação de po-
der. Este, então, não se configura como um poder cen-
tral que somente submete as pessoas e as populações,
pois ele está entre elas nas práticas cotidianas de cada
coletividade. Essa microfísica do poder atua no coti-
diano, isto é, nas relações cotidianas como redes de
relações de poder (Foucault, 1987).
A ênfase na dimensão da vida cotidiana no âm-
bito escolar e curricular surge, no Brasil, em finais dos
anos 80, com Nilda Alves e Regina Leite Garcia (1999,
2002) e, posteriormente, com Inês Barbosa de Oliveira
(2003, 2007), sendo, na atualidade, enfocada por diver-
sos autores. Em Alves e Garcia, com maior aproxima-
ção aos estudos do cotidiano baseados em Michel de
Certeau; em Oliveira, com as epistemologias do Sul de
Boaventura de Sousa Santos. Em linhas gerais, a abor-
dagem do cotidiano escolar delineada pelas autoras,
na perspectiva das redes de conhecimento tecidas no
cotidiano escolar, faz-se com base em alguns pressu-
postos, entre os quais destacamos: a) tomar o cotidiano
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cotidiano

não como uma instância específica da realidade social


e, nesse sentido, afirmar a indissociabilidade entre di-
ferentes modos de inserção no mundo, em seus dife-
rentes processos (global, estatal, local – doméstico,
de produção...), ou seja, considerar a impossibilidade
de dissociar a vida cotidiana em sua dimensão micro
das estruturas macrossociais, em seus saberes, faze-
res, valores e interesses dominantes; b) aceitar a com-
plexidade do real em suas redes de saberes, poderes e
fazeres e, assim, a indissociabilidade entre o campo
político e o epistemológico; c) superar as divisões dua-
listas entre natureza e cultura, indivíduo e sociedade,
teoria e prática, real existente e real produzido, real e
virtual, dentro e fora, espaço-tempo e lugar...; d) com-
preender que o campo dos poderes, saberes, fazeres é
rizomático; e) entender a “teoria como limite”, ou seja,
superar a fórmula de aplicação da teoria sobre a práti-
ca, observando que a vida é muito mais rica que nosso
“olhar teórico” e, portanto, que a teoria é limite e hori-
zonte da prática; f) recuperar a importância do coleti-
vo na dimensão epistemológica e política, buscando
compreender como se manifestam, nos diferentes es-
paços sociais, tanto os processos de organização como
as iniciativas de resistência/transgressão que se de-
senvolvem nos modos de fazer e viver dos “praticantes
ordinários da vida cotidiana”; enfim, desenhar modos
alternativos de intervenção sobre o real.
Em síntese, entre outros pressupostos, as autoras
levam em conta na abordagem adotada de análise com
os cotidianos: evitar ficar preso ao modo dominante de
ver da ciência moderna; compreender que o conjun-
to de teorias, categorias, conceitos e noções, consti-
tuindo-se como recurso indispensável, deve ser usado
sempre como um aporte provisório e apoio orientador,
e não como uma bússola da certeza explicativa; com-
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cotidiano

preender as redes de conhecimentos e significações


em que vivemos, ao entrarmos todos nos espaços e
tempos escolares, como também o fazemos em todas
as redes educativas, tendo “encarnados” em nós todos
os conhecimentos e significações que incorporamos
em nossas redes de viver, fazer e sentir.

Referências
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DP&A, 1999.
ALVES, N.; GARCIA, R. L. Coleção Cultura, memória e currí-
culo. São Paulo: Cortez, 2002.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer.
Petrópolis: Vozes, 2001.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do de-
sejo. Petrópolis: Vozes, 1986.
HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Editora
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LEFEBVRE, H. A vida cotidiana no mundo moderno. São
Paulo: Ática, 1991.
OLIVEIRA, I. B. de. Currículos praticados: entre a regulação
e a emancipação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
OLIVEIRA, I. B. de. O campo dos estudos do cotidiano e sua
contribuição para a pesquisa em educação. In: SCHWARTZ,
C. M. et al. (orgs.). Desafios da educação básica: a pesquisa
em educação. Vitória: EDUFES, 2007.
PAIS, J. M. Vida cotidiana: enigmas e revelações. São Paulo:
Cortez, 2003.

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ayvu

cuidado de si
facundo giulianoxii

xii
Doutor pela Faculdade de porânea. Autor de Rebeliones
Filosofia e Letras da Universi- éticas, palabras comunes. Con-
dade de Buenos Aires e mem- versaciones (filosóficas, polí-
bro do Conicet. No Instituto de ticas, educativas) con Judith
Pesquisas em Ciências da Edu- Butler, Raúl Fornet-Betancourt,
cação (UBA) dirige uma equipe Walter Mignolo, Jacques Ran-
de pesquisa cujas principais li- cière, Slavoj Žižek (2017) e de
nhas de problematização estão ¿Podemos pensar los no-euro-
vinculadas à filosofia, literatu- peos? Ética decolonial y geopo-
ra e psicanálise, com especial líticas del conocer (2018).
atenção a problemas ético- E-mail:
-políticos da educação contem- giulianofacundo@gmail.com

Para Luisina e Valentina,


em nossas horas pandêmicas
quando as balas quicaram perto
(e sendo alvejado no peito por alguma delas),
cuidaram vestígios com contos.

Cuidar, narrar, investigar. Talvez um ménage à


trois da formação, um lar para três que desperta os
sentidos formativos como uma multidão de hospitali-
dade incandescente. O que seria a investigação sem a
– sumário –

narrativa? O que seria do cuidado sem prestar atenção


aos vestígios e aos fios que compõem a trama? O que
seria da narração sem a curiosidade e o cuidado com
as vozes que podem ser escritas?

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cuidado de si

Mesmo nas investigações mais cientificistas, a


narrativa parece ocupar algum lugar, mas isso nun-
ca foi garantia de cuidado. Acima de tudo, cuidar de
outros – que não eram de si – que tiveram a “sorte”
de serem objetificados em um processo epistemoló-
gico. Abundam os exemplos a este respeito, desde a
Conquista da América aos nossos dias, desde que as
letras se impuseram à voz e o fantasma de Nebrija
assombra as salas de aula exercendo vigilância epis-
temológica ou, o que é o mesmo, colonizando vozes
como quando o corpo escrevente colonizou as línguas
(sobre-escrevendo gramáticas) e memórias (sobre-es-
crevendo suas histórias).
Na América Latina, alguma coisa chama nossa
atenção quando ouvimos alguém falar sobre o cuidado
de si. Não apenas por causa da interessante ambigui-
dade de um termo que exige cautela, bem como a pre-
servação de uma, deixe-nos outra palavra ambígua,
“positividade”. Até porque, essa afirmação está sempre
no singular e geralmente aparece como um pré-requi-
sito um tanto contraditório quando se trata de forma-
ções comunitárias. Por sua vez, geralmente é uma boa
desculpa passar o tempo todo falando sobre um reno-
mado filósofo francês e seus estudos sobre o cuidado
em suas variantes gregas, romanas, etc.
Esta pode ser uma boa ocasião para des(euro)
centrar da noção de cuidado. Descentralize-o de si
mesmo no que de egocêntrica possa ter a afirmação
e descentralize-o da Europa no que de eurocêntrica
pode ter a tradição – de circunscrever uma palavra co-
mum que todos os seus caminhos “levam a Roma”, ou
à Grécia, se necessário. Pois bem, cada vez que brilha
o princípio ético do cuidado (de si e dos outros), dá-se
a sensação de que na América Latina os povos indíge-
nas, afrodescendentes e mulheres (sobre os quais, his-
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cuidado de si

toricamente, recai o peso – ético, físico, político, eco-


nômico – do cuidado), eles teriam pouco a dizer frente
ao legado do domínio platônico da questão1. Se impor-
ta, a filosofia – pelo menos um pouquinho, de que as
mulheres de latitudes não europeias e culturas mile-
nares eram ética e politicamente familiarizadas com o
cuidado sem a necessidade de qualquer relação com a
herança grega? Obviamente, a questão do cuidado não
precisava da consagração que Sócrates teoricamente
oferecia para ocupar o lugar de uma preocupação cul-
tural em geral e de uma preocupação existencial em
particular. Se algo insiste para viver em nós, e aderi-
mos à ideia de que somos constituídos por impulsos
vitais que lutam contra as formas como Thanatos ten-
ta desagregar ou desintegrar a vida, podemos observar
como as comunidades estão tramando sua imunologia
em meio às relações nas quais o Conhecimento circu-
la (muitas vezes sem as garantias “da ciência” e com
o consentimento da sabedoria popular). Nesse ponto,
encontramos uma dimensão constitutiva do cuidado
e que diz respeito à resistência, ou seja, a uma certa
formação ligada de forma essencial à prática da críti-
ca que configura um arcabouço ou armadura protetora
em relação ao resto do mundo e qualquer acidente ou
evento que possa ocorrer2.

1
Refutação contundente pode encontrar-se em Espinosa Miñoso,
Gómez Corral e Ochoa Muñoz (2014).
2
Foucault (2001) vê aqui um aspecto formativo nada dissociável de
um corretivo que se impõe em um pano de fundo de erros (p. 104),
ao mesmo tempo em que traz à tona o par “correção/ liberação” com
muito mais peso que o do continuum “formação-conhecimento” e
possibilita a analogia com a modernidade/ colonialidade de tal for-
ma que, se pudermos nos corrigir da modernidade, precisaremos
nos libertar da colonialidade. Giuliano (2020a) pode ser visto em
outra correção como um procedimento crítico, coletivo e solidário
que resgata o erro como uma verdade inescapável da textualidade.
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cuidado de si

Porém, algo mais pode ser dito sobre a ideia de


cuidado de si: sua pré-história no Ocidente está liga-
da ao privilégio (político, econômico e social), uma
vez que apenas quem possuía propriedades (e escra-
vos que as trabalharam) era capaz de acesso às suas
práticas (purificação, concentração da alma, retiro
espiritual, etc.). Se isso é encontrado na ontogênese
da noção, surge a questão de como essa face ocul-
ta sobrevive nos publicitários da epimeleia heatóu
(para evocar sua expressão grega). Agora, em meio à
transmissão de suas técnicas é onde a pedagogia de-
sempenha um papel preponderante na produção da
subjetividade cuidadosa e onde a política aparece na
articulação “governo de si- governo dos outros” que
traça as premissas da governamentalidade e do poder
pastoral que será mais visível durante o cristianismo3.
Isso é de extrema importância, pois revela a rejeição
de prova (que dá vida psíquica e somática ao motivo
de avaliar)4 e mostra uma insistência na individuali-
zação do cuidado (como motivo de salvação, melhoria
ou aprimoramento individual que pode – ou não – im-
pactar na vida de outras pessoas), o que leva a práticas
que hoje carregam o prefixo “auto” como um banner
re-atualizável.
Um exemplo do que temos visto pode ser encon-
trado no chamado exame de consciência ou exame
de si que, em seus primórdios, foi mediado por figu-
ras pedagógicas ou sacerdotais, e hoje, sua lógica de
poder encontra continuidade em práticas como auto-

3
Sobre as formas de governamentalidade e poder pastoral na edu-
cação ver Giuliano (2019).
4
Sobre essa questão, pode-se ver o livro de Giuliano (2020b) e Avital
Ronell (2008), que mostra como o impulso instintivo de teste parece
ser constitutivo do Ocidente.
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cuidado de si

avaliação, autoexame, autocontrole5. Como se o auto-


mobilismo tivesse assumido as rédeas da existência e
tudo fosse uma mera (auto) condução do movimento, a
situação subjetiva é localizada de tal forma que parece
ser sempre um sujeito ego-lógico ou autocentrado que
é dono cheio de suas ações e omissões.
Alguma coisa está errada quando se estuda que
as práticas de autocuidado são abordadas a partir de
uma filosofia racional-consciente e tudo se reduziria
a se exercitar ou treinar em uma forma de atividade
vigilante, contínua, aplicada, regulada, que gira em
torno da própria existência. Mas, como ensinado no
basquete, você precisa de ambas as pernas e ambos
os pés para girar (um dos quais está fixo no chão e só
pode se mover em uma curva de 360 graus sobre si
mesmo, e o outro pode sentir o espaço que a perna lhe
permite alcançar – contanto que ele não force o outro
pé a deixar o chão).
A metáfora nos convida a pensar sobre a impor-
tância da gravidade do solo, a fixação na própria exis-
tência e o limite da própria experiência que a perna de
mobilidade liberada permite. Porém, pouco diz sobre
o lugar do outro na configuração do próprio corpo, dos
próprios limites, da própria existência. Pouco diz so-

5
Em Giuliano (2020c), problematiza-se o preceito socrático segun-
do o qual uma vida sem exame não merece ser vivida, pois supõe
uma discriminação básica entre o que é aprovado como melhor e
o que é reprovado como pior, o que define uma norma como projeto
singular, a partir da qual o indivíduo se define por referência a si
mesmo – desdobrando-se da alteridade e estando pronto para se
tornar empresário de si mesmo – (também poderia ser lembrada
aquela epígrafe sartriana que definia o indivíduo exatamente como
alguém sem importância coletiva). Sobre a relação entre exame e
confissão, Giuliano (2020d) pode ser consultado, bem como sobre
a ligação entre autoavaliação, autoflagelação, autoculpa e respon-
sabilidade, uma problematização pode ser encontrada em Giuliano
(2020e).
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cuidado de si

bre o quão impróprio há esses fatores, não pelo que é


estranho, mas por tudo o que age de forma comunitá-
ria neles e por meio deles e eles fazem enquanto des-
fazem os “o próprio”. É um xeque-mate na proprieda-
de individual, o porta-estandarte da existência liberal
que se supõe ser soberana e dona de si mesma.
Assim, um exercício interessante poderia ser
perguntar-se sobre o lugar de outros e de outras em
expressões relacionadas ao cuidado de si que, ao se-
rem co-movidas (por outros e outros), nos movem em
direção a cenas de um mundo social onde um (ou uma)
não é mais o centro. Pode-se pensar em atos de conhe-
cimento, atenção e percepção que alguém pode ter de
si, mas também do mundo. Também deve ser ques-
tionado em atividades que envolvam movimentos da
ordem de libertação, emancipação, sanação, a cura,
reivindicação, mas não é que esses atos podem ser re-
alizados por ele mesmo e sem consideração aos outros
e outras? A (falsa) consciência liberal pode dizer sim,
mas um simples olhar para cima pode ser suficien-
te para refutá-la. Bem, qualquer um que tenha lutado
para curar-se, libertar-se, emancipar-se, reivindicar
a si mesmo, sabe que sempre houve outros e outras
em jogo. Claro, um ou uma pode respeitar-se, envergo-
nhar-se, satisfazer-se, mas até que ponto alguém pode
fazer isso por seus próprios meios e com absoluta au-
tonomia e independência de outros e de outras?
Outra questão não pode ser adiada: podemos
cuidar de nós mesmos (e de outros e de outras) sem
que, primeiro, alguém (sempre um sujeito coletivo ou
comunitário) o tenha feito desde a mais tenra infân-
cia? Nesse sentido, o cuidado alimenta um círculo de
amor em que seus laços (sociais, comunitários, coleti-
vos) tecem um tecido múltiplo que sustenta, acompa-
nha e abriga. Um casaco que abraça o ato falho como
119
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cuidado de si

manifestação do desejo que busca (re)encontrar o que


colocamos em algum lugar (mas não nos lembramos
onde), do desejo de descontinuidade do normal, do de-
sejo que ensina como aquilo que é presente está au-
sente em si mesmo, ou o ausente presente no outro
(Giuliano, 2016, p. 6).
Afinal, um erro pode ser o que seja salvo de uma
vida inteira, e deve ser deixado em toda a sua beleza.
Talvez porque o nosso erro seja o espelho onde vemos
o que fazemos de nós, como sugere Lispector (2011), a
forma como a vida se abre na sua carne e nos permite
ver a sua matéria, o barro vivo. E se evitarmos o olhar
deles, é para evitarmos correr o risco de nos compre-
endermos e de que a estrutura (sala de aula, escola,
lar a três) estremeça, o que também obriga a não se
rebelar e esquecer que por baixo da estrutura está o
chão de onde uma nova escola, uma nova sala de aula,
um novo lar para três. Cuidar, narrar, investigar: em
comunidade, o solo, está sendo.

Referências
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Collège de France (1981-1982). Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2001.
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cuidado de si

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GIULIANO, F. La razón evaluadora en Paul Ricoeur: tra-
zos por un desarme de la máquina que ajusticia. Revista
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cionista a una educación indisciplinada. Cuadernos de
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RONELL, A. Pulsión de prueba: la filosofía puesta a examen.
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121
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ayvu

Dd

decolonialidade
luiz gustavo santos da silvaxiii
mailsa passosxiv

xiii
Licenciado em História selho Fiscal da APNB (Associa-
pela Universidade do Estado ção de Pesquisadorxs Negrxs
da Bahia (UNEB) e Mestre em da Bahia), atuando como pes-
Educação pelo Programa de quisador associado. Possui ex-
Pós-graduação em Educação e periência na área de História,
Contemporaneidade - PPGEduc com ênfase em História da
(UNEB). Atualmente é douto- África e cultura afro-brasileira,
rando pelo Programa de Pós- atuando principalmente nos
-graduação em Educação da temas: Ensino de história da
Universidade do Estado do África, Educação, Memória,
Rio de Janeiro - ProPEd/UERJ, Intelectuais negrxs e Cultura
bolsista FAPERJ Nota 10 e pes- afro-brasileira.
quisador do Grupo FIRMINA E-mail:
- PÓS-COLONIALIDADE: Educa- gustavofirmina@gmail.com
ção, História, Cultura e Ações
Afirmativas (UNEB), na Linha
xiv
Licenciada em Letras (Portu-
de Pesquisa Pensamentos e In- guês-Literaturas) pela Univer-
– sumário –

telectuais negras(os): diálogos sidade Federal do Rio de Janei-


e combates contemporâneos ro (UFRJ), Mestre em Educação
e do Grupo de Pesquisa Cultu- pela Universidade do Estado do
ras e identidades no cotidiano Rio de Janeiro (UERJ) e Douto-
(ProPEd/UERJ). Compõe o Con- ra em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de
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decolonialidade

Janeiro (PUC-Rio). É professora -coordendora do Laboratório


da Faculdade de Educação e do Educação e Imagem da Facul-
Programa de Pós-Graduação da dade de Educação da UERJ.
UERJ, onde coordena o Grupo E-mail:
de Pesquisa Culturas e Iden- mailsappassos@gmail.com
tidades no Cotidiano. É vice-

A decolonialidade consiste em um conjunto de


pensamentos críticos e desobedientes que combatem
a ordem colonial. Esses pensamentos potencializam
os saberes, práticas e repertórios culturais das popu-
lações subalternizadas dentro do chamado sistema-
-mundo-capitalista. O decolonial identifica, problema-
tiza e visa dirimir as colonialidades, compreendidas
como lógicas globais de desumanização que persis-
tem contemporaneamente mesmo na ausência de co-
lônias formais.
Compreende-se que mesmo depois do fim do co-
lonialismo – de ser extinta a invasão física no territó-
rio colonizado – a colonialidade persiste nas relações,
na estética, nos modos de saber, de sentir e de crer. A
colonialidade seria assim uma ideologia, um conjunto
lógico, sistemático e violento de representações, ideias,
valores, normas ou regras de conduta que indicam aos
indivíduos de uma sociedade o que devem sentir e
como devem sentir, o que devem fazer e como devem
fazer. Sustenta-se em um conjunto de narrativas que
produzem dispositivos de normatização às nações co-
lonizadas, interferindo na produção de subjetividades
dos seus povos e nas maneiras como o conhecimento,
a autoridade, o trabalho articulam-se entre si através
do capitalismo mundial e da ideia de raça.
A colonialidade perpetua a relação colonial, mar-
ginalizando/excluindo as ditas epistemologias perifé
ricas ocidentais, subalternizando sistematicamente o
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decolonialidade

outro não-europeu, negando e relegando tanto ao silen-


ciamento quanto à invisibilização os seus processos
históricos (seu sistema-mundo próprio, cosmogonias,
epistemologias). É uma operação que se concretiza de
várias formas, muitas vezes apresentando-se como
fascínio pela cultura colonialista, despertando um
fetichismo que os europeus criam em torno de si. O
eurocentrismo, dessa forma, não é somente a perspec-
tiva epistêmica dos europeus, é também o conjunto
daqueles educados sob sua hegemonia.
O decolonial seriam forças políticas que se con-
trapõem às tendências acadêmicas eurocêntricas de
construção do conhecimento histórico e social na ten-
tativa de produção de um projeto teórico voltado para
o repensamento crítico e transdisciplinar.
Pode-se afirmar que não há consenso quanto ao
uso do termo decolonial. Refere à dissolução das es-
truturas de dominação e exploração configuradas pela
colonialidade e a busca do desmantelamento de seus
principais dispositivos. A decolonialidade é um des-
locamento epistemológico produzido por intelectuais
insurgentes, praticantes da vida cotidiana que, dentro
de um escopo teórico combativo, utilizam suas táticas
de resistência, desempenhando importante papel nas
várias formas de ativismo.
Esta abordagem teórica vem sendo desenvolvida
por estudiosas e estudiosos latino-americanos, espe-
cialmente o Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C),
dentre os quais destacam-se: Aníbal Quijano, Walter
Mignolo, Catherine Walsh, Edgard Lander, Enrique
Dussel, Maria Lugones, Nelson Maldonado-Torres,
Ramon Grosfoguel, Santiago Castro Gomez.
Pensamento de fronteira que atua nas “frestas”,
é uma resposta ao racismo epistêmico que não admite
nenhuma outra epistemologia como espaço de produ-
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decolonialidade

ção de pensamento crítico nem científico. Esse tipo de


racismo é operação teórica que, por meio da tradição
de pensamento e pensadores ocidentais, privilegia a
afirmação destes serem os únicos legítimos na produ-
ção de conhecimentos. Muito da potência crítica da
decolonialidade encontra-se nas fronteiras físicas e
imaginárias da modernidade, espaço/tempo em que
as diferenças não são apenas acionadas ou reinventa-
das, mas são, também, loci enunciativos de onde são
formulados conhecimentos a partir das cosmovisões,
histórias e experiências dos sujeitos subalternizados.
No Brasil, é uma expressão que vem sendo uti-
lizada por pesquisadoras e pesquisadores, colocando
em perspectiva as várias atuações políticas, muitas
vezes produzidas nas margens das produções hege-
mônicas do conhecimento. Concebida a partir das/
com as experiências das populações colocadas à mar-
gem, sua força epistêmica se contrapõe às tendências
acadêmicas dominantes e suas formas monocráticas
de produções científicas. Por vezes é mobilizada des-
de uma perspectiva sankofiana1, ou seja, apresenta
um olhar atento ao passado, ressignifica o presente e
produz possibilidades de outros futuros, alimentan-
do-se e, ao mesmo tempo, trazendo à tona em forma
de “oferendas epistêmicas” saberes já acumulados
frente às racionalidades de um sistema-mundo único
e monológico.
A decolonialidade visibiliza e valoriza as várias
tecnologias ancestrais dos povos originários, suas cos-
1
O Sankofa é um ideograma de origem akan que significa “voltar e
apanhar de novo”, voltar às raízes e construir algo novo a partir das
mesmas. Neste ideograma – um pássaro que olha para trás portan-
do em seu bico uma semente. Entende-se a partir desse ideograma
a possibilidade de, a partir do conhecimento de um passado, ressig-
nificar o presente, o que nos permitiria produzir (semear) um outro
futuro. Quanto a isso, ver Nascimento (2008).
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decolonialidade

mologias, cosmogonias e orientações à vida. Partilha


de conhecimentos plurais a exemplo do tempo certo
de plantar e colher, de caçar e pescar, de práticas de
cura, cerimônias, arquitetura e linguagem. Uma afir-
mação de respeito e parceria que torna imperativo
olhar com lupa os movimentos comunitários de resis-
tência: a luta política das mulheres negras, dos qui-
lombolas, dos/as jovens de periferia, das comunidades
de terreiro, dos diversos movimentos negros, da esté-
tica e arte negras e indígenas, bem como de ativistas
e intelectuais.
São alguns exemplos de pensadoras e pensadores
decoloniais brasileiros: Ailton Krenak, Daniel Cabixi,
Davi Kopenawa, Joenia Wapichana, Sonia Guajajara,
Daniel Munduruku, Beatriz do Nascimento, Eduardo
de Oliveira e Oliveira, Nilma Lino Gomes, Luiza Bairros,
Vera Candau, Kabengele Munanga, Joaze Bernardino-
Costa, Abdias do Nascimento, Milton Santos, Maria
Firmina dos Reis, Lélia Gonzalez, Clóvis Moura, Joel
Rufino, Sueli Carneiro, Petronilha Beatriz dentre tan-
tas/os outras/os.
Estas e estes – que cunharam suas reflexões
sobre o Brasil e a sociedade, mesmo antes do fim dos
anos 1990, marco fundador do pensamento decolonial
– já traziam em seus estudos uma discussão teórica
crítica e a força contra-hegemônica, daqueles/as que
sempre se depararam com formas diversas de euro-
centrismo acadêmico e os efeitos da dominação colo-
nial, capitalista e patriarcal.
Já atentaram para a importância de se compre-
ender que nós – povos originários e populações afro-
diaspóricas – falamos, escrevemos e produzimos co-
nhecimentos de lugares específicos subalternizados,
que frequentemente são tratados como irrelevantes,
questionados como “comprometidos” demais, pouco
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decolonialidade

verdadeiros, demasiadamente subjetivos e/ou exces-


sivamente “militantes”, motivo pelo qual somos fre-
quentemente confrontadas e confrontados sobre a va-
lidade de nossos saberes e narrativas.
Ou seja, as autoras e autores brasileiros mencio-
nados anteriormente já tinham uma postura epistêmi-
ca decolonial, tendo em vista que sua produção era/é
marcada pelo registro e afirmação de múltiplas vozes,
ações, sonhos daqueles/as que lutam contra a margi-
nalidade, a discriminação, a desigualdade e buscam a
transformação social.
O fazer/pensar decolonial assombra, questiona,
diverge da memória encapsulada e construída a par-
tir dos vencedores da história, geralmente homens
brancos, heterossexuais e cristãos. Consiste em reler
autoras/es que colocam em perspectiva uma produ-
ção intelectual marginalizada, porém, potencialmente
emancipadora, legitimando as vozes e os saberes aca-
dêmicos, políticos, identitários e estético-corpóreos de
mulheres e homens negros, indígenas, transgêneros,
LGBTQIA+.
As narrativas, no campo de estudos da deco-
lonialidade, permitem aberturas e ressignificações
constantes. Realimentam vozes, fortalecem passos,
deixam marcas, rastros que vão firmando caminhos.
Visibilizam repertórios culturais, formas de estar no
mundo, de agir. As narrativas decoloniais fomentam
o campo das lutas antirracistas e de descolonização,
(re)criando e ampliando os saberes e práticas educa-
tivas variadas daqueles/as que experienciam a con-
formação de novos cenários sociais. Pensar, teorizar,
sentir ou mesmo produzir conhecimento a partir das
narrativas decoloniais significa identificar espaços
de aberturas para contestações e (re)alinhamentos

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decolonialidade

discursivos. Portadoras e difusoras de saberes ances-


trais, as narrativas decoloniais permitem a sociali-
zação das experiências dos sujeitos subalternizados
tornando-as comunicáveis, desencadeando processos
formativos plurais.
Acessar ou mesmo produzir narrativas decolo-
niais em diálogo com as histórias de vida e saberes
de mulheres e homens subalternizados pelo racismo
epistêmico e pela ordem colonial requer sensibilida-
de e compromisso com a emancipação desses grupos.
Implica em compreender que essas mesmas vozes se
situam num campo movediço em que se cruzam os
modos de ser do indivíduo e o mundo social, as insti-
tuições e os conflitos que fazem parte de seus cotidia-
nos. Decolonizar as narrativas é atentar para a polifo-
nia que as atravessa e constitui, problematizando uma
certa ilusão de unidade.
No que diz respeito à formação docente, as nar-
rativas decoloniais implicam também em diálogos
constantes com saberes, estéticas e modos de exis-
tência para a emancipação. Por isso, dentro dos espa-
çostempos da formação docente, um dos seus gran-
des princípios é conceber educadores e educadoras
como sujeitos de sua própria história e (re)criadores
de seus próprios saberes e práticas pedagógicas, fo-
mentando a produção de novos discursos, ações po-
líticas e fortalecimentos dos coletivos. Promovem o
combate a todas as formas de exclusão, priorizando
nos processos de formação uma posição crítica, antir-
racista, antipatriarcal e anticapitalista, possibilitando
aos indivíduos reconhecerem-se em novos horizontes
emancipatórios. Podemos entender que os princípios
da partilha e do cuidado mútuos, assim como a solida-
riedade, constituem coletivamente muitos dos saberes
mobilizados pelo pensamento decolonial.
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decolonialidade

Uma das funções estratégicas mais profícuas


desse pensamento é sustentar a enunciação do cor-
po-político do conhecimento, uma localização epistê-
mica potencialmente insurgente. Um corpo-político
do conhecimento é sempre questionador, produtor de
práticas discursivas contestadoras que tensionam su-
premacismos, branquitudes do saber, epistemicídios,
racialismos, todo um arcabouço epistemicida susten-
tado por colonialidades que historicamente tentam
colocar na condição de destituídos de fala as popula-
ções subalternizadas.
A decolonialidade busca transpor o legado dos
projetos que invariavelmente se propõem universa-
listas, ocupando-se das narrativas dos sujeitos mar-
ginalizados pelo eurocentrismo acadêmico, posicio-
nando escritas questionadoras e afirmando memórias
descolonizadas como agências político-epistemológi-
cas. Essas memórias alimentam-se de deslocamentos
territoriais, fugas, lutas, (re)composições, aquilomba-
mentos de praticantes da vida cotidiana. O exercício
de visibilização e escuta atenta em relação a essas
narrativas consiste na tarefa para a desconstrução
dos fundamentalismos e processos de desumanização
que a colonialidade historicamente nos tem imposto.

Referências
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e perspectiva negra. Revista Sociedade e Estado, v. 1, n. 31,
2016.
CANDAU, V. M. Diferenças culturais, interculturalidade
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FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA,
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129
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decolonialidade

GROSFOGUEL, R. Para descolonizar os estudos de economia


política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pen-
samento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica
de Ciências Sociais, n. 80, 2008.
GOMES, N. L. Intelectuais negros e produção do conheci-
mento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In:
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GONZALEZ, L. Por um feminismo aforlatinoamericano: en-
saios, intervenções, diálogos. LIMA, M.; RIOS, F. (orgs.). Lélia
Gonzalez – por um feminismo afro-latino-americano: en-
saios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zhaar, 2020
GONZALEZ, L. O movimento negro na última década. In:
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Janeiro: Marco Zero, 1982.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:
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MIGNOLO, W. D. Desobediência epistêmica: a opção descolo-
nial e o significado de identidade em política. Cadernos de
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NASCIMENTO, E. L. (org.). A matriz africana no mundo. São
Paulo: Selo Negro, 2008.
QUIJANO, A. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e
América Latina. In: LANDER, E. (org.). A Colonialidade do
saber, eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas lati-
no-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

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diferença

diferença
ricardo janoarioxv
leonardo pelusoxvi

xv
Doutor em Serviço Social pela E-mail:
Universidade Federal do Rio janoario04@gmail.com
de Janeiro com bolsa sanduí- xvi
Doutor em Letras pela Uni-
che na Universidade do Texas versidad Nacional de Córdoba,
(The University of Texas at Argentina. Mestre em Ciências
Austin). Mestre em Educação Humanas pela Universidad de
pela Universidade Federal do la República, Uruguai. Bacharel
Rio de Janeiro. Bacharel em em Linguística e em Psicologia
Relações Internacionais pelo pela Universidad de la Repúbli-
Centro Universitário Interna- ca. Atualmente é Professor Ad-
cional - UNINTER. Graduado junto dos Cursos de Psicologia
em Pedagogia pela Universida- e de Interpretação e Tradução
de do Estado do Rio de Janeiro. LSU-español na Universidad
Atualmente é Professor Adjun- de la República. Coordenador
to dos Cursos de Pedagogia no da Área de Estudos Surdos e do
Instituto Nacional de Educação Grupo de Estudos sobre Textu-
de Surdos (INES), nas modali- alidade Diferida e Identidades
dades presencial e à distância. Políticas, na Universidad de la
Coordenador do Grupo de Es- República.
tudos sobre Racismo e Surdez
(GERES). E-mail:
leonardo@psico.edu.uy

Vivemos em sociedades complexas e estratifi-


cadas, nas quais prevalecem processos de opressão,
estigmatização e, portanto, conflito. Nessas socieda-
des opressoras existem basicamente três eixos que
concentram a discussão sobre diferença: classe, sexo/
gênero e raça/ etnia, os quais se baseiam na cons-
trução do que se entende por “normal”. Esta ideia de
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diferença

normalidade, que é efeito da ideologia da normalidade


(Almeida; Angelino, 2014), é o quadro conceitual pelo
qual o ser humano assume que existe uma norma para
os corpos, comportamentos e hierarquias de que todos
fazemos parte e cujo afastamento acarreta no perigo
de sair do padrão; de se distanciar de quem o faz; de
estar fora da corrente, isto é, estar desintegrado, de-
sincorporado, quebrado conceitualmente e, em alguns
casos, se constituir como um elemento ameaçador
e/ou monstruoso, passível, portanto, de ser introdu-
zido em sistemas de exploração, como escravidão
ou patriarcado.
A ideologia da normalidade supõe um processo
de homogeneização e padronização de um modelo a
partir do qual estabelece a lógica binária dos normais
e dos demais (os anormais?), aqueles que se desviam
do padrão homogêneo, do qual é a base das práticas
naturais que são realizadas na medicina tradicional
e em alguns modelos educacionais. Os anormais, ou
seja, aqueles que se desviam da norma, foram nomea-
dos de várias maneiras: os diferentes e os diversos, os
especiais e os deficientes, os minoritários e os menos-
prezados, os vulneráveis e os violados, e, por último,
os dissidentes (Peluso, 2020), mas, para esse texto, nos
deteremos na perspectiva da diferença.
Por diferente e diverso, entendemos como uma
simples descrição da heterogeneidade social, atribuí-
da a um paradigma que exclui o debate sobre o confli-
to. Nenhuma relação de opressão/subordinação entre
os atores é assumida, mantendo, portanto, a manuten-
ção de uma realidade desigual que priva o outro de ter
direito à moradia, à terra, à educação, à saúde, à igual-
dade, à cidadania plena. Os diferentes têm resistido à
opressão, à segregação e à negação dos seus direitos
mais básicos.
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diferença

No coletivo LGBTQIA+, por exemplo, a expressão


diversidade sexual já se consolida há muitas décadas,
evidenciando uma certa impossibilidade de dar conta
das relações desse grupo, submetido à heterossexua-
lidade, ou ainda imposto à ideologia da normalidade
hétero. A diversidade pressupõe a ideia, tão susten-
tada pela pós-modernidade, de que somos todos di-
versos e que essa diversidade deve ser celebrada em
nossas comunidades.
A perspectiva da diferença é oferecida em uma
abordagem semelhante, mas, em vez de estar asso-
ciada à heterogeneidade gênero-gênero, ela se pauta
principalmente no campo da deficiência. Na década
de 1990, foi instituída a expressão “diferentes capa-
cidades” para se referir à deficiência, pois tal termo
começava a incomodar as pessoas ditas normais, por
estabelecer intensas relações de opressão. No entanto,
a generalização desse conceito não foi bem-sucedida,
pois o incômodo do termo deficiência não foi resolvido
com uma mudança de nome, como veremos a seguir,
mas exigiu uma ruptura epistemológica que o novo
termo estava longe de ser capaz de oferecer.
No século XXI, surge o termo “diversidade fun-
cional”, também para se referir à deficiência, isto é,
mais uma tentativa de oferecer uma perspectiva que
pudesse romper com o desconforto do antigo vocábu-
lo. Essa nova proposta terminológica produz o mes-
mo efeito da anterior, ou seja, não oferece uma ruptura
epistemológica, política e ideológica com o termo do
qual se quer fugir.
O problema apresentado pelos termos diversi-
dade e diferença é que estes caem na ingenuidade da
metáfora da fragmentação e, portanto, não mostram a
desigualdade brutal que existe dentro de algumas di-
versidades; ao passo que tende a ser atribuído, como
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diferença

um rótulo, exclusivamente aos que se desviam da nor-


ma, em um contexto de relações políticas conflituosas
em que não se entende onde estão os normais. Assim,
nesta perspectiva, parece que os diversos são os inte-
grantes do coletivo LGBTQIA+ e aqueles com diferen-
tes habilidades são os deficientes.
Se as discussões sobre diferença atravessam
momentos de questionamentos, então estes precisam
acontecer em todos os espaços da vida social. Essa
turbulência de mudanças, trazida com o debate sobre
o conceito de diferença, pressiona velhas estruturas
em níveis conceitual, ideológico e político. Debater so-
bre o conceito de diferença significa estar diante de
um amplo acervo de pesquisas, reflexões teóricas já
produzidas sobre a temática (Bhabha, 1998; Deleuze,
2006; Derrida, 1991; Giroux, 2003; Hall, 1998 e 2003;
Santos, 2003; Silva, 2014). Não nos cabe resgatar todo
esse arcabouço de ideias, até porque, seria uma tare-
fa hercúlea, quiçá, impossível, trazer um resgate pre-
ciso do conceito. O objetivo é, portanto, trazer à baila
abordagens críticas que fazem emergir a Pedagogia da
Diferença como conceito norteador do nosso debate.
No contexto atual, em que prevalece com grande
intensidade a ideologia da normalidade, instituindo e
justificando as lógicas da opressão, há uma quantida-
de inimaginável de energia humana gasta em práticas
violentas que se expressam em várias formas de in-
tolerância entre indivíduos, nações, raças, povos que
falam línguas diferentes, sociedades e entre diferentes
religiões. Essa realidade tem se tornado insustentável
para a sociedade contemporânea. As relações huma-
nas têm concentrado, em suas manifestações, o medo,
a segregação, a exclusão e a negação do outro. Diante
desse panorama, como a Pedagogia da Diferença pode
contribuir para desconstrução das práticas perversas
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diferença

de subalternização, tendo em vista que todo pensa-


mento pedagógico traz implicações nas relações polí-
ticas, sociais e culturais?
Cabe dizer que a Pedagogia da Diferença pode ser
interpretada como uma maneira de pensar, negociar e
transformar as relações estabelecidas entre a educa-
ção e as concepções pedagógicas de dominação cons-
truídas nas práticas de ensino em sala de aula, na pro-
dução de conhecimento, nas estruturas institucionais
da escola e nas relações socioculturais entre os sujei-
tos. Ao considerarmos que a escolarização sempre en-
volve relações de poder e privilégio de certas formas
de conhecimento, tais saberes selecionados também
funcionam para reproduzir desigualdades. Portanto,
a Pedagogia da Diferença envolve o reconhecimento
de como os currículos escolares, os recursos didáti-
cos, as abordagens de ensino oferecem aos sujeitos
uma perspectiva de mundo que, na maioria das vezes
marginaliza, oprime e exclui outros modos de vida e
pensamentos.
Um dos principais problemas da sociedade
contemporânea é defrontar-se com a hostilidade em
relação às diferenças, a insensibilidade cultural e
linguística, assim como a tradição intolerante para
com o diferente. Em tempos de pluralismo cultural, a
Pedagogia da Diferença é necessária para lidar com
o outro, aqueles decretados inferiores, inexistentes,
subalternizados. Há de se pensar em uma Pedagogia
da Diferença que investigue os objetivos sociopolíticos
e os meios metodológicos de viabilizar os processos
formativos em contextos socioculturais específicos,
levando em consideração que as práticas educativas
ocorrem em diversos lugares, em instâncias formais,
não formais, informais, ou seja, acontecem no interior
das famílias, nos locais de trabalho, na cidade, na rua,
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diferença

nos meios de comunicação e, também, nas institui-


ções, sobretudo, educacionais (Janoario, 2020).
Vale ressaltar que a Pedagogia da Diferença pos-
sibilita um conjunto de ideias com as quais podemos
explorar novas possibilidades pedagógicas, interro-
gando as práticas pautadas nas concepções de opres-
são, desigualdades, subcidadania, sub-humanidade
que reproduzem o outro como subalterno, inferior, des-
locado, desconectado do direito, da igualdade, da cida-
dania e da própria humanidade. Assim como podemos
falar de pedagogias de dominação, também podemos
trazer para o diálogo as pedagogias da resistência,
dando oportunidade de um discurso sobre outros su-
jeitos e outras pedagogias que sempre foram descon-
sideradas e deslegitimadas.
Com a proposta da Pedagogia da Diferença, nos
distanciamos da posição majoritária adotada pelo
sistema educacional em nossas regiões: a inclusão.
Entendemos que a proposta de inclusão, da forma
como está sendo implementada, não se liberta da ide-
ologia da normalidade. Ou seja, é uma perspectiva que
para “incluir”, continua distinguindo alunos normais
de anormais. Portanto, ao ancorar-se na ideologia da
normalidade, a inclusão é uma proposta educacional
que privilegia a inclusão de determinados indivídu-
os/corpos, mas exclui as identidades políticas por se
constituir em uma chave homogeneizadora (cujo mo-
delo é, obviamente, a normalidade). A Pedagogia da
Diferença, por outro lado, propõe uma forma alterna-
tiva de pensar a inclusão, na medida em que busca
inseri-la no quadro de uma lógica de reconhecimento
e equidade. Portanto, uma perspectiva de reconheci-
mento e equidade supõe a busca ativa pelo reconheci-
mento das múltiplas identidades políticas e diversida-

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diferença

des pessoais dos alunos, descartando qualquer objeti-


vo homogeneizante em uma chave normalizadora.

Referências
ALMEIDA, M.; ANGELINO, A. De la inclusión educativa
como política a la ética de la hospitalidad. Conocimiento y
Sociedad, v. 4, n. 2, 2014.
BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1998.
DELEUZE, G. Diferença e repetição. 2ª ed. São Paulo: Graal,
2006.
DERRIDA, J. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991.
GIROUX, H. A. Atos impuros. A prática política dos estudos
culturais. Porto Alegre: Artmed Editora, 2003.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 1999.
HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais.
Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da Unesco
no Brasil, 2003.
JANOARIO, R. Português como Segunda Língua:
Contribuições para a Implantação de um Programa de
Ensino Bilíngue para Surdos. Fragmentum, v. 55, 2020.
PELUSO, L. Diversidad, discapacidad, minoridad y disiden-
cia: entre la ideología de la normalidad y las luchas por
el reconocimiento. In: JANOARIO, R.; PELUSO, L. (comps.).
Diferencia y reconocimiento. Apuntes para deconstruir la
ideología de la normalidad. Montevideo: Área de Estudios
Sordos/FHCE/UdelaR, 2020.
SANTOS, B. de S. Reconhecer para libertar. Os caminhos do
cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
SILVA, T. T. da (org.). Identidade e diferença. A perspecti-
va dos Estudos Culturais. 15ª ed. Petrópolis: Editora Vozes,
2014.

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ayvu

diversidade
bibiana misischiaxvii

Doutora em Educação, Mes-


xvii
Específico de Formação em In-
tre em Formação de Formado- vestigação Narrativa e (Auto)
res e Licenciada em Ciências da biográfica da Universidade Na-
Educação pela Universidade de cional do Rosário. Orientadora
Buenos Aires (UBA). Professora de doutorado, mestrado e licen-
na área de Educação Especial ciatura, integrante de bancas
e Inclusiva. Professora Asso- examinadoras de concursos
ciada Regular da Universidad docentes e pesquisas de pós-
Nacional de Río Negro. Coorde- -graduação e graduação. Mem-
nadora da Comissão Assessora bro de comitês acadêmicos ou
de Deficiência. Integrante dos assessores e de publicações na
Conselhos Superiores da Uni- Argentina e América Latina.
versidad Nacional de Río Negro Palestrante em Congressos e
e da Sede Andina. Integrante Jornadas, autora, compiladora
do Laboratório de Formação de e coautora de livros e artigos
Formadores e de grupos de pes- em revistas relacionadas à pe-
quisa relacionados à formação, dagogia e à educação especial e
pedagogia, narrativa, educação inclusiva na Argentina, Améri-
especial e inclusiva e saúde. ca Latina e Espanha.
Professora e Tutora do Douto- ht t p s : // b m i s i s c h i a . w i x s i te .
rado em Educação, Programa com/website-1

Antes de começar a escrever, proponho que es-


crevam numa folha o que vocês entendem pela pa-
lavra: “diversidade”, assim é possível esta primeira
abordagem, rápida e sem pensar muito, do significa-
– sumário –

do que vocês lhe dão, para começar a dialogar com as


minhas palavras e gerar o mais próximo possível de
uma conversa.
O conceito de diversidade, devo dizer, gera algu-
mas dúvidas, incertezas, suspeitas. A primeira coisa
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diversidade

que me acontece é que se trata de uma palavra que não


está enraizada nos usos diários da experiência e, por-
tanto, no conhecimento que se constrói. Não ouvi nin-
guém dizer “como sou diverso”, por exemplo. Podemos
sugerir que é um conceito criado pela academia?
Dessa questão, surge a interpelação no diálo-
go com a perspectiva narrativa, e o desafio – sempre
presente para além da palavra: “diversidade” – de en-
trelaçar ambas as linguagens: a do conhecimento da
experiência e a dos conceitos construídos no campo
da ciência. Como dialogar se a ausência acima men-
cionada estiver presente?
Quanto ao seu sentido e significado, embora em
sua raiz etimológica possa ser associado ao verbo di-
vergir, a partir do qual as diferenças são apreciadas,
também seu prefixo “di” é um sinal de divisão. Se di-
versidade é divergência, a diferença se constitui a
partir do que é separado, do discordante, poderíamos
dizer o que está longe da norma ou o que se estabelece
como normalidade. Se o que destacamos é a divisão,
podemos cair na situação de compartimentar diversi-
dades, como o uso relacionado à diversidade cultural,
diversidade biológica, diversidade linguística, étnica,
sexual e funcional. O que pode acontecer aí é a frag-
mentação da pessoa em suas múltiplas diversidades,
construindo fronteiras e pequenos / múltiplos frag-
mentos nas subjetividades.
Menos frequente é ouvir em uma conversa –
seja acadêmica, ou no cotidiano – a composição: “di-
versidade educacional”, não costumamos nomeá-la
dessa forma.
Pessoalmente, a partir de um posicionamento
crítico, prefiro falar sobre diferenças, especialmente
na situação educacional, uma vez que a diversidade
está associada à inclusão, vinculando essa perspecti-
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diversidade

va ao multiculturalismo ou a posições enunciadas por


aspectos normativos, especialmente em discursos de
organizações internacionais. Acho que daí vem a des-
confiança sobre o termo e um viés próprio de olhar,
sentir, falar a partir da situação das pessoas com de-
ficiência. Lembro-me de descrever em minha disser-
tação de mestrado processos onde se articulam, de
forma complexa e contraditória, os significados que a
categoria “inclusão” pode ter em relação à diversidade
cultural/ linguística e as diferentes versões teóricas
em Educação Especial. Eu lembrava das contribuições
de M. Rosa Neufeld (1999), que nos diz que é reconstru-
ído um imaginário que homologa diversidade cultural
com deficiência em um processo complexo e contradi-
tório de integração/exclusão cheio de preconceitos e
estigmas para com o que é diferente.
Se todos somos diversos, voltamos de alguma
forma à homogeneidade e não à igualdade, como con-
dição de equidade. Talvez como uma forma de ameni-
zar a complexidade da própria existência e as profun-
das desigualdades que existem no dia a dia.
Se produz uma confusão onde a diversidade é
inespecífica e, portanto, inacessível à intersubjetivi-
dade e desde os processos relacionais que constituem
o enredo da educação. Pretende-se classificar o indi-
víduo, colocá-lo numa categoria, prendê-lo – como se
isso fosse possível.
Sinto-me mais confortável com a perspectiva fi-
losófica que nos convida à diferença, a uma educação
que, nos termos de Derrida J. (2003), acolhe o outro, do
que com uma postura que associa diversidade à qua-
lidade educacional. Pode-se dizer que é um conceito
associado à modernidade, acho que a perspectiva po-
lítica a ele associada é o que me incomoda. Talvez a
diversidade tenha a essência de uma fronteira, o que
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diversidade

divide, o que deixa uns/umas de um lado e outros/


as do outro e certamente não é o mesmo estar com
cada um deles.
Se voltarmos às contribuições da antropologia
social e cultural, Rosato A. (2004) afirma que a dicoto-
mia “Nós/Outros” pode colocar a diversidade no selva-
gem, no exótico ou no desigual. A sua diversidade está
associada às teorias relativísticas, colocando a ênfase
em mostrar que as culturas são diferentes umas das
outras, mas equivalentes, considerando a diversidade
um fato natural e não um fato político de submissão.
Um ponto em comum entre as ideias comparti-
lhadas até agora, do meu ponto de vista, é que o Outro
se caracteriza e não há diálogo com o Outro, o que
acontece entre outros não é recuperado, inclusive a
possibilidade de múltiplos encontros e desencontros.
A partir dessa posição, perde-se a oportunidade
de interpelar a diferença, a possibilidade de transfor-
mação daquilo que o Outro nos traz ou reflete e daquele
tempo e espaço, da interpelação daquilo que se insti-
tui. E aí encontramos a experiência que a narrativa
recupera, a partir das vivências que temos no espaço
intersubjetivo, dando-nos a oportunidade de construir
um conhecimento que nos ultrapassa. É aí nesse es-
paço não só relacional entre as pessoas, mas também
grupal e social, que nos tornamos outros/as que são
diferentes uns dos outros, mas sobretudo diferentes de
nós mesmos nos nossos itinerários de vida. É a for-
ça da irreverência, da ruptura, do não pensamento, da
dissidência que torna visível o insuspeito, para uma
transformação de si mesmo.
Quero voltar aqui a um conceito que mencionei
nos parágrafos anteriores: o da diversidade funcional.
Refere-se a pessoas que desempenham algumas de
suas funções de forma diferente e surge do coletivo
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diversidade

Vida Independente, na Espanha. Este grupo de pesso-


as denominadas pessoas com deficiência, substituí-
ram no uso e propuseram o termo alternativo, elimi-
nando a presença pejorativa da deficiência que coloca
a pessoa fora e abaixo da normalidade estabelecida.
Por que eu recupero esta posição?
Em primeiro lugar, porque nos mostra que ne-
nhuma palavra é válida ou inválida fora de seu con-
texto, e é necessário explicitar – como este livro pro-
põe – o que queremos dizer com cada uma e, portanto,
qual é o nosso posicionamento. Em segundo lugar,
porque considero relevante sua origem, e nesta situa-
ção é um movimento gerado a partir do mesmo grupo
a partir de suas experiências e trajetórias de vida, em
um processo de construção coletiva e reflexiva sobre
o uso da linguagem e suas conotações, que se propõe e
constitui o termo: diversidade.
Enquanto escrevia essas ideias, me ocorreu per-
guntar a outras pessoas – além de cada leitor/a des-
te escrito – o que entendiam por diversidade, pessoas
que eu consultava fora e dentro da academia, de dife-
rentes idades. Para trazer outros sentidos e significa-
dos e gerar uma pluralidade de vozes que nos permi-
tam aprofundar, continuar com o processo reflexivo.
Gladys, minha linda amiga e colega escreveu:
Diversidade tem a ver com conectarmos com as
pessoas a partir do que elas são, de como são e não
pensar em como gostaríamos que fossem, porque
se nos conectarmos a partir do lugar de como gos-
taríamos que fossem, não estaríamos dando lugar
para as pessoas efetivamente serem o que elas são.
Em outras palavras, reconhecer o que os outros são
é que posso me relacionar de maneira respeitosa e
horizontal. Dando espaço à diversidade, há respeito
pelos traços de identidade das pessoas, respeito por
quem o outro realmente é... me veio à mente uma
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diversidade

conversa que tive recentemente com Ivana – sua


filha – sobre uma amiga dela que está construindo
a sua identidade de gênero, procurando quem é.
Germán, meu filho adolescente, me disse:
É uma forma de dizer várias coisas, como diversi-
dade de gênero, espécies, árvores. Uma maneira de
dizer que existem várias coisas diferentes.
Marcelo, meu parceiro e companheiro, dedicado
ao mundo dos esportes e da engenharia, escolheu es-
tas palavras:
Procuro sinônimos, diversidade de fontes, animais,
elogios ... diferentes ... mmm não, qualificações
diferentes, elementos ... é como um cacho de uma
uva, mas não são coisas diferentes.
Monica, companheira de aventuras nas ações e
reflexões relacionadas à deficiência no ambiente uni-
versitário, questiona-se:
Diversidade, o que isso significa? O que ela deixa
de fora e o que inclui ao mesmo tempo? Se pen-
sar a partir das singularidades. Da capacidade de
abrir espaço para os outros, diferentes, como um só,
como todos...
Posicionar-se a partir de uma coordenada que nos
permita, no singular e no coletivo, outras experiên-
cias de vida!
Marcela, parceira de ativismo e luta pelos direi-
tos das pessoas com deficiência, compartilhou comigo:
A diversidade é constitutiva da condição huma-
na e de suas múltiplas formas de sentir / pensar o
mundo
E com essas palavras emprestadas, encerro este
escrito, sem deixar uma nova reflexão da minha parte,

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diversidade

mas abrindo a questão do que você poderia dizer sobre


diversidade depois de ler este escrito?
Não é que a narrativa nos dispõe ao diálogo e à
multiplicidade de sentidos, à coautoria, que neste pro-
cesso temos gerado entre aqueles que me empresta-
ram suas palavras, e quem, em um gesto de agradeci-
mento, compartilha com vocês esses conhecimentos.
Obrigada Gladys Zarenchansky, German e Marcelo
Hostar, Mónica Delgado e Marcela Mendez. E, de al-
guma forma, com vocês, leitores e leitoras. O convite
é retomar este texto com aquele registro inicial do que
você entendeu por Diversidade e colocá-la em diálo-
go com as nossas palavras. Algo mudou? O que resta?
Que novas reflexões são levantadas?

Referências
BOLVIN M.; ROSATO A.; ARRIBAS V. Constructores de otre-
dad. Buenos Aires: Ed Antropofagia, 2004.
DERRIDA J. El principio de la hospitalidad. Madrid: Trotta,
2003.
NEUFELD, M. R.; THISTED, J. A.(comps.). Los usos de la di-
versidad sociocultural en la escuela. Buenos Aires: EUDEBA,
1999.

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ayvu

Ee

ecologia de saberes
inês barbosa de oliveiraxviii

xviii
Graduada em Pedagogia Janeiro (UERJ). Ex-presidente
pela Faculdade de Educação da Associação Brasileira de
Jacobina (1982), Mestre em Currículo (ABdC – 2015-2019),
Administração de Sistemas ex-coordenadora (2003-2005)
Educacionais pelo Instituto de e membro do GT Currículo da
Altos Estudos em Educação da ANPEd e do Conselho Fiscal
Fundação Getúlio Vargas (1988) da mesma entidade (gestão
e Doutora em Sciences et Théo- 2015/2019). Bolsista de Produti-
ries de L’éducation pela Univer- vidade em Pesquisa 1C do CNPq
sité de Sciences Humaines de e da UNESA. Cientista do Nosso
Strasbourg (1993). Pós-doutora Estado FAPERJ.
pelo Centro de Estudos Sociais Atua na área de Educação, no
da Universidade de Coimbra campo de estudos do Currícu-
(2002). Diploma de Habilita- lo e do Cotidiano Escolar como
tion à Diriger des Recherches políticaspráticas cotidianas e
(HDR) pela Université de Rouen do direito à educação, traba-
(França, 2013). lhando com a questão da eman-
– sumário –

Professora Adjunta do Programa cipação social e do papel da


de Pós-graduação em Educação educação neste processo, na
(PPGE) da UNESA, Professo- perspectiva da justiça cogni-
ra titular aposentada da Uni- tiva e da cidadania horizontal,
versidade do Estado do Rio de tendo desenvolvido a noção de

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ecologia de saberes

currículo como criação cotidia- cados no Brasil e no exterior.


na. Possui livros e artigos sobre E-mail:
seus temas de pesquisa publi- inesbo2108@gmail.com

Ecologia de saberes é uma noção formulada por


Boaventura de Sousa Santos que pretende conceber e
estabelecer uma relação entre diferentes conhecimen-
tos que reconheça a interdependência entre eles e,
portanto, a impropriedade de se trabalhar com hierar-
quias apriorísticas que os classifique como superiores
ou inferiores.
Assim, a ecologia de saberes seria uma forma de
romper com a predominância da monocultura do sa-
ber (Santos, 2004) – que pressupõe a ciência moder-
na e a alta cultura como critérios únicos de verdade,
presidida, portanto, pela lógica do saber formal, que
produz a ignorância como forma de não-existência –,
pela transformação da ignorância em saber aplicado.
Para tal, é preciso aprendermos a identificar contextos
e práticas em que os diferentes saberes se tornam ope-
rantes, superando, através da sua aplicação, a igno-
rância com a qual eram anteriormente identificados.
A monocultura do saber formal é, no pensamen-
to de Santos, a fonte dos epistemicídios cometidos
pela modernidade ao longo do processo de coloniza-
ção. Esses são definidos por Santos como:

Mecanismos sociais vêm produzindo o aniqui-


lamento ou subalternização, subordinação, mar-
ginalização e ilegalização de práticas e grupos
sociais portadores de formas de conhecimento
“estranhos”, dando origem a um empobrecimento
irreversível do horizonte das possibilidades de co-
nhecimento. (Santos,1995, p. 329).

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ecologia de saberes

E a superação deles exige reconhecer que:

não há, pois, nem ignorância em geral nem saber


em geral. Cada forma de conhecimento reconhe-
ce-se num certo tipo de saber a que contrapõe um
certo tipo de ignorância, a qual, por sua vez, é reco-
nhecida como tal quando em confronto com esse
tipo de saber. Todo saber é saber sobre uma certa
ignorância e, vice-versa, toda a ignorância é igno-
rância de um certo saber. (Santos, 2000, p. 78).

A partir dessa noção, ele parte então para a for-


mulação em si da ecologia de saberes, que:

É uma ecologia porque se baseia no reconheci-


mento da pluralidade de conhecimentos heterogê-
neos (sendo um deles a ciência moderna) e em in-
terações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem
comprometer sua autonomia. A ecologia do conhe-
cimento se baseia na ideia de que conhecimento é
interconhecimento. (Santos, 2010, p. 53).

Nesse sentido, a ecologia de saberes, identificada


como a forma de ruptura com a monocultura do sa-
ber formal e viabilizada pela desinvisibilização dos
conhecimentos não-científicos e de sua legitimidade
circunstancial, é, também, uma contra-epistemologia
(Santos, 2010), na medida em que ela combate o fato de
a diversidade epistemológica do mundo ainda não ser
aceita com tranquilidade pelo pensamento hegemôni-
co da atualidade.
Outro elemento importante da ecologia de sa-
beres é o fato de que, nela, os conhecimentos e igno-
râncias se cruzam, enredando-se uns aos outros sem
que nenhuma superioridade apriorística ocorra. Essa
compreensão leva Boaventura a afirmar essa ecologia
como um processo de aprendizagens recíprocas, habi-

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ecologia de saberes

tado por desaprendizagens ou esquecimentos, escla-


recendo que a utopia do interconhecimento é apren-
der outros conhecimentos sem esquecer os próprios
(Santos, 2010). Ou seja, sem que haja ruptura ou nega-
ção dos conhecimentos de origem dos sujeitos sociais
em interação. A ecologia de saberes pressupõe, por-
tanto, o reconhecimento da interdependência entre
conhecimentos, bem como o diálogo cooperativo entre
eles na solução de problemas sociais.

Para uma ecologia de saberes, o conhecimento


como intervenção no real – não o conhecimento
como representação do real – é a medida do rea-
lismo. A credibilidade da construção cognitiva
mede-se pelo tipo de intervenção no mundo que
proporciona, ajuda ou impede. Como a avaliação
dessa intervenção combina sempre o cognitivo
com o ético-político, a ecologia de saberes dis-
tingue a objectividade analítica da neutralidade
ético-política. (Santos, 2010, p. 65).

Cabe ressaltar que esta última é considerada


pelo autor uma impossibilidade. A noção de ecologia
de saberes contribui para pensar outra noção impor-
tante para Boaventura, que é a noção de justiça cogni-
tiva. Percebida como condição para a justiça social, a
justiça cognitiva seria, nessa perspectiva, derivada do
reconhecimento da existência de diferentes formas de
produção de conhecimentos válidos para além do co-
nhecimento dito científico e buscaria assegurar que, a
priori, a relação entre eles não seria hierárquica. Essa
forma de justiça, além de ser condição para a justiça
social, não pode existir sem que os diferentes sujeitos
e grupos sociais sejam reconhecidos como produtores
e representantes de conhecimentos e culturas váli-
dos a priori e validados de acordo com sua possível
contribuição para a solução de problemas coletivos. A
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ecologia de saberes

luta contra a injustiça social prevê e supõe, portanto,


a luta contra a injustiça cognitiva, bem como o reco-
nhecimento da pluralidade epistemológica do mundo
e da copresença de múltiplos conhecimentos e valores
na vida social, permitindo o estabelecimento de uma
relação mais igualitária entre os sujeitos desses dife-
rentes conhecimentos, característica da justiça social.
Ou seja, a ecologia de saberes é posta em práti-
ca através da justiça cognitiva, do reconhecimento de
todo conhecimento como capaz de contribuir para os
processos sociais, para a solução de problemas sociais
que desafiam as sociedades de modo colaborativo e
plural. E, indo além, pode-se dizer que a democratiza-
ção das relações entre os diferentes conhecimentos,
que não são desiguais e não idênticos, reconhecendo-
-se, portanto, a legitimidade possível de todos que a
sociedade pode ampliar a intensidade de sua demo-
cracia, em direção a uma sociedade efetivamente justa
e igualitária.
Isso significa que a ecologia de saberes, como
contra-epistemologia, é, também, uma noção de ca-
ráter político, pois, em última instância, é concebida
como uma forma de contributo à construção da demo-
cracia ao romper com hierarquias entre saberes, que
se transformam em hierarquias entre os detentores
dos diferentes saberes.
A ecologia de saberes reconhece, portanto, a co-
presença de conhecimentos para além da exclusão e
desconsideração de uns em benefício de outros, recu-
perando aquilo que foi excluído e subalternizado pela
leitura de mundo ocidental com suas cisões e dicoto-
mias hierarquizantes. Com isso, pode-se chegar ao re-
conhecimento da interdependência entre os diferentes
saberes, contribuindo para a superação da dominação
de uns por outros. Praticar a ecologia de saberes, em
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ecologia de saberes

todas as suas dimensões, é, nesse sentido, tecer justiça


cognitiva e social.

A ecologia de saberes e a pesquisa narrativa


A perspectiva da ecologia de saberes é uma fer-
ramenta de grande potencial para a reflexão em torno
da pesquisa narrativa, bem como para a sua prática.
Isso porque entende-se que, na Pesquisa Narrativa, os
diferentes sujeitos interagem dialogicamente, em rela-
ções horizontalizadas, ou seja, sem hierarquias, e isso
requer que a relação entre os diferentes conhecimen-
tos desses sujeitos seja considerada interdependente e
complementar, característica dessa ecologia.
A possibilidade, portanto, inscrita na pesquisa
narrativa, de desinvisibilizar conhecimentos, expe-
riências e sujeitos que as pesquisas convencionais e
seus métodos não alcançam, valorizando conheci-
mentos presentes no cotidiano e outros, mesmo que de
modo não explícito, está no fato de a ecologia de sabe-
res existir nela. Sendo uma interação dialógica entre
diferentes sujeitos de conhecimentos plurais voltada
à criação de conhecimentos novos a partir de uma re-
lação dialógica entre eles e seus conhecimentos, essa
forma de pesquisar está em consonância com os prin-
cípios que definem a ecologia de saberes.
O reconhecimento e a credibilização dos conhe-
cimentos plurais, de sujeitos plurais, de vivências plu-
rais nas redes cotidianas que constituem os espaços-
tempos pesquisados (e a sociedade) tornam possível
a ruptura com as hierarquias e processos de exclusão
de conhecimentos e de sujeitos desses conhecimen-
tos e o estabelecimento de relações mais igualitárias
e dialógicas entre pesquisador e demais participantes
da pesquisa, todos sujeitos no/do campo pesquisado.

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ecologia de saberes

Assim, o trabalho com as narrativas permite um


melhor alcance e reconhecimento da diversidade epis-
temológica constitutiva de situações reais, dentrofora
(Alves, 2019, p. 15-16, nota 2) das escolas, levando ao
reconhecimento de existências e conhecimentos an-
tes invisibilizados, descredibilizados, marginalizados
pelo poder hegemônico e seus epistemicídios.
A pesquisa narrativa pode reverter esse processo
na medida em que sua prática pressupõe que todos os
sujeitos participantes podem expressar seus conheci-
mentos, mesmo aqueles não adaptáveis à escrita cien-
tífica e, portanto, banidos dessa escritura, já que as
narrativas não precisam se enquadrar ao modelo es-
criturístico (Certeau, 1994) hegemônico. E, nesse sen-
tido, essa forma de se pesquisar também pode contri-
buir, na medida em que pratica a ecologia de saberes,
para a promoção da justiça cognitiva, condição da jus-
tiça social ao desinvisibilizar outros conhecimentos e
outras linguagens como expressão deles.
Na ecologia de saberes, cada conhecimento apa-
rece como contribuição possível ao processo social,
sem ser discriminado nem desconsiderado a priori.
Sua validade será definida em função da sua possível
contribuição à solução de problemas coletivos, na in-
teração com outros conhecimentos, numa perspecti-
va de complementaridade e interdependência, e não
com base em nenhuma hierarquia essencialista. Com
isso, instala-se, também, uma relação mais igualitária
entre os sujeitos desses diferentes conhecimentos, ca-
racterística da pesquisa narrativa e da justiça social.
Assim sendo, o compromisso do pesquisador
com a pesquisa narrativa exige dele o reconhecimen-
to da validade daquilo que narram os diferentes inter-
locutores do processo de pesquisa, na perspectiva da

151
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ecologia de saberes

ecologia de saberes e da dialogia freireana – noções


que se juntam e dialogam entre si, como já afirma-
mos recentemente (Oliveira, 2019). Aderindo a esse
compromisso, esses pesquisadores assumem a justi-
ça cognitiva como elemento de suas pesquisas e, com
isso, se habilitam também politicamente à luta pela
justiça social e pela democracia, para as quais a ecolo-
gia de saberes constitui elemento fundante.

Referências
ALVES, N. Práticas pedagógicas em imagens e narrativas
– memórias de processos didáticos e curriculares para pen-
sar as escolas hoje. São Paulo: Cortez, 2019.
CERTEAU, M. de. A Invenção do cotidiano 1 – artes de fazer.
Petrópolis: Vozes, 1994.
OLIVEIRA, I. B. Paulo Freire e Boaventura de Sousa Santos:
sobre democracia, educação e emancipação social. In:
OLIVEIRA, I. B.; PEIXOTO, L. F; SUSSEKIND, M. L. (orgs.).
Estudos do cotidiano, currículo e formação docente: ques-
tões metodológicas, políticas e epistemológicas. Curitiba:
CRV, 2019.
SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice. O social e o político na
pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.
SANTOS, B. de S. A crítica da razão indolente. Contra o des-
perdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.
SANTOS, B. de S. Por Uma Sociologia das Ausências e
Uma Sociologia das Emergências. In: SANTOS, B. S. (org.).
Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo:
Cortez 2004.
SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das li-
nhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. S.;
MENESES, M. P. (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo:
Cortez, 2010.

152
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ayvu

escrevivência
andreia ramosxix

xix
Capixaba, nascida na Ilha de (ProPEd/UERJ/2020-2021).
Vitória, tem 45 anos, filha da Pesquisadora colaboradora do
Dona Maria de Lourdes e do Seu Grupo de Pesquisa Territórios
Ancelmo. Mãe da Maria Luiza e de Aprendizagens autopoiéti-
companheira do Soler. Um cor- cas (CNPq) e do Projeto de en-
po-mulher-negra-resistência sino, pesquisa e extensão Nar-
que gosta do mar, de amar, de radores da Maré, do Centro de
dançar, cantar, nadar, pedalar, Educação da Universidade Fe-
e de viver a vida com coragem, deral do Espírito Santo. Pesqui-
amor e esperança. sadora dos Grupos de pesquisa
Atuo como professora subs- (CNPq) Ecologias do Narrar, da
tituta do Centro de Educação Universidade Federal do Rio
da Universidade Federal do de Janeiro (UFRJ), e Currículos
Espírito Santo (2019-2021). cotidianos, redes educativas,
Trabalho com a disciplina de imagens e sons, do Programa
Educação das Relações Étnico- de Pós-Graduação em Educação
-Raciais. Doutora em Educação da Faculdade de Educação da
pela Universidade de Sorocaba Universidade do Estado do Rio
(2015-2018) e Mestra em Educa- de Janeiro (ProPEd/UERJ), em
ção pela Universidade Federal período de pós-doutoramento.
do Espírito Santo (2011-2013). E-mail:
Pós-doc no Programa de Pós- andreiatramos.ea@gmail.com
graduação em Educação

Inicio a escrita deste verbete movimentada pelo


– sumário –

sentimento de gratidão com a boniteza de convite que


recebi das queridas Patricia Baroni, Inês Barbosa de
Oliveira e Graça Reis. Emoção que fez meu corpo espe-
rançar e resistir ao tempo de pandemia que se alastrou
pelo mundo. A proposta de escrever um verbete para
153
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escrevivência

compor o livro-dicionário, referente às expressões que


usamos nas pesquisas narrativas, chegou como um
intenso desafio. Eu, como mulher negra, professora-
-pesquisadora-escritora, e-e-e, me senti honrada com
a possibilidade de escrever o verbete escrevivência,
de nossa amada Conceição Evaristo. E foi com ela que
aprendi e compreendi que

[...] um grão de areia lá no fundo do rio, só tomaria


corpo, só engrandeceria, se se tornasse matéria ar-
gamassa de outras vidas. Descobria também que
não bastava saber ler e assinar o nome. Era pre-
ciso autorizar o texto da própria vida, assim como
era preciso ajudar construir a história dos seus. E
que era preciso continuar decifrando os vestígios
do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás.
E perceber que por baixo da assinatura do próprio
punho, outras letras e marcas havia. A vida era um
tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-de-
pois-ainda. (Evaristo, 2017d, p. 109-110).

Comecei a trabalhar com narrativas em 2011


(Ramos, 2013) e, a partir desse momento, fui cada
vez mais me aprofundando nas pesquisas narrati-
vas (Ramos, 2018, 2019, 2020, 2021). Nesse caminho,
fui incorporando nos meus trabalhos, como procedi-
mento metodológico, o gênero carta como exercício de
narrar-se, aqui utilizado com valor pedagógico e me-
todológico, não pressupondo, necessariamente, o en-
vio aos destinatários. Além disso, fiz uso de diário de
campo, cadernos, cartões-postais, como processo para
registrar a escrevivência, em que me reconectei com
memórias, acontecimentos e experiências erguendo
minha voz nos processos de autocrescimento, possibi-
litando a desmontagem dentro de mim das estruturas
de dominação, a reinventar modos outros de ser e vi-
ver com liberdade. Assim, o uso da arte da escrevivên-
154
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escrevivência

cia nas pesquisas narrativas, inspirado na literatura


de Conceição Evaristo, pode ser uma criação de escrita
de si, cotidiana, como modo de cura, a partir das me-
mórias e histórias ancestrais, povoadas de experiên-
cias singulares e coletivas e históricas. São narrativas
coletivas. Desse modo, a escrevivência é um processo
criativo que nasce de dentro, do lugar das dores, mas
também das conquistas, das alegrias, dos amores e
das resistências cotidianas e seculares do povo negro.
Nas travessias do meu caminhar acadêmico,
acredito que a criação de um dicionário com expres-
sões que utilizamos nas pesquisas narrativas é ex-
tremamente necessário para tornar público nossas
experiências, de modo a compor, nas coletividades,
conhecimentos que podem colaborar com outras pes-
quisas incorporadas no campo das narrativas. Há
sempre uma história a ser contada...

[...] Maria-Nova queria sempre histórias e mais his-


tórias para a sua coleção. Um sentimento, às vezes,
lhe vinha. Ela haveria de recontá-la um dia, ainda
não sabia como. Era muita coisa para se guardar
dentro de um só peito. (Evaristo, 2017a, p. 37).

A expressão escrevivência surge nas obras da


escritora negra Maria da Conceição Evaristo de Brito,
que nasceu em Belo Horizonte, em 29 de novembro
de 1946. Conceição Evaristo publicou pela primeira
vez nos Cadernos Negros em 1990 e, a partir daque-
le momento, ajustou suas produções literárias e es-
tudos teóricos ao trabalho de professora da rede pú-
blica de ensino da capital fluminense, conciliando
com a maternidade. Ela cursou graduação em Letras
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
É Mestra em Literatura Brasileira pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e
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escrevivência

Doutora em Literatura Comparada pela Universidade


Federal Fluminense (UFF). É autora dos livros Ponciá
Vicêncio (2017d), Becos da Memória (2017a), Poemas da
recordação e outros movimentos (2017c), Insubmissas
lágrimas de mulheres (2016a), Histórias de leves en-
ganos e parecenças (2017b) e Olhos D’Água (2016b),
para citar alguns. Uma escrita marcada pela vida de
mulher negra. Uma escrita não para adormecer, mas
sim para incomodar, perturbar, causar desconforto.
Uma escrita como denúncia, em que nós, mulheres
negras, nos sentimos em casa. Uma escrevivência po-
ética que (con)funde com a minha. Vida pessoal-aca-
dêmica entrelaçada com a literatura da arte de traçar
a escrevivência...

Portanto estas histórias não são totalmente mi-


nhas, mas quase que me pertencem, na medida
em que, às vezes, se (con)fundem com as minhas.
Invento? Sim invento, sem o menor pudor. Então
as histórias não são inventadas? Mesmo as reais,
quando são contadas. Desafio alguém a relatar fiel-
mente algo que aconteceu. Entre o acontecimento
e a narração do fato, alguma coisa se perde e por
isso se acrescenta. O real vivido fica comprometi-
do. E, quando se escreve, o comprometido (ou o não
comprometido) entre o vivido e o escrito aprofunda
mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar
estas histórias, continuo no premeditado ato de
traçar uma escrevivência. (Evaristo, 2016a, p. 7).

Com a literatura de Conceição Evaristo, é possí-


vel traçar nas pesquisas narrativas a arte da escrevi-
vência de narrativas que carregam sentimentos, ges-
tos, afetos, amizades, tensões, conflitos, negociações,
que compõem as lembranças das experiências da vida
singular e coletiva. Praticar a arte da escrevivência é
estilhaçar a máscara do silêncio (Evaristo, 2017e, s/

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escrevivência

pág.), uma escrita como exercício de narrar-se, que é


também povoada por outras escritas, no movimento
de olhar para o passado a partir de uma perspectiva
diferente e usar esses conhecimentos como um meio
de autorrecuperação e mudança prática nos nossos
cotidianos.
Nesse sentido, Conceição Evaristo afirma que
apresentou esse termo escrevivência em 1995, em um
seminário que tinha uma mesa composta por escri-
toras negras. Faz um bom tempo que tem usado essa
expressão, referente à escrita de mulheres negras.
Assim,

[...] a nossa escrita, a nossa escrevivência não é


para adormecer os da casa-grande e sim para acor-
dá-los dos seus sonhos injustos. Esse termo, quan-
do eu uso essa expressão, eu tenho como referência
um momento histórico, um processo da história
da escravização dos povos africanos no Brasil. E o
pano de fundo dessa escrevivência, que na verda-
de essa escrevivência você pode pensar [...] tam-
bém como o outro lado da oralidade, ou você pode
pensar essa escrevivência, quando as pessoas até
então lidaram só com a oralidade, [...] se apropriam
da escrita, então essa imagem de fundo, eu trago a
imagem das mulheres escravizadas dentro das ca-
sas dos senhores, das mucamas, das mães pretas, e
elas tinham por obrigação de contar histórias para
adormecer os da casa-grande. [...] Essas mulhe-
res com a competência oral que elas tinham, com
competência de linguagem que elas tinham, elas
oralmente contavam histórias para adormecer os
da casa-grande. Quando eu penso escrevivência eu
já vejo, escritoras negras, [...] que já tem essa possi-
bilidade da escrita, essas escritoras vão se apossar
de um modo de fazer literário, que está muito mais
ligado às classes dominantes. Essas mulheres se
apropriam dessa possibilidade de escrita, desen-
volvem essa escrita, mas não para adormecer os da
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escrevivência

casa-grande e sim para acordá-los dos seus sonos


injustos. [...] Essa escrevivência [...] a gente pode re-
lacionar [...], tanto como uma forma de escrita alfa-
bética hoje, como também você pode pensar numa
forma de outras escritas, escritas que não se dão só
pelo alfabeto, mas que se dão pelo corpo, pelo ges-
to, pela voz, pela expressão, e aí essas são as possi-
bilidades da oralidade, essas são as possibilidades
da fala. E a escrevivência tem muito também a ver
com uma escrita que nasce de uma experiência,
que nasce de uma vivência, nesse caso é uma es-
crita que nasce de uma experiência de uma vivên-
cia das subjetividades das mulheres negras. Eu
gosto muito de afirmar que minha escrita, a minha
escrevivência, [...] é marcada pela minha condição
de mulher negra na sociedade brasileira. (Evaristo,
2017f, s/pág.).

Nesse contexto, praticar a escrevivência nos co-


tidianos das pesquisas narrativas é pensar que os es-
critos de Conceição Evaristo nascem profundamente
marcados pela condição de ela ser mulher negra na
sociedade brasileira, é uma escrevivência que se dá
por meio dessa vida do povo negro. Experiências das
coletividades negras. Praticar a arte da escrevivência
nas pesquisas narrativas é registrar as vivências, as
histórias que os cotidianos nos oferecem. Um proces-
so de escrita das memórias do passado em conexão
com o presente, ligado à ancestralidade no planeja-
mento do futuro.
Nas pesquisas narrativas com o uso da arte da
escrevivência (Evaristo, 2020, on-line), trabalhar esse
passado é uma maneira de reivindicar e fortalecer
nossos processos históricos afro-brasileiros e africa-
nos no sentido ancestral. Com a escrevivência nas
pesquisas narrativas, podemos criar textos com ape-
quenados gestos de afetos arrancados das agruras da

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escrevivência

vida cotidiana. Histórias que são narrativas de modo


poético com a arte da escrevivência a partir das obser-
vações cotidianas, que têm relação com minhas ex-
periências de vida, também coletivas e históricas, que
surgem de processos de criação nascidos de dentro da
descendência que já vivenciou a subalternidade.
E para in’concluir, destaco que praticar a arte da
escrevivência nas pesquisas narrativas é uma experi-
ência que tem relação com o seu lugar social, no meu
caso, com minha experiência de gênero, etnia e classe,
como uma mulher-negra-professora-pesquisadora-
-escritora-filha-mãe-amiga-companheira-colega-e-e-
-e-e-e-e-e-e.
Minha escrevivência nasce na oralidade gruda-
da com a vida cotidiana, uma possibilidade de diálogo
como processo de criação de outros modos de discur-
sos, outras narrativas, que se desviam da escrita hege-
mônica, inventando outros mundos possíveis. Assim,
a escrevivência nas pesquisas narrativas é uma pos-
sibilidade de escrita de registro de vidas, a escrita de
mulheres negras.

Referências
EVARISTO, C. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de
Janeiro: Malê, 2016a.
EVARISTO, C. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016b.
EVARISTO, C. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas,
2017a.
EVARISTO, C. Histórias de leves enganos e parecenças. Rio
de Janeiro: Pallas, 2017b.
EVARISTO, C. Poemas da recordação e outros movimentos.
Rio de Janeiro: Pallas, 2017c.
EVARISTO, C. Ponciá Vicêncio. Rio de Janeiro: Pallas, 2017d.

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escrevivência

EVARISTO, C. Conceição Evaristo: “Nossa fala estilhaça a


máscara do silêncio”. Entrevista concedida à Carta Capital.
2017e. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/
sociedade/conceicao-evaristo-201cnossa-fala-estilhaca-a-
-mascara-do-silencio201d/. Acesso em: 22 out. 2019.
EVARISTO, C. Conceição Evaristo: Escrevivência – Episódio
01 da série Ecos da Palavra. Instituto Tear. 25/09/2017f.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=4EwKXpTIBhE. Acesso em: 3 abr. 2021.
EVARISTO, C. CONCEIÇÃO EVARISTO | Escrevivência.
2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-
QXopKuvxevY&t=6s. Acesso em: 3 abr. 2021.
RAMOS, A. T. Educação ambiental entre os carnavais dos
amores com os mascarados do congo de Roda D’Água. 2013.
142 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013.
RAMOS, A. T. Mulheres no congo do Espírito Santo: práti-
cas de re-existência ecologista com os cotidianos escola-
res. 2018. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de
Sorocaba, Sorocaba, 2018.
RAMOS, A. T. Narrativas autobiográficas de uma mulher ne-
gra: identidades sociais de raça e gênero. Travessias, v. 13,
n. 3, 2019.
RAMOS, A. T. Mulheres de Barro: análise fílmica de pane-
las, congo e amor. In: CAZÉ, Bárbara Maia Cerqueira (org.).
Mulheres negras na tela do cinema. Vitória: Pedregulho,
2020.
RAMOS, A. T. Marielle Franco, a potência da insubmis-
são! Sul-Sul – Revista De Ciências Humanas e Sociais, n. 1
(Especial), 2021.

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ayvu

escuta visual
lucia vignolixx

xx
Doutora em Arte e Cultura lógica. Atualmente pesquisa a
Contemporânea (UERJ). Profes- confluência entre Arte e Agro-
sora de Artes do Institu- ecologia na educação com
to Nacional de Educação de surdos e realiza os projetos
Surdos (INES/ RJ). Participa do Horta-oca, Estandartes e Plan-
grupo de pesquisa ArteGesto- tar Ideias.
Ação, tecendo práticas que se E-mail:
interligam para uma educação luciavig@gmail.com
antirracista, feminista e eco-

As palavras: Nada têm a ver com as sensações,


palavras são pedras duras e sensações delica-
díssimas, fugazes, extremas.
– Clarice Lispector.

Andar, viver, transitar entre línguas – a portugue-


sa e a brasileira de sinais, nos acontecimentos-aulas
no Instituto Nacional de Educação de Surdos – trouxe
à furo a percepção de um modo escuta visual, estado
sensível de percepção, no qual estão em jogo a ampla
leitura de um discurso que se inscreve no corpo.
O corpo narra e é a própria narrativa.
– sumário –

Corpo, a se mimetizar em sujeito, e também


paisagem, e ambiente, e verbo, e palavras e ações.
Movimento contínuo. Semântica expressa em gestos.
Corpo é discurso.
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escuta visual

Escuta visual; cuidado e atenção plena em um


conjunto de movimentos, expressões faciais e corpo-
grafias pulsantes.
Mergulho que deseja ler uma escrita que se es-
praia no ar, no espaço, através do corpo em ato, no en-
contro com o outro, aquele que invade.
Ativação de uma antena assentada na visão, que
ousa decifrar e ler gestos e intenções; busca por não se
aferrar ao já conhecido.
Renunciar a literalidade da gramática e abraçar
a possível artesania da conversa impressa pela corpo-
ralidade em ação.
A língua treme. O outro invade.
Gestos e sintaxes flertam, encantam, por vezes
provocam atritos.
Há amor e tremor.
[...] os trabalhos na sala de aula são de amor. E
o que antes foi trabalho rotineiro e árduo, se converte
agora em um estranho tremor, mistura de atração e
medo, esse que se sente quando tudo é desejo e pro-
messa e não há segurança nem garantias (Larrosa,
2018, p. 332).
Amor e tremor pulsam nas entrelinhas, vibram
pelos trajetos dos sinais.
Entrelinhas, entregestos, fluxos de ideias-força
latejam.
O olhar percorre os sinais.
Falar exige a convocação de um corpo; um con-
vite a dançar.
A conversa-bailado, itinerário em trocas contí-
nuas, sem começos nem términos.
Artesania da conversa alinha-se ao que brota no
poeta.
Se vale do gesto de colheita, de capturas das
miudezas.
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escuta visual

Germinação, no contato cotidiano das aulas com


surdos:

O que pode o corpo?


O que pode o corpo? – perguntou o filósofo.
Silêncio,
Assombro,
Movimento,
Inércia.
O que pode o corpo...?
O toque inesperado na pele desconfiada?
O gesto, mínimo, que agiganta os instantes?
O olhar que, fixo, desampara o relógio, penetrante?
O que pode o corpo,
Trêmula flâmula de presença,
Flecha que atravessa dias, horas, segundos,
Ponteiro que aponta deslimites e
[improbabilidades?
O que pode o corpo? – me pergunto.
Insígnia de histórias milenares gravadas na carne,
Lugar de encontro entre vidas quaisquer,
Ponto de inflexão entre tantas singularidades
[múltiplas.
O que pode isso que nos habita e que pensamos
[habitar?
Voz é corpo;
Choro é corpo;
Gesto é corpo.
Corpo é um acontecimento no mundo – e uma
[presença.
Mil presenças.
O que pode o corpo?
O que pode um corpo?
O que pode ele não?
(Ribeiro da Silva, 2019, p. 86)

Ressoa o estado presença integrando a elipse do


já da vida.

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escuta visual

Viver o desapego ao senso exato, sensibilizar a


língua para potencializar a captura de micro movi-
mentos. Saborear uma narrativa que convoca sensa-
ções até então submergidas. Fugazes, extremas.
Roçar a língua, molhar palavras e provocar
o sumo que rompe as camadas do já estabilizado.
Palavras, pedras duras, podem ser dançadas, vividas
na potência do encontro, na produção de presença, no
contato da pele, passando entre arrepios, contrações e
afagos.
Na encruzilhada das percepções, conversar exi-
ge todo o corpo, compreende compor textos e discur-
sos com toda a vida.

Estar presente. Para nós, gestos políticos são mi-


núsculos, mínimos, tecidos no aqui e agora, entre
nós; são fruto de relação, convite à escuta e autoli-
bertação de si mesmo: afirmação de modos singu-
lares de existência no mundo; vozes, corpos, vibra-
ções, presenças, territórios…E o que muda quando
são a vida e as experiências vitais os princípios que
regem nossas ações e apostas formativas e educa-
tivas? O que muda quando, no lugar de políticas
normatizantes, entoamos os tambores e atabaques
dos gestos que, na miudeza cotidiana, conformam
mundos? (Ribeiro da Silva; Skliar, 2020, p. 20).

Conversar em língua de sinais é chamado para


articular emoções, musculaturas e significados
adormecidos.
Há que se permitir desvelar novos sulcos escon-
didos, afirmando a condição movente de percorrer ro-
tas desconhecidas.
Silenciar o fluxo narrativo interno, a torrente de
palavras e calar substancialmente.
Renunciar a certezas e julgamentos. Abrir cami-
nhos para escutar mais profundamente.
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escuta visual

Rasgar os limites aos quais nos impomos, reco-


nhecer a nossa condição ‘sob rasura’.
Manchar as fronteiras e criar espaços nas con-
versas em língua de sinais para a brotação de sentidos.
Há brotação de coisas quando nos encontramos,
partilhamos saberes e sabores, quando estamos jun-
tos, quando conversamos, quando olhamos e nos de-
safiamos a escutar visualmente… Porque escutar visu-
almente é sentir o outro...
Há brotação de ideias porque, como na vida,
a relação de alteridade é puro transbordamento e
provocação...
Escutar visualmente exige exercitar a ampla
percepção, na qual conhecer é a vontade de renunciar
a conhecer, de declinar a interpretar, traduzir ou expli-
car: uma relação, então, na qual a voz de um e de outro
se escutam mutuamente (Skliar, 2014, p. 49).
A escuta visual se ancora no sentido da visão e
adere a outros sentidos; olfato, tato, intuição. Toda a
engenharia se expressa nos gestos que falam, gritam,
sonham, desejam.
A corporalidade exercendo presença em alta
densidade conectiva. Ativa-se o faro, animal.
Escutar visualmente é lançar-se à aventura de
ler um texto-corpo.
Ouvir um corpo-voz.
A língua de sinais arremessa o corpo ao espaço,

não serve, apenas, para a socialização: é uma


questão de vida. Uma língua viva e compartilha-
da pelos seus iguais; uma língua visual que traz
sentidos expressivos e que produz significados e
artefatos culturais do povo surdo; e, acima de tudo,
uma língua com todas as peculiaridades linguís-
ticas e com o mesmo valor das línguas orais. (Re-
zende, 2010, p. 149).

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escuta visual

O modo escuta visual vem sendo captado no


cristalino das conversas com surdos e nas trocas te-
cidas entre nós, integrantes do grupo de pesquisa
ArteGestoAção, sediado no Instituto.
Ao modo já da vida, vamos nos propondo possí-
veis espaços de ampla escuta, permeados por indaga-
ções e desejos.
Em aulas-encontros são acionados gatilhos que
nos inquietam.
Relatos e projetos se enredam, lançando dúvidas
e propósitos.
Nos perguntamos: O que se passa entre gestos,
olhares e movimentos durante aulas com alunos sur-
dos e professores ouvintes? O que nos move? Há si-
lêncio? Qual silêncio? Desde qual ponto de vista? As
indagações provocam a criação de procedimentos,
proposições e materiais específicos para a constitui-
ção de um processo no qual educar é transbordar li-
mites, transbordar a escola e seus modos de ser, estar,
aprender e ensinar; descolar as práticas do ouvido em
busca de uma pedagogia surda. (Gomes da Silva; Lyra;
Vignoli; Ribeiro, 2019)
A via, mão dupla: aulas-conversas acontecem no
contato de mundos, de corpos, na afirmação de pen-
sar com o outro sem abdicar da singularidade do olhar
próprio, compondo uma arquitetura narrativa borda-
da nas delicadezas, extremas, fugazes, do encontro de
línguas que fluem juntas, que desejam compreender-
-se mutuamente.
A ampla escuta, visual, transcende em atos, par-
cerias e cuidados, por uma ética da amizade, na tes-
situra de uma educação bilíngue de surdos atenta ao
sujeito real, de carne e osso, presente na relação edu-
cativa, assumindo o aluno surdo como outro potente
e legítimo no processo de fazer-se docente cotidiana-
166
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escrevivência

mente, com o outro, com os estudantes e sua presença


única no mundo, seu corpo-narrativa que pede uma
escuta corporal, visual, abrindo todos os sentidos.
Escuta visual: escuta sensível, tecida na empatia
e como gesto (quase) de amizade.

Na amizade há uma conversa feita com palavras


e sem palavras: a manifestação extrema do estar,
que não admite cognição nem superposição nem
autoridade. Trata-se de uma existência com a qual
se pode contar na presença e na ausência: a pro-
ximidade nunca é suficiente, a distância nunca é
demais. (Skliar, 2014, p. 49).

A escuta visual é partilhar o sensível, rein-


ventar espaços e temporalidades na dinâmica da
circularidade.
A ciranda-aula ensina a viver a escuta visual e se
desenha no cruzamento de múltiplos olhares e gestos.

Assim são os surdos: redesenham e reinventam os


espaços e as relações, fazem comunidade e são co-
munidade: no coletivo, a potência e a positividade
do ser surdo irrompe na forma de uma singulari-
dade experiencial que nos fala de um mundo que
é mais complexo e que abarca muito mais expe-
riências possíveis do que as que somos capazes
de viver e significar com nossos corpos, crenças
e preconceitos; o corpo surdo chama-nos a escu-
tar visualmente, a aprender vendo e vivenciando a
experiência da estética surda (o que engloba uma
ética, uma política e uma arte do fazer e viver).
(Ribeiro; Gomes da Silva; Vignoli, 2019, p. 240).

Referências
GOMES DA SILVA, A.; LYRA, J.; VIGNOLI, L.; RIBEIRO, T.
Conversa no Silêncio? - Sobre atenção, presença e escuta
visual na educação de surdos. In: FALA OUTRA ESCOLA,

167
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escuta visual

9., 2019, Campinas. Anais [...]. Campinas: Unicamp, 2019.


Disponível em: https://proceedings.science/fala-outra-es-
cola-2019/papers/conversa-no-silencio----sobre-atencao-
--presenca-e-escuta-visual-na-educacao-de-surdos?lang=-
pt-br Acesso em: 18 mai. 2021.
LARROSA, J. Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício de
professor. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
LISPECTOR, C. As palavras: Nada têm a ver com as sensa-
ções, palavras são pedras duras e sensações delicadíssi-
mas, fugazes, extremas. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
REZENDE, P. L. F. Implante coclear na constituição dos sujei-
tos surdos. 2010. Tese (Doutorado em Educação) – Programa
de Pós-Graduação em Educação, Centro de Ciências
da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2010.
RIBEIRO, T.; GOMES DA SILVA, A.; VIGNOLI, L. Sobre expe-
riência, currículo e formação: tornar-se docente de jovens
e adultos surdos no cotidiano de uma escola bilíngue. In:
GONÇALVES, R. M.; RODRIGUES, A. RIBEIRO, T. (orgs.).
Cotidianos e formação docente: conversas, currículos e ex-
periências com a escola. Rio de Janeiro: Ayvu, 2019.
RIBEIRO DA SILVA, T. Por uma alfabetização sem cartilha:
Narrativas e experiências compartilhadas no fórum de alfa-
betização, leitura e escrita da UNIRIO. 195f. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
RIBEIRO DA SILVA, T.; SKLIAR, C. B. Escolas, pandemia e con-
versação: notas sobre uma educação inútil. Série-Estudos,
v. 25, n. 55, 2020.
SKLIAR, C. Desobedecer a linguagem: educar. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2014.

168
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ayvu

escutatória
deise guilhermina da conceiçãoxxi
silene orlando ribeiroxxii

xxi
Professora de História da Indígenas e do Indigenismo no
rede pública municipal do Rio Brasil. Vem realizando pesqui-
de Janeiro e pesquisadora do sas sobre as populações indíge-
Museu Vivo do São Bento, em nas no Rio de Janeiro e na Bai-
Duque de Caxias. É historiado- xada Fluminense. Graduou-se
ra com ênfase na História das em História pela Universidade
Populações negras do Brasil. do Estado do Rio de Janeiro
Realiza pesquisas sobre com- (UERJ). Realizou o mestrado em
bate ao racismo e a discrimina- História na Universidade Fede-
ção racial. Graduou-se em His- ral Fluminense (UFF). Obteve
tória e realizou o mestrado em o título de doutora em História
Educação Federal Fluminense na Universidade Federal Rural
(UFF). Obteve o título de Dou- do Rio de Janeiro (UFRRJ). Pu-
tora em Educação na UFF com blicou os livros Maçã Mordida
período Sanduíche na Universi- (2012) e Índios, Guerreiros e
dade do Texas (USA). Úteis Povoadores: um estudo
E-mail: sobre a Aldeia de São Pedro de
deisehis@gmail.com Cabo Frio - Séculos XVII-XVIII
(2015).
xxii
Professora de História da
rede pública estadual do Rio de E-mail:
Janeiro. É historiadora com ên- sileneorlandoribeiro@gmail.
fase na História das Populações com

Segundo o tempo cronológico, tratava-se do


– sumário –

ano 2000 quando nós, as autoras, nos conhecemos.


Enquanto Silene era recém-formada do curso de
História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Deise cursava o mesmo curso na Universidade Federal
Fluminense. Além da formação em História, tínhamos
169
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escutatória

em comum o trabalho como professoras de crianças


em uma escola pública da periferia do Rio de Janeiro,
o vigor e a astúcia, muito comuns às jovens de pouco
mais de 20 anos.
Em comum também tínhamos o fato de sermos
mulheres pretas, conscientes de nossas raízes afro-
-indígenas e de origem humilde que vislumbravam
a carreira acadêmica, a produção do conhecimento
científico e, para além de tudo isso, contribuir para a
transformação da sociedade brasileira, marcada por
diversas formas de desigualdade e discriminação. Já
naqueles tempos, percebíamos a produção e toda efer-
vescência de conhecimento que emanava das comu-
nidades pobres e das favelas cariocas. Partilhávamos
os arranjos sociais dos subúrbios e as construções que
emanam dos grupos menos favorecidos.
Logo entendemos a importância de ouvir, de es-
cutar, de consumir e de devorar as histórias que nos
cercavam e que esquadrinhavam outras possibilida-
des de ser e estar no mundo. Num movimento antropo-
fágico, abrimos as portas da alma e nos alimentamos
com as narrativas que pulsavam vida e descortina-
vam saberes e experiências.
Meninas pretas da periferia que ouviram que era
preciso estudar para ser alguém. Ao mesmo tempo,
ouvíamos as rezas das avós e os contos das tias que
falavam de uma gente que viveu há tempos e que su-
perou muitas dificuldades, apesar de não terem consu-
mido o tal saber imprescindível.
De tanto ouvir e buscar o tal conhecimento de
que nos tornáramos “alguém na vida”, nós, ainda me-
ninas pretas, estudamos e nos tornamos professoras.
Professoras da mesma periferia que sempre produziu
e compartilhou conosco muitas histórias. Ensinamos
outras meninas pretas que também não estavam nos
170
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escutatória

livros, nas revistas e na tv, mas que também tinham o


sonho de um dia “serem alguém”.
Desse cotidiano fértil, movido por tantos afetos,
por conhecimentos que circulavam dentro de uma co-
letividade, eclode a escutatória. Movimento que con-
grega nossas raízes ancestrais e de forma horizontal
concorre para a produção de outros conhecimentos
para além de uma única cosmogonia europeia e que
conclama a coletividade.
De nossa trajetória na Educação Básica, da ne-
cessidade de compartilhar o conhecimento produzido
pelas periferias e de nossas experiências enquanto
mulheres pretas e professoras, se dá a nossa percep-
ção acerca da escutatória. Mais do que uma metodo-
logia de pesquisa, trata-se de um movimento marcado
por afetos, empatia e a hospitalidade que sempre es-
teve presente em nossa ancestralidade banta, hospi-
talidade que convida a compartilhar memórias, senti-
mentos e sensações que são tão caros a quem guarda.
Movidos por empatia, falante e escutador são
parceiros num processo de partilha do vivido. Há afeto
na construção, na circulação e na forma como é com-
partilhado. Como acontece nas sociedades não-euro-
peias, a potência da oralidade que permeia todas as
relações e a circulação dos saberes sempre demandou
um cuidadoso ato de escuta.
Destacamos que a oralidade e a transmissão do
conhecimento a partir da fala é bastante significativa
entre os povos africanos. Dentre esses, destacamos a
tradição iorubá na qual a fala tem o poder de conso-
lidar e transmitir cultura, história e identidade. Como
proposto por Santos (2020), a riqueza dessa consta-
tação se corporifica quando reverte um paradigma
moderno, em relação à transmissão e construção do
conhecimento, que opõe a falta do registro escrito ou
171
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escutatória

textual a um modelo do conhecimento ocidental mo-


derno e amplamente validado na academia.
O poder da fala, que está presente na cultura bra-
sileira e que se reinventa a cada geração, ultrapassa
paradigmas e limitações impostas pelo racismo ao
mesmo tempo em que ratifica nossa ancestralidade.
Força com a qual nos deparamos em nossas in-
fâncias e juventudes e no fazer docente em escolas da
periferia do Rio de Janeiro e nos forjou, como proposto
por Freire (2001), como ensinantes aprendizes que, a
todo tempo, se transformam com a cultura e as possi-
bilidades que emanam do cotidiano.
Se o cotidiano diz, há de se ouvir. Tão importante
quanto a capacidade de oralizar a vida e o tempo, é a
arte de ouvir. Nos transformarmos a partir daquilo que
escutamos e permanecemos abertas a tudo aquilo que
emana da sociedade
Propomos uma leitura de nossa ancestralida-
de, despida de dicotomias e capaz de agregar muitas
possibilidades. Leitura que passa também pela des-
construção do pensamento colonial que nos educou e
implica uma nova concepção acerca da produção do
conhecimento. Como proposto por Casanova (2002),
esse processo requer a desconstrução de nosso colo-
nialismo interno, presente em nossas relações, sím-
bolos, produção de imagens, construção do conheci-
mento e que hierarquiza a forma como percebemos as
relações de grupos étnicos.
Se por um lado o colonialismo interno opera no
nível social e coletivo, também se dá na esfera in-
dividual, na forma como cada um de nós percebe a
produção de conhecimento e as sociedades ances-
trais africanas. É necessário um processo decolonial1
1
Segundo Suess (2019), a perspectiva decolonial refere-se à ruptura
com o eurocentrismo; à busca de uma nova civilidade e novas for-
172
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escutatória

no nível do sujeito e dos pequenos grupos. Um pro-


cesso cotidiano e constante de reafirmação e recons-
trução da forma com percebemos outras epistemo-
logias e possibilidades de habitar o mundo, abrindo
caminhos para pensar na forma como as sociedades
não europeias entendem suas tradições, as redes que
se formam nesse processo e no caráter coletivo do
conhecimento produzido.
A escutatória é por excelência uma proposta an-
tirracista na medida em que se baseia numa releitu-
ra da contribuição dos povos ancestrais para a nossa
cultura, desconstruindo ideias equivocadas sobre a
inferioridade do conhecimento por eles produzidos,
como destacamos anteriormente. Hospitalidade, afeti-
vidade e horizontalidade são as bases dessa proposta
que considera as falas das populações africanas e in-
dígena. Falas que foram silenciadas de diferentes for-
mas ao longo dos processos de colonização da África
e da América.
A razão eurocêntrica invalidou a poesia, a fala
materna, os vínculos com a ancestralidade, o elemento
lúdico e a artisticidade presentes nos falares afro-in-
dígenas. Um bom exemplo desse processo foi a publi-
cação de um decreto do século XVIII2 que proibia que
mas de organização espacial; e ainda, à interculturalidade crítica e
à transculturalidade como importantes ferramentas para um novo
projeto de sociedade.
2
Na segunda metade do século, Sebastião José de Carvalho e Melo,
ministro de D. José I, rei de Portugal, que viria se tornar o Marquês
de Pombal, elaborou o Diretório que se deve observar nas povoa-
ções dos índios do Pará e do Maranhão enquanto sua majestade
não mandar o contrário. A publicação dessas medidas ocorreu em
3 de maio de 1757. O alvará de 17 de agosto de 1758 transformou as
medidas em lei. A imposição da língua portuguesa para as popu-
lações indígenas fazia parte de um projeto que visava tanto aca-
bar com as distinções entre os súditos indígenas e não-indígenas
como explicitar a soberania portuguesa na fronteira sul da Améri-
173
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escutatória

os indígenas no Brasil falassem as línguas maternas.


O uso da Língua Portuguesa de forma compulsória e
violenta impactou esses grupos. Mesmo com o proces-
so de dominação, as mestiçagens étnicas e culturais
geraram falares afro-ameríndios.
Os estudos linguísticos foram revelando que os
idiomas nativos da África e da América continham
verdadeiros mundos. Conceitos e noções muito com-
plexas não observadas nas línguas latinas e anglo-
-saxônicas e que extrapolavam as rasas representa-
ções dessas alteridades construídas pelos europeus.
A escutatória reconhece a importância dessas vozes
afro-indígenas na formação da cultura brasileira, con-
tribuindo para que as falas ancestrais sejam reconhe-
cidas como chaves de entendimento e compreensão
das pessoas, das coisas e das sociedades. Sendo as-
sim, há uma dimensão decolonial no processo de afir-
mação da autonomia e da densidade de conhecimen-
tos que impregnam essas falas. Não se trata de apenas
ouvir o outro, mas é a escuta empática, compromissa-
da em captar as experiências lúdicas e poéticas que
estão envolvidas nessa empreitada.
Lélia Gonzalez (1988) cunhou o conceito de
Améfrica para se referir às relações e construções cul-
turais, linguísticas, sociais advindas dos processos
de mestiçagens e da condição afrodiaspórica. O que
emerge no Brasil é o falar amefricanês carregado de
emoção e ancestralidade. Cada itan3 é um universo.
ca portuguesa através da população indígena falante do português
que habitava aquelas regiões. Essas questões fomentaram políti-
cas linguísticas de apagamento dos nomes e idiomas nativos. Para
maiores informações sobre esta questão, ver Garcia (2007).
3
O vocábulo itan é de origem ioruba e significa uma narrativa míti-
ca. Geralmente, os itans versam sobre os orixás do candomblé, suas
trajetórias e especificidades, oferecendo visões cosmogônicas, cos-
mológicas e filosóficas africanas.
174
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escutatória

As mitologias ameríndias evidenciam complexas cos-


mogonias. Entender as alteridades também comporta
um processo sensível de escuta e apreensão dos dife-
rentes saberes que as constituem. A escutatória rompe
com a assepsia da ciência eurocêntrica para celebrar a
palavra dançada, cantada e que é poema-ciência.
O processo de produção e circulação dos saberes
nas sociedades amefricanas segue o ritmo da natu-
reza, o percurso sinuoso dos rios, a sazonalidade que
atravessa as vidas e os corpos das mulheres, dos ho-
mens e das crianças. Muitos itinerários fazem-se pre-
sentes nesses processos. O tempo de plantar, de colher,
de nascer, morrer, de refletir, de reconhecer as múlti-
plas falas e as diversas ecologias no mundo externo e
interno de cada ser humano. As pessoas, seus corpos,
labores, afetos, dores, sonhos e os conhecimentos ad-
quiridos ao longo da existência não são fragmentários.
A perspectiva holística e a inteireza da pessoa huma-
na estão muito presentes nestes universos. A oralida-
de demanda a existência de uma escuta complexa e
ancestral sobre as diversas falas dos seres humanos e
dos mundos dos quais são portadores.
As danças circulares, a roda dos afetos e das me-
mórias mostram como o saber também circula, pe-
rambula de corpo em corpo. As memórias, histórias e
ancestralidades vivem nesses corpos recitados como
litanias, cantadas e contadas pelos velhos aos jovens.
Não há construção de conhecimento que não implique
em afetividade, emoção, relações dialógicas e funda-
das na ancestralidade. Ensinam-nos sobre a assepsia
dos afetos e a primazia da racionalidade. O dilema que
se instaura na África e nas Américas com os contatos
interculturais com os europeus é justamente o da ne-
gação da complexidade das epistemologias africanas
e ameríndias.
175
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escutatória

No entanto, os processos de decolonização,


as insurgências protagonizadas pelas mulheres,
LGBTQIA+s, pelos povos indígenas, pelo povo preto,
pelos quilombolas, pelos operários têm revelado um
outro panorama em um mundo marcado pelo capi-
tal e pelas relações líquidas. Esses sujeitos históricos
têm mostrado que nunca pararam de falar de si e de
seus pertencimentos. Essas vozes ecoaram ao longo
dos séculos através de inúmeras estratégias de resis-
tência, sensibilizando intelectuais e pesquisadores.
Romperam as barreiras sociais e também estão nos
centros de pesquisa e universidades através dos inú-
meros intelectuais de origem afro-indígena e popular.
Essas transformações também reverberam no
espaço escolar. Freire (2007) nos aponta a dimensão
dialógica e libertadora da educação mostrando e refle-
tindo sobre esses processos onde professor/estudante,
ensinantes aprendentes têm um papel crítico e funda-
mental no processo de construção do ato de educar. A
escutatória dinamiza relações humanizadas de cunho
não-capitalista, propondo que o educador esteja aten-
to às epistemologias ancestrais, aos saberes populares
e às falas e também aos silêncios que constituíram a
pessoa do aprendente. Falar de si é um exercício de
crescimento, valorização do ser e de autonomia. O aco-
lhimento dessas falas se dá através da escutatória.
Nesse processo de acolhimento de nossas episte-
mologias ancestrais, nós, professoras pretas que car-
regam tantas vozes, tantas experiências, tornamos a
ser as meninas pretas da periferia, ávidas por apren-
der, aprender com a vida, com nossos ancestrais, no
ritmo próprio do cotidiano de quem apenas está come-
çando a sua trajetória.

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escutatória

Referências
CASANOVA, P. G. Exploração, colonialismo e luta pela de-
mocracia na América Latina. Rio de Janeiro: Vozes; Buenos
Aires: Clacso, 2020.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa. 36ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
FREIRE, P. Carta de Paulo Freire aos Professores. Estudos
Avançados, v. 15, n. 42, 2001.
GARCIA, E. F. O projeto pombalino de imposição da lín-
gua portuguesa aos índios e sua aplicação na América
Meridional. Revista Tempo, v. 23, 2007.
GONZALEZ, L. A categoria político-cultural de amefricani-
dade. Tempo Brasileiro, n. 92/93, 1988a.
MUDIMBE, V. Y. A invenção de África: Gnose, filosofia e a
ordem do conhecimento. Petrópolis: Editora Vozes, 2019.
CUSICANQUI, S. R. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre
prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta
Limón, 2010.
SUESS, R. C.; SILVA, A. de S. A perspectiva descolonial e a
(re)leitura dos conceitos geográficos no ensino de geografia.
Geografia Ensino & Pesquisa, v. 23, 2019.

177
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ayvu

experiência
andreza bertixxiii
rosa malena carvalhoxxiv

Doutora em Educação. Peda-


xxiii
E-mail:
goga, normalista e professora andrezaberti@gmail.com
com experiência na educação xxiv
Professora Associada no
pública da educação infantil Instituto de Educação Física
ao ensino superior. Atualmen- da UFF. Professora credenciada
te integra a equipe gestora do no Programa de Pós-Graduação
Colégio de Aplicação da Uni- em Educação – Processos For-
versidade Federal do Rio de mativos e Desigualdades So-
Janeiro, atuando como diretora ciais da FFP-UERJ. Coordena o
adjunta de ensino. Pesquisa- Grupo de Pesquisa ELAC (Edu-
dora nos campos do cinema- cação Física Escolar; experi-
-educação e das corporeidades. ências Lúdicas e Artísticas;
Membro dos Grupos de Pes- Corporeidades), é secretária do
quisa Educação Física Escolar, CBCE (Colégio Brasileiro de Ci-
Experiências Lúdicas e Artísti- ências do Esporte) no RJ e inte-
cas; Corporeidades (ELAC-UFF) gra o Gt de educação de pessoas
e Cinema: Aprender e Desa- jovens e adultas da ANPEd.
prender do Laboratório de Edu-
cação, Cinema e Audiovisual E-mail:
(CINEAD-LECAV/UFRJ). rosamalena@id.uff.br

Há muitas formas de se compreender a experiên-


cia. Podemos circunscrevê-la desde a sua etimologia;
ou a partir do seu uso hegemônico nas sociedades ca-
– sumário –

pitalistas que a tratam como experimento cientificis-


ta aplicável a qualquer contexto; ou levando em con-
ta o caráter imperativo de que todos e todas têm que
vivê-la, experimentá-la. No entanto, neste dicionário,
não desperdiçaremos experiências. Faremos o exercí-
178
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experiência

cio de sentirpensar durante o percurso, enquanto te-


cemos esse texto. Trataremos de nos mover por meio
de gestos como prestar atenção, escrever, narrar, estar
junto e estar entre. Em última instância, pretendemos
conceder à experiência o sentido de travessia, cujo ca-
ráter aberto permite interromper o tempo e o espaço
para produzir o território do acontecimento, portanto,
do presente.
Dedicar-nos-emos a pensar que a experiência
não é um conceito, pois ela escapa de qualquer tenta-
tiva de determinação, a experiência seria o modo de
habitar o mundo (Larrosa, 2014a, p.43). A experiência
se faz na relação entre sujeitos que habitam um mun-
do comum, é o que acontece quando estamos atentos/
as a alguma coisa, quando nos encontramos, quando
estamos (verdadeiramente) presentes. O que possibili-
ta experimentar a liberdade do imprevisível, pois de-
pois de algo ter acontecido, não sabemos o lugar que
habitaremos e o que passará a nos constituir – até a
próxima experiência.
Por esse motivo, caminhamos pelo mundo.
Deslocamo-nos entre gestos, palavras, narrativas, ter-
ritórios e pessoas. O ato de caminhar solicita uma ob-
servação atenta para percorrer os caminhos, implica
uma relação de aprendizagem através da experiên-
cia, no sentido do embarcar, entregar-se e expor-se.
Significa também que algo me ocorre e não sou eu,
isto é, alguma coisa acontece comigo, mas não depen-
de inteiramente de mim, é exterior a mim, estrangeiro
a mim, estranho a mim, que está fora de mim mesmo,
que não pertence ao meu lugar, que não está no lugar
que eu lhe dou, que está fora de lugar (Larrosa, 2011, p.
5-6). Eis a força da experiência.
Tratando-se de educação, temos compromisso
firmado com aqueles/as que estão (vivendo esse tem-
179
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experiência

po) e com aqueles/as que virão (habitar um mundo


deixado por nós). No que se refere à educação escolar,
podemos compreendê-la como território das experi-
ências, como lócus da experiência, na relação que se
estabelece entre os/as habitantes desse espaçotempo,
convocando-nos à responsabilidade pedagógica de
pensar sobre o que fazemos quando estamos juntos/
as. A escola é um bom lugar para pensarmos encon-
tros estranhos, estrangeiros e exteriores a quaisquer
dos sujeitos que transitam por ela. Constitui-se como
ambiente potente para promover encontros com a di-
ferença, com a alteridade, com a multiplicidade de ou-
tros que nos habitam e habitam o mundo.
Pensar a educação (e a pesquisa narrativa em
educação), a partir da experiência, é inspirador, por-
que sugere movimentos, deslocamentos, interrup-
ções temporais, obrigando-nos a parar, escutar, olhar
com atenção. Forçando-nos a suspender a opinião,
tão demasiadamente fabricada pelo excesso de escla-
recimento e informação do modo de vida contempo-
râneo. A experiência não se reduz ao âmbito das ex-
plicações, não é preciso que alguém esclareça/ilustre
sistematicamente uma coisa para que se aprenda a
ter experiência. A experiência, e os saberes que dela
emanam, é a apropriação da própria vida, é mover-se
pela vida é, antes de tudo, [...] uma forma singular de
estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo
de conduzir-se) e uma estética (um estilo) (Larrosa,
2014a, p. 32).
Ao caminhar, sentindopensando com as pesqui-
sas no campo das narrativas, deparamo-nos com a
problematização de Larrosa (2014b) acerca da relação
entre a experiência e o relato, tendo como base alguns
escritos de Imre Kertész. Tomando como ponto de par-
tida o entendimento de que o relato é um dos modos
180
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experiência

privilegiados de como tratamos de dar sentido narra-


tivo a isso que nos passa e o sujeito da experiência,
convertido no sujeito do relato, é o autor, o narrador é
o personagem principal dessa trama (p. 722), identifi-
camos a pesquisa narrativa como forma de compre-
ensão da autoria no trabalho docente cotidianamente
realizado. Cotidiano marcado por ações que o carac-
terizam como habitual e, ao ser construído, esse dia a
dia não é mecânico, descorporificado, impessoal.
Nas relações que diariamente constituímos com
o mundo, do mesmo modo que elegemos algo para dar
forma e conteúdo ao trabalho docente, como Larrosa
(2014b) aponta no diálogo com as obras de Kertész, a
partir da experiência da guerra, corremos os riscos de
encontrarmo-nos com uma experiência que se sabe
impossível, um sujeito que se sabe destruído e um
relato que se sabe insignificante (p. 723). Nessa pers-
pectiva, a impossibilidade da experiência pela não re-
alização de um mundo em comum. E é esse mundo
compartilhado, em relação, em comunhão, que possi-
bilita a abertura de espaços, da relevância e da potên-
cia de relatar o que nos passa. Auxiliando a pensar os
cuidados e as condições necessárias para a realização
da pesquisa narrativa como exercício de experiência.
Considerando a diferenciação e especificidade de
cada contexto e problema a enfrentar, Minayo (2001)
indaga como poderíamos encaminhar partilhas de
princípios e não de procedimentos. Essa ideia se apro-
xima da proposta desse texto, quando a experiência
constitui uma possibilidade de colocarmos o escolar,
a formação docente, as políticas educativas, a forma
de fazer pesquisa em implicação com a potência da
vida. Como pesquisadores e pesquisadoras que se fa-
zem e querem sujeitos da experiência, não somos os/
as intérpretes ou proprietários/as de seus sentidos,
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experiência

pois quando a experimentamos não temos a capaci-


dade de antever onde vai levar, ou o que pode provo-
car. Também se faz necessário qualificar, valorizar e
compreender as experiências daqueles e daquelas que
fazem os cotidianos escolares acontecerem. Pois fa-
lar em pesquisa que narre com/nos cotidianos não é
o mesmo que falar sobre. Defendemos e realizamos,
portanto, ações pedagógicas – como a pesquisa – para
aprender mais, em que todos colocam em cena o que
sabem, em movimento que identifica o escolar como
tempo de suspensão do previsto e do prescrito.
A pesquisa narrativa, como uma forma de enten-
der as experiências escolares, expor o realizado e, ao
mesmo tempo, indagar e organizar esse mesmo coti-
diano. O que convida a pensar de que maneira cons-
truímos essa narrativa, pois pode conter apenas pala-
vras vazias, clichês, que provocam o roubo e a morte
da experiência, assim como a exploração da experiên-
cia alheia ou um relato que se pretende universal, não
nos fazendo reconhecer o que fazemos em e com as
nossas vidas. Escrever, portanto, também pode signifi-
car encontrar as palavras que possam falar desse rea-
lizado, para nós mesmos, enquanto sujeitos históricos.
Nesse caminho por dar sentido ao mundo, re-
conhecemos a limitação da escrita em abarcar toda
a potência das experiências possíveis. Contudo, esse
exercício de escrever em linhas, como uma sucessão
de pontos, revela certa maneira de pensar, certo modo
de articular o pensamento através do gesto de escre-
ver, em um movimento contínuo de fazer inscrições
(Flusser, 1994) no mundo.
Podemos, então, identificar a narrativa como ex-
periência, como forma de estar presente no que se es-
creve, como criação de um mundo que não seja falso
para quem narra, evitando criar outro risco, como o
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experiência

de explorar a realização de outros/as. Pesquisar pela


e com narrativas não para dominar, mas para fazer-se
na relação com o que estuda e com outras experiên-
cias. O que requer paciência, disponibilidade, suspen-
são de expectativas, para que o não esperado possa ser
acolhido, compreendido, fazer-se presente – e é essa a
textura da experiência (Larrosa, 2014b, p. 733), na qual
os sentidos são nomeados depois.
Nominar gera atenção para a fragilidade da es-
crita, o que os registros representam quando não
queremos matar a experiência e, nesse movimento,
querer que as palavras ganhem poder seria redução,
abandono, morte da experiência. Por isso, a necessi-
dade constante das indagações desse fazer e dessa
repercussão. A desvinculação com a experiência (e a
vida, de maneira geral) produz afastamento do que fa-
zemos, nos “descorporificando” diante de nós mesmos.
Aumentando, assim, a dificuldade em identificar a re-
lação entre vida, experiência, corpo, conhecimento.
A realidade escolar – ou qualquer outra – pode
significar acontecimento, pois é nossa presença, com
o tempo da vida de cada um que a faz existir, não é
uma “coisa” que se faz com “coisas” vivas. Para não ser
vazia de sentido e de presença, há que ganhar a força,
intensidade, brilho, validez. Ou seja, é algo encarna-
do, pois passa por diversas dimensões de nosso ser,
em diálogo com o que fazemos. A atenção ao mundo
provoca nossa presença e, desse modo, a possibilidade
de abertura à experiência. Podem, então, as pesquisas
narrativas significar a tradução dessa atenção? O que
é necessário para isso?
Caminhar, deslocar, movimentar, sair do lugar.
O ato de caminhar solicita uma observação aten-
ta para percorrer os caminhos, implica uma relação de
aprendizagem através da experiência, no sentido do
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experiência

embarcar, entregar-se e expor-se, para vermos o visí-


vel, isto é, ver as coisas que já estão aí. Não defende-
mos, portanto, um caminhar por uma investigação as-
sociando metodologia com técnica, sem vida, apenas
adequando o pesquisador e a pesquisadora aos ins-
trumentos. A pesquisa requer atenção e gestos, inin-
terruptos, de abertura ao mundo. Assim, guiadas pelo
“que faço/fazemos aqui”, pelo convite a mergulhar-
mos nossa atenção nesse cotidiano, seguimos com
a delicadeza de quem quer viver a intensidade desse
momento, mas não ficando nele, abrindo novos ca-
minhos. Movendo-nos entre palavras que expressem,
sem fechar. Escrevendo para alguém, para qualquer
um/a, como igual.
Não deixamos de lado o quanto os cotidianos po-
dem se tornar perversos, pois os totalitarismos fecham
possibilidades de abertura ao mundo, de experiências,
quando impedem que as vidas se convertam em bio-
grafias, quando dificultam que as escolas sejam luga-
res de interrupção do esperado, quando professores/as
não encontram condições para seu trabalho docente e,
os/as estudantes não possam exercer o direito ao estu-
do. Acreditamos, assim, que narrar é expor uma vida –
a que temos e que a fazemos com a própria narrativa.
Por ser, então, a experiência um acontecimento
singular e indicar a nossa maneira de estar no mundo,
como nos posicionamos ética e esteticamente nesse
mundo, fica o convite para que as pesquisas narrem
as experiências dos/nos/com cotidianos escolares
como potência da vida, forma de abertura ao novo
e às mudanças.

Referências
FLUSSER, V. Los gestos: fenomenología y comunicación.
Barcelona: Herder, 1994.
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experiência

LARROSA, J. Experiência e alteridade em educação. Revista


Reflexão e Ação, v. 19, n. 2, 2011.
LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo
Horizonte: Autêntica, 2014a.
LARROSA, J. 20 Minutos na Fila: sobre experiência, relato e
subjetividade em Imre Kertész. Bolema, v. 28, n. 49, 2014b.
MINAYO, M. C. (org.). Pesquisa social – teoria, método, cria-
tividade. Petrópolis: Vozes, 2001.

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ayvu

Ff

formação contínua
marina santos nunes de camposxxv

xxv
Pedagoga pela UERJ, profes- ção pelo ProPEd/UERJ.
sora dos Anos Iniciais do Ensi- E-mail:
no Fundamental do CAp-UFRJ, marinacampoz@gmail.com
Mestre e doutoranda em Educa-

O rompimento de limites espaciais e temporais


provocado pela busca de novos mundos e de um novo
olhar para o céu, para a natureza e para o homem
(Alves, 2016, p. 91), entre os séculos XV e XVII, colo-
cou em suspeição as explicações medievais totalitá-
rias para as relações da natureza e do homem, oca-
sionando uma busca por novas explicações, também
totalitárias.
– sumário –

No campo das ciências, essa busca inicialmen-


te se deu a partir do diálogo entre a teoria e a práti-
ca, inaugurando um método experimental. No en-
tanto, ao longo do século XIX, o campo científico é
fracionado em diferentes campos de especialização.
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formação contínua

Ao serem compartimentados e tratados de forma iso-


lada, os saberes são julgados em sua relevância, oca-
sionando uma hierarquização dos conhecimentos e
das ciências.
Nesse processo, de forma análoga, teoria e prática
também são vistas como instâncias estanques, onde a
primeira está em uma posição superior na relação com
a segunda. Como aponta Alves (2016), esta hierarquia
pode ser notada até mesmo no modo como esses pares
são apresentados, teoria-prática, e não do modo dialé-
tico como elas se relacionam, prática-teoria-prática.
Essas duas esferas (prática e teoria) são, na ver-
dade, indissociáveis, pois, como aponta Garcia e Alves
(2012), a partir de Marx, é no contexto da prática que
validamos, atualizamos e modificamos as teorias.
Nessa perspectiva, concebemos a prática como a “te-
oria em movimento” e a teoria como o “resultado da
reflexão sobre a prática” e, portanto, não há uma teoria
que preceda à prática. Esse movimento, intitulado pe-
las autoras como práticateoriaprática, cria redes com-
plexas e variadas de conhecimentos e significações
(Garcia; Alves, 2012, p. 491).
Inspirados nesse modelo hegemônico de ciên-
cia, no contexto escolar, segmentamos o currículo em
disciplinas e a concepção de um modelo pedagógico
que pensa a construção do conhecimento como um
percurso único, linear e hierarquizado. Como elucida
Alves (2016, p. 92):

se dá de modo linear, hierarquizado, com uma an-


tecedência claramente estabelecida de disciplinas
teóricas (formadoras do campo científico especí-
fico) sobre as disciplinas práticas, sempre subor-
dinadas, quer quanto ao lugar posterior ocupado,
quer pelo tempo menor geralmente dedicada ao
seu desenvolvimento.

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formação contínua

Esta lógica se embasa na crença de que o conhe-


cimento teórico prepara para a prática e, ainda, que a
teoria se aplica à prática. Tal concepção pode ser no-
tada na estruturação da maioria dos cursos de ensino
superior, que organizam sua estrutura curricular em
um robusto bloco inicial de disciplinas teóricas para,
apenas na fase final do curso, contemplar um momen-
to de estágio/prática.
Podemos refutar tal crença a partir de Habermas
(1984, 1987 apud Oliveira, 2012), que indicou que as re-
alidades histórico-empíricas (que podemos entender
como o cotidiano/prática) devem ser compreendidas
para além de seus determinantes lógico-estruturais,
pois a realização dessa estrutura não se dá autono-
mamente, como uma transposição, pois depende das
ações concretas dos sujeitos sociais.
Partindo dessas noções, compreendemos que
não há possibilidade de “controle” do que é vivido na
prática, pois nessa realidade, sem variáveis quantifi-
cáveis ou reproduzíveis em laboratório, torna-se im-
possível uma transposição teoria-prática.
Alves aponta três transformações ocorridas no
contexto social da segunda metade do século XX que
vão impactar nos modos de produzir conhecimento.
A primeira transformação apontada se refere ao
novo mundo do trabalho, constituído por relações mais
fluidas e cooperativas. Estas novas relações evocaram
conhecimentos advindos não de disciplinas isoladas,
mas do que era produzido a partir das ligações entre as
diferentes áreas de saber. Dos sujeitos são valorizadas
habilidades para além da cognição, como habilidades
sociais para saber trabalhar em equipe, argumentar,
solucionar problemas, etc.
A segunda transformação é decorrente do de-
senvolvimento de novas ciências de ponta (como a in-
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formação contínua

formática e os novos meios de comunicação), que não


se organizam disciplinarmente, trazendo consigo um
novo processo de desenvolvimento de conhecimento.
A ideia de construção de conhecimento como percur-
so linear e disciplinar é, gradativamente, substituída
por uma noção de que a tessitura de conhecimentos
se dá a partir das conexões realizadas entre as áreas,
os sujeitos, contextos, saberes, nos múltiplos contatos
entre eles, como em uma rede, na qual não há um só
trajeto possível, mas inúmeras possibilidades de co-
nexões. Essas zonas de contato móveis (Levy, 1993
apud Alves, 2016) se dão no espaçotempo da prática,
do cotidiano, que passa a ter um novo status de lócus
de produção de conhecimento. Essa nova concepção
tem implicações políticas e éticas pois, como aponta
Santos (1996), ao desconsiderar outras formas de co-
nhecimento, o pensamento moderno subalternizou
práticas e sujeitos sociais portadores de outros modos
de estar no mundo e de conhecê-lo.
A terceira transformação se refere à ampliação
do que compreendemos como contribuição da mo-
dernidade, para além do âmbito racional. Embora
esta tenha sido de extrema relevância sócio-histó-
rica no sentido de nos defender do obscurantismo e
totalitarismo (Alves, 2016). Esta ampliação ilumina a
dimensão da subjetividade na produção de conheci-
mento, reconhecida enquanto categoria e realidade
social. Esta subjetividade se expressa em criações que
tem a ver com sujeitos individuais e sujeitos coletivos
(Alves, 2016, p. 95), diante dos múltiplos problemas da
vida que exigem dos sujeitos soluções. Cabe ressaltar
que, por serem criações realizadas mediante proble-
mas concretos/reais localizados e datados, elas não
produzem leis, mas sim saberes parciais, provisórios
e situacionais.
189
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formação contínua

As transformações anteriormente elencadas


oferecem embasamento para questionarmos o modo
como superestimamos o espaço teórico e o tempo da
formação acadêmica formal na formação/educação
dos sujeitos. Diante disso, enriquecemos nossa con-
cepção a respeito dos modos pelos quais os sujeitos se
formam, para além da racionalidade/teoria, abarcan-
do a subjetividade/prática.
Partindo deste entendimento, outros espaços-
tempos passam a ser percebidos como contextos de
formação e, de modo congruente, outros sujeitos, para
além do especialista/ perito (Certau, 2003), como pro-
dutores e detentores de conhecimentos.
A partir das transformações expostas, substituin-
do a ideia de construção de conhecimento, a noção de
rede expressa de maneira mais coerente o modo como
compreendemos a tessitura de conhecimento “em to-
das as áreas da atividade humana”. Acompanhando
essa lógica, a organização por disciplinas abre espaço
para os campos de estudos, aprimorando o entendi-
mento a respeito da trama tecida de múltiplos conhe-
cimentos prático-teóricos (Alves, 2016, p. 97-99).
Sendo assim, toda aprendizagem também é pro-
dução de conhecimento, na medida em que o conhe-
cimento não é mais compreendido como uma trans-
missão vertical e unilateral de um sujeito que ensina
para outro que aprende, visto que o outro o tece com e
a partir de suas redes já existentes, configurando um
novo saber, modificando-o.
Ainda, significa que todas as atividades que rea-
lizamos em nossas vidas são frutos de uma aprendi-
zagem múltipla e enredada, mesmo que estas sejam
instintivas ou inconscientes. Essa característica in-
cide no fato de que tanto nossas ações como as for-
mulações intelectuais que fazemos são sempre provi-
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formação contínua

sórias e que estamos imersos em redes de saberes e


de fazeres que não podem ser explicadas por relações
lineares de causalidade, tendo como características a
complexidade (Morin, 1996) e a diferenciação (Santos,
2000), sob a influência de fatores mais ou menos alea-
tórios (Santos, 2000 apud Oliveira, 2012).
A respeito disso, Oliveira sintetiza que criar co-
nhecimentos é tecer redes das quais fazem parte di-
ferentes conhecimentos, práticas, experiências, per-
cepções, inserções que nos constituem, o que requer
assumir, com Santos, o caráter epistemológico de
todas as formas de conhecimento, assumindo a luta
pelo reconhecimento da necessidade de horizontali-
zação das relações entre os diferentes conhecimentos
(Oliveira, 2012, p. 47).
Partindo dessas reflexões a respeito da tessitu-
ra de conhecimento para tratar a formação docentes,
Alves (2010) aponta que a formação de professores e
professoras se dá em diversos contextos ou espaços-
tempos, para além do contexto das práticas da for-
mação acadêmica: o das práticas políticas de gover-
no; das práticas pedagógicas cotidianas; das práticas
políticas coletivas dos movimentos; das práticas das
pesquisas em educação; das práticas de produção e
usos de mídias e o das práticas nas cidades.
Essa divisão é realizada como um sistema de
compreensão da formação docente, sendo imprescin-
dível compreender que a totalidade da formação se dá
nas múltiplas articulações entre esses contextos, nas
inúmeras relações que os sujeitos estabelecem entre
eles, onde tecem uma rede intrincada, repleta de ten-
sões e significados, ou seja, as partes não dão conta do
todo, superando a ideia linear, sucessiva e hierárquica
do conhecimento.

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formação contínua

Isso quer dizer que, no contexto acadêmico, mes-


mo que não haja um esforço para reconhecer, se ar-
ticulam os conhecimentos produzidos e acumulados
nos demais contextos de formação pelas quais os su-
jeitos passam ao longo da sua trajetória. Nessa pers-
pectiva, caberia à formação acadêmica a formalização
de conhecimentos específicos e da apropriação teóri-
ca das práticas – de todas as práticas que se dão nos
demais contextos – e da própria teoria, acumulada,
especialmente no plano das pesquisas em educação
(Alves; Oliveira; Garcia, 2015, p. 66).
Reis (2014) discute, a partir de Alves (2010), que a
formação docente se dá antes mesmo do docente cogi-
tar ingressar em uma licenciatura, pois até chegarmos
à universidade, aprendemos o que é ser professor nas
inúmeras aulas assistidas ao longo da nossa vida es-
tudantil. Tampouco essa formação termina com a ob-
tenção de um diploma, pois continuamos a aprender
a sermos professores em todos os contatos que temos
com a escola.
Com base nessa compreensão, intui-se, também,
que não somos detentores de identidades estáticas e
hierarquizáveis, mas nos constituímos como redes di-
nâmicas e plurais de sujeitos. Essas redes e os fios que
a constituem advêm da diversidade de experiências e
espaços nos quais estamos inseridos e que vivencia-
mos e, por serem transitórios e se complexificarem
permanentemente, possuem uma capacidade infindá-
vel de recriação.
Por essa característica da formação, Reis (2014)
a nomeia não mais como uma formação continuada,
mas sim como uma Formação Contínua, que consiste
em um processo de embates que se tece coletivamente
e cotidianamente (Reis, 2014, p. 16) e que começa com

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formação contínua

o nascimento e se tece por toda a vida dos sujeitos


(Reis, 2014, p. 37). Para além de contínua, a formação
docente é cotidiana e subjetiva, portanto, singular.

Referências
ALVES, N.; OLIVEIRA, I. B.; GARCIA, A. Nilda Alves: pratican-
tepensante de cotidianos. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
ALVES, N. Redes Educativas ‘dentrofora’ das Escolas, exem-
plificadas pela Formação de Professores. In: SANTOS, L. L.
de C. P. et al. (orgs.). Convergências e tensões no campo da
formação e do trabalho docente: currículo. Belo Horizonte:
Autêntica, 2010.
ALVES, N. Tecer conhecimento em rede. In: ALVES, N.;
GARCIA, R. L. (orgs.). O sentido da escola. 6ª ed. Rio de
Janeiro: DP&A, 2016.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer.
9ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
GARCIA, R. L.; ALVES, N. Sobre formação de professores
e professoras: questões curriculares. In: LIBÂNEO, J. C.;
ALVES, N. (orgs.). Temas de Pedagogia. Diálogos entre didá-
tica e currículo. São Paulo: Cortez, 2016.
OLIVEIRA, I. B. de. O currículo como criação cotidiana.
Petrópolis: DP et Alii, 2012.
REIS, G. R. F. S. Por uma outra Epistemologia de Formação:
conversas sobre um projeto de formação de professoras
no município de Queimados. 2014. 196 f. Tese (Doutorado
em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. Porto:
Afrontamento, 1996.

193
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ayvu

Gg

glocalidade
fabio andré diniz merladetxxvi
maria luiza süssekindxxvii

xxvi
Doutor em Pós-Colonialis- Produtividade CNPq. Cientista
mos e Cidadania Global pelo do Nosso Estado/ FAPERJ. Líder
Centro de Estudos Sociais da do Grupo de Pesquisa Práticas
Universidade de Coimbra e co- educativas e formação de pro-
ordenador da Universidade Po- fessores (GPPF). Professora do
pular dos Movimentos Sociais PPGEdu-UniRio (Universida-
(UPMS). Suas pesquisas têm de Federal do Estado do Rio de
como foco pedagogias e meto- Janeiro). Suas pesquisas e pu-
dologias de articulação dos mo- blicações têm como foco currí-
vimentos sociais. culos, cotidianos e epistemolo-
E-mail: gias do Sul, também em inglês.
fabioandredm@hotmail.com E-mail:
Primeira Secretária Nacio-
xxvii mluizasussekind@gmail.com
nal da ANPEd. Pesquisadora
– sumário –

Uma modernidade que glocalizou seu projeto de


ocidentalização narcísico e abissal, não se im-
portando com as nefastas consequências deste
sobre milhões de pessoas planeta afora. (Oliveira;
Sussekind, 2019, p. 6).

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glocalidade

Palavra e noção, “glocal” é um neologismo for-


mado pelos termos “global” e “local”. Aparentemente
contraditórios, os dois termos se juntam com inten-
ção de conceituar e expressar a ideia de sobreposição
e imbricamento entre o global e o local. Por um lado,
o conceito de “glocalização” é extensamente utilizado
pelas teorias de marketing coorporativo para expres-
sar a necessidade de tornar o global atraente para o
local através do processo de customização e persona-
lização de produtos que, se adequando a realidades e
contextos locais, conseguem alcançar cada vez mais
consumidores. Por outro lado, outra aproximação à
ideia pode expressar as possibilidades de diálogo,
aprendizagem e articulação entre experiências locais
de resistência em um dado território e lutas globais
pela defesa de direitos com a mesma ênfase que textu-
rizamos as múltiplas opressões e as variadas costuras
nosdos com os diferentes territórios. É um desloca-
mento linguístico, teórico, metodológico e epistemoló-
gico, sendo assim, político.
Recorrendo a Geertz (2001), bravo defensor do
“local” como um termo relativo (p. 124), verificamos
que, segundo ele, existe uma confusão endêmica nas
ciências (ou nos cientistas) sociais (ou humanas) (p.
124-125), por exemplo, em afirmações como “todo o
mundo tem o tabu do incesto, para citar um exemplo
falso, ou, pelo menos, sumamente enganoso” das ten-
tativas de universalizações e também generalizações
(Geertz, 2001), que apagam os locais.

Portanto, a oposição, se é que devemos ter algu-


ma [...] não é entre o saber “local” e o “universal”,
mas entre um tipo de saber local [...] e outro. Assim
como toda a política, qualquer que seja seu peso, é
local, o mesmo se dá com toda a compreensão, por
mais ambiciosa que seja. Ninguém sabe de tudo,
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glocalidade

porque não há um tudo para se saber. (Geertz, 2001,


p. 124).

Nesse sentido, defender um território conceitual


que intersecione a globalidade, os globalismos e os lo-
cais, as localidades e os localismos é teorização, e é re-
conhecimento das experiências vividas pelas pesso-
as nos cotidianos, nos locais, no espaçotempo (Alves,
2001), sendo assim, um movimento político e neces-
sariamente epistemológico. Movimentos que exigem
uma imaginação do social que mapeia outras linhas
e territórios da relação indissociável conhecimento-
-ignorância, admitindo hierarquização, exclusão e
inexistências.

O pensamento moderno ocidental é um pensa-


mento abissal. Consiste num sistema de distin-
ções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis
fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis
são estabelecidas através de linhas radicais que
dividem a realidade social em dois universos dis-
tintos: o universo “deste lado da linha” e o universo
“do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o ou-
tro lado da linha” desaparece enquanto realidade,
torna-se inexistente, e é mesmo produzido como
inexistente. Inexistência significa não existir sob
qualquer forma de ser relevante ou compreensível.
(Santos, 2007, p. 3-4).

As linhas abissais são a metáfora da exclusão ra-


dical imposta pelas atuais formas de dominação. Do
lado de cá da linha estão os incluídos, ainda que explo-
rados; já o lado de lá da linha é o lado da apropriação e
da violência, o lado do não ser, do invisível, do irrele-
vante, do inferior, o lado do não humano. Nas lutas que
abalroam as linhas abissais estão os oprimidos (Freire,
2011), os subalternos (Spivak, 2010), os condenados da

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glocalidade

terra (Fanon, 1968) que criam conhecimentos produ-


zidos como menos importantes ou até inexistentes,
sob o paradigma da opressão (Nunes, 2010). O caráter
fascista da criação e manutenção de linhas abissais
está precisamente na negação da humanidade, que
desumaniza não apenas os oprimidos, mas também
os opressores. A hierarquização de um lado e a nega-
ção da humanidade do outro desumanizam ambos os
lados da linha, pois não é possível desumanizar sem
ser desumanizado (Merladet, 2020). No glocal, aconte-
ce essa dinâmica permanente e perversa.

Com Santos (2013), aprendemos que a globaliza-


ção – que sustenta os quatro grandes sistemas de
opressão sobre os quais vivemos e morremos: capi-
talismo, heteropatriarcado, fundamentalismo e co-
lonialismo – se faz com alianças também impro-
váveis, já que ela é sempre o império de um local
sobre outro, uma glocalização, em que um movi-
mento de globalização de produções locais hege-
mônicas e, portanto, capazes de se impor global-
mente – o localismo globalizado se combina com
um outro, seu corolário, o globalismo localizado,
em que diferentes locais sentem diferentemente
os efeitos da globalização, sempre de acordo com
uma hierarquia que desempodera e fragiliza os fra-
cos e suas possibilidades de seguir sendo o que são
ao mesmo tempo em que permite o fortalecimen-
to dos fortes, de suas regras, produtos e lógicas.
(Oliveira; Sussekind, 2019, p. 5).

São formas de globalismo localizado que tratam


do impacto específico de práticas e imperativos trans-
nacionais nas condições locais, as quais, por essa via,
são desestruturadas e reestruturadas de modo a res-
ponder a esses imperativos transnacionais (Santos,
1997, p. 109-110). Hoje, imensos abalos territoriais e
respostas de força tsunâmicas às históricas lutas de
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glocalidade

resistências e reconquistas territoriais são alimenta-


das pelos horrendos resultados da negligência com
a vida, que têm anunciado e exprimido com precisão
os propósitos necrófilos (Santos, 2021) adornados pela
pandemia de COVID. Entendemos que esse tsunami
desloca uma quantidade gigantesca de água com efei-
tos devastadores, fazendo vítimas por todos os lados,
um tsunami neoliberal com tendências fortemente
conservadoras se origina do deslocamento paradig-
mático de uma modernidade que glocalizou seu proje-
to abissal, que oprime e aniquila milhões de pessoas.
Contra ele, continuamos a clamar pelo direito a viver,
conhecer e existir.

Por um lado, a globalização hegemônica neolibe-


ral: a nova fase do capitalismo global e das normas
políticas, legais e culturais que a acompanham [...].
Por outro lado, a globalização contra hegemônica,
ou globalização a partir de baixo, que engloba os
movimentos sociais e organizações não-governa-
mentais (ONGs), que através de articulações locais,
nacionais e transnacionais lutam contra o capi-
talismo e a opressão colonialista, a desigualdade
social e a discriminação, a destruição ambiental,
e modos de vida decorrentes da voracidade da ex-
tração dos recursos naturais, imposição das nor-
mas culturais ocidentais e destruição das não-o-
cidentais causada pela globalização hegemônica.
(Santos, 2013, p. 29-30).

Por que uma outranova palavra?

Ao conceito de conhecimento «local» subjaz, as-


sim, a noção de que as pessoas que o detêm ape-
nas conhecem um meio muito restrito e que este
conhecimento não tem aplicação para além dele.
(Santos; Menezes; Nunes, 2006, p. 23).

198
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glocalidade

A complexidade destes movimentos exige um es-


forço enorme de descentramento (Santos, 2007, p. 12),
implica em deslocamento das linhas de abissalidade,
num movimento de inundar o mundo/reconhecer a
existência com/de pensamentos pós-coloniais que va-
lorizem as experiências, os saberes locais, ancestrais,
tradicionais, de gênero, étnicos, e outros mais, que
emerjam da inexistência produzida no enfrentamento
do pensamento abissal, indolente e arrogante. Contra
o pensamento único e desumanizador, que aniquila a
diferença, respondemos, com as epistemologias do Sul
(Süssekind, 2019, p. 103), ou seja, com o conjunto de sa-
beres em luta contra o capitalismo, o colonialismo e o
patriarcado, uma constelação de epistemologias sub-
versivas e insurgentes, dispostas a criarem partilha-
damente e partilharem criativamente o conhecimento.
Na direção do Sul epistemológico, lutando contra
o extermínio de saberes, das experiências, da vida e
dos acontecimentos, defendemos que conhecimento
é deslocamento, é resistência permanente ao pensa-
mento único, homogêneo, unívoco, uníssono, [...] é di-
ferença e é dissenso (Süssekind, 2019, p. 92).

Há centenas de narrativas de povos que estão vi-


vos, contam histórias, cantam, viajam, conversam
e nos ensinam mais do que aprendemos nessa hu-
manidade. Nós não somos as únicas pessoas in-
teressantes no mundo, somos parte do todo. Isso
talvez tire um pouco da vaidade dessa humanida-
de que nós pensamos ser [...]. (Krenak, 2019, p. 15).

Nessa direção, reconhecendo os outros/as/es na


copresença que estranha a vaidade, entendendo que
os glocais são partes que não somam ou representam
um todo, concluímos: Quem conhece melhor o rio [...]:
o hidrólogo ou o nadador? Formulada a pergunta dessa

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glocalidade

maneira, é claro que a resposta depende do que se pre-


tenda dizer com “conhecer” (Geertz, 2001, p. 130).
A glocalização é simultaneamente o referente da
mobilidade e da desigualdade no mundo, da diversi-
dade e das hierarquias, da afirmação e da negação da
própria diversidade, da imposição, da indiferenciação
e da resistência diferenciadora. Em suma, a globaliza-
ção dá por vezes ideia de ser tudo o que afirma e o seu
contrário, é globalização e antiglobalização, assim, é
unicamente uma produção glocal. A globalização he-
gemônica descredibiliza as experiências e alterna-
tivas construídas ao redor do mundo, ignorando que
ela própria é também uma experiência local que se
globalizou. A globalização hegemônica é, portanto, o
efeito da dominação de uma racionalidade localizada,
contextual e específica que, ao se tornar hegemônica,
passou a colonizar todas as demais. Não produz glo-
bais, mas glocais.

Parto do pressuposto de que aquilo que habitual-


mente designamos por globalização são conjuntos
de relações sociais. À medida que estes conjuntos
se transformam, assim se transforma a globaliza-
ção. Existem, portanto, globalizações, e devería-
mos usar este termo apenas no plural. Por outro
lado, se as globalizações são feixes de relações so-
ciais, estas envolvem inevitavelmente conflitos e,
portanto, vencedores e vencidos. Frequentemente,
o discurso da globalização é a história dos ven-
cedores contada por estes. Na verdade, a vitória
é, aparentemente, tão absoluta que os derrota-
dos acabam por desaparecer completamente do
cenário. (Santos, 2010, p. 195).

Reconhecer a criação de conhecimentos como


plural e cotidiana e em condições que glocalizam e
contra hegemonizam é pensar conhecimento como

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glocalidade

percurso e deslocamento. Nesse sentido, o conheci-


mento acontece no encontro entre diferentes e produz
ordens e escritas imprevisíveis porque relacionais, si-
tuacionais, glocais. Os conhecimentos, sempre no plu-
ral, são glocalidade, cidade, roteiro, são deslocamentos.

Referências
ALVES, N. Decifrando o pergaminho: o cotidiano das escolas
nas lógicas das redes cotidianas. In: ALVES, N.; OLIVEIRA,
I. B. de (orgs.). Pesquisa no/do cotidiano das escolas. Rio de
Janeiro: DP&A, 2001.
FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1968.
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Terra. 2011.
GEERTZ, C. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro:
Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2001.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
NUNES, J. A. O resgate da Epistemologia. In: SANTOS, B. de
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MERLADET, F. A. D. Pedagogia da Articulação: A Universidade
Popular dos Movimentos Sociais e a ecologia de saberes na
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Educação e Realidade, v. 44, n. 3, 2019.
SANTOS, B. S. A saúde é um bem público mundial, Público,
2021. Disponível em: https://www.publico.pt/2021/04/07/
opiniao/opiniao/saude-bem-publico-mundial-1957229.
Acesso em: 25 jun. 2021.
SANTOS, B. S. Se Deus fosse um Ativista dos Direitos
Humanos. Coimbra: Ed. Almedina, 2013.

201
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glocalidade

SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das li-


nhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de
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SANTOS, B. S. Nuestra América. Reinventar um paradigma
subalterno de reconhecimento e redistribuição. In: SANTOS,
B. de S. A gramática do tempo: para uma nova cultura políti-
ca. São Paulo: Cortez Editora, 2010.
SANTOS, B. S. Uma concepção multicultural de direitos hu-
manos. Lua Nova, n. 39, 1997.
SANTOS, B.S.; MENEZES, A. P.; NUNES, J. A. Conhecimento
e transformação social: por uma ecologia de saberes. Hiléia:
Revista de Direito Ambiental da Amazônia, n. 6, 2006.
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
SÜSSEKIND, M. L. A BNCC e o “novo” Ensino Médio: refor-
mas arrogantes, indolentes e malévolas. RETRATOS DA
ESCOLA, v. 13, 2019.

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ayvu

Hh

homem ordinário
maria da conceição silva soaresxxviii

Professora associada da
xxviii
UERJ. Pós doutora em Educa-
Universidade do Estado do Rio ção e Imagem (UERJ). Líder do
de Janeiro, atuando no curso Grupo de Pesquisa Currículos,
de Pedagogia e no Programa Narrativas Audiovisuais e Dife-
de Pós-Graduação em Educa- rença (CUNADI).
ção – ProPEd. Cientista Nosso E-mail:
Estado/ FAPERJ e Procientista/ ceicavix@gmail.com

Certa vez, em uma das minhas sessões de aná-


lise, comentei com a minha psicanalista que fica-
va angustiada com a rotina, com a vida do dia a dia,
buscando e esperando sempre mais, desejando que
alguma “coisa importante”, extraordinária, que nunca
– sumário –

soube bem o que era, acontecesse. Esse seria o motivo


da minha constante ansiedade, estresse e insatisfa-
ção. Foi quando ela me disse: “mas a vida é esse co-
tidiano”, ainda que experimentemos, algumas e raras

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homem ordinário

vezes, situações efêmeras que podem causar alegrias


exageradas, tristezas profundas ou mudanças repen-
tinas, esses acontecimentos, no entanto, também são
cotidianos. Porém, mais cedo ou mais tarde, voltamos
à nossa vidinha mais ou menos, ordinária, a menos
que a gente morra. É no cotidiano, com todas as suas
virtualidades, que a gente vive, se constitui, se atuali-
za e se modifica. Não há nada fora disso, pelo menos
no nosso mundo terreno.
Não é para menos que muitos de nós tenhamos,
pelo menos alguma vez na vida, desprezado o que to-
mamos por ordinário, pois, conforme aprendemos
com os dicionários da língua portuguesa, ordinário
seria o “que está em conformidade com o habitual”,
“que se repete com regularidade”, que tem uma “qua-
lidade inferior”, ou pior, “o que não possui educação;
desprovido de boas intenções; mau-caráter1”. Já para
extraordinário, as definições são muito mais positivas:
“o que não se adequa ao costume geral ou ordinário”,
“excepcional”, “merecedor de admiração”, “algo fan-
tástico ou incrível2”.
Bem mais tarde, com a contribuição de Michel
de Certeau (1994), entendi que a vida ordinária é a
nossa própria vida, tecida nas/com as múltiplas re-
des em que habitamos e que, ao mesmo tempo, nos
habitam. O que tomamos como extraordinário nada
mais são do que afectos e perceptos que se engendram
com nossos modos de sentir, sonhar, imaginar, dese-
jar, experimentar, fabular, agir, narrar e criar outras
significações para a vida ordinária dos/nos/com os
nossos cotidianos.
1
Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.dicio.
com.br/ordinario/. Acesso em 10 fev. 2021.
2
Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.di-
cio.com.br/extraordinario/. Acesso em 10 fev. 2021.
204
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homem ordinário

Para entender isso, porém, precisamos estar com


todos os sentidos bem abertos para nos deixar afetar
pelo que nos toca, nos acontece, o que se desvia do ha-
bitual, o que se transforma, ainda que de forma mi-
núscula e clandestina com nossas maneiras de fazer,
pensar e narrar, que, querendo ou não, constituímos
com nossas fabulações, gestos e ações, produzindo di-
ferenças a todo momento, e desorganizando o controle
e a ordem dos lugares próprios instituídos por diver-
sos tipos de autoridades. Trata-se, como disse Certeau
(1994), de promover uma virada no olhar analítico, pois
acreditar que nada se passa na vida ordinária é como
não enxergar as luzes intermitentes dos vagalumes de
Didi-Huberman (2011) que insistem em brilhar e zigue-
zaguear astuciosamente mesmo sob os ofuscantes ho-
lofotes da indústria do espetáculo em suas diferentes
versões. Se enxergarmos os vagalumes, seus apareci-
mentos e desaparecimentos, seus movimentos sempre
intermitentes e diferentes, entendemos que o ordiná-
rio é extraordinário!
O homem ordinário, para Michel de Certeau
(1994), é, então, aquele sujeito comum, anônimo, que,
como um vagalume em meio à escuridão ou à luz
ofuscante produzidas em lugares de saber/fazer/po-
der/falar/silenciar, cria com suas artes de fazer e de
dizer sobre o vivido as narrativas do presente e a atu-
alização permanente da nossa cotidianidade. Com os
usos que faz do que lhe é imposto, e com a língua que
recebe e sem poder sair da linguagem, ele cria, com
suas histórias, beleza onde só se via frustração, cria
o habitável em um ambiente hostil, cria o singular
onde se vislumbrava uma massa humana homogênea
e submissa, cria diferença onde só se via repetição,
cria o possível e o novo onde se pensava fazer valer a

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homem ordinário

determinação do destino, cria, enfim, pequenas vitó-


rias onde só se sentia derrota.
Certeau (1994) chamou esse homem ordinário,
produtor de diferenças e possibilidades, de pratican-
te da vida cotidiana para confrontar o que se pensa-
va até então, ou seja, que o homem ordinário apenas
consumia passivamente o que lhe era imposto, sem
resistir, sem nada de novo criar, encurralado na sorte
comum (p. 60). Aquele homem chamado de cada um
ou ninguém que, conforme outras abordagens teórico-
-metodológicas, fazia parte de uma massa de sujeitos
atomizados que reproduzia infinitamente o sistema ao
qual estava inserido, apenas obedecendo e consumin-
do passivamente o que recebia e o que era criado em
outras dimensões da sociedade das quais ele não faria
parte, mas que a elas estaria sujeitado, como as ciên-
cias, as mídias, a língua, as políticas de Estado, as nor-
mas, as leis, as indústrias e os mercados. Seriam es-
sas dimensões da sociedade constituídas por homens
extraordinários? Seriam essas fabricações extracoti-
dianas? Claro que não! Ainda que com suas técnicas e
modos de proceder tentassem criar mecanismos para
se colocarem, aparentemente, acima da cultura ordi-
nária, que, como disse o próprio Certeau (2011), se tor-
naria “todo o seu resto”.
Para Michel de Certeau, as artes de fazer e as ar-
tes de dizer do homem ordinário, invisível, estão no
cerne da constituição e da transformação da vida em
sociedade. A esse herói comum, sem nome e sem rosto,
ele dedicou seu ensaio A invenção do Cotidiano (1994).
Com o objetivo de melhor definir seu conceito de ho-
mem ordinário, Certeau conversou com outros auto-
res que colocaram esse personagem em cena. Entre
eles, Freud, para quem o destino do homem ordinário,
associado à ideia de pertencente à massa, consistiria
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em ser ludibriado, frustrado, forçado ao trabalho can-


sativo e ao tormento da morte. Ainda com Freud e com
Wittgenstein, o autor refletiu sobre o lugar da lingua-
gem ordinária na organização da atividade significan-
te comum, inclusive na ciência.
Ao pensar o homem e a cultura ordinários,
Certeau (1994, 2011) problematizou ainda sobre a cliva-
gem efetuada pela ciência e que organizou a moderni-
dade. Segundo o autor, como seus modos de proceder,
a ciência, pretensamente, ao se distinguir da ilusão, do
falso, da ficção e da polifonia das vozes das ruas, cons-
tituiu todo o seu resto, que foi denominado de cultura.
Assim, o caminho a percorrer para mudar esse modo
de pensar o ordinário consiste em reconduzir as prá-
ticas e as línguas científicas à vida cotidiana. A mes-
ma operação, a nosso ver, se aplica aos produtores de
mídias, aos elaboradores e executores das políticas de
Estado, das leis e das normas, assim como todas as
outras instituições que buscam se fazer acreditar que
estão acima ou fora dos cotidianos.
Todo esse preambulo foi necessário para questio-
narmos porque pensamos como pensamos. Pesquisar
nos/dos/com os cotidianos não é fácil e requer que
nos dispamos de crenças e aprendizagens arraiga-
das por anos de estudos, leituras, atitudes e privilé-
gios. Requer que nos exercitemos a pensar na/com a
potência do homem ordinário. Em seu exercício para
compreender essa potência, Michel de Certeau passou
a não se interessar pelos artefatos culturais impos-
tos, como faziam outros pesquisadores à época, mas
sim pelas operações dos usuários desses produtos, ou
seja, pelas maneiras diferentes de marcar socialmente
o desvio num dado operado por uma prática (1994, p.
13). A essa nova/outra atitude ele chamou de virada
do olhar analítico.
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homem ordinário

Para começar, o autor adverte que não devemos


tomar os outros por idiotas (Certeau, apud Giard, 1994).
E, dessa forma, precisamos tomar em conta a expe-
riência do outro (Certeau, 2006, p.10). Na análise cer-
teauniana, assinala Josdrilberg (2005, p. 101), as prá-
ticas cotidianas também dependem do que recebem.
Trata-se, então, de investigar os usos que os homens
ordinários fazem do que recebem, tomando esses usos
como uma atividade produtiva que sempre depende
de uma constante tensão com o que está posto ou é
imposto. Dessa forma, para compreender a potência
das artes de fazer e das artes de narrar dos homens
ordinários, faz-se necessário interrogar o que eles fa-
bricam com os usos que fazem dos artefatos culturais
que recebem. A essa fabricação, Certeau chamou de
poética, uma produção silenciosa que não se faz notar
com produtos próprios, mas nas maneiras de empre-
gar os produtos impostos por uma ordem econômica
dominante (Certeau, 1994, p. 39, grifo do autor). Tais
maneiras de empregar implicam uma produção se-
cundária que se realiza nos processos de uso de uma
produção imposta. A virada analítica, então, está na
ênfase dada à performatividade das práticas, inclusi-
ve das práticas narrativas imagéticas e verbais, dos
homens ordinários e as diferenças que elas instituem.
Trata-se, segundo o autor, de pensar a ação cul-
tural não como projeto ou política de Estado, mas
como uma prática cotidiana dos homens e mulheres
ordinários que produzem significação. Cultura, então,
entendida como prática cotidiana significativa. Ela
consiste não em receber, mas em exercer a ação pela
qual cada um marca aquilo que os outros lhe dão para
viver e pensar (Certeau, 1995, p. 142, grifo do autor).
A inversão em relação aos estudos à época consis-

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homem ordinário

te em pensar a cultura como uma rede de operações


produtoras de significados.
Assim como as artes de fazer, as artes de dizer na
cultura ordinária operam com formalidades próprias,
invertendo as relações de força e, frequentemente,
criando histórias que garantem a vitória do oprimido.
Conforme Certeau:

A retórica e as práticas cotidianas são igualmen-


te como manipulações internas a um sistema - da
língua ou a uma ordem estabelecida. “Torneios”
(ou “tropos”) inscrevem na língua ordinária as as-
túcias, os deslocamentos, elipses etc. que a razão
científica eliminou dos discursos operatórios para
produzir sentidos “próprios”. Mas nessas zonas
“literárias” para onde são realocados (como no so-
nho, onde Freud os encontrou) continua a prática
dessas astúcias, memória de uma cultura. Esses
torneios caracterizam uma arte de dizer popular.
(1994, p. 85).

Tal operação remete a uma arte de viver no cam-


po do outro, fazendo emergir um estilo de pensamento
e ação no modelo das práticas ordinárias.
Assim compreendendo, defendemos que em
nossas pesquisas dos/nos/com os cotidianos, torna-se
relevante pensar os cotidianos como campos de luta,
inclusive nas disputas de narrativas, nos quais as re-
lações de força estão sendo sempre contestadas e ten-
sionadas. Torna-se relevante ainda indicar a multipli-
cidade e a heterogênese de modos de existência e de
conhecimentos que se engendram com as operações
de usuários, com as operações significativas produzi-
das por homens e mulheres ordinários, criando cultu-
ras, subjetividades e sentidos.

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homem ordinário

Em nossas pesquisas, tomamos as narrativas,


imagéticas e verbais, dos homens e mulheres ordiná-
rios como fabulações, ou seja, menos como o resgate
do que foi e mais como a criação pelas palavras e pelas
imagens de que pode ser criado. Tal função fabuladora
possibilita pôr em xeque os discursos que se propõem
a falar em nome de um real e que, dessa forma, visam
formatizar a vida. Com suas fabulações, o homem or-
dinário se autoapresenta, desencadeando um devir da
autoimagem de si e de seu grupo, instituindo outras
possibilidades de existir, conhecer e produzir sentidos
que orientem sua ação no mundo.

Referências
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer.
Petrópolis: Vozes, 1994
CERTEAU, M. de. A cultura no plural. Campinas: Papiros,
1995.
CERTEAU, M. de. A escrita da história. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006.
CERTEAU, M. de. História e psicanálise: entre ciência e fic-
ção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2011.
GIARD, L. História de uma pesquisa. In: CERTEAU, M. de.
A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes,
1994.
JOSGRILBERG, F. B. Cotidiano e invenção: os espaços de
Michel de Certeau. São Paulo: Escrituras, 2005.

210
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ayvu

Ii

intimidade
luis portaxix
jonathan aguirrexxx

xix
Doutor em Pedagogia (Uni- versitária (UNMdP) e coordena
versidade de Granada, Espa- o Programa Específico de For-
nha), Especialista em Docência mação em Investigação Narra-
Universitária e Professor licen- tiva, Biográfica e (Auto)Biográ-
ciado em História da Universi- fica do Doutorado em Educação
dade Nacional de Mar del Plata da Universidade Nacional de
(UNMdP, Argentina). Docente Rosario (UNR, Argentina). Au-
e Pesquisador do Departamen- tor de livros e artigos científi-
to de Ciências da Educação da cos, formador de pesquisadores
Faculdade de Humanidades e docentes em pós-graduações
(UNMdP) e Pesquisador Prin- nacionais e internacionais. Es-
cipal do CONICET. Professor pecialista em pesquisa narra-
Titular da Cátedra Problemá- tiva biográfica e autobiográfica
tica Educativa e de Sociologia sob perspectivas decoloniais e
da Educação. Diretor do Centro queer.
de Investigações Multidiscipli- E-mail:
nares em Educação (CIMED) e luisporta510@gmail.com
– sumário –

do Grupo de Investigação em
Educação e Estudos Culturais
xxx
Doutor em Humanidades e
(GIEEC) da Faculdade de Huma- Artes com menção em Ciências
nidades (UNMdP). Coordena o da Educação pela Universidade
curso de pós-graduação de Es- Nacional de Rosário, Argenti-
pecialização em Docência Uni- na. Especialista em Docência

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intimidade

Universitária e Professor de Educação da Faculdade de Le-


História (UNMdP). Bolsista de tras da Universidade Nacional
Pós-Doutorado do CONICET no de Mar del Plata e do Centro de
Programa de Pós-Doutorado Pesquisas Multidisciplinares
da Universidade Nacional de em Educação (CIMED).
Três de Febrero (UNTREF, E-mail:
Argentina). Professor Adjun- aguirrejonathanmdp@gmail.
to Pesquisador Regulador do com
Departamento de Ciências da

É uma palavra francesa bonita, elegante, sedu-


tora, provocante e autêntica: “ín-timo”. “In-” abre, au-
menta a voz, dá o timbre: a “i” harmónica ressoa. Então
“-timo” retrocede, fecha aquele impulso – essa acen-
tuação – suavemente e a torna discreta. A “e” muda
que se retira faz com que termine indefinidamente: faz
murmurar. Quanto ao seu significado, segue seus dois
caminhos paralelos do latim: por um lado, o que vem
mais de dentro, o mais profundo; por outro, que algu-
mas pessoas estão ligadas da maneira mais próxima e
duradoura. O núcleo da coisa e a intensidade da união
(Jullien, 2016, p. 30). Vamos prestar atenção neste ver-
bete do Dicionário naquela intensidade que vibra como
nada e se faz sentir como nunca antes na pesquisa
narrativa, especialmente na pesquisa biográfica e au-
tobiográfica, que é o que nos desafia sensivelmente.
A intimidade é uma dimensão estruturante da
condição biográfica (Arfuch, 2018). Mergulhar em vi-
das autorrelatadas exige um compromisso em relação
à mudança de escala e à profundidade sem preceden-
tes com que nos preparamos para ficar em espera,
num suspense que difere temporalidades e abre o baú
de mistérios não respondidos e certezas desalinhadas,
para nos permitirmos o dever de imersão (Bourriaud,
2020) na vida. Esta é uma experiência in-corporada
212
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intimidade

entre os enredos de nossa existência, ela nos traz de


volta a jornada de miragens vitais.
Reconstruir a vida dos outros/ outras surge como
uma experiência imanente do mundo, como o sopro
que nos permite ser-com e ser-em, como se fôssemos
equilibristas correndo o risco de cair, a intimidade
aparece como aquele milagre de algo suspenso apoia-
do na corda (Dufourmantelle, 2019). Assumir esse ris-
co é um tanto acrobático, pois tocamos e somos to-
cados pela armadura de nossos mitos, nossas raízes
e nossa posição no mundo, é sufocar nossos sonhos,
mas também apostar que esses sonhos se desdobrem
em projeções históricas. Entrar nas inóspitas profun-
dezas da intimidade faz-nos despir/ despir-se num
espaço comum, protegido por aquele momento único
do encontro, fio de verdades que não podiam ser exi-
gidas porque fazem parte de mundos dolorosamente
silenciados. Livrar-se dessa escória, deixar a intimi-
dade interceptar a narrativa biográfica alivia o mundo,
reconstrói seus sentidos e potencializa desejos possí-
veis, quase como o risco de não morrer.
Esses fluxos e refluxos inter-dependentes e
ins-táveis que levam a re-constituir a intimidade e
restaurar seu poder intersubjetivo na construção bio-
gráfica, re-querem um exercício de co-operação e pas-
sagem entre o privado, o íntimo e o público como uma
cadeia de significantes (Miller, 2020) que dão sentido
à expansão biográfica (Porta, 2020). Nesse sentido, o
privado – ou extimidade para Lacan –, pode ser defi-
nido a partir de si mesmo, é aquele esporo que ainda
não se espalhou no subsolo, não foi nômade, compõe
uma viagem interior não compartilhada: é o espaço
que forma o interior do sujeito que dialoga apenas com
a experiência subjetiva, a identidade consigo mesma
constitutiva da identidade subjetiva, núcleo do nosso
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intimidade

ser (Miller, 2020). A extimidade agita um pouco. Com


extimidade [...] tratamos do princípio dos afetos, da-
quilo que abala e afeta o sujeito, [...] designa nada me-
nos que um hiato dentro da identidade consigo mesmo
(Miller, 2020, p. 26). O misterioso, o oculto, os segredos
dissimulados que estão sob sete chaves, fazem emer-
gir as experiências de terror, aquelas que Freud definiu
como a emoção estética do sinistro. Assim, o peso da
experiência estética adquire importância singular na
condição subjetiva.
Por outro lado, a intimidade não acontece sem os
outros, ela delimita um espaço relacional entre os pro-
tagonistas. É uma ponte, uma fronteira ativa entre o
individual e o intersubjetivo como superfície de inter-
faces onde se possibilitam trocas e processos que afe-
tam tanto as configurações do mundo interno, quanto
o mundo das influências e fenômenos intersubjetivos.
A intimidade é um fenômeno humano relacional, ela
cria um território comum que abriga o clima do que é
compartilhado. Cada um se conecta em um território
de harmonia e ressonância afetiva que nos leva a estar
com o outro e a fluir em um espaço de comunhão que
provoca ampliação de experiências subjetivas, afirma-
ção de si e do outro por reconhecimento mútuo. É um
encontro sem palavras (Dryzun, 2017). A intimidade

é poder e agir ao mesmo tempo, porque quando saí-


mos de nós mesmos não somos nada mais que tudo
o que fomos quando fomos recolhidos. Traçar a li-
nha entre o privado e o público é impossível, por-
que o privado e o público estão costurados juntos.
Consequentemente, a intimidade nos dá a oportu-
nidade de nos projetarmos, de nos imprimirmos no
mundo: a intimidade permite-nos fazer. (Meliá de
Alba, 2016, p. 3).

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intimidade

Através do íntimo, as relações tradicionais de


dentro e de fora são rompidas. Efetivamente, pelo in-
vestimento que contém o íntimo, que se torna do mais
secreto no que mais se pode vincular, isto é, do interior
de cada um naquilo que se pode fundar mais profun-
damente, e ao mesmo tempo justificar e provocar, a sua
união com o Outro (Jullien, 2016, p. 21). Não é qualquer
relação que torna possível o encontro íntimo: ambos
deverão se encontrar e escolher; o outro abre e liber-
ta áreas nossas e ao mesmo tempo fazemos o mes-
mo com o outro; a fronteira entre o interior e o exte-
rior perde seus limites, suas arestas contundentes: há
um estado expandido de participação mútua (Dryzun,
2017). A intimidade como experiência compartilha-
da, como recurso potencial subjetivo na relação entre
pares, como ruptura em relação ao outro como obje-
to, como reorganizadora de circuitos de poder e como
autenticamente relacional, gera movimentos sinuosos
que nos remetem a uma obra aberta com o biográfico e
o autobiográfico, amplificando sentidos e sensibilida-
des, captando forças vitais, introduzindo um hiato na
energia pulsional normalizada e modificando a exis-
tência do que se percebe. Isso lhe confere o status de
politicidade, pois permite descolonizar o inconsciente
(Rolnik, 2019) e adentrar em camadas mais profundas
que distorcem a vida e nos permitem ir na direção da
construção de um horizonte de vidas coletivas. Esta
atmosfera de comunhão gerada pela condição íntima
é performativa, visto que se instala permanentemente
em todas as nossas áreas vitais, alterna planos e alon-
ga tempos: torna impossível pensar sobre este víncu-
lo sem considerar o seu caráter performativo. Entre
esses deslocamentos em direção à intimidade como
performance, a noção de performatividade de gênero
de Judith Butler (2007) é central para interromper a
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intimidade

figura de um sujeito humanista que decide. A teórica


queer declarou:

Se eu tivesse argumentado que os gêneros são


performáticos, isso significaria que pensava que
a gente acordava de manhã, vasculhava o guarda-
-roupa ou algum espaço maior em busca do gênero
que você queria escolher e o atribuía a si mesmo
durante o dia para colocar de volta à noite. Esse
sujeito voluntário e instrumental, que decide sobre
seu gênero, claramente não pertence a esse gênero
desde o início e não percebe que sua existência já é
decidida pelo gênero. (Butler, 2007, p. 12).

Assim, o gênero – não é biológico nem cultural –


é constituído pelos modos como o corpo do indivíduo
se desdobra em um determinado contexto. Sem iden-
tidade prévia, os atos performáticos são aqueles que
determinam a construção do gênero e sua transforma-
ção em reiteração de atos que querem se aproximar do
ideal de uma identidade. Butler (2007) enfatizou que
gênero não é efeito de uma escolha pessoal, individu-
al ou autônoma, mas sim um determinante do sujeito
– ou melhor, de suas subjetividades instáveis. A ideia
de gênero como algo inerente e imóvel é questiona-
da para dar lugar a uma construção performativa de
identidades em movimento: como a intimidade. A pes-
quisa narrativa, como opção onto-epistemo-política e
estética, encontra sentido pleno de seu poder transfor-
mador ao passar de um registro asséptico a uma me-
lodia íntima, pois permite aprofundar os traços vitais
que posicionam o pesquisador de uma forma afetante
e afetiva, sensível à intersubjetividade que percorre os
ambientes da investigação. Isso nos permite viver o
“entre” e o “com” como uma experiência transforma-
dora do nós (Wayar, 2019).

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intimidade

O terceiro elo da cadeia de significantes é a


passagem do íntimo ao comum. Igual ao cualsea do
Agamben (1996), encontra-se no hiato entre o geral e
o individual. O mandato do grupo e o desejo operam
para entendê-lo. Resgatar a singularidade, a particula-
ridade, a subjetividade diante do movimento avassala-
dor do capitalismo é a aposta. É onde e quando essas
singularidades manifestem pacificamente seu ser co-
mum, onde e quando poderemos construir a comuni-
dade que vem, cedendo ao desejo capitalista de cual-
sea. A narrativa biográfica é a garantia de passagem
na cadeia dos significantes e o relâmpago que prediz
que a chuva ainda está por vir.
Percorrer essa cadeia de significantes na pes-
quisa narrativa implica viver a vida sensível (Coccia,
2016), como uma estética íntima relacional (Bourriaud,
2013) que transita pelo conjunto dos seres vivos. Neste
ponto, não há oposição entre os vivos e os não vivos.
Todo vivente está em continuidade não só com o não
vivente, mas é também seu prolongamento, sua meta-
morfose, sua expressão mais extrema (Coccia, 2021, p.
13). Essas passagens são ao mesmo tempo sensíveis e
perturbadoras, elas nos permitem ouvir o silencio, en-
tender e compreender pequenas-grandes mudanças
que afetam vidas em um tempo mais longo, em narra-
tivas de mundos – desde a experiência humana, em-
pática (de Waal, 2011) e performativa (Hang; Muñoz,
2019). A intimidade coloca os mistérios e belezas das
paisagens que nos habitam no centro da cena, como
um continuum sensual-intelectual (Brady, 2017) onde
o inexplorado é vital, o silenciado como uma interpe-
lação sensível: a intimidade como experiência vital,
como produção que promove movimentos, desloca, se
decompõe em favor da resistência e da re-existência
para sermos nós mesmos e nos transformarmos em
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intimidade

comunidade, tornando nossos mundos mais respirá-


veis e habitáveis (Ahmed, 2019).
A obra de Sophie Calle, artista conceitual fran-
cesa nascida em 1953, de maneira particular intercep-
ta a intimidade e dialoga com a experiência subjetiva
que significa a passagem entre o privado/ éxtimo; o
íntimo e o público/ comum. Em Dolor Exquisito, sua
própria experiência traumática é banalizada, a partir
da repetição em outras pessoas do cataclismo que pro-
duz uma ruptura amorosa após sua viagem ao Japão.
Ao retornar, decide questionar as pessoas sobre suas
piores e trágicas experiências. São estas que a ajudam
a lidar com a sua dor pelo seu efeito comparativo e
um exercício de projeção mútua através de uma es-
pécie de personagem ficcional que vive a própria vida
como ficção. Calle suplanta sua própria vida, sua pró-
pria experiência baseada nas histórias de outros. Por
meio da repetição, documenta a experiência (própria
e alheia) e gera traços íntimos que fazem com que o
trauma original seja revertido. A sua experiência pri-
vada torna-se íntima no momento em que pede aos
outros que contem as suas próprias experiências trau-
máticas e depois em comum, quando a obra é exposta
ao público e tem aquela circularidade necessária que
consegue modular a ficção que resolve o trauma não
só de Sophie Calle, mas também de cada um e de todos
aqueles que relatam seu próprio trauma e, potencial-
mente, de cada um dos visitantes que são afetados de
forma relacional pela obra. Tanto a “autora” da obra
quanto todos os sujeitos intervenientes são “curados”
de suas próprias vidas a partir do “com-partilhamen-
to” do registro íntimo.
A seguir, o íntimo como dimensão estruturan-
te da dimensão biográfica surge como um arquipé-
lago (Marchon, 2021) de passagem, que nos permite
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intimidade

re-construir e re-constituir o sentido da própria ex-


periência biográfica, e funciona como motor para a
produção de afetações sensíveis nos outros que, a par-
tir disso, reconstroem a própria existência. Interde-
pendência e inclusão em sua forma mais pura (Porta;
Ramallo, 2021).

Referências
AGAMBEN, G. La comunidad que viene. Madrid: Pre-Textos,
1996.
AHMED, S. La promesa de la felicidad. Una crítica cultural
al imperativo de la alegría. Buenos Aires: Caja Negra, 2019.
ARFUCH, L. La vida narrada. Memoria, subjetividad y políti-
ca. Villa María: Eduvim, 2018.
BOURRIAUD, N. Estética relacional. Buenos Aires: Adriana
Hidalgo, 2013.
BOURRIAUD, N. Inclusiones. Buenos Aires: Adriana Hidalgo,
2020.
BRADY, I. Poética por un planeta. Un discurso sobre algunos
problemas del ser-en-lugar. In: DENZIN, N.; LINCOLN, Y. (co-
ords.). El arte y la práctica de la interpretación, la evaluaci-
ón y la presentación. Barcelona: Gedisa, 2017.
BUTLER, J. El género en disputa. El feminismo y la subver-
sión de la identidad. Barcelona: Paidós, 2007.
COCCIA, E. La vida sensible. Buenos Aires: Marea, 2011.
COCCIA, E. Metamorfosis. Buenos Aires: Cactus, 2021.
DUFOURMANTELLE, A. Elogio del riesgo. Buenos Aires:
Amalia Federik, 2019.
DRYZUN, J. La intimidad como experiencia de lo comparti-
ble. Revista Aperturas Psicoanalíticas, n. 56, 2017.
JULLIEN, F. Lo íntimo. Lejos del ruidoso amor. Buenos Aires:
El cuenco de plata, 2016.
DE WAAL, F. La edad de la empatía. ¿Somos altruistas por
naturaleza? Barcelona: Tusquets, 2011.

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intimidade

HANG, B.; MUÑOZ, A. (comps.). El tiempo es lo único que


tenemos. Actualidad de las artes performativas. Buenos
Aires: Caja Negra, 2019.
MARCHON, O. Rarezas geográficas. Buenos Aires: Ediciones
Godot, 2021.
MELIÁ DE ALBA, M. Apología de la intimidad. Valencia:
Universidad de Valencia, 2016.
MILLER, J. Extimidad. Buenos Aires: Paidos, 2020.
PORTA, L. La expansión biográfica en la investigación edu-
cativa. Movimientos y aperturas metodológicas. Revista
Brasileira de Pesquisa Autobiográfica, v. 5, n. 16, 2020.
PORTA, L.; RAMALLO, F. Los relatos de Susana y Alicia.
Flujos (inter)dependientes y fragilidades humanistas entre
lo íntimo y lo biográfico. Revista Rutas de Formación, 2021,
no prelo.
WAYAR, M. Travesti. Una teoría lo suficientemente buena.
Buenos Aires: Muchas nueces, 2019.

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ayvu

Mm

memória, narrativa e pedagogia


daniel suárezxxxi

xxxi
Possui graduação em Cien- editorial da Revista Educacion
cias de la Educación pela Uni- y Pedagogía, Membro de corpo
versidad de Buenos Aires (1989) editorial da Revista Educação
e doutorado em Ciencias de la em Questão (UFRN. Impresso)
Educación pela Universidad e Revisor de projeto de fomento
de Buenos Aires (2009) . Atual- do Instituto Nacional de Forma-
mente é Profesor Adjunto Regu- ción Docente. Tem experiência
lar da Universidad de Buenos na área de Educação , com ên-
Aires, Membro de corpo edi- fase em Pedagogía.
torial da Contemporaneidade E-mail:
e Educação, Membro de corpo danielhugosuarez@gmail.com

Todo está escondido en la memoria


refugio de la vida y de la historia.
– sumário –

La memoria estalla hasta vencer


a los pueblos que la aplastan y no las dejan ser libre
como el viento
– León Gieco.

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memória, narrativa e pedagogia

A memória e a narrativa possuem uma longa


história de filiação, contribuição mútua e efeitos po-
líticos compartilhados. Recordamos, extraímos dessa
zona cinzenta, silenciosa e inerte que é o esquecimen-
to, aquilo que narramos ou que nos narram, aquilo que
por obra do relato renasce ao ser nomeado, ao ser dito
ou escutado, escrito ou lido, e se entrelaça em uma
nova intriga configurada por nossos relatos de sempre.
Ao narrar uma e outra vez, aquilo que estava oculto ou
ausente pela amnésia individual e coletiva torna-se
nítido, ativo, presente, de alguma maneira, no exercí-
cio inveterado de contar histórias, de atentarmos ao
detalhe e às minúcias dos eventos do passado para
torná-los acontecimentos vivos e projetá-los ao futuro.
Grande parte das religiões, entendidas como me-
mória constituída e composta pela experiência espiri-
tual dos povos, mantém-se ou manteve-se viva, atual e
gerativa a partir da prática apaixonada e apaixonante,
obsessiva e ritualística do relato. A sabedoria popular
e os imaginários coletivos também são o resultado
contraditório e disruptivo de não permitir cair no es-
quecimento, o que mobiliza, comove e sacode os que
suportam, resistem e desafiam as estratégias do poder
e de seus discursos de desmemória e de dissolução ou
submissão do outro, do diferente, do que se considera
ameaçador, do que se pretende apagar qualquer marca.
Mediante histórias que se repetem, se recriam
e se transmitem, de geração em geração, através de
práticas discursivas institucionais mais ou menos
amparadas, foram mantidas em alerta, aqui e ali, em
todo momento histórico e em toda cultura, as vozes
que se pretendeu calar, os olhares que quiseram cegar,
as identidades que tentaram suprimir, mas que deixa-
ram marcas e vestígios, pistas para serem evocadas
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memória, narrativa e pedagogia

em toda sua vitalidade. As identidades, mas também


as socialidades, podem se afirmar, firmar e se reinven-
tar em suas continuidades e rupturas, no que possuem
em comum, em sua singularidade e não repetição,
a partir desse jogo entre memória, transmissão e
narração. Portanto, a educação pode ser considera-
da como um território, uma prática e um laço que se
soma ao acolhimento, ao encontro com o novo e com
os momentos dessa trilogia para recriar a fertilidade
de comunidades de sentidos desmembrados.
Dessa maneira, a memória popular e coletiva
é uma construção imprecisa, uma elaboração difu-
sa, a consequência improvável de uma prática mais
ou menos deliberada, mas sempre política, de evitar
o esquecimento, de fazer da lembrança e de seus em-
blemas uma presença que foi negada, suspensa ou
interditada. A memória se faz e, nesse sentido, se faz
fundamentalmente mediante relatos. E, por conse-
guinte, possui este caráter ficcional, configurado, em
certa medida artificial, de toda narrativa, ainda que
almeje restituir a verdade e o justo. A imaginação está
vinculada à memória justamente nesse jogo criativo,
generativo, de inovação semântica, o que coloca em
xeque seu caráter veritativo, e evidencia sua relação
sinuosa com a verdade. A lembrança mediante rela-
tos é um artifício, uma reconstrução na qual opera, de
maneira incerta, a dialética entre a memória e o es-
quecimento. É um campo de disputas repleto de mani-
pulações e abusos, o qual sofre intervenções tanto de
“ideologias que impõem o esquecimento” mediante o
silêncio e subtrações arbitrárias, quanto de “comemo-
rações forçadas” que fabricam uma memória alienada,
morta, despojada de vigor e de astúcia para represen-
tar o passado, pensar de novo o presente e expandir
utopicamente o futuro.
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memória, narrativa e pedagogia

Os relatos e, sobretudo, os testemunhos e as nar-


rativas autobiográficas foram e são decisivos na hora
de lembrar do horror e do sofrimento humano, de edi-
ficar memória, verdade e justiça, de tornar política, pú-
blica e coletiva a dor singular, silenciada e esquecida.
As histórias trágicas e inumanas dos sobreviventes e
vítimas do Holocausto, as narrações de aberrações vi-
vidas em genocídios, os testemunhos jurídicos de in-
justiças, o opróbrio e os crimes de lesa-humanidade da
última ditadura civil-militar da Argentina. Os relatos
de desterro, morte, tortura e solidão da guerra impie-
dosa na Colômbia são algumas das táticas políticas e
narrativas utilizadas pelas organizações de direitos
humanos e pela população para fazer memória do hor-
ror e da dignidade, e para projetar nesse movimento de
evocação toda ressonância política do “Nunca mais” e
do “Basta!”. Uma “política da justa memória”, que pos-
sui uma dimensão pedagógica medular no que concer-
ne à reconstrução do laço, à transmissão cultural e à
formação de subjetividades memoráveis e justas, com
consciência histórica. As pedagogias da memória em
seu desdobramento democrático e disruptivo, sempre
conflituoso e disputado, fazem da escola e das práticas
educativas um lugar e um momento de rememoração
e acolhimento do outro, do diferente, do encontro reno-
vado ou inédito com narrativas plurais da experiência
coletiva e conversa vital e aberta ao futuro.
Desestabilizam a tendência ao esquecimento se-
letivo e político das vozes silenciadas, violentadas e
suprimidas do currículo, do imaginário coletivo e da
vida social. Isto é, propostas e formas de pedagogia
que reconfiguram a escola e põem em xeque sua re-
publicana pulsão homogeneizadora, que interpelam e
traem sua gramática conservadora de ordem instituí-
da e que tornam evidentemente políticos os discursos,
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memória, narrativa e pedagogia

as narrativas e os silenciamentos que impregnam as


práticas educativas e circulam por suas salas de aula,
corredores e pátios. Pedagogias que colocam a esco-
la e outros âmbitos educativos em sintonia com um
renovado processo civilizatório que emerge das lutas
democráticas e populares, que conjuga políticas de
identidade, reconhecimento e justiça cognitiva, e que
propõem um horizonte de paz, confiança e solidarie-
dade para viverem juntos no mundo.
Ademais, esta ligação constitutiva e instável en-
tre memória, transmissão, narrativas e identidades
adverte sobre as possibilidades e a viabilidade de uma
memória pedagógica que resgate do esquecimento e
do desgosto as experiências, os saberes e os discursos
educativos ignorados, deslocados ou deslegitimados
pelas retóricas do controle tecnocrático e de suas po-
líticas de silenciamento, descrédito e amnésia. Uma
memória pedagógica que viabilize e que se faça pre-
sente nos empenhos, nas táticas e nas práticas que
muitos docentes e educadores implementam no co-
tidiano escolar ou em seus movimentos para “fazer
escola”, aquém e além dos mandatos consolidados
pelo poder do silêncio e da ausência. Uma memória
da escola que recupere, reconstrua, documente, torne
publicamente disponível e faça circular no campo pe-
dagógico e no debate político as experiências, saberes
e discursos pedagógicos construídos anonimamente
e insistentemente pelos docentes, enquanto estes re-
criam localmente, em cada instituição e em cada sala
de aula, a transmissão cultural, a formação e o ensino.
A história proscrita da vida escolar e do presente vela-
do da pedagogia feita e recriada por docentes está re-
pleta desses acontecimentos disruptivos e emergentes
que ultrapassam as margens do instituído e requerem
relatos para que se possam constituir acontecimentos
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memória, narrativa e pedagogia

visíveis, presentes, ativos.


A pesquisa narrativa em educação, sobretudo a
de recorte (auto)biográfico, há algum tempo vem tra-
çando este trabalho de memória pedagógica que con-
juga vozes singulares e coletivas para reconhecer,
reconstruir, documentar e fazer circular saberes, ex-
periências e sujeitos desperdiçados pela racionalidade
indolente hegemônica. Em um afã inegavelmente mi-
litante, que disputa legitimidade para produzir conhe-
cimentos em educação às modalidades convencionais
de pesquisa, propicia a geração de oportunidades para
que os docentes e pesquisadores educacionais com-
prometidos com a transformação democrática da es-
cola e organizados em redes de colaboração e partici-
pação horizontal tomem a palavra, recuperem a voz da
experiência, inventem outras formas de nomear, dizer
e escrever a educação, revitalizem a pedagogia e mo-
bilizem-se contra o esquecimento.
Depois de tudo, e tal como propõe Gabriel Murillo,
“não temos mais opção senão persistir na geração da
narrativa que preserva a memória como forma de tri-
buto à justiça, ao mesmo tempo que se cria um espaço
público onde se possa exercer um trabalho de memó-
ria que não se reduza somente ao luto do que já não
é, mas que salde a dívida com respeito ao que já foi.
E pode seguir sendo”. Pedagogia da memória e me-
mória da pedagogia são as duas faces de uma urgente
política de conhecimento que coloca em foco a escu-
ta e o diálogo público, a vívida experiência dos sujei-
tos, e que pensam e fazem da escola um espaço e um
tempo dirigidos ao reconhecimento, à anamnese e à
transformação.

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memória, narrativa e pedagogia

Referências
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cia: narrativa, investigación y formación docente. Buenos
Aires: EFFL y CLACSO, 2011.
ARANGO, M.; JAIME, G. (comps.). Narrativas de experien-
cia en educación y pedagogía de la memoria. Buenos Aires:
EFFL, Universidad de Antioquia y CLACSO, 2015.
ARFUCH, L. et al. Identidades, sujetos y subjetividades.
Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005.
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Colombia: memoria de guerra y dignidad. Bogotá: Imprenta
Nacional, 2013.
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PERSONAS. Nunca más. Buenos Aires: EUDEBA, 1984.
HALLBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro,
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LOMAS, C. [2002]. La vida en las aulas. Memoria de la escue-
la en la literatura. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MINISTERIO DE EDUCACIÓN, CIENCIA Y TECNOLOGÍA.
Entre el pasado y el futuro. Los jóvenes y la transmisión de
la experiencia argentina reciente. Buenos Aires: Ministerio
de Educación, Ciencia y Tecnología, 2007.
RICOEUR, Paul. La memoria, la historia, el olvido. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica, 2004.
SARLO, Beatriz. Tiempo pasado. Cultura de la memoria y
giro subjetivo. Una discusión. Buenos Aires: Siglo veintiu-
no, 2005.

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ayvu

Nn

narrativa como
forma de conhecer
as experiências do mundo
maria marta yedaidexxxii
luis portaxxxiii

Doutora em Humanidades e
xxxii
de de Arquitetura, Urbanismo e
Artes com ênfase em Ciências Design (UNMdP). Autora e co-
da Educação (Universidade Na- autora de livros e artigos cien-
cional de Rosário, Argentina). tíficos, tutora de pesquisadores
Especialista em Docência Uni- em formação, parecerista de
versitária e Professora de in- publicações acadêmicas nacio-
glês da Universidade Nacio- nais e internacionais. Pedagoga
nal de Mar del Plata (UNMdP, crítica, decolonial e queer, inte-
Argentina). Diretora do Depar- ressada nos processos de edu-
tamento de Ciências da Edu- cação docente e na pesquisa
cação da Faculdade de Huma- educativa.
nidades (UNMdP). Diretora do E-mail:
Grupo de Pesquisa em Cenários myedaide@gmail.com
e Subjetividades Educativas do
Centro de Pesquisas Multidis- Doutor em Pedagogia (Uni-
xxxiii

ciplinares em Educação. Dire- versidade de Granada, Espa-


tora da Revista de Educação nha), Especialista em Docência
– sumário –

da Faculdade de Humanidades Universitária e Professor licen-


(UNMdP). Diretora do Grupo de ciado em História da Universi-
Extensão Reescrituras no Cam- dade Nacional de Mar del Plata
po da Educação (UNMdP). Pro- (UNMdP, Argentina). Docente
fessora Regular da Faculdade e Pesquisador do Departamen-
de Humanidades e da Faculda- to de Ciências da Educação da

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narrativa como forma de conhecer as experiências do mundo

Faculdade de Humanidades ma Específico de Formação em


(UNMdP) e Pesquisador Prin- Investigação Narrativa, Biográ-
cipal do CONICET (Argenti- fica e (Auto)Biográfica do Douto-
na)1. Professor Titular da Cá- rado em Educação da Universi-
tedra Problemática Educativa dade Nacional de Rosario (UNR,
e de Sociologia da Educação. Argentina). Autor de livros e
Diretor do Centro de Investi- artigos científicos, formador de
gações Multidisciplinares em pesquisadores e docentes em
Educação (CIMED) e do Grupo pós-graduações nacionais e in-
de Investigação em Educação ternacionais. Especialista em
e Estudos Culturais (GIEEC) da pesquisa narrativa biográfica e
Faculdade de Humanidades autobiográfica sob perspectivas
(UNMdP). Coordena o curso de decoloniais e queer.
pós-graduação de Especializa- E-mail:
ção em Docência Universitária luisporta510@gmail.com
(UNMdP) e coordena o Progra-

Diante do desafio de compor um “verbete” que


colabore com a compreensão da narrativa como for-
ma de conhecer as experiências do mundo, dois mo-
vimentos propedêuticos e solidários se impõem. Por
um lado, devemos e queremos documentar as crenças
que constituem as lentes interpretativas – singulares,
locais e imediatas – que condicionam o ponto de vis-
ta de quem escreve. Isso inclui, inevitavelmente, falar
sobre as intenções e expectativas que investimos no
exercício. Em seguida, colocaremos a “definição” em
chave insurgente, conforme proposta por Pérez (2016)
para falar do queer, aludindo menos ao que é a narra-
tiva, a favor de dizer o que ela faz e pode fazer com/
entre/por/para nós.
A rebeldia inicial não é teimosa, mas pedagó-
gica (no sentido da virada pedagógica proposta por
Norman Denzin, em 2018): queremos desabituar cer-
tas formas de significação para favorecer outras mais
instáveis, menos dogmáticas e mais fluidas (Ahmed,
2019). Quando dizemos “narrativa”, usamos premis-
sas queer, descoloniais, críticas, afetivas, eróticas que
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narrativa como forma de conhecer as experiências do mundo

entendem que o conhecimento não é apenas situado


(Haraway, 1995) e corporificado (Varela, 1990), mas
também e fundamentalmente performativo (Butler,
1990). Histórias inter-agem conosco, gerando afetação
recíproca e até outros modos de ontogênese (Barad,
2007; Rosiek; Snyder, 2018). Contar é criar, e narrati-
vas são invenções condicionadas pelo que é pensável
e dizível em um determinado espaço-tempo (Angenot,
2012), mas sempre participantes da luta para dispen-
sar e restabelecer ontologias (Yedaide, 2017).
Chegamos à narrativa por meio da investigação
(auto)biográfica de professores universitários reco-
nhecidos por seus alunos como professores memo-
ráveis (Álvarez; Porta; Sarasa, 2010; Yedaide; Álvarez;
Porta, 2015). As entrevistas compuseram histórias,
não só sobre o que foi dito, mas também sobre o que
foi gestado entre os palestrantes e sobre as ondas de
choque em direção/entre novos públicos. Havia uma
qualidade nessas histórias que as tornava hospitalei-
ras e um “algo” perturbador que a linguagem da aca-
demia insistia seriamente em deixar de fora. Essas
histórias eram capazes de erotizar e erotizar-nos, de
nos comprometer eticamente com uma sensibilidade
comum. E embora tenhamos começado por pensar a
narrativa como forma de produção de conhecimento
científico – lutando muito graças ao apoio de grandes
referentes que há décadas defendem seu valor disci-
plinar – as voltas narrativas e ontológicas acabaram
deslocando esse primeiro olhar baseado na linguística
e hermenêutica, questionando tanto a possibilidade de
conhecer fora da narrativa (desafiando a própria ciên-
cia como um tipo particular de história), quanto a nar-
rativa como representação da realidade.
Para o primeiro movimento, o pós-estruturalis-
mo europeu tem colaborado muito, mas também os
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narrativa como forma de conhecer as experiências do mundo

aspectos pós-coloniais e descoloniais: os debates em


torno da construção do Outro da Europa (Said, 1978), a
colonialidade do conhecimento (Lander, 2001) e a epis-
temologia do ponto zero (Castro-Gómez, 2005), para
citar apenas contribuições já antigas e ressonantes,
fragilizou a credibilidade do conhecimento científico
ao expor o ponto de vista necessariamente provincia-
no de toda experiência de conhecimento no mundo.
Ao mesmo tempo, as experiências perdidas (Santos,
2003) tornaram-se visíveis e audíveis, numa explosão
epistemológica de opções cosmogônicas que reivindi-
caram com argumentos irrefutáveis as mesmas con-
dições para sua legitimação.
Para o segundo movimento – aquele que propõe
que a narrativa transcende a política da representação
–, a radicalização de novos materialismos (de Freitas,
2017; Barad, 2003) e o pós-humanismo (Braidotti, 2015)
estão fazendo muito. A performatividade butleriana
é ainda radicalizada ao analisar as maneiras pelas
quais as narrativas (teorias, histórias, mitos, etc.) in-
teragem em/com/entre nós e nos afetam conforme
as afetamos (Rosiek; Snyder, 2018; Kuby; Christ, 2018;
Nordstrom, 2018).
Essa caracterização particular da narrativa – que
estamos constantemente compondo e decompondo
(Ramallo, 2019), em comunhão com vozes autorizadas
– é politicamente enfatizada quando é reconhecida
como intencional. Aqui, a história está ligada ao nosso
envolvimento na formação e educação de professores
e ao valor ético-político que lhe damos. Narramos para
interromper gramáticas necropolíticas e para abrir
espaço para processos de gestação de possibilidades
de existência mais benevolentes e amigáveis (Porta,
2020). Com micro movimentos ativos com bússola éti-
ca (Rolnik, 2019), nos envolvemos em iniciar e manter
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narrativa como forma de conhecer as experiências do mundo

conversas oportunas e importantes que desestabili-


zem as positividades tóxicas do mundo contemporâ-
neo (Halberstam, 2018).
Confiamos na validade catalítica e educacional
da pesquisa narrativa (Kincheloe; McLaren, 2012), re-
conhecendo as matrizes dominantes e seu poder na de-
finição das condições de inteligibilidade, mas também
aprendendo, na rua, a exercer o poder de reivindicar o
público. Em tempos de pandemia, isso implica olhar
de frente a qualidade pornográfica da desigualdade e a
captura de discursos educacionais pelas classes mé-
dias que, como no conservadorismo norte-americano
(Apple, 1996), escondem em suas palavras o desejo de
salvaguardar seus privilégios. Também nos interessa
aquelas palavras que ferem, que ignoram mundos per-
versos e que proxenetizam a energia vital de alguns e
de outros, todos da mesma maneira (Rolnik, 2019).
As narrativas permitem-nos, efetivamente, co-
nhecer as experiências do mundo – no sentido de or-
denar a escuta no que diz respeito à composição par-
ticular de alguns mundos. Mas quem (a) diz a eles, de
onde, para que e por que estão relacionados são ques-
tões inevitáveis. A autorização para narrar continua
concentrando a riqueza do poder social que regula o
corpus narrativo que, ao mesmo tempo, constrói a re-
alidade e a legitima. É interessante, então, pensar em
colaboração e reiteração como oportunidades para
instituir as histórias de que precisamos.
O tempo em que vivemos é excepcional; parece
que a teimosia da pandemia – a continuidade e exten-
são de sua presença – está conseguindo nos sacudir
da letargia moderno-colonial, das inércias que, na au-
sência de questionamentos sobre suas intenções, con-
tinuam a se expressar como hábitos que reforçam a
sensação de familiaridade (Ahmed, 2019). Mas não pa-
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narrativa como forma de conhecer as experiências do mundo

rece mais desejável, nem mesmo possível, permanecer


acostumado ao terror. Na imanência dessa iminência,
percebemos a simultaneidade vibracional de muitas
possibilidades (Berardi, 2019, p. 160). Futurabilidades
que requerem sensibilidade estética, atos poéticos
que abram espaço para o vivenciável. Também, então,
concebemos narrativas como performações que, aten-
tas às pulsações vibratórias contemporâneas, podem
ampliar os horizontes de inteligibilidade para as rea-
lidades que precisam emergir, revolucionando não só
os sujeitos, mas também os predicados (Ahmed, 2020).
Não seriam mais tecnologias para o conhecimento do
mundo, mas para o nascimento de novos marcos se-
mióticos, ou seja, de novos mundos (Berardi, 2019).

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narrativa como forma de conhecer as experiências do mundo

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Problemática Educativa como organismo vivo frente el de-
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RAMALLO, F. ¿Pedagogía cuir?: Un elogio a su descomposi-
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narrativa como forma de conhecer as experiências do mundo

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YEDAIDE, M. El relato “oficial” y los “otros” relatos sobre la
enseñanza en la Formación del Profesorado. Un estudio in-
terpretativo en la Facultad de Humanidades, UNMDP. 2017.
Tese (Doutorado em Humanidades y Artes, con menção em
Ciências da Educação) – Universidad Nacional de Rosario,
Rosario (Argentina), 2017.

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ayvu

narrativas da, com a e na


educação de jovens e adultos
marta lima de souzaxxxiv

xxxiv
Pedagoga (UERJ), especia- pesquisas relacionam-se ao en-
lista em Educação de Jovens e sino e aprendizagem da lingua-
Adultos (UFF), Doutora e Mes- gem escrita e oral para jovens
tre em Educação pela Univer- e adultos com foco na alfabe-
sidade Federal Fluminense tização, aos discursos/às nar-
(UFF). Atua como professora e rativas dentro e fora da escola
pesquisadora na Faculdade de e à formação de professores.
Educação da Universidade Fe- Integra os grupos de pesquisa/
deral do Rio de Janeiro (UFRJ) CNPq: “Laboratório de Investi-
nos cursos de Pedagogia e de gação, Ensino e Extensão em
Especialização Saberes e Prá- Educação de Jovens e Adultos”
ticas na Educação Básica com - LIEJA e o “Grupo de Ações de
ênfase em Educação de Jovens Ensino, Extensão e Pesquisa –
e Adultos. Os campos princi- Fórum de Ensino da Escrita”
pais de pesquisa são Educação – GRAFE.
e Linguística Aplicada ao ensi- E-mail:
no da Língua Portuguesa. Suas souzamartalima@gmail.com

As narrativas na Educação de Jovens e Adultos


– EJA compreendem a dimensão do diálogo (Freire,
1987) de modo que se constituam como expressões dos
ditos da, com a e na EJA. Implicam, portanto, refletir
sobre como pessoas jovens e adultas, pouco ou não
– sumário –

escolarizadas e inseridas em sociedades desiguais,


dominadoras, opressoras, foram e são destituídas do
direito de dizer, oral (fala) e/ou escrito; e como elas to-
mam a palavra, (re)aprendem a dizê-la, isto é, a dizê-

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narrativas da, com a e na educação de jovens e adultos

-la como sujeitos (Freire, 1987) e não como objetos a


serem ditos pelos outros. Sujeitos que não podem ser
compreendidos fora do texto, seja oral e/ou escrito, no
qual o discurso, que associamos à narrativa, é uma
arena de lutas, internas e externas (Bakhtin, 2003).
Dizer a sua palavra é adentrar na arena de lutas,
na disputa de linguagem e, portanto, romper a cultura
do silêncio (Freire, 1987) como expressão de negação
do direito de dizê-la, de ocultação do mundo, de de-
sumanização dos sujeitos e de suas invisibilidades.
O que requer assumir o diálogo como práxis, ação e
reflexão, de modo a narrar-se a si mesmo e coletiva-
mente o mundo com os pares, mediado por este para
narrá-lo, (re)criá-lo e pronunciá-lo como processo his-
tórico-cultural ao compreender que ele está sendo. É
romper com os privilégios de poucos em detrimento
da maioria ao retomar o direito de expressar-se e de
expressar o mundo, assumindo a sua recriação e as
decisões sobre ele como atos políticos e responsáveis
(Bakhtin, 2003).
Assim, indagamos: como as pesquisas que te-
nham como campo empírico a EJA têm compreendi-
do tais narrativas na perspectiva de que possam con-
tribuir para desmontar o sistema opressor sob esses
grupos, bem como para auxiliá-los na construção de
um projeto libertador? Quem tem poder para falar/es-
crever na EJA? Quem está autorizado a falar/a escre-
ver? O que sabem sobre textos orais/escritos? Como os
usam e o que fazem com eles em diferentes contextos
sociais, históricos e culturais?
Na primeira dimensão – narrativas da EJA, de
dentro, de seu interior –, implica reconhecer a lingua-
gem como um lugar de disputa, que a língua em seu
aspecto político pode criar, fixar e perpetuar relações
de poder e violência (Kilomba, 2019, p. 14). Implica re-
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narrativas da, com a e na educação de jovens e adultos

conhecer os diferentes apagamentos e silenciamen-


tos impostos às pessoas jovens e adultas como clas-
ses oprimidas que invisibiliza(ra)m, inclusive, as suas
epistemes, os seus saberes e as suas práticas.
Para romperem a condição de oprimidas, terão
de se apropriar da língua do opressor, compreenden-
do a linguagem como espaço de luta, mas também de
criação de suas próprias narrativas. Ou seja, ao apro-
priarem-se de práticas sociais de uso da escrita e da
oralidade, as classes oprimidas, pouco ou não escola-
rizadas, por meio de expressões de um poder criativo
como forma de resistência e de luta política, poderão
ir contra políticas de dominação que querem mantê-
-las anônimas e mudas. Trata-se de uma luta políti-
ca, interna e externa para saírem do lugar de objetos
para o de sujeitos em um movimento de reexistência,
no qual o ato de falar/escrever transmuta-se em uma
transição de objetos para sujeitos (hooks, 2019), bem
como de assumir os riscos de falar/escrever com suas
implicações, assumindo a nossa própria fala/escrita
(Gonzalez, 2020 [1983]).
Compreendemos como sujeitos aqueles que de-
finem as suas próprias realidades, estabelecem as
suas próprias identidades e nomeiam as suas histó-
rias e como objetos os que têm suas realidades defi-
nidas por outros, suas identidades criadas por outros
e suas histórias contadas pelas relações com aqueles
que se autonomeiam sujeitos (Kilomba, 2019). Assumir
a voz que liberta, oral e/ou escrita, é criar um ato de
descolonização (Kilomba, 2019) tornando-se o orador
e o escritor de si mesmo e da realidade em que vive.
Descolonização de saberes, de práticas e de culturas
deixadas de fora do universo acadêmico, ampliando-
-lhe como espaço de múltiplas culturas ao diminuir as
distâncias entre ele e os sujeitos da EJA.
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narrativas da, com a e na educação de jovens e adultos

Em uma sociedade extremamente desigual como


a brasileira, calcada em uma perversa distribuição de
renda e de bens simbólicos como, por exemplo, a edu-
cação, devido a uma política de um Estado opressor,
as pessoas pouco ou não escolarizadas foram e são
obrigadas a buscarem outras formas de subsistência
para permanecerem vivas, a criarem e recriarem seus
saberes e suas práticas.
O narrar-se por meio da assunção da fala/escri-
ta como forma de romper os silêncios, como gesto de
resistência, de contar as suas histórias, alia-se ao alfa-
betizar-se como aprender a dizer a sua palavra, a bio-
grafar-se, a ter um papel ativo sobre a própria história,
e não a ser falado/escrito pelo opressor/dominador,
como objeto. Nesse sentido, pesquisas que incorporem
as narrativas da EJA, que partam de seus saberes e
práticas culturais silenciadas, que compreendam que
o acesso à língua do opressor é um instrumento de
luta, podem contribuir para que grupos oprimidos/ex-
plorados possam, ao romper silêncios, (re)encontrar e/
ou celebrar o alcance da sua voz, libertá-la como for-
ma de narrar e produzir as próprias histórias.
A EJA é marcada por práticas de dominação
como o racismo, o machismo, a exploração da clas-
se trabalhadora, o sexismo causadoras de feridas,
machucados e desumanizações expressos em fome,
trabalho precarizado, ausência de escolarização en-
tre outros como processos de objetificação – daí a im-
portância de pesquisas comprometidas com o esforço
político de investigar o privado, de compartilhá-lo, de
desvelar formas de saberes invisibilizadas como mo-
dos de recuperação e de conscientização, nos quais a
luta é também uma luta da memória contra o esque-
cimento (hooks, 2019). Que compreendam/reflitam so-
bre os silêncios, sobre as vozes das pessoas jovens e
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narrativas da, com a e na educação de jovens e adultos

adultas oprimidas que não falam e/ou escrevem, que


são perseguidas, torturadas, subjugadas e têm as suas
criatividades impossibilitadas.
Na segunda dimensão – narrativas com a EJA,
junto a, simultaneamente – implica nas pesquisas a
instauração de diálogos construídos na ação e refle-
xão, na práxis, a partir dos contextos socioculturais
com os sujeitos copartícipes da investigação, que pro-
duzem saberes, fazeres, lógicas diferenciadas em uma
complexa rede de práticas, conhecimentos e valores.
Focalizar as narrativas com eles, dar visibilidade
as suas vozes, contribuir para que façam a transição,
visto ser apenas como sujeitos que podem falar/escre-
ver, pois como objetos, permanecem sem voz, sendo
definidos e interpretados pelos outros (hooks, 2019), é
realizar a investigação reconhecendo-lhes como sujei-
tos que a constroem junto e não objetos sobre os quais
falaremos/escreveremos/pesquisaremos, é forjar com
eles a investigação, problematizando com eles a cons-
ciência que tenham da situação histórico-cultural.
A adesão de pesquisas à luta das classes opri-
midas por libertar-se tem um papel fundamental no
rompimento com a cultura do silêncio e na impossibi-
lidade de dizerem a sua palavra e de se manifestarem
como sujeitos de práxis e políticos, sem condições de
interferirem na realidade que os cerca. Cultura mar-
cada pela origem expressa em preconceitos, em de-
formações, em desconfiança de que sejam capazes de
pensar, de querer e de saber. Daí que como premissa ao
diálogo e à construção de narrativas com a EJA, crer
neles é a condição prévia, indispensável, à mudança,
ao ato descolonizado de saber, práticas e valores.
Para tanto, a metodologia assenta-se no diálo-
go com eles sobre a leitura de mundo deles e a nossa,
como uma construção coletiva mediada pelo mun-
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narrativas da, com a e na educação de jovens e adultos

do, pelo sentir comum de uma realidade que precisa


ser compreendida na sua complexidade permanente,
cujos/as pesquisadores/as e as pessoas jovens e adul-
tas sejam ambos sujeitos do processo. O que requer um
olhar e uma escuta atentos e sensíveis que rompam
com a neutralidade dos que negam suas vozes, que as
desqualificam, que as desumanizam e que as brutali-
zam em suas falas/escritas. As classes oprimidas têm
produzido falas e escritas ao longo da história, mas
têm sido sistematicamente desqualificadas e invali-
dadas por aqueles que se autoproclamaram os deten-
tores do saber, de um saber colonizado.
As narrativas com a EJA necessitam de reco-
nhecê-los como sujeitos de saberes, que foram impe-
didos de se escolarizarem, mas que, contudo, trazem
nos corpos, nas mentes, nas mãos os saberes constru-
ídos no trabalho diário pela vida e na ancestralidade
de suas gentes, o que envolve produzir falas/escritas
que não sejam espaços de violência ou desqualifica-
ção de suas vozes e de invalidação de seus conheci-
mentos. Portanto, torna-se necessário o rompimento
de dicotomias: educado/não educado, analfabeto/al-
fabetizado, escolarizado/não escolarizado, primitivo/
moderno, erudito/popular, científico/senso comum,
racional/emocional, etc., visto serem classificações
que impõem relações de poder e que definem hierar-
quias sociais, delimitando lugares e quem pode falar
e/ou escrever na sociedade grafocêntrica.
As narrativas com a EJA impõem-nos ainda uma
questão delicada nas pesquisas nas ciências humanas
e sociais referente à anomização das pessoas, ou seja,
a remoção ou a modificação de informações que pos-
sam identificá-las. Entretanto, estudos que pretendam
contribuir com a transição de objetos para sujeitos não
podem não dar nomes, não os nomear, pois isso seria
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narrativas da, com a e na educação de jovens e adultos

invisibilizá-los novamente como os que têm o direito


de dizerem a sua palavra, de darem o seu testemunho
e de responsabilizarem-se por eles. Em situações, con-
tudo, que possam colocá-los em risco de morte, não
devem ser nomeados.
Na terceira dimensão – narrativas na EJA, sobre
a –, implica pesquisas que se realizem a partir das duas
premissas anteriores e reconheçam as narrativas so-
bre a EJA como possibilidades de construírem outras
falas/escritas no passado, no presente e no futuro.
Que compreendam a linguagem como um lugar
de luta, de disputas de narrativas, reconhecendo a lín-
gua do opressor como necessária para que as classes
oprimidas possam falar com ele. É na luta que a classe
oprimida pode recuperar a si mesma para reescrever,
reconciliar, renovar por meio de suas palavras, de suas
narrativas, como ação e resistência, a luta para ler e
escrever a si mesma, como testemunho do esforço co-
letivo para transformar e emancipar. É nesse sentido
que pesquisas focadas em narrativas na EJA podem
constituir-se em um trabalho de libertação, de outras
biografias, de outras narrativas para além daquelas
que definem liberdade somente como a aprendizagem
da língua do opressor.
O trabalho de libertação e de outras narrativas
demanda que criemos uma nova linguagem, um dis-
curso oposto: uma voz libertadora, na fala e na escrita,
como maneira de libertar as subjetividades de todas
as opressões e que contribua para a mobilidade de ob-
jeto a sujeito. Demanda narrativas da, com a e na EJA
comprometidas com uma epistemologia que reflita
espaços heterogêneos na teorização, tendo como hori-
zonte a descolonização do conhecimento, consideran-
do inclusive as complexas relações entre classe, gêne-
ro e raça. Desse modo, uma epistemologia que abarque
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narrativas da, com a e na educação de jovens e adultos

o pessoal e o subjetivo como parte do discurso acadê-


mico, compreendendo que todos falamos/escrevemos
de um tempo e lugar específicos, de uma realidade e
história específicas (Kilomba, 2019).
As narrativas da, com a e na EJA comprometi-
das com a elaboração de novas teorias com os sujei-
tos, da fala e da escrita como lugares deles, e também
como ato político de recuperação de saberes ances-
trais excluídos da academia, como legados para a
descendência e para a construção de outros mundos
emancipadores.

Referências
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M.
Estética da criação verbal. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro:
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KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo
cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

243
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ayvu

narrativas docentes
soymara emiliãoxxxv

xxxv
Professora das séries ini- tidianos, Mestre em Educação,
ciais e Pedagoga da Rede Muni- pelo ProPEd/UERJ, na linha de
cipal de Niterói. Doutoranda em pesquisa Cotidiano, Redes Edu-
Educação, pelo ProPEd/UERJ, cativas e Processos Culturais.
na linha de pesquisa Diálogos E-mail:
escolas-universidade: proces- emiliaosoymara@gmail.com
sos de formação docente e a
produção dos currículos nos co-

Transcrição da reescrita: “Tinha o JONHO e até 34 pulgas/Tinha o


JONHO: “Presta atenção, porque tenho 34 pulgas/No céu, buldo-
gue presta atenção, tá?/ Assinado: Maicodouglas”.

Neste texto, venho trazer as narrativas docentes


como um vasto território de saber conjetural (Ginzburg,
– sumário –

1989), das potencialidades existentes nos cotidia-


nos escolares, como redes complexas, de currículos
pensadospraticadossentidos1, de histórias de vida que
1
Aprendemos com os estudiosos do cotidiano a juntar palavras na
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narrativas docentes

se entretecem em conversas, leituras, debates, regis-


tros escritos, experiências narradas, enredando-se
uns aos outros, em movimentos minúsculos, insinu-
antes e delicados. São ocasiões e espaçostempos, onde
nós, praticantes dos cotidianos das salas de aula, jo-
gando com os acontecimentos, não guardamos o que
ganhamos, mas transformamos esses espaçostempos.
Nas narrativas, circulam conhecimentos, linguagens,
afetos e afecções que estão em circulação nas práticas
(Carvalho, 2011, p. 7), acessando as produções cotidia-
nas de resistências, invenções, reinvenção, ressignifi-
cações, singularidades. Ainda, podem ampliar as pos-
sibilidades de significação, de produção de saberes, de
percepção de saberes que carregamos quanto à docên-
cia, aos estudantes, à sociedade e aos conhecimentos,
tornando-se um dispositivo de ampliação do campo
de possíveis nos processos formativos ao estetizar os
cotidianos assumindo os elementos ficcionais.
São uma escolha epistemopoliticametodológica
de outros modos de viver e ser professora, assumindo
a tessitura do mundo para além das divisões discipli-
nares e atendo-se às composições, transversalidades
e múltiplas fontes que os formam no entendimento da
intensa invenção curricular que circula nas escolas.
Neste sentido, as narrativas docentes são entendidas
como modos de conhecer, ver, ler, ouvir e sentir as ex-
periências cotidianas. A partir dessa complexidade
(Morin, 2007), precisamos expressá-las em diferentes
formas para contar o mundo (Alves, 2008).
Com Oliveira e Geraldi (2010), compreendo que as
narrativas inserem pluralidade, expressando as dife-
rentes contribuições dos sujeitos que se articulam em

intenção de inventar novos significados: princípio da juntabilidade,


que concede sentido e significado diferentes dos usuais, quando de
sua separação (Alves, 2001).
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narrativas docentes

torno das ideias, instaurando uma ficção e não uma


descrição da realidade. Desse modo, é produção de co-
nhecimento, instaurando dinamismo na negociação
de sentidos, nas relações dos sujeitos com o mundo,
em modos próprios de perceber o mundo em perma-
nente movimento, que mobiliza as criações, amplia
compreensões, relativiza posições arraigadas ou he-
gemônicas, deixando circular uma pluralidade de
saberesfazeres.
Deste modo, todo contar de si é ficcionalizante,
que seja, o acúmulo de referências e sua precisão nun-
ca aconteceram na ‘realidade’, e o único lugar real é o
discurso em que ela se desenrola2 (Doubrovsky, 1988
apud Martins, 2013, p. 73). O vivido e o narrado rom-
pem as fronteiras entre os acontecimentos, o que foi
inventado, imaginado ou esquecido. Neste sentido,
Reis e Garcia (2014) compreendem que as narrativas
docentes criam um campo de possíveis¸ instituindo
saberes, alternativas e sentidos ao instituído.

2
Tradução nossa. No original: une ‘histoire’ qui, quelle que soit l’ac-
cumulation des références et leur exactitude, n’a jamais ‘eu lieu’
dans la ‘réalité’, dont le seul lieu réel est le discours où elle se dé-
ploie (Doubrovsky, 1988, p. 73).
246
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narrativas docentes

Nessa perspectiva, as narrativas docentes são


compreendidas na dimensão do sensível e inacaba-
do, na rasura entre a realidade e a invenção, no en-
tendimento da rica pluralidade imaginativa, estética
e cognitiva do mundo. Assim, no encontro da menina
órfã com a professora, no pátio de uma escola, há uma
experiência singular que acessa redes de saberesfa-
zeres e afetos, que ali estão em circulação, para além
do que poderiam ser vistas apenas como identidade e
permanência.
Nos movimentos da pesquisa com os cotidianos
(Alves; Andrade; Caldas, 2019), a narração da vida e a
literaturização da ciência tem destaque, ao compreen-
dê-las como uma escrita que está além da aprendida,
ao reconhecer nelas os efeitos do fazerpensar produzi-
do nos cotidianos. Desse modo, rompe com um sujeito
anônimo, com uma linguagem supostamente neutra,
e vai entender os praticantespensantes dos cotidianos
como aqueles que são habitados por tensões, diálogos,
problemas, conhecimentossignificações. Nesse senti-
do, entendemos os praticantespensantes das escolas
como protagonistas, com suas memórias e criações
culturais e curriculares, o que as autoras denominam
como Ecce femina; da mesma forma, as composições
narrativas estão plenas de Sentimento do mundo, fei-
tas por quem está mergulhada nos cotidianos esco-
lares, entendendo-os como espaçostempos de prazer,
inteligência, imaginação, memória e solidariedade;
e, assim, buscamos ir além do já sabido, caçando ou-
tras lógicas e procedimentos para jogar com os me-
canismos da disciplina, não nos conformando com os
que estão dados, a não ser para alterá-los. Para essa

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narrativas docentes

articulação, é necessário reconhecer a intensa circu-


lação de conhecimentossignificações, entendendo que
nos formando e formamos redes educativas.
No avesso de algumas pesquisas que apresentam
as escolas e professores como esvaziados de sentido
e de saberes, compreendemos que, com as narrativas
docentes, acessamos o que há de (re)existência, cria-
tividade, inovação e rebeldia. Elas deixam à mostra
como os praticantespensantes (Oliveira, 2012), sujeitos
de conhecimentos, são úmidos de emoções, valores,
escolhas políticas, histórias de vida. Entrelaçando os
fios de memórias, as narrativas docentes deixam cir-
cular as políticaspráticas cotidianas, as redes de sabe-
resfazeres, as escolhas, desejos e possibilidades criati-
vas que pulsam na escola. Nesta perspectiva, entendo
com Oliveira (2012, p. 50) que a vida cotidiana não
pode ser traduzida por meio de explicações gerais a
respeito de sua dinâmica e escorregadia riqueza, mas
nas criações que ocorrem no ineditismo, no improvi-
so da vida, na criatividade ligeira dos praticantes das
escolas. Assim, pautados pela dimensão ética, estéti-
ca e política, permeados pelas memórias, encharcadas
de afetos, as narrativas docentes podem trazer pistas
que permitam captar o que há e que, de outra forma,
seria inatingível. Nas memórias da cotidianidade, vá-
rios elementos se entrecruzam: saberes, fazeres, ges-
tos, ordem, desordem, ignorâncias, ausências, desejos.
Rememorações que se atualizam no presente e trazem
possibilidades de outros entendimentos daqueles he-
gemonicamente idealizado.

248
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narrativas docentes

Referências
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colas nas lógicas das redes cotidianas. In: OLIVEIRA, I. B.;
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cessários às pesquisas com os cotidianos - ‘após mui-
tas conversas acerca deles’. In: OLIVEIRA, I.; PEIXOTO, L.;
SÜSSEKIND, M. L. (orgs.). Estudos do cotidiano, currículo e
formação docente: questões metodológicas, políticas e epis-
temológicas. Curitiba: CRV, 2019.
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“bons encontros” no currículo escolar: experiências cotidia-
nas. In: FERRAÇO, C. E. (org.). Currículo e educação básica:
por entre redes de conhecimentos, imagens, narrativas, ex-
periências e devires. Rio de Janeiro: Rovelle, 2011.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano 1: As artes de fazer.
20ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
CERTEAU, M. de. História e Psicanálise: entre a ciência e
ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
GARCIA, A.; REIS, G. R. F. TATUAGENS DE SENTIDOS: memó-
rias e invenções de si nos processos de formação docente.
Currículo sem Fronteiras, v. 14, 2014.
GINZBURG, C. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Cia
Letras, 1989.
249
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narrativas docentes

MARTINS, A. F. Escritas do eu o perfil da autoficção. In:


MELO, A. M. L. (org.). Escritas do eu: introspecção, memória
e ficção. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto
Alegre: Sulina, 2007
OLIVEIRA, I. B.; GERALDI, W. Narrativas: outros conheci-
mentos, outras formas de expressão. In: OLIVEIRA, I. B.
(org.). Narrativas: outros conhecimentos, outras formas de
expressão. Petrópolis: DP et Alii, 2010.
OLIVEIRA, I. B. O Currículo como criação cotidiana.
Petrópolis, RJ: DP et Alii, 2012.

250
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ayvu

narrativas e bakhtin
na educação
narrativas pedagógicas e metodologias
narrativas de pesquisas em educação

guilherme do val toledo pradoxxxvi


liana arrais serodioxxxvii
vanessa frança simasxxxviii
xxxvi
Professor Livre-Docente da prática docente, professor-
em Educação Escolar (2015) -pesquisador, escrita docen-
da Faculdade de Educação da te, investigação educacional e
UNICAMP. Pesquisador do pesquisa narrativa.
GEPEC (Grupo de Estudos e E-mail:
Pesquisas em Educação Con- gvptoledo@gmail.com
tinuada) e coordenador do
NOZSOUTRES (Círculo Nar-
xxxvii
Doutora em Educação pela
rativo de Estudos em Educa- UNICAMP no Grupo de Estu-
ção). Graduado em Pedagogia dos e Pesquisa em Educação
(1987), Mestre em Metodologia Continuada (GEPEC), Mestre
de Ensino (1992) e Doutor em em Educação Pela Pontifícia
Linguística Aplicada - Ensino Universidade Católica - PUC de
e Aprendizagem de Língua Ma- Campinas e Bacharel em Mú-
terna (1999), obtidos na Univer- sica pela UNICAMP. Realizou
sidade Estadual de Campinas. estágio de Doutorado em Bari
Possui experiências na área de (Itália), orientada por Augusto
Educação, ênfase na Prática de Ponzio. Trabalhou como profes-
Ensino e Estágio Supervisiona- sora de música na Educação In-
do nos Anos Iniciais do Ensino fantil e no Ensino Fundamental
Fundamental, bem como con- I do Colégio de Aplicação Pio
sultoria e assessoria a projetos XII, da Pontifícia Universidade
– sumário –

educativos centrados na escola, Católica de Campinas. No Ensi-


atuando principalmente nos no Superior atua como docente
seguintes temas, na gradua- e orientadora no Programa de
ção e pós-graduação: forma- Mestrado Profissional em Edu-
ção de professores – inicial e cação Escolar na UNICAMP. Na
continuada –, epistemologia produção de material didático

251
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narrativas e bakhtin na educação

atuou com o Instituto Abaporu Departamento de Práticas Cul-


de Educação e Cultura. Em Pes- turais/ Faculdade de Educa-
quisa, tem desenvolvido estu- ção - UNICAMP), membro do
dos com Linguagem, Lingua- GRUBAKH (Grupo de Estudos
gens Artísticas, Semioética e Bakhtinianos, vinculado ao
das Metodologias Narrativas de GEPEC), professora da educa-
Pesquisa. ção infantil da Rede Munici-
E-mail: pal de Campinas, estando pro-
serodio@unicamp.br fessora de bebês. Atuou como
professora dos primeiros anos
xxxviii
Doutora em Educação do ensino fundamental duran-
(2018) pela Universidade Esta- te os anos de 2010 a 2016. Tem
dual de Campinas (UNICAMP) e se aprofundado na área de prá-
Doutora em Ciências da Educa- tica pedagógica, formação de
ção (2018) pela Universidad de professores, cotidiano escolar,
Granada (Espanha), sob regime infâncias, bebês, escrita e pes-
de cotutela. Possui graduação quisa narrativas e filosofia da
em Pedagogia pela UNICAMP linguagem bakhtiniana.
(2010). Atualmente é Pesqui-
sadora colaboradora do Gru- E-mail:
po de Estudos e Pesquisas em vanessafsimas@gmail.com
Educação Continuada (GEPEC/

Narrar o vivido, intensamente vivido nesse


projeto, na carne e no pentimento/sentamento1,
foi/é algo que me dói muito!
– Prado.

Para nós, em diferentes tempos e espaços,


os pensamentos de Bakhtin, e dois dos autores do
Círculo, Volóchinov ([1929] 2017) e Medviédev ([1928]
2013), participaram de nossas reflexões práticoteóri-
copráticas, principalmente no âmbito do trabalho pe-
dagógicoeducativo, construído em nossos cotidianos
escolares. Para essa narrativa, partimos dos conhe-
cimentos e saberes construídos na tese de livre-do-
cência do primeiro autor, supervisor no programa de
1
Exercitamos aqui a proposta feita pelas Prof.as Nilda Alves e
Regina Leite Garcia, para criar novos modos de dizer o já dito.
252
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narrativas e bakhtin na educação

pesquisador/a-colaborador/a da Unicamp da segunda


e terceira autoras, e das compreensões que foram sen-
do construídas durante os anos conseguintes.
Desde as lições construídas e percebidas nas re-
lações narrativas com as narrativas do vivido da tese
de livre-docência aqui citada, até as compreensões
que vimos construindo até hoje, sete anos se passaram
para a data que recebemos este convite de participar
de um dicionário sobre narrativa que se tornou uma
breve narrativa de dicionário.
A dor “na carne e no pentimento/sentamento”
pela impossibilidade de “narrar [todo] o vivido”, para
dizer o mínimo, e a linearidade da linguagem verbal
escrita, para dizer talvez o máximo, e a multidimen-
sionalidade de cada relação interindividual que ne-
cessária e responsivamente ele desejava contar em
2014, hoje ganham outras perspectivas.
Em primeiro lugar, foi o movimento dele assumir,
diante das exigentes (às vezes inalcançáveis) agên-
cias avaliadoras e de fomento à pesquisa, que suas
produções científicas seriam realizadas em e com
parceiras2, o que possibilitou essas outras perspecti-
vas (inter)fisiológicas, (inter)carnais, (inter)corporais.
Hoje, podemos dizer com nossas vozes plenivalentes
(Bakhtin, [19633] 2013), em igualdade de valor, e a ple-
nos pulmões, que o pensamento da dialógica narrativa
permite compreender a potência de viver neste mun-
2
Optamos por utilizar o gênero feminino, uma vez que a maioria
era composta por mulheres, devido à predominância na educação
básica.
3
Estamos utilizando os colchetes com o ano de produção e/ou pu-
blicação das obras bakhtinianas e círculo devido ao interesse em
dirimir a polêmica sobre a autoria de suas obras. As controvérsias,
por vezes no espírito da difamação realizada sob o manto do inte-
resse científico, de quem tem dificuldade diante de uma força de
grandeza maior, como diz Augusto Ponzio (2008).
253
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narrativas e bakhtin na educação

do produzindo ciência com um método detotalizante


(Petrilli, 2013, p. 44), heterocientífico (Bakhtin, [1974]
2003; 2016) ou transcientífico (Sobral, 2019) na educa-
ção, que leva em conta, em primeiro lugar, mais os pas-
sarinhos do que os aviões, como nos ensina Manoel de
Barros (Barros, 2003, p. 22).
Entendemos que as narrativas pedagógicas são
um gênero do discurso: enunciados de tipo relativa-
mente estáveis, compostos de conteúdo temático, es-
tilo individual e construção composicional (Bakhtin,
[1952-52] 2016, p. 11-12), todos sempre determinados
pelas características de um campo específico da co-
municação, os espaços educativos: escolas de educa-
ção infantil, de ensino fundamental, ensino médio,
educação de jovens e adultos, universidades, os gru-
pos de estudo, formação e pesquisa, institucionaliza-
dos ou não.
Essas narrativas, ao dizerem do cotidiano esco-
lar/educativo e das relações que ali são estabelecidas,
olham como um Jano bifronte, em duas direções opos-
tas: para a unidade objetiva de um domínio da cultura
e para a singularidade irrepetível da vida que se vive
(Bakhtin, [1920-24] 2010, p. 43). Quando com muitos
outros, em suas escolas, profissionais da educação
narram o que vivem, elas e eles revelam as singula-
ridades irrepetíveis que ocorrem todos os dias nesses
espaços. Para revelar essas singularidades irrepe-
tíveis e tudo mais o que queremos dizer da potência
das narrativas, não basta conversarmos só entre nós e
com os pensadores do Círculo. Precisamos dizer com
as narradoras, os narradores e suas narrativas. Assim,
antes de continuarmos a conversa com Bakhtin, re-
corremos a Fernanda Dalmatti Lima, Ana Cristina
Libânio e Patricia Yumi Fujisawa para que, conosco,
digam das narrativas pedagógicas.
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narrativas e bakhtin na educação

Língua portuguesa: gêneros em arena


Fernanda Dalmatti Lima
Campinas, 9 de março de 2021
— “Machistaaaaaaaa!!!!!!”
Escutei, duas meninas dizendo a dois meninos.
Era aula de língua portuguesa, estávamos conver-
sando sobre o uso do dicionário, o módulo de língua
portuguesa trazia a informação que as palavras estão
escritas no substantivo masculino.
As meninas de 9 anos ficaram inconformadas. Os
meninos não entenderam muito bem.
Eles disseram “ganhamos”. Para as meninas, “nós
perdemos”.
Em pensamento eu me dizia “nós vencemos, nós
estamos dialogando sobre isso!”

Guinada 360º
Ana Cristina Libânio
1994/2019
Marlon era um garoto de 12 anos e que havia al-
guns anos que estava cursando a primeira série sem
sucesso. Todo o ano em abril mais ou menos ele lar-
gava a escola. E era matriculado novamente, no ano
seguinte na mesma série, como Sísifo levando a pedra
até o topo da montanha.
Em um dia, quando fiquei sabendo que haveria
um eclipse, avisei ao Marlon:
— Marlon, hoje vai acontecer um eclipse, fica de
olho no céu!
— O que é eclipse?
— Quando a terra gira e...
— A terra gira? Perguntou o garoto.
— A terra gira em torno de si mesma e em volta
do sol.
— Tá brincando que a terra gira! Disse rindo o
garoto espantado como se eu tivesse inventando um
absurdo.
— Claro que a terra gira! Tornei a afirmar.
— Tá brincando né?
— Você não sabe que a terra gira Marlon!? Indaguei
mais espantada do que ele com a rotação da terra.
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narrativas e bakhtin na educação

— Ah! Já sei. Ela deve girar no segundo ano e eu


ainda não saí do primeiro.

Olha!
Patricia Yumi Fujisawa
2020
Ser professora em pandemia não tem sido lá a
coisa mais fácil. Este ano minha turma tem 28 estu-
dantes, nem todxs têm internet ou celular e isso acaba
dificultando um pouco a dinâmica de nossos encon-
tros. Que encontros? Por enquanto aqueles que aos
poucos tenho feito em ligações de telefone.
— Oi, Carolzinha! Tudo bem com você? Estou com
saudades!
— Oi, prôooooo! Eu também estou com saudades.
— Estou te ligando para conversarmos um pouco,
para você me contar como está sendo os seus dias, o
que tem feit...
— Ô, prô, sabia que dá pra ligar de vídeo?
Tu... tu... tu...
— Carol, é que...
Tu... tu... tu...
Como eu ia explicar para a Carol que eu estava de
pijama em plena tarde, que meu cabelo estava feito
guarda-chuva do avesso, que meu celular que tem o
chip da escola não tem câmera e que, justamente por
isso, não me preocupei com uma possível chamada
de vídeo?
Tu... tu... tu...
— Carolzinha? Peraí que eu vou te ligar com
câmera.
E corri pra jogar uma blusa de frio em cima do
meu pijama de monstrinhos, prender o cabelo naque-
le coque salvador, digitar o número da mãe da Carol
no outro celular para usar a câmera.
Tu...
— Oi, prôoooooooo! Agora eu estou te vendo!!! Olha!
Eu tenho um gatinho!
Como é que eu ia explicar para a Carol?

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narrativas e bakhtin na educação

Como podemos apreender, além de revelar uma


parte do vivido no cotidiano escolar – as meninas que
questionam este mundo estruturalmente machista; o
menino que no alto de seus 9 anos explica que a terra
só irá girar, em torno do sol e de si mesma, se um dia
ele chegar ao 2º ano; a menina que precisa do olhar
da professora para mostrar o gatinho que ganhou em
meio à lentidão e ao fracasso tecnológico para aten-
der um cotidiano escolar outro – na singular visão das
professoras, as narrativas também trazem a unidade
objetiva de um domínio da cultura – o dicionário que
reflete e refrata o machismo que há no mundo; a seria-
ção do conteúdo escolar determinando a avaliação dos
estudantes; o fracasso tecnológico diante da demanda
pela vida vivida no cotidiano escolar...
Nesse movimento de narrar um acontecimento
do todo vivido no cotidiano educativo/escolar, a ma-
neira como as singularidades irrepetíveis e as unida-
des objetivas vão sendo reveladas, faz com que não so-
mente a autora ou o autor da narrativa perceba o que
antes não havia percebido, mas também que quem
vier a ler essas e outras narrativas passe a ver o que
antes era “invisível” a seus olhos e ouvidos.
As conversas e pensamentos e trabalhos e pes-
quisas e narrativas pedagógicas porque de professor
para professor; porque de professor com professor,
porque sobre as questões e as reflexões da professora4
(Prado, 2014, p. 171) fazem “a força das narrativas do-
centes” em seu “caráter pedagógico”: se tornam tam-
bém a porta privilegiada para uma manifestação que
considera comunicar em primeiro lugar – e nem tem
álibi para evitar (Bakhtin, [1920-24] 2010) – as relações
face a face entre eu e tu com as quais se produzem
4
Em 2014, Prado disse no gênero masculino protocolar. Alteramos
para destacar nossa visão compartilhada e atual.
257
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narrativas e bakhtin na educação

conhecimentos em diferentes e diversas visões ideo-


lógicas de mundo.
Quando a autora ou o autor da narrativa se coloca
a narrar o vivido, ela ou ele, necessariamente, ocupa
um espaço e um tempo diferentes daqueles nos quais
se passou o acontecimento a ser narrado, uma posição
exotópica outra, assimilada com outros valores/sen-
tidos: em outra posição axiológica (Bakhtin, [1920-24]
2003). Essa nova posição axiológica também é estéti-
ca e exotópica em relação às personagens criadas na
escrita e seus enunciados (sendo, muitas vezes, uma
das personagens e geralmente quem narra a história).
O ato de narrar desta nova posição possibilita que a
narradora ou o narrador alcance e construa exceden-
tes de visão de si recebidos do outro, da situação an-
teriormente vivida (geralmente muito mais complexa
do que a totalizada na escrita) e do conhecimento que
possui sobre si, sobre as relações, sobre o cotidiano,
enfim, sobre a sua profissão.
A partir de Volóchinov (2017), passamos a com-
preender que é a expressão que organiza a vivência,
e não o contrário. O ato de expressar narrativamente,
também por possibilitar que construamos excedentes
da nossa visão, faz com que nos relacionemos de ou-
tras maneiras com o acontecido. Assim, reorganiza-
mos nosso trabalho ao construir memórias de futuro,
organizamos a vivência porque narramos. E o modo
como essa organização se dá é plural e singular, irre-
petível, porém, generalizável heterocientificamente
(Bakhtin, [1920-24] 2003, p. 114-115).
É neste contexto promissor, no intenso diálogo
com os pensadores do Círculo de Bakhtin, que passa-
mos a compreender a narrativa e suas potencialidades
discursivas no âmbito de uma metodologia narrativa
de pesquisa (Prado et al, 2015): uma prática discursiva
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narrativas e bakhtin na educação

do sujeito singular, não indiferente ao outro, constitu-


ída na arquitetônica ontológica proposta por Bakhtin
([1920-24], 2003): outro-para-mim, eu-para-o-outro,
eu-para-mim.
As narradoras Fernanda, Ana Cristina e Patrícia,
presentes neste texto, em seus atos responsivos, na
relação com as “personagens” presentes em suas nar-
rativas e à comunidade narradora constituída em
partilha, envolvem-se inteiramente com elas, tanto
em relação aos conhecimentos mobilizados, quanto
em relação à realidade vivida, superando a impene-
trabilidade dos mundos da vida e da cultura (Bakhtin,
[1920-24] 2010, p. 42). Essa intensa relação entre as
narradoras, suas personagens e as/os participantes
da comunidade narradora favorece emergências de
novos enunciados concretos e, consequentemente,
impulsiona a produção de conhecimentos orientados
pela relação não-indiferente (Bakhtin, [1920-24] 2010),
na radicalidade do uso das narrativas em diferentes
modos de se constituírem as pesquisas narrativas.

Referências
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. São
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narrativas e bakhtin na educação

PONZIO, A. A Revolução Bakhtiniana: o pensamento de


Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo: Editora
Contexto, 2008.
PRADO, G. do V. T. Narrativas, saberes e conhecimentos:
possibilidades outras na formação de professores. Tese de
Livre-Docência, 2014.
PRADO, G. do V. T., SERODIO, L. A., PROENÇA, H. H. D. M.,
RODRIGUES, N. C. (orgs.). Metodologia Narrativa de Pesquisa
em Educação: uma perspectiva bakhtiniana. São Carlos:
Editora Pedro&João, 2015.
VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Rio
de Janeiro: Editora 34, 2017.

260
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ayvu

narrativas indígenas
leonardo ferreira peixotoxxxix

Professor do Centro de Es-


xxxix
versidade do Estado do Rio de
tudos Superiores de Tabatinga Janeiro (2020). Editor e criador
da Universidade do Estado do da Revista Vagalumear.
Amazonas. Líder do Grupo de E-mail:
Estudos Redes Indígenas: povos leopeixoto.uea@gmail.com
indígenas e redes educativas.
Doutor em Educação pela Uni-

Na minha tese de doutorado, intitulada Não por-


que ele quis, mas pela nossa luta: Conversando, apren-
dendo e fazendo histórias com professores indíge-
nas (Peixoto, 2020), defendo que as narrativas (auto)
biográficas dos meus interlocutores (professores in-
dígenas) são táticas (Certeau, 2005) historiográficas
contra-hegemônicas.
A História (com H maiúsculo) que se pretende ge-
ral e universal produziu e continua a produzir proces-
sos de apagamentos e silenciamentos das ontologias
e epistemologias indígenas. A luta dos povos indíge-
nas em nosso país, historicamente, dá-se pelo direito à
vida, pelo direito à terra, pela defesa de seus modos de
– sumário –

vida, por suas culturas e seus conhecimentos.


Tive o prazer de participar da elaboração de um
artigo1 com Danielle Bastos Lopes e Edson Krenak, a
1
O artigo intitulado Literaturas e Metodologias Indígenas: uma en-
trevista com Edson Krenak encontra-se em fase de avaliação para
261
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narrativas indígenas

partir de uma entrevista realizada entre eles. Durante


a entrevista, a pesquisadora pergunta ao escritor indí-
gena sobre as narrativas indígenas, a literatura indí-
gena e o mercado editorial brasileiro. Edson responde:
Bom, primeiramente como são vistas as narrati-
vas indígenas? Elas são vistas desde o século XIX para
falar somente do Brasil como Estado, como sociedade
brasileira. No século XIX, elas não existiam, na ver-
dade. É que grandes escritores, autores do século XIX,
do cânone brasileiro, se sentiam na obrigação de criar,
de inventar uma narrativa indígena inspirados nas
narrativas americanas, como José de Alencar. Liam
histórias nativas norte-americanas, canadenses para
tentar criar uma história das narrativas indígenas
brasileiras nativas. Com isso, idealizavam uma ima-
gem de indígena que não existia. Então, a literatura in-
digenista, chamada assim no século XIX, partia de um
pressuposto ontológico e epistemológico de que os in-
dígenas são incapazes de produzir suas próprias his-
tórias, suas narrativas, sua literatura. (Krenak; Lopes;
Peixoto, no prelo).
Se no século XIX, as narrativas indígenas são
invisibilizadas, as narrativas indígenas do século XXI
resistem e são criadas pelos próprios indígenas em
suas diversidades étnicas. Hoje, os indígenas traba-
lham ativamente na literatura, nas artes ou nas uni-
versidades, produzindo e fazendo ecoar suas vozes,
suas histórias. As narrativas indígenas escovam a
história a contrapelos (Benjamin, 2016), sem fragmen-
tar ciência, arte e espiritualidade.
Edson Krenak caracteriza a fragmentação como
uma das estratégias utilizada pelo colonizador para
conquistar (Krenak; Lopes; Bastos, no prelo). Para a ci-
ência moderna, as narrativas indígenas ganham sta-
publicação no momento da escrita deste texto.
262
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narrativas indígenas

tus de mito, de saberes não científicos e, por isso, são


classificadas como de menor relevância.
Os indígenas existem e resistem ao longo da nos-
sa história, contrariando qualquer teoria que pretenda
determinar o seu fim. Trabalhos desenvolvidos pelos
próprios indígenas e por historiadores, antropólogos,
artistas, educadores, entre outros, na escrita de histo-
riografias outras, e nos quais tento me inserir, buscam
ampliar o reconhecimento da presença indígena na
formação, na história e no contexto atual brasileiro.
Uma dessas iniciativas é protagonizada pelo
professor e antropólogo João Pacheco de Oliveira2,
que coordena um projeto de pesquisa intitulado Os
Brasis e suas memórias. Nesse projeto, João Pacheco
tem reunido biografias de indígenas, boa parte delas
escritas pelos próprios indígenas. Evidenciando a
constante presença e permanência de indígenas na
história do Brasil, desde o período colonial até a atu-
alidade3. Precisamos ecoar essas e tantas outras nar-
rativas indígenas invisibilizadas pela historiografia
hegemônica.
Este é um dos meus compromissos éticos, esté-
ticos, políticos e epistemológicos, enquanto professor
e pesquisador não indígena que tem vivido e partilha-
do a vida com os povos indígenas da região do Alto
Solimões e Vale do Javari, no estado do Amazonas.
Através das narrativas de professores indígenas, tenho
tentado desaprender os conhecimentos hegemônicos
da branquitude, ainda dominante nas universida-
des e nas escolas, e tentado produzir conhecimen-
tos científicos no campo da educação com os povos
2
Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Antropolo-
gia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
3
Site do projeto: https://osbrasisesuasmemorias.com.br/.
263
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narrativas indígenas

e as populações indígenas com quem compartilho


meus cotidianos.
Até hoje, não encontrei nenhum indígena que
se recusasse a conversar comigo sobre sua vida, sua
história, sobre o seu povo. Contraditoriamente a isto,
encontro uma quantidade significativa de estudantes
indígenas que entram nas salas de aulas das minhas
disciplinas na universidade com medo de falar. Sinto
como se este espaço operasse como um ambiente he-
gemonicamente opressor. Por isso, tenho buscado
cada vez mais ouvir e aprender sobre os processos de
escolarização que vivenciam crianças, adolescentes,
jovens e adultos indígenas, para identificar as marcas
de opressão dos processos de escolarização e poder
contribuir academicamente e socialmente com o en-
frentamento destas.
Se por um lado, nas universidades e nas escolas
não indígenas, onde tenho vivenciado meus cotidia-
nos de pesquisa, o som e a voz indígena são marca-
dos pelo silêncio, nas escolas indígenas e nas turmas
dos cursos de licenciaturas voltados especificamente
para indígenas os sons se multiplicam e amplificam.
O que se ouve são vozes e sons plurais, diversos, em
português e em suas línguas maternas. Como canta-
va Gonzaguinha (1975): No campo do adversário é bom
jogar com muita calma, procurando pela brecha pra
poder ganhar. Os indígenas sabem disso muito bem.
As narrativas indígenas em seus territórios ganham
força, ecoam incessantemente e visceralmente. Não
são os indígenas que precisam aprender a falar, a nar-
rar, somo nós que precisamos aprender a ouvir.
Carecemos de uma consistente produção histo-
riográfica que contribua para dar aos povos indígenas
o devido reconhecimento de seu lugar de importância
na história do nosso país. Como nos alerta Michel de
264
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narrativas indígenas

Certeau (2017), precisamos levar a sério a expressão


“fazer história”. Entendemos a história como práti-
ca de criação, de tessituras de vivências, não apenas
como um resultado. Esta prática tem autoria, tem in-
tencionalidade e tem múltiplas dimensões e carac-
terísticas. A escrita da história é uma políticaprática
(Alves, 2010; Oliveira, 2013) que, como tantas outras,
privilegia quem tem o direito de desenvolvê-la.
A noção de políticaprática é ancorada no en-
tendimento de Nilda Alves (2010) e Inês Barbosa de
Oliveira (2013) de que não há prática que não integre
uma escolha política e que não há política que não
se expresse por meio de práticas e que por elas não
seja influenciada (Oliveira, 2013, p. 376). São, portan-
to, indissociáveis e, por isso, as escrevemos por meio
do neologismo políticaspráticas. Não é mais possível
considerar a política apenas em sua dimensão macro,
relacionada às estruturas mais amplas da sociedade.
A minha compreensão de política passa pelo entendi-
mento de que ela é um conjunto de ações coordenadas
e intencionais que ocorrem nosdoscom os cotidianos.
Em minhas pesquisas, assumo a opção política
de rever criticamente a historiografia hegemônica,
bem como as concepções modernas de conhecimen-
to que só consideram como válidos os conhecimentos
científicos e, com isso, negam a formação fora dos es-
paços formais de escolarização. Como já disse ante-
riormente, esse não é um esforço isolado, o que obvia-
mente seria uma maneira equivocada de tentarmos
conseguir desconstruir e descontinuar as produções
discursivas hegemônicas.
Nesse sentido, opto por produzir conhecimento
na perspectiva do movimento que Boaventura de Sousa
Santos (2010) chama de cosmopolitismo subalterno:

265
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narrativas indígenas

O cosmopolitismo subalterno manifesta-se atra-


vés das iniciativas e movimentos que constituem
a globalização contra-hegemônica. Consiste num
vasto conjunto de redes, iniciativas, organizações
e movimentos que lutam contra a exclusão econô-
mica, social, política e cultural gerada pela mais
recente encarnação do capitalismo global, conhe-
cido como globalização neoliberal. (p. 51).

No desafio de contribuir para uma revisão crítica


da escrita da história e das hierarquias entre sujeitos
e conhecimentos que permite o apagamento de tan-
tos em benefício de tão poucos, aposto nas narrativas
indígenas como possibilidade de produção de histo-
riografias outras. Seguindo a formulação de Santos
(2010), de que o pensamento moderno ocidental é um
pensamento abissal, afirmo que a historiografia mo-
derna ocidental é uma historiografia abissal que con-
sidera que a história surge com o advento da escrita
e se limita àquilo que é forjado pelos grupos sociais
hegemonicamente poderosos.
As narrativas indígenas podem questionar as
certezas, a exatidão e a linearidade da escrita con-
quistadora. As narrativas indígenas são marcadas por
incertezas, complexidades e desvelam as resistências
produzidas pelos povos originários em seus processos
de ressignificação e revitalização de suas culturas e de
suas identidades individuais e coletivas.

Referências
ALVES, N. Redes Educativas ‘dentrofora’ das Escolas, exem-
plificadas pela Formação de Professores. In: SANTOS, L. L.
de C. P. et al. (orgs.). Convergências e tensões no campo da
formação e do trabalho docente: currículo. Belo Horizonte:
Autêntica, 2010.
266
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narrativas indígenas

BENJAMIN, W. O anjo da história. 2ª ed. Belo Horizonte:


Autêntica, 2016.
CERTEAU, M. de. A escrita da história. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer.
Petrópolis: Vozes, 2005.
GONZAGUINHA, L. G. Geraldinos e Arquibaldos. EMI Brasil,
1975.
KRENAK, E.; LOPES, D. B.; PEIXOTO, L. F. Literaturas e meto-
dologias indígenas: uma entrevista com Edson Krenak. No
prelo.
OLIVEIRA, I. B. Currículo e Processos de Aprendizagemensino:
Políticaspráticas Educacionais Cotidianas. Currículo Sem
Fronteiras, v. 13, n. 3, 2013.
PEIXOTO, L. F. “Não porque ele quis, mas pela nossa luta”:
Conversando, aprendendo e fazendo histórias com profes-
sores indígenas. Tese (Doutorado em Educação) – Programa
de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2020.
SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das li-
nhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, B. de
S.; MENESES, M. P. (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo:
Cortez, 2010.

267
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ayvu

narrativas interseccionais
patrícia baronixl

xl
Professora adjunta do Depar- em Educação da Universida-
tamento de Didática na Facul- de Estadual do Rio de Janeiro.
dade de Educação da Universi- Atuou como professora na edu-
dade Federal do Rio de Janeiro. cação infantil, anos iniciais do
Coordena o grupo de pesquisa ensino fundamental, educa-
Ecologias do Narrar e o projeto ção de jovens e adultos e como
de Extensão Reinvenção do Ler, orientadora pedagógica nas
do escutar, do escrever e do Fa- redes municipais de Duque de
lar com Você. Fez doutorado no Caxias e Rio de Janeiro.
Programa de Pós-graduação em E-mail:
Educação a Universidade Fede- narrativasdo c amp o@gmail.
ral do Espírito Santo e Mestrado com
no Programa de Pós-graduação

Foi num domingo, dia de eleições municipais.


Saí de casa por volta das dez da manhã a caminho da
escola municipal onde iria exercer meu “dever de ci-
dadã”. Paro na calçada para atravessar a principal rua
do bairro onde moro. Trata-se de uma rua com quatro
faixas e com movimento intenso de veículos. O sinal
de trânsito fecha para os carros. Começo a atraves-
sar a rua sobre a faixa de segurança pintada no chão.
Após uns três passos, percebo que um carro saindo de
– sumário –

uma via transversal iria avançar o sinal de trânsito.


Recuo uns dois passos. Sou atingida e, com o choque,
atirada ao chão da mesma rua que busquei atravessar
com alguma prudência.
268
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narrativa interseccional

Olho o sinal semafórico. Vai abrir para os car-


ros. Me levanto com pressa. Percebo um arranhão ar-
dido no braço direito. Identifico o promotor da minha
queda: um homem, entre 20 e 30 anos, com pele clara,
camisa panfletária de uma marca cujos produtos têm
alto custo, sobre uma bicicleta, que deduzo, em virtude
do impacto que sofri, era conduzida em alta velocida-
de na contramão da tal rua.
O fato faz juntar gente. Gente que parecia guardar
lugar num espetáculo. Gente incapaz de perguntar se
eu estava bem após a queda.
Me viro em direção ao homem que me atropelou
e não digo nada. Então, novamente fui atropelada por
palavras em um tom de voz que parecia ser destinado
ao público que havia se organizado sob a expectativa
de realização de um show. Ele grita: “você voltou na
rua! Quem mandou você voltar? Eu não te vi!”.
Após ser atropelada por uma bicicleta, nova-
mente sou atropelada pela invisibilidade que parece
ser algo, segundo o rapaz, que me constitui. Sem tom
de voz alto, sem agressão, sem manifestar a raiva que
estava me corroendo por dentro, disse: “eu só esperava
um pedido de desculpas e que você me perguntasse se
eu estava bem”.
O que disse em tom de voz relativamente baixo
parece ter desinteressado ao público, que começou a
se dispersar. Entretanto, minhas palavras parecem ter
atingido àquele homem de alguma maneira, o que o
incomodou a ponto de fazê-lo aumentar ainda mais o
volume de sua voz. Ele então começou a gritar: “eu não
sou culpado por nada! Eu não fiz nada de errado! Eu
não posso estar errado por não ter visto você!”
De acordo com o Código Nacional de Trânsito, le-
gislação que institui o código de trânsito brasileiro em
vigor desde 1997, ele estava errado sim. De acordo com
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narrativa interseccional

o documento, a bicicleta é um veículo de propulsão hu-


mana, mencionado no artigo 58 da referida Lei.

Art. 58. Nas vias urbanas e nas rurais de pista du-


pla, a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quan-
do não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento,
ou quando não for possível a utilização destes, nos
bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido
de circulação regulamentado para a via, com pre-
ferência sobre os veículos automotores.

Contudo, a justificativa do acidente feita pela


emissão do seu causador era de que não se pode co-
meter um erro sobre quem não é visto.
Nesse ponto, podemos começar a colocar nessa
roda a questão da interseccionalidade. Quem só me
conhece através das palavras que escrevo, certamen-
te identifica o meu gênero, em razão das demarcações
que a língua portuguesa nos impõe com as suas con-
venções, mas não vê meu cabelo, não vê a cor da mi-
nha pele, não conhece minhas orientações religiosas,
não conhece minha orientação sexual. É possível que
quem está lendo a minha narrativa possa estar dese-
nhando todos esses atravessamentos.
Mas qual Patrícia foi invisibilizada nesta narra-
tiva? A mulher? A preta? A que viveu no subúrbio? Ou
todas as Patrícias entrelaçadas (algumas que eu nem
elenquei aqui) me tornaram essa pessoa passível de
atropelamento por não ser vista?
Ao destacar a invisibilidade que foi lançada como
inseparável de mim, talvez esses atravessamentos se
tornem ainda mais fáceis de serem elencados, afinal
tornar a/o/e outra/o/e invisível não é uma prática ex-
clusiva do meu atropelador. Percebo não se tratar de
uma invisibilidade instalada pela necessidade de tor-
nar outros pontos visíveis, mas de uma invisibilidade
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narrativa interseccional

proposital e circunstancial, que produz a/o/e outra/o/e


como inexistente (Santos, 2002) sempre que se torna
necessário descartar essa/e outra/o/e.
Digo que esta invisibilidade é circunstancial pois,
por vezes, para descartar alguém, a circunstância exi-
ge “visibilizar” essa/e alguém. Não fui “vista” ao atra-
vessar uma rua, mas sempre sou vista pelas equipes
de segurança das lojas de varejo, que insistem através
de seus soldados em me seguirem durante o exercí-
cio obrigatório de ser consumidora numa sociedade
capitalista.
Portanto, a interseccionalidade se instala en-
quanto esse lugar de incômodo, o lugar do anseio so-
cial pela descartabilidade. Esse anseio, em boa parte
das vezes, não é assumido ou dito por quem “atropela”,
mas que estruturalmente perpassa a vida de quem é
todo dia atropelado/a/e.
Com Akotirene (2020, p. 19), compreendo que

a interseccionalidade visa dar instrumentalidade


teórico-metodológica à inseparabilidade estrutu-
ral do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado,
produtores de avenidas identitárias em que mulhe-
res negras são repetidas vezes atingidas pelo cru-
zamento e sobreposição de gênero, raça e classe,
modernos aparatos coloniais.

Não se trata, portanto, de somar identidades, mas


de compreender as encruzilhadas identitárias, de ler
as condições estruturais que atravessam os corpos
desenhados com e ao longo dessas experiências es-
tabilizadas pela matriz de opressão. Sobre isso, Rufino
(2017) explica que

a orientação a partir do conceito de encruzilhada


expõe as contradições desse mundo cindido, dos
seres partidos, da escassez e do desencantamen-
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narrativa interseccional

to. As possibilidades de reinvenção emergem das


fronteiras, das intersecções, dos efeitos dos cruzos
e da diversidade como poética/política na emer-
gência de novos seres e na luta pelo reencanta-
mento do mundo. (Rufino, 2017, p. 30).

As narrativas interseccionais, enquanto pers-


pectiva ou enquanto instrumento teórico-metodo-
lógico, possibilitam a circulação de experiências de
opressão não contempladas pela abordagem de movi-
mentos que nomeiam separadamente as identidades
oprimidas. São narrativas que fragilizam a estrutura
aparentemente forte do sistema de opressão, desequi-
librando a colonialidade.
Encarar essas encruzilhadas pela via da narrati-
va nos convoca a uma ação política. Fazer saltar a rea-
lidade de opressão experimentada cotidianamente em
razão das articulações de clivagens identitárias apon-
ta pistas para tecer novas maneiras de ser e de estar
no mundo. Assim como inicio este verbete, a narrativa
de quem sofre a opressão convida ao posicionamento.
Nesse sentido, narrar a mim e a minha vida impede
que o façam em meu lugar. Enquanto escrevo, eu me
torno a narradora e a escritora da minha própria reali-
dade. A autora e a autoridade na minha história. Nesse
sentido, eu me torno a oposição absoluta do que o pro-
jeto colonial determinou (Kilomba, 2019, p. 28).
Ao assumir a minha narrativa, assumo as encru-
zilhadas identitárias que me desenham. Me fortaleço
frente aos atropelamentos de todos os dias. Os leio de
forma diferente. Os trato de maneira diferente.
Certamente, depois de ler minha narrativa, você
se perguntou: Patrícia, e o que você fez?
Sim, é comum insistir no que alguém fez após
uma violência, mas não no que essa violência fez em
quem a sofreu. A qualificação enquanto vitimismo
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narrativa interseccional

atribuída à narrativa de quem tem feridas causadas


pelas diversas experiências de opressão é um meca-
nismo bastante eficaz no silenciamento daqueles que
vivem as situações.
Narrar a minha experiência me empodera e em-
podera outras/os/es que se leem em mim. Concluo
este verbete de mãos dadas com Evaristo (2009), que
nos apresenta essa escrevivência enquanto um nós
compartilhado, um narrar encarnado de todos os cru-
zamentos identitários.

Quando escrevo, quando invento, quando crio mi-


nha ficção, não me desvencilho de um corpo-mu-
lher-negra em vivência e que, por ser esse o meu
corpo, e não o outro, vivi e vivo experiências que
um corpo não negro, não mulher, jamais experi-
menta. (Evaristo, 2009, p. 18).

Referências
AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Editora
Jandaíra, 2020.
EVARISTO, C. Literatura Negra: uma poética de nossa afro-
-brasilidade. Scripta, n. 25, v. 13, 2009.
KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo
cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
RUFINO, L. Exu e a pedagogia das encruzilhadas. 2017. 231
f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2017.

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ayvu

narrativas míticas
renato nogueraxli

xli
Professor do Departamento Filosofia pela Universidade Fe-
de Educação e Sociedade (DES), deral do Rio de Janeiro (UFRJ),
do Programa de Pós-Graduação Noguera está envolvido com os
em Filosofia, do Programa de projetos de pesquisa: O que as
Pós-Graduação em Educação, crianças pensam sobre a esco-
Contextos Contemporâneos e la: imagens, palavras e infân-
Demandas Populares (PPGE- cias na Educação Infantil e no
duc) da Universidade Federal Ensino Fundamental, e, “Mo-
Rural do Rio de Janeiro (UFR- dernidade” na perspectiva da
RJ), Pesquisador do Laborató- Crítica da Razão Negra; coorde-
rio de Estudos Afro-Brasileiros na o projeto de Extensão Brin-
e Indígenas (Leafro). Noguera quedoteca Pedagoginga.
coordena o Grupo de Pesqui- E-mail:
sa Afroperspectivas, Saberes e renatonoguera@ymail.com
Infâncias (Afrosin), doutor em

Indagar pela consistência de uma narrativa míti-


ca exige-nos uma história. Eu aprendi com o meu avô
materno, que, por sua vez, aprendeu com o avô dele,
uma história do povo Luhya que habita imediações
do monte Elgon, entre o Quênia e Uganda. Na língua
Luhya, sonho tem o sentido de mito sempre que o ato
de sonhar implique que o ocorrido durante o sono seja
contado.
– sumário –

Durante o sono, as histórias convidam para pas-


sear, isto é, sonhar. De acordo com os Luhya, dizia o
meu avô, existem dois tipos de sonhos: os pequenos
e os grandes. Estes últimos são os mitos e precisam
274
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narrativas míticas

ser contados para todo o mundo. No começo do mun-


do, as primeiras pessoas que tiveram sonhos grandes
passaram a contar. Certa vez, foi dito que mais de uma
pessoa, eram mulheres, homens e crianças, tiverem os
mesmos sonhos. Daí, mais de uma pessoa contava a
mesma história. Foi dessa forma que surgiram os mi-
tos. Um mito é um sonho grande habitado por muitas
pessoas de uma mesma comunidade. Diante desta de-
finição de mito, nós podemos reconhecer que o fenô-
meno de narrar mitos não é do registro da invenção.
Faz parte de um “inconsciente coletivo” bastante fre-
quente num determinado grupo humano. Como diz o
mitologista afro-americano estadunidense Clyde W.
Ford, mito é um tipo de sonho que não pode ser manti-
do em segredo, uma experiência que nos ajuda a com-
preender a relação entre cura pessoal e a cura social
(Ford, 1999, p. 7). À primeira vista, o ato de narrar um
mito tem um objetivo trivial: curar através de uma his-
tória que foi contada através dos sonhos.

II
Em que consiste uma narrativa mítica?

Os mitos são, realmente, as “histórias sociais” que


curam. Isso porque nos dão mais do que o desfecho
moral que aprendemos a associar há muito tempo
às quadrinhas infantis e aos contos de fadas. Lidos
apropriadamente, os mitos nos deixam harmoni-
zados com os eternos mistérios do ser, nos ajudam
a lidar com as inevitáveis transições da vida e for-
necem modelos para o nosso relacionamento com
as sociedades em que vivemos e para o relaciona-
mento dessas sociedades com o mundo que parti-
lhamos com todas formas de vida. (Ford, 1999, p. 9).

Uma narrativa mítica consiste numa história


que produz, cria possibilidades de organização de sen-
275
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narrativas míticas

tido no mundo. Pois bem, antes de darmos continui-


dade, vale a pena destacar alguns argumentos do mi-
tólogo Clyde Ford que funcionam como uma ressalva
relevante: a maioria dos estudos não menciona o con-
tinente africano. Uma revisão bibliográfica sobre mi-
tologia tem uma peculiaridade. A literatura não recebe
bem a mitologia africana. Os mitologistas ocidentais,
inclusive o falecido Joseph Campbell, escreveu pouco
e quase sempre com zombaria sobre mitologia africa-
na (Ford, 1999, p. 9). Feita essa ressalva, vale a pena
seguir com uma reflexão a respeito das condições de
possibilidade da narrativa mítica.
De acordo com considerações do filósofo mali-
nense Hampate Bâ, o mito está ligado à palavra e, mais
especificamente, ao ato de narrar, ou ainda, falar. O ra-
ciocínio é simples, a palavra compõe a fala, esta, por
sua vez, encadeada, dá o ritmo de um mito. Um mito
narrado tem a dupla função de conservar e destruir
(Bâ, 2010, p. 173). Uma narrativa mítica é um percur-
so de produção de realidade. Como foi dito no artigo
A lição de Kwaku Ananse: a perspectiva griot sobre
ensinar filosofia (Noguera, 2019), uma aposta numa
perspectiva bastante recorrente no continente africa-
no, especialmente na região conhecida como África
do oeste, narrar é a atividade radical do ser humano. O
que constitui a humanidade, o que a inaugura, estrutu-
ra e a organiza no mundo são as narrativas (Noguera,
2019, p. 161).

III
Se partirmos desse ponto de vista de que o nar-
rar mítico inaugura e organiza a vida, vale a pena en-
frentar, ainda que de modo sumário, um debate sobre o
horizonte em que um mito se desenvolve. Nesse ponto,
vale a pena situar o que a filósofa Oyèrónké Oyěwùmí
276
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narrativas míticas

descreve como “sentidos de mundo” para substituir a


concepção de “visão de mundo”.

O termo “visão de mundo” que se usa no ocidente


para sintetizar a lógica cultural de uma sociedade,
expressa adequadamente a prerrogativa ocidental
da dimensão visual. Mas, teríamos um resultado
eurocêntrico se utilizássemos essa expressão para
nos referirmos a culturas que provavelmente dão
prioridade para outros sentidos. A qualificação
“sentido de mundo” é uma alternativa de maior
abertura para descobrir a concepção do mundo de
diferentes grupos culturais. Por outro lado, neste
estudo “visão de mundo” se aplicará exclusiva-
mente à descrição do sentido cultural ocidental e
usaremos “sentido de mundo” em referência à so-
ciedade ioruba e outras culturas que podem privi-
legiar outros sentidos ou inclusive uma combina-
ção deles. (Oyěwùmí, 2017, p. 39).

Uma visão de mundo é maneira de organizar a


realidade através da vista, mas não é a única. Existe
cosmopaladar, cosmotato, cosmo-olfato e cosmo-audi-
ção. É importante considerar que toda narrativa míti-
ca está enredada de modo indissolúvel em um sentido
de mundo, cosmossentido, ou, mais frequentemente,
de cosmossentidos. É a partir das experiências sen-
síveis que um mito vai se estruturando. Esse racio-
cínio está de acordo com o que o filósofo malinense
Hampaté Bâ diz: Quando Maa Ngala fala, pode-se ver,
ouvir, cheirar e saborear a sua fala (Bâ, 2010, p. 172).
Na tradição do povo Bambara, Maa Ngala é o ser que,
através da palavra, tem o poder de criar, ou ainda, o
poder criador da palavra. Ora, essa palavra pode ser
vista, ela tem cheiro, sabor, consistência tátil, além de
ser perceptível aos ouvidos. Em outros termos, os sen-
tidos de mundo estão presentes numa história, mais
especificamente nos mitos.
277
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narrativas míticas

IV
De volta às primeiras afirmações de que o mito é
um processo de cura, podemos supor que esse percur-
so precisa estar apoiado num sentido de mundo. Esse
sentido está indicado nos sonhos que acabam por des-
truir e construir mundos. O ato de preservar ou extin-
guir alguma coisa é inerente à dinâmica da vida e, tal
como ensina o filósofo iorubá Orunmilá, não cabe ar-
ticular preservação e destruição com “bem” e “mal”. A
cura passa por manter e por eliminar os mais diversos
elementos. O caráter curativo do mito está articulado
com o poder de reconhecer a potência regenerativa do
sonho. Aqui especialmente dos sonhos que são “cole-
tivos”. Não é através de um sonho individual, isto é,
pequeno, que podemos encontrar o que precisamos
manter e o que deve ser deixado para trás. O poder de
reencontrar sentimentos compartilhados se dá exclu-
sivamente por intermédio dos sonhos que animam
muitas pessoas durante o período da noite.
O mito é justamente o que une as pessoas em prol
da aceitação do caráter indecifrável da existência. Por
meio dessa experiência existencial que mobiliza sen-
tidos de mundo, nós podemos vislumbrar a sintonia
vital que desfaz as fronteiras que separam as coisas.
A partir desse raciocínio, mito é uma narrativa curati-
va por ser capaz de nos convocar para habitar um so-
nho coletivo. Portanto, o objetivo de narrar mitos está
numa convocação para uma epifania. O que há de fun-
damental no ato de narrar um mito? Ora, mitos devem
ser sonhos reconhecidos por outras pessoas, sem que
saibamos quem foi a primeira pessoa a contá-lo. Uma
cura social e individual se dá diante da compreensão
de que o mundo só faz sentido quando o destino de
uma pessoa fizer parte do itinerário de outras pesso-
as. O caráter itinerante da vida expõe a necessidade
278
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narrativas míticas

de um ritmo que ajude a caminhar. Pois bem, são os


mitos que ditam esse ritmo e oferecem caminhos que
interessam para toda a humanidade.

Referências
BÂ, A. H. A Tradição Viva. In: KI-ZERBO, J. (org.). História
Geral da África I: metodologia e pré-história da África. 2ª ed.
rev. Brasília: UNESCO, 2010.
FORD, C. W. O herói com rosto africano: mitos da África. São
Paulo: Summus, 1999.
NOGUERA, R. A lição de Kwaku Ananse: a perspectiva griot
sobre ensinar filosofia. Quadranti – Rivista Internazionale
di Filosofia Contemporanea, v. VII, n. 1-2, 2019.
OYĚWÙMÍ, O. La invención de las mujeres: una perspec-
tiva africana sobre los discursos occidentales del género.
Bogotá: La Fronteira, 2017.

279
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ayvu

narrativas na educação
antirracista
núbia santosxlii
raíza venasxliii
perseu silvaxliv

Professora da Faculdade de
xlii
que atua como profissional da
Educação da UFRJ, Licencia- educação inclusiva na Secreta-
da em Pedagogia e Doutora em ria Municipal de Educação do
Educação pela UERJ. Pesqui- Rio de Janeiro.
sadora da infância no Grupo E-mail:
de Pesquisa Infância e Cultura izavenas@hotmail.com
Contemporânea (GPICC/UERJ).
Integra o Laboratório de Es-
xliv
Docente do Departamen-
tudos de Linguagem, Leitura, to de Anos Iniciais do Colégio
Escrita e Educação (LEDUC/ Pedro II, doutorando e Mes-
UFRJ). Coordenadora do Grupo tre em educação pelo ProPEd/
de estudos e extensão em Edu- UERJ, membro do Grupo de
cação Infantil e Relações Ra- pesquisa Infância e Cultura
ciais (GEERREI/UFRJ). Contemporânea (GPICC/UERJ)
e do projeto de extensão Circu-
E-mail: laridades na escola (Cap-UERJ/
nnubia@terra.com.br CPII)
Professora, pedagoga e
xliii
E-mail:
mestra em educação (ProPEd/ perseusilva@gmail.com
UERJ). Mulher preta, periférica
– sumário –

Narrativas na Educação Antirracista, relatos


orais, escritos, corporais que narram experiências que
valorizem as histórias e culturas negras e indígenas e
favoreçam o combate ao racismo. Uma narrativa antir-
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narrativa na educação antirracista

racista encontra na sua expressão, nos seus diferentes


dizeres, formas positivas e potentes de trazer cultura
e ancestralidade das populações negras e indígenas,
proporcionado leituras de mundo e de cada um de nós
diferentes do hegemônico ou historicamente estabe-
lecidos. A narrativa antirracista se faz também na
escuta antirracista. A educação antirracista efetiva-
-se também pela dimensão educativa promovida por
uma narrativa que recria quem a pronuncia e quem
se depara com ela como forma possível de reinventar
o mundo politicamente. A narrativa na educação an-
tirracista precisa ser entendida como uma forma de
inscrição na história, não somente do ponto de vista
individual, mas que aponte para uma coletividade.
Nessa construção, o conceito de Afrocentricidade,
cunhado por Molefi Asante, enquanto contraposição
crítica ao eurocentrismo, pode ocupar um lugar de
importante aliado. A partir de uma abordagem afro-
centrada, propõe uma narrativa em que a africanidade
seja o referencial. A afrocentricidade é, nesse sentido,
entendida como a sistematização de narrativas das
pessoas negras a exemplo de Zumbi dos Palmares, en-
tre outros símbolos da resistência negra, no Brasil e no
mundo (Lima, 2020, p. 27).
Também Azoilda Trindade (2010) contribui para
pensar este verbete, quando sobreleva a África, des-
tacando a riqueza que compõe os valores civilizató-
rios afro-brasileiros. Esses valores inscritos na nossa
memória, no nosso modo de ser, na nossa música, na
nossa literatura, na nossa ciência, arquitetura, gas-
tronomia, religião, na nossa pele, no nosso coração
(Trindade, 2010, p. 30) circulam conosco, desde as afri-
canas/os trazidas/os para o Brasil.
Nas sociedades africanas tradicionais e nas so-
ciedades de povos originários, as narrativas orais
281
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narrativa na educação antirracista

são um elemento matriz na produção e preservação


das diferentes culturas. É pela oralidade, entendi-
da como energia vital, que preservamos e mantemos
conhecimentos, valores, modos de viver, religiosida-
de. Pois nossa expressão oral, nossa fala é carregada
de sentido, de marcas de nossa existência (Trindade,
2010, p. 33).
É através da oralidade que outras práticas são
criadas e reinventadas. Enquanto legado direto das
culturas africanas e indígenas, a oralidade está im-
pregnada das marcas da existência que em sua me-
mória viva, através da palavra falada, articula-se com
a musicalidade, o ritmo, a ludicidade. Para Zuleide
Duarte (2009, p. 181),

nas sociedades tradicionais africanas as narrati-


vas orais configuram os pilares onde se apoiam os
valores e as crenças transmitidas pela tradição e,
simultaneamente, previnem as inversões éticas e o
desrespeito ao legado ancestral da cultura.

Os griots, em terminologia francesa, ou dieli, em


bambara, segundo Cristiano Pinheiro (2013), são con-
tadores de histórias, músicos, diplomatas, genealogis-
tas ou poetas que transitam por diferentes regiões, co-
munidades e países levando histórias. As narrativas
dos griots guardam saberes populares, são herança
legítima das culturas locais preservando lugares de
pertencimento.
É nesse sentido que a narrativa na educação
antirracista se configura como ação, efeito de narrar
por meio de palavras, imagens, gestos e corpo a ex-
periência que anuncia uma postura de antirracismo
e convida o ouvinte ao papel de aliado na luta. Uma
narrativa que propicia o combate ao racismo e preten-
de contribuir para a superação de uma perspectiva da
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narrativa na educação antirracista

educação em que as populações negras e indígenas


são abordadas somente através da ótica da subalter-
nidade, seja apenas pelo viés da escravidão, reduzidas
às expectativas de escravizadas, ou pela perspectiva
da Outridade (Kilomba, 2019).

Mulheres negras, por não serem brancas nem ho-


mens, passam a ocupar uma posição muito difícil
dentro de uma sociedade patriarcal de supremacia
branca. Nós representamos um tipo de ausência
dupla, uma Outridade dupla, pois somos a antíte-
se tanto da branquitude quanto da masculinidade.
(Kilomba, 2019, p. 190).

Em Memórias da plantação, a própria Grada


Kilomba nos inspira a construir o verbete em questão
na medida em que entra nas narrativas autobiográficas
de mulheres negras para dilucidar o racismo cotidia-
no. Através das experiências subjetivas e individuais
narradas por essas mulheres, a autora, ancorada tam-
bém em sua narrativa, remonta uma memória coletiva
e histórica, desnaturalizando o racismo habitual.
Nesse processo de desnaturalização, a narrativa
na educação antirracista considera que a categoria de
escravo não é o suficiente para dimensionar a vida de
negras/os. Carolina Rovaris (2018, p. 47) traz a impor-
tância da narrativa histórica, na qual as populações de
origem africana apareçam como sujeitos ativos e do-
nos de suas histórias; que negociaram, constituíram
famílias e criaram estratégias, apesar dos obstáculos
colocados pelo sistema escravista.
A narrativa na educação antirracista é o exer-
cício de apresentar e produzir coletivamente, com os
educandos, histórias que expressem as diversas expe-
riências de pessoas negras, indígenas e não brancas,
como pessoas plurais que são. Essa narrativa é teci-

283
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narrativa na educação antirracista

da tanto na pronuncia de relatos de acontecimentos


e experiências como também na corporeidade que
constitui as relações escolares e tanto dizem com ges-
tos, estética e presença. Aprendemos com Nilma Lino
Gomes (2011, p. 48) que o corpo é como instrumento
relacional com o mundo, e a gestualidade do corpo
construída através das experiências socioculturais.
Corporeidade enquanto potencialidades, simbolismos
e representações.
O corpo e a corporeidade dos sujeitos contam de
seus lugares e experiências e, por isso, é narrativa. Diz
sobre pensar, sentir e narrar o mundo, e sobretudo, so-
bre posicionamentos políticos diante da colonialidade.
Embora no cotidiano as narrativas soem como
uma produção individual, é no resultado das suas per-
sistências, repercussões e ecos que ultrapassam os
muros dos espaços de educação formais e não formais
para elevá-los a um lugar de produção de conheci-
mento, mas, acima de tudo, ao lugar de emancipação
da consciência, de resistência e de criação. Uma nar-
rativa que estabelece uma relação viva com o mun-
do, convocando ao posicionamento. Nesse sentido, a
narrativa na educação antirracista é maneira de con-
tinuidade de culturas afro-brasileiras e indígenas, é
estratégia de sobrevivência dos povos da diáspora e
dos povos originários, é uma maneira guardiã ances-
tral de preservação.
A narrativa na educação antirracista reconhece
que a dominação e exploração colonial promoveu o
apagamento histórico da trajetória de negras/os e in-
dígenas, o silenciamento e o aniquilamento das con-
tribuições do continente africano, da diáspora africa-
na e das diferentes etnias indígenas para o patrimônio
cultural reconhecido pela humanidade, como bem
aponta Abdias Nascimento (1978, p. 93):
284
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narrativa na educação antirracista

A palavra-senha desse imperialismo da brancu-


ra, e do capitalismo que lhe é inerente, responde
a apelidos bastardos como assimilação, acultura-
ção, miscigenação; mas sabemos que embaixo da
superfície teórica permanece intocada a crença na
inferioridade do africano e seus descentes.

Sueli Carneiro (2005) reforça os apontamentos


de Abdias Nascimento quando atualiza o termo epis-
temicídio, ao defini-lo como um dos instrumentos da
dominação étnica e racial mais eficientes e duradou-
ros. O epistemicídio ocorreu sempre que se pretendeu
subalternizar, subordinar, marginalizar, ou ilegali-
zar práticas e grupos sociais que podiam ameaçar a
expansão capitalista ou, durante boa parte do nosso
século, a expansão comunista (Carneiro, 2005, p. 96).
Essa relação se estabelece na definição de que alguns
são mais ou menos humanos. O epistemicídio atua de
maneira perversa, garantindo a brancas/os o direito
de consumir o que lhes convém das culturas negras
e indígenas e de exterminar o que não lhes convém.
Ele constitui um dos pontos centrais da colonialida-
de, produzindo pensamentos que se materializam nas
mais diferentes esferas e instituições sociais e na prá-
tica de seus agentes.
Tomando também como inspiração o conceito de
escrevivência, cunhado por Conceição Evaristo, nos
reportamos ao trabalho de Gabriela Silva (2019), que
analisa os conflitos acerca da narrativa racial constru-
ída no país, com ênfase no movimento de “contranar-
rativa” organizado por autoras negras. Silva (2019, p.
37) aponta as obras de escritoras e intelectuais negras
como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo,
Miriam Alves, Cidinha da Silva e Geni Guimarães,
como contranarrativas que desafiam as estruturas
de opressão e tornam-se agentes de seus próprios
285
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narrativa na educação antirracista

discursos e histórias. Conceição (Evaristo, 2005, p. 7


apud Silva, 2019, p. 37) afirma que os textos femini-
nos negros, para além de um sentido estético, buscam
‘semantizar’ um outro movimento, aquele que abriga
toda as suas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como
direito, assim como se toma o lugar da vida. Desta for-
ma, balizando a ideia da produção de uma narrativa
de (re)existência através da escrita comprometida em
reconfigurar a imagem do negro na literatura contem-
porânea brasileira.
Em suas conclusões, Silva (2019) acredita que
as autoras entendem que suas narrativas literárias
ganham objetivos maiores quando assumem a tarefa
de, por meio delas, reconstruir politicamente o ima-
ginário social do negro brasileiro. É uma escrita que
se rejeita ensimesmada, ampliando-se no conteúdo e
na forma para falar não apenas de si, mas de/com um
coletivo. Diante das histórias que incomodam, a escre-
vivência quer justamente provocar essa fala, provocar
essa escrita e provocar essa denúncia (Evaristo, 2020).
Uma tarefa que perpassa a dimensão política, social e
estética, pois suas narrativas literárias são carregadas
da complexidade subjetiva desses sujeitos, e de sua
própria trajetória pessoal e coletiva.
Nesta perspectiva, a narrativa na educação an-
tirracista ajusta-se também como contranarrativa.
Uma narrativa que desconstrói paradigmas eurocên-
tricos, universalizados e hegemônicos, propondo uma
outra visão dos fatos históricos e sociais. Isso significa
que a narrativa na educação antirracista se constitui
pela incorporação de diferentes formas de contranar-
rar à narrativa que promoveu e promove a perpetua-
ção do racismo instituído historicamente, produzido
pela/na colonialidade. Nesse caminho, entende-se
esta como uma narrativa que reconheça não somen-
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narrativa na educação antirracista

te os valores culturais de negras/os e indígenas, mas


a sua identidade e humanidade, recolocando-os como
agentes e produtores das narrativas acerca de si e de
sua história.
A colonialidade concretiza-se na barbárie da
vida. Seus agentes são responsáveis pela invasão das
terras indígenas, pelo sequestro violento de negras/
os do território africano, por séculos do mais bárbaro
e perverso processo de escravização, pela elaboração
tecnológica de instrumentos de tortura ou de morte,
pela subalternação ou a exclusão de conhecimentos
produzidos por outras epistemologias. Ela é a manu-
tenção dos privilégios de brancas/os. É o genocídio do
povo negro e indígena. Poderíamos escrever páginas
e mais páginas materializando a barbárie que é a co-
lonialidade e o quanto ela é presente. Essa barbárie do
fim do mundo, que nos silencia. A barbárie produz o
silenciamento. Por isso, narrativa na educação antir-
racista é o lugar de sempre narrar mais uma história,
como nos aponta Ailton Krenak (2019), para adiar o fim
do mundo. É produzir currículos com conhecimentos
historicamente excluídos. É contar a história narrando
nossa resistência e nossos atos criativos. Narrar nosso
enfrentamento constante e cotidiano contra a colonia-
lidade. É colocar o “Sul” como referência. Narrar para
trazer à tona, aos pensamentos e às ações, a possibi-
lidade de resgatar, valorizar e criar outros modos de
viver no mundo.

Referências
CARNEIRO, S. A Construção do Outro como Não-Ser como
Fundamento do Ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
DUARTE, Z. A tradição oral na África. Estudos de Sociologia,
v. 2. n. 15, 2009.
287
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narrativa na educação antirracista

GOMES, N. L. Movimento negro, saberes e a tensão regu-


lação-emancipação do corpo e da corporeidade negra.
Contemporânea, n. 2, 2011.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
LIMA, C. S. de. Teoria da afrocentricidade e educação: um
olhar afrocentrado para a educação do povo negro. 2020.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2020.
NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: proces-
so de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Editora Paz e
Terra S/A, 1978.
EVARISTO, C. Dez perguntas para Conceição Evaristo - “A
escrevivência serve também para as pessoas pensarem”.
Notícias da Educação. Itaú Social, Polo de Desenvolvimento
Educacional.. Disponível em: https://www.itausocial.org.br/
noticias/conceicao-evaristo-a-escrevivencia-serve-tam-
bem-para-as-pessoas-pensarem/. Acesso em: 9 nov. 2020.
PINHEIRO, C. G. Narrativas de educação e resistência: a prá-
tica popular griô de Dona Sirley. 2013. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Universidade Federal de Pelotas, 2013.
ROVARIS, C. C. Narrativas sobre a diáspora africana no en-
sino de história: trajetórias de africanos em desterro/SC no
século XIX. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino
de História) – Universidade do Estado de Santa Catarina,
Florianópolis, 2018.
SILVA, G. da C. “A (re)existência através da escrita” a contra-
narrativa mobilizada pelas obras de autoras negras brasi-
leiras. Revista Três Pontos, n. 1, 2019.

288
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ayvu

Oo

o outro como legítimo outro


soler gonzalezxlv

xlv
Formado em Geografia e Pro- e educações ambientais que
fessor do Centro de Educação da emergem na vida cotidiana.
Ufes. Percorro caminhos com o E-mail:
ensino de Geografia em com- soler.gonzalez@ufes.br
panhia com outras ecologias

Em 2002, li pela primeira vez o livro Emoções e


linguagens na educação e na política (2005), e gosto
de dizer que as reflexões das duas conferências nele
reunidas, e proferidas em 1988 pelo biólogo chileno
Humberto Maturana, soaram, e soam ainda hoje para
mim, como possibilidades de pensar o potencial éti-
co, estético, político e epistemológico das conversas,
– sumário –

das relações de convivência e da aceitação do outro


como legítimo outro com as pesquisas em Educação
Ambiental (EA).
Nessas duas palestras, Maturana lança ao pú-
blico algumas provocações que atravessam nossas
289
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o outro como legítimo outro

vidas cotidianas e, principalmente, a vida do povo


chileno, que, naquele momento, vivia o processo de
redemocratização do Chile, assim como no Brasil. As
ponderações envolviam as emoções e a linguagem
nas relações corriqueiras da vida cotidiana, como por
exemplo: “De que modo refletir sobre nossas emoções
e nossa linguagem pode auxiliar na construção de re-
lações humanas democráticas, centradas no respeito
mútuo?” O que Maturana pronunciou naqueles encon-
tros no passado pode ser atualizado para o momento
presente de nossa educação e de nossa democracia.
Desde então, permanecemos com a compa-
nhia amigável e perturbadora das contribuições de
Maturana com a educação, e convidamos também o
leitor e a leitora a nos acompanhar para pensarmos o
outro como legítimo outro nas relações cotidianas, em
nossas práticas docentes, e nas pesquisas em EA com
as narrativas.
As experiências que vivenciamos1 com as lei-
turas, pesquisas e eventos acadêmicos, entrelaçadas
pelos minicursos, oficinas e encontros de formação,
abordando as contribuições de Maturana (1999; 2006),
Maturana e Varela (1995), Maturana e Verden-Zoller
(2004) e Maturana e Yáñez (2009), para a educação e
a EA, foram fundamentais para apostarmos em bases
teóricas e metodológicas que consideram a dimensão
ética, estética, política e ontológica da conversa, do
conversar, e, sobretudo, na aceitação do outro como le-
gítimo outro na convivência.
Em 2010, entusiasmados com as contribuições
de Humberto Maturana na educação e, sobretudo, nas

1
Artigos, apresentações de trabalho, oficinas e formações foram
realizadas em parceria com a professora, pesquisadora e compa-
nheira Andreia Teixeira Ramos (Gonzalez; Ramos, 2012, 2014), que
também participa deste volume com o verbete escrevivência.
290
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o outro como legítimo outro

pesquisas narrativas em EA, percorremos espaços


acadêmicos e formativos para conversarmos sobre
essas perspectivas, que suscitaram na escrita do ar-
tigo Educação ambiental numa perspectiva autopoié-
tica na formação de educadores/as (Gonzalez; Ramos,
2012). Continuamos as leituras, os encontros com o
outro e decidimos ampliar os espaços de diálogos na
atitude ética de criarmos práticas pedagógicas dialó-
gicas nos cotidianos escolares com estudantes, pes-
quisadores e pesquisadoras, e, com o próprio campo
da EA, desses espaços de convivência com o outro
suscitaram os artigos, e a tese de doutorado em edu-
cação Yunes ambiental autopoiética entre mangue-
zais, redes cotidianas escolares e práticas pesqueiras
(Gonzalez, 2013).
No caminhar em companhia com o outro como
legítimo outro na convivência, com as pesquisas nar-
rativas, os cotidianos escolares e a EA, e pensando nas
contribuições de Maturana, apostamos nas educações
ambientais autopoiéticas tecidas em nossas redes de
conversações na vida cotidiana e nos movimentos de
invenção de si e do outro.

Como pensar nos movimentos de uma EA


Autopoiética entre redes de conversações, no exer-
cício de aceitação do outro como legítimo outro
na convivência negociando tensões e conflitos de
modo amoroso, em nossa cultura contemporânea?
(Gonzalez; Ramos, 2014, p. 86-116).

Seguimos com o desejo e a necessidade de criar-


mos espaços de aprendizagens e de diálogos com o
outro nos cotidianos escolares, para vivenciarmos a
perspectiva de uma EA autopoiética, que se sustenta
na relação de aceitação do outro como legítimo outro
na convivência. Maturana questiona as afirmações e
291
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o outro como legítimo outro

discursos, que corriqueiramente fazemos, quando di-


zemos que somos racionais, e que essa característica
biológica nos distingue dos outros animais, e, com
isso, nos alerta sobre os riscos de aceitarmos piamen-
te essa afirmação.

Normalmente vivemos nossos argumentos racio-


nais sem fazer referência às emoções em que se
fundam, porque não sabemos que eles e todas as
nossas ações tem um fundamento emocional, e
acreditamos que tal condição seria uma limitação
ao nosso ser racional. (Maturana, 2005, p. 18).

De acordo com o biólogo chileno, o ser humano


se constitui no entrelaçamento do emocional com o
racional (Maturana, 2005, p. 18), e, como veremos a se-
guir, a emoção e a linguagem são condições necessá-
rias para um convívio social sadio, democrático e de
respeito ao outro, considerando o outro como legítimo
outro na convivência.
O pensar no outro, como legítimo outro na con-
vivência, nos implica em fazermos referência às emo-
ções e à linguagem que vivenciamos em nosso viver
cotidiano, quando nos damos à convivência com o
outro, que pode ser um outro conhecido ou desconhe-
cido. O dar-se à convivência e à intimidade da convi-
vência, a sensualidade e o compartilhar com o outro,
são características que conservamos em nosso modo
de vida, e que pertencem à história de nossa linha-
gem há pelo menos 3,5 milhões de anos (Maturana,
2005, p. 22).
E cabe então a seguinte questão: qual emoção
sustenta esse modo de vida, conservado por nossa li-
nhagem há tanto tempo, e sem a qual esse modo de
vida na convivência, na aceitação do outro como le-
gítimo outro, não seria possível? Maturana responde
292
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o outro como legítimo outro

que Essa emoção é o amor. O amor é a emoção que


constitui o domínio de ações em que nossas intera-
ções recorrentes com o outro fazem do outro um legí-
timo outro na convivência (Maturana, 2005, p. 22).
E complementa dizendo que somos animais de-
pendentes do amor.

O amor é a emoção central na história evolutiva


humana desde o início, e toda ela se dá como uma
história em que a conservação de um modo de vida
no qual o amor, a aceitação do outro como legítimo
outro na convivência, é a condição necessária para
o desenvolvimento físico, comportamental, psí-
quico, social e espiritual normal da criança, assim
como para a conservação da saúde física, compor-
tamental, psíquica, social e espiritual do adulto.
(Maturana, 2005, p. 25).

Desse modo, seguindo as reflexões de Maturana,


cabe-nos a nos indagar se e de que modo os processos
educativos interferem nossas relações de aceitação
do outro como legítimo outro na convivência? De que
modo as opções teóricas-metodológicas de nosso fa-
zer pesquisa em Educação e em EA interferem nossas
relações de aceitação do outro como legítimo outro?
Ressaltamos com esse verbete a necessidade de
repensarmos as emoções como dimensão ontológica,
ética e política nos processos educativos e nas pes-
quisas acadêmicas, afirmando, assim como o biólogo
chileno, que o amor é a emoção que possibilita nossas
interações com o outro, considerado como um legíti-
mo outro na convivência.

O amor é a emoção que constitui o domínio de


condutas em que se dá a operacionalidade da acei-
tação do outro como legítimo outro na convivên-
cia, e é esse modo de convivência que conotamos

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o outro como legítimo outro

quando falamos do social. Por isso, digo que o amor


é a emoção que funda o social. Sem aceitação do
outro na convivência, não há fenômeno social.
(Maturana, 2005, p. 23-24).

O pensar no outro como legítimo outro é uma


questão que diz respeito a nossa humanidade, ou a hu-
manidade que desejamos ser, e diz respeito também ao
mundo que queremos, ao modo como realizamos nos-
sas práticas educativas e os processos de produção
de conhecimento com as pesquisas que realizamos
nos cotidianos escolares. Pensar a aceitação do outro
como legítimo outro na convivência é um domínio de
ação no qual o que está em questão é o aceitar e o res-
peitar o outro, na convivência com o outro.

Quero um mundo em que meus filhos cresçam


como pessoas que se aceitam e se respeitam, acei-
tando e respeitando outros num espaço de convi-
vência em que os outros os aceitam e respeitam a
partir do aceitar-se e respeitar-se a si mesmo. Num
espaço de convivência desse tipo, a negação do ou-
tro será sempre um erro detectável que se pode e
se deseja corrigir. Como conseguir isso? É fácil:
vivendo esse espaço de convivência. (Maturana,
2005, p. 30).

Sem um ambiente de convivência e de relações


em que haja aceitação mútua em nossas práticas do-
centes e como pesquisadores e pesquisadoras, criamos
a separação, a destruição e o sofrimento, uma vez que
nós seres humanos nos originamos no amor e somos
dependentes dele. Na vida humana, a maior parte do
sofrimento vem da negação do amor: os seres huma-
nos somos filhos do amor (Maturana, 2005, p. 25).

Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não


há socialização, não há humanidade. Qualquer coi-
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o outro como legítimo outro

sa que destrua ou limite a aceitação do outro, des-


de competição até a posse da verdade, passando
pela certeza ideológica, destrói ou limita o acon-
tecimento do fenômeno social. Portanto, destrói
também o ser humano, porque elimina o proces-
so biológico que o gera [...]. Descartar o amor como
fenômeno biológico do social, bem como as impli-
cações éticas dessa dinâmica, seria desconhecer
tudo o que nossa história de seres vivos de mais
de três bilhões e meio de anos nos diz e nos legou.
(Maturana; Varela, 1995, p. 269-270).

Trouxemos algumas reflexões para pensarmos


as emoções em nossas relações cotidianas, nossas
práticas pedagógicas, nas pesquisas que realizamos,
em nossa ética, e reconhecendo o outro como legítimo
outro na convivência, principalmente em tempos de
pandemia e de isolamento social e físico, no qual nos-
sos encontros com o outro em contextos educacionais
são mediatizados pela internet e redes sociais.
Diante de um contexto social, político e emo-
cional que estamos vivenciando em nosso planeta e
em nossas vidas como seres humanos, somando-se a
isso o modelo ocidental de nossa sociedade de contro-
le, globalizada, consumista, belicista e antiecológica,
torna-se comum vivenciarmos relações antissociais
que negam o amor, a solidariedade e o diálogo, ou seja,
nossa ontologia humana.
Portanto, reconhecer o outro como legítimo outro
na convivência em nossa vida cotidiana, no fazer do-
cente, nas práticas pedagógicas e nas dimensões teó-
ricas-metodológicas, se constitui como uma dimensão
ontológica, política, ética, revolucionária e libertadora.

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o outro como legítimo outro

Referências
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Discente: caderno de produções acadêmicas-científicas do
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GONZALEZ, S.; RAMOS, A. T. Educação ambiental
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Editora da UFMG, 1999.
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política. 4ª ed. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
MATURANA, H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo
Horizonte: UFMG, 2006.
MATURANA, H.; VERDEN-ZOLLER, G. Amar e brincar: fun-
damentos esquecidos do humano do patriarcado à demo-
cracia. São Paulo: Palas Athena, 2004.
MATURANA, H.; YÁÑEZ, X. D. Habitar humano: seis ensaios
de biologia-cultural: São Paulo: Palas Athena, 2009.

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ayvu

Pp

pesquisaformação
inês ferreira de souza bragançaxlvi

xlvi
Professora da Faculda- Polifonia, vinculado ao Gru-
de de Educação da Universi- po de Estudos e Pesquisas em
dade Estadual de Campinas Educação Continuada (GEPEC/
(UNICAMP) e docente colabo- UNICAMP) e ao Núcleo de
radora do Programa de Pós- Pesquisa e Extensão Vozes da
Graduação em Educação Pro- Educação (FFP/UERJ). Seus
cessos Formativos e Desigual- trabalhos tematizam a forma-
dades Sociais, da Faculdade de ção docente, em suas políticas
Formação de Professores da e práticas, e a abordagem nar-
Universidade do Estado do Rio rativa (auto)biográfica como
de Janeiro (FFP/UERJ). Pós- modo de viver, narrar, pesqui-
-Doutora pela Pontifícia Uni- sar e formar em partilha. É au-
versidade Católica do Rio Gran- tora do livro Histórias de Vida
de do Sul (PUC/RS), Doutora e Formação de Professores: Di-
em Ciências da Educação pela álogos entre Brasil e Portugal
Universidade de Évora (Por- e de diversas produções biblio-
tugal) e Mestre em Educação gráficas nesse campo.
– sumário –

e Pedagoga pela Universida- E-mail:


de Federal Fluminense (UFF). inesbraganca@uol.com.br
Coordena o Grupo Interinsti-
tucional de Pesquisaformação

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Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas,


as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade
possível, e os delírios, outra razão.
– Galeano.

Com alegria recebi o convite para compor esta


obra com um verbete sobre pesquisaformação. Um
desafio, sou iniciante na escrita do gênero verbete.
Dos conceitos pesquisados em dicionários da língua
portuguesa, me aproximo e desejo fazer apontamen-
tos com comentários, notas sobre o tema, rascunhos1.
Faz parte do meu cotidiano de professora-pesquisado-
ra escrever em papéis diversos, em cadernos, comen-
tar, narrar, refletir sobre experiências que envolvem a
vida, a pesquisa e a formação. Tomo, então, como de-
safio do presente verbete, a oportunidade de reflexão
sobre o que tenho experimentado com muitos outros2
professores/as pesquisadores/as e que, em palavras
tomadas como limiares, se abrem em pluralidade de
sentidos.
Lembrando Benjamin (1993), escolho fazer essas
notas em diálogo com lampejos da experiência, aque-
les que convocam em momentos de perigo; memó-
rias-fragmento de travessias que envolvem medo, co-
ragem, dúvidas, sonhos, delírios e, quem sabe, “outra
razão”; lampejos que falam de encontros com pessoas
e coletivos que me deram a ver, sentir a indissocia-
bilidade entre pesquisa e formação, antes mesmo que

1
Sobre o significado do termo verbete, ver: https://www.dicio.com.
br/verbete/. Acesso em: 15 jun. 2021.
2
Especialmente com as/os companheiros/as do Grupo Interins-
titucional de Pesquisaformação Polifonia, do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC/UNICAMP) e Núcleo
Vozes da Educação (FFP/UERJ).
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pesquisaformação

tivesse conhecido as referências da pesquisa-forma-


ção no campo da pesquisa (auto)biográfica.
Lampejo 1: ano 1994, encontro trans-formador
com a professora Célia Linhares na Universidade
Federal Fluminense (UFF), com ela, a pesquisa se fazia
em grupo, em reuniões coletivas na universidade e na
escola básica, no que chamou de “núcleos de memória
e narração”. Rodas de conversa com professoras, parti-
lha de “histórias surpreendentes do cotidiano escolar”3
que fervilharam em diferentes lugares pelo Brasil, na
valorização de experiências instituintes em escolas
públicas e que fervilharam também em São Gonçalo
(RJ), no Núcleo Vozes da Educação da Faculdade de
Formação de Professores da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (FFP/UERJ).
Lampejo 2: no Vozes, constituído inicialmente
como núcleo de extensão, fazer pesquisa implica es-
tar com as escolas, as professoras, os estudantes. E,
assim, fui me fazendo professora-pesquisadora, inda-
gando saberes circulantes nas salas de aula do curso
de Pedagogia e das licenciaturas, nos cursos de exten-
são, nas pesquisas com as escolas. Memórias, histó-
rias, narrativas, cotidianos, atravessamentos.
Lampejo 3: sala da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas (FE/UNICAMP),
Grupo de Terça do GEPEC - Grupo de Estudos e
Pesquisas em Educação Continuada, professoras da
escola e da universidade em roda contam histórias,
partilham, escrevem narrativas, choram, tomam as

3
“Núcleos de Memória e Narração” e “Histórias surpreendentes do
cotidiano escolar”, são expressões presentes em diversas pesqui-
sas e trabalhos da Professora Célia Linhares, professora aposenta-
da da Universidade Federal Fluminense (UFF), minha orientadora
no Mestrado em Educação.
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ruas de Campinas na resistência ao fascismo, lutam


pela profissão.
Essas memórias-fragmento falam de modos ou-
tros de habitar espaçostempos da escola e da universi-
dade, transversalidades entre viver, ensinar, pesquisar,
formar, movimentos de pesquisaformação. Miudezas,
subversões do instituído. Narramos a vida, as práticas
sociais e a profissão, em caminhos compartilhados na
tessitura de conhecimentos na e com a universidade,
a escola, a formação docente. Uma narrativa que ao fa-
lar da e com a vida assume atravessamentos biográfi-
cos e autobiográficos, fala de um singularplural; deseja
ver e transver o mundo em partilhas e escutas atentas
e sensíveis.
Os trabalhos de Freire (1992), Boaventura (2000)
e da corrente das Histórias de Vida em Formação nos
ajudam a perspectivar as articulações entre pesquisa
e formação como um compromisso político e episte-
mológico que assumimos em nossas pesquisas – ao
mesmo tempo em que construímos conhecimentos,
nos formamos, mobilizados pelo desejo de permanen-
te reinvenção do mundo.
Com Freire (1992), aprendemos que o ato educa-
tivo dialógico implica em horizontalidade com os que
sentam conosco em roda no círculo de cultura, com
quem conversamos e nos permitimos viver desloca-
mentos. Com ele, o Brasil dos anos 1960 sonhou a edu-
cação como prática da liberdade, na escuta atenta dos
educandos, na construção de um saber emancipató-
rio, envolvendo práticas multiculturais. A educadora
e o educador em movimentos de ensino e de reflexão
permanente sobre os seus fazeres, em uma ação edu-
cativa que não separa as múltiplas dimensões da vida
e da docência. Nas palavras de Kohan (2019, p. 59), na
biografia filosófica de Freire,
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a vida não fica do lado de fora... da filosofia, da edu-


cação, da escola, do pensamento... [...], assim, uma
educação filosófica [...] toca e afeta politicamente
a vida – aumenta a potência de viver dos que dela
participam a partir do exercício de pôr em questão,
com outros e outras, o sentido da própria vida.

A obra freireana nos desafia, desse modo, a uma


produção de conhecimento implicado com a vida em
suas múltiplas manifestações, (trans)formações e na
expressividade e comunicação dos saberes produ-
zidos em partilha, sem desperdício de experiências
(Santos, 2000).
Boaventura Santos nos ajuda a problematizar a
epistemologia e sua colonização por uma racionalida-
de técnica apartada da vida e de suas complexidades,
tematizando teorias e práticas, conteúdos culturais,
científicos e existenciais, implicando no reconheci-
mento do outro como produtor de um conhecimento
multicultural na vivência partilhada do conhecimen-
to, tomando o sentido da dupla ruptura epistemológica
onde senso comum e conhecimento científico retor-
nam ao senso comum como possibilidade de sociali-
zação e transformação e, finalmente, no desafio que
vai do conformismo à ação rebelde (Santos, 2000).
Buscamos, assim, a produção de um conhecimento
que contribua na construção de subjetividades inquie-
tas, críticas, sensíveis e de um conhecimento emanci-
patório que alia concepções e práticas, ciência e exis-
tência, poièsis e poesia e que, como saber partilhado,
aponta também para o sentido narrativo que o consti-
tui e movimenta (Bragança, 2012, p. 264).
Desde a década de 1980, a corrente das Histórias
de Vida em Formação assume a perspectiva de inves-
tigação-formação que, com as contribuições de Nóvoa
(1992), foram socializadas entre nós, produzindo tessi-
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turas com o que experienciávamos no Brasil. Nos es-


tudos de Pineau (2010), encontramos um conhecimen-
to tecido reflexivamente em partilhas “auto”, “hetero”
e “ecoformativas”, uma reflexão (auto)biográfica que
envolve a si próprio, os muitos outros e o mundo. Nos
estudos de Josso, a pesquisa-formação é assumida
como desdobramento da pesquisa-ação, implica em
experiência, ação e formação:

uma formação aberta à experiência e à descoberta


deve ser uma formação criativa, mobilizadora da
capacidade autopoiética dos humanos, nós come-
çamos a antever a exigência de uma dupla entre
pesquisa e formação para produzir saberes no vivo,
saberes que sejam constitutivos e ou aprofundados
no curso da rota. (Josso, 1994, p. 72).

No curso da vida, da ação, pesquisa e formação


vão constituindo aberturas simultâneas, entrelaçadas.
No Vocabulário das Histórias de Vida e da
Pesquisa Biográfica, pesquisa-ação e pesquisa-forma-
ção encontram-se no mesmo verbete. Uma pesquisa
vivida em contexto, partindo das necessidades con-
cretas, visando mudanças no “mundo real”, a partir de
projetos interdisciplinares. [...] A passagem da pesqui-
sa-ação à pesquisa-formação leva à promoção de uma
pesquisa-ação-formação que tematiza a função dos
espaços intermediários, de momentos dialógicos como
princípios organizadores de um contexto propício à
uma postura reflexiva dos professores4 (Montandon,
2019, p. 379). São, assim, práticas reflexivas tecidas
coletivamente no interior das práticas educativas.
Suárez (2011), ao trabalhar com a Documentação
Narrativa de Experiências Pedagógicas com objetivo
de sistematização, publicação, debate, crítica e recons-
4
Tradução livre da autora.
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trução do saber pedagógico, tanto na Argentina como


em redes latino-americanas de formação docente, si-
tua a proposta no âmbito da investigação-formação-a-
ção por seu enfoque no desenvolvimento profissional
com implicações nas dinâmicas curriculares, nos co-
tidianos escolares e nas políticas do campo educativo.
A partir das experiências e reflexões partilha-
das, falar de pesquisaformacão nos remete a um com-
promisso politicoepistêmico com um conhecimento
científico que envolve escuta, partilha, ações coletivas,
emancipação, (trans)formações. Ao vivenciarmos ex-
periências coletivas nos cotidianos escolares com os
estudantes, docentes e comunidades, nos envolvemos
propositivamente em ações pedagógicas formativas
que movimentam saberes e constroem conhecimen-
tos em educação. O neologismo busca dar a ver-sentir
a indissociabilidade e a força dos movimentos trans-
versais entre a construção do conhecimento narra-
tivo (auto)biográfico em educação e os processos de
formação humana que dos/as os/as envolvidos/as.
Assumimos, desse modo, a dimensão formativa, im-
plicada com a ação, especialmente singular, única, ir-
repetível e, ao mesmo tempo, plural, incluindo traba-
lhos em que professores/as-pesquisadores/as narram
suas experiências pedagógicas ou abordagens que en-
volvam coletivos de estudantes e/ou profissionais da
educação nos cotidianos escolares, nas universidades
e nas práticas educativas.
Nos caminhos percorridos em partilha no Grupo
Polifonia5, temos colecionado algumas lições. A pes-
quisaformação se faz no caminho, no caminhar, no
encontro, nas experiências; assim, projetos, objetivos
5
Grupo Interinstitucional de Pesquisaformação Polifonia, vincu-
lado ao GEPEC (UNICAMP) e ao Núcleo Vozes da Educação (FFP/
UERJ): https://grupopolifonia.wordpress.com
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e questões de estudo são permanentemente tenciona-


dos, reconstruídos, movidos à reinvenção, nas pala-
vras de Fernandes, (des)caminhos.

Eles às vezes nos fazem seguir por trilhas indese-


jadas, mais largas e compridas do que esperáva-
mos, tortuosas, estreitas. Em outros momentos, se
abrem diante de nós como estradas montanhosas,
com céu azul e pássaros cantando. Segui. Todas
as vezes que um (des)caminho surgiu em minha
frente eu segui, sempre acompanhada, porque a
presença do outro me constitui, me fortalece, me
orienta. (Fernandes, 2021, p. 149).

Em contextos contemporâneos de aceleração, a


pesquisaformação nos aproxima de dinâmicas tempo-
rais instituintes, somos tomados por aion, tempo ili-
mitado das infâncias, da sensibilidade, nos chamando
para os lentos passos da experiência. Com Josso (2010),
desejamos viver esses passos em um caminhar para si
e em um caminhar com, implicando em intencionali-
dade, em assumir, desde os rascunhos e ao longo do
caminho, a ação comprometida, trans-forma-ação.
O componente ação é, assim, parte integrante e
inseparável, é o compromisso social de uma pesqui-
sa que se faz com a escola. Sendo feita no caminhar,
não perspectiva constituir protocolos fechados, mas é
comprometida com a consistência teórica e metodo-
lógica. Esse movimento é vivido pelo estudo de refe-
rências clássicas do campo, em diálogo com autores
brasileiros e latino-americanos, referências que nos
inspiram e que se abrem às outras referências e às tes-
situras tramadas na pesquisa em movimento.
A escrita coloca-se como companheira (Oliveira,
2020) ao longo dos movimentos da pesquisaformação;
assim, as narrativas produzidas em diversos gêneros

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como diários, narrativas pedagógicas, cartas e môna-


das mobilizam processos reflexivos entre os pesquisa-
dores-narradores. Nas palavras de Vieira (2020, p. 32)
a escrita como busca e encontro de sentidos, lições e
indícios de (per)formação e constituição de processos
de autoria.
Quando a pesquisaformação é vivida no contex-
to de produção de trabalhos acadêmicos – TCCs, dis-
sertações e teses – o gênero é acadêmico, mas temos
aprendido que a linguagem pode ser aquela que convi-
da à leitura, ao diálogo e, especialmente, a uma escri-
ta de professores para professores (Prado et al, 2017).
Observamos, nesse sentido, que muitas vezes a escrita
transborda, incluindo imagens, vídeos, outros modos
possíveis de fazer, dizer e sentir. O texto é tecido com e
deseja ser lido, discutido, ressignificado. E, assim, vai
se fazendo no caminho e com muitos outros, ampara-
da por uma rede polifônica e dialógica de referências
que articulam pesquisa narrativa (auto)biográfica e
estudos nosdoscom os cotidianos escolares. Cada jo-
vem pesquisador/a que chega se soma aos nossos co-
letivos de estudo e pesquisa, reinventando caminhos
já trilhados em novas aventuras (Abrahão, 2004).
Retomando o sentido de verbete como anotações
e comentários, bem como o desejo de abertura de sen-
tidos e não de fixação de significados, que sigamos
reinventando modos de viver, pesquisar, narrar e for-
mar em partilha nos cotidianos que habitamos, deli-
neando assim juntos a noção de pesquisaformação.

Referências
ABRAHÃO, M. H. M. B. (org.). A Aventura (Auto) Biográfica:
teoria e empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

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pesquisaformação

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ayvu

práticasteorias
nilda alvesxlvii
claudia chagasxlviii

xlvii
Pesquisadora emérita pela E-mail:
FAPERJ, com exercício na nildag.alves@gmail.com
UERJ, no ProPEd (Programa de xlviii
Pesquisadora com bolsa
Pós-Graduação em Educação/ PNPD, CAPES/UERJ, no projeto
EDU/Maracanã) e no Programa de pesquisa Processos curricu-
de Pós-Graduação em Educa- lares e movimentos migrató-
ção – Processos Formativos e rios: os modos como questões
Desigualdades Sociais – FFP/ sociais se transformam em
São Gonçalo (Rio de Janeiro). questões curriculares nas esco-
Pesquisadora 1A/CNPq. Líder las, atuando, entre 2017 e 2021,
do Grupo de Pesquisa Currícu- no Programa de Pós-Graduação
los, redes educativas, imagens em Educação – Processos For-
e sons (ProPEd/UERJ), coorde- mativos e Desigualdades So-
nando atualmente o projeto de ciais – FFP/São Gonçalo (Rio de
pesquisa Processos curricu- Janeiro). Pesquisadora do Gru-
lares e movimentos migrató- po de Pesquisa Currículos, re-
rios: os modos como questões des educativas, imagens e sons
sociais se transformam em (ProPEd/UERJ).
questões curriculares nas esco-
las, com financiamento CNPq, E-mail:
CAPES, FAPERJ e UERJ. Mem- chagas.prof@gmail.com
bro fundador do Laboratório
Educação e Imagem (ProPEd/
UERJ).
– sumário –

Uma de nós, tendo criado, há muitos anos, a es-


crita práticasteoriaspráticas, com os termos juntos,
em itálico e entre aspas simples, o fez a partir do pen-
samento de Henri Lefebvre que nos dizia que toda a
ação humana realiza uma prática que permite criar
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práticasteorias

uma teoria que retorna à prática, necessariamente.


Para mostrar esse movimento, o termo práticas preci-
sava se repetir.
Hoje, no entanto, entendemos que práticasteorias
dá, digamos, “conta do recado”, com o termo “práticas”
à frente do termo “teorias”, porque é preciso indicar –
ao contrário do pensamento hegemônico – que a prá-
tica é o momento primeiro, entendendo que a teoria
só se cria para que melhor possamos atuar na práti-
ca. É bom observar ainda que esse modo de escrever
inverte a fórmula hegemônica de usar esses termos,
quando sempre a “teoria” aparece antes do termo “prá-
tica”. Lembremos do modo como são articulados os
currículos de formação de docentes, por exemplo, nos
quais as chamadas disciplinas teóricas antecedem as
práticas curriculares, quando as pesquisas em torno
da formação nos têm indicado que as duas deveriam
andar juntas desde o começo dos cursos, entre outras
razões, a de que antes de acessar aos cursos de forma-
ção, seus estudantes estiveram em escolas, durante
muitos anos, tendo contato com centenas de práticas
discentesdocentes que estão em seus corpos, crenças
e pensamento quando procuram fazer o curso, preci-
sando, portanto, serem expostas, conhecidas, analisa-
das nos processos de formação.
Além disso, a pluralização dos termos vai, tam-
bém, além dos modos de compreender hegemônico
no qual se pensa que há uma teoria melhor, quando
nas pesquisas com os cotidianos entendemos que há,
sempre, inúmeras teorias em disputa e que se origi-
nam de práticas diferenciadas na sociedade.
A necessidade dessa junção se deu, assim, por-
que fomos percebendo que a dicotomia de termos que
tinha sido necessária à criação do pensamento cien-
tífico no início da Modernidade estava colocando li-
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práticasteorias

mites à criação de conhecimentossignificações nas


pesquisas que realizávamos. Nesses tempos obscuros
de criação científica na Modernidade, Francis Bacon
(1561-1626), filósofo inglês considerado o criador do
método experimental, para mostrar que ao ser hu-
mano era possível criar conhecimentos, foi levado a
desenvolver duas árvores do conhecimento: a do di-
vino e a do humano, estabelecendo aí a necessidade
da dicotomia. Darnton (1986) nos indica isso de modo
remarcável em um artigo já publicado em português.
Na Idade Média, era só um o criador do conhecimen-
to – Deus. Ele se pronunciava, pelo Espírito Santo, aos
ouvidos daqueles que iriam ditar a outros as normas
necessárias aos seus seguidores. Uma imagem desse
período nos mostra isso:

Papa Gregório, o Grande (Grandes Heures du duc de Berry).


Fonte: Chartier (1997, p. 32).

Para nós, que trabalhávamos com as pesquisas


nos/dos/com os cotidianos, mas que tínhamos sido
formados, ainda, sob a égide desse pensamento hege-
mônico, entendemos que precisávamos nos lembrar
e lembrar a todas e todos, o tempo todo, que as dico-
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práticasteorias

tomias foi recurso necessário a um determinado mo-


mento histórico, para fugir da fogueira das forças he-
gemônicas daquele tempo, mas que, hoje, representam
limites ao que é preciso criar em ação e pensamento.
Dessa maneira, observando e pesquisando o que
chamamos de “novos movimentos sociais” e suas pos-
síveis expressões institucionais, como nas relações
com as escolas e seus processos curriculares, no caso
das pesquisas em Educação, pudemos perceber essas
movimentações e relações entre práticas e teorias.
Cabe um exemplo: nas relações com os espaços-
tempos sociais, políticos, estéticos e éticos ocupados
pelas mulheres, as teorias acerca disso surgem após
a imensa movimentação feminina, no que hoje é cha-
mado de “primeira onda”, em manifestações nas ruas,
perante as forças políticas – oficiais, com os que exer-
ciam os poderes parlamentar, executivo ou jurídico e
com aquelas encontradas nos cotidianos, nas relações
com filhos, maridos, vizinhos, padres ou pastores e
patrões – criando outras formas de “contar” suas vi-
das que passam a “contar”1 na expressão pública. Com
essas movimentações, impulsionadas por elas, tendo
que pensar em algo que já não mais era escondido ou
invisibilizado, surge a busca científica para compre-
ender esses movimentos, organizando teorias que se
transformam em força impulsionadora dos movimen-
tos, voltando às práticas – dos movimentos sociais,
dos cotidianos, das políticas oficiais e das criações ar-
tísticas, na literatura, na música, nas artes plásticas...
Esses mesmos processos aconteceram/aconte-
cem com os movimentos dos negros, dos LGBTs, dos
povos originários, etc., que buscam as “maneiras de fa-
1
A repetição da palavra “contar” é proposital, expressando dois de
seus sentidos possíveis. O primeiro, como sinônimo de narrar. O
segundo, como sinônimo de valer.
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práticasteorias

zer” e de narrar suas vidas, que, segundo Certeau (2014,


p. 41), constituem as mil práticas pelas quais usuários
se reapropriam [...] [dos espaçostempos organizados]
pelas técnicas de produção sociocultural.
Assim, as práticas que são narradas nesses/des-
ses/com esses movimentos pelos seus/suas pratican-
tespensantes, produzem teorias que formam, também,
uma certa forma de narrar nas ciências aquilo que se
produz nesses movimentos pesquisados e que se bus-
ca compreender em seus processos e suas produções.
A esse movimento das pesquisas com os cotidianos
temos chamado, recentemente, de narrar a vida, lite-
raturizar e audiovisualizar as ciências2, ampliando ao
que tínhamos escrito em publicação, há menos de dois
anos (Andrade; Caldas; Alves, 2019, p. 31-34). Nolasco-
Silva (2018), em sua tese, desenvolve um subtítulo a
que chamou de artesanias fílmicas para narrar o[s] co-
tidiano[s], inventando-o[s], o que nos levou a essa mu-
dança mais recente da denominação desse movimen-
to. Devemos lembrar, a esse respeito, que são inúmeros
os grupos de pesquisa com os cotidianos que desen-
volvem trabalhos com imagens e sons, o que permite
notar, ainda, que tanto as narrativas das práticas como
aquelas das ciências aparecem, desde sempre, em
textos e em audiovisuais. Para nós, a partir de traba-
lhos do pensador francês Dagognet3, Machado (2001)
é o primeiro pesquisador brasileiro a nos indicar isto.
Lembremos ainda que nossa entidade maior assume
essa posição já há algum tempo, apresentando, em
2
O audiovisualizar as ciências me foi indicado por Leonardo
Nolasco-Silva a partir de seu aparecimento na dissertação de Reis
(2018).
3
No texto, Machado se refere a Dagognet citando livros como Philo-
sophie de 1’image (1986) e Écriture eticonographie (1973), mas não
acrescenta as referências completas no livro.
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práticasteorias

2019, na Reunião Nacional, em Niterói: a “III Mostra


curtas - ANPEd”; a “X mostra de videodocumentário
Trabalho e Educação”; a “I Mostra de vídeos voltados à
formação de professoras/es de crianças de 0 a 6 anos,
em creches e pré-escolas”.
Considerando que todos esses movimentos, em
múltiplas e complexas relações, formam redes educa-
tivas, entendemos que para compreender os processos
de articulação práticasteorias, precisamos enunciá-
-las e com elas trabalhar. No presente, elas têm sido
assim trabalhadas e pensadas: das práticasteorias da
formação acadêmico-escolar; das práticasteorias pe-
dagógicas cotidianas; das práticasteorias de criação e
“uso” das artes; das práticasteorias das políticas de go-
verno; das práticasteorias coletivas dos movimentos
sociais; das práticasteorias das pesquisas em educa-
ção; das práticasteorias de produção e “usos” de mí-
dias; das práticasteorias de vivências nas cidades, no
campo e à beira das estradas (Alves, 2019, p. 115).
Precisamos indicar, inicialmente, que essas re-
des são espaçostempos de reprodução, transmissão
e criação de práticasteorias que se articulam, perma-
nentemente, mas sempre de modos diferentes que de-
pendem da ocasião e do lugar em que acontecem, dos
praticantespensantes que nelas desenvolvem ações
e do acaso, também. A participação nessas redes nos
marca pela intensidade e diversidade das relações
que mantemos com muitos outros seres humanos e
artefatos culturais que nelas estão presentes e atuam.
Destacamos, ainda, que essas redes são, assim, enten-
didas como de práticasteorias, pois nelas são criadas
as práticas necessárias e possíveis ao viver cotidiano,
em cada situação vivida e em cada acontecimento de
que participamos. Mas estão relacionadas, também, à
criação de formas de pensamento a que podemos cha-
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práticasteorias

mar “teorias”. Essas redes mantêm entre si, não pode-


mos esquecer, múltiplas relações que se desenvolvem
complexa e diversamente, dependendo do momento e
da situação, atuando sobre nós e conosco, o que nos
permite afirmar que nos formam.
Mas o que cabe destacar aqui é que as vivências
nelas – em todas elas – e as relações dos/das pratican-
tespensantes nelas, com elas e entre elas, são sempre
fabuladas e narradas. Ou seja, partimos da ideia que
para trabalhar com elas, nas pesquisas que realizamos,
não é necessário achar “as verdadeiras narrativas”
ou as “verdades nelas contidas”. Sabemos que serão
sempre fabulações o que nos surge em narrativas dos/
das praticantespensantes ao dizerem das relações que
nelas estabelecem com outros/outras praticantespen-
santes, nas ações que realizam. Essas fabulações, no
entanto, com Deleuze (1998) – todo atual rodeia-se de
círculos sempre renovados de virtualidades, cada um
deles emitindo um outro, e todos rodeando e reagindo
sobre o atual (p. 121) – se não a podemos considerar
“realidades”, podemos considerá-las como “virtuali-
dades”, com a potência que têm de criarem possibili-
dades nas práticasteorias cotidianas.

Referências
ALVES, N. Práticas pedagógicas em imagens e narrativas
– memórias de processos didáticos e curriculares para pen-
sar as escolas hoje. São Paulo: Cortez, 2019.
ANDRADE, N.; CALDAS, A. N.; ALVES, N. Os movimentos
necessários às pesquisas com os cotidianos – após muitas
‘conversas’ acerca deles. In: OLIVEIRA, I. B. de; PEIXOTO, L.;
SUSSEKIND, M. L. (orgs.). Estudos do cotidiano, currículo e
formação docente: questões metodológicas, políticas e epis-
temológicas. Curitiba: CRV, 2019.
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práticasteorias

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano – artes de fazer.


Petrópolis: Vozes, 2014.
CHARTIER, R. Le livre en révolutions. Paris: Textuel, 1997.
DARNTON, R. Os filósofos podam a árvore do conhecimento:
a estratégia epistemológica da ‘Encyclopédie’. In: DARNTON,
R. O grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
DELEUZE, G. O real e o virtual. In: DELEUZE, G. D.; PARNET,
C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
MACHADO, A. O quarto iconoclasmo e outros estudos here-
ges. Rio de Janeiro: Rios ambiciosos, 2001.
NOLASCO-SILVA, L. ‘Os olhos tristes da fita rodando no gra-
vador’: as tecnologias educacionais como artesanias ‘do-
centesdiscentes’. 2018. Tese (Doutorado em Educação) –
ProPEd, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2018.
REIS, V. L. A produção de narrativas audiovisuais sobre e
contra a homofobia em processos de formação e autofor-
mação para a docência. 2018. Dissertação (Mestrado em
Educação) – ProPEd, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

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ayvu

Ss

singularsocial
graça reisxlix

xlix
Doutora e Mestre em Edu- biográfica. É líder do grupo de
cação pelo ProPEd/UERJ. Gra- pesquisa Conversas entre pro-
duada em Pedagogia pela Uni- fessorXs: alteridades e singu-
versidade do Estado do Rio de laridades (ConPAS/CAp/UFRJ)
Janeiro (UERJ). É professora É coordenadora do Projeto de
do Colégio de Aplicação (CAp) e pesquisa e extensão Os mate-
do Programa de Pós Graduação riais narrativos e a produção
em Educação (PPGE) da Uni- curricular: desafios e possibili-
versidade Federal do Rio de Ja- dades. Membro do GT de Edu-
neiro. Tem experiência na área cação Fundamental da ANPED,
de Educação, atuando princi- e da ABdC/Associação Brasilei-
palmente nos seguintes temas: ra de Currículo.
currículo, cotidiano escolar, E-mail:
pesquisa narrativa, formação francodasilvareis@gmail.com
de professores e pesquisa (auto)
– sumário –

Sou bacharel em dança e licenciada em Educação


Física. Atuo como professora da Educação Infantil, no
município de Niterói (FME), e com o Ensino Médio, no
município de Maricá (SEEDUC). No percurso da mi-
nha trajetória profissional, muitas histórias povoam
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singularsocial

minha memória, umas positivas e inspiradoras, ou-


tras, desafiadoras e promotoras de mudança. Percebi
desde cedo que estar na posição de professora deno-
tava extrema responsabilidade e que nada seria “tran-
quilo”, porém, as sutilezas da profissão deixaram ver
que é na relação com o outro que os afetos se constro-
em e nos enchem de renovação.

Escolhi escrever este texto conversando com o


memorial da professora Cecília Silvano Batalha (2019)1.
Esse memorial, assim como tantos outros que tenho
tido a oportunidade de ler a partir da escolha políti-
ca-teórica-metodológica de trabalhar com as narrati-
vas de histórias de vida, me convoca a pensar que é
importante a (re)valorização da experiência dos sujei-
tos como ruptura com uma forma de pesquisar que é
a única hegemonicamente reconhecida como ciência.
De acordo com Santos (2006), esses saberes [narrati-
vos] não reconhecidos pela ciência moderna são tor-
nados senso comum e, com isso, desqualificados em
todas as suas possibilidades.
É com esses saberes não reconhecidos que esco-
lho trabalhar e, para isso, vou ao encontro de Bourdieu
(2005, p. 74), que me ensina que os estudos envolvendo
histórias de vida foram uma dessas noções do senso
comum que entraram de contrabando no universo da
ciência. Entraram de contrabando porque a ciência,
como tratada na modernidade e ainda hegemônica,
não admite que as histórias dos sujeitos sejam perce-
bidas e discutidas em suas singularidades. Esses con-
trabandos trazem à tona a importância de pensar a
existência de outras formas de produzir conhecimen-
to saindo da matriz hegemônica moderna.
1
Cecilia foi minha aluna numa disciplina na pós-graduação da
UFRJ, onde é doutoranda, em 2018. Esse memorial está publicado
no livro Narrativas da/na escola (2019).
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singularsocial

As narrativas de história de vida dizem res-


peito às memórias, o que nos revela pedaços da vida
encadeados pelos sentidos do momento em que estão
sendo narrados. Alberti (2004) chama de fascínio do
vivido a esse privilégio da recuperação do vivido con-
forme concebido por quem viveu (p. 26). Esse fascínio
está nas singularidades que as histórias de vida apre-
sentam, pois o ato e a arte de lembrar jamais deixam
de ser profundamente pessoais (Portelli, 1997, p. 16).
Ou seja, um mesmo acontecimento suscita em cada
um/a diferentes memórias, porque as memórias são
como as digitais, não existem duas iguais (p. 16).
No entanto, é importante considerar também que
a memória, para além de sua singularidade, é constitu-
ída no social, elaborada a partir das redes de vivências
e contextos em que os sujeitos vivem e convivem. Não
podemos, portanto, dizer que as memórias são apenas
singulares, mas sim singularessociais, ou seja, se te-
cem socialmente no encontro com as subjetividades
constitutivas das redes de sujeitos em que a experiên-
cia social está presente.
Essas redes singularessociais tecidas pelos su-
jeitos chegam às vezes a se rasgar e talvez essa rede
rasgada seja uma visão mais aproximada da imprevi-
sibilidade da vida (Portelli, 1997). Ao pensar nessa me-
táfora, retorno à narrativa da professora Cecília, que
abre este texto, pois essas outras memórias, “desafia-
doras e promotoras de mudança”, são parte do tecido
que se rasga. Ou seja, as expectativas (singulares) se
deparam com as diversas realidades (sociais), criando
um rasgo naquilo que se imagina, a priori, encontrar.
Cecília continua:
Nesse grande emaranhado que é a memória, de-
cidi puxar o fio da inserção. Lembrei-me de um fato
ocorrido no meu processo de inserção profissional,
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singularsocial

com uma turma de sexto ano do ensino fundamental,


na modalidade EJA (antiga nomenclatura utilizada
pela Secretaria Estadual de Educação para referir-se à
Educação de Jovens e Adultos). Em 2010, fui convoca-
da para lecionar na SEEDUC, na disciplina Educação
Física. Fiquei alocada em uma escola, no Município
de Maricá, no turno noturno, para trabalhar com a
modalidade EJA. As turmas eram heterogêneas, com-
postas, em sua maioria, por alunos com faixa etária
entre 17 e 21 anos. Apenas uma pequena parcela das
turmas era composta por alunos acima dos 30 anos.
Quando comecei a dar aulas para essas turmas, en-
contrei resistência por parte dos alunos, pois eles
compreendiam que a aula de Educação Física tinha
como finalidade jogar bola, e quando eu buscava fazer
outras propostas, indispunha-me com eles. Lembro-
me bem que saía das aulas extremamente desgastada
e ficava me perguntando como poderia mudar aquele
quadro. Não sabia como, porém tinha certeza de que
não queria aquilo, sentia que podia ir além. Lembrava-
me de tudo que havia aprendido em minha formação
inicial e tentava encontrar meios para promover mu-
danças. Neste sentido, busquei inicialmente modifi-
car a forma como estava conduzindo minhas aulas.
A primeira mudança foi entender que a atitude dos
alunos não tinha nenhuma relação pessoal comigo,
compreendi que extrapolava a relação com o sujeito,
no caso “a professora Cecília”. Na verdade, a atitude
dos alunos deixava ver uma compreensão equivocada
da escola e da disciplina Educação Física. A segunda
mudança ocorreu na minha postura: em vez de im-
por, passei a conversar com quem quisesse me ouvir
e a buscar o diálogo e a negociação. Nesse período,
meu grande parceiro foi Paulo Freire; eu lembrava do
aprendizado enquanto licencianda, que de alguma
maneira me reconfortava e me fazia refletir. Sabia que
era uma questão de tempo e que tudo iria melhorar.
Foi então que passei a negociar com as turmas, conse-
gui convencê-los de que a disciplina poderia oferecer
conhecimentos para além do simples jogar bola.

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singularsocial

A narrativa da sua história de vida está carrega-


da de reflexões sobre a sua formação que se dá tam-
bém por meio de suas vivências cotidianas na escola.
Essas reflexões e vivências nos indicam que ela (re)
pensa seus percursos mudando seus trajetos. Com
isso, Cecília nos indica que a formação é contínua, co-
tidiana e singularsocial. Ou seja, as aprendizagens que
nos formam acontecem a todo tempo, cotidianamente,
contextualizadas ao que já temos em nós em diálogo
com o que os outros nos apresentam.
Temos nomeado como autoformação essa expe-
riência que transforma. Uma formação que é singular,
mas sempre imbricada nos contextos sociais e nas re-
lações que emergem no cotidiano.
A pesquisa com histórias de vida compreendida
como processo singularsocial me parece carregada
de possibilidades emancipatórias. Tenho aprendido
que ao olharmos para nós mesmas/os e compreender-
mos que nossas aprendizagens estão relacionadas às
nossas redes tecidas na experiência pessoal e coleti-
va, podemos nos abrir à possibilidade de perceber o
quanto as histórias dos outros são também tecidas por
meio dos seus vividos, possibilitando um conviver na
diferença sem hierarquização.

Cecília segue:

Em uma das turmas havia um aluno bastante pecu-


liar, era um senhor com mais de sessenta anos, ele tra-
balhava na praça central da cidade, e seu ofício era fazer
fotografias em uma máquina lambe-lambe. As máquinas
lambe-lambe são muito antigas, nelas é possível fotogra-
far e fazer a revelação na hora, em um processo bastante
artesanal. Esse aluno, embora não tivesse passado pela
escolarização, detinha extrema sensibilidade, condição
sine qua non para seu ofício. Certo dia, quando trabalha-

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singularsocial

va com a turma o conteúdo “jogos populares” e fazia uma


relação entre os jogos, a história da humanidade e o as-
pecto da cultura popular, este aluno olhou para mim e
disse:
— Professora!! Se eu soubesse que estar na escola era
tão bom, eu teria vindo antes!
Naquele momento, meus olhos se encheram de lágri-
mas, mas disfarcei para que ninguém percebesse. Saí da
escola cheia de alegria, com o coração renovado de es-
perança! Foi naquele momento que tive a certeza de que
a docência era o meu lugar. Aquela fala tão simples quis
dizer muitas coisas, quis dizer, inclusive, que para apren-
der deve haver motivação. De alguma maneira, consegui
despertar naquele senhor o interesse pela escola. Ela,
agora, tornava-se sua imensa paisagem, pronta para ser
apreendida em suas infinitas possibilidades.

Cecília abre espaço para que os leitores adentrem


em sua vida narrando sobre os processos que a fize-
ram perceber que de fato queria seguir na docência.
A narrativa de sua relação com aquele estudante que,
com mais de 60 anos, descobre a escola, transborda
nela sua sensibilidade, evocando uma aprendizagem
sobre o seu processo de formar-se professora.
Aprendizagens como essas descritas por Cecília
desempenham, de forma essencial, um papel na ma-
neira como muitas professoras se colocam frente aos
espaçostempos de aprendizagem e de “ensinagem” e
estas, ao escreverem/narrarem as suas histórias, po-
dem tomar consciência da forma como têm vivido
esses processos em suas vidas. Essa experiência, que
é individual e que está tecida em um movimento co-
letivo/social, ou seja, que acontece na relação com o
outro e consigo mesma/o, proporciona vivências de
autoconhecimento.
Segundo Josso (2002), o que está em jogo nes-
te processo de autoconhecimento não é apenas uma

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singularsocial

compreensão de como se dá a formação dos sujeitos


pelo conjunto de experiências de seus relatos e narra-
tivas, mas sim uma tomada de consciência do seu re-
conhecimento como sujeito, o que pode ajudá-lo a, daí
em diante, (re)ver os seus objetivos, seu investimento
na profissão, por meio de uma auto-organização. Dessa
forma, ainda, é possível (re)articular suas redes, per-
cebendo nesse processo de autoconhecimento de que
forma os seus grupos de convívio têm afetado sua for-
mação. Ao olharmos para as nossas heranças e nossas
expectativas, de forma a avaliar o quanto investimos
no passado e temos investido no presente para a cons-
trução de um futuro possível, transformamos a vida
socioculturalmente programada numa obra inédita a
construir, guiada por um aumento de lucidez (Josso,
2002, p. 58-59).
O processo de olhar para si apresenta-se, assim,
como um projeto a ser tecido no decorrer da vida, teci-
do por meio da ideia de que a formação é um processo
contínuo e passa pelo conhecimento daquilo que so-
mos, pensamos, fazemos, valorizamos e desejamos na
nossa relação conosco, com os outros e com o ambien-
te (Josso, 2002, p. 59). É importante nesse processo de
autoconhecimento a compreensão do quanto nossa
formação acontece de forma singularsocial.

Cecília finaliza:

A escola será sempre um lugar de disputa, dispu-


ta por concepções de ensino, por conhecimentos que
devem ser ensinados, por ideal de sociedade que que-
remos construir, enfim, um lugar de tensão. E é justa-
mente essa tensão que nos move e nos faz criar pos-
sibilidades outras, de educação, de ensino, de escola
e de sociedade. Com os meus alunos, tenho aprendi-
do e buscado ser uma professora melhor a cada dia.

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singularsocial

Compreendo que o desenvolvimento profissional se


dá ao longo da vida, neste sentido, meu eu profes-
sora nunca estará pronto e formatado. Sendo assim,
nesse grande emaranhado que é a docência, a cada
dia teço um novo fio que me desafia, mas também me
constitui.

Em seu memorial, Cecília faz um exercício de


olhar para si que é muito importante. Talvez, em outro
momento, essa narrativa seja outra, tomada por outros
fios que ela escolher tecer, porque a narrativa é uma
matéria movente, transitória, viva (Delory-Momberger,
2008) e que se refaz a cada vez que é escrita/contada.
Essa narrativa se constitui sempre num espaço e num
tempo de enunciação, ou seja, está longe de ser resul-
tado de um passado objetivo e imobilizado, a narrativa
de vida nunca é de uma vez por todas; ela se reconstrói
a cada uma de suas enunciações e reconstrói com ela
o sentido da história que enuncia (Delory-Momberger,
2008, p. 96).
A narrativa das histórias de vida reúne, organiza,
tematiza os acontecimentos da existência, dá sentido
a um vivido multiforme, heterogêneo, polissêmico. É
a narrativa que dá uma história à nossa vida: nós não
fazemos a narrativa de nossa vida porque temos uma
história; temos uma história porque fazemos a narra-
tiva de nossa vida (Delory-Momberger, 2008, p. 97). E
essa história se faz sempre na relação singularsocial.

Referências
ALBERTI, V. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de
Janeiro: Ed. FGV, 2004.
BATALHA, C. S. Professora!! A escola como uma imensa pai-
sagem. In: REIS, G.; CAMPOS, M; FLORES, R; ALENCASTRE,
S; LONTRA, V. (orgs.). Narrativas: Histórias da/na escola vo-
lume 2. Rio de Janeiro: Nova Aliança, 2017.

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singularsocial

BOURDIEU, P. Razões práticas – sobre a teoria da ação.


Campinas: Papirus Editora, 2005.
DELORY-MOMBERGER, C. Biografia e educação: figuras do
indivíduo-projeto. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008.
JOSSO, M. Experiências de vida e formação. Lisboa: Educa,
2002.
PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho - algumas
reflexões sobre a ética na História Oral. In: ANTONACCI, M.
A.; PERELMUTER, D. (orgs.). Projeto História - ética e histó-
ria oral. São Paulo: PUC-SP, 1997.
SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. 4ª ed. São
Paulo: Cortez, 2006.

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ayvu

Tt

a testemunha, o testemunho
gabriel jaime murillo-arangol

l
Doutor em Estudos Históri- fessor do Programa Específico
cos em Educação, Didática e de Formação em Investigação
Pedagogia/ Universidade de Narrativa e (Auto)Biográfica/
Antióquia, Colômbia. Profes- Doutorado em Educação/ Uni-
sor da Faculdade de Educação versidade Nacional de Rosário
da Universidade de Antioquia. (UNR), Argentina.’
Integrante do Grupo de Investi- E-mail:
gação em Formação, Antropolo- gabriel.murillo@udea.edu.co
gia e Pedagogia Histórica. Pro-

O uso corrente na vida social de nossos dias da


palavra testemunha e, com ela, de testemunho,
é por vezes reduzido a significados mais res-
tritos, seja como tecnicismos da linguagem em
– sumário –

Juízo, ou registrados em um processo de coleta,


armazenamento ou organização do arquivo.
Desse modo, não apenas seu caráter polissêmico
e sua multiforme função no regime narrativo
são ofuscados, mas também a longa história de

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a testemunha, o testemunho

suspeitas que ela deixou no itinerário discursivo


que vai do enunciado oral na fonte à sua concre-
tização, um repositório de materiais escritos que
constitui o arquivo, que é por definição início,
domicílio, lei (arkhé).

Na Grécia Antiga, a palavra da testemunha era


a portadora da verdade, dado o elo entre ver e saber,
segundo o qual a primazia era concedida a ver em
vez de ouvir, na tentativa de reconstruir factualmen-
te eventos passados; as orelhas têm menos credibili-
dade que os olhos, diz um personagem de Heródoto.
Nas línguas indo-europeias, há uma raiz comum para
ver e saber – wid, da qual a raiz histor é derivada –:
testemunhar na medida em que sabe, mas, acima de
tudo, o que viu. No final da Idade Média, o surgimento
das línguas românicas do século XIII mantém a deri-
vação comum da voz antiga “testemunhar”, que vem
do latim testificare, uma palavra composta de testis
(testemunha) e fâcere (fazer), associado com testimo-
nium, testemunhar (Coromines, 2017, p. 537). O depoi-
mento pressupõe, portanto, um processo epistemoló-
gico desde sua origem na declaração em viva-voz da
memória, destinado a oferecer evidências de que o que
foi narrado de fato aconteceu. No entanto, sob a hege-
monia do Cristianismo neste momento, há uma muta-
ção progressiva do estatuto da testemunha que passa
a ser vista mais no papel do fiador (auctor, em latim)
que faz uso de uma autoridade endossada na regra da
autenticação.
Ainda no século XIX, a História entendida como a
ciência da transmissão escrita aparece como a guardiã
da autenticidade do documento erguido como monu-
mento (para colocá-lo nos termos do famoso apotegma
de Foucault). Estritamente falando, sob o positivismo
dominante do início dos tempos modernos,
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a testemunha, o testemunho

o historiador ausente nada mais é do que um olho


leitor dos arquivos. Testemunhas são demitidas; o
aductor se foi, mas o compilador também será de-
safiado: os eventos falam; o historiador, conforme
preconizado por Bouvard e Pécuchet, deve (ideal-
mente) não ser mais do que um scriptor, podería-
mos dizer um copista. (Hartog, 2001, p. 23).

Em meados do século XX, o valor crescente dado


aos testemunhos orais e, mais amplamente, aos do-
cumentos pessoais na pesquisa social e educacional,
deveu-se muito à reconstrução da memória histórica
da Shoah (em hebraico, destruição), cujo boom tor-
nou possível caracterizar uma “era da testemunha”
ou “era do testemunho”, segundo o nome de Annette
Wieviorka. A chamada literatura testemunhal na
Europa do pós-guerra gira em torno do dispositivo da
biopolítica do poder instalado pelo nazismo e seu pro-
longamento em muitas das sociedades reconstruídas
após 1945, por meio do qual o estado de exceção que
ultrapassa os limites entre a vida nua e a vida política.
Nesse espaço atravessado por tensões entre o falável
e o indizível, o plausível e o inimaginável, decorrem
tantas obras diversas como as de Primo Levi, Jorge
Semprún, Imre Kertéz ou George Sebald, só para citar
alguns nomes. Apesar das diferenças necessárias en-
tre elas, algumas propensas ao imediatismo e outras à
retrospecção, aquelas ao realismo do horror ou estas
à história de ficção, são narrativas testemunhais que
têm em comum uma reflexão sobre a tragédia con-
temporânea que levanta a questão de que já aconteceu
uma vez, nada impede que aconteça novamente.
A explosão da memória, desencadeada com
maior força a partir dos anos oitenta do século passa-
do, evidencia a figura da testemunha juntamente com
a reivindicação da memória das vítimas, o uso da his-
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a testemunha, o testemunho

tória oral e o valor do testemunho que transcende a


pretensão de validade meramente como prova de evi-
dência. O jogo de tensões que envolve o papel de tes-
temunha hoje é um exemplo dos sinais vitais de uma
tendência cultural que oscila fortemente entre os usos
e abusos da memória, ou, ainda mais, entre a memó-
ria e o esquecimento. Entre os dois polos, podem ger-
minar, à medida que desaparecem, várias formas de
banalidade ou censura social que concedem visto de
trânsito ao domínio da impunidade e da anomia.
Não obstante, a mudança do estado de silêncio
da história oral na fonte para o ressurgimento da tes-
temunha no presente, a quem “a história profissional
estende de bom grado o microfone sob a única condi-
ção de inscrevê-lo no regime de fontes”, não implica,
de modo algum, a dissipação das suspeitas que esta
relação instável carregou ao longo do tempo:

A testemunha de nossos dias é uma vítima, ou


descendente de uma vítima. Essa situação de víti-
ma funda sua autoridade e alimenta uma espécie
de terror reverencial que às vezes o envolve. Daí o
risco de se confundir autenticidade e verdade, ou
pior ainda, de uma identificação da segunda com a
primeira, enquanto a separação entre veracidade e
fiabilidade, por um lado, e verdade e prova, por ou-
tro, devem ser mantidas. (Hartog, 2001, p. 25).

Na teoria hermenêutica de Ricoeur, o retorno


da testemunha na historiografia contemporânea se
baseia nas três condições de disponibilidade da tes-
temunha: a confiabilidade, como resultado compro-
vado dos acontecimentos presenciados, condensada
na expressão “Eu estava lá”; credibilidade, que desafia
o outro com uma voz que exige “Acredite em mim”; a
convicção da palavra falada que exorta: Se não acre-

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a testemunha, o testemunho

dita em mim, pergunte a outro (Ricoeur, 2004, p. 211-


214). Nessas condições, é produzida a estabilidade do
testemunho, na garantia do vínculo social na medi-
da em que se apoia na confiança na palavra do outro,
fomentando um espaço público aberto aos conflitos e
aos modos de resolução correspondentes. O valor da
confiança assim entendida configura “uma compe-
tência do homem capaz”, alheio ao uso habitual dos
conselhos, dos boatos maliciosos, da perfídia, que são
tantas outras formas de expressão da memória mani-
pulada. O valor da palavra está enraizado na própria
existência de comunidade, no sensus comuniis:

O crédito dado à palavra do outro torna o mundo


social um mundo intersubjetivamente comparti-
lhado. Esse compartilhamento é o principal com-
ponente do que pode ser chamado de “bom senso”.
Isso é severamente afetado quando instituições
políticas corruptas estabelecem um clima de vigi-
lância, de delação, em que as práticas de engano
minam a confiança na linguagem em sua base [...]
A confiança na palavra do outro reforça não só a
interdependência, mas também a semelhança na
humanidade dos membros da comunidade. A tro-
ca de confianças especifica o vínculo entre seres
semelhantes. (Ricoeur, 2004, p. 214).

Podemos pensar na obra de Svetlana Alexievich,


ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015,
como um sinal dos tempos em que o reconhecimento
internacional se distingue pela escuta atenta dos de-
poimentos das vítimas de guerras, desastres naturais,
abusos de poder, despejados um gênero híbrido de jor-
nalismo, história oral e literatura. Para colocá-lo em
suas palavras: Os documentos com que trabalho são
testemunhos vivos, eles não se solidificam como a ar-
gila quando seca. Eles não são mudos. Eles se movem
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a testemunha, o testemunho

ao nosso lado (Alexievich, 2015, p. 27). E sua própria


trajetória biográfica é também um testemunho vivo de
denúncia e resistência.

Referências
ALEXIÉVICH, S. La guerra no tiene nombre de mujer. Bogotá́ :
Penguin Random House, 2015.
COROMINES, J. Breve diccionario etimológico. Barcelona:
Gredos, 2017.
HARTOG, F. El testigo y el historiador. Estudios Sociales, v.
21, n. 1, 2001.
RICOEUR, P. La memoria, la historia, el olvido. Buenos Aires:
Fondo de Cultura Económica, 2004.

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ayvu

tempo e narrativa
francisco ramalloli

li
Professor Adjunto do Departa- cional de Pesquisas Científicas
mento de Ciências da Educação e Técnicas (CONICET).
da Faculdade de Letras da Uni- E-mail:
versidade Nacional de Mar del franarg@hotmail.com
Plata, diretor do Grupo de Ex-
tensão Pedagorgia e bolsista de Instagram:
pós-doutorado do Conselho Na- @franciscoramallo

As palavras dão uma versão científica da


realidade na qual somos considerados como
invariantes, não afetados pela história, com um
psiquismo idêntico para cada um que é
geneticamente programado.
– Wittig.

A narrativa como forma de saber, ser e saber que


emerge da ideia clássica de ciência, desnaturaliza o
tempo linear, universal e eurocêntrico, pois reconhece
as afetações por parte do pesquisador. Embora sempre
parcial, contraditório e confuso, desaprender o modelo
científico vigente é uma tarefa na contramão da épo-
ca que caracterizou o relato da História (com maiús-
– sumário –

cula). Essa temporalidade intelectualizada na e pela


mediação moderna, a racionalidade evolucionária e
a retórica salvacionista do humanismo. Combinando
pesquisa narrativa, autobiografia e performatividade,
pedagogia e teoria educacional, teoria cuir e descolo-
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tempo e narrativa

nial, os estudos da memória e da história com a educa-


ção nos convidam a justapor o próprio, o contracorreto,
o utópico do que o tempo poderia ser. Vincular a nar-
rativa ao tempo se arrisca a transmutar as palavras a
que se refere a citação inicial da autora do pensamen-
to heterossexual, como um exercício que contém o iso-
lamento erótico do tempo em sua própria contribuição
a esse primeiro contrato social.
Embora ocupem um lugar importante, as leitu-
ras das histórias locais, das diferenças (coloniais) e
dos modos como o registro do tempo é pensado, o ho-
rizonte da potencialidade da e com a temporalidade
incorpora uma forma de conhecer a narrativa que rea-
liza o conhecimento. Carlo Guinzburg, Hayden White,
Enrique Dussel, Walter Mignolo, Eduardo Mendieta,
Silvia Rivera Cusicanqui, Chimamanda Adichie,
Dipesh Chakrabarty, Boaventura de Souza Santos são
referências contundentes para esta intenção. Porém, a
obra de José Estaban Muñoz (2019) é para mim uma ex-
periência de descaracterização – ou separação, como
preferi chamá-la – com a leitura direta da condição
temporal (Britzam, 2016). (Re)imaginar os sinais tóxi-
cos de normalidade a partir de uma prática artística
é uma tarefa que o reconhecido pensador cubano não
só me ajudou a abraçar conceitualmente, mas também
na minha produção na arte da instalação.
Diante do erotizante diagnóstico do perigo da
imaginação, a instabilidade – ou ambiguidade – de
um lugar ou momento em que o passado, o presente
e o futuro podem se situar, atua como fluxo narrativo
decomposto e como desorganização do tempo linear.
A desordem do tempo exato do realismo, que amar-
ra o presente como espaço e como tempo, registra a
presença do futuro nas marcas do passado. A este res-
peito, José Estaban Muñoz (2020) afirmou que o queer
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tempo e narrativa

– para mim, cuir – ainda não chegou porque é uma


idealidade ou um horizonte de potencialidade, não
somos cuir e nunca seremos cuir! O trabalho com a
pesquisa narrativa e sua irmandade com as artes per-
mite armazenar vestígios de utopias concretas não re-
alizadas, que podem ser utilizadas para imaginar um
futuro não normativo e ainda não pensável. Já que o
tempo não existe como um bloco fechado, mas pelo
contrário, nos desafia como uma constelação de mar-
cas concretas. Marcas de futuros localizados e ocul-
tos, que oferecem uma transcendência do aqui e agora
para habitar um então e um ali (Muñoz, 2020, p. 182).
Um passado ainda não pensável, possível ou legível,
que faz com que o continuum da história salte para
um futuro antinormativo e desidentificado. Em outras
palavras, narrar o tempo é afetar a si mesmo e fazer
justiça no mundo, um esforço de nos nomear acima
das feridas da objetivação da normalidade e da ana-
crônica, colonial e universal realidade.
A partir do estudo do tempo, como docente, pes-
quisador e extensionista, proponho-me não ser peda-
gogo, mas ser pedagogia. E a partir dessa noção não se
tornar, esquecer e fracassar – como inspirado em Jack
Halberstam (2011) –, provoca uma ruptura do sujeito
soberano que transmuta fluxos nostálgicos, abstratos
e pessimistas na enunciação da potência erótica de
nossas temporalidades. Se de um lado a outro nos con-
tagiamos para repensar no tempo, a narrativa como
prática de (auto)reflexão temporária aspira a ativar o
poder de nomear ou (auto)apropriar-se da/s história/s,
própria/s ou alheia/s, que narramos.
Se o tempo nos fixa no imediatismo e na fluidez
das paisagens sociais em que estamos inscritos, seu
desafio é compartilhar o reconhecimento das possibi-
lidades utópicas que nele se escondem entre a onto-
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tempo e narrativa

logia e a representação; entre otredade e nostredade,


entre dados e experiência e entre técnica e erotismo.
Como transmutações que pressagiam um deslo-
camento no estudo do passado, cujo maior jogo é entre
o realismo e a decomposição, o temporal contamina
significativamente a investigação. Do texto ao próprio
corpo, os traços afetivos, corporais e geoculturais de
nossas localizações e contextos tornam-se um re-
gistro sensorial, artístico e afetivo na escrita cientí-
fico-acadêmica que, com os prazeres da carne, trans-
mutam os processos históricos. Entre a ontologia e a
performatividade, as formas de representar o tempo
estão em trânsito e, mesmo quando ocasionalmente
alcançam relativa estabilidade, sua ética assíncrona
é procedimental. Toco meu corpo para me tornar um
tecelão de sua constelação e além do que o tempo é,
estou interessado em recuperar a sua ação. Com esta
primeira denominação, então, pergunto não apenas o
que fazemos com o tempo? mas, também, o que o tem-
po faz conosco?
Diante do fracasso do mundo colonizado, assu-
mir a nostredade implica desaprender a matriz nor-
malizada das histórias (Wayar, 2018), pondo em ten-
são a linearidade temporal e o especismo do humanx
autônomo, fronteira da interdependência e da simul-
taneidade. Como forma de representação da realidade
cognitiva que pressupõe a capacidade de afetar – ou
erotizar – pelo pesquisador e sua imediatez, a narrati-
va no tempo possibilita transmutações entre os dados
e a experiência do tempo.
Dando continuidade à longa tradição da litera-
tura educacional canônica que prioriza as maneiras
pelas quais as pessoas compõem o (auto)conheci-
mento de suas experiências em detrimento da própria
experiência (Clandinin; Connelly, 1995), podemos
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tempo e narrativa

aprofundar narrativamente o tempo, mantendo uma


questão pedagógica juntamente com seu pensamento
narrativo: não se trata de indagar sobre as histórias,
mas de indagar com as histórias. Habitar uma leitu-
ra ressonante que conecta as experiências próprias
e alheias para compartilhar a mobilização que um
texto provoca.
Entre a técnica e o erótico, enfim, o tempo desig-
na a capacidade de nos afetar e o lugar que isso pre-
enche na decomposição do saber. A teoria como justi-
ça erótica nos faz passar de objeto a sujeito de prazer
temporário, em uma restauração do valor sexual, cor-
poral e afetivo. Como um caleidoscópio, no qual a ideia
de tempo atua como uma obra a ser empreendida, este
não é um espaço fechado, mas é acompanhado pela
cristalização e pelo disfarce do que entendemos por
futuro, presente e passado.
Narrar o tempo é tornar familiar algo que de
fato não é familiar, é desnaturar um processo epis-
temológico de sedução e simplificar o desconhecido.
Esses trânsitos ou transmutações reconhecem que o
tempo é um tipo de narrativa, uma história que não
começa onde realmente começa, mas que tal origem
não existe, pois o tempo é existência em um ambien-
te de possibilidade. Como disciplina obsessiva, a his-
tória desencarna o amor pela vida na instalação da
jornada divina, por isso, encontro uma possibilidade
na narrativa. A questão é anterior, reverte a equa-
ção e cai no enunciado. Por um lado, as histórias são
interpretadas, os relatores são passivos e os futuros são
nostálgicos. Por outro lado, a erótica ameaça à herme-
nêutica, (contra)interpreta o tempo para, a partir dele,
tocar mais, cheirar mais, sentir mais... Os narradores
são ativos e a realidade é a composição de quem a no-
meia (Ramallo, 2018). Em suma, a relação entre narra-
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tempo e narrativa

tiva e tempo transborda pelo realismo epistêmico da


investigação, nos faz vivenciar a capacidade de mudar
o início e recontar o fim.

Referências
BRITZMAN, D. ¿Hay una pedagogía queer? O, no leas tan
recto. Revista de Educación, n. 9, 2016.
CLANDININ, J.; CONNELLY, M. Relatos de experiencia e
investigación narrativa. In: LARROSA, J. et. al (comps.).
Déjame que te cuente. Barcelona: Laertes, 1995.
HALBERSTAM, J. El arte queer del fracaso. Madri/ Barcelona:
Egales, 2011.
MUÑOZ, J. E. Utopía queer: El entonces y allí de la futuridad
antinormativa. Buenos Aires: Caja Negra, 2020.
RAMALLO, F. ¿Qué pasado narrar en la educación? Gestos
descoloniales en la historia del bachillerato argentino.
Revista Palobra, n. 18, 2018.
WAYAR, M. Travesti: una teoría lo suficientemente buena.
Buenos Aires: Muchas Nueces, 2018.
WITTIG, M. El pensamiento heterosexual y otros ensayos.
Madri/ Barcelona: Egales, 2006.

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