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SILKEN THREADS
Patrícia Ryan
Londres, 1165
Soldado da fortuna
Graeham Fox tem uma missão secreta: resgatar
a filha ilegítima do seu lorde, libertando-a do
domínio de um marido abusivo. Como pagamento
por seu serviço, ele receberá a mão da irmã gêmea
dela em casamento, e uma vasta propriedade, muito
mais do que um simples soldado poderia almejar.
Atacado em Londres, Graeham escapa por pouco
de ser morto, e tem a oportunidade de se recuperar
na humilde moradia de Joanna Chapman, a
encantadora viúva de um mercador de sedas.
As experiências do passado ensinaram Joanna a
não confiar nos homens, muito menos num atraente
e misterioso como Graeham. Mas o forte
magnetismo dele e seu toque sedutor desencadeiam
em Joanna uma paixão avassaladora. Dividido entre
a ambição e o desejo, Graeham vê seu futuro por
um fio, e somente o amor de Joanna poderá salvá-
lo.
CAPÍTULO I
Maio de 1165, Distrito West Cheap, Londres
Como se diz a um homem que você está ali para
levar a mulher dele embora? Graeham se perguntou
ao bater à porta pintada de vermelho da residência
de Rolf Le Fever na rua Milk.
Tinha pensado naquilo durante todo o trajeto
tempestuoso da travessia do canal da Mancha e nos
dois dias de viagem de Dover a Londres. Ainda
assim, não encontrara uma resposta. A tarefa de
levar uma mulher para longe do marido era uma
questão delicada, uma que
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demandaria diplomacia. ou força bruta.
Automaticamente levou a mão à adaga presa ao
cinto, esperando não ter de colocá-la em uso.
Graeham ergueu a mão para segurar a argola de
ferro presa à porta e voltar a bater quando ouviu
passos se aproximando, acompanhados da voz de
um homem.
— Onde diabos você se meteu, sua inútil? Não
ouviu baterem?
A porta se abriu com um rangido de dobradiças
enferrujadas. O loiro que a abriu parecia ter sua
idade, embora Graeham soubesse que o outro
estava perto dos trinta e cinco, dez anos a mais do
que ele. Era mais alto que a média, mas não o
alcançava. Pálido, de olhos azuis e estrutura
delicada, vestido com uma túnica de seda verde
amarrada por um cinto ornado de jóias, Rolf Le
Fever estava mais para o retrato de um cortesão, ou
o que ele imaginava que um cortesão deveria se
parecer, do que de um mercador, por mais próspero
que fosse.
Le Fever olhou Graeham de alto a baixo, com a
expressão de um homem que contempla um inseto.
Era de se esperar, sujo e barbado, com a túnica e as
perneiras de couro imundas da viagem e o cabelo
solto, Graeham parecia mais um criado que estava
ali para limpar o urinol.
— Rolf Le Fever? — Graeham perguntou, embora
não houvesse motivos para duvidar quem estava
diante dele.
— Comerciantes devem se dirigir para a porta
dos fundos. — Le Fever retrocedeu e estava para
fechar a porta quando foi impedido pela mão de
Graeham.
— Fui enviado por Gui de Beauvais.
A menção do nome do sogro, Le Fever voltou a
abrir a porta lentamente.
— Lorde Gui enviou você?
Graeham abriu a bolsa de couro que trazia,
retirou um pergaminho selado com o brasão do
barão e o entregou ao mercador.
— Eis a carta de apresentação de milorde.
Le Fever quebrou o lacre de cera, retirou a fita e
abriu a carta. A boca movia-se silenciosamente
enquanto ele decifrava as palavras.
Escolhendo ser diplomático, pelo menos naquele
instante, Graeham disse:
— Peço desculpas por minha aparência. Viajei
boa parte da semana e acabei de chegar à cidade.
— Certo. — Le Fever voltou a fechar a carta. —
Onde está sua montaria, nesse caso?
— Eu as deixei.
— Tem mais de uma?
— Duas. — Uma para mim e a outra para sua
esposa, completou mentalmente. — Eu as deixei na
São Bartolomeu.
Seguira as instruções de lorde Gui ao se dirigir à
hospedaria monástica localizada do lado de fora dos
muros da cidade em vez de ir a uma das inúmeras
estalagens populares. O barão tinha elogiado a
hospitalidade do monastério, mas Graeham não se
demorara o bastante para usufruí-la. Assim que
chegara, havia acomodado os cavalos cansados no
estábulo e se dirigira a pé para lá, passando por
Aldersgate, um dos sete portões de acesso à
Londres central, caminhando pelas ruas abarrotadas
de West Cheap, consciente da sua missão.
consciente demais, talvez, pois quem sabe Le Fever
se mostrasse mais receptivo diante de um emissário
limpo e bem vestido.
A verdade era que estava ansioso. Coisa fácil de
entender, considerando-se a urgência da sua
missão. E seu prêmio, caso fosse bem-sucedido.
— Posso entrar? — perguntou. — Tenho um
assunto importante para discutir com o senhor.
O olhar translúcido de Le Fever avaliou Graeham
ao dizer:
— Lorde Gui o descreve como um assistente. Isso
não é muito específico.
— Sou um dos sargentos do barão.
— Ah. Um militar — Le Fever disse, como se isso
explicasse a aparência de Graeham. Enfiou a carta
no cinto e convidou: — Entre. — Virando-se, passou
por um pequeno vestíbulo e subiu um lance de
escadas até o segundo andar, sendo seguido por
Graeham, que notou que as escadas continuavam
até um terceiro andar.
— Você é inglês — Ele observou ao liderar o
caminho até uma sala de bom tamanho, decorada
com ostentação e muitas cortinas de seda.
— Sim, sou. — Graeham não pôde deixar de
sorrir, satisfeito pelo fato de os onze anos vividos no
condado franco de Beauvais não terem apagado por
completo seu sotaque nativo.
Le Fever indicou ao visitante uma das cadeiras
entalhadas diante da lareira acesa e depois se dirigiu
a um armário pintado com leopardos e flores-de-lis.
— Qual seu nome, sargento?
— Graeham.
—Graeham de quê?
— Alguns na França me chamam de Graeham de
Londres, pois nasci aqui. Porém também me
chamam de Graeham Fox.
— Fox? Uma raposa. Devido à sua astúcia?
— Por causa do meu cabelo. — E também pela
astúcia, mas às vezes era melhor ser subestimado.
— Sob a luz do sol, ele tem um brilho arruivado. —
Desde que estivesse limpo, o que não era o caso,
pois seu último banho tinha sido em Beauvais.
A expressão de Le Fever oscilou entre indiferença
e desdém.
— Imagino que terei de acreditar na sua palavra.
— Retirou uma jarra e uma taça de prata da
prateleira. — Aceita algo para refrescar a garganta?
— Cerveja se tiver. Sinto falta da cerveja inglesa.
— Criada! — Le Fever gritou. Depois de um
instante de silêncio, aproximou-se da escada e
exclamou: — Aethel! Onde diabos você se meteu?
Uma cadeira foi arrastada no andar de cima e
passos apressados ecoaram na escada. Uma mulher
rechonchuda apareceu, segurando um avental numa
das mãos e uma colher na outra.
— Desculpe, senhor. Eu estava lá em cima
alimentando a sra. Ada e não ouvi.
— Vá até a despensa e traga cerveja para nosso
convidado. Depressa!
— Sim, senhor. — Aethel lançou um olhar curioso
na direção de Graeham, mas se apressou em
cumprir as ordens.
Le Fever ergueu a taça até os lábios e se sentou
para saborear o vinho. Anéis tremeluziam nos dedos
e, quando ele cruzou as pernas, Graeham reparou
que debaixo da bainha da túnica havia cintas com
bordados intricados prendendo as meias, que em
vez de serem as usuais de lã eram de seda. Uma
afetação compreensível, Graeham supôs, já que o
homem não era apenas o comerciante de sedas
mais proeminente de Londres, mas também o chefe
da recém-fundada associação dos comerciantes de
tecidos.
— Não consigo deixar de imaginar — Le Fever
falou por sobre a borda da taça — qual assunto de
grande importância levaria lorde Gui a enviar um
soldado para a casa da filha.
— O barão sente falta da sra. Ada e quer vê-la.
Por causa da sua idade avançada e da saúde
precária, seria imprudente que se pusesse numa
viagem tão longa. Ele me enviou para acompanhar a
filha.
— Ele quer que a acompanhe até Beauvais?
— Até Paris. — Graeham respondeu com cautela.
— Ele a encontrará lá.
— Sim, claro — Le Fever zombou. — Ada jamais
colocou os pés no castelo do próprio pai, não é
mesmo? Diga-me uma coisa. A baronesa faz ideia
das gêmeas bastardas que o marido teve em Paris
com uma prostituta?
— Não. E, pelo que sei, a mãe delas era modista.
— Elas se autodenominam de diversas maneiras.
— Tomou um longo gole de vinho, depois limpou a
boca com o dorso da mão. — Sinto dizer que sua
viagem foi em vão. Não tenho intenção alguma de
permitir que minha esposa viaje na companhia de
um completo estranho, ainda mais. — Seu olhar
passeou pela figura de Graeham.
— Asseguro-lhe que ela estará a salvo comigo.
— Essa não é a questão. — Le Fever sorriu. —
Não é costume que as mulheres viajem
desacompanhadas dos maridos. Isso refletiria mal
em mim. Sou um homem influente, apesar do que o
barão possa imaginar.
Algo caiu no pavimento superior, mas o mercador
nem desviou os olhos do visitante.
— Está consciente de que sua esposa manteve
correspondência com o pai depois de se casar?
— E?
— Seis meses atrás, as cartas pararam de
chegar.
Aethel reapareceu e serviu a cerveja, sorriu antes
de voltar a subir as escadas. Momentos depois, um
novo arrastar de cadeira e troca de palavras nas
vozes femininas abafadas no andar de cima.
Seguindo o olhar de Graeham para o teto, Le
Fever disse:
— Minha esposa está doente desde a época do
Natal. Depois que ela se recuperar, voltará a
escrever para o pai. E por isso que ele quer vê-la,
porque ela parou de escrever?
— Isso. — Ele ganhou alguns instantes ao tomar
um gole de cerveja. Era amarga, mas parecia a
bebida dos deuses. Era o gosto da Inglaterra. — E
também por causa do que ela escreveu nas cartas.
Depositando a caneca numa mesinha ao lado da
cadeira, Graeham pegou um maço de cartas na
bolsa de couro. Le Fever olhou desconfiado para os
papéis.
— Seu casamento parece ter azedado poucos
dias após a cerimônia — Graeham comentou.
Le Fever emitiu um som de desprezo.
— O casamento foi em Paris. Três dias mais
tarde, enquanto cruzávamos o canal, Ada me contou
o que o pai não teve coragem de mencionar antes
das núpcias: que a filha cuja mão ele me oferecera
era ilegítima. Ele nunca reconheceu Ada e Phillipa
publicamente. Eu pensei ter negociado uma união
com a filha de um barão, mas acabei ficando com
uma esposa da qual não tenho coragem de falar,
temeroso de que alguém me pergunte sua origem.
Como tal casamento pode me trazer benefícios?
— Foi para proteger a sensibilidade da esposa
que o barão escolheu agir de maneira circunspecta
e.
— Ele escondeu as moças em Paris tal qual um
segredo sórdido! E ainda é assim. — Ele sorveu o
resto do vinho num único gole.
— Pelo contrário. Depois que a mãe delas
faleceu, ele designou o próprio irmão, o cânone da
Notre Dame, como guardião e educador das
meninas. Nunca lhes faltou nada, receberam
educação e todas as oportunidades possíveis.
Sempre as visitou.
— E nesse meio tempo — Le Fever disse,
segurando a taça como se estivesse estrangulando
alguém —, rezou para que ninguém em Beauvais
descobrisse a respeito delas. Não é de se admirar
que tenha resolvido casar Ada com um inglês.
Quanto mais distante ela ficasse, melhor seria. Que
Deus o condene ao fogo dos infernos por tamanha
traição!
— Milorde sabe que. o iludiu.
— Ele mentiu para mim! Se não diretamente,
com subentendidos. Redigiu o contrato de
casamento da filha bastarda como se não houvesse
nada errado, rindo à minha custa. Diga-me uma
coisa. Sabia do esquema do barão de se livrar da
filha ludibriando um inglês?
— Não foi assim que aconteceram as coisas.
Lorde Gui só estava tentando assegurar o futuro da
filha ao entregá-la em casamento a um homem de
recursos. — O barão tinha, de fato, escondido a
origem da filha. Porém fizera isso na esperança de
que, após a consumação do casamento, o noivo
estivesse tão enamorado que perdoasse esse
deslize. Como ficara comprovado, ele se enganara.
— De qualquer modo, não, eu não sabia de nada até
duas semanas atrás quando lorde Gui me pediu para
vir para cá.
Os olhos do barão tinham estado rasos e
avermelhados ao convocar Graeham ao seu cômodo
particular. Com voz trêmula, dissera:
— Nunca revelei a ninguém em Beauvais o que
estou para lhe contar.
Havia dezanove anos, ao visitar amigos em Paris,
tivera um breve interlúdio com uma mulher
chamada Jeanne, que ele havia contratado para
costurar vestidos novos para a baronesa. Nunca
antes fora infiel à sua amada lady Christiana, mas
não havia tido forças para resistir aos encantos de
Jeanne. Nove meses mais tarde, recebera uma carta
informando que a modista tinha dado à luz duas
meninas. Depois de quatro anos, a jovem sucumbira
à febre tifóide e lorde Gui entregara a meninas ao
irmão, o cânone Lotulf. Phillipa ainda vivia com o tio
em Paris, onde tinha muitos pretendentes, ainda
que os estudos consumissem sua total atenção. Ada
tivera a mão concedida em casamento a Le Fever no
ano anterior, um arranjo do qual o barão se
arrependia amargamente.
— Milorde deve tê-lo em alta conta — Le Fever
comentou —, já que lhe confiou tal segredo e pede
que acompanhe a filha na viagem de volta a Paris.
O que poderia ter sido considerado um elogio na
boca de outro homem, pareceu pura hipocrisia para
Graeham.
— Suponho que ele estivesse apenas
desesperado — Graeham mentiu, sempre consciente
das vantagens de ser subestimado.
Na verdade, lorde Gui o considerava seu mais
confiável sargento, com excelentes habilidades tanto
em diplomacia quanto em combate, portanto, a
escolha óbvia para tirar a filha das mãos do marido,
não importando por qual meio.
— Apesar das circunstâncias do nascimento de
lady Ada, lorde Gui a ama demais, assim como a
irmã gêmea e os filhos legítimos que teve com lady
Christiana. Ele só deseja o melhor para os filhos. Se
errou ao não revelar as circunstâncias do
nascimento da moças, ele hoje lamenta
profundamente.
— E claro que tem que lamentar! Ele arruinou a
minha vida!
Graeham levantou a carta do topo da pilha.
— Aparentemente o senhor ficou irado quando
sua esposa contou a verdade.
— Faltou pouco para que eu a jogasse para fora
do barco. Aposto como você faria o mesmo no meu
lugar. Sabe o que me irrita mais nessa situação? O
fato de eu não poder fazer nada. Não posso anular o
casamento. E naturalmente não posso deixar
escapar que minha esposa é fruto de uma aventura
nas ruas de Paris. Portanto, só me resta engolir meu
orgulho e tocar a vida. Exatamente como lorde Gui
supunha que eu faria.
Graeham se colocou no lugar do mercador e
sentiu empatia, apenas por um instante.
— O futuro de Ada está garantido — Le Fever
continuou — e a reputação dela permanecerá
impecável, bem como o abençoado casamento de
lorde Gui e lady Christiana. O único a sofrer sou eu.
— E sua esposa. — Pegando a segunda carta e
deixando as demais na mesinha, Graeham a abriu e
começou a ler: — "Eu me preocupo, papai, com o
que será de mim neste casamento. Sei suportar
quando ele bate em mim. A maioria dos maridos
disciplina as esposas, porém Rolf é bastante contido
nesse aspecto. São os insultos intermináveis que me
magoam. Ontem ele disse: 'Não é de se admirar que
o grande barão Gui de Beauvais quisesse casá-la
com alguém da classe mercante e a tenha enviado
para a Inglaterra, sua bastarda de uma prostituta
parisiense. Ele ficou feliz em se livrar de você! Ah,
eu seria capaz de fazer o mesmo com tanta
facilidade.” — Graeham levantou os olhos do papel e
perguntou: — Com que frequência ameaça se livrar
dela, sr. Le Fever?
O mercador deu um sorriso afetado.
— É isso? O velho acredita que eu seja capaz de
machucar a preciosa filha?
Graeham voltou a dobrar a carta e a colocou na
pilha.
— E o senhor é?
— Isso, sargento, não é da sua conta.
— O barão fez com que passasse a ser. Na
melhor das hipóteses, sua esposa é infeliz no
casamento. Na pior, o senhor tem real intenção de
feri-la.
Le Fever se pôs de pé, os dentes arreganhados.
— Como tem a coragem de vir até minha casa a
fim de me acusar de.
— Não o estou acusando de nada. Só estou
participando a preocupação de um pai em relação à
segurança da filha.
— Não veio para acompanhá-la numa visita — Le
Fever disse com falsa candura. — Veio para levá-la
de vez.
Graeham não se deu ao trabalho de negar.
— Imaginei que o senhor ficaria satisfeito de se
livrar dela, considerando como se sente em relação
a esse casamento.
Os olhos do homem brilharam de raiva.
— Propõe tirar minha esposa de baixo do meu
teto, e eu tenho que ficar satisfeito? O que acha que
as pessoas vão dizer se minha mulher viaja e nunca
mais volta?
— Ah, as aparências. — Graeham suspirou. —
Milorde me autorizou a oferecer cinquenta marcos se
me deixar levá-la.
— Ele poderia me oferecer mil! Dez mil! Não vou
deixá-la ir. Ela sabia no que estava se metendo
quando aceitou se casar comigo. Deixe-a colher o
que semeou.
— Senhor Rolf? — Uma voz surgiu na escada de
serviço.
Le Fever se virou para encarar uma moça ruiva
de não mais do que dezasseis anos, vestida numa
túnica cinza e uma capa com capuz verde-escuro.
Ela até poderia ser considerada bonita se não
estivesse tão amedrontada.
— Olive! — Le Fever exclamou. — O que quer
esgueirando-se na minha casa?
— E-eu. bati na porta dos fundos — ela
respondeu, passando os olhos do mercador para o
estranho e vice-versa —, mas ninguém atendeu.
Seu criado está lá fora cuidando dos cavalos e disse
que eu poderia entrar. — Ela estremeceu e mostrou
um vidro azul. — Trouxe o tônico da sra. Ada.
— Muito bem, suba. — Ele fez um gesto em
direção às escadas e depois se virou para Graeham.
— Volte para aquele maldito ardiloso e diga que ele
não terá a filha de volta. Ela é minha! Vá embora
daqui!
Com movimentos calculados, como se tivesse
todo o tempo do mundo, Graeham pegou a quarta
carta da pilha e a abriu.
— Não me ouviu? — Le Fever indagou, as mãos
cerradas ao lado do corpo. — Saia ou chamarei meu
criado para expulsá-lo. Byram é muito bom com os
punhos, posso garantir que.
— "Meu marido não tenta esconder seus
inúmeros encontros com outras mulheres" —
Graeham leu. — "De fato, ele se gaba das suas
conquistas com o criado, Byram, mesmo quando
posso ouvir."
Le Fever foi até a janela que dava para o
estábulo e gritou:
— Byram! Guarde Ebony e venha até aqui.
Preciso da sua ajuda.
— Estou indo, senhor.
Graeham continuou a ler:
— "Rolf parece se orgulhar dos seus casos com
as esposas dos homens importantes cuja influência
corteja com avidez. Talvez ao seduzir as mulheres
desses homens se sinta como eles. Há poucos dias o
ouvi gabando-se com Byram de ter dormido com as
esposas de quatro conselheiros, inclusive o do nosso
próprio distrito." — Graeham levantou os olhos do
papel e o encarou.
— Seria o conselheiro John Huxley, não? Lorde
Gui o conheceu quando ele estudou em Paris. Sabia
disso?
Duas manchas vermelhas surgiram nas faces de
Le Fever.
Voltando a atenção para a carta, Graeham
continuou:
— "Pelo que pude entender, Rolf foi ousado o
bastante para cobiçar a esposa do administrador do
rei. Por mais gélidas que sejam nossas relações,
tremo ao pensar o que poderá acontecer ao meu
marido caso se torne público que ele passou para
trás homens tão importantes." — Graeham dobrou o
papel. — Eu diria que esse é um ponto a ser
considerado, não? Não seria uma pena se a
correspondência da sua esposa acabasse em mãos
erradas?
Le Fever se inclinou na janela e gritou: — Byram!
Eu. eu não preciso mais de você. Volte ao trabalho.
— Le Fever tinha uma expressão assassina no rosto
ao se virar novamente. — Seu bastardo chantagista.
Deixe-me ver essas cartas.
— Acertou na parte do bastardo — Graeham
disse ao entregar as cartas. — Quanto à parte da
chantagem, não precisamos chegar a tanto.
— Ouso dizer que não precisamos mesmo. —
Com um ar triunfante, o mercador atirou os papéis
na lareira. — Parece que o chamam de Fox somente
pela cor dos cabelos, no fim das contas. Fico feliz
em saber que o julguei de maneira errônea.
— Ah, não julgou, não — Graeham rebateu com
um sorriso. — Essas eram apenas cópias. Eu mesmo
as escrevi antes de partir de Beauvais. As originais
estão a salvo nos aposentos particulares do barão.
Le Fever desmoronou na cadeira, o rosto lívido.
— A raposa tem uma armadilha própria, pelo
visto. E isso, então. Se eu não deixar Ada partir,
serei arruinado.
— Deixará de se sentir tão mal ao saber que
lorde Gui me instruiu a entregar os cinquenta
marcos independentemente da sua cooperação? Eu
disse a ele que estava sendo generoso demais.
— Eu estou no comércio há bastante tempo para
saber que tamanha generosidade não vem sem uma
condição.
— Estará proibido de mencionar lady Ada a
qualquer pessoa. Mais especificamente, deverá
manter em sigilo as circunstâncias acerca do
nascimento dela.
— Garanto que não tenho intenção alguma de
contar a ninguém. Entretanto cinquenta é pouco.
— É tudo o que trouxe comigo, e é mais do que
merece. E pegar ou largar.
Um músculo se retesou no maxilar do mercador.
— Pode me dar, então.
— O dinheiro está guardado na São Bartolomeu.
Será seu quando eu voltar para pegar a sra. Ada. —
Graeham se levantou. — Voltarei à noite, na hora
das Completas.
— Ela estará pronta. — Quando Le Fever se
levantou, estreitou os olhos para algo num canto.
Graeham se virou e viu a jovem da capa verde
parada na escada de serviço. — Olive, há quanto
tempo está aí?
— Perdão, senhor, mas mamãe ficará furiosa se
eu voltar para a loja sem o pagamento do tônico.
Irado, Le Fever pegou dois centavos e jogou para
a moça. Ela gritou e cobriu o rosto. As moedas
saltaram no chão e rolaram.
— Desculpe — Olive murmurou, tirando as mãos
do rosto e se baixando para pegar as moedas. —
Sou tão desastrada.
Ela encontrou uma das moedas debaixo de uma
cadeira, a outra Graeham pegou de perto dos seus
pés e entregou-lhe. A jovem balbuciou um
agradecimento, ruborizando.
— Trabalha para o farmacêutico? — ele
perguntou.
— Sou aprendiz da minha mãe.
— Se tivesse de preparar o tônico para uma
semana, ele continuaria bom?
— Sim, desde que não esquente muito.
— Ótimo. — Graeham desamarrou a bolsa de
moedas e contou catorze centavos, depois juntou
mais quatro como gratificação. Podia se dar ao luxo
de ser generoso, visto que o barão tinha lhe dado
dinheiro mais do que suficiente para completar sua
missão. — Pegue um xelim e meio. E mais do que
suficiente. Preciso do remédio até a hora das
Completas.
— Sim, senhor, estará pronto. Passar bem.
— Até mais.
Depois que ela partiu, uma preocupação surgiu, e
Graeham perguntou ao mercador:
— Sua esposa, como ela está? Está bem o
bastante para viajar, não?
O homem o encarou com um ar de
contentamento.
— A meu ver, isso é um problema inteiramente
seu. A partir desta noite, lavo as minhas mãos.
CAPÍTULO III
— Hugh?
Hugh parou de admirar um alazão e viu que
Robert de Ramswick sorria para ele.
— Rob!
Os homens se cumprimentaram com tapinhas
nas costas. no seu costume sóbrio, Robert parecia
um jovem diácono. Ele nunca fora de ostentar a
riqueza.
— Pensei que o encontraria diante dos cavalos de
guerra. — Robert deu uma olhadela ao redor. —
Lady Joanna.
— Está bem ali. — Hugh apontou para a irmã
sentada com os olhos fechados e o queixo apoiado
nas mãos. O véu de linho estava torto, e ela estava
descalça.
Robert cobriu os olhos com a mão para poder
enxergar na claridade. Rindo, comentou:
— Ela já era assim quando menina. Havia sempre
alguma coisa desarrumada nela.
Tudo o que ele sabia a respeito de Joanna desde
que a vira havia muitos anos era que tinha se
casado com um mercador de seda já falecido. Dizia
a si mesmo que não se importava com o fato de ela
ter se casado com alguém de uma classe inferior.
Sua maior preocupação era encontrar uma boa mãe
para as filhas.
Era estranho pensar em Robert como um viúvo
com duas meninas. Embora fosse três anos mais
velho do que Hugh, tinha aparência mais jovem. O
fato de não ser tão urbano ou viajado, a sua
devoção à terra e seu profundo senso de retidão o
tornavam o oposto completo de Hugh. Engraçado
como dois homens tão diferentes conseguissem
manter os laços de amizade.
— Pensei que traria as meninas. — Hugh
comentou, olhando ao redor. — Onde elas estão?
— Por ali. — Robert apontou para umas barracas.
— Margaret está comprando doces para elas.
— Sua prima Margaret? — Hugh perguntou
curioso.
— Sim, ela veio para Ramswick depois da morte
de Joan para cuidar das meninas. Pensei que
soubesse disso. Bem, vai ou não me reapresentar à
sua adorável irmã?
Hugh o levou até Joanna e disse:
— Está acordada, irmãzinha?
— Não me amole. — respondeu ela sem abrir os
olhos.
— Que pena que não deseja ser incomodada,
milady — Robert disse.
Ela escancarou os olhos.
— Oh! L-lorde Robert?
Ele se curvou num cumprimento.
— É um prazer voltar a vê-la, lady Joanna.
Ela se pôs de pé apressada, alisando o vestido e
ajustando o véu. Fingindo tentar ajudá-la, Hugh
tirou o véu e o guardou na bolsa.
— Hugh!
— É um pecado cobrir cabelos bonitos como os
seus.
— Um pecado mortal, milady — concordou
Robert. Joanna olhou para o irmão por debaixo dos
pestanas enquanto calçava os sapatos.
— Papai! Papai! — Uma loirinha de não mais do
que cinco anos veio correndo e se atirou nos braços
de Robert.
— Esta é minha filha Catherine — disse ele,
sorrindo.
— Catherine, cumprimente sir Hugh e lady
Joanna.
A criança escondeu o rosto no pescoço do pai, e
Robert emitiu um som, misto de riso com um
resmungo.
— O que é essa coisa grudenta no seu rosto?
— Torta de figos fritos — uma moça respondeu
ao se aproximar com outra menina no colo.
Robert apresentou Margaret e Beatrix aos
irmãos. Margaret era bela, de faces rosadas e olhos
calorosos. A túnica de lã modesta fazia-a parecer
uma viúva, mas os cabelos estavam descobertos.
Embora tivesse quase trinta anos, era uma donzela,
pois recusara todas as propostas de casamento.
— Comeu torta de figos? — Robert perguntou à
filha.
— Deixe-me ver. — Ela afastou o rosto. — Posso?
— Ele lambeu a face rosada, e ela riu. — Hum. Que
delícia!
A menina mais nova estendeu os bracinhos na
direção dele. Robert colocou Catherine no chão e
pegou Beatrix do colo da prima. O olhar se deteve
no rosto de Margaret, e ele sorriu.
— Também andou comendo, não é? — Ajeitando
a caçula no colo, estendeu a mão e limpou o lábio
inferior da moça. Margaret o fitou e corou.
Depressa, os dois desviaram os olhos.
Joanna lançou um olhar de especulação para o
irmão.
— Muito bem. — Hugh bateu as mãos numa
demonstração de alegria forçada. — Quem quer ver
as corridas de cavalos?
— Ele a ama — Joanna comentou com Hugh
conforme passeavam perto das barracas
abarrotadas de mercadorias de todas as partes do
mundo. A feira era uma mistura de aromas que
atiçavam a imaginação e faziam as pessoas
pensarem em lugares remotos.
— Ele não a ama — Hugh rebateu.
— Não os viu esta tarde? As trocas de olhares e
gestos? Olhe ali. Eles parecem uma família.
Robert e Margaret andavam mais à frente,
Beatrix adormecida no colo do pai, Catherine,
chupando dois dedos, os acompanhava de mãos
dadas com a moça. Já era o meio da tarde e as
crianças estavam exaustas.
— Eles nunca poderão ser uma família, são
primos de terceiro grau.
— Primos de terceiro grau casam-se o tempo
inteiro — ela disse —, bem como os de segundo. —
Apesar de a Igreja condenar casamento
consanguíneos até o sétimo grau. — Robert é tão
devoto assim?
— Os pais dele são, e ele é devotado aos pais.
— Mas se não fosse por eles — ela insistiu —,
Robert teria se casado com Margaret?
— Estiveram apaixonados quando eram jovens.
Está tudo terminado há muitos anos.
Joanna viu-o guiar a prima até uma barraca, a
mão pousada nas costas dela.
— Eles moram sob o mesmo teto — comentou.
— Você e Graeham vivem sob o mesmo teto.
— Não é a mesma coisa. — Ela corou. — O
sargento e eu. Nós. Isso nunca.
— Nem Robert e Margaret. Mesmo que ele a
amasse, é um homem muito honrado para
comprometê-la, sabendo que nunca poderia se casar
com ela.
— Eles não podem conseguir o consentimento
papal?
— Cerca de onze ou doze anos atrás ele fez uma
petição junto à cúria romana, mas o pedido foi
negado. Ele e Margaret ficaram arrasados, mas
depois superaram. Robert consentiu que os pais
arranjassem o casamento com Joan, e ele foi um
bom marido para ela.
— Ele devia ter se casado com Margaret sem o
consentimento do Papa.
— Robert foi feliz ao lado de Joan.
— Existem pessoas com o dom da perseverança
— disse ela, ecoando as palavras de Graeham —,
que fazem o melhor que podem nas situações
adversas. Mesmo assim, ele deveria ter se casado
com Margaret.
— Talvez, mas isso ficou no passado. — Hugh
segurou a irmã pelos ombros e a encarou. — Ele
quer se casar novamente, Joanna. Esta pode ser
uma oportunidade maravilhosa para você.
— Você me disse que ele quer se casar para dar
uma mãe para as filhas, mas elas já têm Margaret e
parecem adorá-la, assim como ele. Porque Robert
sente-se obrigado a substituí-la por uma esposa?
— Não sei. Ele é um homem, afinal de contas.
Com necessidades. E o que isso importa? Ele quer
uma esposa e está disposto a considerá-la para tal.
É um bom homem, nobre, com uma bela
propriedade. Seria o marido perfeito. Não o
desencoraje porque acredita que ele esteja
apaixonado pela prima. Isso é passado.
Mais adiante, Robert passou Beatrix para os
braços de Margaret e deu algumas moedas ao
vendedor, que pegou três tangerinas e as estendeu.
Dando um passo para trás, Robert as jogou para o
alto e começou a fazer malabarismos para a
felicidade da prima, que ria contente. Robert sorriu,
orgulhoso, em resposta à reação de Margaret, e
nem olhou na direção de Joanna.
CAPÍTULO IV
***
— Posso lhe falar a sós, milady? — Robert
perguntou a Joanna.
Aquele era o momento pelo qual Joanna esperara
o dia inteiro. Com o sol se pondo e pintando o céu
em tons de laranja, era evidente que era hora de
uma resposta.
— Sim, milorde, é claro.
Hugh e Margaret os olharam de esguelha quando
os dois começaram a se afastar. Hugh piscou na sua
direção, feliz por seu esquema estar funcionando.
Margaret desviou o olhar, a expressão vazia.
Aquela rua estava mais escura e mais silenciosa
e, depois que dois garotos passaram correndo,
praticamente deserta. Os dois caminhavam em
silêncio até Robert tocar no seu cotovelo. Eles se
viraram de frente, e Robert respirou fundo:
— Pensou a respeito do meu pedido?
— Estou muito honrada que queira se casar
comigo, lorde Robert. Aprecio muito a sua
companhia e suas filhas são maravilhosas. Contudo,
não posso aceitar.
— Posso saber por quê?
A imagem de Graeham Fox se materializou na
mente dela. A senhora é feliz? ele perguntara.
Aquilo, porém, não tinha nada a ver com o sargento.
Não poderia ser. A questão era Margaret.
Joanna ergueu o olhar e o fitou.
— Por causa da sua prima.
Robert fechou os olhos por um breve instante.
— Margaret. Eu lhe disse, ela partirá de
Ramswick depois que eu.
— Eu sei. — Joanna pousou uma das mãos no
braço dele. — Ela vai fazer os votos sagrados.
Mesmo assim, continuará a amá-la.
— Eu. — Robert balançou a cabeça. — Nada pode
acontecer entre mim e Margaret. Ela é minha prima.
— Em terceiro grau. Sei que pretendeu se casar
com ela no passado.
— A cúria romana negou santificar o matrimônio.
— Deveria ter se casado mesmo assim. Ainda há
tempo.
O rosto dele revelava seu conflito interior.
— Meus pais. Eles morreriam de desgosto.
— Por algum motivo, duvido que isso possa
acontecer.
— Não os conhece, milady. Eles são
absurdamente devotos. Se eu desrespeitasse a
autoridade da Igreja, eles acabariam morrendo de
fato.
— Achei que meu pai fosse morrer quando me
casei com Prewitt. Ele ficou com raiva, furioso, na
verdade, mas continua vivo até hoje.
— E vocês não se falam até hoje. Perdão, milady.
Isso não cabe a mim julgar.
Joanna segurou as duas mãos de Robert.
— Só porque meu pai me repudiou, não quer
dizer que o mesmo vai lhe acontecer. William de
Wexford é um homem amargo. Pelo que sei dos
seus pais, eles parecem boas pessoas. Eles o
perdoarão.
— Eles ficarão chocados, magoados. Furiosos.
— Está preocupado em ser deserdado?
— Só me importo com Ramswick, e meu pai me
deu a propriedade há muito tempo, não pode tomá-
la de mim.
— Então, deixe-os bravos. Eles o amam,
acabarão superando tudo.
— E se não superarem?
— Nunca fez nada contra a vontade deles, nem
quando era moço?
— Não, jamais.
— Então já está mais do que na hora. — Joanna
riu. — Precisa fazer algo muito significativo para
compensar essa falha. Eu diria que casar com
Margaret é mais do que suficiente.
— Se eu me casasse com ela, seria uma traição
para com meus pais — Robert rebateu.
— Prefere trair Margaret, então?
Ele empalideceu e soltou as mãos.
— Traí-la!
— Está traindo o amor que sente por ela, um
amor que nunca acabará, não importa o quanto se
esforce. Como acha que ela se sente agora, sabendo
que pediu a minha mão?
— Ela aceita. Foi o que me disse.
— Assim como milorde aceitaria, caso a situação
fosse inversa, imagino.
— Ela não vai se casar, vai se tornar freira.
— E se ela estivesse pensando em se casar, unir-
se a outro homem, jurar fidelidade perante o altar,
partilhar a cama com.
— Ela não está!
— Não ficaria tão satisfeito, posso apostar.
— Não estou satisfeito, pelo amor de Deus! — ele
rebateu.
— Conformado, então — Joanna continuou,
achando interessante o modo como o fleumático
Robert começou a se exaltar, um nervo pulsando na
lateral do pescoço.
— Não se importaria se ela aceitasse se casar
com, digamos. Hugh?
— Hugh! — Robert exclamou, parecendo tão
alterado que Joanna se sentiu tentada, só por um
instante, a assegurá-lo da verdade. Que Hugh era
um espírito indomado demais para se prender aos
laços do matrimônio.
Em vez disso, ela acabou dizendo:
— Eu não deveria ter mencionado nada. Esqueça
o que.
— Hugh? — Robert a agarrou no braço chegando
a machucá-la com a intensidade do aperto. Muito
interessante. — Ele pediu a mão de Margaret?
— Não. Milorde, solte-me, acabará deixando
marcas. Ele a soltou e deu um passo para trás,
indignado.
— Ele tem a intenção?
— Eu não devia ter dito nada. Foi muito
indiscreto da minha parte.
— Ele vai? — Os punhos de Robert se fecharam.
Joanna esperava que ele e Hugh não acabassem às
vias de fato por causa das suas artimanhas, mesmo
assim, decidiu arriscar.
— Milorde, por favor — disse ela, retrocedendo.
— Eu não deveria ter mencionado isso.
— Jesus Cristo. — ele murmurou, pressionando
os punhos nas têmporas.
— Seria melhor voltarmos para junto dos outros
— Joanna sugeriu.
Ele estava parado com as mãos no quadril, os
olhos cerrados, o peito arfante.
— Vá na frente — ele disse depois de um minuto.
— Vou daqui a pouco.
Virando-se, ela segurou a saia e se dirigiu de
volta à rua Aldgate.
— Eles estão chegando! — Alice e Catherine
gritaram ao mesmo tempo ao ouvirem o distante
rufar dos tambores, sinalizando a aproximação do
desfile.
A procissão tinha começado do lado oeste da
cidade, próximo à Catedral de São Paulo e
terminaria no lado leste, diante de Holy Trinity.
Alice e Catherine tinham se tornado inseparáveis
no decorrer do dia. Vendo como Alice interagia com
a menina mais nova, brincando e conversando,
Joanna percebeu o quanto ela devia sentir falta dos
irmãos, e como devia gostar do papel de irmã mais
velha.
Robert vinha se mostrando nervoso e distante
desde a conversa com Joanna. Ele não parecia nem
um pouco interessado nas festividades, mal
despregando os olhos da prima.
— Robert não me parece muito feliz — Hugh
comentou.
Eles estavam à espera do desfile ao lado de
Margaret e das meninas. Robert, que dissera não
estar interessado, sentou-se nos degraus da igreja
de Santo André com a adormecida Beatrix no colo.
— Ele devia estar feliz. Afinal, você aceitou o
pedido de casamento.
— Bem, quanto a isso. Eu.
— Joanna. — Hugh gemeu. — Ah, diabos!
— São eles: Gog e Magog! — Catherine apontou
para a caricata representação dos gigantes que se
apresentavam para a multidão com gritos conforme
avançavam pelas ruas.
Em seguida vinham os cidadãos mais
proeminentes, liderados pelos três homens que
representavam os interesses do rei em Londres: o
administrador judiciário e os dois barões: Gilbert de
Montfichet e Walter, filho de Robert e neto de
Richard, nos seus mais belos costumes.
Joanna notou que lorde Gilbert tinha envelhecido
desde que ela servira lady Fayette. Continuava belo
e garboso, mas os cabelos negros haviam
embranquecido e o rosto estava mais marcado. O
barão pareceu notá-la ao passar os penetrantes
olhos azuis pela multidão e, por um instante, eles
demonstraram confusão.
Não tinham se falado desde que ela aceitara se
casar com Prewitt, preterindo o filho mais novo dele.
Ela ficou se perguntando se ele sabia alguma coisa
sobre o rumo que sua vida tomara.
Inclinou a cabeça num leve cumprimento. Depois
de uma ligeira hesitação, ele retribuiu a saudação e
seguiu em frente.
Os dois delegados vieram depois deles e, em
seguida numa única fila, as duas dúzias de
conselheiros, seus porta-estandartes e sargentos.
Por fim passaram os diretores das associações de
comércio, agrupados de acordo com os diversos
distritos. Lionel Oxwyke, a expressão mais azeda do
que nunca, a reconheceu e fez um aceno com a
cabeça. Rolf Le Fever a cobiçou como se ela
estivesse nua na multidão. Joanna se empertigou e
o enfrentou com o olhar. Ele cedeu, olhando para o
outro lado.
Dançarinas e mais músicos fechavam o desfile.
Conforme a multidão começava a dispersar, Joanna
notou que Margaret não estava mais por perto.
Olhando ao redor, viu que ela caminhava na direção
de Robert. Ele ergueu o rosto com a aproximação
dela, repentinamente animado pela primeira vez
naquela noite. Sentando-se ao lado dele na
escadaria da igreja, ela começou a falar.
— Está encarando — Hugh a repreendeu. Joanna
se virou, recompondo-se.
— Alice, Catherine, fiquem perto de mim. Eu não
quero que se percam na multidão.
Um minuto mais tarde, Margaret e Robert, agora
com Beatrix apoiada no ombro, juntaram-se a eles.
— Papai, perdeu tudo! — Catherine exclamou.
— Vi Gog e Magog — ele replicou. — Você ficou
assustada?
— Não, Alice me disse que eram de mentira.
— Obrigado, Alice — disse ele —, por cuidar de
Catherine.
— Não quis que ela ficasse com medo. — Alice
deu de ombros.
Margaret se baixou diante dela para conversar
frente a frente.
— Alice, é verdade que não tem parentes?
O sorriso de Alice se desfez e a menina relanceou
o olhar apreensiva para os rostos dos adultos.
— Não vou para nenhum abrigo.
Temerosa de que a menina tentasse fugir
novamente, Joanna colocou a mão no ombro dela.
— Ninguém vai fazer isso, Alice.
— Pensei que talvez você quisesse viver em
Ramswick — Margaret comentou.
— Ramswick
— É a minha casa — Robert esclareceu. — Não
passa de um punhado de terras.
— Uma fazenda? — Os olhos de Alice se
iluminaram.
— Sim, várias pequenas fazendas compondo uma
grande, na verdade.
— Você viveria na casa da fazenda e dormiria no
quarto das meninas — Margaret disse e, olhando
para Robert, completou: — Há uma cama perfeita
para o seu tamanho, um colchão de penas e uma
linda colcha cor-de-rosa.
— Diga sim! — Catherine implorou, puxando a
manga de Alice.
Alice olhava para Robert e para Margaret,
obviamente surpresa.
— Por quê?
— Nós gostamos de você, e Catherine a adora —
Margaret explicou.
— Vou ser um tipo de criada, é isso?
— Não, será minha protegida — Robert disse. —
Eu a educarei como se. — Respirou fundo, a voz
demonstrando emoção. — Como se fosse uma filha.
— Terá belos vestidos e receberá educação. O
capelão de lorde Robert a ensinará a ler e a fazer
contas. Aprenderá a administrar uma casa e,
quando tiver idade o suficiente, nós arranjaremos
um homem de boa família para se casar, um que
tenha uma casa e, assim, você terá seu próprio lar.
Gostaria que isso acontecesse? — Margaret
perguntou.
— Isso foi ideia sua? — Alice perguntou.
— Sim. — Margaret olhou para Joanna e pareceu
perturbada por um instante. — Desculpe. Eu deveria
tê-la consultado já que.
Então Robert ainda não contara a ela sobre a
recusa do pedido.
— Não há porque me consultar — Joanna
respondeu num tom que esperava esclarecesse a
situação.
Margaret se levantou e olhou de Joanna para
Robert, que assentiu com a cabeça. Eles se
perderam nesse olhar por um longo momento.
— E então, Alice, acha que gostaria de viver em
Ramswick? — Joanna perguntou.
— Tem certeza de que concorda com isso,
senhor? — Alice perguntou a Robert.
— Eu ficarei muito feliz se vier connosco, Alice,
bem como lady Margaret imaginou. — Com um olhar
afetuoso para a prima, completou: — Ela é uma
mulher muito inteligente.
— Aceite. — Hugh deu um empurrãozinho na
menina. Alice os olhou sorrindo, o queixo
ligeiramente trêmulo.
— Sim.
Catherine emitiu um gritinho de contentamento.
— Obrigada, papai. Obrigada, tia Margaret. Vou
ter uma irmã mais velha de novo!
— Onde está Robert? — Hugh perguntou ao notar
o fim das festividades. — As crianças estão
cansadas.
Joanna, em cujos ombros Beatrix dormia no
momento, olhou ao redor e viu um casal perto da
fogueira.
— Lá estão eles. — Ela apontou.
Robert falava e Margaret ouvia. Ele parecia muito
envolvido na conversa, os gestos começaram a se
ampliar, a expressão se mostrou angustiada.
Margaret levantou as mãos, e ele as tomou entre as
suas, puxando-a para perto.
— Está encarando de novo — Hugh disse
baixinho.
— E você, não?
Soltando uma das mãos, Robert fez uma carícia
tímida no rosto da moça, que fechou os olhos. Ele
continuou a falar, e sua postura se mostrava
determinada. Ela assentiu e abriu os olhos nos quais
lágrimas brilhavam. Robert enxugou-as com os
polegares e disse algo com expressão suplicante.
Margaret assentiu e disse "sim". Joanna conseguiu
ler os lábios dela ao aceitar o pedido de Robert. O
rosto dele se iluminou de felicidade. Também tinha
as faces húmidas com as próprias lágrimas. Robert
segurou o queixo de Margaret e o inclinou, baixou a
cabeça, tocou-a nos lábios e se afastou.
Pegando-a nos braços, voltou a baixar a cabeça e
a beijou. Um beijo de verdade, dessa vez. Ela
pareceu momentaneamente atordoada, mas em
seguida, retribuiu o braço e o beijo. Um beijo que se
prolongou até terem de se afastar para poder
respirar.
Joanna sentiu uma alegria apertando-lhe o
coração e humedecendo seus olhos.
Hugh pigarreou.
— Isso só pode ter o seu dedo — disse ele de
modo acusatório.
Joanna se virou de frente para o irmão, contente
por ver que ele também parecia emocionado.
— Não me parece indiferente a essa reviravolta
nos fatos.
— Isto é por causa da fumaça das fogueiras —
ele disse, enxugando os olhos.
— Ah, sim.
— Ele teria sido um excelente marido, Joanna.
Espero que saiba o quanto é tola.
Ela suspirou e pensou em Graeham Fox.
— Lamento informar que sei disso já há algum
tempo.
CAPÍTULO V
FIM