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Rafael Simioni4
* Pesquisa realizada no âmbito do Projeto Decisão Jurídica e Democracia (PPGD/FDSM), com o apoio do CNPq.
1
Advogada, Especialista em Direito Processual Civil e Direito Constitucional pela Puc/Campinas, aluna do Programa de Pós-
graduação em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas.
2
Advogado, Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito do Sul de Minas e Especialista em Direito
Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, Professor de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito
do Sul de Minas, aluno do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas.
3
Advogada, Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, aluna do Programa de Pós-graduação
em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas.
4
Doutor em Direito, Mestre em Direito, Professor do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas e
pesquisador líder do Grupo de Pesquisa Tertium Datur (PPGD/FDSM).
5
Advogado, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Uniderp e Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul
de Minas, aluno do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas.
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Médico, Bacharel em Direito, Professor de Medicina Legal da Faculdade de Direito do Sul de Minas, aluno do Programa de Pós-
graduação em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas.
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morais. A articulação desses três tipos de discurso permite reconstruir a lógica da divisão dos
poderes do Estado sob uma nova configuração, capaz de dotar o exercício do poder administrativo
do Estado de um maior grau de legitimidade democrática.
1 Introdução
Para tanto, torna-se necessário ir além da concepção de Estado de Direito como uma forma
de legitimação jurídico-formal do poder, para se conceber um Estado Democrático de Direito
no qual tanto o poder, quanto o direito, devem ser resultados de discursos públicos racionais,
no âmbito dos quais a formação do direito e o exercício do poder administrativo do Estado
tornam-se cooriginários com os princípios morais e os valores éticos da comunidade.
Este artigo procurará explicitar essa proposta de Jürgen Habermas, destacando os pressupostos
teóricos e as condições sob as quais pode ser possível atingir graus mais elevados de legitimidade
na atuação estatal, seja no campo da definição e execução de políticas públicas, seja no da
elaboração de leis.
Assim, num primeiro momento, será analisada a relação de cooriginariedade entre direito e
política. Dessa explicitação resulta a constatação de que a forma do direito não é suficiente
para a legitimação do exercício do poder, motivo pelo qual se torna necessário suprir esta
insuficiência por meio de três tipos de discursos. Assim, num segundo momento, este artigo
analisará os tipos de discurso e o sentido dos princípios do Estado Democrático de Direito na
teoria discursiva do direito de Habermas, bem como a sua nova proposta de reformulação da
velha lógica da divisão dos poderes segundo funções por uma divisão de poderes de acordo com
os tipos de discurso.
Para serem atingidos esses resultados, a pesquisa utilizará uma metodologia analítica,
desenvolvendo as questões sob a perspectiva da teoria discursiva do direito de Jürgen Habermas
e explicitando, por meio de discussões embasadas nos ideais do Estado Democrático de Direito,
as relações entre as proposições da teoria e os conceitos nela pressupostos.
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Uma das questões mais relevantes e divergentes em vários campos do conhecimento diz respeito
à concepção de Estado. Afinal, o que é o Estado? Qual o seu alcance? Qual a sua função? Sobre
o tema, Habermas leciona:
É possível imaginar uma sociedade sem uma forma de controle social? A resposta nos salta à
vista: não. Se assim o fosse, viveríamos em um completo estado de natureza, onde prevaleceria
o poder dos mais fortes sobre os mais fracos, além da possibilidade de cada um fazer justiça a
seu próprio modo ou gosto.
Surge desse modo, então, a ideia da jurisdição, e da entrega de uma parcela da liberdade
de cada membro da sociedade para o Estado, a fim de que esse regule condutas e relações
jurídicas, aplique o Direito aos casos concretos e pacifique os conflitos que surgem no meio
social, que se mostra cada vez mais pluralista, complexo e mutável.
Para tratar dos litígios advindos da sociedade, Habermas se utiliza da lição de Parsons sobre a
dupla contingência. Vejamos:
Os atores esperam uns dos outros que eles decidam, em princípio, desta
ou daquela maneira. [...] E quando a coordenação não se efetua, surgem
consequências na ação, que são experimentadas, como problemáticas pelos
próprios participantes (PARSONS apud HABERMAS, 1997, p. 176).
O sociólogo alemão nos mostra em seguida quatro formas de sanar as contendas entre os
membros pertencentes ao mesmo grupo social. O primeiro é definido como consenso, que se
utiliza de normas, valores e uma autoridade para se chegar a uma solução adequada para
aquele caso em especial.
A segunda hipótese indicada por Habermas é a arbitragem, que consiste em um pacto que tem
por objetivo a própria negociação dos interesses em questão e a consequente formação de um
compromisso. A terceira possibilidade é basicamente um desdobramento da segunda, com a
única diferença de que conta com o auxílio de um mediador para facilitar a transação, sem
que este tenha, porém, o poder de obrigar as partes a qualquer ato ou decisão.
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Nesse sentido, podemos constatar que existe uma relação intrínseca entre a Política e o
Direito. Para Habermas, os dois institutos são cooriginários, conforme se denota no trecho
a seguir:
É brilhante a conclusão do estudioso germânico. Ora, o Estado, para que possa cumprir suas
funções precípuas, exige uma forma de composição capaz de transformá-lo em uma estrutura
lógica e funcional. Quem desempenha esse papel é o Direito.
Assim, percebe-se que o nexo de mutualidade que une Direito e Política não só é relevante, mas
imprescindível para a organização de qualquer sociedade civilizada. O poder político necessita
da forma do direito para organizar e fazer funcionar o poder dentro de uma estrutura lógica
e previsível, ao mesmo tempo em que o direito necessita do poder político para ter coerção.
Mas a forma do direito, por si só, não é suficiente para a legitimação do exercício do poder
administrativo do Estado. A forma do direito — do direito positivo — garante a organização, a
segurança e a previsibilidade da atuação administrativa. Mas ela não garante a legitimidade
democrática desse exercício de poder administrativo.
Para que o exercício do poder administrativo tenha legitimidade democrática, não basta a
definição legal-formal de competências administrativas e de limites ao poder administrativo,
como proposta pela teoria pura do direito de Hans Kelsen (2000; 2003). O exercício do poder
administrativo não pode mais estar baseado em um mero poder formal, definido segundo regras
jurídicas igualmente formais de competência administrativa. A legitimidade pressupõe um valor
político a mais, um valor político genuinamente democrático que, inspirado no pensamento de
Hannah Arendt, Habermas vai denominar de “poder comunicativo”.
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A análise inicial das relações entre código do direito e código do poder passa pela busca da
“segurança jurídica”, estabilizando as consequências do comportamento próprio e alheio.
Pressupõem-se, por conseguinte, normas jurídicas expressas, de caráter preciso, sem
contradição, públicas, aplicáveis a todos os cidadãos.
Tais normas jurídicas expressas organizam tanto o Estado (na qualidade de Administração) quanto
a própria Justiça. Em decorrência dessa “segurança jurídica”, garantem autonomia pública e
privada, tanto dos cidadãos quanto de instituições políticas, procedimentos e competências.
Isso não implica, necessariamente, “troca autossuficiente e horizontal entre direito e poder
político”, segundo Habermas (1997, p. 183). Tal análise seria limitada e simplista. Destarte, entre
direito positivo e poder político, apresenta-se um contexto limitado à própria circunscrição.
Precisamente nessa mediação entre direito positivo e poder político torna-se importante o
conceito de poder comunicativo de Hannah Arendt.
Por meio desses discursos públicos, o poder se transforma em potencial de uma vontade comum
formada numa comunidade não coagida. Isso porque o poder comunicativo só pode formar-se
em esferas públicas, só pode ser legítimo se advindo de estruturas de intersubjetividades
intactas de uma comunicação não deformada. Em outras palavras, o poder comunicativo —
diferentemente do poder formal — surge onde há uma livre formação da opinião e da vontade,
a qual, junto com a liberdade comunicativa que permite a cada um “fazer uso público de sua
razão em todos os sentidos”, faz valer a produtividade de um modo de pensar mais amplo;
tendo por característica que “cada um atém o seu juízo ao juízo de outros possíveis, e se coloca
no lugar de cada um dos outros” (HABERMAS, 1997, p. 184; 2004, p. 13).
Para Hannah Arendt, o poder político é uma força autorizadora que se manifesta na criação
do direito legítimo e na fundação de instituições. Manifesta-se em ordens que protegem a
liberdade política, em oposição às repressões que ameaçam a liberdade política a partir de
dentro ou de fora, principalmente nos atos instauradores de liberdade.
Por consequência, o direito pode ser criado de modo a ligar-se a um poder comunicativo,
que é tipo de poder capaz de produzir direito legítimo, capaz de dotar a forma do direito de
legitimidade. E nessas condições, não há mais necessidade de se encontrar um substituto para
a justiça do direito natural. Pois o direito criado a partir do poder comunicativo tem já em si
mesmo a expressão da legitimidade.
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Segundo Habermas (2003), o poder comunicativo, como esfera pública de legitimação do direito,
torna possível avaliar a legitimidade de um poder a partir da harmonia entre palavras e feitos,
sem, contudo, ser transformado automaticamente em poder administrativo, antes de poder
assumir, na figura do poder administrativo, as funções de sanção, organização e execução, das
quais o sistema dos direitos depende e dos quais ele pressupõe.
A política não pode coincidir, no seu todo, com a prática daqueles que falam entre si, a fim
de agir de forma politicamente autônoma, pois o exercício da autonomia política significa a
formação discursiva de uma vontade comum; porém, não inclui ainda a implementação das leis
que resultam dessa vontade.
Deflui-se nesse contexto que a ideia de Estado de Direito pode ser interpretada como a exigência
de ligar o sistema administrativo, comandado pelo código do poder, ao poder comunicativo,
estatuidor do direito, e de mantê-lo longe das influências do poder social, quer dizer, longe da
implantação fática de interesses privilegiados.
Sendo assim, sua relevância está em pretender o fim da arbitrariedade e da coerção nas questões
que circundam toda a comunidade, propondo uma maneira de haver uma participação mais
ativa e igualitária de todos os cidadãos nos litígios que os envolvem e, concomitantemente,
obter justiça nas decisões políticas da comunidade.
Habermas (1992, p. 95-107) destaca a existência de três grandes tipos de questões políticas no
âmbito do Estado Democrático de Direito. E para cada tipo de questão política, há um tipo de
discurso correspondente, que permite repensar a ideia tradicional da divisão dos poderes do
Estado segundo funções.
Queremos introduzir essa discussão de um modo mais lúdico, fazendo o seguinte questionamento:
o que teriam em comum a camada de pré-sal, a tortura e o mico-leão-dourado? O que
justifica a repulsa por atitudes do nosso Executivo em relação aos regimes autoritários do Irã
ou da Venezuela?
Segundo Habermas (1992, p. 96), quando discussões, questões e conflitos desta natureza se
apresentam, sempre nos colocamos diante da pergunta que devemos fazer? Mas estes tipos
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de questões políticas podem ser classificadas de acordo com as referências comunicativas que
articulam, como: pragmáticas, morais e ético-políticas.
Nas questões morais — tais como o aborto, meios de prova, tributação, educação e
saúde — os discursos submetem os interesses e orientações valorativas conflitantes a um
teste de generalização no quadro do sistema de direitos interpretados e configurados
constitucionalmente. Os argumentos partem geralmente de exigências de coerência em uma
perspectiva cada vez mais universal (HABERMAS, 1989; 1993, p. 73; 2002, p. 448), pois o que
vale para um tem que valer também para todos.
Como podemos observar, a abertura de um jornal, revista ou site de notícias a qualquer momento
poderia fornecer-nos exemplos eloquentes das situações identificadas e da utilidade da distinção
habermasiana segundo os tipos de discurso que são travados, na prática das discussões públicas,
a respeito dessas questões políticas. Sem que nos demos conta, recorremos a estes elementos
com bastante frequência no nosso dia a dia, podendo o observador mais atento identificar
quando se utiliza um deles ou outro.
Segundo Habermas (1997, p. 222), “No âmbito da formação da política racional da vontade, e
dependendo do tipo de questionamento, os discursos e as negociações preenchem diferentes
papéis na lógica da argumentação”.
Para tanto, há tipos de procedimentos diferentes que podem regular os diferentes tipos de
discurso. Entre eles, o procedimento mais comum é aquele que segue a regra da maioria,
segundo a qual questões específicas são decididas em tribunais colegiados, em parlamentos ou
órgãos de autonomia administrativa, mantendo uma relação interna com a busca da verdade,
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na medida em que a decisão tomada com maioria forma apenas uma censura numa discussão
em andamento.
Desta feita, em negociações nas quais se ponderam interesses — que correspondem às questões
pragmáticas —, pode formar-se uma vontade geral agregada; em discursos hermenêuticos
de autoentendimento — que correspondem às questões ético-políticas —, uma vontade geral
autêntica; e em discursos morais de fundamentação e aplicação — questões morais —, uma
vontade autônoma.
Assim, com tais procedimentos busca-se não sufocar o pluralismo das convicções e
interesses, liberando o reconhecimento em compromissos e decisões da maioria, não
legitimando nem isentando de coerção nenhum consenso que tenha passado pela reserva
falibilista e que não tenha sido exercitado na base anárquica de liberdades comunicativas
não circunscritas, cujo único ponto fixo é o processo democrático, procedimento já
contido no sistema dos direitos.
Contudo, para que isso ocorra, o Estado Democrático de Direito deve se valer de um poder
público organizado que requeira do poder político uma legitimação institucional. Ou seja, o
poder político está vinculado ao direito legalmente instituído que o legitima como tal.
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Neste âmbito da legitimidade política do Estado, Habermas observa que essa legitimação só
pode vir dos cidadãos que detêm o poder precípuo constituído pelo direito, que por sua vez
constitui e transforma o poder comunicativo. Ou seja, o direito é constituído de princípios que
foram discursivamente debatidos e instituídos e que em momento posterior, pela mesma via do
discurso, criam e transformam um Estado Democrático de Direito.
Pela teoria discursiva do direito de Habermas, princípios são construções discursivas entre
os cidadãos da sociedade. Para isso, este autor cita quatro tipos de princípios, os quais
caracterizariam o início do direito e consequentemente a correlação trifásica entre Estado,
Direito e Poder. São eles: o princípio da soberania popular; o princípio da ampla garantia
legal do indivíduo; o princípio da legalidade administrativa; e, por fim, o princípio da
separação dos poderes.
Do princípio da soberania popular, Habermas (1997, p. 213) observa que todo poder político
é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos, pois estes manifestam suas vontades e
opiniões, que posteriormente serão aceitas entre eles, mesmo que por meio de um sistema
representacional, mas que seus poderes só se esgotem mediante o princípio que garante esferas
públicas autônomas e o princípio da concorrência entre os partidos.
Nesse sentido, seguem os demais princípios: aqueles que necessitam de fundamentação legal
decorrente de um processo democrático que visa à garantia de uma proteção jurídica individual
ampla; aqueles em que o poder administrativo tem o direito como condições possibilitadoras
e ao mesmo tempo limitadoras em sua arbitrariedade, por exemplo; e por fim aqueles que
necessitam da argumentação para sua autonomia.
Assim, tanto os discursos morais quanto os discursos ético-políticos, bem como as negociações
estratégicas, precisam ser institucionalizados por meio do direito, porque apesar de esses
três tipos de discursos políticos serem diferentes e articularem diferentes pressupostos na
comunicação, eles podem ser institucionalizados juridicamente de modo a se garantir a
equidade na participação política de todos os possíveis afetados pelas decisões.
O problema é que uma institucionalização jurídica desses discursos precisa satisfazer diferentes
condições ao mesmo tempo. Isso porque, como acima observado, há pelo menos três tipos de
discursos — morais, ético-políticos e negociações estratégicas — que apresentam diferentes
exigências comunicativas. E um processo democrático que institucionalize essas diversas formas
de comunicação deve ser a condição para uma formação política racional da vontade, quer
dizer, deve ser a condição para o exercício do poder comunicativo, que dota de legitimidade a
atuação administrativa do Estado.
Para Habermas (1997, p. 225), é possível um processo democrático que institucionalize essas
diferentes formas de comunicação. As negociações podem formar uma vontade agregada. Os
discursos ético-políticos podem formar uma vontade geral autêntica. E os discursos morais
podem formar uma vontade autônoma. Naturalmente, os argumentos que preenchem esses três
tipos de discurso são diferentes. Mas não são os argumentos que são institucionalizados e sim o
procedimento democrático que os faz florescer.
Nas negociações políticas, por exemplo, o que está em jogo são negociações de compromissos
recíprocos. Nessas negociações, o direito pode institucionalizar normas e procedimentos que
garantam a equidade dos compromissos, o direito à participação nas negociações, a escolha de
delegado e composição das delegações. E também pode institucionalizar normas que definam
as matérias, a coordenação, o tempo e a duração das negociações, bem como as sanções para
o caso de descumprimento de alguma norma.
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Nos discursos ético-políticos, por outro lado, o direito pode institucionalizar normas que
garantam a inclusão, como participantes desses discursos, de todos os possíveis afetados pela
decisão política. Todos os membros devem poder participar desses discursos, com as mesmas
chances e oportunidades de posicionamento sobre os temas. Por questões técnicas, esses
discursos muitas vezes só são possíveis mediante representações. Mas mesmo nesses casos, o
procedimento discursivo deve garantir a sensibilidade do discurso à opinião e vontade de todos
os membros da comunidade representados por um interlocutor.
E por fim, nos discursos morais, os participantes devem assumir a perspectiva uns dos outros,
de modo a entender as questões morais como questões de universalização da decisão política.
Para tanto, a institucionalização jurídica desse tipo de discurso não pode se limitar, como
nos discursos ético-políticos, à participação dos possíveis afetados pela decisão. Isso porque,
a perspectiva moral exige uma participação universal. A submissão das decisões políticas ao
teste de generalização moral desse tipo de discurso exige a participação da opinião pública
em geral, até mesmo aquela opinião pública não organizada (HABERMAS, 2000). Claro que, por
motivos técnicos, não é possível ouvir individualmente cada uma das opiniões dos cidadãos e
seus vizinhos. A questão é que esses discursos precisam garantir uma sensibilidade à opinião
pública em geral.
8 Considerações finais
Nessa perspectiva, o direito não é mais entendido apenas como a forma que estabelece os
limites do poder administrativo — como na concepção clássica do princípio da legalidade
administrativa. O direito criado legitimamente, por meio de um procedimento democrático
sensível tanto às questões morais quanto às questões ético-políticas e estratégicas, pode
constituir o modo decisivo para a legitimidade no exercício do poder administrativo.
Se o poder administrativo for entendido apenas como uma questão de competências funcionais
e materiais formalmente definidas pelo direito, então o exercício desse poder só pode encontrar
a sua legitimidade e aceitação social em um conceito arbitrário e metafísico de princípios a
priori, pois o que garante a legitimidade do direito e do poder administrativo não são princípios
jurídicos a priori, mas sim a sua gênese democrática. Não é a forma gramatical ou semântica da
lei que dota o exercício do poder administrativo de legitmidade, mas sim o processo democrático
que o produz.
Assim torna-se possível amarrar e conectar os três poderes clássicos do Estado sob uma nova
configuração, que valoriza tanto os princípios do constitucionalismo quanto os da democracia
(HABERMAS, 1999), porque no fundo de toda essa atividade estatal está a gênese legítima
do direito como expressão do exercício do poder comunicativo. Mais do que uma débil
legitimidade pela positividade semântica do direito, o exercício do poder administrativo
precisa de uma legitimidade democrática, a qual só pode ser suficientemente realizada por
meio do poder comunicativo.
Referências
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KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3. ed. Tradução de Luís Carlos
Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Abstract
This article aims to explicit reconstructive grounds of the Democratic State of Law
based on Jürgen Habermas’ judgment. Under the perspective of the speech theory,
political power and Law have a common origin. So it is inappropriate to realize
Law only as a way for the political power mandate. The relation between Law and
power can be better understood as a cooriginating relation under a democratic
process which legally institutionalizes the mandate of the communicative power,
which works in three different types of political discourse: strategic negotiations,
ethical-political discourse and moral discourse. The articulation of these three types
discourses allow the reconstruction of the logical division of the State Power under
a new configuration, capable to endow the exercise of the administrative power of
the State in a higher degree of democratic legitimacy.
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