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FONSEIL INFESRNATIQNAL DES MUSEES vi 1) Ê
CONSEJO INTERNACIONAL DEMUSEOS Co
Comitê Rrasilei .

“VEM. - BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA

DO
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NÃO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA

Waldisa Rússio Camargo Guarnieri


textos e contextos de uma trajetória profissional

no A Evidência dos Contextos Museológicos

Maria Cristina Oliveira Brun


Coordenação Editorial

- Marcelo Mattos Araújo o


“Mariá Inês LopesCoutinho o
Colaboradores,

Aesop PAULO
GOVERNO DO ESTADO
.
PINACOTECA
- do Ettado do São Paulo, .

ota de CH
Referências bibliográficas 2.12 Conceito de Cultura e sua inter-relação com o
BOURDIEU, Pierre, Os doxósofos. In: THIOLLENT, Michel. Critica metodológica, investigação social e
patrimônio cultural e a preservação !
enquete operária. São Paulo; Polis, 1980, (Teoria e História, 6).
RÚSSIO, Waldisa P. Museu, um aspecto das organizações culturais num país “em desenvolvimento”. Disser-,
tação (Mestrado)- Fesp. São Paulo, 1977. (Os capítulos 1 a 3 tratam dos conceitós e da evolução dos
museus, situando o Brasil e o estado de São Paulo). .
; Waldisa Rússio Camargo Guarnieri
RÚSSIO GUARNIERI, Waldisa. Formação Museológica no Brasil: entraves epistemológicos ou ideo-
1990
lógicos? Comunicação à 40º SBPC, São Paulo, 1988.
. A formação no Brasil: introdução ao processo de credenciamento dos cursos do Instituto de
Museologia de São Paulo, São Paulo, 1988. Em primeiro lugar, ao agradecer o convite que me foi feito para estar
entre os oradores deste Ciclo de Seminários interdisciplinares, quero
. Ulin museu de Indústria em São Paulo. Tese (Doutoramento) - Fesp. São Paulo, 1980.
cumprimentar o Corpo Técnico do Condephaat pela conquista desta rea-
tização, assim como o seu Conselho e Presidência por terem-no assumido
e empreendido num momento em que, singular e contraditoriamente,
algumas autoridades se furtam ao debate.

Em segundo lugar, quero esclarecer que não tenho a pretensão de


trazer à discussão ideias e conceitos novos, depois de Klukhohn ter le-
vantado immais de 150 sentidos da palavra “cultura”, na década de 1950,
“ e Abraham Moles, mais de 200 sentidos, nos anos 70. Minha colaboração
“visará apenas ordenar e expor alguns conceitos (jamais definições) com os
quais nós, museólogos, nos defrontamos em nosso trabalho cotidiano
e com os quais operamos enquanto cientistas e trabalhadores sociais.

Neste Ciclo de Seminários já falaramnum filósofo e uma antropóloga,


“portanto, deve estar muito viva a noção de quão equívoca e polivalente
éa palavra cultural, quão rica de implicações, e a quantas posturas
ideológicas corresponde.

“Por isso me parece fundamental, antes de situar os aspectos da


Cultura com que trabalha o profissional de museu, esclarecer o que se
entende por Museologia.

Museologia é uma ciência em formação.

“Museologia éa
é ciência do fato muscológico.*
1 Texto publicado em Cadernos Museolágicos, Rio de Janeiro: Iphan— Pró-Memáória, n13, p.7-12, 1990.
-2 A ideia de que a Museologia corresponde a uma disciplina científica e a uma ciência em formação .
é adotada, entre outros, por Schreinner, Ztranzky, Gregorová e Sofka. MulNoP/DoTraM, n.1.
Estocolmo: Comitê Internacional para Museologia (Icofom), 1980.
3 RÚSSIO, Waldisa. “L'interdisciplinarité en muséologie”. MuWoP, n.2. Eetocol mo: Comitê
Interpácional para Museologia (Icofom), 1981. '

Presença dos museus no panorama político-científico-cultural Waldisa Rússio Camargo Guamieri 203
s
Fato museológico “é a relação profunda entre o Homem, sujeito que A paisagem modificada pelo Homem, o Cenário no qual se desloca
conhece,e o Objeto, parte da Realidade à qual o Homem tambéin pertence e realiza sua trajetória, são também artefatos.
e sobre a qual tem o poder de agir”, relação esta que se processa “num N

cenário institucionalizado, o museu” .* São objetos, enquanto percebidos como elementos da realidade,
existentes fora do Homem e a partir de sua consciência.
Ora, se o fato museológico pressupõe a relação profunda entre o Ho-
mem e o Objeto, ambos num contexto que é o mesmo- a Realidade-, que São artefatos enquanto modificados ou construídos pelo Homem, que
é que se recolhe aos museus para estudo, documentação e comunicação. lhes dá função, valor, significado.
à comunidade? Resumindo, que é que se musealiza?
Daí que a musealização se preocupa com a informação trazida pelos obje-
Por definição (de Museologia), musealizamos os testemunhos do tos (lato sensu) em termos de documentalidade, testemunhalidade e fidelidade?
homem e do seu meio, seja do meio físico (natural), seja do meio trans
-* formado pelo homem (de que a urbanização é é o exemplo mais claro). Convém lembrar que as palavras documentalidade e testemunhalidade

epa mta
têm, aqui, toda a força de sua origem. Assim, documentalidade pressu-
Na verdade, não musealizamos todos os testemunhos do homem e põe “documento”, cuja raiz é a mesma de “docere” = ensinar. Daí que
do seu meio, natural ou urbanizado, mas aqueles traços, vestígios ou o “ documento” não apenas diz, mas ensina algo de alguém ou alguma
| resíduos que tenham significação. coisa; e quem ensina, ensina alguma coisa a alguém. Testemunhalidade
- pressupõe “testemunho”, cuja origem é testimonium, ou seja, testificar,

o
Quando entramos no terreno das significações, penetramos, também, atestar algo de alguém, fato, coisa. Da mesma maneira que o documento,
o vasto campo dos sinais, imagens e símbolos. o testemunho testifica algo de alguém a outrem. Quem testemunha afir-
ma o que sabe, o que presenciou: isto é, o testemunho tem o sentido de .
Sem pretender aprofundar demasiado, podemos dizer que é atra - presença, de “estar ali” por ocasião do ato, ou fato, a ser testemunhado.
vés da musealização de objetos, cenários e paisagens que constitua
sinais, imagens e símbolos, que o Museu permite ao Homem a leitur j Fidelidade, em Museologia, não pressupõe necessariamente auten-
do Mundo. ticidade no sentido tradicional e restrito, mas a a veracidade, a fidedignidade
do documento ou testemunho.
A grande tárefa do museu contemporâneo é, pois, a de permitir esta
clara leitura de modo a aguçar e possibilitar a emergência (onde ela nã Quando musealizamos objetos e artefatos (aqui incluídos os caminhos,
existir) de uma consciência crítica, de tal sorte que a informação passad as casas e as cidades, entre outros, e a paisagem com a qual o Homem se
pelo museu facilite a ação transformadora do Homem. relaciona) com as preocupações de documentalidade e de fidelidade, pro-
curamos passar informações à comunidade; ora, a informação pressupõe
“Objetos musealizados”. Que são tais objetos? conhecimento (emoção / razão), registro (sensação, imagem, ideia) e memória
(sistematização de ideias e imagens e estabelecimento de ligações) é
O conceito também não é novo. Ob+jeto é tudo o que existe fora d
“Homem, aqui considerado um ser r inacabado, um processo. Éa partir dessa memória musealizada e recuperada que se encontra o
registro e, daí, o conhecimento suscetível de informar a ação.
Esse ser inacabado, esse processo condicionado pelo seu meio, capaz.
a
- decriar, percebeo objeto existente fora de si; não só percebe, como lhe d 5 Sobre testemunhalidade e documentalidade, ver Riviêre, 6. H. “Essaí sur le musée de sité , notas
de curso dado em Serbonne 1 e IV, Paris, 1978,
função, e lhe altera a forma ou a natureza, cria artefatos. 6 Estas ideias constam do texto referido na nota anterior e da “Mémoire de base sur la méthode
de la muséoiogie et de la formation professionelle” para a sessão conjunta dos Comitês para a
| 4 Toidem, Museologia e para a Formação do Pessoal, realizada em jul.-ago, 1983, em Londres.

“: Conceito
de Cultura e sua inter-relação com o patrimônio cultural e a preservação Waldisa Rússio Camargo Guarnieri 205
«

Até aqui enfatizamos o conceito atual de Museologia e seus instru- “Enquanto indaga, conhece e constrói, o homem se realiza como
mentos operacionais, ou seja: métodos de trabalho. ser, aqui e agora, constrói a complexa teia de relações, atos e fatos que'
constituem não apenas a sua Crônica, mas sua História.
Há, entretanto, e ainda, um dado que é essencial à compreensão do.
fato museológico: o cenário institucionalizado, museu. E, ao concluir a História, ele age, ele modifica a natureza (Cultura),
constrói utilidade, cria beleza (uma utilidade essencial), tece relações
O museu, como instituição, é a base necessária à atividade muscoló- humarias, faz sua Cultura.
gica, é uma condição na qual o fato se processa, se realiza.”
Daí que a Cultura e a História são indissociáveis: a Cultura é a subs-
Essa institucionalização não implica reconhecimento apenas por quem tância da História, e o Histórico se relaciona com o Cultural,
o cria e implanta ou pelo sistema e órgãos do Poder, mas, sobretudo, re-
conhecimento público. Pelo simples fato de que temos feito museus para à Assim, a Cultura do Homem compreende suas ideias, valores, seuimagi-
comunidade e não com a comunidade, temos “quistos de coleções” e nã y nário, sua criação intelectual ou intelectual e material: a Cultura proporciona
necessariamente, estabelecimentos museológicos reconhecidos pela comu- “elementos objetivos e concretos, não apenas para a sobrevivência do Homem
nidade (“a que se destinam”, na frase gasta do “discurso competente” N. - e sua realização histórica, mas é, também, e ao mesmo tempo, reflexo e
instrumento para a mudança da qualidade do conjunto de relações sociais.
Voltemos, entretanto, aos outros dados fundamentais da ação mu
. seológica: no cenário institucionalizado, que é o museu (desde o templo, “Portanto, não podemos segregar o ambiente físico natural do ambien-
laboratório, casa de objetos, centro de convívio, até o ecomuseu), omuseólogo te físico transformado pelo Homem: ambos são diferentes gradações do
se preocupa com a relação homem-realidade ou homem-objeto, dentro de trabalho e da ação humanas; o ambiente físico natural internalizado na
parâmetros de fidelidade, documentalidade e testemunhalidade. “consciência do homem, percebido, valorizado, é um patrimônio e uma
herança a ser transmitida; o ambiente físico transformado, reordenado
— A relação do Homem com o seu meio, seja em termos de mera api pelo homem, pelos assentamentos humanos, é um patrimônio e uma.
ensão da realidade, seja de ação sobre essa mesma realidade, implica : herança; ambos são dimensões-diferentes da Cultura do Homem.
- realização humana em termos de consciência, de consciência crítica e histórica,
de consciência possível. O homemé o ser que se realiza criticamente, As relações dos outros animais com o meio físico são meramente
historicamente; ao realizar-se, ele constrói sua História e faz sua Cultur: naturais, não são relações sociais, culturais, como as do Homem.

O homem se relaciona com o meio físico (natureza e outros seres


-O homem é o resultado de um processo que se realiza com a sua
: com o meio por ele transformado e com outros homens,
intervenção e participação conscientes.
| O existir do Homem, seu viver, está relacionado com seu pensamento
- Astelações do Homem com o seu meio e seus semelhantes são, pois,
e ação, com sua produção, seu trabalho. ,
históricas e não apenas naturais.
O homem é um animal c“que trabalha mesmo quando brinca,
* porque age conscientemente (ou com a possibilidade do exercíci Nas suas relações com a natureza e com os outros seres, inclusive outros
consciente) e decide, por ação ou omissão, o seu destino. É ele quem Homens, ele inventou técnicas, produziu utilidades, hábitos, costumes,
estabelece agendas e cânones (valores), quem hierarquiza, classifica crenças, valores.
reflete, crítica, age.
Esses diferentes aspectos da criação humana constituem aspectos.
7 A expressão tem o sentido que lhe dá Marilend Chauí, e como, anteriormente, em outros termos, â
. conceituou Gramsci. diversos do trabalho do homem, de sua cultura.

“Conceito de Cultura e sua inter-zelação com o patrimônio cultural e a preservação Waldisa Rússio Camargo Guarnieri 207:
Portanto, me parece claro que, para o museólogo, o conceito d Portanto, é claro que a preservação do patrimônio cultural é um
Cultura com que ele opera é o mais simples de todos: Cultura é o fazer ato e um fato político, e temos de assumi-lo como tal, mesmo nas nos-
o viver cotidiano; Cultura é o trabalho do homem em todas as suas manifesta sas áreas específicas de atuação profissional; No caso do imuseólogo,
ções e aspectos, Cultura é a relação do homem com o seu meio, com os outros trabalhador social)? significa não recusar a dimensão e o risco político
seres, incluindo os outros Homens. Cultura é a projeção em que o home do seu trabalho.
se realiza; ou melhor a atividade em que ele se realiza. Cultura é percepção
experiência, expressão; cultura é a vida vivida. Em termos de Cultura, Patrimônio e Preservação, como em geral
em tudo o que diz respeito ao Homem e à Sociedade, cabe sempre
É com esta substância que trabalha o museólogo: Cultura, História indagar: “O quê?”, “Por quê?”, “Para quê?”, “Para quem?” e, ainda,
| Daí a preocupação com a testemunhalidade, a documentalidade dos; “Como?”.
“objetos” (lato sensu) musealizados. Musealização pressupõe ou implic
preservar. Preservar por quê? Porque os objetos têm, para nós, um significad E só para “instigar” e “aquecer” um pouco o nosso debate, gostaria,
(a atribuição de significados é, também, um dado cultural). Na medid: ainda, de lançar algumas dúvidas.
em que esses significados entram para a nossa hierarquia de valores, ou
seja, de simples “coisas” (res) passam a bens, transfiguram-se em
e patri- Como podemos falar em Patrimônio Cultural sem pensar em um
mônio (conjunto de bens) e em patrimônio cultural. sistema complexo, variado e rico em suas manifestações e criações,
compreendendo todo o conspecto da percepção e do trabalho humanos?
Para o museólogo, as ideias de cultura, patrimônio e preservaçãe
- estão, como se percebe, muito ligadas.' Esse patrimônio é resultado da valorização de uma elite ou de uma
eleição por parte de camadas e segmentos significativos da comunidade
A preservação também revela aspectos ideológicos interessantes «e e da sociedade?
diversos: há os que preservam por saudosismo; há os que preservam
com a finalidade de valorizar ou evidenciar bens de uma escala muito Qual é o papel do técnico?
subjetiva e particular, e há os que preservam para manter registros informa-
tivos, porque toda ação carece de uma informação anterior. E, ainda:

Esta última postura reflete bem o dinamismo da preservação en: “Uma sociedade que privilegia, em sua preservação, o patrimô-
“quanto ação museológica (informar para agir), que reaproxima objetos -“nio imobiliário não poderá, mais do que estar valorizando técnicas
e homens (Homem eRealidade), revitalizando o fato cultural, “construtivas ou testemunhos arquitetônicos, estar se preocupando
prioritariamente ou apenas com os aspectos econômicos dos chama-
dos “bens de raiz”?
Simultaneamente, a preservação proporciona a construção de uma
“memória” que permite o reconhecimento de características próprias, ou.
seja, a “identificação”. E a identidade culturalé algo extremamente ligadoà Uma sociedade que segrega a preservação do patrimônio ambiental
autodefinição, à soberania, ao fortalecimento deuma consciência histórica
natural do patrimônio ambiental urbano e julga que o primeiro se insere
a,

numa área não cultural, não estará negando as profundas relações do


Essa memória e essa consciência é que permitem, inclusive, o contato: Homem com o seu meio em torno e com a própria natureza de que ele
participa e da qual ele emerge em virtude de sua consciência histórica
cultural em termos de diálogo (e não de colonização), e a tradição (pro-
e de seu trabalho?
- cesso dinâmico de transferência de valores, patrimônio, de uma geração
-a outra) como uma transferência sem constrangimentos He uma herança =
8 A expressão “trabalhador social” tem, aqui, o sentido que lhe dão Florestan Fernandes e
reconhecida comoo tal, Paulo Freire: não apenas quem exerce a função social do trabalho, mas de quem trabalha
conscientemente com o social, colaborando com a mudança.

Conceito-de Cultura e sua inter-relação com o patrimônio cultural ea preservação Waldisa Rússio Camargo Guarnieri 209
Uma sociedade que esquece o patrimônio construído pelos bens .
móveis produzidos pelo Homem, não estará instilando sutilmente a
substituição do valor da produção humana pelo valor de consumo, do fazer .
pelo possuir, o que, de alguma maneira, não estaria contribuindo para
maior alienação do Homem? “ ,

Quando uma sociedade não apenas se esquece de preservar o seu


patrimônio oral, usos e costumes, mas também relaxa o registro de suas
técnicas, não estará, de alguma maneira, se preparando para a assimila- .
ção aleatória e indiscriminada de quaisquer outros valores nessas áreas,
esquecendo matrizes informativas de um desenvolvimento autônomo e
endógeno e sujeitando-se à adoção de padrões que não lhe serão neces-.
sariamente os mais benéficos em termos sociais, ainda que possam estar
mais próximos de uma pretensa ou verdadeira modernidade?

Estas são algumas de muitas dúvidas e alguns poucos lineamentos.


para provocar uma discussão que, certamente, nos levará a todos a re-
sultados maiss satisfatórios do que um menólogo árido:

" Conéeito de Cultura e sua inter-relação com o patrimônio cultural e a preservação 211

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