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TRAMAS DO DESTINO

SILKEN THREADS
Patrícia Ryan
Londres, 1165
Soldado da fortuna
Graeham Fox tem uma missão secreta: resgatar
a filha ilegítima do seu lorde, libertando-a do
domínio de um marido abusivo. Como pagamento
por seu serviço, ele receberá a mão da irmã gêmea
dela em casamento, e uma vasta propriedade, muito
mais do que um simples soldado poderia almejar.
Atacado em Londres, Graeham escapa por pouco
de ser morto, e tem a oportunidade de se recuperar
na humilde moradia de Joanna Chapman, a
encantadora viúva de um mercador de sedas.
As experiências do passado ensinaram Joanna a
não confiar nos homens, muito menos num atraente
e misterioso como Graeham. Mas o forte
magnetismo dele e seu toque sedutor desencadeiam
em Joanna uma paixão avassaladora. Dividido entre
a ambição e o desejo, Graeham vê seu futuro por
um fio, e somente o amor de Joanna poderá salvá-
lo.
CAPÍTULO I
Maio de 1165, Distrito West Cheap, Londres
Como se diz a um homem que você está ali para
levar a mulher dele embora? Graeham se perguntou
ao bater à porta pintada de vermelho da residência
de Rolf Le Fever na rua Milk.
Tinha pensado naquilo durante todo o trajeto
tempestuoso da travessia do canal da Mancha e nos
dois dias de viagem de Dover a Londres. Ainda
assim, não encontrara uma resposta. A tarefa de
levar uma mulher para longe do marido era uma
questão delicada, uma que
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demandaria diplomacia. ou força bruta.
Automaticamente levou a mão à adaga presa ao
cinto, esperando não ter de colocá-la em uso.
Graeham ergueu a mão para segurar a argola de
ferro presa à porta e voltar a bater quando ouviu
passos se aproximando, acompanhados da voz de
um homem.
— Onde diabos você se meteu, sua inútil? Não
ouviu baterem?
A porta se abriu com um rangido de dobradiças
enferrujadas. O loiro que a abriu parecia ter sua
idade, embora Graeham soubesse que o outro
estava perto dos trinta e cinco, dez anos a mais do
que ele. Era mais alto que a média, mas não o
alcançava. Pálido, de olhos azuis e estrutura
delicada, vestido com uma túnica de seda verde
amarrada por um cinto ornado de jóias, Rolf Le
Fever estava mais para o retrato de um cortesão, ou
o que ele imaginava que um cortesão deveria se
parecer, do que de um mercador, por mais próspero
que fosse.
Le Fever olhou Graeham de alto a baixo, com a
expressão de um homem que contempla um inseto.
Era de se esperar, sujo e barbado, com a túnica e as
perneiras de couro imundas da viagem e o cabelo
solto, Graeham parecia mais um criado que estava
ali para limpar o urinol.
— Rolf Le Fever? — Graeham perguntou, embora
não houvesse motivos para duvidar quem estava
diante dele.
— Comerciantes devem se dirigir para a porta
dos fundos. — Le Fever retrocedeu e estava para
fechar a porta quando foi impedido pela mão de
Graeham.
— Fui enviado por Gui de Beauvais.
A menção do nome do sogro, Le Fever voltou a
abrir a porta lentamente.
— Lorde Gui enviou você?
Graeham abriu a bolsa de couro que trazia,
retirou um pergaminho selado com o brasão do
barão e o entregou ao mercador.
— Eis a carta de apresentação de milorde.
Le Fever quebrou o lacre de cera, retirou a fita e
abriu a carta. A boca movia-se silenciosamente
enquanto ele decifrava as palavras.
Escolhendo ser diplomático, pelo menos naquele
instante, Graeham disse:
— Peço desculpas por minha aparência. Viajei
boa parte da semana e acabei de chegar à cidade.
— Certo. — Le Fever voltou a fechar a carta. —
Onde está sua montaria, nesse caso?
— Eu as deixei.
— Tem mais de uma?
— Duas. — Uma para mim e a outra para sua
esposa, completou mentalmente. — Eu as deixei na
São Bartolomeu.
Seguira as instruções de lorde Gui ao se dirigir à
hospedaria monástica localizada do lado de fora dos
muros da cidade em vez de ir a uma das inúmeras
estalagens populares. O barão tinha elogiado a
hospitalidade do monastério, mas Graeham não se
demorara o bastante para usufruí-la. Assim que
chegara, havia acomodado os cavalos cansados no
estábulo e se dirigira a pé para lá, passando por
Aldersgate, um dos sete portões de acesso à
Londres central, caminhando pelas ruas abarrotadas
de West Cheap, consciente da sua missão.
consciente demais, talvez, pois quem sabe Le Fever
se mostrasse mais receptivo diante de um emissário
limpo e bem vestido.
A verdade era que estava ansioso. Coisa fácil de
entender, considerando-se a urgência da sua
missão. E seu prêmio, caso fosse bem-sucedido.
— Posso entrar? — perguntou. — Tenho um
assunto importante para discutir com o senhor.
O olhar translúcido de Le Fever avaliou Graeham
ao dizer:
— Lorde Gui o descreve como um assistente. Isso
não é muito específico.
— Sou um dos sargentos do barão.
— Ah. Um militar — Le Fever disse, como se isso
explicasse a aparência de Graeham. Enfiou a carta
no cinto e convidou: — Entre. — Virando-se, passou
por um pequeno vestíbulo e subiu um lance de
escadas até o segundo andar, sendo seguido por
Graeham, que notou que as escadas continuavam
até um terceiro andar.
— Você é inglês — Ele observou ao liderar o
caminho até uma sala de bom tamanho, decorada
com ostentação e muitas cortinas de seda.
— Sim, sou. — Graeham não pôde deixar de
sorrir, satisfeito pelo fato de os onze anos vividos no
condado franco de Beauvais não terem apagado por
completo seu sotaque nativo.
Le Fever indicou ao visitante uma das cadeiras
entalhadas diante da lareira acesa e depois se dirigiu
a um armário pintado com leopardos e flores-de-lis.
— Qual seu nome, sargento?
— Graeham.
—Graeham de quê?
— Alguns na França me chamam de Graeham de
Londres, pois nasci aqui. Porém também me
chamam de Graeham Fox.
— Fox? Uma raposa. Devido à sua astúcia?
— Por causa do meu cabelo. — E também pela
astúcia, mas às vezes era melhor ser subestimado.
— Sob a luz do sol, ele tem um brilho arruivado. —
Desde que estivesse limpo, o que não era o caso,
pois seu último banho tinha sido em Beauvais.
A expressão de Le Fever oscilou entre indiferença
e desdém.
— Imagino que terei de acreditar na sua palavra.
— Retirou uma jarra e uma taça de prata da
prateleira. — Aceita algo para refrescar a garganta?
— Cerveja se tiver. Sinto falta da cerveja inglesa.
— Criada! — Le Fever gritou. Depois de um
instante de silêncio, aproximou-se da escada e
exclamou: — Aethel! Onde diabos você se meteu?
Uma cadeira foi arrastada no andar de cima e
passos apressados ecoaram na escada. Uma mulher
rechonchuda apareceu, segurando um avental numa
das mãos e uma colher na outra.
— Desculpe, senhor. Eu estava lá em cima
alimentando a sra. Ada e não ouvi.
— Vá até a despensa e traga cerveja para nosso
convidado. Depressa!
— Sim, senhor. — Aethel lançou um olhar curioso
na direção de Graeham, mas se apressou em
cumprir as ordens.
Le Fever ergueu a taça até os lábios e se sentou
para saborear o vinho. Anéis tremeluziam nos dedos
e, quando ele cruzou as pernas, Graeham reparou
que debaixo da bainha da túnica havia cintas com
bordados intricados prendendo as meias, que em
vez de serem as usuais de lã eram de seda. Uma
afetação compreensível, Graeham supôs, já que o
homem não era apenas o comerciante de sedas
mais proeminente de Londres, mas também o chefe
da recém-fundada associação dos comerciantes de
tecidos.
— Não consigo deixar de imaginar — Le Fever
falou por sobre a borda da taça — qual assunto de
grande importância levaria lorde Gui a enviar um
soldado para a casa da filha.
— O barão sente falta da sra. Ada e quer vê-la.
Por causa da sua idade avançada e da saúde
precária, seria imprudente que se pusesse numa
viagem tão longa. Ele me enviou para acompanhar a
filha.
— Ele quer que a acompanhe até Beauvais?
— Até Paris. — Graeham respondeu com cautela.
— Ele a encontrará lá.
— Sim, claro — Le Fever zombou. — Ada jamais
colocou os pés no castelo do próprio pai, não é
mesmo? Diga-me uma coisa. A baronesa faz ideia
das gêmeas bastardas que o marido teve em Paris
com uma prostituta?
— Não. E, pelo que sei, a mãe delas era modista.
— Elas se autodenominam de diversas maneiras.
— Tomou um longo gole de vinho, depois limpou a
boca com o dorso da mão. — Sinto dizer que sua
viagem foi em vão. Não tenho intenção alguma de
permitir que minha esposa viaje na companhia de
um completo estranho, ainda mais. — Seu olhar
passeou pela figura de Graeham.
— Asseguro-lhe que ela estará a salvo comigo.
— Essa não é a questão. — Le Fever sorriu. —
Não é costume que as mulheres viajem
desacompanhadas dos maridos. Isso refletiria mal
em mim. Sou um homem influente, apesar do que o
barão possa imaginar.
Algo caiu no pavimento superior, mas o mercador
nem desviou os olhos do visitante.
— Está consciente de que sua esposa manteve
correspondência com o pai depois de se casar?
— E?
— Seis meses atrás, as cartas pararam de
chegar.
Aethel reapareceu e serviu a cerveja, sorriu antes
de voltar a subir as escadas. Momentos depois, um
novo arrastar de cadeira e troca de palavras nas
vozes femininas abafadas no andar de cima.
Seguindo o olhar de Graeham para o teto, Le
Fever disse:
— Minha esposa está doente desde a época do
Natal. Depois que ela se recuperar, voltará a
escrever para o pai. E por isso que ele quer vê-la,
porque ela parou de escrever?
— Isso. — Ele ganhou alguns instantes ao tomar
um gole de cerveja. Era amarga, mas parecia a
bebida dos deuses. Era o gosto da Inglaterra. — E
também por causa do que ela escreveu nas cartas.
Depositando a caneca numa mesinha ao lado da
cadeira, Graeham pegou um maço de cartas na
bolsa de couro. Le Fever olhou desconfiado para os
papéis.
— Seu casamento parece ter azedado poucos
dias após a cerimônia — Graeham comentou.
Le Fever emitiu um som de desprezo.
— O casamento foi em Paris. Três dias mais
tarde, enquanto cruzávamos o canal, Ada me contou
o que o pai não teve coragem de mencionar antes
das núpcias: que a filha cuja mão ele me oferecera
era ilegítima. Ele nunca reconheceu Ada e Phillipa
publicamente. Eu pensei ter negociado uma união
com a filha de um barão, mas acabei ficando com
uma esposa da qual não tenho coragem de falar,
temeroso de que alguém me pergunte sua origem.
Como tal casamento pode me trazer benefícios?
— Foi para proteger a sensibilidade da esposa
que o barão escolheu agir de maneira circunspecta
e.
— Ele escondeu as moças em Paris tal qual um
segredo sórdido! E ainda é assim. — Ele sorveu o
resto do vinho num único gole.
— Pelo contrário. Depois que a mãe delas
faleceu, ele designou o próprio irmão, o cânone da
Notre Dame, como guardião e educador das
meninas. Nunca lhes faltou nada, receberam
educação e todas as oportunidades possíveis.
Sempre as visitou.
— E nesse meio tempo — Le Fever disse,
segurando a taça como se estivesse estrangulando
alguém —, rezou para que ninguém em Beauvais
descobrisse a respeito delas. Não é de se admirar
que tenha resolvido casar Ada com um inglês.
Quanto mais distante ela ficasse, melhor seria. Que
Deus o condene ao fogo dos infernos por tamanha
traição!
— Milorde sabe que. o iludiu.
— Ele mentiu para mim! Se não diretamente,
com subentendidos. Redigiu o contrato de
casamento da filha bastarda como se não houvesse
nada errado, rindo à minha custa. Diga-me uma
coisa. Sabia do esquema do barão de se livrar da
filha ludibriando um inglês?
— Não foi assim que aconteceram as coisas.
Lorde Gui só estava tentando assegurar o futuro da
filha ao entregá-la em casamento a um homem de
recursos. — O barão tinha, de fato, escondido a
origem da filha. Porém fizera isso na esperança de
que, após a consumação do casamento, o noivo
estivesse tão enamorado que perdoasse esse
deslize. Como ficara comprovado, ele se enganara.
— De qualquer modo, não, eu não sabia de nada até
duas semanas atrás quando lorde Gui me pediu para
vir para cá.
Os olhos do barão tinham estado rasos e
avermelhados ao convocar Graeham ao seu cômodo
particular. Com voz trêmula, dissera:
— Nunca revelei a ninguém em Beauvais o que
estou para lhe contar.
Havia dezanove anos, ao visitar amigos em Paris,
tivera um breve interlúdio com uma mulher
chamada Jeanne, que ele havia contratado para
costurar vestidos novos para a baronesa. Nunca
antes fora infiel à sua amada lady Christiana, mas
não havia tido forças para resistir aos encantos de
Jeanne. Nove meses mais tarde, recebera uma carta
informando que a modista tinha dado à luz duas
meninas. Depois de quatro anos, a jovem sucumbira
à febre tifóide e lorde Gui entregara a meninas ao
irmão, o cânone Lotulf. Phillipa ainda vivia com o tio
em Paris, onde tinha muitos pretendentes, ainda
que os estudos consumissem sua total atenção. Ada
tivera a mão concedida em casamento a Le Fever no
ano anterior, um arranjo do qual o barão se
arrependia amargamente.
— Milorde deve tê-lo em alta conta — Le Fever
comentou —, já que lhe confiou tal segredo e pede
que acompanhe a filha na viagem de volta a Paris.
O que poderia ter sido considerado um elogio na
boca de outro homem, pareceu pura hipocrisia para
Graeham.
— Suponho que ele estivesse apenas
desesperado — Graeham mentiu, sempre consciente
das vantagens de ser subestimado.
Na verdade, lorde Gui o considerava seu mais
confiável sargento, com excelentes habilidades tanto
em diplomacia quanto em combate, portanto, a
escolha óbvia para tirar a filha das mãos do marido,
não importando por qual meio.
— Apesar das circunstâncias do nascimento de
lady Ada, lorde Gui a ama demais, assim como a
irmã gêmea e os filhos legítimos que teve com lady
Christiana. Ele só deseja o melhor para os filhos. Se
errou ao não revelar as circunstâncias do
nascimento da moças, ele hoje lamenta
profundamente.
— E claro que tem que lamentar! Ele arruinou a
minha vida!
Graeham levantou a carta do topo da pilha.
— Aparentemente o senhor ficou irado quando
sua esposa contou a verdade.
— Faltou pouco para que eu a jogasse para fora
do barco. Aposto como você faria o mesmo no meu
lugar. Sabe o que me irrita mais nessa situação? O
fato de eu não poder fazer nada. Não posso anular o
casamento. E naturalmente não posso deixar
escapar que minha esposa é fruto de uma aventura
nas ruas de Paris. Portanto, só me resta engolir meu
orgulho e tocar a vida. Exatamente como lorde Gui
supunha que eu faria.
Graeham se colocou no lugar do mercador e
sentiu empatia, apenas por um instante.
— O futuro de Ada está garantido — Le Fever
continuou — e a reputação dela permanecerá
impecável, bem como o abençoado casamento de
lorde Gui e lady Christiana. O único a sofrer sou eu.
— E sua esposa. — Pegando a segunda carta e
deixando as demais na mesinha, Graeham a abriu e
começou a ler: — "Eu me preocupo, papai, com o
que será de mim neste casamento. Sei suportar
quando ele bate em mim. A maioria dos maridos
disciplina as esposas, porém Rolf é bastante contido
nesse aspecto. São os insultos intermináveis que me
magoam. Ontem ele disse: 'Não é de se admirar que
o grande barão Gui de Beauvais quisesse casá-la
com alguém da classe mercante e a tenha enviado
para a Inglaterra, sua bastarda de uma prostituta
parisiense. Ele ficou feliz em se livrar de você! Ah,
eu seria capaz de fazer o mesmo com tanta
facilidade.” — Graeham levantou os olhos do papel e
perguntou: — Com que frequência ameaça se livrar
dela, sr. Le Fever?
O mercador deu um sorriso afetado.
— É isso? O velho acredita que eu seja capaz de
machucar a preciosa filha?
Graeham voltou a dobrar a carta e a colocou na
pilha.
— E o senhor é?
— Isso, sargento, não é da sua conta.
— O barão fez com que passasse a ser. Na
melhor das hipóteses, sua esposa é infeliz no
casamento. Na pior, o senhor tem real intenção de
feri-la.
Le Fever se pôs de pé, os dentes arreganhados.
— Como tem a coragem de vir até minha casa a
fim de me acusar de.
— Não o estou acusando de nada. Só estou
participando a preocupação de um pai em relação à
segurança da filha.
— Não veio para acompanhá-la numa visita — Le
Fever disse com falsa candura. — Veio para levá-la
de vez.
Graeham não se deu ao trabalho de negar.
— Imaginei que o senhor ficaria satisfeito de se
livrar dela, considerando como se sente em relação
a esse casamento.
Os olhos do homem brilharam de raiva.
— Propõe tirar minha esposa de baixo do meu
teto, e eu tenho que ficar satisfeito? O que acha que
as pessoas vão dizer se minha mulher viaja e nunca
mais volta?
— Ah, as aparências. — Graeham suspirou. —
Milorde me autorizou a oferecer cinquenta marcos se
me deixar levá-la.
— Ele poderia me oferecer mil! Dez mil! Não vou
deixá-la ir. Ela sabia no que estava se metendo
quando aceitou se casar comigo. Deixe-a colher o
que semeou.
— Senhor Rolf? — Uma voz surgiu na escada de
serviço.
Le Fever se virou para encarar uma moça ruiva
de não mais do que dezasseis anos, vestida numa
túnica cinza e uma capa com capuz verde-escuro.
Ela até poderia ser considerada bonita se não
estivesse tão amedrontada.
— Olive! — Le Fever exclamou. — O que quer
esgueirando-se na minha casa?
— E-eu. bati na porta dos fundos — ela
respondeu, passando os olhos do mercador para o
estranho e vice-versa —, mas ninguém atendeu.
Seu criado está lá fora cuidando dos cavalos e disse
que eu poderia entrar. — Ela estremeceu e mostrou
um vidro azul. — Trouxe o tônico da sra. Ada.
— Muito bem, suba. — Ele fez um gesto em
direção às escadas e depois se virou para Graeham.
— Volte para aquele maldito ardiloso e diga que ele
não terá a filha de volta. Ela é minha! Vá embora
daqui!
Com movimentos calculados, como se tivesse
todo o tempo do mundo, Graeham pegou a quarta
carta da pilha e a abriu.
— Não me ouviu? — Le Fever indagou, as mãos
cerradas ao lado do corpo. — Saia ou chamarei meu
criado para expulsá-lo. Byram é muito bom com os
punhos, posso garantir que.
— "Meu marido não tenta esconder seus
inúmeros encontros com outras mulheres" —
Graeham leu. — "De fato, ele se gaba das suas
conquistas com o criado, Byram, mesmo quando
posso ouvir."
Le Fever foi até a janela que dava para o
estábulo e gritou:
— Byram! Guarde Ebony e venha até aqui.
Preciso da sua ajuda.
— Estou indo, senhor.
Graeham continuou a ler:
— "Rolf parece se orgulhar dos seus casos com
as esposas dos homens importantes cuja influência
corteja com avidez. Talvez ao seduzir as mulheres
desses homens se sinta como eles. Há poucos dias o
ouvi gabando-se com Byram de ter dormido com as
esposas de quatro conselheiros, inclusive o do nosso
próprio distrito." — Graeham levantou os olhos do
papel e o encarou.
— Seria o conselheiro John Huxley, não? Lorde
Gui o conheceu quando ele estudou em Paris. Sabia
disso?
Duas manchas vermelhas surgiram nas faces de
Le Fever.
Voltando a atenção para a carta, Graeham
continuou:
— "Pelo que pude entender, Rolf foi ousado o
bastante para cobiçar a esposa do administrador do
rei. Por mais gélidas que sejam nossas relações,
tremo ao pensar o que poderá acontecer ao meu
marido caso se torne público que ele passou para
trás homens tão importantes." — Graeham dobrou o
papel. — Eu diria que esse é um ponto a ser
considerado, não? Não seria uma pena se a
correspondência da sua esposa acabasse em mãos
erradas?
Le Fever se inclinou na janela e gritou: — Byram!
Eu. eu não preciso mais de você. Volte ao trabalho.
— Le Fever tinha uma expressão assassina no rosto
ao se virar novamente. — Seu bastardo chantagista.
Deixe-me ver essas cartas.
— Acertou na parte do bastardo — Graeham
disse ao entregar as cartas. — Quanto à parte da
chantagem, não precisamos chegar a tanto.
— Ouso dizer que não precisamos mesmo. —
Com um ar triunfante, o mercador atirou os papéis
na lareira. — Parece que o chamam de Fox somente
pela cor dos cabelos, no fim das contas. Fico feliz
em saber que o julguei de maneira errônea.
— Ah, não julgou, não — Graeham rebateu com
um sorriso. — Essas eram apenas cópias. Eu mesmo
as escrevi antes de partir de Beauvais. As originais
estão a salvo nos aposentos particulares do barão.
Le Fever desmoronou na cadeira, o rosto lívido.
— A raposa tem uma armadilha própria, pelo
visto. E isso, então. Se eu não deixar Ada partir,
serei arruinado.
— Deixará de se sentir tão mal ao saber que
lorde Gui me instruiu a entregar os cinquenta
marcos independentemente da sua cooperação? Eu
disse a ele que estava sendo generoso demais.
— Eu estou no comércio há bastante tempo para
saber que tamanha generosidade não vem sem uma
condição.
— Estará proibido de mencionar lady Ada a
qualquer pessoa. Mais especificamente, deverá
manter em sigilo as circunstâncias acerca do
nascimento dela.
— Garanto que não tenho intenção alguma de
contar a ninguém. Entretanto cinquenta é pouco.
— É tudo o que trouxe comigo, e é mais do que
merece. E pegar ou largar.
Um músculo se retesou no maxilar do mercador.
— Pode me dar, então.
— O dinheiro está guardado na São Bartolomeu.
Será seu quando eu voltar para pegar a sra. Ada. —
Graeham se levantou. — Voltarei à noite, na hora
das Completas.
— Ela estará pronta. — Quando Le Fever se
levantou, estreitou os olhos para algo num canto.
Graeham se virou e viu a jovem da capa verde
parada na escada de serviço. — Olive, há quanto
tempo está aí?
— Perdão, senhor, mas mamãe ficará furiosa se
eu voltar para a loja sem o pagamento do tônico.
Irado, Le Fever pegou dois centavos e jogou para
a moça. Ela gritou e cobriu o rosto. As moedas
saltaram no chão e rolaram.
— Desculpe — Olive murmurou, tirando as mãos
do rosto e se baixando para pegar as moedas. —
Sou tão desastrada.
Ela encontrou uma das moedas debaixo de uma
cadeira, a outra Graeham pegou de perto dos seus
pés e entregou-lhe. A jovem balbuciou um
agradecimento, ruborizando.
— Trabalha para o farmacêutico? — ele
perguntou.
— Sou aprendiz da minha mãe.
— Se tivesse de preparar o tônico para uma
semana, ele continuaria bom?
— Sim, desde que não esquente muito.
— Ótimo. — Graeham desamarrou a bolsa de
moedas e contou catorze centavos, depois juntou
mais quatro como gratificação. Podia se dar ao luxo
de ser generoso, visto que o barão tinha lhe dado
dinheiro mais do que suficiente para completar sua
missão. — Pegue um xelim e meio. E mais do que
suficiente. Preciso do remédio até a hora das
Completas.
— Sim, senhor, estará pronto. Passar bem.
— Até mais.
Depois que ela partiu, uma preocupação surgiu, e
Graeham perguntou ao mercador:
— Sua esposa, como ela está? Está bem o
bastante para viajar, não?
O homem o encarou com um ar de
contentamento.
— A meu ver, isso é um problema inteiramente
seu. A partir desta noite, lavo as minhas mãos.

O sol estava baixo no céu, dourando os telhados


de colmo de Londres quando Graeham voltou a West
Cheap no alazão com os alforjes pesados devido à
prata destinada a Le Fever. Após considerar a
questão, decidiu não levar a égua comprada para
transportar a sra. Ada, pois, se ela estava
adoentada, seria mais seguro levá-la na garupa da
sua própria montaria. A alternativa seria uma liteira,
porém não sabia onde poderia encontrar uma em
tão pouco tempo.
Graeham não conseguia deixar de pensar na
aparência da jovem senhora. O barão tinha descrito
as gêmeas somente como "beldades angelicais de
excelente temperamento". Era óbvio que a longa
convalescença poderia ter lhe tirado o viço e, por
isso, tinha se preparado para não ficar chocado se
ela não parecesse tão bela. Afinal, não era noivo de
Ada, mas de Phillipa.
Quase noivo. Nada estava oficializado até que
acompanhasse Ada sã e salva a Paris. Somente
então receberia a recompensa prometida por lorde
Gui: a mão de lady Phillipa e uma generosa porção
de terras. O melhor de tudo: terras inglesas, uma
das melhores propriedades do barão, solo fértil e
pastos verdejantes bem próximos a Oxford.
A princípio tinha ficado surpreso quando o barão
lhe oferecera prêmio tão valioso, especialmente a
mão da filha, mas soubera se conter e não
questionar o julgamento do nobre. Para um homem
de passado tão modesto quando o seu, aquela era a
oportunidade de ouro de toda uma vida: terras e um
bom casamento. Não se importava com a
ilegitimidade de Phillipa, pois essa também era a sua
sina. Quem sabe por terem os mesmos problemas
não acabariam sendo compatíveis?
Ficava imaginando como seria, após uma vida
inteira de solidão, ter casa e família próprias. Como
seria, depois de anos de encontros fortuitos com
criadas e lavadeiras, dormir noite após noite nos
braços de uma mesma mulher, vê-la crescer com o
peso do seu filho no ventre, vê-la envelhecer ao seu
lado com o passar dos anos.
Logo teria a chance de descobrir. Só precisava
devolver Ada ao pai. Nem mesmo o próprio demônio
poderia detê-lo, portanto, Le Fever não tinha a
mínima chance.
Virou o cavalo para entrar na rua Milk, atento às
brechas entre os paralelepípedos do caminho.
Lembrava-se um pouco da Londres da sua infância,
sabia que aquela parte de West Cheap era o centro
do comércio de seda, que atualmente era
supervisionado por Le Fever. Ele era o homem mais
importante daquela área, então não era estranho
que possuísse a maior e mais opulenta casa. E, no
entanto, as cores berrantes, o pórtico sustentado
por pilares entalhados e as vigas ornamentadas
davam-lhe a impressão de alguém que enriquecera
rápido demais.
Ao espiar a janela iluminada, no terceiro andar,
viu uma silhueta contra a luz amarelada da vela.
Esperava que fosse a sra. Ada, pronta para partir.
Dispunha de pouco tempo para levá-la a São
Bartolomeu porque depois que as igrejas soassem
os sinos, os portões da cidade seriam fechados até o
amanhecer.
Tinha sido bom seguir o conselho do barão e se
hospedar lá, visto que além de receberem homens e
mulheres, o local dispunha de uma ala hospitalar.
Tinha esperanças de que a saúde da jovem senhora
não estivesse tão mal, já que não via a hora de
voltar a Paris.
Aproximando-se, notou um homem robusto e
careca apoiado às pedras que cercavam a casa de Le
Fever. Levantando os olhos, ele perguntou:
— É Graeham Fox?
— Sim. — Graeham parou o cavalo.
— Estava à sua espera. O sr. Le Fever pediu que
desse a volta na casa para que ninguém o visse
levar a mulher.
— Você é Byram?
— Isso mesmo. Por aqui. — Afastando-se do
muro, fez um gesto para que Graeham o seguisse
pelo beco que ladeava a casa. — É melhor
desmontar. É bem apertado logo ali, antes de
chegar ao quintal.
Embora sentisse os instintos de soldado eriçar os
cabelos na nuca, Graeham obedeceu e seguiu a pé
pelo beco que ligava a rua Milk à Woods. A
passagem estava escura por causa das construções
em ambos os lados e cheia de sujeira.
Na metade do caminho, o lado direito do beco se
abria no que parecia ser um terreno comum às
diversas casas da rua Milk, dando acesso também
ao estábulo de Rolf Le Fever através de um
portãozinho na mureta. À exceção de umas poucas
galinhas e porcos, o terreno de terra batida estava
deserto. O beco, às sombras dos andares superiores
das construções, estava cada vez mais escuro e
estreito conforme se aproximavam da rua Woods.
— onde vai? — Graeham perguntou quando viu
Byram passar o portão do estábulo.
Byram se virou e olhou para um ponto atrás do
estábulo. Graeham deu um meio giro, já com a mão
na adaga e viu dois homens, um deles imenso,
saírem das sombras. O menor deles agarrou as
rédeas do cavalo enquanto o outro girava uma
marreta de cabo longo na direção da cabeça de
Graeham, que se baixou bem a tempo. Rolando no
chão e se levantando de súbito, segurou a barba
entrelaçada do gigante para firmá-lo e cravou a
adaga no seu estômago.
Sem nem mesmo titubear, o oponente deu um
passo para trás e deu nova investida, atingindo as
costelas de Graeham e jogando-o no solo imundo.
— Dougal! — Byram exclamou. — Você está
bem? Dougal olhou para o cabo da adaga na barriga
e deu de ombros.
Esforçando-se para se pôr de pé, Graeham viu o
cavalo sendo levado pelo beco até a rua Woods.
— Não! — Levou a mão para a bota onde estava
sua outra arma, um punhal. Talvez aquilo não
servisse para nada, já que estava em desvantagem
e um deles, pelo menos, não se importava com
alguns ferimentos.
Byram o segurou pelos cabelos e pressionou uma
lâmina no seu pescoço.
— Diga olá para o Diabo por mim, Fox.
— Diga você mesmo. — Graeham mirou o punhal
no pescoço de Byram, mas o tratante previu o golpe
e se retraiu, levando o golpe na face.
O corte partiu da bochecha até o queixo, e Byram
largou a faca, praguejando.
Segurando firme o punhal, Graeham tentou
alcançar a faca, mas Dougal pisou na sua mão,
imobilizando-o ao mesmo tempo em que esmagava
seus dedos.
Graeham virou o corpo e deu um chute,
acertando-o na virilha.
Urrando, Dougal atirou a marreta na canela
esquerda de Graeham. A dor foi instantânea e um
grito reverberou pelo beco.
Graeham tentou respirar e se levantar, mas a
perna esquerda tinha sido esmagada na parte
inferior.
Byram, usando a manga da túnica para estancar
o sangue, chutou-o nas costelas fraturadas, dizendo
a Dougal:
— Acabe com ele e vamos sair daqui.
Dougal, com a adaga ainda enfiada na barriga,
fixou o olhar em Graeham e levantou a marreta.
Com precisão, Graeham cravou o punhal no
pescoço do gigante, que surpreso, baixou a arma
lentamente.
— Deus do céu, Dougal! — Byram exclamou ao
ver o gigante tatear o punhal. — Passe isso para cá.
— Pegou a marreta e a mirou no crânio de
Graeham.
Graeham rolou para o lado e viu a arma atingir o
solo a centímetros de distância. A faca estava ao seu
alcance novamente e, então, ele a pegou. Gemendo,
colou-se à parede e se levantou, sustentando o peso
num pé ao mesmo tempo em que Byram erguia a
marreta mais uma vez.
— Boa noite, senhores. — Graeham e seus dois
atacantes se viraram e se depararam com um
homem magro e loiro que caminhava na direção
deles vindo da rua Woods, desembainhando uma
espada. — Posso participar?
Byram e Dougal se entreolharam.
— A meu ver a luta está desigual. — Ele falava
como um nobre, e a espada era espetacular, embora
a roupa estivesse puída. — Dois contra um. Que tal
se eu igualar a situação? — Olhando para a adaga
cravada no estômago de Dougal, comentou: — Belo
golpe. Mas já vi homens, com ferimentos iguais a
esse, novos como antes em poucos dias.
Dougal olhou para a adaga com uma expressão
de alívio no rosto.
— Essa aí no pescoço, porém. Se você a tirar, vai
sangrar até morrer em questão de minutos. Achei
melhor avisar.
O gigante o encarou assombrado.
— O lado bom é que a morte é bem rápida e
indolor.
— Ele está mentindo! — Byram disse.
Dougal se virou e, cambaleando pelo beco, foi
para a rua Milk, fazendo o sinal-da-cruz e
murmurando preces.
— Volte! — Byram gritou. Virando-se para o
desconhecido, ameaçou: — Saia daqui ou explodo
seus miolos!
Ignorando a ameaça, o homem levantou o queixo
de Byram com a ponta de espada e observou a
##torturar/dilacerar<< laceração:
— Espero que seja casado, pois nenhuma garota
vai olhar para você com uma cicatriz dessas. — Para
Graeham, perguntou: — Foi você quem fez isso?
Graeham assentiu, trêmulo ao tentar sustentar o
peso contra a parede.
— Estava mirando no pescoço.
— É mesmo? Sempre achei que a melhor
maneira de acertar um pescoço fosse firmar a
lâmina bem aqui. — Pressionou a espada no pescoço
de Byram e completou: — E depois levantá-la assim.
— Fez um movimento abrupto.
Byram gritou e largou a marreta. O desconhecido
a chutou na direção de Graeham, que não tentou
pegá-la, temendo desmaiar devido ao esforço.
— Mãos para cima.
Byram praguejou baixinho, mas obedeceu.
— Vou pedir que alguém chame o delegado para
enviá-lo para a cadeia — o desconhecido disse.
— Deixe-o ir — Graeham rebateu.
— Como? Por quê?
Tinha prometido a lorde Gui que agiria com a
maior discrição, sem revelar a ninguém, exceto a Le
Fever, os motivos que o haviam levado à cidade.
Envolver a polícia abriria uma caixa de Pandora e
exporia os segredos que o barão lutara tantos anos
para manter. Além do quê, qualquer investigação a
respeito do roubo seria inútil, pois tinha quase
certeza de que Le Fever estava por trás daquilo
tudo. O mercador muito provavelmente jamais
considerara libertar a esposa, pois temia por sua
reputação, mas mesmo assim cobiçava as moedas.
Ele, porém, ainda pretendia levar a sra. Ada a
Paris, visto que seu futuro dependia disso. Não
importando seus ferimentos, tinha de encontrar um
modo de executar sua missão, isso sem a ajuda do
delegado. Pensando rápido, respondeu:
— Esse vira-lata não vale todo esse trabalho.
Teríamos de perder tempo prestando depoimentos,
para quê? No fim, ele só levaria umas chibatadas e
logo estaria de volta às ruas.
Graeham devia ter soado bem convincente, pois
depois de um instante, o desconhecido deu um
passo para trás e disse a Byram:
— Porque não vai atrás do seu amigo e o ajuda a
tirar o punhal do pescoço?
Byram hesitou, olhando para Graeham como se
temesse deixar um assunto inacabado, mas se virou
e correu pelo beco.
Graeham colocou a faca do outro na cintura e
depois caiu no chão, agarrando a perna e
praguejando como um marinheiro. As tiras de couro
que seguravam a per-neira estavam esticadas por
cima da canela inchada que latejava de dor.
O desconhecido embainhou a espada e se baixou.
No lóbulo direito, tinha uma argola gravada com
desenhos exóticos. Certo dia, Graeham vira um infiel
de turbante com um brinco como aqueles.
— Está quebrada?
— Acho que sim, mas não posso ter certeza com
a perna amarrada desse jeito.
— Não a solte. As tiras servirão de tala até que
você veja um médico. Está machucado em algum
outro lugar?
— Nas costelas. A cabeça, porém, estaria
esmagada se você não tivesse aparecido. A
propósito, meu nome é Graeham Fox e lhe devo
muito. Obrigado.
— Hugh de Wexford. E sou eu quem deve
agradecer. Não me divertia assim há um bom
tempo.
— O grandalhão vai mesmo sangrar até a morte?
Hugh riu e deu de ombros.
— Não faço a mínima ideia. Acabei de inventar
aquilo.
— Pareceu bem convincente.
— Foi o que pensei. Venha. — Hugh se levantou
e ergueu um Graeham completamente tonto. — Isso
deve servir de bengala por enquanto. — Entregou a
marreta.
— Vou levá-lo para dentro para que possa se
deitar.
— Dentro? — Graeham perguntou ao ser
ajudado.
— Esta é a casa da minha irmã. — Hugh apontou
para a parede de adobe na qual Graeham estivera
apoiado. — Vinha visitá-la quando vi um maltrapilho
levando um belo cavalo pelo beco.
— Um belo cavalo com cinquenta marcos nos
alforjes — Graeham informou ao ser levado aos
pulos para o outro lado da casa, uma das diversas
construções enfileiradas que dava para a rua Woods.
Debaixo de uma árvore havia uma cabana de pedras
que provavelmente abrigava uma cozinha.
— Cinquenta marcos! — Hugh assobiou baixinho.
— Que falta de sorte cair nas mãos daqueles
vagabundos.
Má sorte não tem nada a ver com isso, Graeham
pensou, já que uma desses vagabundos é
empregado de Le Fever.
Hugh bateu à porta de carvalho dos fundos da
casa da irmã.
— Joanna! Sou eu, Hugh! Abra. — Puxou a corda
do trinco que aparecia num buraco da porta e, do
lado de dentro, ouviu-se um arranhado metálico do
ferrolho sendo aberto. Empurrando a porta, voltou a
chamar: — Joanna? — Sem obter uma resposta,
disse: — Ela deve ter saído. Venha, mas cuidado
com o degrau.
Hugh acompanhou Graeham pelo corredor que
terminava numa saleta na qual havia uma escada
para o pavimento superior. O junco que forrava o
chão parecia fresco e no centro de uma mesa
modesta flanqueada por dois bancos havia uma
lamparina feita de banha. As duas pequenas janelas
com grades do cômodo davam para o beco e de
uma delas um gato os observava com descaso.
— Essa criatura arrogante é Petronilla — Hugh
informou. — O irmão dela deve estar por perto,
mas, como teme qualquer ser humano à exceção de
Joanna, foi se esconder. Onde está sua mãe,
Petronilla?
A gata se virou para olhar a rua.
— Joanna acendeu essa lamparina — Hugh
observou —, então não deve ter saído há muito
tempo. O sol acabou de se pôr.
Por um vão em forma de arco, Graeham
conseguia ver outra pequena sala, uma loja pelo
visto, pois perto da porta que dava para a rua havia
uma janela com uma enorme persiana horizontal,
ora fechada. Próximo à janela, havia uma moldura
para bordados apoiada num cavalete, na qual uma
seda azul, parcialmente bordada, estava esticada.
Notando a direção do olhar de Graeham, Hugh
explicou:
— O marido de Joanna é mercador. Ele importa
sedas, e eles as vendem na loja, ou melhor, ela
vende, pois ele aprecia somente a compra.
Graeham acenou com educação, lutando por um
mínimo de compostura.
— Mencionou um lugar para eu me deitar?
— Por aqui. — Hugh afastou uma cortina de
couro e o ajudou a chegar a um quartinho nos
fundos sem junco no chão batido. Na meia-luz do
interior, Graeham conseguiu divisar diversos baús e
sacas, bem como rolos de tecidos e pequenas cestas
nos bancos. Uma cama estreita estava encostada
numa das paredes.
— Quem dorme aqui? — Graeham perguntou,
reprimindo um gemido ao ser baixado até o colchão
de palha, procurando uma posição de menor
desconforto.
— O marido dela, Prewitt Chapman. — Deixando
a mochila no chão, Hugh ofereceu o odre de vinho.
— Beba um pouco, vai ajudar a suportar a dor e
aquecê-lo. Você está tremendo.
Graeham, agradecido, desatarraxou o odre e
tomou uma golada. Estava tentado a perguntar
porque o dono da casa dormia num quartinho que
mais parecia um depósito, mas percebeu que aquele
não seria o melhor modo de agradecer a acolhida.
— Seu cunhado não vai achar ruim que um
estranho esteja deitado na cama dele?
— Prewitt só dorme aqui quando está na cidade.
Ele passa muito tempo no exterior, comprando
tecidos.
— E ele está viajando agora?
— Não tenho certeza. Faz mais de um ano que
não vejo Joanna. — Hugh o cobriu com uma manta
de lã. — Fique deitado. Vou procurar um médico.
Depois que Hugh saiu, Graeham se pôs a beber o
vinho com o intuito de diminuir a dor, quiçá ficar
totalmente entorpecido até a chegada do médico.
Por ter segurado vários homens enquanto eles
tinham os ossos colocados novamente no lugar,
sabia que seria melhor estar inconsciente quando
passasse pela mesma experiência.
A noite caiu, e, assim que percebeu que o odre
estava vazio, ouviu uma porta se abrir e fechar. O
som vinha do outro lado da casa e, de onde estava,
conseguia ver uma figura encapuzada se movendo
pela loja. Já ia chamar por Hugh quando percebeu
que a pessoa era menor que o homem e que usava
saia.
A irmã de Hugh entrou na saleta, pendurou a
capa e colocou um pacote sobre a mesa.
Bêbado como estava, tinha dificuldade de mantê-
la em foco. Parecia alta, mais do que a média, vestia
uma saia azul simples e o cabelo estava preso sob
um lenço amarrado em volta do rosto. Chaves e
outras ferramentas estavam penduradas num cinto
bordado.
A gata desceu do parapeito e se juntou a um
macho branco e preto que já se esfregava nos
tornozelos da dona. Ela riu e disse:
— Já farejaram a enguia, não? Pois terão de
esperar eu comer para terem direito às suas
porções. — A voz soou jovem e tinha um timbre
rouco e agradável.
Graeham sabia que precisava anunciar sua
presença. Apoiou-se num cotovelo, gemendo ao ver
tudo girar ao redor. Ouviu um arfar.
A mulher ficou imóvel.
— Quem está aí? — perguntou com voz trêmula.
— Não tenha medo — Graeham pediu ao se
deixar cair novamente, lutando contra uma onda de
náusea. Ouviu os passos sobre a palha se
aproximando.
— Saia.
Ele abriu os olhos e piscou diante do machado
que ela segurava com as duas mãos e apontava
para a sua cabeça.
— Ouviu o que eu disse? Saia da minha casa
neste instante ou vou rachar a sua cabeça ao meio.
— Era mais um bêbado vagabundo tentando
encontrar refúgio na sua casa, precisava tomar mais
cuidado e trancar melhor a casa ao sair.
— Eu posso explicar — o intruso disse com
palavras arrastadas, uma das mãos erguida para se
proteger.
— Saia! — Joanna repetiu. Sabia que não podia
deixá-lo notar seu medo. O homem era grande,
tinha o rosto sujo e recendia a vinho. Seu estado de
embriaguez só aumentaria sua violência. Se a
atacasse, teria de se defender. A qualquer custo.
— Senhora. — ele começou.
— Levante! — ela ordenou, brandindo o
machado.
— Vá embora! Que Deus me ajude, mas vou usar
isto aqui!
Ele a avaliou com uma estranha calma, os olhos
brilhando como o fogo na semiescuridão.
— Não vai, não — ele replicou com calma. — Não
vai conseguir. Suas mãos estão tremendo. —
Ergueu-se, apoiando-se no cotovelo.
Joanna retrocedeu um passo, segurando o
machado como um talismã.
— Meu marido vai chegar a qualquer instante —
mentiu e, avaliando o tamanho dele, acrescentou
como precaução: — E meu irmão está com ele.
Hugh é um excelente espadachim. Ele seria capaz
de matá-lo se o encontrasse aqui.
Joanna viu divertimento nos olhos do intruso, e
mais alguma coisa que, em circunstâncias diversas,
poderia ser considerada compaixão.
— Na verdade foi Hugh quem me trouxe para cá.
— Mentiroso. Só diz isso para que eu baixe a
guarda. Hugh nem está em Londres, está lutando na
região do Reno.
— Se o seu irmão não está na cidade, como ele
pode estar a caminho com seu marido?
Joanna se amaldiçoou mentalmente, nunca fora
adepta a mentiras.
— Meu. meu marido está chegando.
— Não consigo acreditar. Se ele estivesse por
perto, a senhora já teria saído e deixaria que ele
lidasse comigo. Ele não está em Londres, não é
mesmo? Está sozinha.
— Saia daqui! — Ela avançou na direção dele,
mantendo-se próxima aos pés da cama, para que
ele não conseguisse alcançá-la.
— Senhora.
— Levante! Saia! — Movendo o machado nas
mãos, ela acertou-lhe as pernas com o cabo.
— Droga! Inferno! — Ele se retorceu numa bola,
segurando a perna. — Maldição!
Joanna foi para perto da porta, assustada com a
reação dele.
O homem continuou com uma série de
imprecações antes de se deixar cair, pálido, no
colchão.
— Pelo amor de Deus, porque fez isso?
— Se não sair imediatamente, volto a fazer — ela
ameaçou.
— Se eu conseguisse andar, eu sairia — disse ele
sem fôlego. — Minha perna está quebrada.
Ela estreitou os olhos e o encarou.
— Está mentindo.
— Minha perna esquerda. — Ele afastou as
cobertas. — E uma ou duas costelas também.
Joanna buscou a lamparina improvisada do outro
cômodo sem dar as costas ao convidado inesperado.
Segurando o machado numa das mãos e a
lamparina na outra, aproximou-se e notou o inchaço
na parte inferior da perna.
— Foi Hugh quem me deixou entrar. Ele saiu
para buscar um cirurgião. Aquela é a mochila dele.
— Indicou a bolsa de couro num dos cantos.
Levantando a lamparina, Joanna reconheceu a
bolsa do irmão. Sentiu-se aliviada por saber que ele
voltara a salvo de mais uma campanha militar.
— Como posso saber que não roubou isso dele?
— Joanna perguntou. — Talvez ele tenha quebrado
sua perna ao tentar se defender.
— Fui atacado no beco ali do lado. Levaram meu
cavalo e boa parte do dinheiro do meu senhor. Seu
irmão me ajudou e me trouxe para cá. Disse que
seu nome era Joanna. A senhora tem uma gata
chamada. Pieretta? Não. Petronilla. E ela tem um
irmão que é tímido, mas cujo nome não me recordo.
Seu marido é um mercador de sedas e passa muito
tempo no exterior. Ele dorme aqui em vez de. — Ele
desviou o olhar, desconfortável. — Isso é tudo o que
me lembro. Não sei de que outro modo posso
convencê-la. Sei que está com medo e que não me
quer aqui. Assim que seu irmão chegar, eu saio. Só
não consigo fazer isso sozinho.
Joanna o olhou por um longo instante. Ele
sustentou o olhar, apesar de parecer ter dificuldade
em manter o foco. O rosto, debaixo da sujeira e da
barba por fazer, era bem delineado e simétrico.
Havia sinceridade nos olhos, apesar da evidente
embriaguez. As roupas, embora imundas, pareciam
de boa qualidade, bem como as botas e o cinto.
— Quem é você?
— Meu nome é Graeham Fox e sou inglês. Sirvo,
porém, como sargento a um barão normando.
Joanna deixou o machado e a lamparina num
banco e perguntou:
— O que o trouxe para cá?
Graeham virou a cabeça no travesseiro e passou
os dedos pelo cabelo. Um anel de sinete reluziu no
dedo indicador.
— Estava de passagem a caminho da casa de.
parentes.
— Onde eles moram?
Depois de uma pausa, ele respondeu:
— Oxfordshire.
— E como veio parar em West Cheap? — Ela se
aproximou da cama.
— Eu estava à procura de uma estalagem.
— A maioria fica do lado de fora dos muros.
— Não queria ter de me preocupar com o toque
de recolher.
— Isso deve estar doendo — ela comentou,
avaliando a perna torta.
— O vinho ajudou. por um instante. — Até ser
atingido pelo cabo do machado.
— Desculpe.
— Parece saber se cuidar, fiquei impressionado.
— Ele sorriu de modo irresistível.
Joanna não conseguiu deixar de retribuir o
sorriso.
— Está com fome? Acabei de comprar enguia, e
posso dividir, se quiser.
— Acho que não consigo me alimentar depois de
beber tanto vinho. Obrigado mesmo assim.
A porta se abriu, e Joanna ouviu passos e vozes
de homens no corredor. Ela se virou para receber o
irmão.
— Joanna! — Hugh a levantou nos braços e a
rodopiou. — Senti sua falta.
— Eu também, que saudades! — Ela o beijou nas
faces e notou, de maneira condescendente, que ele
ainda tinha o brinco no lóbulo da orelha. — Estava
tão preocupada com você. Que bom que está em
casa!
— durante um tempo — ele acrescentou. Ela se
entristeceu de súbito.
— Sim, é claro, por enquanto. — Acenando na
direção de Graeham, que os observava,
acrescentou: — Não perdeu o hábito de me trazer
"animais abandonados", pelo visto.
Rindo, Hugh explicou a Graeham:
— Ela nunca conseguiu resistir a uma criatura
que precisasse de ajuda. Como está se sentindo?
— Estou totalmente bêbado.
— Isso é bom.
Alguém pigarreou para chamar a atenção. Hugh
deu um passo para o lado para permitir a passagem
de um homenzarrão de idade avançada.
— Joanna, conhece o sr. Aldfrith?
— Por sua reputação, é claro.
Joanna tentou apresentar o cirurgião a Graeham,
mas o homem a interrompeu, distribuindo ordens
abruptas.
— Mais luz! Água limpa! E lençóis limpos, se os
tiver. — Meneou a cabeça, desgostoso. — Gostaria
de poder contar com meus assistentes, mas hoje é
dia de pagamento e já devem estar gastando tudo
com bebida e mulheres. Vou ter de me arranjar com
vocês dois.
Hugh acendeu uma lamparina e a colocou na viga
para iluminar o cômodo enquanto Joanna buscava
água no poço. Na volta, arranjou dois lençóis e os
entregou ao cirurgião, lamentando arruiná-los, pois
não sabia quando conseguiria repô-los.
Aldfrith mandou Hugh para a saleta para cortá-
los em tiras e ordenou que Joanna despisse o
paciente.
— Como disse?
— Botas, perneiras, túnica, camisa — Aldfrith
explicou enquanto vestia um avental de couro. —
Tire tudo, exceto as ceroulas. — Arqueou uma
sobrancelha ante a hesitação. — Uma moça solteira
poderia se envergonhar com tal tarefa, mas a
senhora é casada, não?
O sargento a observava com grande interesse ao
ver que ela corava cada vez mais.
— Posso fazer isso sozinho — Graeham disse e
fez uma careta ao tentar se sentar.
— Permaneça deitado! — Aldfrith comandou ao
dispor os instrumentos cirúrgicos num dos baús. —
Só vai piorar a situação caso se mexa.
— Ele tem razão — Joanna disse, sem saber
porque tinha se acovardado. — Não deve se esforçar
e não me custa nada.
Inclinou-se e desfez o laço da bota esquerda.
Graeham prendeu o fôlego, embora ela tentasse agir
com delicadeza. Depois foi a outra bota, e ela se pôs
de lado para estudar as tiras de couro que prendiam
as perneiras.
— Estão amarradas aqui em cima — Graeham
levantou a túnica, expondo as perneiras, as coxas
musculosas e a bainha das ceroulas de linho.
— Muito bem. — Joanna puxou as tiras, mas o nó
parecia muito firme, talvez devido ao inchaço da
perna machucada. Tentou inutilmente desfazê-lo,
consciente de que as mãos roçavam os pelos da
coxa e de que era observada.
— Talvez seja melhor cortá-las — Graeham
sugeriu.
— Ah, sim. — Ela pegou uma faquinha e cortou
as tiras. Com cuidado, retirou-as e depois as
perneiras. Debaixo delas, Graeham vestia meias de
lã, muito esticadas sobre a perna inchada, que
também tiveram de ser cortadas. — Deus do céu —
ela sussurrou quando viu a perna retorcida na altura
da canela, a pele inflamada e coberta de hematomas
recentes.
— Hum, não está exposto. — Aldfrith avaliou a
extensão dos danos. — Pelo menos não vou precisar
destes aqui. — Guardou uma série de facas
aterrorizantes e uma serra.
O alívio no rosto de Graeham era aparente, e
refletia o dela. Voltando ao trabalho, Joanna
terminou de despi-lo. O peito estava inchado na
parte baixa das costelas, a única imperfeição num
peito, de outro modo, perfeito, a síntese da
graciosidade e do poder masculinos. Os ombros
eram largos e musculosos, o abdômen magro e o
quadril estreito. Quando ele ergueu uma das mãos
para afastar os cabelos do rosto, os músculos dos
braços se estenderam e flexionaram. Joanna mal
conseguiu conter a admiração.
Hugh voltou com as tiras dos lençóis, e Aldfrith
usou uma delas para amarrar as costelas fraturadas,
num movimento rápido e que aparentemente não
provocou dor. As demais foram colocadas na cama
ao lado de Graeham, juntamente a duas tábuas
grandes forradas com lã de ovelha.
— Quanto tempo vai levar para consertar a
perna? — Joanna perguntou.
— Não muito para colocá-la no lugar — Aldfrith
respondeu. — O que demora mais é segurar as
talas. Preciso de alguém forte. — Apontou para
Hugh. — Você. Terá de me ajudar a reposicionar o
osso. Talvez haja alguns camaradas por perto para
segurá-lo enquanto fazemos isso.
— Não preciso que ninguém me segure —
Graeham disse. — Não vou me mexer.
— Diz isso agora, mas espere até que eu comece
a alinhar esse osso. Vai se debater e gritar como se
estivesse morrendo queimado.
— Ficarei bem, pode começar — insistiu ele.
— Admiro seu otimismo, sargento, mas não sabe
o que.
— Comece.
Franzindo o cenho, Aldfrith pediu a Joanna que
fosse para a cabeceira.
Lutando para se sentar, Graeham começou a
formular um protesto:
— Eu disse que.
— Considere isso uma concessão. Algo para
acalmar um cirurgião rabugento.
— Assim eu também poderei ajudar — Joanna
intercedeu e o encarou com olhos suplicantes.
Sério, Graeham olhou para o teto e concordou.
Sentando-se na cama, atrás da cabeça dele, ela
pousou as mãos nos ombros que mais pareciam
feitos de rocha sob suas palmas.
Aldfrith instruiu Hugh e depois levantou a perna
de Graeham enquanto o outro colocava uma das
talas debaixo dela. O paciente prendeu o fôlego com
a movimentação.
Os dois homens se posicionaram, segurando com
firmeza acima e baixo da fratura.
— Pronto? — o cirurgião perguntou.
Hugh assentiu, e Joanna pressionou os ombros
dele o máximo que pôde.
— Agora.
Um gemido baixo e contido se formou na base da
garganta de Graeham quando os dois começaram a
puxar. Ele fechou os olhos, cerrou os dentes e
arqueou as costas.
— Não vai demorar muito — Joanna prometeu
com voz trêmula. Diminuiu a pressão quando viu
que ele não se debateria, conforme prometido.
Alisando uma mecha de cabelos da testa, disse: —
Segure firme.
— Mais forte — Aldfrith ordenou.
Graeham blasfemou por entre os dentes e
agarrou os pulsos de Joanna. Ela passou as mãos
entre as dele e as apertou.
— Só mais um pouquinho.
O peito de Graeham arfava, e o rosto estava
vermelho. Inclinando-se, Joanna sussurrou-lhe no
ouvido:
— E um homem muito valente. Está se saindo
muito bem.
— Perfeito — anunciou Aldfrith. — Pegue a outra
tala.
Hugh posicionou a outra tábua sobre a perna de
Graeham e segurou as duas enquanto Aldfrith as
amarrava com as tiras em movimentos precisos.
Graeham, deitado com os olhos fechados, estava
pálido e coberto de suor. Continuava a segurar as
mãos de Joanna com força.
— É isso — disse o cirurgião, por fim. — Nada
mau, levando-se em conta que tive ajuda amadora.
Já fez isso antes, não? — perguntou a Hugh.
— Algumas vezes no campo de batalha, mas
duvido que os coitados tenham voltado a andar
normalmente.
— Nosso destemido sargento voltará a andar
direito — Aldfrith prometeu. — Desde que fique de
resguardo por dois meses, na cama no começo e
depois.
— Dois meses! — Graeham exclamou, soltando
as mãos de Joanna e tentando se levantar.
— Deite-se! Quer arruinar meu trabalho?
— Não posso ficar sem andar por dois meses! Eu
tenho. assuntos importantes a resolver.
— Pode escrever para sua família em Oxfordshire
— Joanna sugeriu.
— Não. — Ele gemeu. — Vocês não entendem.
Não posso explicar.
— Eu ficaria feliz em escrever uma carta para o
senhor — ela ofereceu com diplomacia.
— Eu sei escrever. Não é esse o problema. Mas
que droga, dois meses.
— Talvez três — Aldfrith disse. — Tudo depende
da rapidez com que esses ossos vão se juntar.
Quanto maior o repouso, mais rápido o processo de
recuperação. Não tire as talas — explicou ao guardar
os instrumentos e fechar a maleta. — Volto para ver
como está se recuperando e para trocá-las quando
for oportuno. Trarei muletas.
— Não estarei aqui — Graeham informou. —
Estou hospedado na São Bartolomeu.
— Isso é conveniente, já que eles têm o hospital
lá. As irmãs saberão o que fazer.
— Não entendo — Joanna comentou. — Se já
tem alojamento, porque procurava por uma
hospedaria?
Graeham a olhou sem entender por um instante.
— Ah, bem. Foi como lhe disse. Gostaria de
encontrar acomodações dentro dos muros.
— Sim, claro. — Ele tinha mesmo dito aquilo,
mas parecia estranho para um homem apenas de
passagem se preocupar tanto com a hospedagem.
Batendo a poeira da túnica, Aldfrith disse a
ninguém em especial:
— Cobro meio xelim por colocar a tala, mais três
centavos pela visita.
Hugh colocou a mão na bolsinha de moedas, mas
Graeham o impediu dizendo:
— Guarde seu dinheiro, já fez muito por mim. —
Apontou para a bolsa no chão ainda presa ao cinto.
— Pegue as moedas dali.
Joanna pesou a bolsa de pelica nas mãos,
estimando mais de meia libra. Ao abri-la, viu que as
moedas eram centavos de prata. A única vez em
que vira tal montante de dinheiro tinha sido quando
o pai abrira o cofre na sua presença para contar a
fortuna.
Claro que aquele dinheiro não pertencia ao
sargento, mas ao seu senhor. A maioria dos
soldados, à exceção dos cavaleiros, tinha somente o
suficiente para pagar a próxima caneca de cerveja
ou a próxima mulher.
Contou nove centavos e os entregou a Aldfrith,
que conferiu antes de guardá-los e depois saiu.
Graeham bocejou.
— Está cansado depois de tanto esforço? — Hugh
perguntou.
— Que esforço? — O sargento sorriu. — Foram
vocês quem fizeram todo o trabalho, eu só fiquei
aqui deitado. Mas agora estou com fome. — Sorriu
para Joanna. — Eu aceitaria aquela enguia que me
ofereceu antes, se não se importar.
Joanna o cobriu e respondeu:
— Já vou buscar.
Na saleta, encontrou os dois gatos se
refestelando no pacote que tinham conseguido abrir.
— Manfrid! Petronilla! Xô!
Os dois desceram da mesa, Joanna viu com pesar
os restos do seu precioso jantar. Tinha gastado os
últimos centavos para alimentar as criaturas mal
agradecidas. Estalando a língua, atraiu-os para o
quintal, onde jogou o que restava das enguias, uma
última extravagância que acabara se tornando
comida de gato.
— Aproveitem enquanto podem, logo terão de se
virar sozinhos — disse, sem querer pensar no que
ela teria de fazer para comer.
Voltando à cozinha, arrumou um jantar às
pressas, o melhor que pôde dadas as magras
provisões: pão de centeio com mel e um copo de
leitelho, e voltou para o depósito.
Hugh levou o dedo aos lábios, indicando que o
sargento tinha adormecido. Apagou a lamparina e
seguiu para a saleta sendo acompanhado por
Joanna, que cerrou a passagem com a cortina.
— Leitelho? — ofereceu ao irmão ao se sentar no
banco oposto.
— Vinho, se tiver. Graeham bebeu tudo o que eu
tinha.
— Desculpe, não tenho. — Não tinha vinho fazia
vários meses, desde que a situação começara a se
deteriorar. — Nem cerveja. Mas há uma taverna na
esquina se quiser.
— Prefiro ficar aqui e conversar com você
enquanto posso. Preciso cruzar a Ponte de Londres
antes do toque de recolher. Vou me acomodar do
outro lado do rio, em Southwark. — Notando o ar de
reprovação da irmã, completou: — Numa estalagem.
— Porque prefere dormir com mais dois numa
cama infestada de pulgas numa hospedaria pública
se pode ficar aqui?
Hugh lançou um sorriso torto, que ele sabia ser
eficiente para derrubar suas defesas, e explicou:
— A dona da estalagem é uma. amiga especial há
vários anos.
— Ah, bem. — Metade das mulheres de Londres,
bem como do Império Bizantino e das Terras do
Norte, eram amigas especiais do irmão. Joanna
olhou na direção da cortina e disse: — Eu me
sentiria melhor se ficasse aqui esta noite.
— Melhor? Quer dizer mais segura? Mas você
dorme no andar de cima. Mesmo que Graeham
tenha a intenção de molestá-la, e não acredito que
ele seja desse tipo, você acha mesmo que ele teria
condições de subir as escadas?
— É que. — Ela suspirou. — Parece estranho tê-
lo aqui.
— Ele me parece um homem decente, Joanna.
Estou certo de que é inofensivo. E só por esta noite,
amanhã trarei uma carreta para levá-lo à hospedaria
São Bartolomeu, e você nunca mais o verá.
Podemos comer esse pão agora?
Ela o empurrou na direção dele, que avançou
esfomeado.
— Imagino que Prewitt esteja na Itália.
— Ele está morto.
Hugh engasgou e teve de tomar um gole de
leitelho. Apesar da careta de desgosto, a tosse
cessou.
— Nossa, Joanna, quando foi que isso aconteceu?
— Em setembro passado. Recebi uma carta de
um oficial do governo de Gênova. Prewitt foi
esfaqueado. pelas mãos do marido de uma mulher
com quem ele. Bem, a carta veio com um pacote
contendo seus objetos pessoais: as chaves, o broche
do manto, o canivete, a lâmina de barbear e
algumas outras coisas. O anel de safira não estava
incluído, tampouco dinheiro, claro, embora devesse
haver algum, já que ele tinha partido para fazer
compras.
— Joanna. Não posso fingir que lamento. —
Esticou a mão para afagá-la. — Você está bem?
— Sim. É estranho. Cheguei a ficar de luto no
princípio, mas então percebi que não era por
Prewitt, e sim pelo homem que eu acreditei que ele
fosse quando nos casamos. E até por mim mesma.
— Verdade? Você não é afeita à
autocomiseração, até onde sei.
— Foi um lapso temporário. Fiquei pensando em
como ele me enganou, como eu era jovem e
ingênua. Como ele me usou. Pior, como eu permiti
que ele fizesse isso.
— Como acabou de dizer, você era ingênua. Só
tinha quinze anos, pelo amor de Deus! Isso jamais
aconteceria hoje em dia.
— Acredito que não. Aprendi algumas coisas a
respeito dos homens, e do pior jeito. Se temos
alguma coisa que querem, eles tomam. Usam-nos
pelo que podemos lhes oferecer, sem se importar
com nossos sentimentos quando descobrimos o que
eles cobiçam de fato. O corpo, na maioria das vezes.
Ou, no caso de Prewitt, posição social.
— Houve outros homens além de Prewitt? —
Hugh franziu a testa.
— Não, nunca. Bem, eles ficam rondando, como
cães famintos. Normalmente são casados, ou
comprometidos. Tudo o que querem é saciar a
luxúria e seguir em frente. Alguns são bem
insistentes.
— E por isso que carrega, uma adaga?
— Já provou ser útil. — Joanna se lembrou de
como Rolf Le Fever tinha ficado aterrorizado quando
ela o ameaçara com a lâmina.
— Você deveria se mudar para o interior. Londres
não é mais segura para você. Nunca foi na verdade,
com Prewitt fora durante tanto tempo, mas pelo
menos as pessoas sabiam que era casada, que havia
um marido para se vingar caso abusassem de você
de alguma maneira.
Um riso sardônico escapou dos lábios de Joanna.
— Não acredito que ele se desse a esse trabalho,
não se importava comigo.
— As pessoas não sabiam disso. O casamento lhe
oferecia alguma proteção. A maioria dos homens
não é como Prewitt, evitam confusão com mulheres
casadas.
Joanna sabia que isso era verdade, apesar das
exceções como Prewitt ou Le Fever. Por isso,
mantinha a aliança de casamento, mesmo sendo
viúva. No entanto, o interesse demonstrado pelos
homens aumentara quando a notícia da morte de
Prewitt tinha se espalhado, apesar das suas roupas
conservadoras e atitudes reservadas.
— Enquanto casada, você estava protegida.
Agora isso mudou. Cidades são perigosas para as
mulheres, Joanna.
Ela bem sabia daquilo, e as ruas barulhentas e
sujas da cidade grande havia muito tinham perdido
seu charme. Cada vez mais, Joanna sonhava com os
campos verdejantes da sua juventude, mas o sonho
de se assentar num chalé num lugar tranquilo ficava
cada vez mais distante. Se mal conseguia se
sustentar em Londres, onde havia mercado para
seus bordados, como conseguiria se manter no
interior?
— Quanto tempo pretende ficar em Londres
desta vez? — perguntou ela, mudando de assunto,
já que não via solução para seu problema.
Percebendo a intenção da irmã, Hugh sorriu e
respondeu:
— Tenho de voltar para a Saxônia no outono.
— Quer dizer que vai ficar todo esse tempo aqui?
— Joanna sorriu.
— Preciso de distanciamento dos banhos de
sangue.
— Mas vai acabar partindo. Precisa mesmo?
— Não posso ficar, Joanna — ele disse,
repentinamente melancólico. — E você sabe por
quê.
— Papai sabe que está na Inglaterra?
— Acabei de chegar.
— Wexford fica a meio dia de viagem de Londres,
Hugh. Não acha que deveria visitá-lo desta vez?
— Estranho você dizer isso, levando-se em, conta
que não o vê há seis anos.
— Não foi escolha minha, como sabe. Você,
entretanto, pode escolher.
— Decidi ficar o mais longe possível daquele
desgraçado enquanto estiver por aqui. — Foi a vez
dele de mudar de assunto. — Como tem passado,
Joanna? Diga a verdade.
Ela bem que gostaria de um ombro amigo.
Todavia a reação do irmão ao saber das suas
condições seria entregar-lhe todo o dinheiro que
ganhara a muito custo no exterior. Já aceitara a
ajuda dele uma vez, e jurara nunca mais aceitá-la.
Sua situação precária era o resultado das suas
próprias ações. Não tinha sido forçada a se casar
com Prewitt. Fora uma decisão sua e, por isso,
precisava encontrar uma saída por si só.
— Estou me virando bem — respondeu,
cautelosa. — Eu. Não permitiram que eu fizesse
parte da associação dos comerciantes de tecidos,
por isso não posso mais vender tecidos a metro.
— Ele lhe deixou algum dinheiro?
— Um pouco. — Desde a morte do marido, vivia
o mais frugalmente possível, mas as reservas
tinham acabado. Se não conseguisse reverter a
situação logo, precisaria vender a loja, e acabaria
sem ter onde morar.
— Tenho feito bordados para vender: laços,
lenços, gargantilhas.
— E tem conseguido se manter dignamente com
isso?
Joanna assentiu e baixou o olhar ao levantar a
caneca. Não queria encarar o irmão ao mentir.
— Não estou gostando disso. Detesto pensar em
você sozinha aqui, trabalhando do amanhecer ao
anoitecer só para sobreviver. Uma mulher como
você não merece viver desse modo.
— Uma mulher como eu? Sou a viúva de um
mercador de sedas. Um que nem era tão próspero.
Estou acostumada a trabalhar, além disso, gosto de
bordar.
— Você é a filha de um dos cavaleiros mais
poderosos da Inglaterra, Joanna. Deveria estar
bordando por prazer, não para colocar comida à
mesa. Deveria estar casada com um nobre, levando
uma boa vida.
— Fiz a minha escolha há seis anos. Não escolhi
um nobre, mas um comerciante. Agora tenho de
arcar com as consequências.
— Você tem vinte e um anos. É jovem demais
para se resignar à viuvez eterna. É uma mulher bela
e talentosa. Pode voltar a se casar, com um homem
do seu nível desta vez. Alguém com um bom
coração e que a ame. Não um belo demônio
charmoso e sem honra que apenas queira usá-la.
As palavras "demônio charmoso" materializaram
a imagem de Graeham Fox deitado seminu na cama
de Prewitt, observando-a com olhos intensos.
Prewitt também fora belo, e ela não conseguira
resistir.
— Está tarde — Hugh observou ao se levantar. —
Preciso ir. — Foi até o depósito pegar a mochila, e
depois Joanna o acompanhou à porta. — Tranque
tudo. Eu me preocupo com você. E espero que não
tenha desistido de se casar. Quero dizer, se o
homem certo aparecer e.
— Imagino que tenha alguém em mente.
— Talvez. — Cocou a barba por fazer, pensativo.
— Lembra-se do segundo filho de lorde Suger,
Robert? Éramos amigos quando jovens. O pai o
incumbiu da propriedade em Ramswick.
— Sim, claro. — Sempre gostara de Robert. Até
mesmo flertara com a ideia de namorá-lo num
determinado verão. — Mas ele é casado.
— Joan morreu afogada num acidente de barco
no verão passado junto à filha mais velha. Ele me
contou ontem. Passei por lá no caminho. Gillian só
tinha dez anos, e ele a adorava. Foi ele quem tirou o
corpo do rio. Robert chorou ao me contar a história.
— Meu Deus.
— Ele parece estar lidando bem com a situação.
Disse que procura não pensar no acontecido, pois
tem mais duas meninas para criar. Disse também
que precisa de uma mãe para elas, uma do tipo
certo.
— Então ele não se interessaria por mim.
— O "tipo certo" não significa uma herdeira
mimada. Ele me disse que busca uma mulher de
bom coração que cuide das meninas. Ele é um bom
homem, Joanna, um pai devotado. Sei também que
foi fiel a Joan. Talvez. eu deva trazê-lo para uma
visita.
— Terá de trazer seu próprio vinho e precisa me
avisar com antecedência para que eu possa tomar
um banho e. — Olhou para a saia puída com
desgosto.
— Um conselho de irmão. Tire o véu quando eu o
trouxer. Seus cabelos são seu melhor traço.
— Que tipo de viúva deixa a cabeça descoberta?
Vou parecer uma meretriz.
— Vai ficar linda. — Hugh sorriu e a beijou no
rosto. — Boa noite. Eu volto amanhã cedo.
— Não se esqueça da carroça! — ela gritou
quando ele já se afastava.
— Deixe comigo. Graeham Fox logo sairá da sua
vida.
— Ótimo — sussurrou ela, estremecendo.
Onde, diabos estou? Graeham se perguntou ao
abrir os olhos. Estava numa cama estreita num
quarto iluminado pelo luar vindo de duas janelinhas,
uma do lado direito, outra atrás de si. A cabeça
latejou ao virar de lado, a boca estava amarga.
Estivera bebendo e por isso não sabia onde estava.
Viu rolos de seda amontoados numa prateleira, e
as lembranças começaram a voltar. A esposa do
mercador, o irmão dela, o cirurgião, a perna.
Sua perna. Estranho ela só começar a doer
depois de se lembrar que ela estava quebrada. A dor
era intensa, mas não conseguiu sobrepujar o motivo
que o fizera despertar. Precisava se aliviar.
Sentou-se rápido demais, esquecendo-se das
costelas machucadas, e teve de suprimir um
gemido. No chão perto da cama havia um pote de
barro com uma tampa. A mulher devia tê-lo
colocado ali antes de ir dormir. Ela fora atenciosa,
mas imaginar a adorável sra. Joanna esvaziar seu
urinol não lhe parecia certo. Ela não era uma criada,
e ele não era seu hóspede. Era um desconhecido
que impusera sua presença. Ela não lhe devia nada,
e mesmo assim o tratara com gentileza.
Segurara-lhe as mãos enquanto realinhavam
seus ossos, sussurrando palavras de conforto com a
voz enrouquecida. Ela não precisava ter feito aquilo.
Por isso, tinha de se levantar para ir até a latrina.
Não devia ser um desafio tão grande, pois se
lembrava de ter visto a casinha do lado de fora, bem
ao lado da porta dos fundos.
A marreta que o ferira e que também lhe servira
de muleta estava apoiada na parede ao seu lado.
Esticou-se e, rangendo os dentes, ergueu-se
lentamente, uma tarefa um tanto complicada já que
a tala ia do quadril ao tornozelo.
Sentia a perna em chamas àquela altura. A dor o
perpassava, e ele se admirou por conseguir ficar de
pé. Segurando a marreta com uma das mãos,
apoiou-se à parede com a outra e prosseguiu aos
poucos. A tontura da bebedeira só piorava a
situação. Apoiou-se à porta para recuperar o fôlego,
depois a destrancou e abriu. A luz do luar, viu a gata
branca no telhado da cozinha. Trêmulo devido ao
esforço, cambaleou até o reservado e conseguiu
esvaziar a ##balão<<bexiga sem cair no buraco.
Voltou com esforço e conseguiu entrar sem
tropeçar no degrau, mas quando ia fechar a porta
atrás de si, a gata correu para dentro e colidiu com
suas pernas, fazendo-o perder o equilíbrio. Caiu
para a frente, levando as talas e a marreta consigo.
Ali não havia palha para amortecer a queda, e a dor
explodiu pelo seu corpo. Gritou injúrias ao bichano
que se afastou sem se importar.
Deitado arfante no chão, esperou a dor diminuir
antes de tentar se mexer. Então ouviu passos nas
tábuas de madeira da escada.
— Sargento? Está tudo bem?
Ainda de frente para o chão, sustentou o corpo
nos cotovelos, a dor provocando estremecimentos.
Deus, por favor, permita que minha perna não
tenha ficado arruinada.
— Sargento?
Ouviu os passos abafados na palha e a cortina
sendo afastada.
— Estou aqui — disse com esforço, deixando o
corpo cair e desejando que ela não o encontrasse
naquele estado. — No corredor.
Os passos se aproximaram e depois a voz soou
próxima.
— O que faz aqui atrás?
Não havia luz, e Joanna não passava de uma
figura na escuridão.
— Caí — ele resmungou — ao voltar da latrina.
— Levantou-se e andou? Perdeu o juízo?
Graeham sentiu os dedos quentes avaliando sua
posição, passando pelo rosto, ombro e braço. O
toque era tão leve que ele pensou tê-lo imaginado.
Algo frio e macio o resvalou na lateral quando ela
se pôs entre seu corpo caído e a parede. Seda. A
camisola era de seda. Surpreendeu-se durante um
momento que uma mulher de condições modestas
usasse roupas de dormir refinadas, mas logo
recordou que ela era, afinal, a esposa de um
mercador de sedas.
Fechou os olhos para desfrutar da sensação do
toque dela, lembrando-se de que já fazia muito
tempo desde a última vez em que estivera com uma
mulher.
— Precisa voltar para a cama. Pode virar de
costas? Coloque seu peso na perna boa.
Cerrando os dentes, Graeham virou de lado
enquanto ela o ajudava com as talas. Sentiu um
roçar macio no peito, que só podia ser dos cabelos
dela.
— Consegue se sentar?
Bem que ele tentou, mas acabou caindo para trás
novamente.
— Minhas costelas.
— Deixe-me ajudá-lo. — Ela se aproximou e
colocou um braço ao redor do seu pescoço. Os
cabelos longos o cobriram nos ombros e peito e o
envolveram com uma fragrância doce que fê-lo se
lembrar dos campos recém-plantados.
Graeham apoiou uma das mãos no chão e tentou
passar o outro braço em volta dela, mas calculando
mal a distância, roçou numa elevação que devia ser
um seio. Joanna prendeu a respiração e ficou
imóvel. Ele retirou a mão, devagar, os dedos
passando suavemente pela curva macia ao se
afastarem. Sentiu o coração bater mais rápido.
Imaginou se ela se levantaria e sairia, mas ela
permaneceu ali. Perguntou-se se ela o expulsaria,
não queria partir.
Em vez disso, ela tomou-lhe a mão e a pousou
no ombro.
— Segure-se em mim. — Ele prendeu o fôlego
quando ela o ajudou a se sentar. — Doeu?
Tudo doía.
— Está tudo bem. Só me dê um minuto.
Graeham sentiu o calor do corpo feminino através
da seda e percebeu que estavam no meio da noite,
dois estranhos, abraçados na escuridão num lugar
estreito, como amantes.
Talvez ela também tivesse percebido a mesma
coisa, pois se afastou um pouco e se levantou.
— Vou ajudá-lo a se pôr de pé. — Segurando-o
debaixo dos braços, auxiliou-o. — Passe o braço
pelos meus ombros e segure-se na parede com a
outra mão.
Prosseguiram lentamente pelo corredor, Joanna
incentivando-o com palavras de encorajamento. Ao
chegarem à cama, ela tremia pelo esforço de
sustentá-lo.
Ele posicionou a perna imobilizada com as duas
mãos e deixou-se cair sobre o travesseiro.
— Acha que se machucou mais na queda?
— Espero que não.
— Vou pegar a lamparina. Volto já.
Ao vê-la acender a lamparina, Graeham começou
a juntar as peças do quebra-cabeça que era Joanna
Chapman. Sua fala era refinada, mais adequada a
uma nobre do que à esposa de um mercador. Ainda
que agisse de modo prático e competente,
qualidades incomuns entre as bem-nascidas, ela se
comportava de maneira que indicava uma boa
educação. Sem mencionar o irmão, Hugh de
Wexford, de conduta aristocrática e excelente
domínio da espada.
Amparando a chama com a mão, ela voltou para
o quartinho. Na luz amarelada, Graeham conseguiu
vê-la com clareza pela primeira vez desde que ela
descera as escadas. A visão o deixou hipnotizado.
Ela era. luminosa. De tirar o fôlego. Não eram
apenas os cabelos, que de tão longos chegavam às
coxas em douradas curvas sinuosas, tampouco o
roupão de seda branca. Ela brilhava. O rosto, o
pescoço, as mãos. Como
##transparente/translúcida<< alabastro iluminado
por dentro.
Havia notado antes que era uma bela mulher,
mesmo com as roupas sérias e o lenço na cabeça.
Ela tinha o tipo de rosto que fazia os homens se
virarem para fitá-la. Os olhos castanhos eram
profundos, as sobrancelhas, arqueadas de maneira
dramática, os lábios, cheios e rosados. O queixo,
assim como o do irmão, tinha uma leve covinha,
como se um escultor tivesse tocado a argila,
somente uma vez, de leve.
Sim, a havia considerado bonita, mas naquele
momento, envolta somente pela seda e com os
cabelos soltos, era bela demais para se olhar. Se ele
fosse Prewitt Chapman, trataria de ficar mais tempo
em Londres.
Sentando-se na beira da cama, ela deixou a
lamparina sobre um baú e recolheu os cabelos,
sempre evitando fitá-lo. Sem graça, Graeham
percebeu que a estivera encarando, baixou o olhar
quando ela se inclinou para avaliar a perna, o
roupão de seda esticando-se na região dos seios de
modo provocante. Não eram maiores do que a
média, mas eram viçosos e arredondados, com os
mamilos protuberantes.
Sentindo os primeiros sinais de excitação, ele
fechou os olhos e, respirando fundo, recitou as
declinações do latim, temeroso em mostrar uma
ereção enquanto ela, zelosa, cuidava dos seus
ferimentos. Joanna Chapman não era uma das
lavadeiras de lorde Gui. Era uma mulher casada.
Acima de tudo, era uma pessoa que o recebera com
gentileza e merecia ser tratada com consideração,
não como um repositório da sua luxúria. Além do
que, ele era um homem praticamente
comprometido.
Seria melhor conter suas necessidades carnais
até desposar Phillipa, o que aconteceria uma
quinzena após seu retorno a Paris com Ada. Ela
concordara com o casamento desde que pudesse
prosseguir com os estudos, uma condição que
nenhum dos seus pretendentes parecera inclinado a
aceitar, considerando lógica e filosofia incompatíveis
com o sexo feminino.
Graeham, consciente do conselho de São
Jerônimo de nunca olhar os dentes de um cavalo
dado, não vira empecilhos e concordara de pronto.
Em troca, lorde Gui decidira recompensá-lo com a
propriedade em Oxfordshire, próxima à Universidade
em formação de Oxford.
Em toda a sua vida, Graeham só quisera uma
coisa, algo com o que até o mais simples aldeão
tinha o direito de sonhar: um lar e uma família. Logo
teria isso e muito mais: uma bela esposa, educada e
agradável, e uma casa numa das regiões mais
bucólicas de toda a Inglaterra. Depois de vinte e
cinco anos considerando-se um intruso, um estranho
tolerado, finalmente teria a sensação de pertencer a
algum lugar, a alguém. Finalmente ficaria contente,
talvez feliz.
Nada poderia interferir no sucesso da sua missão.
Nada.
— Está se sentindo bem, sargento?
Graeham abriu os olhos e viu que Joanna o
encarava, com uma das mãos pousada na tala.
— Está com os punhos cerrados — ela observou
ao cobri-lo com a manta.
Joanna voltou a atenção para as costelas,
passando as mãos, longas e elegantes, com
gentileza pelas ataduras. Graeham imaginou-as por
baixo das cobertas, tentando desfazer o nó das
ceroulas. Um gemido se formou na sua garganta.
— Estou machucando? — perguntou ela.
— De certa forma. — Uma ligeira risada vibrou
no peito dele.
— Desculpe. — Ela pousou a mão no ombro forte.
— Estou certa de que a queda não foi nada
agradável, mas não acredito que tenha causado
maiores danos, pois não vi nada de anormal.
— Isso é um alívio. Obrigado.
— Dormirá melhor se estiver no escuro.
Ela levantou-se para fechar a persiana. O roupão
se esticou com o movimento, contornando as curvas
da cintura e do quadril, antes escondidas pela túnica
azul.
Passando para a cabeceira da cama, fechou a
janela que dava para o beco.
Quando se inclinou para apagar a chama sobre o
baú, o roupão se abriu ligeiramente, revelando a
curva do seio perolado. Estava claro que ela não
vestia nada debaixo do roupão, ela devia dormir
nua, ele pensou.
— Precisa de mais alguma coisa? — perguntou
ela. Sim, meu Deus.
— Acho que não.
— Se precisar, é só chamar. — Fechou a cortina.
— Sra. Joanna?
Depois de uma pausa, a cortina voltou a se abrir.
— Pois não?
As palavras não costumavam lhe faltar, mas
naquela noite.
— Obrigado. Foi. muita gentileza sua me aceitar
aqui. Sei que estou lhe causando transtornos.
— De maneira alguma.
— Estaria no quinto sono se não fosse por mim.
— Imaginou-a nua, os cabelos espalhados pelo
travesseiro e sentiu o desejo renovado. — A senhora
é. muito altruísta.
— Não é nada difícil ser altruísta por apenas uma
noite. Hugh o levará à hospedaria amanhã e então
passará a ser responsabilidade das freiras.
— Amanhã?
— Não foi o que pediu a Hugh? Pensei que.
— Sim — ele disse rapidamente. — Foi o que eu
pedi. — Era o que deveria querer. Era o melhor a
fazer.
— Há um hospital lá.
— Sim, eu sei. Fico contente em ir para lá.
— Boa noite, sargento.
— Boa noite, senhora.

— Sargento? — Joanna perguntou do outro lado


da cortina na manhã seguinte. — Está acordado?
— Sim, pode entrar — Graeham respondeu.
Ela entrou, segurando uma bacia e um balde de
água. Vestia uma roupa ainda mais disforme do que
a do dia anterior e os cabelos tinham voltado para o
esconderijo debaixo do lenço. Graeham achou que
era triste uma mulher ter de esconder cabelos tão
espetaculares simplesmente por ser casada.
— Achei que gostaria de se lavar antes de partir
— disse ela.
— Obrigado, isso seria muito bom. — Ele se
sentou devagar, com os dentes cerrados.
Ela depositou o balde no chão e a bacia no baú
perto da cama. Dentro dela havia uma barra de
sabonete e um pano. Depois de arrumar tudo,
ofereceu sem encará-lo:
— Precisa de. ajuda. ou.
— Conseguirei me arranjar sozinho, obrigado.
Joanna destrancou as janelas e as abriu, permitindo
a entrada da luz da manhã.
— Está com fome? Fiz mingau de cereais. Não
tenho cerveja para lhe oferecer, mas a água do poço
é boa.
— Costumo comer somente ao meio-dia.
Obrigado mesmo assim.
Ela assentiu sem olhá-lo, visivelmente
desconcertada. Talvez o encontro noturno a tivesse
incomodado tanto quanto a ele.
— Como está se sentindo hoje?
— Melhor. Só dói quando me mexo.
— Então tente não se mexer muito. Hugh vai
trazer uma carreta para levá-lo, poderá ir deitado e.
— Uma carreta! Não vou chacoalhando pelas ruas
de Londres numa carreta tal qual um condenado a
caminho da forca.
— Não pode cavalgar.
— Diabos que. Perdão, senhora. É claro que
consigo.
— É um homem irritante, sargento.
— Observação anotada. — Ele sorriu. — Porém
não vou subir numa carreta.
— Pode discutir isso com Hugh quando ele
chegar. — Joanna se virou para sair e seu olhar caiu
sobre o urinol. — Isso precisa ser esvaziado?
— Não. Saí para usar a latrina há pouco.
— Saiu de novo? Depois do que aconteceu ontem
à noite?
— Tomei cuidado.
— Como conseguiu? A marreta que usou para se
apoiar ainda está perto da porta dos fundos.
— Usei aquela vassoura. — Ele apontou para um
dos Cantos.
Joanna meneou a cabeça, a indignação
transformando os olhos castanhos em dourados.
— Irritante e teimoso!
— Já me disseram isso também. Não se
preocupe, não terá de me aguentar muito tempo
mais.
Ela o encarou pela primeira vez naquela manhã,
a expressão preocupada, talvez um pouco
melancólica.
— Deus do céu! — A voz furiosa de um homem
soou do lado de fora. — Ainda não o selou? Eu disse
que escava atrasado!
Olhando pela janelinha de trás, Graeham viu Rolf
Le Fever no quintal do estábulo, repreendendo um
ruivo que colocava a sela num cavalo. Não
conseguiu decidir o que parecia mais espalhafatoso:
a túnica multicolorida de Le Fever ou a sela
absurdamente adornada.
— Desculpe, senhor, mas.
— Termine logo para que eu possa sair daqui!
— Esse é o chefe da associação dos comerciantes
de tecidos, Rolf Le Fever — informou Joanna. — Ele
mora aqui atrás e, portanto, ouço suas ofensas
diversas vezes ao dia, mesmo sem querer. Ainda
bem que ele passa boa parte das manhãs nas lojas,
assim tenho um pouco de paz.
— É para lá que ele vai agora?
— Não, ele costuma ir a pé até lá, pois fica bem
perto.
Depois de selar o cavalo, o ruivo ajudou o amo a
montar.
— Quem é o outro? — Graeham perguntou.
— O criado, o pobre Byram.
— Byram? A senhora tem certeza disso? — ele
indagou, atônito.
— Claro. — Franziu a testa. — Porque pergunta?
— Nada, é que. — Ele se lembrou do encontro
com o homem careca a noite anterior. — É possível
que haja dois Byram trabalhando para Le Fever?
Joanna o encarou como se não tivesse ouvido
bem.
— Dois Byram?
— Sim, sei que parece absurdo, mas.
— E é. Le Fever só tem um criado, além da
cozinheira e da arrumadeira. Porque acredita que
possa haver outro Byram?
Graeham deu de ombros. Precisava tomar
cuidado. Não queria que ela e o irmão suspeitassem
que o ataque da noite anterior fosse outra coisa que
não um assalto comum, já que não poderia expor o
segredo do barão.
— Sim, é um absurdo, esqueça o que eu disse.
— Mas.
— Que casarão, não? — Graeham disse, tentando
distraí-la.
À luz do dia, tinha ampla visão da casa. Pela
janelinha, conseguia ver a cozinheira cantando na
cozinha. As janelas do segundo andar eram mais
amplas. A da esquerda era a do salão no qual
estivera no dia anterior, na da direita, viu a criada,
Aethel, afofar uma colcha, deviam ser os aposentos
do dono da casa. As janelas do solário, no terceiro
andar, estavam fechadas.
— É uma casa medonha — Joanna comentou. —
No entanto, ele deve considerá-la maravilhosa. Ele
tem. aspirações. Faz-se de nobre, mas acaba
parecendo o bobo da corte.
Era por isso que ele se casara com Ada, para se
elevar socialmente. Não era de admirar que tivesse
ficado furioso ao descobrir o "segredo vergonhoso"
de lorde Gui.
— Sabe se ele é casado? — Graeham perguntou
com cautela.
— Sim, é, e a mulher é bem bonita.
Graeham mordeu a língua para conter a
curiosidade. Seu casamento iminente com a gêmea
de Ada estava atrelado a todo o resto, portanto,
tinha que escondê-lo também.
— A senhora a conhece?
— De vista. Ela costumava trabalhar no jardim
quando chegou de Paris no ano passado. Pelo que
sei, ela vem apresentando defluxo desde o Natal. A
filha da farmacêutica leva um tônico todos os dias,
mas não parece estar surtindo efeito. Algumas
pessoas são assim, ficam resfriadas o inverno inteiro
e só melhoram na primavera.
— Já estamos na primavera — ele observou. — E
o clima está bem ameno.
— Talvez ela apareça um dia desses. Já está na
época de replantar o jardim.
Da janela que dava para o beco, Graeham ouviu
um estalido se aproximando, sem dúvida o de um
leproso. A pobre criatura, vestindo um manto de
capuz e um chapéu de palha que disfarçava tanto a
doença quanto o sexo, apareceu com um bastão e
as obrigatórias castanholas de madeira. Uma sacola
quase vazia às costas devia conter todos os seus
bens.
— Bom dia, Thomas. — Joanna se aproximou da
janela.
O leproso parou e a olhou sorrindo.
— Bom dia, senhora. — A voz grossa era o único
indicador de que aquela pessoa era um homem,
visto que o rosto estava consumido pela doença. Um
olho, completamente esbranquiçado, já não
enxergava, e os lóbulos estavam todos ulcerados.
Contudo, o que mais desconcertou Graeham foi a
total ausência de sobrancelhas. Já tinha visto muitas
vítimas de doenças deformadoras e, mesmo assim,
precisou de muito esforço para não desviar o olhar.
— Procurei a senhora quando passei pela loja —
Thomas informou. — Fiquei preocupado ao vê-la
fechada. — Ele falava de maneira distinta, o que
surpreendeu Graeham.
— Estou um pouco atrasada hoje — ela explicou.
O olhar dele caiu sobre Graeham.
— Vejo que está se aperfeiçoando na arte de
cuidar dos necessitados.
O riso de Joanna tinha uma rouquidão
desconcertante.
— Este é Graeham Fox, que se deparou com um
pouco de má sorte ontem à noite. Sargento, deixe-
me apresentá-lo Thomas, o harpista.
— Que já não toca mais a harpa — Thomas
levantou as mãos disformes. — Por ter se deparado
com um pouco de má sorte também. — Ele riu da
própria piada. Graeham mais uma vez ficou sem
saber o que dizer.
— Tenho mingau na cozinha — Joanna disse —,
se é que já não queimou na panela. O sargento o
recusou e os gatos não o comem. Vai acabar se
perdendo se você não aceitar uma tigela.
Rindo e sacudindo a cabeça, Thomas soltou o
sino que estava amarrado ao cinto e levantou a
tigela, também presa. Para Graeham, disse:
— Ela tem um jeito de se expressar que nos faz
acreditar que estamos lhe fazendo um favor, e não o
contrário.
— E é verdade. Não estou em condições de
desperdiçar comida. Já vou encontrá-lo na cozinha.
— Muito obrigado, senhora. Tenha um bom dia,
sargento.
— Bom dia — Graeham cumprimentou, vendo-o
se afastar com dificuldade.
—Quantos anos acha que ele tem? — Joanna
perguntou.
— Sessenta?
— Ele tem trinta e seis.
— Pobre homem. A senhora o alimenta todas as
manhãs?
— Sim. E às vezes à tarde também quando as
esmolas do dia não foram boas ou quando ele não
consegue mais suportar as humilhações. Thomas é
um homem orgulhoso. Era o harpista da Torre de
Londres e tocava para o rei Henrique. Nunca mais
voltará a tocar. Além de os dedos estarem
deformados, ele não tem mais tato, nem nos pés.
Um dia ele apareceu com o pé sangrando, pois tinha
pisado em algo pontudo e nem mesmo tinha
percebido. E no inverno passado, uma vela ateou
fogo à túnica, mas ele só percebeu ao sentir o cheiro
de queimado. Acabou com as costas cheias de
bolhas.
— Não há nenhum leprosário no qual ele possa
ficar?
— Há o São Egídio. Pelo que soube é um bom
hospital, mesmo sendo destinado aos leprosos.
Thomas, contudo, gosta de ser independente. Eu o
entendo. — Suspirou. — Bem, ele está me
esperando, tenho de ir. Precisa de mais alguma
coisa antes que eu abra a loja?
Graeham cocou o queixo e disse:
— Uma navalha, se não for muito trabalho.
— Devo ter uma lá em cima, junto às coisas do
meu marido. Posso pegá-la assim que alimentar
Thomas.
Depois que ela fechou a cortina, Graeham se
levantou com alguma dificuldade, tirou as ceroulas,
ensaboou o pano e começou a se esfregar da cabeça
aos pés. Um movimento chamou sua atenção:
Joanna indo para a cozinha e depois voltando com
uma concha cheia, colocando mingau na tigela de
Thomas, que se sentara num barril perto da porta.
Pelo visto, eles não conseguiam vê-lo, a janelinha
era estreita e profunda, e seria difícil para alguém
enxergá-lo da rua.
Viu que o pátio do estábulo de Le Fever estava
deserto. Na cozinha, a cozinheira rechonchuda
continuava ocupada. A sala e o quarto do segundo
andar estavam vazios, e as janelas do solário
continuavam fechadas.
Então, o careca da noite anterior mentira sobre
ser Byram. Ainda assim, era possível que ele e os
comparsas estivessem trabalhando a mando de Le
Fever, pois o homem sabia seu nome e estava à sua
espera. Só podia ser obra do mercador ambicioso
que queria o dinheiro sem ter de libertar a esposa.
Ficou se perguntando se os ladrões tinham lhe
entregado o dinheiro. Cinquenta marcos era uma
grande soma, tentação suficiente para fazê-los
enfrentar a ira do patrão. Se fosse assim, eles
desapareceriam, e Le Fever nunca descobriria que
ele escapara da morte. Mesmo que tivessem
entregado o dinheiro e admitido terem fracassado, o
mercador poderia acreditar que ele fugira. Desde
que ficasse escondido.
Graeham considerou a situação ao se enxugar. O
destino, ao que parecia, o levara ao lugar perfeito
para prosseguir com sua missão, mesmo estando
ferido. Da janelinha do depósito, tinha ampla visão
do que acontecia ao redor. Conseguia ver as janelas
da casa de Le Fever e dos vizinhos sem nem sair da
cama.
O mais prudente seria se recuperar ali mesmo.
Na hospedaria, ficaria isolado do lado de fora dos
muros da cidade. Ali, se agisse com astúcia, poderia
até mesmo se certificar das condições de Ada e
encontrar um modo de tirá-la da casa, apesar dos
seus ferimentos.
Sentando-se na beira da cama e inclinando-se
sobre a bacia, despejou água nos cabelos e os
ensaboou.
Escreveria a lorde Gui, narrando o acontecido.
Deixaria claro que haveria atrasos, mas que
cumpriria a missão. Mais do que tudo, tinha de
assegurar ao barão que levaria a filha dele de volta
a Paris assim que possível. Falhar não era uma
opção, tinha muito a perder.
CAPÍTULO II

Ajoelhando-se diante do grande baú aos pés da


cama, Joanna o destrancou. Aquele era o baú de
Prewitt, onde ele sempre mantivera seus pertences.
Nunca tinha visto o conteúdo até receber a chave do
emissário de Gênova. Depois de se recuperar do
choque da notícia da morte do marido, juntara as
roupas dele, lavara-as e as guardara ali.
Ao levantar a pesada tampa, sentiu o mesmo
pesar e raiva que a haviam tomado fazia oito meses,
da primeira vez que o abrira. O cheiro do marido, ou
melhor, a mistura de ervas na qual ele se banhava,
a assaltou, e ela sentiu lágrimas nos olhos.
Tinha adorado aquele aroma desde o primeiro
encontro. Tudo em Prewitt chamara sua atenção: a
aparência, o riso fácil, o charme, a consideração, os
beijos e as promessas. Ele lançara um feitiço sobre
ela. O fato de ele pertencer à classe mercante, e ela
ser lady Joanna de Wexford não tinha importância.
Nada mais importava além de se casarem e ficarem
juntos para sempre.
Passou os dedos sobre o manto dobrado no topo.
Prewitt o usava no dia em que o vira pela
primeira vez. Alguém tinha elogiado a peça, e ele
explicara que o havia comprado na última viagem a
Montpellier, para onde ia duas vezes ao ano a fim de
comprar sedas da Sicília e de Bizâncio. Ela, que
nunca saíra de Londres, ficara admirada com os
lugares que ele conhecia. Nunca estivera ao lado de
um homem mais viajado, mais sofisticado, mais
belo.
E ele queria se casar com ela.
Tantas vezes agradeceu a Deus por ter colocado
Prewitt Chapman na sua vida, pelo menos no
começo.
Retirou o manto e o colocou sobre a cama. No
baú, havia túnicas, camisas, meias. Arrumou e
separou algumas peças, e encontrou o espelho, a
navalha, a pedra de amolar e um pente. Colocou
esses itens ao lado das roupas que separara para
Graeham e depois avistou a caixinha de madeira no
fundo do baú.
A primeira vez em que abrira aquela caixa, oito
meses atrás, fora como se tivesse levado um soco
no estômago. Tinha chegado a pensar em jogá-la no
Tâmisa, mas sua presença constante ao pé da cama
serviria como um lembrete, a fim de que ela não se
deixasse usar novamente. Abriu-a e viu, mais uma
vez, os itens de uso feminino: meias, laços, brincos,
batom, várias mechas de cabelos amarradas por
fitas.
Uma das mechas era sua.
Fechou com força a caixa e colocou-a de volta no
baú, junto com as outras roupas. Desceu as escadas
e afastou a cortina do depósito.
— Trouxe algumas. — Parou no meio da frase,
arfante.
Graeham estava na frente da cama, nu, exceto
pela faixa no peito e as talas na perna, esfregando
os cabelos com a toalha.
— Desculpe. — Fechou a cortina e voltou para a
saleta. — Eu. eu. Não percebi que.
— Está tudo bem — ele disse. — Pronto, já me
cobri, pode entrar.
Joanna encarou a cortina e apertou as roupas de
encontro ao peito. Fazia cinco anos que vira o corpo
nu de Prewitt, mas o que se lembrava do marido
estava bem longe do que acabara de ver no outro
cômodo. Graeham Fox tinha o corpo de um soldado,
era forte e vigoroso. Ele era um excelente exemplar
masculino em todos os aspectos. Prewitt, embora
muitos anos mais velho, teria parecido um
adolescente em comparação.
— Senhora?
— Bem. Eu trouxe algumas roupas. Quero dizer,
trouxe a navalha, como me pediu, mas também
pensei que talvez. gostasse de.
Desistiu de tentar se explicar e afastou a cortina
de novo. Graeham estava sentado na cama. A
toalha molhada cobria o quadril, a perna imobilizada
estava esticada, e ele apoiava o pé no chão sobre o
calcanhar.
Ela se aproximou e ofereceu a pilha de roupas.
Viu que ele tinha lavado os cabelos, as mechas
emaranhadas cobriam-lhe a testa. O rosto, livre da
sujeira do dia anterior, brilhava de vitalidade e havia
algo quase aristocrático no nariz afilado e nos ossos
proeminentes das faces. Ele parecia ainda mais
jovem e belo.
Segurando as ceroulas, ele comentou:
— Perfeito, era disso que eu precisava para
passar sobre as talas.
— Foi o que pensei.
Ele ainda parecia nu para ela, coberto apenas
pela toalha. Joanna se policiava para olhá-lo no
rosto. O peito parecia macio, e era coberto de
músculos, as pernas mais longas que o normal. Ele
se ajeitou na cama e a toalha desceu um pouco,
revelando um trilho de pelos que descia pelo
abdômen.
— Preciso lhe pedir um favor. — Graeham
depositou as roupas na cama e os outros itens sobre
o baú. — Bem, na verdade seria mais uma proposta.
— Que tipo de proposta?
— Pelas coisas que me disse, imagino que esteja.
numa situação delicada.
Aquele parecia um modo educado de perguntar
se ela estava passando dificuldades. Joanna ergueu
o queixo. Se não quisera partilhar seus problemas
com Hugh, certamente não o faria com um
estranho.
— De maneira alguma. Vivo de modo simples por
escolha.
Graeham prendeu o seu olhar, revelando
profundos olhos azuis.
— Posso ajudá-la. Tenho prata, como sabe. É
claro que pertence ao meu senhor, mas ele me deu
autoridade para gastá-la como fosse necessário.
Parte dela pode ser sua. Naturalmente. precisarei de
algo em troca.
Joanna o encarou, não acreditando no que ele
estava sugerindo.
— Gostaria de ficar aqui — ele continuou quando
ela permaneceu calada. — Morar aqui pelos
próximos dois meses enquanto minha perna sara em
vez de ir para a hospedaria.
— E só o que quer de mim? — Ela cruzou os
braços sobre o peito.
— Bem. Não. Há outra coisa. Ela assentiu e
empinou o queixo.
— Foi o que pensei.
— Como disse?
— Eu deveria ter usado o machado ontem à noite
— disse ela com voz trêmula.
— O quê?
— Em vez disso, ofereci abrigo. E é assim que
retribui? Insultando-me?
— Mas, como. — Graeham arregalou os olhos ao
entender o que ela queria dizer. Levantou-se e a
toalha caiu ao chão.
Joanna virou de costas e afastou a cortina.
— Não, não saia — ele disse rápido. — Sou um
idiota. Não me expliquei direito. Jamais faria uma
proposta dessas.
Joanna, ainda de costas, comentou:
— É um soldado. Não me diga que nunca pagou a
uma mulher por seus favores antes.
Depois de uma ligeira pausa, ele disse:
— Nunca uma casada.
Ele não teria tais escrúpulos se soubesse que ela
era viúva.
— Pode se virar, já me cobri.
Ela se virou e o encontrou com a toalha ao redor
do quadril.
— O que quer, então?
Passando a mão pelos cabelos molhados, ele
respondeu:
— Refeições, é claro, já que não poderei fazer
nada além de ficar deitado. E talvez algumas
pequenas tarefas, embora não possa prever tudo de
que precisarei. Prometo, porém, que tentarei não
interferir na sua rotina e incomodá-la o mínimo
possível.
Incomodá-la? A mera presença dele a
incomodava. Vê-lo de pé, praticamente nu, em todo
o seu esplendor masculino, fazia com que seu
coração acelerasse em pânico.
— Não sei, sargento. O que os vizinhos
pensariam se soubesse que há um homem vivendo
comigo?
Ele se sentou, acomodando a perna com uma
careta de dor.
— Não posso acreditar que não haja mais
mulheres casadas em Londres acolhendo hóspedes.
Só em West Cheap deve haver uma centena.
E claro que havia, aquela era uma prática comum
e muitas vezes a única fonte de renda.
— Sim, claro, mas tais arranjos levam a fofocas.
Consegui manter uma reputação intocável todos
esses anos, apesar das viagens frequentes do meu
marido. Não posso deixar de pensar que as pessoas
comentariam, afinal é um homem jovem.
— Sou um jovem aleijado, pelo menos pelos
próximos meses. Talvez isso minimize as fofocas.
Mas quem vai saber que estou aqui? Ficarei
escondido na maior parte do tempo. Quero passar
despercebido tanto quanto.
— Por quê? — ela o interrompeu. Ele desviou o
olhar.
— Digamos que estou à procura de paz e solidão.
Passei os últimos onze anos em alojamentos com
outras centenas de homens, e antes disso no
dormitório dos rapazes em Holy Trinity.
— Foi educado na Holy Trinity? — perguntou
surpresa.
O monastério agostiniano, colado aos muros do
lado norte da cidade, oferecia uma das melhores
escolas da Inglaterra. Os cidadãos mais influentes
mandavam os filhos para lá, mas eles não
costumavam seguir a carreira militar.
— Cresci lá, desde a primeira infância até os
catorze anos, quando fui levado a Beauvais para
servir a lorde Gui.
— Desde a infância! Eu. eu achei que fosse
somente uma escola. Não sabia que aceitavam
bebês.
— Normalmente não. — O olhar dele se anuviou.
— Eu fui a exceção. Este — ele indicou o depósito
com um gesto — é o primeiro quarto que tenho só
para mim.
— Não é lá grande coisa — ela comentou.
— Mas seria só meu. A privacidade é rara e
preciosa para mim.
— Se é privacidade o que procura, vai acabar se
decepcionando. As pessoas passam pelo beco o
tempo inteiro e gostam de olhar pelas janelas.
— Posso fechá-las, se desejar. — Graeham
levantou a bolsa de dinheiro e puxou o barbante que
a fechava. — Pago quatro xelins pelos dois meses de
casa e comida.
— Quatro xelins — Joanna sussurrou. — E muita
coisa.
— Gui de Beauvais é um homem rico — ele disse
ao colocar as moedas sobre o baú e começar a
contá-las — e generoso. Ele haveria de querer que
eu a recompensasse bem. E, como disse, eu estaria
pagando por serviços extras também.
— Sim. — Ela não conseguia desviar os olhos das
moedas.
— Na verdade, preciso escrever uma carta ao
barão para que ele saiba onde estou. Se puder
providenciar pergaminho, tinta, pena e cera para
selar a carta, eu ficaria muito grato.
— Sim, claro.
Ele pegou os centavos do topo do baú e os
entregou a Joanna. Quatro xelins. Ela nunca tivera
tanto dinheiro de uma só vez nas mãos. A maioria
das suas vendas era na base da troca. Aquele
montante a manteria por um bom tempo se
soubesse economizar. Com ele, não teria mais de
vender a loja, pelo menos num futuro próximo.
Ele a encarava com olhos límpidos, e ela deu um
passo para a frente, estendendo as mãos. As
moedas eram frias e pesadas e, de repente, não
tinha como guardá-las. A bolsa, vazia obviamente,
pendia no seu cinto, mas não conseguia abri-la com
as mãos ocupadas.
— Deixe-me ajudá-la. — Graeham se esticou e
colocou os dedos dentro da bolsinha, abrindo-a.
Parecia estranho e íntimo tê-lo tão perto. Talvez
essa sensação se devesse a seu estado de
seminudez.
Com cuidado para não deixá-las cair, Joanna
colocou as moedas dentro da bolsa.
— Gostaria também de um canivete e cordão,
por favor.
— Tem certeza de que precisa somente de um
pergaminho? E a sua família? Não tem uma esposa
em Beauvais?
A maioria dos militares era solteira, mas havia
exceções. Porém, um homem casado continuaria a
viver em alojamentos? A vida da esposa de um
militar devia ser ainda mais difícil do que a da viúva
de um mercador.
Graeham desviou os olhos e afastou os cabelos
da testa mais uma vez. Pegando o pente de Prewitt,
passou as unhas pelos dentes do objeto.
— Não sou casado. Sou. mais ou menos. Quero
dizer, sou sozinho. Não tenho família.
— Nem uma namorada?
— Não.
— E os parentes em Oxfordshire? Disse que ia
visitá-los.
— Eles não sabiam que eu estava a caminho. Não
preciso lhes escrever.
— Muito bem, trarei o que me pede, mas antes
tenho de abrir a loja.
— Sim, claro. — Quando ela abriu a cortina, ele
chamou: — Senhora?
Ela se virou para encará-lo.
Graeham fez um gesto com o pente para os
pertences de Prewitt.
— Tem certeza de que posso usar as coisas do
seu marido? Ele não vai se importar? — O olhar dele
era tão penetrante que ela teve de desviar o seu.
— Não — ela respondeu ao se virar para sair. —
Estou certa de que ele não se importará.
Joanna abria as janelas da loja quando Hugh
apareceu com uma carreta de duas rodas.
— Bom dia, irmãzinha.
— Hugh. — Joanna acenou distraída.
Ele travou as mulas atreladas à carreta, desceu e
deu-lhe um beijo nas faces.
— Linda manhã, não? Não há uma nuvem no
céu.
Ela murmurou algo ininteligível. Hugh segurou a
persiana superior enquanto a irmã a firmava com
duas varas, refreando um bocejo.
— Espero que nosso novo amigo não tenha
causado transtornos.
A moça, atarefada com a montagem da barraca,
não respondeu. Hugh terminou de ajudá-la e a
seguiu para dentro da loja.
— E então?
Joanna se baixou para destrancar um dos baús e
perguntou:
— Então o quê? — Ela pegou uma peça de seda
bordada na barra e a estendeu no balcão.
— Ele causou problemas? — Tentando ser útil,
Hugh pegou um emaranhado de fitas e as colocou
sobre a seda.
Revirando os olhos, ela separou as fitas e as
dispôs ordenadamente.
— Nada relevante.
O que deixava implícito que algo irrelevante tinha
acontecido. Hugh, porém, bem sabia que de nada
adiantava tentar forçar o assunto.
— Já vou buscá-lo para tirá-lo do seu caminho.
Ela, contudo, o deteve, segurando-o pela túnica.
— Ele vai ficar. Foi perda de tempo trazer a
carreta. Ele me ofereceu quatro xelins pelo aluguel
do depósito pelos próximos dois meses e não pude
recusar. — Desviando os olhos, completou: — Sinto
muito.
Hugh se apoiou à parede, cocando o queixo.
— Não foi problema algum, mas fico me
perguntando. Bem, vai viver sozinha com o homem
por dois meses e nem o conhece direito.
— Foi você quem o trouxe para cá. — Ela se
virou para encará-lo. — Não se lembra de que foi
você quem me convenceu a deixá-lo ficar? Ele é um
homem decente, você disse.
— Disse que ele parecia ser decente.
— Você disse que tinha certeza de que ele era
inofensivo. Bem, agora esse homem inofensivo e
decente me ofereceu quatro xelins para dormir no
depósito, Hugh, e ao diabo com as convenções.
Farei o que bem entender.
— Desde quando minha bem-educada irmã usa
esse tipo de linguagem?
— Desde que deixei de ser uma dama e passei a
ser a esposa, ou a viúva, de um mercador de seda.
E um que nem.
— Era muito próspero, eu sei.
— Há outra coisa. O sargento acredita que
Prewitt ainda esteja vivo. Agradeceria se você não
desmentisse isso.
Hugh fechou os olhos e massajou a testa, que
come-Içava a latejar.
— E por que, exatamente, ele acredita nisso?
— Porque eu não contei que ele tinha morrido,
oras.
— E por que.
— Porque é mais sábio deixá-lo acreditar que sou
uma mulher casada.
Hugh reabriu os olhos e a viu encarando-o, com
as mãos nos quadris. Joanna relanceou o olhar para
a cortina de couro que dava para os fundos e baixou
a voz.
— Lembra-se do que me disse na noite passada,
sobre como o casamento protege as mulheres
contra avanços indesejáveis?
— Acredita que Graeham a importunaria com
avanços indesejáveis se não achasse que é casada?
— Eu. não sei.
Ele a segurou pelo queixo e a forçou a enfrentá-
lo.
— O que houve ontem à noite?
— Nada importante — ela respondeu resoluta.
— Ele tentou.
Ela se desvencilhou e rebateu.
— Não. Ele não fez nada. Só acho melhor ele não
começar a ter ideias. Ele. Ele não é o tipo de homem
que eu deva encorajar.
Aquilo era verdade, e Hugh sentiu-se
reconfortado em saber que a irmã tinha juízo.
Graeham Fox, não importando seu caráter, era um
soldado, sem bens nem futuro. Ele era o último tipo
de homem com quem Joanna deveria se envolver,
dada sua atual situação financeira. Era óbvio que ela
estava sem dinheiro, por mais que negasse. Uma
mulher que estivesse vivendo bem jamais acenderia
lamparinas com banha, e teria vinho ou cerveja para
oferecer.
Sabia que ela não aceitaria mais ajuda sua, pois
tinha deixado isso bem claro seis anos antes. Talvez
não fosse má ideia alugar o quarto para o sargento.
Os quatro xelins a manteriam com dignidade até
que ele encontrasse o marido ideal para ela. Mesmo
que Graeham fosse do tipo que gostava de tirar
vantagem, o que ele duvidava, os ferimentos eram
tão graves que o deixariam bem inofensivo.
Pelo menos por enquanto. E depois? Seria melhor
ter uma boa conversa com o homem, para deixar as
coisas claras.
— Muito bem — concordou —, vou fazer como
me pede, já que é por uma boa causa. Só espero
que você consiga manter a farsa, nunca foi uma boa
mentirosa.
— Eu não estaria mentindo — disse ela
indignada.
— Quero dizer, eu nunca afirmei que meu marido
estava vivo, então.
— Continua sendo uma mentira, Joanna. — Deu
um tapinha nas costas da irmã. — Pelo menos seja
honesta consigo mesma.
Joanna abriu a boca para contestar, mas Hugh
indicou a chegada de uma cliente, o que fê-la se
virar com um sorriso nos lábios.
Hugh foi para o fundo da casa e bateu no batente
da porta do depósito.
— Não precisa ter medo, senhora — Graeham
disse. — Desta vez não estou nu.
Depois de um instante de hesitação, Hugh
afastou a cortina e entrou. Graeham, sentado na
beira da cama, penteando os cabelos, pareceu
confuso ao vê-lo.
— Hugh, pensei que fosse.
— Evidentemente.
A seu favor, Graeham não se pôs a explicar o
comentário sobre a sua nudez.
— Trouxe a carreta?
— Sim. — Hugh virou um barril e se sentou
diante de Graeham.
— Sua irmã já lhe disse que não preciso mais?
— Disse.
Graeham pegou a bolsa de dinheiro com cujo
barbante Petronilla brincava e disse:
— Deixe-me pagar os gastos com o aluguel.
— Um amigo me emprestou.
Observando a expressão de Hugh, Graeham
comentou:
— Desaprova minha permanência nesta casa?
— Não importa o que eu penso. Joanna é uma
mulher independente. Sempre fez o que quis.
— Então desaprova de fato.
— A verdade é que me sinto dividido. Por um
lado, estou preocupado com minha irmã, com a
felicidade e a reputação dela. Por outro, não consigo
enxergá-lo como alguém capaz de se aproveitar da
confiança dela. E da minha. Já lutei ao lado de
muitos homens e gosto de acreditar que consigo
discernir o caráter das pessoas.
— Você é um mercenário, não?
— Um cavaleiro assalariado. Brando a minha
espada para aquele que pagar melhor.
As sobrancelhas de Graeham se ergueram, e
Hugh sabia o que ele estava pensando: como um
cavaleiro tinha uma irmã que vivia em cima de uma
loja em West Cheap?
Notou que o sargento tinha se lavado e que
usava outro tipo de roupa.
— Essas são as roupas de Prewitt?
— Sim, sua irmã é muito generosa.
— Joanna é uma mulher de bom coração.
Sempre foi assim. Desde garota cuidava dos animais
necessitados.
Graeham assentiu, os olhos fixos em algo além
da cortina. Hugh viu que o sargento tinha plena
visão da casa da irmã. Na realidade, pela janela da
loja, conseguia ver a rua Woods até a farmácia,
onde uma moça ruiva pesava pós numa balança.
Não era a garota, contudo, que prendia a atenção de
Graeham, Hugh sabia. Era Joanna, destacada pela
luz da manhã, segurando uma fita para que a cliente
a examinasse. Os movimentos graciosos mais se
pareciam aos de uma dança no salão do castelo em
Wexford.
O sargento ainda a examinava, com o pente
esquecido nas mãos, quando comentou:
— Este não é o mundo dela.
— Não, ela não pertence a este lugar — o irmão
concordou.
— Então, o que ela faz aqui?
— Ela se casou baixo da sua condição social.
— Prewitt? — Diante da anuência do loiro,
Graeham comentou: — Ela deve amá-lo muito.
Hugh refletiu que de nada adiantaria explicar que
mais do que amor o que a conduzira ao casamento
fora a ingenuidade e o desespero. Os muitos
defeitos de Prewitt só tinham se revelado tarde
demais, e a Joanna não interessava que o sargento
soubesse da verdade.
Graeham ainda acreditava que Prewitt estivesse
vivo e isso a protegeria, caso ele considerasse
transpor certos limites. Essa proteção deixaria de
existir se Hugh lhe contasse que o interesse que
Prewitt um dia nutrira por Joanna desaparecera dias
após as bodas. Mesmo que estivesse vivo, Hugh
duvidava que o cunhado defendesse a honra da irmã
caso necessário.
— Sim — Hugh concordou sem levantar o olhar.
— Imagino que ela o ame muito.
— Então por que. — O olhar se desviou para a
cama, obviamente questionando os motivos que
levavam Prewitt a dormir naquele cômodo. — Não,
não é da minha conta.
— Não, não é. — Fazendo uma careta, Hugh
pegou a navalha de Prewitt e pôs-se a amolá-la.
Depois de um instante de silêncio, Graeham
perguntou:
— Ela trabalha sozinha na loja?
— Sim. Prewitt nunca gostou da parte da venda
e, a bem da verdade, raramente está em casa.
Joanna se saiu muito bem como lojista.
— Então porque ela está tão. — Graeham colocou
o pente sobre o baú e passou os dedos pelos
cabelos. — Desculpe. Pareço cheio de perguntas
inoportunas hoje.
— Porque ela parece tão pobre? Imagino que
seja porque a maioria das vendas seja na base da
troca, portanto, é impossível guardar algum
dinheiro. Além disso, Prewitt, bem. Ele está afastado
há algum tempo.
Graeham molhou as mãos e começou a fazer
espuma.
— Fiquei pensando porque ela não vende tecidos
por metro. Imagino que esteja esperando o regresso
do marido.
— Deve ser isso — Hugh disse sem encará-lo.
Como a irmã, ele não era adepto a mentiras.
— Uma pena. — Graeham disse ao passar a
espuma na barba crescida — para uma mulher ficar
longe do marido durante tanto tempo.
— Ela não está sozinha agora, eu estou aqui. —
Hugh baixou a pedra de amolar e passou o dedo
pelo fio da navalha que, naquele momento, estava
tão afiada quanto a sua espada. — Se qualquer
homem tentar tirar vantagem dela — prendeu o
olhar de Graeham numa mensagem velada —, eu
terei de capá-lo. — Estendeu a navalha para o
sargento.
— Não precisa se preocupar comigo. — Ajustando
o espelhinho, ele começou a se barbear com muita
atenção.
— Não é nada pessoal. Eu até fui com a sua cara
— Hugh disse.
— E eu com a sua. — Graeham limpou a navalha
na toalha. — Salvou minha vida, eu jamais
retribuiria denegrindo a reputação da sua irmã.
— Precisa entender minha preocupação. Viverão
sob o mesmo teto por dois meses ou mais, e ela é
uma bela mulher.
— Ela, é casada. Costumo ficar longe de
mulheres assim. — Graeham contorceu o rosto para
barbear o queixo.
Joanna estava certa em manter segredo sobre a
morte de Prewitt, e Hugh teria de compactuar com a
história, por mais desconfortável que se sentisse a
esse respeito.
— Ora essa! — Uma voz feminina veio do beco.
— Vejam só quem voltou!
Hugh olhou pela janela e viu uma prostituta de
olhos amendoados, num vestido vermelho
provocante, espiando por entre as grades.
— Leoda. — Hugh se levantou e se aproximou da
janela. Ela ofereceu a face, que ele beijou, notando
que ela ainda usava o mesmo perfume adocicado.
Parecia ter envelhecido no último ano, ou talvez
assim pensasse por nunca tê-la visto à luz do dia.
De qualquer forma, Leoda continuava sendo uma
das meretrizes mais belas de Londres. — Não é
muito cedo para você estar de pé?
— Passei a noite com um cliente. — Ela bocejou.
— Quando acordei, ele tinha sumido sem nem ter
me pagado. E ele se aproveitou de mim duas vezes,
o maldito. Vou voltar para o meu quarto, mas antes
quero ver se minha senhoria me cede um pouco de
pão, estou morrendo de fome.
— Ainda está morando naquele sótão da rua
Milk?
— Sim. — Com um olhar provocante, passou a
mão pelas grades e o acariciou nos lábios. — Precisa
me visitar um dia desses para que eu demonstre o
quanto senti sua falta.
— E um convite tentador.
Desviando o olhar para Graeham, ela o avaliou
enquanto ele limpava o rosto recém-barbeado com a
toalha.
— E quem é esse? Um amigo seu? Que lindos
olhos.
— Graeham está alugando este quarto da minha
irmã, Joanna.
— Pode levá-lo com você, se quiser. A três nos
divertiremos mais.
— Quem dera — Graeham disse. — Não creio que
eu consiga chegar lá. — Levantou a perna da
ceroula para mostrar a tala.
— Coitadinho. Bem, se não pode ir até Leoda,
tem de deixar Leoda vir até você.
Graeham olhou para a frente da casa, e Hugh
seguiu seu olhar. Lá estava Joanna, conversando
com um transeunte sem parar o bordado.
— Aqui não, seria. — Graeham meneou a cabeça.
— Não.
— Ah, a irmã. Você e ela.
— Não — disseram Graeham e Hugh ao mesmo
tempo.
Leoda olhou de um para outro, parecendo se
divertir.
— Bem, se mudar de ideia, passo por este beco
todas as noites. Só precisa amarrar um pedaço de
barbante na persiana para que eu saiba. Ah, deixe o
ferrolho da cozinha aberto, entrarei sem fazer
barulho.
— Não acho que.
— Cobro dois centavos pelo de sempre, um extra
se o seu pedido for especial. — Olhou-o de alto a
baixo. — Sir Hugh, venha me ver. Precisamos
recuperar o tempo perdido.
Hugh curvou-se e disse:
— Mal posso esperar.
— Seu mentiroso. — Ela lançou um beijo e se
afastou.
— Espere, Leoda! — Graeham a chamou.
Hugh o olhou curioso quando o viu pegar a bolsa
de moedas. Leoda reapareceu na janela, com um
sorriso de satisfação quando Graeham estendeu
quatro moedas para que Hugh as entregasse.
— Já mudou de ideia?
— Quatro centavos. Não foi o que o homem
desta noite ficou lhe devendo?
— Está pagando por ele? — perguntou curiosa.
Graeham deu de ombros.
— Uma bela mulher como você não deveria
mendigar o café da manhã.
Leoda o encarou surpresa e depois guardou, as
moedas.
— Estarei esperando pelo barbante. Quando ela
partiu, Hugh riu e meneou a cabeça.
— Agora terá de ir para a cama com ela, pois ela
não o deixará em paz.
— Não pode estar falando sério.
— Sei que ela está um pouco madura, mas vem
ganhando a vida desse modo há bastante tempo e
sabe o que faz. Pelo modo como o olhou, ficará
satisfeita em servi-lo da melhor maneira.
— Não é pela idade dela. — Graeham balançou a
cabeça em descrença. — Ora, Hugh, num minuto
está ameaçando me capar se eu tirar proveito da
hospitalidade da sua irmã, no instante seguinte
sugere que eu convide uma prostituta para a casa
dela.
— Faça isso tarde da noite, e Joanna jamais
saberá.
— Seu senso de retidão é bem estranho.
— Veja bem. — Hugh voltou a se sentar. — Sei
que prometeu manter distância de Joanna e me
parece um homem de palavra, mas, por experiência
própria, sei que abstinência prolongada, quando por
força das circunstâncias e não por livre escolha,
tende a deixar os homens sem escrúpulos.
— Dê-me o benefício da dúvida quanto ao meu
auto-controle.
— Não sou cego, vi como a observa.
Graeham sentiu um calor lhe subir às faces.
— A preocupação fraterna está fazendo com que
veja coisas.
— Como é possível que um homem normal viva
sob o mesmo teto que uma bela mulher e não se
sinta tentado? Eu ficaria muito mais tranquilo
quanto às suas boas intenções se amarrasse um
barbante na janela de vez em quando. Além do
mais, não é saudável ficar tanto tempo sem se
aliviar.
— Pensarei a respeito.
— Você só está dizendo isso para que eu pare de
amolá-lo.
— Há alguma coisa que eu possa dizer que fará
com que isso aconteça?
— Acho que não. Graeham sorriu, concluindo:
— Acho que esses dois meses serão bem longos.
— Serão mesmo se insistir em se comportar
como um monge. Bem, vou fazer uma visitinha a
Leoda hoje à tarde. Ela fica inspirada quando sente
saudades — Hugh disse, sorrindo. — Posso pedir
para que passe aqui hoje à noite.
— Não. Mas há algo que poderia fazer por mim
quando tiver a oportunidade. Duas coisas, na
verdade. Quando passar perto da São Bartolomeu,
poderia pegar minhas coisas?
— Com prazer.
— E ainda vendem cavalos na Smithfield às
sextas-feiras?
— Acredito que sim.
O mercado ao norte da cidade era o ponto alto da
semana para a maioria das pessoas em Londres.
— Tenho uma égua no estábulo da São
Bartolomeu. Se pudesse vendê-la para mim, eu
agradeceria.
— Uma égua. — Joanna comentou da soleira da
porta, segurando os artigos de papelaria pedidos
anteriormente. — Não me pareceu ser o tipo de
homem que cavalga éguas, sargento.
Parecendo embaraçado, Graeham disse:
— E. uma longa história. Isso é para mim?
— Sim — concordou ela, dispondo os itens sobre
o baú. — Este barbante não é o mais adequado para
fechar uma carta, mas foi o melhor que pude
arranjar.
— Está perfeito, obrigado.
Ela encarou Graeham com uma intensidade que
desconcertou Hugh.
— Parece diferente — disse ela.
— Eu me barbeei — ele respondeu, sem
desprender os olhos.
Ela assentiu e notou a mudança de cor nos
cabelos do sargento. Na noite anterior, pareciam
escuros, porém depois de limpos revelavam-se
castanhos com um brilho arruivado. Parecia pronta a
fazer algum comentário, mas relanceou o olhar para
a loja, onde viu duas mulheres.
— Tenho de ir lá ver o que elas precisam. Volto
mais tarde para esvaziar a bacia e ver se aceita algo
para comer.
Depois que ela saiu, Hugh disse:
— Também preciso ir, pois prometi devolver logo
a carreta.
— Obrigado por sua ajuda, Hugh. Quanto ao seu
conselho no que se refere à Leoda. — Ele meneou a
cabeça, sorrindo.
Usando o canivete, Hugh cortou um pedaço de
barbante e o entregou a Graeham.
— Pense a respeito — disse e foi embora.

Graeham interrompeu a segunda leitura do


romance de Wace, Roman de Brut,
automaticamente desviando os olhos para a figura
delgada de Joanna na bancada da loja, mostrando
seus produtos a uma freguesa.
Uma semana havia se passado, e ele ainda não
se cansara de observá-la ocupada nos seus afazeres
diários. Gostava do modo como ela se movia, da
elegância impensada dos seus gestos. Apreciava a
rouquidão da voz que conversava amigavelmente
com os transeuntes, ainda que ela não parasse de
bordar. E, mais do que tudo, se deliciava com o
perfume primaveril que permeava o cômodo toda
vez que ali ela passava, o que não acontecia com a
frequência desejada.
Sua perna ainda doía, bem como as costelas,
mas a dor já não era excruciante. O cirurgião o
visitara no dia anterior para verificar as talas e
aproveitara para lhe vender um par de muletas,
uma melhora incrível da marreta e da vassoura que
ele usava eventualmente. Contudo, como não podia
mostrar-se na rua, as muletas continuavam
apoiadas à parede na maior parte do tempo.
Usando o barbante que Hugh lhe entregara para
convocar Leoda, marcou a página e fechou o livro.
Deixou-o em cima dos outros volumes, uma mistura
de história, poesia e narrativas épicas, comprados
pelo amigo numa loja de usados.
Com exceção da ameaça de
##castrar/machucar/desarmar<< emasculação caso
se aproveitasse de Joanna, Hugh vinha se
mostrando um bom companheiro. Durante o dia,
quando não estava com a irmã, parecia mais do que
contente em ajudá-lo em alguma tarefa. A noite
ocupava-se como qualquer outro soldado de folga,
farreando e entretendo-se na companhia de
mulheres fáceis, ele e os amigos sempre estavam
um passo à frente das tropas designadas a deixar as
ruas londrinas vazias depois do toque de recolher.
Graeham ouvia com inveja algumas das aventuras,
pensando que, se não estivesse preso à cama, já
teria participado de algumas delas.
Vozes exaltadas de uma casa vizinha chamaram
sua atenção. Mais uma vez, o homem encorpado de
aparência abastada estava aos gritos com um jovem
de cabelos escuros. As brigas eram diárias e,
naquele dia, a mulher tentava apaziguar os ânimos
do marido e do filho.
Graeham estava cansado de ouvi-los discutir.
Não aguentava mais ouvir os gritos dos vendedores
ambulantes na rua, nem o ruído das rodas das
carroças ou o grunhir dos porcos. Não suportava
mais ler os mesmos livros. Estava cansado de ficar
deitado como um inválido enquanto sua missão o
aguardava.
A única coisa que ainda gostava de fazer era
observar Joanna. A sua fascinação não tinha nada a
ver com o tédio. Voltou a olhá-la. Dessa vez, ela
entregava um pacote a uma mulher que colocava
um fardo, parecido a um monte de velas, em cima
do balcão.
Além dos livros, havia pouco com que se distrair.
Decidira se recuperar ali por causa da localização,
mas, até o momento, suas observações da casa de
Le Fever tinham sido de pouca ajuda. Byram, Aethel
e a cozinheira pareciam executar bem suas funções,
embora o patrão sempre encontrasse motivos para
reclamar de alguma coisa. O mercador parecia
especialmente incomodado quando via Byram flertar
com a cozinheira, e Graeham se perguntava se o
homem fazia ideia de que, assim que saía de casa,
os dois escapavam para o estábulo, voltando mais
tarde desgrenhados e cheios de palha.
Às tardes, Le Fever trabalhava em casa,
recebendo homens, comerciantes provavelmente, e
documentos e dinheiro trocavam de mãos.
A filha da farmacêutica, Olive, ia todos os dias à
casa entregar o tônico de Ada. Naqueles momentos,
Graeham costumava encostar as persianas para que
ela não o visse.
Joanna não exagerara ao dizer que as pessoas
gostavam de espiar pelas janelas. Na maioria das
vezes, ele não se importava com a intromissão. Na
verdade, as conversas que mantinha com o leproso
Thomas a respeito de história e literatura eram o
ponto alto dos seus dias. Até mesmo Leoda era uma
distração quando parava para conversar. Não se
importava que os dois soubessem da sua estada ali,
pois eles não conheciam seus reais interesses. Olive,
por outro lado, o vira na casa de Le Fever, e só Deus
sabia o que ela tinha ouvido ou suposto. Não
poderia ser visto pela ruivinha.
Ada Le Fever não aparecera, ainda que os
últimos dias tivessem sido ensolarados e agradáveis,
levando os moradores do quarteirão aos quintais
para os primeiros plantios de ervas e hortaliças. As
janelas do terceiro andar estavam sempre fechadas,
e o único indício de que alguém ocupava aquele
cômodo era a luz amarelada de uma vela no início
da tarde, apagada ao som dos sinos da igreja mais
próxima ao cair da noite.
O bater da porta de Le Fever na saída de Olive
chamou a atenção de Graeham, que se encolheu um
pouco na cama, embora a moça não tivesse porque
olhar na sua direção.
— Olive — a voz de um jovem chamou no beco.
Graeham vislumbrou duas silhuetas pelas frestas da
persiana.
— Damian, o que está fazendo aqui? — ela
perguntou com suavidade.
— Estou esperando por você.
Petronilla, que tinha escolhido aquele momento
para se aconchegar a Graeham, miou alto. Olive
arfou, assustada.
— É só um gato — o rapaz garantiu. — Olive,
preciso falar com você.
— Não deveria. E se o seu pai o vir?
Outro miado. Para silenciar a gata, Graeham
começou a afagá-la.
— Não me importo com o que meu pai pensa.
— Então não passa de um tolo.
— Talvez eu seja. Mas o que ele exige de mim.
Não importa. Nada me importa além de você.
— Eu não. — Ela respirou fundo e prosseguiu: —
Não sou o que você acredita que eu seja. Há certas
coisas a meu respeito que eu jamais poderia revelar.
— Tenho olhos e ouvidos, Olive. Não há nada que
possa me dizer que eu já não tenha entendido.
— Oh, meu Deus. — ela murmurou, a voz
emocionada.
— Eu te amo, mesmo assim. — A voz suave do
jovem mal se podia ouvir.
— Deus, não. — Olive estava à beira das
lágrimas. — Não pode. Eu não acredito.
— Olive, nada mais importa a não ser nós dois.
Eu te amo.
— Não. não. Nunca poderemos ficar juntos. Não
entende? — Ela soluçou. — Deixe-me em paz!
— Olive! Por favor, espere!
Passos rápidos desceram o beco na direção da
rua Woods. Depois disso, um profundo suspiro e
uma imprecação, seguidos de passos na direção
oposta. Pela janela dos fundos, Graeham viu uma
figura vestida num manto escuro e chapéu de feltro
seguindo para a rua Milk.
— Veja! — Joanna mostrou as velas que a
freguesa lhe dera. Petronilla pulou da cama e foi se
esfregar nos tornozelos da dona. — Vendi um lenço
para a fabricante de velas, e ela me pagou em
mercadoria. Muito melhor do que sebo para as
lamparinas, não?
— Excelente — Graeham respondeu distraído,
com o olhar perdido.
Joanna acompanhou a direção do seu olhar e se
deparou com a jovem que corria para a rua Woods.
O capuz do manto verde caíra, revelando os cabelos
ruivos.
— Aquela é Olive, a filha da farmacêutica. — Com
um olhar repleto de significados, acrescentou: — E
uma bela garota.
Graeham se desconcentrou e, olhando-a,
perguntou:
— É mesmo?
— Não foi isso que o levou a encará-la?
— Na verdade, não. Ela. está triste. Eu a ouvi
conversando com um jovem no beco, um
pretendente, pelo que pude entender. Ela o repeliu.
—É assim que passa seu tempo, sargento?
Espionando a conversa das pessoas?
— É uma maneira de o tempo passar mais
rápido. — Com a expressão séria, disse: — Ela fugiu
chorando.
— Coitadinha. — Joanna se virou e olhou para a
farmácia. — A vida dela não tem sido fácil nos
últimos tempos. Acho melhor eu conversar com ela.
Quem sabe amanhã antes da feira.
— Vai ao mercado?
— Sim, Hugh vai vender sua égua no mercado de
Smithfield.
— Estou causando muito transtorno ao seu
irmão.
— Ele não se importa. Hugh fica muito inquieto
durante as folgas. — Lançou um sorriso
conspiratório. — E os seus pedidos o afastam da
bebida e das mulheres fáceis.
Graeham suspeitava que nada afastaria Hugh
dessas mulheres.
— Então vai à feira com Hugh? Achei que não
pudesse deixar a loja o dia inteiro.
— Uma semana atrás isso seria impensável, mas
seu dinheiro facilitou as coisas por aqui. Hugh
acredita que essa seja uma boa oportunidade para
eu me distrair um pouco. — E para rever o velho
amigo com o qual ele tem esperanças de que eu me
comprometa, ela pensou.
— Farei com que Robert nos encontre na feira —
Hugh dissera. — Não posso trazê-lo para cá já que o
sargento acredita que você seja uma mulher casada.
Vista algo bonito. E lembre-se de não cobrir a
cabeça. — Teria de tomar banho naquela noite, mas
a presença de Graeham complicaria as coisas. Seria
melhor esperar que ele estivesse adormecido.
— Eu adorava ir a Smithfield — Graeham disse,
saudoso. — Nós, os garotos de Holy Trinity,
costumávamos ir lá nas tardes de verão. Frei Simon
dizia que precisávamos exercitar os corpos, além da
mente e da alma, e organizava jogos de bola contra
os garotos de outros colégios. Aos domingos
assistíamos às disputas de justa.
Ela sorriu, tentando imaginar o soldado viril como
um menino. Ele devia ter sido magro e até
desajeitado. Os homens do seu porte costumavam
atravessar períodos de crescimento repentino na
juventude, antes de preencher a estrutura com
músculos bem definidos.
Hoje em dia não havia nada de desajeitado nele,
nem um vestígio do mau-caráter que parecia na
noite em que o encontrara no depósito, sujo e
embriagado. Barbeava-se todos os dias, talvez mais
por falta do que fazer do que por obsessão com a
aparência. O cabelo estava sempre bem penteado, o
rosto limpo. Os olhos azuis eram os mais intensos
que ela jamais vira em qualquer pessoa. A sua
beleza masculina a afetava e, por isso, evitava
encará-lo, temerosa de que ele percebesse a
admiração no seu olhar.
Seus modos eram sempre educados e
respeitosos. Embora imaginasse que seus dias
fossem entediantes e percebesse que nos poucos
momentos em que o via para levar comida ou
arrumar o quarto ele gostaria que permanecesse
mais, ele jamais a importunava. No entanto, ele a
desconcertava, observando-a sempre, seguindo seus
passos. Sim, era um cavalheiro, mas ela não deveria
se acostumar com o olhar curioso e frouxo.
Todavia, Joanna não esquecia o toque fortuito na
noite em que o ajudara a se levantar. O que
começara com um contato acidental, parecera ter se
tornado cheio de segundas intenções. Ainda sentia o
calor dos dedos a lhe queimar a pele e isso a
deixava agitada, repleta de sensações
contraditórias.
— E eu tirava as roupas — ele dizia — e ficava à
vontade, deixando a água me envolver. Era o
paraíso. Ela piscou, saindo de um transe.
— Desculpe, eu.
— Eu estava lhe contando como eu fugia à noite
para nadar no lago de Smithfield. — Ele riu. — Pelo
visto, a história não foi muito interessante. — O
sorriso pareceu tímido. — Só estou tentando detê-la
para conversar comigo. Quando decidi permanecer
aqui, não imaginei que ficaria tão entediado.
— Desculpe, eu.
— A culpa não é sua. Tem seus próprios
afazeres. Não sou um convidado, apenas um
pensionista. E já fez muito por mim.
— Tolice. Não me causa nenhum problema.
— Não sabe mentir muito bem. — Seu sorriso
mostrava descrença.
Joanna sentiu-se corar, por isso foi até a porta.
— Bem, preciso voltar.
— Ficará fora o dia inteiro amanhã?
— Até as Vésperas. Eu deixarei comida e bebida
prontas.
— Obrigado.
Ela parou na soleira.
— Ficará ainda mais entediado. Lamento.
Graeham deu de ombros.
— Não posso esperar que fique aqui só por minha
causa.
Joanna se virou para sair, mas foi detida mais
uma vez:
— A senhora é feliz?
Lentamente, ela virou. Ele estava sentado na
beira da cama, o olhar penetrante provocando-lhe
tremores pelo corpo.
— Essa é um pergunta impertinente — ele
mesmo concluiu. — Parece que criei o hábito de
fazê-las. Talvez seja fruto do tédio.
Ela assentiu como quem concordava.
— É ou não?
— Sargento, eu. eu não sei como responder a
essa pergunta. — Relanceando o olhar para a loja,
disse: — Bem, preciso mesmo ir.
— Eu gostaria de jantar com a senhora hoje à
noite.
— Jantar? — repetiu.
— Sim. Gostaria de me sentar à mesa em vez de
comer aqui. Na verdade, gostaria de ter a sua
companhia em todas as refeições de agora em
diante.
— Mas a sua perna.
— Vem melhorando a cada dia. — Pegando as
muletas, ergueu-se e sorriu. A Joanna pareceu que
os dentes estavam cerrados demais. — Conseguirei
chegar até a mesa.
Apoiando-se nas muletas, ele avançou na direção
de Joanna, que rapidamente retrocedeu.
— Deveria ficar na cama. O sr. Aldfrith disse que.
— Meu corpo vai definhar se eu ficar dois meses
inteiros na cama. Vamos lá. Deixe-me partilhar das
refeições com a senhora. — Com cuidado,
acrescentou. — Prometo não perguntar se é feliz.
— A senhora é muito infeliz? — Graeham
perguntou ao partir um bom pedaço de pão de
cevada e mergulhá-lo no cozido de cordeiro.
Joanna o censurou com o olhar do outro lado da
mesa.
— Pensei que não fosse me perguntar.
— Se é feliz. Nunca disse que não lhe perguntaria
se é infeliz.
— O senhor é muito impertinente. — Ela voltou a
encher as taças de vinho, um luxo como o cordeiro
que ele insistia em ter e pelo qual pagava.
Ele a encarou e depois insistiu:
— E então?
— Pareço infeliz?
— Não, mas existem pessoas com o dom da
perseverança. Estive observando-a.
Ela o encarou enquanto tomava um gole de vinho
e depois baixou os olhos. Parecia corada, ou talvez
fosse somente o efeito da luz das velas. A cabeça
estava coberta como de costume e vestia o seu
vestido mais feio. A lã estava puída e havia um
remendo perto do colarinho sobre o qual se via uma
porção da túnica de linho. Sempre havia um toque
de desalinho na sua pessoa, como se estivesse tão
ocupada que mal tivesse tempo de se arrumar
direito. Aquela noite não era diferente: o laço da
túnica estava desamarrado e pendurado sobre o
corpete do vestido. A túnica ligeiramente solta
deixava entrever um pedacinho da curva do seu
seio, e Graeham se esforçava para não deixar o
olhar descer enquanto conversavam.
No momento em que ele terminava de comer, a
inquietante Petronilla pulou para o banco ao seu
lado para receber um afago. Ele a pegou pelo
cachaço e a colocou no chão. A presença dele à
mesa fez Manfrid se esconder.
— Trabalha do amanhecer até o anoitecer, ou até
mais. Muitas vezes ainda está bordando quando vou
dormir. Sem falar dos afazeres domésticos. Tudo
isso sem reclamar de nada, como se. — Ele hesitou,
mas foi em frente. — Como se tivesse nascido para
esta vida, como se este fosse o seu destino e não
um motivo para se sentir infeliz.
— Foi Hugh quem lhe disse isso?
— Ele só me contou que a senhora se casou com
alguém baixo do seu nível social. por amor.
Joanna empurrou a tigela com a metade da
refeição e sorveu um gole de vinho.
— E que foi bem-sucedida na loja, apesar do seu
marido estar sempre no exterior. Deve se sentir
solitária.
— Não me sinto.
Limpando as mãos ao terminar de comer,
Graeham afirmou:
— Não é pecado se sentir só, eu mesmo.
— Não se sinto só.
Ela era orgulhosa demais para admitir tal fato,
ele notou.
— Muito bem, não vou insistir.
— Então porque me interroga com tanta
persistência? Anda tão entediado assim?
— Talvez a senhora seja interessante. — Ele deu
de ombros.
Uma risada sardônica escapou dos lábios dela.
— Sou uma lojista em West Cheap e nada mais.
— Foi muito mais, um tempo atrás — ele disse
com calma. — Ainda é.
Ela o encarou envergonhada. Aproveitando-se da
proximidade de Petronilla, estalou a língua e a
chamou, desviando a atenção. Pegou um pedaço de
carne e o ofereceu à gata.
Atrás dela, Graeham viu uma figura passar. A
pessoa parou à janela. Era Leoda, pronta para o
trabalho. Vendo-o com Joanna, soprou um beijo e
sorriu. A prostituta prendeu sua atenção durante um
tempo mais do que o adequado e, por isso, Joanna
se virou.
— Boa noite, sra. Joanna — Leoda a
cumprimentou. Joanna sorriu com cortesia.
— Se está procurando por meu irmão, Leoda, ele
já foi embora. Lamento, mas não sei onde foi.
— Ah, que pena — Leoda respondeu, embora
Graeham tivesse quase certeza de que era ele o
procurado, visto que costumavam conversar àquela
hora. — Diga a sir Hugh que estive procurando por
ele, por favor.
— Sim, claro.
— Obrigada. — Leoda se afastou sem falar com
Graeham. Uma boa meretriz sabia que não deveria
falar com um homem acompanhado de outra
mulher.
Graeham na verdade não se importava que o
vissem falando com Leoda. Meretriz ou não, ela era
uma boa pessoa e não sentia vergonha de ter se
tornado seu amigo.
— Leoda é uma das mulheres. da vida daqui do
bairro. — Joanna começou a recolher a louça. — Ela
é uma das favoritas de Hugh.
— Fiquei imaginando como conhece. uma mulher
do tipo dela pelo nome.
— Hugh poderia ter qualquer mulher que
quisesse, no entanto, prefere as que não exigem
nada dele além de algumas moedas. Será difícil
alguém lhe colocar um cabresto.
— E por isso que ele escolheu ser um
mercenário? Pela liberdade?
Joanna franziu o cenho ao refletir.
— Bem, ele gosta de liberdade, sem dúvida. Mais
do que tudo, porém, detesta ter de viver às sombras
das expectativas de outras pessoas. Tudo isso por
causa do modo como foi criado. Como fomos
criados. Há muitas exigências pairando sobre nós. —
Limpando a mesa, mudou de expressão e lançou um
sorriso cativante. — Fui à doçaria como me pediu.
Eles tinham tortas de creme.
— Que ótimo. — Doces estavam sempre
presentes à mesa de lorde Gui, e Graeham sentia
falta deles. — Fico surpreso ao ouvi-la falar de
exigências. Tive a impressão de que foram criados
num lar privilegiado.
— De certa forma era privilegiado. Wexford é um
castelo.
— Castelo!
Joanna desempacotou a torta e a serviu,
voltando a se sentar.
— William de Wexford é nosso pai. É um
cavaleiro de renome com uma vasta propriedade
mais ao sul. Nossa mãe morreu de uma febre depois
do meu nascimento, mas ele ainda está vivo.
— Hugh é o herdeiro das terras?
— Não saberemos até que papai morra. Ele
mantém Wexford por ordem do seu senhor
supremo, que pode ou não escolher Hugh como
herdeiro. — Ela provou a torta, sendo imitada por
Graeham. O doce estava divino.
— Ele não fica incomodado por não saber se as
terras lhe pertencerão?
— Nem sei se ele as quer. As lembranças de
Hugh, assim como as minhas, daquele tempo não
são muito agradáveis. Nosso pai é um homem
seguro do que quer e nunca se fez de rogado sobre
como conseguir isso. No dia em que Hugh
completou quatro anos, ele o entregou ao chefe das
tropas, um monstro chamado Regnaud, para que o
transformasse no maior cavaleiro de todo o reino,
uma honraria que se refletiria nele mesmo, é claro.
Ele deu carta branca a Regnaud para disciplinar
Hugh e. Bem, digamos que meu irmão não teve uma
bela infância.
— E a senhora — Graeham perguntou com o
cenho franzido —, também foi disciplinada?
— Não com o chicote. Era papai quem me
castigava quando eu o desagradava. Nessas horas
trancava Hugh na adega para que não interferisse.
— Respirou fundo, sem encará-lo. — Acredito que eu
desafiava seu parecer sobre como uma dama
deveria se comportar. Eu costumava explorar a
floresta quando me esperavam para as aulas. Esse
tipo de coisa.
— Ele batia muito?
— Nunca apanhei no rosto. Ele não queria
macular minha aparência já que planeava me casar
com o filho do barão Gilbert de Montfichet e, assim,
se alavancar na sociedade.
— Esteve comprometida com um filho de lorde
Gilbert? — perguntou incrédulo.
Gilbert de Montfichet e o primo, Walter, eram os
únicos presioneirores do baronato de Londres. Seus
castelos, Montfichet e Baynard, ##propriedade
<<fincados lado a lado no extremo oeste da cidade
eram as únicas fortalezas além da Torre de Londres.
Como únicos barões, eles eram presioneirores de
grande poder e gozavam de influência junto ao rei.
— O mais jovem — Joanna esclareceu. — Ele
tem, ou melhor, tinha dois. O mais velho, Geoffrey,
morreu de sarampo dois anos atrás. Nicholas era o
segundo. Nunca ficamos noivos oficialmente, mas
quando completei onze anos, papai me enviou para
servir a baronesa, lady Fayette, no castelo de
Montfichet. Pelo que sei, negociariam o noivado se
me considerassem à altura. Como deve imaginar,
fiquei indignada por ser o peão nos planos de
progresso social do meu pai, mas fiquei contente por
sair de Wexford e vir para Londres.
Joanna quebrou mais um pedaço de crosta e
lambeu os dedos lambuzados pelo creme. Uma onda
de excitação tomou o corpo de Graeham.
— Gosta de Londres? — perguntou ele, tentando
ignorar a língua rosada que lambia os lábios
sedutoramente.
— Na época sim. Era grande e majestosa e todos
pareciam refinados. Eu gostava muito de lady
Fayette. Foi ela quem me ensinou a bordar.
— Ela deveria receber um prêmio, pois a senhora
é muito talentosa.
— Obrigada — Joanna agradeceu tímida.
— Porque não se casou com o filho do barão? —
Graeham terminou de comer o doce. — Os pais não
a aprovaram?
— Não, eles pareciam me adorar, e Nicholas
parecia disposto. Fui eu quem desistiu. O contrato
foi escrito quando eu tinha catorze anos, mas eu. Eu
não pude concordar. Protelei por quase um ano,
tentando encontrar uma maneira de me esquivar.
— Detestava Nicholas tanto assim?
— Eu até gostava dele. E ele parecia gostar de
mim. Até certo ponto. Nicholas é um daqueles
homens que. preferem os encantos do próprio sexo.
Todos sabiam disso. Eu não conseguia me conformar
com tal união, mas ao mesmo tempo detestava a
ideia de voltar a Wexford. Meu pai ameaçou me
bater até a morte caso eu fosse mandada de volta.
Graeham, que tinha levantado o copo de vinho, o
baixou e perguntou:
— Acredita que ele chegaria a tanto?
— E possível. Ele tinha um temperamento
terrível. Havia pressão de todos os lados para que
eu aceitasse, senti-me perdida, sem ter com quem
me aconselhar.
— E quanto a Hugh?
— Hugh virou mercenário assim que se tornou
cavaleiro aos dezoito anos, mais ou menos na
mesma época em que fui enviada para cá. Ele me
disse que sabia que eu não precisaria mais dele para
me proteger já que eu ficaria longe do nosso pai.
Disse também que enlouqueceria se tivesse de ficar
em Wexford sob o jugo dele.
— Então, aos quinze anos estava só, aflita.
— Aterrorizada — corrigiu ela.
— Foi então que conheceu seu marido? Joanna
olhou para baixo e remexeu na torta.
— Prewitt tinha ido a Montfichet para mostrar
sedas a lady Fayette. Fiquei instantaneamente
impressionada. Ele era mais velho, viajado, vestia-
se como um cavalheiro. Ele, me cortejou às
escondidas. — Deu de ombros. — Nos casamos em
duas semanas.
— Isso não deve ter agradado ao seu pai.
— Ele me baniu de Wexford. Não o vejo há seis
anos.
— É uma pena.
— Não é, não. Ficarei feliz se nunca mais voltar a
vê-lo.
— Ah, voltamos ao assunto da felicidade. —
Graeham se inclinou para a frente, apoiando-se nos
cotovelos. — Vai me contar se é feliz ou não?
Ela revirou os olhos e começou a arrumar os
pratos.
— Vou levar a louça até a cozinha para lavá-la.
Depois tenho que. tenho algumas coisas a fazer.
— Mais bordados?
Ela assentiu sem encará-lo.
— Vai acabar ficando cega se continuar a bordar
à noite.
— Vou perder negócios se assim não o fizer.
— Seu marido logo deve voltar com mais tecidos
para vender. Nesse meio tempo, tem meus quatro
xelins para ajudá-la a se manter. Não deveria
trabalhar em excesso.
Joanna se levantou e guardou a jarra de vinho.
— E um hábito difícil de romper. Graeham sentiu
um repuxão na tala e, olhando para baixo, viu que
Petronilla afiava as unhas na madeira. Ele a
empurrou.
— Gatos são criaturas sem sentido para mim —
ele comentou. — Sem querer ofender, mas não
consigo entender como alguém se dá ao trabalho de
manter um animal como esse.
Pegando uma bandeja de uma prateleira, Joanna
voltou à mesa para pegar os pratos.
— Tem medo deles, sargento?
— Não, apenas prefiro a companhia de um bom
cachorro. Gatos são criaturas inúteis, a não ser para
caçar ratos.
— Manfrid nunca pega nada, mas Petronilla é
uma boa caçadora.
Ele bebeu o último gole e entregou o copo.
— Pelo menos ela tem alguma serventia. Já o
irmão, medroso como ele é. Para mim é um mistério
porque se dá ao trabalho de mantê-lo.
— Ele tem medo dos homens. Acho que foi
maltratado quando era filhote. Ele gosta quando só
estou eu aqui. Fica sempre no meu colo quando não
há mais ninguém por perto.
— Cachorros também aquecem e podem ser
treinados.
— Manfrid não existe para me servir — ela disse
um tanto irritada. — Ele apenas é o que é. Gosto
dele assim: grande e doce. Ele precisa ter alguma
serventia para que eu goste de tê-lo por perto?
— No meu ponto de vista, sim.
— Quem sabe — disse ela com frieza ao ir para a
cozinha — não seja isso o que nos torna tão
diferentes? — Na soleira, parou e se virou. —
Precisa de mais alguma coisa antes de dormir,
sargento?
— Não, obrigado. — Levantando-se, apoiou-se
nas muletas e se despediu: — Boa noite, senhora. —
Boa noite.
Graeham acordou com o som da porta de trás se
fechando. Imóvel no escuro, aguçou os ouvidos às
passadas abafadas no corredor ao lado do depósito.
Alguém tinha entrado. Um intruso? Talvez.
Quem quer que fosse, estava claro que tentava
passar despercebido.
Joanna está lá em cima.
E ele estava impotente. Como poderia defendê-la
naquele estado? Sentou-se, com o coração
acelerado, e usou as duas mãos para baixar a perna
imobilizada. Erguendo-se com o auxílio das muletas,
apanhou a faca que tinha tomado do ladrão na
semana anterior. Ao coxear até a cortina, um
pensamento lhe ocorreu: o intruso poderia ser
Prewitt Chapman, de volta da sua última viagem.
Como o mercador reagiria ao encontrar um
desconhecido praticamente nu, já que costumava
dormir somente com as ceroulas, abordando-o com
uma faca na sua própria casa no meio da noite?
Que horas seriam? Lembrou-se de ter ouvido os
sinos da igreja anunciando o toque de recolher
enquanto lia antes de dormir. Prewitt não
conseguiria entrar na cidade com os portões
fechados, portanto, não deveria ser ele.
Tentando ser silencioso, afastou um pouco a
cortina e espiou a saleta iluminada pela luz de velas.
Joanna, de perfil e com a trança sobre o ombro,
retirava o vestido castanho. A peça caiu aos seus
pés, deixando-a somente com a gasta túnica de
linho sem mangas, que só chegava até os joelhos.
As pernas, muito bem formadas, estavam cobertas
por meias escuras.
O laço da túnica ainda estava desamarrado e
quando ela se inclinou para apanhar o vestido, a
vestimenta escorregou revelando um ombro.
As mãos de Graeham se retorceram, o desejo
pulsou na virilha.
Joanna estava se preparando para um banho. A
mesa fora desmontada: o tampo se achava
encostado na parede e a base cilíndrica tinha sido
virada, transformando-se numa tina ao lado da qual
jaziam dois baldes de água quente. Os bancos, que
normalmente flanqueavam a mesa, ladeavam a tina.
Num deles estavam a camisola de seda, uma toalha,
uma barra de sabonete, um pente de marfim e um
frasquinho. No outro ela depositou o vestido
dobrado, ao lado do cinto e do véu. Sentou-se nele
e retirou os sapatos.
Graeham sabia que não devia espiá-la, era
vergonhoso. Não havia desculpas para aquilo. Devia
fechar a cortina e voltar para a cama.
Levantando a túnica até o meio da coxa, ela tirou
a liga e começou a enrolar a meia até o tornozelo. A
meia de seda brilhava na tênue luz. Havia algo de
extraordinário nessa mulher simples com suas peças
íntimas de luxo que só ela podia ver. E o marido, é
claro, quando este se dignava a estar em casa.
Feche a cortina, seu idiota.
Não conseguiu despregar o olhar enquanto ela se
desvencilhava de uma meia, depois da outra. A
túnica desceu quando ela se baixou para tirar as
meias dos pés, expondo os seios até quase os
mamilos. As pernas se separaram, mostrando a
porção escura na junção das coxas, mas, num piscar
de olhos, seus segredos íntimos voltaram a se
esconder.
Graeham cerrou os olhos e trincou a mandíbula.
Ao olhar novamente, Joanna estava de pé,
levantando um dos baldes, os braços trêmulos
devido ao peso. Pelo barulho, já havia água na tina,
provavelmente água fria do poço que ela agora
misturava com a que fervera na cozinha. Depois de
despejar o segundo balde, ela abriu o frasquinho e
colocou duas gotas de um líquido viscoso: óleo para
banho.
Inclinando-se sobre a tina, ela misturou a água
com uma das mãos enquanto com a outra segurava
a abertura da túnica. Ela fechou os olhos e sorriu ao
sentir o vapor perfumado envolvê-la. Graeham
inalou a fragrância e também sorriu. Era assim,
então, que ela conseguia recender a um bosque
orvalhado mesmo no meio de Londres.
Graeham duvidava ter visto algo mais cativante
do que a sensual Joanna Chapman naquele instante:
os olhos fechados, o sorriso sonhador em
antecipação. Endireitando-se, o sorriso dela perdeu
a intensidade e o olhar ficou perdido, contemplando
a água quente. Ficou parada durante tanto tempo
que Graeham se pôs a imaginar quais pensamentos
a absorviam tanto.
Lentamente, a mão delicada desceu em direção
ao seio, os dedos resvalando o contorno sobre a
túnica. Distraída, como se estivesse hipnotizada,
esfregou o dedo sobre o mamilo, enrijecendo-o.
Graeham pareceu ter criado raízes, o coração
batendo com força ao sentir a ereção se formando.
O semblante sonhador de Joanna não se alterou
conforme a mão descia passando pelo ventre e
prosseguindo. As pálpebras se fecharam quando ela
pousou a mão na junção das pernas. Ela não se
acariciou, apenas ficou quieta, imóvel, perdida em
pensamentos.
Quando ela voltou a abrir os olhos, Graeham
notou que estavam húmidos. O belo rosto feminino
se tornou triste, e ela sussurrou algo como "tola".
Joanna passou os dedos pelos olhos e depois
desamarrou os cabelos, soltando-os da trança.
Penteou as mechas douradas até formarem uma
cortina tão longa quanto a túnica. Deixando o pente
de lado, sacudiu a vestimenta, deixando-a cair numa
poça ao chão.
Estava nua, gloriosamente nua, embora os
cabelos a cobrissem, deixando expostas somente as
pernas.
Graeham fechou a cortina com um suspiro de
desgosto com seu comportamento. Mal fazia uma
semana que tinha prometido a Hugh jamais
desonrá-la e lá estava ele, espiando pela fresta da
cortina como um rapaz inexperiente e de pouco
caráter.
Sempre se orgulhara de ser honrado, mas a
abstinência, como o próprio Hugh tinha apontado,
podia roubar os escrúpulos de um homem.
Coxeando até a cama, deitou-se sem fazer
barulho a fim de que Joanna não percebesse sua
aventura. Deitado, ainda conseguia ouvir o som da
água conforme ela se banhava. Imaginou-a
recostada na tina, envolta naquele perfume
delicioso, os cabelos molhados flutuando ao seu
redor, as mãos ensaboadas sobre os seios e
descendo.
— Deus do céu — sussurrou na escuridão,
sentindo a ereção cada vez mais pungente. — Nunca
conseguirei aguentar dois meses.
Respirou fundo e fechou os olhos, obrigando-se a
relaxar. Tudo o que conseguiu, porém, foi visualizar
Joanna, a cabeça pensa enquanto se entregava ao
prazer que o marido não estava ali para dar. Ficava
excitado só de imaginar uma mulher chegando ao
ápice sozinha. Uma vez em Paris, convencera uma
linda meretriz a fazer tal coisa enquanto ele
somente observava. Aquela experiência tinha lhe
custado quase metade do soldo.
Entretanto, por mais excitante que fosse
imaginar uma mulher se autogratificando, não
conseguia ceder ao seu próprio desejo, não
importando a frustração que sentisse. Parte do
motivo eram os sermões pregados pelos freis
durante sua juventude. A razão maior, contudo, era
o fato de ter dormido em alojamentos a vida inteira.
Se a ameaça do inferno não conseguia ensinar um
homem a sublimar o desejo carnal, a falta de
privacidade certamente o fazia. Descobriu, então,
que conseguia aplacar a luxúria praticando esportes
como lutas e se envolvendo em torneios quando não
havia nenhuma mulher disponível. Infelizmente, não
dispunha dessa alternativa no momento.
Lembrou-se do conselho de Hugh sobre o
barbante na janela e tentou se imaginar com Leoda,
mas sem sucesso. Talvez porque tivesse se tornado
seu amigo ou talvez porque já estivesse farto de
mulheres daquele tipo. Prostitutas e lavadeiras
tinham bastado quando precisara de companhia,
mas agora queria mais. Muito mais do que uma
mulher como Leoda poderia oferecer.
Até setembro, no máximo, estaria casado com
Phillipa e teria um lar em Oxfordshire. Então não
passaria mais as noites acordado pensando em
como aliviar a luxúria.
Notou novamente o barulho da água como uma
música sensual e pensou ter ouvido um suspiro.
— Durma — murmurou para si mesmo — e sonhe
com torneios.
Todavia não conseguiu sonhar com torneios.
Sonhou estar de volta a Holy Trinity e acordar no
meio da noite no dormitório.
— Sargento? —A voz suave parecia suplicante.
Mulheres não entravam no monastério.
Graeham se sentou na cama e viu que estava só.
Todas as outras camas, iluminadas pelo luar,
estavam vazias. Havia um banco no meio do
dormitório e algo branco jogado em cima dele. Uma
camisola de seda. Sentiu o início de uma ereção e
fechou os olhos, recitando as declinações do latim
para se livrar da tentação como os freis tinham
aconselhado. Ao abrir os olhos, viu que o banco
desaparecera, bem como todas as outras camas. O
dormitório estava inundado, como se fosse um lago.
A cama flutuava, balançando, e ele tentava se
agarrar ao colchão de palha para não afundar. Ouviu
a voz chamando-o novamente.
— Está se afogando? — perguntou ele.
— Estou infeliz.
Precisava alcançá-la, salvá-la. Tirou a roupa e
mergulhou. Esperava encontrar a água fria do lago,
porém ela estava quente, como a de um banho.
— Onde você está? — chamou-a.
— Aqui.
Graeham se virou e viu uma sombra. Nadou
naquela direção e estranhou a densidade da água.
Parecia estar nadando em óleo.
— Joanna?
— Sim, sou eu. Vim para fazê-lo feliz.
Percebeu que as coisas tinham mudado. Agora
era ela quem teria de salvá-lo da infelicidade. Os
braços estavam esticados, à sua espera.
— Venha — ela o chamou.
Ele se esticou, ela estava tão próxima, mas ainda
assim não conseguia tocá-la. De perto, viu que ela
tinha os olhos fechados e os lábios entreabertos
num convite.
Aquilo estava errado, ela era casada. Mesmo
assim, inclinou-se para abraçá-la, sentiu os mamilos
roçarem seu peito, as pernas se enroscando, mas,
em seguida, ela desapareceu.
— Joanna. — Graeham acordou arfando. — Deus
meu. — Pousou a mão na virilha e recitou as
declinações do latim mais uma vez. Aguçou os
ouvidos, mas nada ouviu. Ela já devia ter se
deitado.
Seguiu pelo corredor e foi até a porta dos fundos,
destrancando-a. De volta ao depósito, pegou o livro
de cima do baú e retirou o barbante que fazia as
vezes de marcador. Foi até a janela e amarrou-o no
fecho.
Então deixou as muletas no chão e se deitou para
esperar.
Joanna acordou com um ruído no andar de baixo.
Reconheceu o ranger da porta que se abria.
Graeham devia ter saído para ir até a latrina. Depois
da noite em que ele caíra, preocupava-se com o fato
de ele se recusar a usar o urinol, movimentando-se
no escuro. Poderia perder o equilíbrio com
facilidade, cair e só ser encontrado no dia seguinte.
Decidiu ficar atenta para se certificar de que ele
voltaria a salvo. Se em cinco minutos ele não
entrasse, desceria para ver se estava tudo bem.
— Sargento? Outro sonho?
— Não. — Graeham resmungou. O primeiro já
tinha sido de enlouquecer.
— Sargento, estou aqui. — Mãos suaves o
acariciavam. — Acorde.
— Joanna? — Afagou-a na escuridão sem abrir os
olhos. Mesmo sem vê-la, soube pelo perfume
adocicado que não era ela. — Leoda.
— Gostaria de me chamar de Joanna? — A
mulher estava sentada na beira da cama,
acariciando-o por sobre as ceroulas.
— Não.
De que adiantaria fingir? Joanna pertencia ao
marido, e ele estava destinado a Phillipa. Tinha de
parar de pensar nela, de sonhar com ela.
Fechou a mão sobre a de Leoda, que o acariciava
intimamente.
— Está pronto. Vamos começar, então?
— Não. — Sustentando o peso do corpo no
cotovelo, Graeham tentou pegar a bolsa de moedas.
— Meu pobrezinho, está preocupado com a
perna. Deixe comigo, não vou machucá-lo, posso
ficar em cima e.
— Não é isso. — Não conseguiria sair a tempo se
ela estivesse por cima. Leoda devia ser jovem o
bastante para engravidar. Havia muito tempo,
quando descobrira as circunstâncias do seu
nascimento, prometera a si mesmo jamais ter um
filho bastardo. Por isso, tirou três centavos da bolsa.
— Três centavos. Quer algo especial.
— Sim.
— O prazer será meu, sargento.
Inclinando-se, Leoda desfez o nó da ceroula.
Alguém arfou. Graeham olhou na direção da
cortina de couro e viu que lá estava Joanna,
iluminada pela vela, as faces rubras ao ver o que
Leoda fazia.
Graeham tentou se sentar, as costelas
reclamando com o movimento súbito.
— Senhora.
A cortina se fechou, e ele ouviu passos rápidos e
o ranger das tábuas na escada.
Por fim, Graeham se deitou, praguejando
baixinho.
Joanna vestiu-se com primor na manhã seguinte,
colocando o melhor vestido e túnica, um conjunto de
seda, presente de Prewitt de casamento, que usara
somente naquela ocasião.
Olhou para o espelho e franziu o cenho, pois em
vez de enxergar a própria imagem, viu Graeham Fox
acompanhado de Leoda, que se ocupava em despi-
lo. Reconheceu a dor que sentiu no peito, ciúme, e
se repreendeu por ainda ser capaz de tais
sentimentos românticos e ingênuos em relação a
qualquer homem.
Esforçando-se para mudar o curso dos
pensamentos, tentou se concentrar nos últimos
detalhes antes de sair. Aquele tinha de ser um dia
de relaxamento e prazer, algo raro na sua vida, e
não tinha intenção alguma de deixar os
acontecimentos desagradáveis da noite estragar seu
dia livre. Mais tarde lidaria com Graeham Fox.
Deixando o cinto elaborado que usara no dia do
casamento de lado, inapropriado para uma viúva,
passou uma faixa pelo quadril e dispensou a
corrente de todos os dias, queria parecer uma
princesa, não uma lojista.
Quanto ao cabelo, Hugh lhe dissera para não
cobri-lo, mas não seria adequado. Decidindo que
havia limites que devia respeitar, penteou os
cabelos, dividiu-os, amarrou-os com fitas e os cobriu
com um lenço transparente, preso nas laterais,
caindo em ondas sobre os ombros.
Depois de inspecionar a imagem refletida no
espelho, notou que faltava alguma coisa. Brincos!
Procurou o par remanescente, já que o restante
tinha sido vendido.
Em seguida, desceu as escadas, surpresa por
Hugh ainda não ter chegado. A cortina do corredor
estava fechada, o que indicava que Graeham ainda
dormia. O que não era de se estranhar, dadas as
suas atividades noturnas. Tinha tempo, então, de
dar uma passadinha na farmácia e conversar com
Olive.
A pobre moça confiava nela para desabafar
depois que a saúde da mãe começara a deteriorar
no ano anterior. Joanna detestava pensar em
Elswyth como desequilibrada, pois passara diversos
anos na sua companhia. Ficava contente, porém, em
poder ajudar a garota de algum modo, pois se
lembrava claramente o que era ser jovem sem ter
ninguém para conversar.
Atravessou a rua, tomando cuidado para não
sujar a bainha do vestido. Pelo menos a terra estava
seca, já que não chovia fazia vários dias. Bateu à
porta da farmácia que ainda estava fechada.
— Nós ainda não abrimos — gritou uma voz lá de
dentro.
— Olive, sou eu, Joanna — respondeu ela sem
levantar a voz para não acordar Elswyth.
A porta rangeu e um rosto jovem e bonito,
envolto numa massa de cabelos soltos ruivos,
surgiu. Ah, como era bom ser solteira.
— Sra. Joanna! O que a traz aqui tão cedo?
— Gostaria de conversar com você. Posso entrar?
— Sim, claro. — Olive deu passagem. — Como
está elegante hoje!
— Obrigada.
— Há algo errado? — Olive perguntou, pois
normalmente era ela quem procurava Joanna, e não
o contrário.
— Talvez. Foi para descobrir isso que vim até
aqui. — Joanna pegou um frasco azul de cima do
balcão e viu que o brilho da manhã o iluminava
como uma pedra preciosa. — Conversou com um
jovem ontem à tarde no beco e ficou triste.
— Olive! — A cortina que separava a loja do resto
da casa se abriu. Elswyth, ainda de camisola,
encarou a filha com olhos determinados.
A mulher estava mais gorda e desarrumada do
que quando Joanna a vira pela última vez, havia
alguns meses. O cabelo ruivo, como o da filha, dava
sinais de rápido envelhecimento.
— Mamãe, está acordada! — Olive retorcia as
mãos.
— Sim, e a loja ainda está fechada. — O olhar de
Elswyth pousou sobre Joanna.
— Bom dia, sra. Elswyth. — Joanna inclinou a
cabeça num gesto cortês.
Elswyth apontou para o frasco nas mãos de
Joanna, as unhas quebradas sujas de terra.
— Isso é meu.
Joanna voltou a colocá-lo no balcão junto aos
outros.
— Sim, senhora, sei disso.
A mulher se virou para a filha com um olhar meio
enlouquecido.
— Porque a loja não está aberta?
— Ainda é muito cedo, mamãe. Eu nunca a abro
assim tão.
— Abra já! Ou quer apanhar?
— Sim, senhora — Olive suspirou e olhou
desolada-mente para Joanna.
— Eu a ajudarei — Joanna ofereceu.
Ao abrirem a persiana e arrumarem o balcão,
Elswyth já tinha se retirado. Então Joanna segurou
as mãos da moça.
— Venha me ver quando puder — disse baixinho.
Olive apertou as mãos de Joanna, os olhos
demonstrando perturbação.
— Obrigada, senhora.

— Há alguém em casa? — Hugh gritou do outro


lado da cortina.
— Estou aqui — Graeham chamou, sentando-se.
Hugh entrou no depósito parecendo-se menos com
um soldado na túnica cinza com bordados pretos.
Ainda trazia a espada, mas a maioria dos homens na
posição dele carregava a arma, quer ela estivesse
em uso ou não. O único traço que o distinguia de
um jovem nobre era o brinco de ouro.
— Onde está Joanna? — perguntou ele.
— Não faço ideia, não a vi hoje. — Ela devia
estar evitando-o, sem dúvida, Graeham pensou ao
vestir as calças. — Ela não está aqui?
— Não.
— Dever ter dado uma saída rápida. Sei que ela
vai à feira com você. Pode me passar aquela camisa
que está no gancho, por favor?
Hugh jogou a camisa e depois esfregou a testa.
— Sabe onde ela guarda o vinho? Graeham
passou a camisa sobre a cabeça.
— Está de ressaca?
— Passei a noite em White Hart e o que me resta
hoje é uma dor de cabeça e o bolso vazio. Sabe
onde está o vinho?
— Na prateleira da saleta.
Hugh voltou num minuto com a jarra e dois
copos.
— Não me sirva. — Graeham decidiu que seria
melhor estar sóbrio se quisesse se desculpar com
Joanna por seu comportamento da noite anterior. —
Ainda não comi nada, não gostaria de começar o dia
bêbado.
— E porque não? — Hugh tomou um copo numa
golada só.
Do beco, um estalido contínuo se fez ouvir.
— Deve ser Thomas Harper procurando pelo café
da manhã. Você o conhece?
— Eu o conheci da última vez que vim a Londres,
pobre homem.
— Não o deixe ouvir falar assim. — Graeham
abriu a janela bem na hora em que Thomas
apareceu. — Bom dia, amigo.
— Sargento! — Sorrindo, Thomas olhou de
Graeham a Hugh. — Ei, eu o conheço. Você é o
irmão.
— Isso mesmo. É um prazer voltar a vê-lo.
Rindo com ironia, Thomas apontou para o próprio
rosto e comentou,
— Prazer em ver isto? — O olho bom pareceu
focar o copo que Hugh segurava. — Onde há vinho,
sir Hugh, há pouca sabedoria.
— Se o momento é para citações, prefiro In vino
veritas — Hugh rebateu.
— Está procurando a sra. Joanna, Thomas? —
Graeham perguntou.
— Sim, mas a loja ainda está fechada.
— Ela deve voltar logo.
— Vou esperar perto da cozinha, então. —
Thomas se virou e começou a caminhar. — Ela deixa
um barril para mim lá, preciso me sentar um
instante.
Quando estavam sozinhos, Hugh perguntou com
um sorriso:
— E então, gostou de Leoda? Ela esteve aqui
ontem, não? — Apontou para o barbante preso à
janela.
Graeham tinha se esquecido de retirá-lo.
Claudicando, foi até a janela e deu um puxão.
— Fico feliz que tenha, finalmente, decidido
seguir meu sábio conselho — Hugh comentou às
suas costas. — Se prender esse barbante pelo
menos uma vez por semana, será capaz de controlar
seu humor.
Graeham resmungou, mas sabia que não teria
outro uso para o barbante que não fosse o de
marcador de livros. Quanto a controlar seu humor, a
missão abortada da noite anterior o deixara num
estado de agitação como nunca antes.
Estremeceu ao se lembrar de Joanna, contente
apenas por ela ter entrado antes que Leoda tivesse
a oportunidade de começar a trabalhar. Impassível
diante da interrupção, a meretriz quisera prosseguir,
mesmo depois que Joanna tinha se retirado.
Graeham, contudo, amarrara as ceroulas e a
mandara para casa.
Sentia vergonha por ter chamado Leoda. Tinha
sido um ato irrefletido e desonroso, fruto de uma
fome irrefreável. De fato, assim que a prostituta
saíra, seus pensamentos tinham se voltado para a
mulher adormecida no andar de cima. Ficara
imaginando como seria sentir as mãos de Joanna
tocando-o, a boca no seu corpo, senti-la se
retorcendo sob seu peso enquanto saciava seu
desejo. Mais uma vez se pusera a entoar as
declinações latinas mentalmente.
— E então, gostou? — Hugh repetiu.
— Não sei.
— Como assim? Vocês não.
— Não. Sua irmã desceu e apareceu bem na
hora.
— Deus do céu! — Divertimento e horror se
misturaram nas feições de Hugh. — Ela não deve ter
ficado muito contente. Ela expulsou Leoda?
— Não, eu mesmo a mandei embora.
— Antes ou depois de vocês. — Hugh perguntou,
incrédulo.
— Nunca tive a intenção de ter relações com ela,
não exatamente. Pedi que ela fizesse à maneira
franca.
— Pedi isso a ela uma vez. — Hugh deu um
sorriso malicioso. — Pena que não teve tempo de
aproveitar aquela boca talentosa. — Abruptamente,
pigarreou. — Bom dia, querida irmã.
Graeham se virou, dando de frente com Joanna
que carregava uma bandeja com pão, queijo, duas
jarras e um copo. Ela o encarava em silêncio mortal,
com as faces coradas.
Ele fechou os olhos e passou os dedos pelos
cabelos. Ouviu o farfalhar da seda e, ao abrir os
olhos, viu que ela depositava a bandeja no baú ao
lado da cama. Ela estava mais estonteante do que
nunca, na sua túnica dourada como os cabelos.
— Isto é para o senhor comer enquanto
estivermos fora, sargento — ela informou.
Hugh ria como se tudo não passasse de uma
grande piada. Graeham engoliu em seco, sabendo
que precisava dizer alguma coisa.
— Senhora.
— Vamos embora, Hugh? — Joanna se virou e
partiu, deixando o tentador perfume primaveril para
trás.
— Nunca vi tantas pessoas juntas aqui — Hugh
comentou, guiando Joanna pelo cotovelo no meio à
cacofonia da multidão agrupada no mercado de
Smithfield.
— Nem eu. Deve ser por causa do clima.
Um sortimento variado de londrinos, nobres,
mercadores, padres, camponeses e grupos de
alunos nos seus hábitos monásticos se misturavam,
no gramado, a estrangeiros falantes de diversas
línguas como latim, francês continental e muitos
outros dialetos nativos. A Torre de Babel devia ter
sido muito parecida com aquilo.
Hugh conduziu Joanna a uma área destinada a
ferramentas para fazendeiros e animais de criação.
Apertando os olhos para enxergar melhor, parecia
procurar alguém.
— Pensei que talvez fôssemos encontrar Robert
por aqui. Ele tem muito interesse em agricultura.
— Quer dizer que não marcou um encontro com
ele?
— Nunca fui muito bom em planeamento,
Joanna, sabe disso. — Lançou um sorriso torto de
garoto.
— Olhe para mim — ela disse. Levantou a saia da
túnica de seda cuja barra já estava manchada. —
Tive o trabalho de me deixar apresentável para ele.
Até mesmo fechei a loja. Para quê? Será uma
completa perda de tempo.
— Está irritadiça desde hoje cedo. Isso tem
alguma coisa a ver com. o acontecido ontem com
Leoda?
Ela olhou para além do irmão, onde estavam os
muros da São Bartolomeu. Graeham Fox estaria
convalescendo ali se tivesse recusado os quatro
xelins, talvez tivesse sido melhor.
Hugh pigarreou.
— Eles não chegaram a. bem.
— Sei disso. — Tinha ouvido Leoda sair assim
que ela subira. — Isso não melhora a situação.
— Tem de entender que Graeham é jovem e
saudável, com desejos e necessidades como
qualquer.
— Sei disso — ela o interrompeu. — O que não
entendo é como ele teve a coragem de levar aquela
mulher para a minha casa. O que deu nele? Isso só
demonstra uma incrível falta de bom senso.
Hugh cocou o queixo como fazia quando estava
envergonhado.
— Acho que sim, bem.
— Você está por trás disso, não é mesmo? Hugh
corou.
— Está bem, fui eu quem o encorajou, mas só
porque. Dois meses é tempo demais para ficar sem.
sem se aliviar, Joanna.
— Se ele é escravo de seus. desejos carnais
dessa forma, devia ter procurado outro lugar para
ficar. Sou uma viúva respeitável. Não posso permitir
a presença de mulheres fáceis na minha casa.
Virando-se, começou a andar noutra direção,
Hugh a seguiu.
— Vai pedir que ele vá embora?
Ela franziu o cenho ao ver que tinha sujado o
sapato dourado e esfregou-o na grama para limpá-
lo. Devia mandá-lo embora, ainda que perdesse
dinheiro com isso. A casa ficaria vazia sem a
presença dele, mas estava acostumada à solidão.
Havia coisas piores do que se sentir sozinha.
— Joanna? — Hugh insistiu em saber.
— Não sei — disse emburrada. — Talvez.
Suspirando, Hugh ofereceu o braço e a levou na
direção dos cavalos, passando ao largo dos homens
que observavam as montarias. O cheiro dos equinos
se misturava ao aroma de salsichas sendo grelhadas
nas proximidades.
Um dos homens que inspecionava os cavalos
olhou Joanna de alto a baixo com interesse.
— Meu Deus, é Rolf Le Fever. — Joanna se virou.
— Quem é ele?
— O homem cujo nariz quase cortei um dia.
— Aquele de vermelho e roxo? Pela aparência
dele, você devia ter terminado o serviço.
— Às vezes penso que isso teria sido bom. Eu
acabaria na forca, mas, pelo menos, conseguiria ter
me vingado.
— Vingado pelo quê? — ele perguntou
trespassando Le Fever com o olhar, uma lembrança
a Joanna de que seu amigável irmão tinha, no
fundo, o coração e a alma de um guerreiro.
— Ele é o motivo pelo qual não posso mais
vender tecidos a metro.
— Pensei que fosse por não poder se juntar à
associação dos comerciantes de tecidos.
— Pela qual ele é o responsável. Depois da morte
de Prewitt, encontrei uma maneira de importar as
sedas sem ter de viajar. Eu contrataria mercadores
para comprá-las por mim e depois as venderia no
mercado. Ele tem um escritório lá, atrás das
barracas. Eu contei a ele que pretendia requerer a
licença para o comércio, e Le Fever informou que a
decisão cabia a ele. A princípio pareceu bastante
amigável, mas conforme conversávamos, foi se
aproximando. Não gostei do modo como me olhava,
era como se eu fosse um rato preso numa
armadilha. Ele disse que as mulheres podem se sair
bem no comércio, desde que entendam que não
passa de uma simples troca de uma coisa por outra,
que não existe generosidade nos negócios.
— Naturalmente — Hugh disse por entre dentes.
— Ele não foi direto ao ponto a princípio, mas
entendi o que ele queria, pois já vinha me cercando
quando Prewitt era vivo. Elogiava-me por minha
beleza, dizia me admirar há anos. Então pediu que
lhe mostrasse meus cabelos, pois queria saber a cor
deles.
— E você mostrou?
— Claro que não, e isso pareceu inflamá-lo. Ele
me imprensou à parede.
— Não pediu ajuda?
— Não havia ninguém por perto, mas consegui
me livrar antes que ele fizesse alguma coisa.
Quando ele colocou a mão no meu seio, eu coloquei
minha adaga no nariz dele.
— Ah! — exclamou Hugh em aprovação. — Ótima
escolha. Homens vaidosos como esse preferem ter
os países baixos cortados ao rosto arranhado.
— Consegui sair inviolada do mercado aquele dia,
mas ele conseguiu que não me dessem a licença.
— Nenhuma surpresa nisso. Veja, aquela é a
égua que Graeham quer vender. — Hugh apontou
para uma montaria delicada castanho.
— Porque será que ele montava uma égua?
— O cavalo dele era um garanhão.
— Porque tinha dois cavalos, então? — ela
perguntou. — E um deles uma montaria de mulher?
— Não descobriremos isso, se tem a intenção de
pedir que ele saia da sua casa. — Hugh se afastou
para examinar os cavalos.
Joanna foi até o toco de uma árvore nas
proximidades e se sentou. Tirou os sapatos e
flexionou os pés. Pousando o queixo na mão,
observou a égua beber no lago.
Lembrou-se do que Graeham dissera: Eu tirava
as roupas e ficava à vontade, deixando a água me
envolver. Era o paraíso.
Fechando os olhos, Joanna tentou imaginar o
jovem Graeham nadando no lago no meio da noite.
Em vez disso, o que viu foi o adulto, deitado na
cama do depósito com Leoda inclinada sobre ele.
— Exatamente como Prewitt — sussurrou,
abrindo os olhos. Uma moça que passava fitou-a
com curiosidade. Joanna voltou a fechar os olhos.
Dessa vez, não foi Graeham que viu ao lado da
morena, mas o marido. Não que ele tivesse ido para
a cama com Leoda, mas tudo era possível, já que
ele seduzira tantas outras.
Pela centésima vez, perguntou-se como pôde ter
sucumbido ao charme calculado de Prewitt
Chapman. Era verdade que era jovem e estava
aterrorizada com o fato de poder ser mandada de
volta para casa por não aceitar se casar com
Nicholas. O pai dissera que a mataria, e ela não
duvidava de que isso fosse possível.
Prewitt surgira no momento em que precisava de
um salvador. Quando ele entrara no seu quarto,
duas semanas depois de terem se conhecido,
implorando para que fugisse e se casasse com ele,
tinha ficado eufórica. Pertenceria ao belo moreno de
olhos penetrantes e declarações pungentes. Não
tinha parado para pensar em como o casamento o
beneficiaria.
Se Hugh estivesse em Londres naquela época,
teria entendido tudo e a teria alertado sobre os
motivos inconfessáveis do seu pretendente. Seu
irmão, contudo, estava lutando na Irlanda e, ao
voltar para Londres no verão seguinte, já a
encontrou casada, vivendo sozinha no apartamento
miserável de Prewitt, visto que o marido tinha
partido numa viagem de negócios dias após o
casamento.
Hugh ficou ultrajado ao encontrar a irmãzinha
casada, abandonada e vivendo na penúria.
Intuitivamente soube quem era Prewitt e o que o
levara a seduzi-la. Por trás da fachada elegante de
mercador bem-sucedido, ele nada tinha, e procurara
se elevar socialmente ao se unir a lady Joanna de
Wexford, descobrindo somente tarde demais que o
pai os esfolaria se pusesse a mão neles. O irmão
tentou anular o casamento, mas a Igreja não
permitiu.
Joanna, ainda acreditando amar o marido e não
querendo crer que ele só a desposara para se
alavancar socialmente, impediu o irmão de ir atrás
de Prewitt para tirar satisfações. Hugh precisou
voltar ao exterior, mas antes de partir comprou-lhe
a casa na rua Woods para que vivesse num lugar
decente e a loja, para que pudesse se sustentar. Ela
ficara mortificada ao receber a ajuda, e jurara nunca
mais aceitar dinheiro seu.
Como uma idiota, continuava a ter o marido em
alta estima, mesmo quando, ao regressar da Sicília,
ele se tornou distante, impaciente e distraído.
Joanna atribuiu tal comportamento ao orgulho ferido
do marido, que tivera de aceitar a ajuda do cunhado
para manter a esposa com dignidade.
Pouco antes de uma nova viagem, ela voltou das
compras uma tarde, pensando em encontrar a casa
vazia, mas, ao entrar, ouviu-o gemer no quarto.
Achando que ele estivesse machucado ou doente,
deixou a galinha sobre a mesa e apressou-se escada
acima, com o coração acelerado.
Mesmo depois de quase cinco anos, o estômago
de Joanna revirava com a lembrança de como o
tinha encontrado, como os tinha encontrado, Prewitt
e a esposa do vendedor de aves.
Halfrida estava de quatro na cama, nua exceto
pelas meias de lã. Joanna sempre a considerara
robusta, mas, despida, ela era imensa, os seios
pendurados balançavam no ritmo das investidas de
Prewitt. Ele estava ajoelhado atrás dela, as calças
baixadas até as coxas, segurando-a pelas nádegas.
Nenhum dos dois notou sua entrada. Ela
permaneceu parada à soleira da porta, enojada ante
tamanha traição.
Prewitt, entretanto, deve ter sentido a sua
presença, pois ergueu a cabeça. Os olhos
arregalados revelaram sua surpresa, mas nem assim
ele perdeu o compasso.
— Joanna, vai ficar aí parada, olhando?
Halfrida também levantou a cabeça, e deu um
gritinho ao vê-la, mas como Prewitt começou a rir,
ela também relaxou e começou a se divertir à sua
custa.
Joanna desceu as escadas correndo, saiu pela
porta da frente e continuou andando sem rumo.
Caminhou até chegar à Ponte de Londres,
procurando alguma tranquilidade às margens do rio.
No meio da velha ponte de madeira, ela parou e se
apoiou às grades, tremendo ao sentir a brisa
húmida.
Centenas de embarcações estavam atracadas às
margens do rio. Ao longe a silhueta da enorme Torre
de Londres se erguia. Lorde Gilbert e lady Fayette a
tinham levado lá no ano anterior quando Eleanor de
Aquitania residia no palácio, apresentando-a à
rainha como a futura nora deles. Joanna a
presenteara com uma bolsinha bordada e a
soberana a elogiara pelo belo trabalho. Sabia que
nunca mais poria os pés naquele lugar.
Hugh estivera certo o tempo todo. Prewitt não a
amava, casara-se com ela somente por interesse. A
ironia da situação era que o pai a tinha deserdado
por causa do matrimônio. Agora Prewitt já não via
serventia nela, a menos talvez como forma de se
satisfazer sexualmente, tarefa que ela dividia com
outras, pelo visto. Primeiro o pai tentara se
aproveitar dela em benefício próprio, depois o
marido. Parecia que ela existia apenas e tão
somente para facilitar as aspirações dos homens.
Sentia-se mortalmente envergonhada por ter sido
tão ingênua.
Baixando o olhar para as águas frias do rio,
imaginou se ele seria fundo o suficiente para que se
afogasse, já que não sabia nadar. Imaginou um
policial indo até a casa deles para comunicar a
tragédia a Prewitt. Ele cobriria o rosto com as mãos
ao receber as palavras de conforto do policial.
Porém, sozinho, descobriria o rosto e sorriria.
Os sinos da igreja marcaram as horas, e Joanna
refez seus passos pela ponte, seguindo o som
reconfortante do santuário. Sentiu-se em paz entre
as paredes de pedra. Lá dentro, ajoelhou-se diante
do altar, implorando a Deus que lhe desse forças e
um norte. Imaginou Deus perguntando-lhe o que
buscava na sua vida.
Livrar-se de Prewitt. Era isso o que ela mais
queria. Uma anulação seria impossível, mas quem
sabe eles não poderiam viver separados? Detestava
a ideia de deixar a casa, que, afinal, era dela. Hugh
a colocara no seu nome. Porém, não poderia vendê-
la sem o consentimento do marido, e Prewitt poderia
exigi-la para si. Não concebia a ideia de vê-lo
morando ali sozinho e, além do mais, para onde ela
iria? Mesmo que quisesse se humilhar e pedir
perdão ao pai, ele jamais a receberia. Nem lorde
Gilbert, é claro.
Poderia tentar forçar Prewitt a deixar a casa, mas
a lei estava do lado dele: se não quisesse partir, não
era obrigado. Ele poderia morar lá para sempre,
forçá-la a dividir a cama e até mesmo surrá-la, e
ninguém diria nada. Mesmo que conseguisse
expulsá-lo, não teria como se manter. O dinheiro
que conseguiam com a venda das sedas era
modesto, mas era melhor do que nada.
A vida seria tolerável se continuassem a viver
juntos? Talvez. Afinal de contas, ele passava a maior
parte do tempo no exterior. Não era de se admirar
que a maioria das viúvas tivesse um ar de
contentamento. Se os homens desconfiassem de
como as esposas achavam atraente a ideia de uma
vida sem eles, talvez ficassem apreensivos.
Joanna sorriu para o crucifixo sobre o altar
quando uma possibilidade começou a se formar na
sua mente. Mais do que uma possibilidade, uma
resolução. Sussurrando uma prece de
agradecimento pela orientação recebida, saiu da
igreja e descobriu que já era noite. consciente da
sua decisão, passou num cuteleiro e gastou todo o
seu dinheiro numa adaga que prendeu ao cinto.
Ao chegar em casa, encontrou Prewitt sentado à
mesa somente de camisa e com um jarro de vinho
diante dele. O marido a olhou por sobre o ombro.
— Já passou da hora do jantar. Onde esteve esse
tempo todo?
— Ela foi embora?
— Sim. — Ele se virou e a encarou. Os olhos
castanhos que a tinham cativado a olhavam com
malícia. — Antes de partir, porém, aguçou o meu
apetite. — Com um gesto para a galinha
abandonada sobre a mesa, ordenou: — Cozinhe isso
e seja rápida.
No início Prewitt parecia adorá-la, depois passou
a ignorá-la. A atual hostilidade eriçava os pelos da
nuca de Joanna num mau presságio. humedecendo
os lábios, ela disse:
— Quando você me pediu em casamento, jurou
fidelidade.
Prewitt sorriu como se estivesse diante de uma
criança com retardo mental.
— Tenho a tendência de dizer todo o tipo de
coisa quando estou no auge da paixão.
— Nunca foi apaixonado por mim.
— Os homens não são dados aos mesmos tipos
de paixão romântica que as mulheres. Temos
necessidades mais. elementares. Se você não fosse
tão jovem e mimada, saberia disso.
Joanna nunca tinha percebido os dezasseis anos
de diferença entre eles com tanta intensidade, era,
de fato, jovem e ingênua, até aquele momento.
Forçou-se a se aproximar com o queixo erguido.
— Só se casou comigo por ambição. Não sou tão
tola a ponto de não perceber isso,
— Vai fazer esse jantar ou não? — ele perguntou,
servindo-se de mais vinho.
— Não vou mais preparar seu jantar, Prewitt. —
Respirou fundo. — Nem seu desjejum, ou almoço.
— Ah, você vai sim! — Os olhos castanhos se
arregalaram.
—Também não poderá mais dormir no quarto
comigo — ela continuou, esforçando-se para manter
a voz firme. — De hoje em diante, você dormirá no
depósito.
— No depósito! — Ele gargalhou. — Sua
insolente. Quem pensa que é para me expulsar do
meu próprio quarto?
— Aquele é o meu quarto — disse, amaldiçoando
o tremor na voz. — Esta casa é minha.
— Você é minha mulher — ele afirmou por entre
os dentes. — Você me pertence. A lei diz que tem de
me obedecer. Vou dormir no quarto se eu quiser e a
farei se deitar comigo quando eu sentir vontade. Dia
ou noite. E nesse meio tempo, se eu desejar, estarei
com qualquer outra mulher, e você não poderá dizer
nada!
— Esta é a minha casa — repetiu ela.
— Sobre a qual eu tenho completa autoridade. Eu
posso, se quiser, expulsá-la e ficar aqui sozinho. Ou
quem sabe eu a alugue? Afinal de contas, passo a
maior parte do tempo viajando. Tampouco preciso
da loja. Posso voltar a vender no mercado. Não sei
como não pensei nisso antes.
— Porque esta casa não é sua para alugar! — Ela
deu um passo à frente. — É minha. Você tem algum
controle sobre ela, mas não pode dispor dela sem o
meu consentimento, nem pode me expulsar. Hugh
me disse isso.
— Maridos dispõem dos bens das esposas o
tempo inteiro sem o consentimento delas.
— Sim, mas quando eles morrem, a esposa pode
retomar as propriedades. Essa é a lei.
— Sou jovem e saudável.
— Homens jovens e saudáveis sofrem acidentes
o tempo todo.
— E você adoraria isso, não?
— Quem sabe?
— Sua vadia mimada! — Prewitt jogou o copo no
chão e a segurou pela cintura, obrigando-a a se
ajoelhar.
— Como ousa?
O rosto de Joanna virou para o lado com a força
do tapa.
Não chore. Aguente firme.
Ela tentou se levantar, mas foi detida pelas mãos
fortes nos seus ombros. Prewitt a prendeu entre as
pernas.
— Ainda se considera lady Joanna de Wexford,
não é mesmo? Bem, milady, agora você é minha. —
Prewitt arrancou o véu e a agarrou pelos cabelos. —
Minha! — Apertou-lhe os seios com brutalidade.
Ainda segurando-a com força, começou a desatar
o nó da calça. Joanna sabia o que ele queria. Um dia
fizera o que ele tinha pedido, mas o fizera como um
ato de amor.
Aquilo não seria um ato de amor.
— Você é minha para eu fazer o que bem
entender — disse ele arfante, puxando-a para mais
perto. Joanna sentiu o perfume almiscarado de
Halfrida, e a bile subiu pela garganta. — E agora o
que desejo é que ocupe sua boca com algo melhor
do que ameaças.
Joanna desembainhou a adaga e a colocou junto
à virilha do marido.
— Tire as mãos de cima de mim, Prewitt. —
Encarando-o, completou: — Você não gostaria que
um acidente acontecesse, não é mesmo?
Ele a soltou e se sentou, a ereção murchando
instantaneamente.
— Onde arranjou isso? Afaste-a de mim!
— Como quiser. — Joanna se levantou e levou a
adaga à base da garganta do marido. — Quanto
mais eu penso em ficar viúva, mais a ideia me
agrada. — comentou.
De repente, o medo de Prewitt deu lugar à fúria,
e ele a golpeou no estômago, a adaga saiu voando
pelos ares. Por um instante, ela não conseguiu
respirar, mas, então, sua determinação voltou e,
lutando contra a náusea, tateou na palha do chão e
encontrou a arma novamente. Ficando de pé,
resfolegante e desgrenhada, abraçava o estômago
dolorido.
Rindo diante da mão trêmula, Prewitt disse:
— Está muito enganada se acredita que isso a
protegerá. Tenho o dobro do seu tamanho e sei me
defender como qualquer outro homem.
— Acredito que sim. — Ela sorriu. — Quando está
acordado.
Ele arregalou os olhou quando captou o sentido
das palavras.
— Se pensar em me expulsar da minha própria
casa outra vez, sugiro que passe a ter o sono leve.
No fim das contas, Prewitt abandonou a ideia de
mandá-la embora e passou a dormir no depósito.
Nos cinco anos seguintes, quando estava na cidade,
eles dividiam o mesmo teto, mas não partilhavam as
refeições e pouco se falavam. O relacionamento
deles era puramente comercial: ele trazia seda, ela
as vendia, e os dois viviam modestamente dessa
fonte de renda.
Joanna poderia ter continuado a levar essa vida
por muitos anos mais, contudo o pacote de seda
vermelha chegou de Gênova com os pertences de
Prewitt e a notícia da morte dele. Só Deus sabia que
não sentiria a sua falta, mas lamentava ter perdido
as sedas. Até a chegada de Graeham e dos seus
quatro xelins, vivia atormentada sem saber como
manter a casa.
Até a chegada de Graeham.
Joanna recordou a cena sórdida e familiar da
noite anterior quando desceu acreditando que ele
precisava de ajuda. Ainda era jovem e ingênua, pelo
menos no que se referia aos homens.
Ela odiava Graeham por lembrá-la de Prewitt,
mas quando o assunto era sexo, parecia que os
homens, a maioria deles, pelo menos, eram
insaciáveis e sem critério de escolha. Se uma
mulher estava disponível e o homem achava que
poderia se safar, não hesitava antes de usá-la em
benefício próprio.
Usá-la. Nunca mais.
Hugh parecia acreditar que o casamento com o
tipo certo de homem resolveria seus problemas. Ele
tinha razão quanto a um homem de posses não a
usar por causa do seu nome, como Prewitt. O irmão
lhe dissera que Robert fora fiel à esposa. O marido
certo a livraria da penúria e aplacaria sua solidão. O
homem certo. Não um mercador de seda charmoso.
Nem um igualmente charmoso sargento de lindos
olhos azuis e curiosidade incontrolável.
Não, ele não. De jeito nenhum.

CAPÍTULO III
— Hugh?
Hugh parou de admirar um alazão e viu que
Robert de Ramswick sorria para ele.
— Rob!
Os homens se cumprimentaram com tapinhas
nas costas. no seu costume sóbrio, Robert parecia
um jovem diácono. Ele nunca fora de ostentar a
riqueza.
— Pensei que o encontraria diante dos cavalos de
guerra. — Robert deu uma olhadela ao redor. —
Lady Joanna.
— Está bem ali. — Hugh apontou para a irmã
sentada com os olhos fechados e o queixo apoiado
nas mãos. O véu de linho estava torto, e ela estava
descalça.
Robert cobriu os olhos com a mão para poder
enxergar na claridade. Rindo, comentou:
— Ela já era assim quando menina. Havia sempre
alguma coisa desarrumada nela.
Tudo o que ele sabia a respeito de Joanna desde
que a vira havia muitos anos era que tinha se
casado com um mercador de seda já falecido. Dizia
a si mesmo que não se importava com o fato de ela
ter se casado com alguém de uma classe inferior.
Sua maior preocupação era encontrar uma boa mãe
para as filhas.
Era estranho pensar em Robert como um viúvo
com duas meninas. Embora fosse três anos mais
velho do que Hugh, tinha aparência mais jovem. O
fato de não ser tão urbano ou viajado, a sua
devoção à terra e seu profundo senso de retidão o
tornavam o oposto completo de Hugh. Engraçado
como dois homens tão diferentes conseguissem
manter os laços de amizade.
— Pensei que traria as meninas. — Hugh
comentou, olhando ao redor. — Onde elas estão?
— Por ali. — Robert apontou para umas barracas.
— Margaret está comprando doces para elas.
— Sua prima Margaret? — Hugh perguntou
curioso.
— Sim, ela veio para Ramswick depois da morte
de Joan para cuidar das meninas. Pensei que
soubesse disso. Bem, vai ou não me reapresentar à
sua adorável irmã?
Hugh o levou até Joanna e disse:
— Está acordada, irmãzinha?
— Não me amole. — respondeu ela sem abrir os
olhos.
— Que pena que não deseja ser incomodada,
milady — Robert disse.
Ela escancarou os olhos.
— Oh! L-lorde Robert?
Ele se curvou num cumprimento.
— É um prazer voltar a vê-la, lady Joanna.
Ela se pôs de pé apressada, alisando o vestido e
ajustando o véu. Fingindo tentar ajudá-la, Hugh
tirou o véu e o guardou na bolsa.
— Hugh!
— É um pecado cobrir cabelos bonitos como os
seus.
— Um pecado mortal, milady — concordou
Robert. Joanna olhou para o irmão por debaixo dos
pestanas enquanto calçava os sapatos.
— Papai! Papai! — Uma loirinha de não mais do
que cinco anos veio correndo e se atirou nos braços
de Robert.
— Esta é minha filha Catherine — disse ele,
sorrindo.
— Catherine, cumprimente sir Hugh e lady
Joanna.
A criança escondeu o rosto no pescoço do pai, e
Robert emitiu um som, misto de riso com um
resmungo.
— O que é essa coisa grudenta no seu rosto?
— Torta de figos fritos — uma moça respondeu
ao se aproximar com outra menina no colo.
Robert apresentou Margaret e Beatrix aos
irmãos. Margaret era bela, de faces rosadas e olhos
calorosos. A túnica de lã modesta fazia-a parecer
uma viúva, mas os cabelos estavam descobertos.
Embora tivesse quase trinta anos, era uma donzela,
pois recusara todas as propostas de casamento.
— Comeu torta de figos? — Robert perguntou à
filha.
— Deixe-me ver. — Ela afastou o rosto. — Posso?
— Ele lambeu a face rosada, e ela riu. — Hum. Que
delícia!
A menina mais nova estendeu os bracinhos na
direção dele. Robert colocou Catherine no chão e
pegou Beatrix do colo da prima. O olhar se deteve
no rosto de Margaret, e ele sorriu.
— Também andou comendo, não é? — Ajeitando
a caçula no colo, estendeu a mão e limpou o lábio
inferior da moça. Margaret o fitou e corou.
Depressa, os dois desviaram os olhos.
Joanna lançou um olhar de especulação para o
irmão.
— Muito bem. — Hugh bateu as mãos numa
demonstração de alegria forçada. — Quem quer ver
as corridas de cavalos?
— Ele a ama — Joanna comentou com Hugh
conforme passeavam perto das barracas
abarrotadas de mercadorias de todas as partes do
mundo. A feira era uma mistura de aromas que
atiçavam a imaginação e faziam as pessoas
pensarem em lugares remotos.
— Ele não a ama — Hugh rebateu.
— Não os viu esta tarde? As trocas de olhares e
gestos? Olhe ali. Eles parecem uma família.
Robert e Margaret andavam mais à frente,
Beatrix adormecida no colo do pai, Catherine,
chupando dois dedos, os acompanhava de mãos
dadas com a moça. Já era o meio da tarde e as
crianças estavam exaustas.
— Eles nunca poderão ser uma família, são
primos de terceiro grau.
— Primos de terceiro grau casam-se o tempo
inteiro — ela disse —, bem como os de segundo. —
Apesar de a Igreja condenar casamento
consanguíneos até o sétimo grau. — Robert é tão
devoto assim?
— Os pais dele são, e ele é devotado aos pais.
— Mas se não fosse por eles — ela insistiu —,
Robert teria se casado com Margaret?
— Estiveram apaixonados quando eram jovens.
Está tudo terminado há muitos anos.
Joanna viu-o guiar a prima até uma barraca, a
mão pousada nas costas dela.
— Eles moram sob o mesmo teto — comentou.
— Você e Graeham vivem sob o mesmo teto.
— Não é a mesma coisa. — Ela corou. — O
sargento e eu. Nós. Isso nunca.
— Nem Robert e Margaret. Mesmo que ele a
amasse, é um homem muito honrado para
comprometê-la, sabendo que nunca poderia se casar
com ela.
— Eles não podem conseguir o consentimento
papal?
— Cerca de onze ou doze anos atrás ele fez uma
petição junto à cúria romana, mas o pedido foi
negado. Ele e Margaret ficaram arrasados, mas
depois superaram. Robert consentiu que os pais
arranjassem o casamento com Joan, e ele foi um
bom marido para ela.
— Ele devia ter se casado com Margaret sem o
consentimento do Papa.
— Robert foi feliz ao lado de Joan.
— Existem pessoas com o dom da perseverança
— disse ela, ecoando as palavras de Graeham —,
que fazem o melhor que podem nas situações
adversas. Mesmo assim, ele deveria ter se casado
com Margaret.
— Talvez, mas isso ficou no passado. — Hugh
segurou a irmã pelos ombros e a encarou. — Ele
quer se casar novamente, Joanna. Esta pode ser
uma oportunidade maravilhosa para você.
— Você me disse que ele quer se casar para dar
uma mãe para as filhas, mas elas já têm Margaret e
parecem adorá-la, assim como ele. Porque Robert
sente-se obrigado a substituí-la por uma esposa?
— Não sei. Ele é um homem, afinal de contas.
Com necessidades. E o que isso importa? Ele quer
uma esposa e está disposto a considerá-la para tal.
É um bom homem, nobre, com uma bela
propriedade. Seria o marido perfeito. Não o
desencoraje porque acredita que ele esteja
apaixonado pela prima. Isso é passado.
Mais adiante, Robert passou Beatrix para os
braços de Margaret e deu algumas moedas ao
vendedor, que pegou três tangerinas e as estendeu.
Dando um passo para trás, Robert as jogou para o
alto e começou a fazer malabarismos para a
felicidade da prima, que ria contente. Robert sorriu,
orgulhoso, em resposta à reação de Margaret, e
nem olhou na direção de Joanna.

Graeham passou o dia refletindo sobre a idiotice


da noite anterior enquanto mantinha um olhar
atento na casa de Rolf Le Fever.
No fim da manhã, as janelas do terceiro andar se
abriram. Ele se sentou na cama, as costelas doendo.
As persianas tinham permanecido fechadas desde
que chegara, mas aquele era um dia bem quente. A
criada, Aethel, passava um pano no parapeito e
conversava com alguém no interior do quarto. Ela se
afastou por um instante e tudo o que Graeham
conseguiu ver foram os painéis de madeira da
parede e o teto do aposento.
Quando Aethel reapareceu, meneou a cabeça e
gesticulou para fora. Depois juntou as mãos como
numa prece, sorrindo para a pessoa com quem
conversava. Por fim, com uma expressão resignada,
voltou a fechar a persiana.
Graeham manteve a vigília, mas a janela não se
abriu de novo. Mais tarde, encostou a janela que
dava para o beco, pois era hora de Olive passar para
entregar o tônico. Depois que a moça retornou à
farmácia, ele reabriu a janela, precisando de ar
fresco naquele dia tão extraordinariamente quente.
Por fim, acabou se deitando novamente. Nem
Thomas, nem Leoda apareceram para conversar. Era
muito provável que a mulher tivesse ido à feira, ele
pensou, sorrindo ao se lembrar da sua juventude.
Ele e os outros garotos vagavam pela feira até o
entardecer quando as prostitutas começavam a
surgir. Elas eram facilmente identificadas por causa
da maquilhagem e das roupas vistosas. Por vezes,
notavam os olhares especulativos dos garotos e
piscavam sedutoramente, fazendo-os fugir,
assustados.
Graeham voltou a pensar nas consequências da
visita noturna de Leoda. Quando o dia começou a
escurecer, tinha se convencido de que Joanna o
expulsaria da casa. E quem a condenaria por isso?
A sorte lhe sorrira quando Joanna permitira que
se recuperasse ali, mas ele, como um tolo, tinha
tratado o fato com descaso e agora teria de pagar o
preço.
Deixaria os quatro xelins com ela, afinal, era
culpa sua se as coisas não haviam caminhado bem.
Joanna tinha mantido seu lado do trato, e de boa
vontade.
Sentiria falta dela.
— Maldição!
— Essa palavra é feia.
Graeham olhou para o beco e se deparou com
um rosto sujo encarando-o por entre as grades. Um
menino, que não devia ter mais do que nove ou dez
anos.
— É mesmo — Graeham admitiu —, mas eu não
sabia que havia uma criança por perto.
O olhar do menino recaiu sobre a tala na perna.
— O que aconteceu com você?
— Deparei-me com uns homens maus. —
Graeham se ajeitou na cama.
— Há muitos homens maus em Londres. E
preciso ficar atento para sobreviver. — Apesar da
aparência, a fala não era rude como a das classes
mais baixas.
— É verdade. Qual o seu nome, rapaz?
— Adam.
— Sou Graeham Fox.
— Fox. Por causa do cabelo?
— Por causa da minha astúcia. — Graeham
sorriu.
— Minha mãe sempre me disse que a inteligência
é melhor do que a beleza. — Tristeza se fez ver na
expressão de Adam.
— Sua mãe — Graeham começou a dizer
baixinho —, ela está.
— Moramos em Shambles — Adam respondeu
rápido. — Meu pai é talhoiro, mamãe também.
— Ah. — Pela aparência negligenciada, Graeham
pensou que o menino fosse filho de um pedinte ou,
no máximo, de um carreteiro.
— Você mora aqui? — Adam perguntou.
— Por enquanto. — Até Joanna voltar da feira,
pensou.
— Parece confortável.
— E é.
Um barulho na porta da frente atraiu a atenção
de Graeham. A porta foi aberta, e Joanna entrou na
loja, sendo seguida pelo irmão. Um movimento e
passos abafados o fizeram olhar de volta para o
beco. Adam tinha sumido.
Os sussurros na porta da loja chamaram a sua
atenção. Joanna e Hugh estavam muito próximos,
trocando ideias sobre algum assunto, e Graeham se
perguntou se esse assunto não seria ele. Hugh era
quem mais falava enquanto Joanna olhava para um
objeto colorido que trazia nas mãos. A voz do outro
se elevou e Graham pareceu ouvir algo como "é
uma boa combinação, Joanna".
— Shh! — Joanna olhou na direção de Graeham
pela primeira vez, assim como o irmão. Ele a levou
para fora da loja com um braço ao redor dos ombros
e continuou com os conselhos misteriosos. Ela
pareceu concordar a contragosto, ele insistiu,
segurando-a pelos braços. — Está bem, pensarei a
respeito — disse ela num tom que Graeham
conseguiu ouvir mesmo estando longe.
Quando Hugh a afagou nos cabelos, Graeham
notou que ela não usava o véu. Depois, o irmão a
beijou no rosto e partiu. Joanna o observou se
afastar, em seguida, voltou para dentro da loja e
trancou a porta. Por um instante, seu olhar se
encontrou com o de Graeham nos fundos da casa.
Ela começou a andar na direção dele, mas parou
na saleta e pousou o que levava nas mãos no meio
da mesa. Acendeu as velas, afastando a escuridão
do entardecer.
Graeham pegou as muletas e se levantou.
— Sra. Joanna.
Ela o olhou, parecendo apreensiva. Estava linda
e, se o ouro pudesse ter um matiz mais escuro sem
perder o brilho, seria como o cabelo dela. O vestido
era da mesma cor e, não fosse pela suavidade do
rosto e das mãos, ela pareceria uma estátua de
bronze.
Graeham claudicou até a porta e segurou no
batente para se sustentar.
— Perdão — disse ele com suavidade. Ela o
encarou com tamanha intensidade que ele teve de
baixar o olhar. — Eu. violei a sua hospitalidade. Não
há desculpas para meus atos. Lamento muito.
Quando levantou a cabeça, viu que ela
examinava as pontas dos dedos ao dizer:
— Sei que sente falta de. de companhia feminina,
mas este é o meu lar e.
— Eu errei — confessou com sinceridade e deu
um passo à frente, prendendo o olhar dela. — Não
importa porque aconteceu. Eu sabia de não devia ter
feito isso, mas fiz mesmo assim e agora. Agora a
senhora. Nós. bem. — Passou os dedos pelos
cabelos, exasperado por seu talento com as palavras
abandoná-lo na presença dela. Aproximou-se um
pouco mais. — Diga-me o que preciso fazer para
que tudo fique bem — implorou, envergonhado pelo
tom de desespero na voz, pela opressão que sentia
no peito. Ela o faria ir embora. Não queria partir,
queria ficar ali, com ela. — O que posso lhe dizer?
Ela não o encarou.
— Joanna.
Ele nunca a chamara daquela maneira. Ela
ergueu os olhos e procurou os dele. Graeham não
tentou esconder seus sentimentos, embora soubesse
que seria melhor. Em vez disso, deixou que ela visse
o vazio dentro dele, o vácuo terrível que o assolava.
Deus, por favor, não a deixe me expulsar.
Abaixando os olhos mais uma vez, ela apanhou a
fruta do centro da mesa e disse, hesitante:
— Robert de Ramswick, um amigo de Hugh, me
deu isto. Não como uma tangerina desde a época
em Montfichet. — Um tanto tímida, ofereceu: —
Gostaria de dividi-la comigo?
O ar saiu dos pulmões de Graeham com força,
uma onda de alívio o percorreu. Ela não iria fazê-lo
ir embora.
— Sim, sim. Eu adoraria.
Ela deu um sorriso tímido, e ele sorriu como um
idiota. Nesse momento houve uma batida à porta.
— Sra. Joanna! Sou eu, Olive.
— Olive. Eu disse a ela que viesse me procurar.
Deve ter visto que acabei de chegar. — Joanna
colocou a fruta na mesa e se dirigiu para a porta.
Graeham pegou uma das velas e se virou para o
quarto.
— Ela não pode me ver. Joanna parou e
perguntou:
— Porque não?
Pensando rápido, Graeham arranjou uma
desculpa:
— Muitas pessoas sabem que estou me
hospedando aqui. Não é bom para a sua reputação.
— Há uma semana dizia que minha reputação
não seria maculada, pois é um inválido e somente
um pensionista. Repensou seus conceitos, sargento?
De modo oportuno, Olive voltou a bater à porta.
— Senhora, está em casa?
— E melhor deixá-la entrar — ele disse e fechou
a cortina depois de entrar no quarto.
Conseguiu ouvir Joanna cumprimentando Olive,
os passos das duas até a mesa e, depois, a
conversa.
— Deixe-me pegar o seu manto, Olive. Sente-se.
Gostaria de beber alguma coisa?
— Não, nada, obrigada. Eu. eu só. Bem, não
quero impor a minha presença.
— Fui eu quem pediu para que você viesse,
lembra?
— E que. Não consigo falar com a minha mãe.
Ela piorou nos últimos tempos. E a senhora é tão
gentil comigo. Sempre tem tempo para mim e sabe
o que dizer, o que fazer. Nunca vi uma mulher mais
sábia do que a senhora. Gostaria tanto que minha
mãe fosse assim também. Eu gostaria de ser assim,
forte como a senhora.
— Você é forte, Olive.
— Não, eu jamais conseguiria superar tudo pelo
que passou e manter meu queixo erguido. Ainda
mais depois que descobriu que seu marido.
— Olive, nós. Nós não precisamos falar de mim.
— Eu falei alguma coisa errada?
— Claro que não. E que.
— Foi porque mencionei o sr. Prewitt? Não tive a
intenção de remexer em lembranças tristes. Fiquei
tão desolada quando soube o que aconteceu.
— Olive, por favor.
— Lá vou eu novamente. — A moça gemeu. — Eu
e a minha boca enorme. Desculpe, senhora. Às
vezes não sei refrear a língua.
— Olive, porque não me conta o que a vem
perturbando?
— Há um homem — Olive disse tão baixo que
Graeham quase não pôde ouvir —, mas não posso
lhe dizer quem é. Haveria problemas se soubessem
o que. o que aconteceu entre nós.
— O que aconteceu, Olive?
Quando a moça finalmente voltou a falar, o seu
tom era choroso.
— Eu o amo, senhora, e. e. e ele me ama
também.
— Isso não é motivo para lágrimas, querida.
— Não seria se. — Olive suspirou profundamente.
— Se pudéssemos nos casar.
— Não podem se casar?
— Não! — A moça se desfez em lágrimas.
— Calma, querida. Vai ficar tudo bem — Joanna a
confortou.
— Sei que eu deveria tentar esquecê-lo. E eu
tento, mas toda vez que o vejo. É como se meu
coração estivesse sendo esmagado. Sei que isso
parece ridículo, mas não sei explicar de outro modo.
— Explicou muito bem. Sei exatamente como se
sente.
— Sabe?
Dessa vez foi Joanna quem demorou a
responder. Graeham olhou para a cortina, à espera
da resposta.
— Sim, eu sei — disse ela baixinho.
— Preciso ir. — Olive fungou. — Mamãe não sabe
que estou aqui. Obrigada, senhora.
— Não fiz nada.
— A senhora me ouviu.
— Mas não consegui ajudá-la.
— Não há ajuda para o meu caso — Olive disse
mais calma —, a menos que eu o tire do
pensamento. A senhora me deixou falar, se não
fosse por isso, meus sentimentos estariam me
envenenando. Não sabe o que é não ter ninguém
com quem contar.
— Sim, eu sei — Joanna confessou.
Graeham ouviu passos conforme Joanna
acompanhava a moça até a porta. Ficou colado à
parede até vê-la passar pela rua, depois pegou as
muletas, levantou-se e seguiu para a saleta.
Joanna estava sentada à mesa, observando a
tangerina.
— Não me lembro como se descasca. Imagino
que eram os criados que faziam isso.
— Passe-a para cá. — Sentando-se do lado
oposto, Graeham pegou a fruta e mordeu um
pedaço da casca, depois foi descascando o resto
com a ponta do dedão.
Joanna fechou os olhos e inalou a fragrância
exótica emanada da fruta. Graeham se lembrou dela
na noite anterior, hipnotizada pelo perfume do
banho. Ficou imaginando se ela ficaria daquele modo
ao fazer amor.
Cristo Santo, homem, esta é a última coisa na
qual deveria pensar!
Seria melhor controlar seus desejos em rédea
curta enquanto permanecesse naquela casa. Havia
muito tempo para deixá-los correr soltos depois de
se casar com Phillipa.
— O nome do amor secreto de Olive é Damian —
Graeham informou.
— Como sabe disso?
— Eu os ouvi conversarem no beco, lembra?
— O filho de Lionel Oxwyke, o cambista que mora
na casa de pedra, se chama Damian. Já deve ter
ouvido as brigas deles.
— As discussões deles costumam ser meu maior
divertimento. — Terminando de descascar a fruta,
Graeham pegou um gomo e o estendeu a Joanna.
Ela o segurou diante da chama da vela. Os
tremeluzentes olhos castanhos roubavam o fôlego
de Graeham.
— Parece uma jóia — ela comentou. Pare de
encará-la, seu idiota.
— Lembro-me de Olive mencionar o pai do moço.
Tive a impressão de que ele não aprovaria a união
deles. — Graeham pegou um gomo para si.
— Estou certa disso. Talvez esse seja o motivo
para tantas brigas. Essas discussões começaram há
poucas semanas. — Joanna levou o gomo aos lábios,
lambeu-o e depois o partiu ao meio com os dentes,
o sumo descendo numa trilha.
Não encare!
Graeham olhou para b gomo nas mãos e viu que
o tinha esmagado. Rapidamente enfiou-o na boca,
triturando as sementes com os dentes.
Joanna retirou uma semente da boca e a colocou
com delicadeza na mesa.
— Damian é o único filho de Lionel e está
prometido em casamento para a filha de outro
cambista, mais influente do que o pai. A menina só
tem nove anos, então eles têm de esperar mais três
antes que a Igreja permita a união.
— O noivado está formalizado?
— Até onde eu sei, Lionel ficaria furioso se o filho
propusesse casamento a outra moça. E ele não é um
homem que se deva provocar, pois tem um gênio
colérico. Dizem que ele sofre de excesso de bile
amarela que lhe causa dores de estômago, sendo
essa a causa do seu temperamento irritadiço. —
Joanna mordeu a outra metade e lambeu os lábios.
Não encare, não encare.
— Deve ser por isso que não podem se casar. —
Graeham pegou outro gomo e o estendeu,
amaldiçoando seu comportamento juvenil quando
sentiu um estremecimento ao tocá-la. — Havia algo
mais. Uma coisa de que ela não queria que ele
tomasse conhecimento, mas que Damian disse já
saber. Ela ficou muito perturbada com isso.
— A loucura da mãe?
— A mãe dela é louca?
— Talvez não louca exatamente, mas anda muito
melancólica. Privada dos seus sentidos, parece.
— Ela sempre foi assim?
— Não, somente do ano passado para cá. Olive
acredita que ela tenha sofrido alguma desilusão
amorosa. Elswyth é uma mulher muito bonita. Ou
era, antes de se deixar levar.
— Acredita que seja isso que Olive quer manter
em segredo?
— Sei que ela não quer que ninguém saiba, pois
quando me contou tudo, me fez jurar segredo. Ela é
aprendiz, e só deveria auxiliar a mãe no preparo dos
tônicos e elixires, mas há meses é a única
responsável pela farmácia. A mãe perdeu o
interesse, dorme até tarde, fica vagando pela horta,
mesmo no meio do inverno quando não há nada
para se fazer lá. Elas poderiam perder a loja caso
isso fosse de conhecimento público. E claro que ela
não deve querer que Damian saiba.
Graeham refletiu enquanto comia mais um gomo.
— Não foi isso o que eu entendi da conversa
dela. Foi como se Olive não quisesse que ele
soubesse de algo relacionado a ela.
— Se a mãe está ficando louca e é ela quem
cuida dos negócios, acho que isso tem a ver com
ela.
— Bem. Estou certo de que deve ter razão. — Ele
estendeu outro gomo.
— Não está, não. — Ela sorriu e comeu a fruta.
Mais tarde, naquela mesma noite, Graeham lia
antes de dormir quando ouviu uma batida na janela
que dava para o beco.
— Sargento?
Ele abriu a persiana.
— Boa noite, Leoda — disse baixinho, pois
Joanna ainda estava acordada, bordando.
Ela sorriu, parecia mais bonita à noite, mais
jovem.
— Senti sua falta hoje. Fui à feira. — Ela sorriu
sedutora. — Que tal um pouco de companhia mais
tarde?
— Sinto muito, mas acho que isso não vai voltar
a acontecer.
— Serei mais silenciosa. Ela nunca saberá que
estive aqui.
Ele a pegou pela mão.
— Não é mais prudente que venha aqui.
— Mesmo durante o dia? — perguntou
desconsolada. — Só para conversar?
— Mesmo assim. Lamento, Leoda, apreciei muito
as nossas conversas.
— Não quer que ela me veja.
— Antes de ontem à noite, eu não teria me
importado, mas agora. Eu me sentiria.
— Teme que ela o expulse se me vir.
Estranhamente, aquilo não lhe ocorrera, ainda que
pudesse ser verdade.
— Estou preocupado com os sentimentos dela, de
fato.
— Os sentimentos dela. — A mulher deu um
sorriso de quem entendia o que estava acontecendo.
Graeham sentiu um rubor nas faces.
— Não, não há nada assim entre nós. Ela é uma
mulher casada.
Por um bom tempo, Leoda ficou contemplando as
mãos dadas, a expressão mostrando um conflito
interior, que gradualmente se transformou em
determinação.
— Joanna Chapman não é uma mulher casada,
sargento. Ela é viúva.
— Só acredita nisso porque o marido está sempre
ausente, viajando.
— Ele foi esfaqueado no verão passado por um
italiano com cuja esposa o mercador estava se
relacionando. intimamente. Sir Hugh me contou no
outro dia e pediu que não lhe dissesse nada.
Graeham a encarou e relembrou pedaços de
conversas. Fiquei tão desolada quando soube o que
aconteceu.
Claro, era isso.
Leoda apertou sua mão e disse:
— Achei que você tinha o direito de saber. E
estou certa de que ela tem seus motivos para
esconder isso. Não fique bravo com ela.
— Obrigado. Eu não estou aborrecido — disse
com sinceridade, pois não podia julgá-la se ele
mesmo era culpado de erro semelhante.
Quantas vezes não mentira para esconder o
verdadeiro motivo que o levara a Londres? A única
falsidade de Joanna era relativamente benigna
comparada com as suas.
— Prometi a sir Hugh não dizer nada — ela
continuou. — Ele não virá mais me ver se souber
que lhe contei.
— Eu não direi nada. Estaria sendo mal
agradecido com você.
— Você é um bom homem, sargento, soube disso
assim que o vi. — Ela o acariciou na face com a mão
livre.
— Foi um prazer conhecê-lo.
— O prazer foi meu. — Ele a beijou na mão e a
soltou.
Leoda se afastou rebolando e lançou um beijo no
ar.
— Importa-se se eu lhe fizer companhia? —
Graeham coxeou até a loja onde Joanna tinha se
refugiado após o jantar, como de costume.
— Não, claro que não. — Havia uma lamparina
pendurada sobre o cavalete no qual uma seda
intocada estava esticada. — Embora não haja um
lugar no qual possa se sentar.
— Isto servirá. — Ele se sentou no tampo de um
baú apoiado na porta da loja. Esticou a perna
imobilizada para o lado e apoiou as costas na
parede.
Nas três semanas em que vivia ali, raramente
entrava na loja. Durante o dia ficava preocupado em
ser visto, especialmente por Olive, já que a farmácia
ficava bem em frente. A noite tinha por hábito ficar
lendo até a hora de dormir enquanto Joanna
continuava trabalhando.
Hesitava em impor sua presença quando ela se
ocupava com uma tarefa tão solitária e criativa. Ele
mesmo nunca fora do tipo de depender da
companhia de outros e até se gabava disso. Esse
sentimento, entretanto, evaporava diante de
Joanna. Adorava a companhia dela, precisava dela.
Naquela noite chegara ao ponto de se sentir sedento
por estar perto daquela mulher.
Ao lado do cavalete, havia um cesto repleto de
artigos para os bordados: agulhas, franjas, fios de
seda. Joanna se inclinou e pegou uma pena de
ganso e um pedaço de carvão. Apontando o carvão,
colocou-o dentro da pena.
— Engenhoso — comentou Graeham.
TRAMAS DO DESTINO 147
— É um dos muitos truques de lady Fayette. —
Com a caneta confeccionada, Joanna começou a
traçar linhas e curvas na seda esticada.
Ele a observava de perfil, os cabelos soltos nas
têmporas e na nuca formando anéis. Ela estava sem
o véu, pois achara que ficaria sozinha e ainda não
tinha se dado conta do fato, concentrada como
estava no trabalho. O vestido daquele dia, embora
simples como os outros, parecia se moldar mais ao
quadril e ao busto, e Graeham contemplava a curva
sensual das suas costas enquanto ela se inclinava
sobre o cavalete.
Duas semanas tinham se passado desde a sexta-
feira em que soubera da sua viuvez, uma quinzena
de intermináveis dias e longas noites solitárias na
cama estreita. Às vezes depois que Joanna subia,
ele ficava deitado ouvindo os rangidos das tábuas do
assoalho ou as cordas do estrado da cama se
esticando conforme ela se remexia para encontrar
uma posição confortável para dormir.
Depois de refletir bastante, decidira não
mencionar o fato de saber a verdade, não só pelo
bem de Leoda, mas também por entender os
motivos que a tinham levado a mentir. Sem dúvida,
a farsa fazia-a se sentir melhor com a presença dele
na sua casa, estando resguardada pelo matrimônio,
ela poderia mantê-lo a uma distância segura e
respeitável.
Curioso com os esforços empregados para
manter o segredo, ele casualmente falava de Prewitt
com Thomas, que sempre mudava de assunto. Ela
certamente tinha pedido segredo ao harpista, assim
como Hugh fizera com Leoda. Suspeitando de todos,
Graeham havia até feito perguntas a Adam, que
passara a visitá-lo vez por outra, mas o garoto não
conhecia o marido.
Bem no fundo, o que Graeham mais queria era
que ela lhe contasse a verdade, que o olhasse nos
olhos e dissesse "sou viúva, não pertenço a nenhum
homem". Seu coração clamava por essa declaração,
mas ele tinha idade suficiente para saber que seria
melhor não seguir os impulsos dos sentimentos. Sua
mente sabia o que era o certo. Joanna recorrera
àquele subterfúgio por um bom motivo. Ela era
sábia ao mantê-lo à distância. Ele, um soldado sem
bens, só faria piorar sua situação financeira. Quanto
si mesmo, seria melhor se lembrar de que era, para
todos os efeitos, um homem comprometido. Não era
correto cultivar uma paixão por Joanna quando logo
estaria casado com outra, uma união que ele não
deveria pôr em risco, a menos que decidisse abdicar
das terras que acompanhavam a mão de Phillipa.
Esforçando-se para não pensar em Joanna,
Graeham vinha dedicando seus dias à vigilância
constante da casa de Le Fever, um esforço que
parecia cada vez mais infrutífero. O quarto de Ada
permanecia fechado, ao passo que o marido ia e
vinha ao bel-prazer. Uma noite ele até mesmo
levara uma mulher para dentro, sem se importar em
fechar a janela do quarto.
O desenho de Joanna começava a tomar forma, e
ele perguntou:
— Uma árvore frutífera?
— Venho pensando em tangerinas ultimamente.
— Joanna deu de ombros.
Ele sorriu, por algum motivo aquele simples
comentário o alegrou.
— O que isso será quando estiver terminado?
— Um lenço.
— A senhora desenha muito bem — comentou ao
se inclinar para observar melhor o trabalho.
Ela o olhou de relance sob os pestanas espessos.
— Obrigada.
— Sempre cria seus desenhos de maneira tão
livre?
— Não, geralmente uso modelos, tenho vários.
Alguns fui eu mesma quem fiz, outros lady Fayette
me deu. Estão naquela caixa. — Ela mostrou. —
Gostaria de escolher uma borda para este lenço?
— Eu?
— Sim, abra a caixa e dê uma olhada.
Graeham abriu a caixa e viu uma série de
estênceis.
— As bordas estão no fundo — disse ela.
Ele encontrou vários pergaminhos. Cada um
deles tinha um desenho: videiras, círculos
concêntricos, nós entrelaçados.
Apontando para uma tapeçaria, Joanna disse:
— Isso lhe dará uma ideia de como as bordas
ficam depois de prontas.
O pendão de seda marfim tinha uma porção de
bordados em estilos e formatos diferentes, além de
animais como um leão rampante, uma águia, e
outros temas: anjos, santos, um rei e uma rainha e,
o mais interessante, uma mulher curvada sobre um
cavalete de bordar.
— Porque fez isso? — ele perguntou.
— É uma amostra do meu trabalho — disse ela
sem se parar de desenhar. — Se uma freguesa quer
algo especial, pode escolher um dos motivos, e eu o
bordo.
— Aceita encomendas?
— Aceitei algumas vezes. Fiz punhos de camisa
para o conselheiro Huxley e uma bolsa para a
esposa no ano passado. A maioria dos fregueses só
quer laços e ligas. Mesmo que estivessem
interessados em algo mais, não teriam condições de
pagar. Esse tipo de trabalho é muito demorado, e eu
cobro o quanto vale.
— Então seria um trabalho lucrativo, mais do que
a loja, se cultivasse o tipo certo de clientes.
Ela o encarou.
— Um tempo atrás me lembrei do dia em que fui
à Torre de Londres. Havia bordados por todos os
lados: em cortinas, estofados, almofadas. A rainha e
as damas de companhia vestiam túnicas belamente
decoradas com fios de ouro e pérolas. Todas elas
tinham lindos cintos e bolsas.
— Senhoras como elas poderiam pagar por seu
trabalho.
— Eu sei. Fiquei pensando em levar uma amostra
do meu trabalho para as damas da Torre, mas. —
Meneou a cabeça e franziu o cenho diante do
desenho.
— Porque não faz isso? Viveria muito melhor do
que se continuasse a vender um laço aqui e outro
acolá.
— Não. Vai pensar que sou tola.
— Não vou, não.
Joanna gesticulou em direção ao pendão.
— Escolheu uma borda?
— Não pode mudar de assunto com tanta
facilidade, mas sim, escolhi um. Aquele com os nós.
— Perfeito! — Ela sorriu, fazendo-o sentir uma
ridícula onda de orgulho. — Poderia encontrar o
estêncil dele, por favor?
Vasculhando os moldes, Graeham disse:
— Os seus bordados são dignos da própria
rainha. Uma encomenda real a sustentaria por
vários anos. Porque hesita em levar seu trabalho à
corte?
Ela tirou o carvão da pena de ganso e os
guardou, em seguida, começou a afiar a ponta de
uma pena de corvo.
— É por causa da mudança na minha situação —
afirmou sem encará-lo. — Aos catorze anos fui
apresentada à corte e conheci a rainha. Voltar aos
vinte e um como uma comerciante. — Balançou a
cabeça. — Eu não deveria me sentir envergonhada,
mas. Talvez eu só precise de mais um tempo para
me encorajar, ou quem sabe, preciso estar numa
situação desesperadora que não me dê alternativa.
Ele lhe entregou o molde e recolocou a caixa no
chão.
— Permitir que o desespero assuma dificilmente
é uma boa estratégia, não importando qual seja seu
objetivo.
Joanna suspirou e abriu o frasco de tinta. Encheu
a pena e começou a traçar as linhas demarcadas
pelo carvão com rapidez, mas impecavelmente.
— Há outro problema. As damas da corte não se
satisfarão com simples bordados em seda. Elas
apreciam ornamentos caros como pérolas e pedras
preciosas aplicados com fios de ouro. Não tenho
dinheiro para comprar tais coisas. Os fios de ouro
também são muito custosos, pois são feitos com
ouro genuíno enrolado a fios de seda. A fiandeira
ganha mais por gramas desse produto do que eu
num lenço como este.
— As damas da rainha necessitam mesmo de
ouro e jóias?
Ela lhe lançou um olhar entristecido.
— Ouro e jóias são só o que elas conhecem,
sargento. Elas são as filhas das famílias mais nobres
do reino. A esposa de um mercador, ou mesmo de
um conselheiro, poderia se contentar com fios de
prata e lantejoulas, mas não aquelas mulheres.
— Lantejoulas?
— São pequenos ornamentos metálicos que, se
bem aplicados, não fazem feio. Há também vidrilhos
de Veneza vendidos no mercado de sexta-feira que
substituem bem as pedras preciosas.
— E as esposas dos mercadores consideram a
troca aceitável? — Graeham perguntou, a semente
de uma ideia germinando na sua mente.
— Elas não têm escolha. Ouro e jóias são
inacessíveis para elas, mesmo que aspirem à
nobreza, os maridos não teriam meios de bancar
tais luxos.
Graeham se ajeitou sobre o baú, acreditando que
sua ideia poderia funcionar.
— Já pensou em atender as esposas dos
mercadores mais abastados?
— Já faço isso. — Joanna contemplou o trabalho
com olhar crítico. — Se elas vêm à loja à procura de
um artigo em particular.
— Não, quero dizer ir até a casa delas com as
amostras para que vejam do que é capaz. Se fosse
até elas, como fazem as modistas, e conversasse
com elas, saberia do que elas precisam de fato e
logo estaria com mais encomendas do que o
necessário para se manter.
Ela pegou um espanador de penas e tirou pó de
carvão da seda, deixando o desenho com um
traçado claro a tinta.
— Não teria de ir além da rua Milk — disse ele. —
Há a esposa do cambista, aquele do temperamento
ruim.
— A esposa de Lionel Oxwyke?
— Ela mesma. Eles conseguiriam pagar pelo seu
trabalho. — Graeham retravou o entusiasmo da voz,
ela não deveria suspeitar que aquele esquema o
beneficiaria de algum modo. — E a esposa do chefe
da associação dos comerciantes de tecidos, aquela
que está sempre doente?
— Ada Le Fever?
— Sim.
— De jeito nenhum. — Joanna se levantou e saiu
pela porta de trás.
Graeham sussurrou uma imprecação e se largou
na parede. Se conseguisse convencê-la a entrar na
casa de Le Fever, acabaria sabendo das reais
condições de saúde de Ada. Qualquer informação
seria melhor do que tinha até o momento só de
espiar pela janela.
Joanna seria seus olhos e ouvidos. O esquema
também traria benefícios para ela, mas Graeham
não se iludia em pensar que sua proposta era
altruísta. Sentia-se consumado pela sua missão e,
se pudesse usar Joanna, quer ela soubesse disso ou
não, era o que faria. Qualquer vantagem que ela
obtivesse seria secundária.
Quando ela voltou, trazia um pano, uma esponja
e uma bacia de água, que depositou na mesa de
trabalho antes de voltar a se sentar.
— Farei o que propôs.
— Vai procurar Ada Le Fever?
— Ela não, mas procurarei Rose Oxwyke e talvez
Elizabeth Huxley, a esposa do conselheiro. Com o
aluguel que me pagou, poderei comprar fios de
prata e lantejoulas e.
— Porque não vai procurar a sra. Ada? E por
causa da doença dela?
— Por causa do marido. — Ela virou a moldura e
expôs o reverso da seda no cavalete.
— Qual o problema com ele?
— Ele me roubou o direito de me manter porque
eu não. — Ela se virou e o encarou.
— Roubou seu direito de se manter? Como?
— Eu o procurei em busca de um favor um dia. —
Ela molhou a esponja e a espremeu.
— Que tipo de favor?
Joanna mordeu o lábio enquanto humedecia o
tecido.
— Eu queria fazer parte da associação.
As peças começavam a se encaixar no quebra-
cabeça.
— Seu marido já não é membro? — perguntou na
esperança de que ela revelasse a verdade, mas
sabendo que não devia querer tal coisa, pois isso só
traria mais problemas.
Felizmente, ela tinha mais juízo do que ele.
— Sim — respondeu ao guardar a esponja e
recolocar a tela no cavalete do lado certo. — Eu só
queria fazer parte também porque. porque sim,
oras. Le Fever, porém, tinha certas condições.
— Condições que a senhora se recusou a
cumprir. — Verme maldito, Graeham pensou.
— Exatamente. — Ela pegou um pincel macio e,
molhando-o na tinta, começou a fazer sombras no
tronco da árvore.
Manfrid entrou na loja pela janela aberta e, ao
ver Graeham, pulou no baú ao seu lado e se deitou,
oferecendo a barriga com um olhar pidão.
— Pois não? — Graeham perguntou num tom
baixo. — O que exatamente o senhor deseja?
Manfrid se esticou e se retorceu à espera de um
afago.
— Pare de atormentar a pobre criatura e coce a
barriga dele. — Joanna riu.
— Não quero que ele pense que estou sempre à
disposição.
— E não está? Fiquei surpresa com o modo como
ele se afeiçoou ao senhor. — Com um sorriso
travesso, completou: — E vice-versa. Não pensei
que fosse se dar ao trabalho de ficar amigo de uma
criatura inútil.
Graeham pousou a mão na barriga do felino,
provocando um ronronar alto e ressonante.
Joanna sorriu enquanto acrescentava sombras ao
tronco e aos frutos, fazendo com que o desenho
ganhasse profundidade.
— É um milagre o que consegue fazer. —
Graeham afagava os pelos do gato que se
abandonou aos carinhos.
— Tudo o que precisa é de um bom pincel de
pelos de esquilo e uma mão firme.
— Não deveria subestimar seus talentos. É uma
mulher incrível, extraordinária.
Ela não respondeu, parecendo absorta no
trabalho, mas as faces ficaram coradas. Graeham
quis chutar o próprio traseiro, deveria tentar
convencê-la a ver Ada e não perder tempo
elogiando-a como um namorado apaixonado.
Mudando de tática, disse:
— Além de talentosa, é uma mulher forte,
determinada. Independente.
— Precisei ser assim.
Exatamente como ele. Talvez fosse isso o que o
atraía nela: eles tinham passado pela mesma
experiência de não ter ninguém com quem contar.
no meio às vantagens de viver independentemente
de outros, havia a desvantagem da solidão.
Graeham se perguntou se ela ficava acordada à
noite, tentando ouvir os barulhos do andar de baixo.
— A senhora é forte, e é por isso que me
surpreendo por se deixar acovardar por Rolf Le
Fever.
— Acovardar! — Ela se virou para encará-lo, os
olhos brilhantes de indignação, exatamente como
ele sabia que ela reagiria. Ele e Joanna Chapman
eram muito parecidos.
— Sim, se acovardar. Esse homem a intimida
tanto que nem tenta abordar a mulher dele. Le
Fever a abateu sem nem mesmo tentar, enquanto a
senhora permite que isso aconteça.
Ela voltou a olhar para o tecido, mas a mão ficou
imóvel. Graeham temeu, por um instante, que ela
lhe perguntasse qual o seu interesse no assunto.
Joanna, contudo, não sabia que ele já conhecia o
mercador antes de ser atacado no beco ao lado da
sua casa e presumia, portanto, que seu único
interesse era ajudá-la. Graeham sentiu uma pontada
de remorso.
— Tem razão. Ele está me coagindo sem nem
saber, com a minha permissão. É que jurei nunca
mais me relacionar com aquele homem. Ele tentou
me usar do mesmo modo que os outros homens que
conheci. Com exceção de Hugh. — Tímida, olhou-o
de esguelha e completou: — E do senhor, é claro.
O remorso dele aumentou.
— Obrigado, senhora.
Na tarde seguinte, Graeham observou pela janela
quando Joanna bateu à porta de serviço da casa de
Rolf Le Fever, carregando uma bolsa de couro com
as amostras dos bordados e alguns itens prontos,
como um cinto de contas, um lenço elaborado e uma
bolsa de franjas.
A cozinheira abriu a porta, limpando as mãos no
avental, acenou para Joanna e depois voltou para
dentro da casa. Um minuto mais tarde, Graeham a
viu no andar de cima, onde Le Fever se reunia a
alguns homens. Ele falou com rispidez, e a
cozinheira se retraiu, apontando para fora.
O mercador foi até a janela e se inclinou,
franzindo as sobrancelhas ao ver Joanna. Logo em
seguida, ele apareceu na entrada. Apoiando-se ao
batente, com os braços cruzados, falou com Joanna,
olhando-a com cobiça.
Graeham cerrou os punhos. De súbito, percebeu
que não tinha sido uma boa ideia incitá-la a ir lá.
Joanna estava de costas, mas, pela expressão
impaciente de Le Fever, estava claro que ela tentava
convencê-lo a deixá-la subir para falar com a
esposa. Ele balançou a cabeça e retrocedeu um
passo, a mão segurando a porta. Ela avançou um
pouco e disse algo, apontando para a bolsa que
carregava.
Le Fever ergueu uma das mãos, a expressão
irada, a voz tão alta que Graeham conseguiu ouvi-
lo, mesmo de longe. Ele dizia que a esposa não
precisava dos "artigos baratos" que ela ofereceria e
que, caso se recusasse a sair de boa vontade,
mandaria que a expulsassem. Por fim, bateu a porta
na cara dela.
Joanna ficou parada um momento, depois se
dirigiu ao portão. Ao passar pela entrada, parou, a
mão segurando a grade de ferro, a expressão
meditativa. Em seguida, seu rosto se iluminou.
Graeham achou que ela tentaria entrar às
escondidas, em vez disso, Joanna seguiu pelo beco.
Curioso com o que ela tinha em mente, pegou as
muletas e foi até a outra janela, mas ela já havia
passado.
Mancando, foi até a saleta e viu pela janela da
frente que ela entrava na farmácia. Ficou lá durante
tanto tempo que ele começou a sentir a perna
latejar. Quando, por fim, ela saiu, vestia o manto
verde de Olive. Antes de atravessar a rua, cobriu o
rosto com o capuz. Além da bolsa de couro,
carregava o vidro azul do tônico.
Graeham voltou para o depósito e viu quando ela
entrou no quintal dos fundos de Le Fever. Byram,
que saía do estábulo naquele instante, a
cumprimentou:
— Boa tarde, Olive. Pode entrar.
Joanna levantou a mão à guisa de cumprimento,
abriu a porta e desapareceu no interior da casa.
— Garota inteligente! — Graeham sussurrou,
deitando-se na cama.
Fechando a porta atrás de si, Joanna se viu num
longo corredor. A direita, viu a entrada da cozinha,
na qual a cozinheira cantarolava ao picar legumes.
Uma porta de carvalho estava aberta do lado
esquerdo e, ao lado dela, a escada de serviço.
Joanna subiu os degraus com rapidez, rezando
para não ser descoberta antes de ter a chance de
oferecer seus préstimos a Ada. Ao passar pelo
segundo andar e ouvir as vozes dos homens, fez o
sinal-da-cruz em busca de proteção.
Parada no terceiro andar, aguçou os ouvidos,
tentando ouvir algum barulho do lado de dentro do
quarto. Infelizmente, tudo parecia silencioso. Olive
disse que ela encontraria a dona da casa ali,
recuperando-se da gripe. Porém, se ela não estava
lá, tinha perdido a viagem e teria de tentar
novamente num outro dia. Numa última tentativa,
bateu à porta.
— Aethel? — perguntou uma voz aguda. —
Pensei que tivesse saído para fazer as compras.
Joanna entreabriu a porta. As janelas do quarto
estavam fechadas, e ela levou uns instantes para
vislumbrar a cama estreita sem cortinas do lado
oposto. Uma mulher recostada sobre uma pilha de
travesseiros a observava com espanto.
— Sou Joanna Chapman, senhora — ela se
apresentou, entrando no quarto e fechando a porta.
— Sou sua vizinha.
Joanna cruzou o aposento, sentindo-se uma
intrusa por invadir o santuário da mulher. Começou
a lamentar o fato de ter ido até lá, não pelo temor
de ser descoberta, mas por estar violando a
privacidade dessa desconhecida, ainda por cima
adoentada.
O quarto era simples. Sem quadros nem enfeites,
a mobília era mínima. Não fosse a amplitude do
cômodo, poderia passar pela cela de uma freira.
Ada apontou para o frasco azul na mão de
Joanna.
— Esse é o meu tônico? — perguntou com voz
fraca.
— Sim, Olive. me pediu que o trouxesse.
O certo seria dizer que tivera de convencer a
moça a deixá-la levar o medicamento. A garota,
hesitante a princípio, concordara em ajudá-la ao
saber das suas intenções, desde que se
comprometesse a fazer a mulher tomar o remédio
na hora a fim de levar o frasco de volta para a
farmácia, já que a mãe os contava duas vezes ao
dia, temerosa de perder algum.
Joanna pousou a bolsa no chão e se sentou numa
cadeira ao lado da cama, tentando não encarar a
doente. Ada era bem jovem, ou talvez fosse a
doença que lhe emprestasse esse ar. O rosto estava
muito pálido, acentuado pelos cabelos escuros bem
penteados. Embaixo dos olhos, duas manchas
escuras.
Joanna tentava conciliar a figura da enferma com
a da moça cheia de vida que cuidara do jardim no
ano anterior. Naquele dia, a moça lhe parecera bela
e delicada, hoje, só parecia muito doente.
— Se puder me ajudar a sentar, tomarei o tônico
— Ada pediu. Ela falava no dialeto continental franco
normando, em vez da versão anglicizada mais
comum na Inglaterra, com um sotaque refinado que
indicava bom berço.
Passando o braço ao redor dos ombros de Ada,
Joanna a ajudou e depois abriu o frasco. O remédio
tinha um aroma agradável de menta. Ela estendeu o
frasco para a enferma, mas a jovem balançou a
cabeça.
— Eu o deixarei cair se tentar segurá-lo. Minhas
mãos nem sempre obedecem.
Joanna a ajudou segurando o frasco enquanto a
moça tomava pequenos goles, com visível
dificuldade. Depois voltou a deitá-la sobre os
travesseiros.
— Isso fará com que se sinta melhor — Joanna
assegurou, mudando para o francês ensinado pelos
clérigos do seu pai.
— Sempre me sinto pior depois de tomá-lo —
Ada comentou.
— Pior?
— Sinto calafrios, e a boca e a garganta ficam
adormecidas. Às vezes tenho sangramentos no
nariz. O sr. Aldfrith diz que é o remédio fazendo
efeito.
— O cirurgião?
— Sim, meu marido mandou chamá-lo quando
fiquei doente. Ele ainda vem me ver de tempos em
tempos, às vezes traz o genro.
— O genro também é cirurgião?
— Não, é mercador, ou tem intenção de ser. O
sogro está tentando inseri-lo na associação, mas
Rolf diz que o rapaz é muito inexperiente.
Pelo visto, Ada precisava dos cuidados de um
médico de verdade, não do cirurgião local.
— O que o sr. Aldfrith diz ser o seu problema?
— Um defluxo na cabeça. Ele diz que às vezes
pode demorar a passar.
Joanna nunca vira ninguém definhar tanto por
conta de uma gripe.
— Ele disse a Olive que tipo de tônico preciso
tomar, e ela o traz todos os dias.
— Há quanto tempo a senhora o vem tomando?
— Desde a época do Natal. Quanto tempo se
passou?
— Quase seis meses.
Ada se virou na direção da parede. Joanna se
levantou e disse alegre:
— Sei do que precisa. — Foi até a janela. — Um
pouco de ar fresco e luz do sol.
— Não.
— Está muito escuro aqui dentro e abafado
também. Não sei como consegue suportar. —
Joanna abriu a persiana e quando se virou, viu que
Ada tinha coberto o rosto com o braço.
— Feche — Ada suplicou. — A luz fere meus
olhos.
— Acabará se acost.
— Não, feche! Por favor.
Joanna a atendeu e depois voltou para o lado
dela. Ada esfregava os olhos com mãos trêmulas. O
corpo todo estremecia.
— Está com frio?
— Sim — Ada respondeu, deitando-se de lado e
abraçando as pernas.
Joanna a cobriu com uma manta dobrada aos pés
da cama.
— Precisa de um médico.
— Rolf diz que isso não é necessário.
— Mesmo assim, acho que seria melhor pedir
uma consulta com outro médico.
— Fiz isso da última vez em que Rolf veio me
ver, na quaresma, mas ele disse que isso custaria
caro e que eu não estou tão doente quanto pareço,
que eu só. — Ada emitiu um suspiro de desalento.
— Ele diz que só estou melancólica, que estou
valorizando uma simples gripe. Ele e o sr. Aldfrith
concordam nisso. — Ela balançou a cabeça. —
Desculpe. A senhora não veio aqui ouvir esses
lamentos.
— Eu não me importo. É verdade que se sente
melancólica?
Ada fechou os olhos e assentiu.
— Acha que é esse o seu problema, além da
gripe?
— Talvez. — Ada deu de ombros. — O sr. Aldfrith
tentou me explicar, porém é tudo muito confuso.
Tem a ver com os humores das estrelas e o
equilíbrio da terra, do fogo, do ar e da água. Minha
irmã, Phillipa, teria entendido, ela é tão inteligente,
mas eu não consigo. Aparentemente tudo é
resultado do excesso de bile negra, é isso o que
causa a melancolia e é por isso que eu acredito
estar mais doente do que estou de fato.
Joanna não podia desacreditar a teoria por
completo. Se a alma estava doente, o corpo também
sofreria.
— Rolf diz que não é nada disso, que eu estou à
procura de atenção. e piedade. e. — Balançou a
cabeça mais uma vez. — Sei que não veio aqui para
me ouvir falar sobre isso, mas só tenho minha
criada com quem falar. Bem, se desejar sair.
— Não, não. — Muito menos tinha a intenção de
abordar o assunto que a levara até ali. A jovem
senhora estava doente demais para se preocupar
com bordados. Levantando o livro da mesinha-de-
cabeceira, viu que se tratava do Saltério.
— Foi meu tio quem me deu isso — Ada disse. —
Ele é o cânone da Notre Dame.
— Ele é lindo — observou Joanna ao ver as letras
e as bordas douradas. — Lê com frequência?
— Meus olhos doem quando leio, mas eu o lia
muito. Adoro os salmos.
— Gostaria que eu lesse para a senhora? —
Joanna perguntou, sentando-se.
— Sabe ler?
— Sim.
Ada a encarou com um ar especulador.
— Não se parece com nenhuma esposa de
mercador que eu já tenha conhecido.
— Nem a senhora. — Joanna sorriu. Ada retribuiu
o sorriso.
— Eu adoraria ouvir. Muito obrigada.
Os sinos soavam as Vésperas quando Joanna
deixou a casa dos Le Fever do mesmo modo como
tinha entrado: às escondidas. Antes de voltar para
casa para preparar o jantar, decidiu que ainda tinha
tempo para visitar Rose Oxwyke.
No quintal dos fundos da casa havia um belo
jardim com um caminho de ardósia que levava até a
porta dos fundos. Joanna estava na metade do
caminho quando o jovem Damian saiu pela porta,
com o manto negro, o chapéu de feltro e os olhos
cintilando.
— Bom dia — cumprimentou Joanna.
— Senhora — ele murmurou, batendo o portão
ao sair.
Joanna se aproximou da porta, mas antes de
bater, ouviu a voz irritada de Lionel:
— Ele está saindo às escondidas para encontrá-
la! E nem se dá ao trabalho de negar!
A esposa disse algo na sua voz aguda que Joanna
não conseguiu identificar.
— E claro que meu estômago está doendo — ele
rebateu. — Sinto um fogo me consumindo, e é tudo
culpa dele!
Rose mais uma vez tentou aplacar a ira do
esposo, mas ele não queria saber disso.
— Maldito seja ele por seu desaforo!
Joanna virou sobre os calcanhares e saiu, aquela
não era uma boa hora. Seria melhor tentar numa
outra oportunidade quando o marido não estivesse
em casa.
Se aquela tarde desperdiçada era um indicativo
de como seria sua nova empreitada, poderia muito
bem abandonar a ideia de pronto. Tinha deixado a
loja fechada durante toda a tarde para o que parecia
ser um empreendimento fracassado.
O que faria quando o aluguel de Graeham
acabasse? Mulheres sem dinheiro não tinham futuro
numa cidade como Londres. Não era de se admirar
que tantas acabassem vivendo com o trabalho das
ruas. Não sabia se teria coragem de chegar a tanto.
De acordo com Hugh, tudo o que precisava era
se casar com o homem certo. Quanto mais pensava
no assunto, mais sentido isso fazia. Talvez fosse
melhor não dispensar Robert com tanta rapidez. Ele
não a procurara desde o dia no mercado, porém
Hugh afirmava que ele logo a visitaria. Ela dissera
ao irmão que pensaria a respeito só para agradá-lo,
contudo, após muita reflexão, o plano tinha seu
mérito. Se não fosse por Margaret.
Antes de voltar para casa, dirigiu-se à farmácia
para devolver o manto e o frasco. A porta estava
aberta, mas a loja estava deserta. Colocando o vidro
e a bolsa sobre o balcão, deu uma olhadela no local,
não era típico de Olive deixar a loja abandonada.
Pendurou o manto da moça no gancho ao lado do
corredor que dava para os fundos da casa. A cortina
que separava a loja do resto da construção estava
entreaberta e, pela abertura, Joanna conseguiu ver
Elswyth no jardim, cuidando das ervas. Virou-se
para sair quando murmúrios do outro lado
chamaram sua atenção. Olive sussurrava:
— Não. Por favor, não.
Joanna tirou a adaga do cinto e, respirando
fundo, abriu a cortina.
Olive arfou surpresa. Ela estava encostada na
parede, presa nos braços de um moreno: Damian.
— Sra. Joanna! — exclamou a moça.
— O que está acontecendo aqui? — Joanna
perguntou.
— Nada. Por favor, guarde isso. Ele não está me
fazendo mal.
— Fazendo mal? Oh, Deus. — Damian se virou e
se afastou. — Não suporto mais tudo isso, Olive.
Encontro às escondidas.
— Pare de me procurar, então — a moça
implorou.
— Não posso, eu te amo.
— Damian, por favor.
— Venha comigo.
— É impossível, sabe disso.
— Por causa do meu pai? Do compromisso com
aquela. aquela menina?
— Não é só isso.
O rapaz voltou a se aproximar e tomou o rosto
da moça entre as mãos.
— Já disse isso antes — falou ele com candura
—, e não me importo. Não foi culpa sua. Foi
obrigada.
— Damian. — Olive fechou os olhos, as mãos
segurando a saia com força. — Vá embora. —
Abrindo os olhos, suplicou, afagando-o no rosto. —
Por favor.
Uma lágrima correu pela face dela, e Damian a
enxugou com o polegar, beijou-a na testa e no rosto
com gentileza.
— Não vou desistir, Olive — disse com suavidade
e partiu.
Olive se apoiou na parede e fechou os olhos, as
lágrimas correndo soltas.
Joanna guardou a adaga e pegou um lenço,
oferecendo-o à moça.
— Você está bem?
Olive assentiu e enxugou o rosto.
— E impossível. Ele só não quer aceitar o fato.
Nada pode acontecer entre nós.
— Ele tentou tirar vantagem de você? Quer que
seja a amante dele?
— Não, ele nunca tocou em mim. Ele quer se
casar comigo. Mas eu não posso.
— O que ele quis dizer quando falou que não foi
culpa sua?
— Algo que não pode ser desfeito, por mais que
ele acredite que possa. — Dobrou o lenço e,
suspirando, devolveu-o. — Como está a sra. Ada?
Joanna aceitou mudar de assunto, sabendo que a
moça se retrairia caso insistisse.
— Muito doente.
— Ela pegou uma gripe muito forte. — Ajeitando
o cabelo, Olive voltou para a loja.
— Aquilo não me parece somente uma gripe.
— O sr. Aldfrith diz que ela sofre de melancolia,
como minha mãe.
— Pode ser. Importa-se de me dizer o que há
nesse tônico?
— Um remédio comum para gripes, uma infusão
de mil-folhas, um pouco de menta e mel para
acalmar a garganta. Vendemos muito dessa mistura
no inverno passado.
— Mil-folhas? — Não havia nada mais benigno do
que aquelas ervas. — Seria possível consumir essas
ervas em demasia ao ponto de ficarmos mais
doentes?
— Isso pode acontecer com valeriana ou absinto,
mas nunca com mil-folhas. Por quê?
— Foi o que pensei, bem. Eu devo ter me
enganado.
— Não é o meu tônico que está deixando a sra.
Ada doente, senhora. É o excesso de bile negra que
faz isso.
— E possível. — Joanna disse. Mas se Aldfrith
tinha tanta certeza do que causava a doença da
mulher, porque não conseguia curá-la?

Sem querer parecer interessado demais,


Graeham esperou até depois do jantar, quando
Joanna se retirou para bordar, para perguntar sobre
a visita a Ada Le Fever.
— Como foi hoje? — perguntou ao se sentar
sobre o baú, com um copo de vinho nas mãos.
Ela suspirou, observando com olhar crítico a seda
em que trabalhava.
— Nada bem.
Joanna tinha a cabeça coberta pelo véu naquela
noite, pois ele cometera o erro de dizer que lhe faria
companhia. Graeham sentia falta de admirar o brilho
dos cabelos sedosos, mas mesmo com o véu, era
uma luta se controlar para não ficar encarando-a
como um jovem tolo.
— Não conseguiu nenhuma encomenda? —
indagou, embora já tivesse adivinhado aquilo pela
atitude compenetrada com que ela voltara para
casa. Joanna nem sorrira quando ele brincara,
dizendo que ela tinha futuro como ladra, pela
maneira esquiva com que havia entrado na casa dos
Le Fever.
— Nenhuma. — Tirou o dedal da cesta e o
colocou no dedo. — Nem consegui mostrar o meu
trabalho.
— O que houve?
Começando o bordado, ela respondeu:
— A sra. Ada está doente demais para se
interessar por tais coisas, e a sra. Eose estava
ocupada tentando acalmar os ânimos do marido.
— Ada Le Fever está doente? — Ele levou o copo
aos lábios.
— Está definhando, confinada no quarto,
sofrendo com um defluxo e de excesso de bile
negra, de acordo com Aldfrith. O marido acha que
ela está apenas querendo atenção e piedade.
— Qual a senhora acredita que seja o problema?
— Graeham sorveu mais um gole.
— A meu ver, se ela tem excesso de alguma
coisa, é de exposição a Rolf Le Fever.
— Acha que ele está. causando algum mal a ela?
— Não, a menos que. — Ela franziu o cenho. —
Não cabe a mim fazer especulações.
— Pode especular o quanto quiser. Ele a está
machucando?
Joanna o encarou com curiosidade antes de
retomar o trabalho.
— A mera presença daquele homem pode
provocar melancolia em qualquer pessoa, contudo,
não creio que ele a esteja maltratando. Não vi sinais
de abuso, pelo menos. Ela me disse que faz mais de
três meses que ele não a vê.
— Qual a aparência dela?
— Como disse, está muito doente. Pálida, magra,
tem olheiras. Apesar disso tudo, é uma bela mulher,
com lindos olhos castanhos e cabelos negros.
Graeham não a imaginara morena. Lorde Gui e a
esposa eram loiros, bem como todos os filhos, por
isso achara que a futura esposa era loira de olhos
azuis.
— Ela é pequena e delicada — Joanna continuou.
— Perto dela, pareço um boi.
Graeham riu com a ideia de Joanna se comparar
a um animal pesado como aquele. Nunca, em toda a
sua vida, encontrara outra mulher mais graciosa e
feminina do que ela. Mais desejável. Mais
inalcançável.
Não pense nela, pense em Phillipa.
Agora, graças a Joanna, conseguia formar a
imagem da noiva na sua cabeça: era pequena,
delicada e morena. Embora muitos homens
preferissem as loiras, as mulheres mais belas que
conhecera tinham cabelos escuros. Os olhos de
Phillipa eram castanhos. Como os de Joanna.
Não, nenhuma mulher tinha os mesmos olhos de
Joanna. Quando se casasse com Phillipa, teria de se
esquecer daqueles olhos. Ou tentar.
Voltando ao que lhe interessava no presente,
perguntou:
— Acredita que ela esteja correndo algum perigo
real com essa doença?
— Quer dizer, se eu acho que ela pode morrer?
Acho que não, pelo menos por enquanto.
Ela conversou comigo normalmente — Joanna
comentou, bordando. — E ela ainda come. Vi uma
tigela de caldo ao lado da cama. E toma o remédio
sem reclamar, apesar de alegar se sentir pior
depois.
— É mesmo? E o que será que há nesse tônico?
— ele questionou, tomando o resto do vinho.
— De acordo com Olive, somente uma infusão de
mil-folhas com mel e menta. — Ela o olhou de
esguelha.
— Mil-folhas. Isso não deveria fazer mal. — Ele
refletiu.
— Mas também não parece estar ajudando.
A seriedade da doença poderia ser um problema
para ele.
— Ela sai da cama?
— Duvido.
— Mas e se ela. Digamos que ela precise fazer
uma viagem.
— Viajar? Para onde?
— Não sei, para qualquer lugar. Acha que ela
aguentaria?
— Naquela égua que comprou para ela?
— Hugh vendeu a égua, eu teria de. — Droga!
Joanna enfiou a agulha na seda e o encarou, sem
sorrir. Graeham fechou os olhos e se encostou à
parede.
— Acho que fui um tanto óbvio. — Ele abriu os
olhos, e viu que ela continuava séria. — Tinha
alguma suspeita antes de hoje à noite?
— Não, o senhor foi bem sutil. — Ela tirou a
dedeira. — Alguns homens são bons enganadores,
sargento. O senhor é um deles. Pensando bem,
algumas coisas não se encaixavam bem, como a
égua. Que soldado cavalga uma égua delicada como
aquela? Lembro-me também de ter considerado
estranho o fato de estar procurando uma estalagem
quando já tinha acomodações na São Bartolomeu, e
ainda por cima estava só de passagem. Aliás, não
há parentes em Oxfordshire, há?
— Não. — Graeham passou os dedos pelos
cabelos.
— Estava em West Cheap por causa de Ada Le
Fever. Veio a Londres para buscá-la.
— Sim — ele concordou hesitante, não querendo
revelar muito.
— Está apaixonado por ela?
— Não!
— Cruzou o canal para roubá-la do marido — ela
disse impassível. — Ainda está procurando um meio
de fazer isso. — Estreitou o olhar. — É por isso que
queria ficar na minha casa e que me pagou quatro
xelins. Precisava de um esconderijo conveniente
enquanto formulava um plano para raptá-la. Esteve
usando meu depósito como um lugar de tocaia! E
isso, não? — ela exigiu furiosa.
— Diga a verdade pelo menos uma vez!
Graeham deu um profundo suspiro.
— Sim, é isso. Fiquei vigiando a casa, a fim de
levar Ada Le Fever embora, mas não por estar
apaixonado. Eu nunca a encontrei. — Ele esfregou a
nuca e refletiu sobre o quanto poderia revelar. — Fui
enviado para cá. por um parente dela. Alguém que
está preocupado com seu bem-estar. Essa pessoa
acredita que o marido a esteja maltratando.
— Por quê?
— Ela parou de escrever há seis meses.
— Foi quando ela ficou doente — Joanna disse. —
Estou certa de que ela não se sentia bem para
escrever.
— Não haveria com o que se preocupar, se não
fosse por Le Fever. Ele lamenta ter se casado com
Ada e não tem feito nada além de abusar dela desde
que chegaram a Londres.
— Que tipo de abuso? Ele bate nela?
— Aparentemente não, mas a insulta e ameaça.
— Ora bolas — Joanna disse com humor negro
—, e o que o diferencia dos demais maridos?
— Sabe como ele é depravado. Ao que parece,
tem inúmeras amantes e faz alarde das suas
conquistas, mesmo que ela consiga ouvir. Parece
que ele sente um prazer especial em seduzir as
esposas de homens influentes. Eu mesmo vi uma
noite dessas quando ele levou uma mulher para o
quarto dele. Pelo modo como a mulher se vestia,
presumo que seja alguém da alta sociedade.
— Como era ela?
— O cabelo era muito loiro, quase branco, e ela
tinha proporções generosas, além de marcas de
varíola no rosto.
— Era Elizabeth Huxley, a esposa do conselheiro
do nosso distrito. John Huxley não é o tipo de
homem com que se possa brincar. Se ele souber
disso.
— Acha que mataria Le Fever?
— Ou o castraria. Le Fever deve saber disso, não
é nenhum tolo.
— Os homens tendem a perder a cabeça nos
assuntos do coração.
— As mulheres perdem a cabeça nos assuntos do
coração — Joanna disse seca. — Os homens são
escravos dos desejos de outro órgão.
Ele assentiu, mas tentou esconder o riso. Era
melhor se conter ante o mau humor dela.
— Quem é o parente que o enviou para cá?
— Não tenho a liberdade de revelar isso. Joanna
jogou o dedal no cesto, com o rosto fechado.
— Ele me pediu que a levasse de volta a Paris —
Graeham explicou —, e tenho a intenção de
encontrar um meio de fazer isso, apesar da minha
fratura. Isso. isso é tudo o que precisa saber.
— E está em condições de determinar o que eu
preciso ou não saber a respeito dos planos
arquitetados sob o meu teto?
— Não estou arquitetando nada, só estou
tentando salvar uma mulher de um casamento
infeliz.
— Por quê?
— Acabei de explicar — ele respondeu,
impaciente. — O marido a maltrata e.
— Não. O que quero saber é porque está fazendo
isso? Porque isso lhe é importante? O que tem a
ganhar se levar Ada a Paris?
Graeham a encarou, desejando que ela não fosse
tão inteligente. Deu de ombros, sem fitá-la.
— Preciso ganhar alguma coisa além da
satisfação de saber que ajudei uma mulher em
apuros?
— É tão nobre que está passando por tudo isso
sem lucrar nada?
— Talvez eu seja.
Revelar o casamento iminente e a propriedade
das terras comprometeria o anonimato de lorde Gui.
Aquele não era o único motivo pelo qual hesitava em
mencionar Phillipa, mas era a razão a que se atinha,
aquela que repetia para si mesmo ser importante o
bastante para justificar a teia de mentiras que ele
tecia para si e para Joanna.
A mentira de Joanna sobre o falecimento do
marido era justificável e benigna se comparada com
a dele, mais profunda e resultado de interesse
próprio. Havia uma grande diferença.
— Seus motivos podem ser altruístas, mas eu
duvido — ela sentenciou. — Tem interesses pessoais
nessa história, ou não chegaria a ponto de sacrificar
sua honra.
— Sacrificar a minha honra!
— Veio para a minha casa e me ludibriou. Pior
ainda, me usou! Essa sua grande ideia de me fazer
procurar encomendas junto às senhoras da região
era parte do plano, a fim de que eu entrasse na casa
de Le Fever e pudesse espionar no seu lugar, não?
Graeham lutava para encontrar as palavras
certas.
— Fui a sua agente — continuou Joanna. — Seu
peão insuspeito. Eu teria de avaliar a situação da
casa e reportar minhas descobertas. Só que eu não
sabia que esse era meu objetivo! Ouso dizer que se
divertiu quando eu concordei com tanta facilidade.
— Não foi bem assim.
— Nega que me enviou para lá para ser seus
olhos e seus ouvidos? Que me usou e me explorou,
sem meu conhecimento ou permissão?
— Foi o único modo. — Frustrado, acrescentou:
— Ainda é. Sei que me odeia por eu tê-la iludido.
— O senhor mentiu para mim!
— Por ter mentido — ele se corrigiu, desanimado
por ela não ter negado que o odiava. — Não posso
condená-la. Ainda assim, preciso que volte lá e.
— Não pode estar falando a sério! — Ela ficou de
queixo caído.
— Não faça isso por mim, mas por Ada. Ajude-
me a salvá-la daquele verme com o qual está
casada.
— O senhor é muito persuasivo, sargento, mas
não tanto assim. Primeiro mente para mim, depois
tem a ousadia de dizer o que eu devo ou não saber.
Agora realmente espera que eu volte àquela casa.
— Não se importa com o que possa acontecer
àquela mulher? — ele a interrompeu. — Le Fever lhe
disse que gostaria de poder se livrar dela. Pelo
pouco que sabemos, ele pode estar planeando algo.
— Por mais odioso que ele seja, não há motivos
para pensar que pretenda ferir a esposa. Ela definha
no quarto enquanto ele se diverte com outras
mulheres. Se tivesse pensando em se casar com
outra, eu o veria tentando fazer algo nesse sentido,
mas do jeito que estão as coisas. — Deu de ombros.
— Não, não vou voltar.
— Pense bem — ele suplicou —, por favor.
— Já pensei — Joanna se levantou —, e a
resposta é não.
Graeham a segurou pela mão quando ela se
virou.
— Senhora.
— Solte-me, sargento. — Ela tentou se
desvencilhar, mas ele segurou as duas mãos,
imobilizando-a.
— Só quero que reconsidere.
— E que me deixe ser usada? Estou farta de ser
manipulada pela ambição dos homens. Solte-me!
Ele firmou o aperto, querendo que ela o olhasse
nos olhos.
— Lamento ter mentido — disse ele, desejando
não ter tanto do que se desculpar com essa mulher.
Mais do que tudo, queria não ter de continuar a
enganá-la.
— Estou certa de que lamenta agora, já que sabe
que não conseguirá reaver a minha confiança. Será
muito mais difícil me envolver nas suas tramas
ardilosas.
As mãos dela eram macias, exceto pelos
pequenos calos nas pontas dos dedos, e quentes.
Graeham encontrou-se acariciando as palmas, os
dedos, buscando o calor e a irresistível suavidade
feminina.
— Eu imploro — murmurou ele. — Preciso de
você. Ela fechou os olhos, o peito acelerado
movendo-se no ritmo do dele.
— Não fuja de mim — ele pediu com suavidade.
— Cometi erros, talvez eu ainda os esteja
cometendo. Não sei. Eu só. estou desesperado.
Ela abriu os olhos e balançou a cabeça.
— Preciso de você — ele repetiu com sinceridade.
— Eu não posso — a voz dela saiu entrecortada,
trêmula. — Não posso permitir que isso aconteça.
Não vou permitir que me use, sargento. Não posso.
Por favor, solte minhas mãos.
Graeham hesitou, sentindo um vazio no peito,
um vazio que nunca tinha sido preenchido. Sim,
precisava de Joanna, e não só por causa de Ada.
— Por favor — ela pediu baixinho —, deixe-me ir.
Ele soltou suas mãos, e ela se virou para seguir até
a saleta. Um instante depois, Joanna subia as
escadas.
Graeham ficou acordado até muito depois da
meia-noite, ouvindo os sons das cordas do estrado
da cama de Joanna, que se virava sem parar, e
pensando quando as coisas tinham ficado tão
complicadas.
No dia seguinte, Graeham observava Joanna pela
janela de trás enquanto ela lavava roupa debaixo do
sol abrasador do meio-dia. Ela trocara os lençóis da
sua cama, pegara as camisas e roupas de baixo e as
juntara à própria roupa de molho numa das tinas da
lavanderia improvisada no quintal.
Depois que ela voltou da missa dominical,
enrolou as mangas, vestiu um avental e um lenço na
cabeça e se pôs a esfregar, enxaguar e torcer,
tarefa que durava, pelo que ele tinha observado nos
domingos anteriores, a tarde toda.
Graeham se perguntou se ela sabia que era
observada, ou se ela se importava com isso.
Joanna havia se distanciado dele, e Graeham
sentia falta dos sorrisos, dos gestos nervosos, da
tensão que os envolvia e que sempre o deixava
tonto. Adorava aquela sensação.
Detestava aquela sensação.
— Que confusão. — ele sussurrou, vendo o suor
brotar na fronte e no peito da mulher, escurecendo
o lenço e formando uma mancha húmida entre os
seios.
Naquele dia, ela usava o vestido violeta, aquele
que melhor se assentava nas suas curvas. O decote
era generoso e, quanto ela se inclinou sobre a tina,
Graeham pôde ver a curva superior dos seios.
Imaginou como seria colocar a mão sobre o tecido e
sentir o peso do monte arredondado, o mamilo
resvalando o centro da sua palma, bem onde era
mais sensível.
Imediatamente excitado, Graeham fechou os
olhos e se deitou. Não podia imaginar tal coisa com
Joanna, ainda mais sem ter como extravasar sua
luxúria. Ela era inalcançável, nunca seria sua. E isso
era bom.
Tentando controlar seu corpo temperamental, ele
pegou o livro do momento e o abriu na página
marcada pelo barbante que desejava nunca ter
visto. Releu os mesmos trechos inúmeras vezes,
sem absorver nem uma palavra.
Desistindo, voltou a olhar pela janela. Enquanto
Joanna torcia um lençol, uma mecha de cabelo
desobediente escapou do lenço e se enrolou na
testa, de maneira deliciosa. Graeham não conseguiu
deixar de rir.
Atrás dela, vindo da rua Milk, o rosto de um
jovem clérigo se iluminou ao vê-la. Graeham pensou
que fosse um clérigo, mas a roupa era, na realidade,
de um escarlate muito escuro e os cabelos, embora
bem curtos, não tinham a coroa no centro. De fato,
ele não parecia tão jovem quanto à primeira vista.
Parando na beira do quintal, ele enxugou a fronte
e pousou as mãos no quadril para observar Joanna,
que estava de costas para ele. O homem parecia se
divertir e, certamente, estava muito interessado.
Graeham ficou alerta. Pegando as muletas,
levantou-se bem na hora em que o desconhecido
disse:
— Achei que domingo era dia de descanso.
Joanna se virou, quase derrubando o lençol.
— Lorde Robert!
Ela o conhecia, e ele era um lorde. Robert.
Joanna mencionara aquele nome ao voltar do
passeio ao mercado com o irmão. Ele lhe dera a
tangerina.
— Parece precisar de ajuda, milady.
Milady? Graeham voltou a se sentar na cama, o
olhar fixo no casal.
— Não — Joanna protestou quando ele se
aproximou com a mão estendida para pegar o
lençol. — Acabará molhando sua bela túnica.
— Isso me refrescará, está muito quente hoje. —
Robert pegou o lençol das mãos dela, chacoalhou-o
e pendurou-o no varal. — Não deveria trabalhar
tanto, lady Joanna. Porque não manda a roupa para
fora?
Ela secou as mãos no avental e arrumou a mecha
de cabelo rebelde, que, um segundo depois, voltava
a escapar, para deleite de Graeham.
— Não posso me dar a esse luxo.
Robert assentiu, parecendo espantado pelo fato
de "lady" Joanna ser pobre demais para contar com
uma lavadeira. Os dois se olharam em silêncio.
— Gostaria de um pouco de água? — ela
ofereceu.
— Sim, obrigado.
Ela pegou uma concha na cozinha e encheu-a no
poço, oferecendo-a a Robert, que a tomou num gole
só.
Joanna sorriu, e ele retribuiu o sorriso. Graeham
tinha os dentes tão travados que sentia a mandíbula
doer.
— Milady — Robert disse, dando um passo à
frente. — Não sei bem como proceder, pelos
costumes, eu teria de falar com seu pai para
negociar este assunto.
Os olhos de Joanna arregalaram, e ela olhou na
direção da janela, encontrando os olhos de Graeham
por apenas um instante antes de Robert segurá-la
pelas mãos, prendendo sua atenção novamente.
— Sei, porém, do seu relacionamento com seu
pai. Por isso, pedi a Hugh que cuidasse disso, mas
ele riu, dizendo que eu viesse diretamente falar com
a senhora. Portanto, aqui estou eu. Suponho que
saiba o que eu quero lhe.
— Aqui não! — ela o interrompeu. — Vamos.
Vamos dar uma volta. — Corada, ela brigou como nó
do avental que não cedia.
Graeham condoeu-se com o nervosismo dela.
Afinal como poderia receber um pretendente em
casa, fazendo-se passar por uma mulher casada? Ao
mesmo tempo, algo dentro dele se revirava em
angústia. Queria gritar que ela não poderia se casar
com aquele homem, que ele não permitiria.
Idiota! Como se ele pudesse oferecer coisa
melhor.
Devia ficar feliz por ela.
Viu-a se afastar ao lado de Robert, desenrolando
as mangas.
Tinha de esquecer o que queria e não podia ter, o
que achava que não poderia viver sem. Precisava
colocar de lado os sonhos mais fervorosos e os
desejos insaciáveis, menosprezar o vazio que sentia
no peito e que somente Joanna poderia preencher.
Precisava encontrar um modo de ficar feliz por ela.
Parada à margem do rio ao lado de Robert,
Joanna observava duas meninas brincando na água
rasa. Elas gargalhavam ao jogar água uma na outra.
— Gillian costumava brincar assim. — O sorriso
de Robert foi levado pela tristeza. — Nos dias
quentes, ela ficava no laguinho dos peixes somente
com a roupa de baixo. A mãe ralhava, mas eu
sempre fiquei do lado dela, pois eu também fazia o
mesmo quando criança.
— Eu sinto tanto. — Joanna disse, tocando-o no
braço. — Deve ter sido. Oh, eu lamento.
— Tento não pensar nisso. Nunca vou conseguir
tê-la de volta.
Joanna achou curioso que ele se referisse
somente à filha e não à esposa também, mas se
lembrou de que o casamento fora por conveniência.
Gillian era sua primogênita, sangue do seu sangue.
— Ainda tenho duas filhas em quem pensar. —
Robert tomou a mão de Joanna na sua. — Elas
precisam de uma mãe, milady. Eu ficaria muito
honrado se consentisse em se casar comigo.
— Sou eu quem fica honrada com seu pedido,
milorde. Ainda mais se considerarmos que nossas
posições sociais se distanciaram nos últimos anos.
— Isso não significa nada para mim. A senhora é
uma dama em tudo o que conta, muito mais do que
as jovens que meus pais andam me empurrando,
nenhuma delas com mais de catorze anos, nem o
mínimo juízo. Não tenho a intenção de deixar
minhas filhas aos cuidados de outra criança.
Com cuidado, Joanna perguntou:
— E quanto a lady Margaret? Robert soltou-lhe a
mão.
— O que há com ela?
— Ela é maravilhosa com as meninas, que
parecem muito apegadas à sua prima. Fico
imaginando. Se nós nos casássemos, Margaret
permaneceria em Ramswick?
— Não. Isso não seria. — Disfarçando, ele
desviou o olhar. — Não seria necessário.
Joanna suspeitava que ele estivera prestes a
dizer que "não seria certo".
—As meninas a teriam, e não precisariam mais
dela. Quando eu me casar, Margaret tomará os
votos.
— Vai se tornar freira? Não achei que ela fosse
tão religiosa.
— Será uma freira professora, assim poderá
cuidar de crianças. — Robert não a fitou.
— Catherine e Beatrix sentirão falta dela —
Joanna comentou.
— As crianças se adaptam com mais facilidade do
que nós. — Sorrindo de um modo que parecia
forçado, ele voltou a segurá-la pela mão. — Joanna,
eu gostaria muito que se casasse comigo. Serei o
melhor marido que puder. Eu nunca. — Fez uma
pausa, desconfortável. — Hugh me contou sobre seu
marido. Eu nunca a trataria dessa forma.
— Sei disso. Não seria capaz.
— Não precisa me responder hoje, sei que há
muito no que pensar. Não estará se ligando somente
a mim, mas às minhas filhas e a Ramswick também.
Aquela é uma fazenda, e eu cuido dela com minhas
próprias mãos. Visto roupas de trabalho como meus
aldeões, e acho que sempre tenho um pouco de
estrume nos pés.
Ela riu, aquilo parecia o paraíso depois de
Prewitt.
— Eu jamais tentaria modificá-lo, se é isso o que
o preocupa.
— Não achei que tentaria.
Talvez aquele fosse o motivo de ele tê-la
escolhido no meio a tantas moças apontadas pelos
pais. Não que ele menosprezasse a opinião deles, já
que não ficava com Margaret, mas pelo menos tinha
decidido escolher a noiva sozinho dessa vez.
Robert pegou a outra mão e a olhou de frente.
— Posso beijá-la?
Joanna assentiu, e ele se inclinou, pressionando
os lábios no canto dos dela, quase sem tocá-los. Ela
sentiu uma coceirinha morna, o resvalar do queixo e
nada mais. O coração não bateu mais rápido, a
respiração não acelerou. Ela não quis algo mais.
Graeham Fox nem precisava tocá-la para que ela
ansiasse por mais. Bastava que estivessem
próximos, e o ar entre eles ficava carregado como a
atmosfera antes de uma tempestade. As poucas
vezes em que tinham se tocado, ela sentira uma
descarga elétrica atingindo-a nos lugares mais
secretos. Quando ele a olhava, a pele se arrepiava,
e ela se sentia quente debaixo das roupas.
Robert de Ramswick, por mais belo e mais nobre
que fosse, não tinha o poder de fazê-la estremecer
em antecipação. Talvez aprendesse a amá-lo, pois
gostava dele. No mínimo, sentiria afeto. Como
poderia ser de outra forma, se ele era o homem
mais perfeito que já conhecera? Ele jamais a usaria
ou exploraria, exceto como mãe para as filhas, mas
mesmo assim, tinha sido franco quanto às suas
intenções. Não conseguia imaginá-lo levando outra
mulher para a casa deles. Nunca mais teria de
passar por tal humilhação.
— Vou trazer as crianças à cidade na véspera de
São João daqui a dez dias. Esse tempo basta para
que tome uma decisão?
— Sim, terá a sua resposta.
— Vai se juntar a nós para as festividades, não?
— Sim, eu adoraria.
— Que tal se nos encontrássemos às Nonas na
cruz diante da igreja de São Miguel?
— Eu e Hugh estaremos lá.

— Vou às compras — Joanna anunciou na manhã


seguinte, o que era pura mentira. Se ele pode
mentir com a cara deslavada, eu também posso,
feia ponderou. Porém, mentir sempre a deixara
desconfortável.
— E quanto à loja? — Graeham perguntou,
limpando a navalha num pano.
Ela não entendia como ele conseguia permanecer
diabolicamente belo mesmo com metade do rosto
coberto por espuma.
— Abrirei um pouco mais tarde do que de
costume. Nunca tenho muitos fregueses no início da
manhã mesmo. A bem da verdade — ela
acrescentou, remexendo nervosa a alça da sacola de
compras —, agora que dinheiro não é problema,
pensei em abrir o negócio um pouco mais tarde,
assim tenho mais tempo para meus afazeres
domésticos.
— Faz sentido. — Ele se inclinou para espiar o
reflexo no diminuto espelho, levantou o queixo e
passou a navalha pelo pescoço.
— Só para que saiba onde estou — disse ainda,
antes de retroceder. Fique quieta, pare de balbuciar.
Graeham a olhou pelo espelho, parando de se
barbear, e prendeu seu olhar por apenas um
segundo.
— Obrigado. Saindo pela porta da frente, Joanna
fez um desvio pela cozinha, na frente da qual estava
Thomas, com a tigela vazia no colo.
— Aceita mais, Thomas?
— Não, senhora. Foi mais do que suficiente. Só
estou descansando um instante antes de levantar e
fazer a minha ronda.
— Fique o tempo que precisar — ela disse,
entrando na cozinha.
Pessoas como Thomas não tinham muitos lugares
para sentar porque ninguém queria tocar em nada
que tivesse sido tocado por um leproso antes, por
isso, Joanna deixava o barril ao lado da entrada da
cozinha para que ele descansasse.
Lá dentro, ela embrulhou um pedaço de pão e de
queijo, colocando-os no fundo da sacola. Depois
serviu um pouco de mingau numa tigela de ferro
com tampa e também a guardou. Encheu um cantil
com água fresca do poço e juntou aos demais itens.
— Para quem é essa comida? — Thomas
perguntou, quando ela saiu da cozinha.
— Shh. — Joanna relanceou o olhar para o
depósito, imaginado se Graeham a estava
observando, mas era difícil enxergar alguma coisa
de lá de fora. — Para uma amiga — sussurrou. —
Não quero que o sargento saiba disso.
Thomas franziu o cenho, ou pelo menos ela
imaginou que ele estivesse fazendo isso. Era muito
difícil notar as mudanças de expressão do rosto
desfigurado. Com candura, ele disse:
— Não gosto de esconder segredos dos amigos.
Ainda mais quando é outro amigo que me pede isso.
Segredos não passam de mentiras que alguém não
tem coragem de dizer diretamente.
Joanna assentiu diante da reprimenda, mas feliz
por ser considerada uma amiga.
— Eu sei e lamento muito. Não o colocarei nessa
posição de novo.
O olho bom do homem se distanciou e, quando
ele voltou a falar, a voz estava repleta de emoção.
— Há sete anos quando os primeiros sinais da
minha doença surgiram, enrolaram-me numa
mortalha, leram os ritos fúnebres e me
pronunciaram morto para o mundo. Nunca mais eu
poderia entrar numa igreja, numa taverna. Em
qualquer lugar frequentado por pessoas saudáveis.
Não posso me banhar nos rios, nem passar por
vielas estreitas. Estou proibido pelo resto da minha
triste vida de segurar uma criança no colo, de amar
uma mulher.
Joanna ficou muda, Thomas nunca falara da sua
sina com ela, exceto para zombar.
— O pior é não poder tocar ou ser tocado. O
resto. a gente aprende a viver sem. É claro que
mesmo que alguém me tocasse, eu nem sentiria.
Nunca dei muito valor à proximidade com as
pessoas quando eu era saudável. Tomava como
coisa certa. Pode achar difícil de acreditar, mas
houve uma época em que eu não tinha dificuldades
em ter companhia feminina. Era a harpa. As
mulheres sentiam-se atraídas pela música. Em todos
os lugares em que eu tocava, as moças se digladia-
vam para me conceder seus favores. Eu me
apaixonei uma vez. O nome dela era Bertrada. Ela
queria que eu ficasse em Arundel e me casasse com
ela.
— O que houve?
— Eu era jovem e arrogante. Um tolo. Por mais
que a amasse, decidi que não estava pronto para
me assentar. Eu adorava viajar, tocar minha harpa
em castelos e seduzir belas mulheres. Portanto,
afastei-a por meio de mentiras e segredos, e fiquei
um homem livre de novo. Senti falta dela
imensamente, mas me convenci de que um dia
estaria pronto e encontraria um novo amor. Quatro
anos mais tarde, os primeiros sinais da doença
aparecerem e eu morri para o mundo. Nunca mais
eu poderia tocar numa mulher, a menos, é claro,
que ela fosse minha esposa. Não há um dia sequer
que eu não pense em Bertrada e deseje estar ao
lado dela. À noite só consigo dormir imaginando
estar nos braços dela. — Ele riu com desprezo. —
Quem sabe se eu tivesse ficado em Arundel jamais
teria adoecido.
— Sinto muito, Thomas.
— Não lhe contei isso para que sentisse pena de
mim.
— Sei porque me contou, mas. É que comigo a
situação é. diferente. Complicada.
— Tudo sempre é complicado. — Ele sorriu. — E
isso o que nos torna o que somos. — Apoiando o
cajado no chão, levantou-se. — Preciso ir. Se eu
ficar muito tempo sentado num só lugar, é provável
que alguém cave um buraco e me enterre, pensando
que estou morto.
Depois de se despedir de Thomas, Joanna seguiu
pelo beco e passou pelo portão de Le Fever. A
cozinheira atendeu à porta.
— Bom dia, eu gostaria de visitar a sra. Ada, por
favor.
— Ela não pode receber visitas, está muito
doente.
— Aethel, quem é? — Rolf Le Fever perguntou do
interior da casa.
— Uma visita para a sra, Ada, senhor.
Joanna ouviu os passos na escada e, em seguida,
Le Fever afastou a mulher.
— Você! Comerciantes devem se dirigir à porta
dos fundos. Mas não precisa se incomodar, já que
não precisamos dos seus produtos. — Ele bateu a
porta.
Levantando a voz para que ele a ouvisse mesmo
subindo os degraus, Joanna disse:
— Acho melhor, então, ir visitar o meu bom
amigo, John Huxley.
Os passos cessaram, e logo voltaram a ecoar,
parecendo mais próximos. A porta voltou a se abrir
e o mercador a encarou.
— Não sabia que era amiga do conselheiro
Huxley.
— Sim, de longa data — Joanna mentiu,
orgulhosa e envergonhada do seu novo talento. —
Conhecemo-nos quando eu estava a serviço de lady
Fayette de Montfichet. — Isso era verdade, mas
fazia tanto tempo que o homem nem devia se
lembrar dela.
— Sabe que quando a vi no mercado no seu
melhor vestido, pensei que talvez tivesse descoberto
um modo mais proveitoso de ganhar a vida. É John
Huxley quem a está mantendo ou algum outro?
— Não sou amante de ninguém.
Ele a encarou de um modo tão malicioso que
Joanna sentiu arrepios pela espinha.
— Ora, ora. Uma moça tão bonita quanto você
deve ter homens aos seus pés, implorando para
embainhar a espada na sua doce bainha.
— Quando isso acontece, normalmente encontro
um ponto adequado para encostar a minha adaga —
ela o lembrou.
— Deveria tê-la deixado me cortar naquele dia —
ele disse num tom suave carregado de ameaça. —
Teria valido a pena perder o nariz para vê-la ser
enforcada.
Joanna se empertigou, querendo que ele visse
como ela não se sentia ameaçada por aquelas
palavras.
— Gostaria de ver sua esposa agora, mas se ela
estiver se sentindo tão indisposta que não possa me
receber, irei à casa do conselheiro. Nós sempre
temos tantos assuntos para pôr em dia. — E sorriu.
O rosto pálido de Le Fever pareceu perder ainda
mais a cor. Virando-se, ele disse:
— Vá em frente, suba. Ela é má companhia,
acredito que vocês se entenderão bem.
Quando Joanna voltou para casa no fim da
manhã, encontrou o sr. Aldfrith no depósito,
trocando as talas de Graeham por outras mais
curtas. Hugh também estava lá, auxiliando-o.
Graeham vestia as ceroulas e nada mais, mesmo as
ligaduras das costelas tinham sido removidas.
Joanna, que não o via naquele estado de nudez
fazia mais de três semanas, ficou nervosa. Mesmo
estando inativo durante tanto tempo, ele continuava
forte, o corpo ainda era o de um soldado. E só de
estar na presença dele, daquele jeito, ela sentia
falta de ar. Desviou os olhos, pois não queria que o
sargento a visse babando sobre ele.
Graeham se levantou com o auxílio das muletas e
flexionou o joelho.
— Está dolorido — comentou.
— Seus músculos estão assim por falta de uso,
mas logo se recuperarão. Essa meia-tala dará maior
mobilidade. Dentro de um mês, quem sabe, não a
retiramos também?
— Assim poderá visitar seus parentes em
Oxfordshire — Hugh comentou.
Joanna e Graeham se entreolharam, não tinham
discutido o que revelar a Hugh. Foi Joanna quem
decidiu o que fazer.
— Ele não vai para Oxfordshire.
Diante do ar questionador de Hugh, Graeham
explicou:
— Nunca tive a intenção de ir para lá. — Voltando
a se sentar na cama, deu uma olhadela no cirurgião
que guardava os instrumentos. — Explicarei tudo
daqui a pouco.
— Ele está sarando com rapidez, senhora. Logo,
logo estará livre dele — Aldfrith disse.
— Ficou feliz que ele esteja melhorando. — Pelo
canto do olho, Joanna viu que Graeham a observava
com um olhar penetrante. Ele parecia mais
compenetrado desde a visita de Robert no dia
anterior, e ela se perguntava se ele conseguira ouvir
alguma coisa. Todavia, se esse fosse o caso, ele
certamente não deixaria passar a oportunidade de
confrontá-la por sua mentira.
Enquanto ele pagava o cirurgião, Joanna
comentou:
— Fui ver Ada Le Fever um dia desses.
— É amiga dela?
— Sim — ela disse.
Hugh a olhou confuso, Graeham sorriu. O
cirurgião meneou a cabeça e guardou as moedas.
— Pobre mulher, está indisposta desde a época
do Natal quando o sr. Rolf me chamou, dizendo que
ela estava com defluxo.
— Acredita que seja somente esse o problema?
— Graeham perguntou.
— Ela espirrava e tossia quando a vi. — Aldfrith
deu de ombros.
— Ela não está mais espirrando — Joanna
comentou.
— Um excesso de bile negra está complicando o
tratamento, mas o marido me assegura que é um
defluxo — Aldfrith se defendeu.
— O sr. Rolf lhe assegura? Mas o cirurgião não é
o senhor?
— Não posso questionar o parecer dele, afinal,
ele é o marido! — Para Graeham, disse, rude: —
Voltarei num mês para tirar essa tala. Mande me
chamar se tiver problemas.
Depois que ele partiu, Joanna comentou:
— Ele quer que o genro entre para a associação
dos comerciantes, é por isso que age assim. Aposto
como seria capaz de afirmar que Ada sofre de
excesso de. de macacos na cabeça se isso
garantisse o apoio de Le Fever!
— Macacos na cabeça? — comentou Graeham,
sorrindo.
— Alguém pode me explicar o que está
acontecendo? — Hugh pediu.
Joanna e Graeham contaram os últimos
acontecimentos, apesar de ela não mencionar sua
visita matinal à doente, tampouco a intenção de ir
até lá todos os dias. Apesar do que afirmara a
Graeham sobre Le Fever não ter motivos para ferir a
esposa, considerava o mercador um tratante.
Decidira levar comida e água a Ada pelo bem dela, e
não para servir aos propósitos do sargento, não se
prestaria ao papel de espiã depois do modo como
fora tratada.
Hugh não gostou nem um pouco do logro de
Graeham, porém, como não era de guardar mágoas,
acabou deixando de lado, já que Joanna parecia ter
superado o assunto.
— Fiquei preocupado quando vi a loja fechada
hoje cedo — ele comentou.
— Eu. fui fazer compras — respondeu ela,
assustada por sua teia de mentiras alcançar o
próprio irmão.
— Não encontrou nada de que precisasse? —
perguntou ele, apontando para a cesta vazia.
Graeham a encarava, o olhar perspicaz.
— Não. — Retrocedendo, ela disse: — Agora, se
em derem licença, preciso abrir a loja.

CAPÍTULO IV

— O que está fazendo?


Graeham levantou os olhos do livro e encontrou o
rosto poeirento de Adam pelas grades da janela que
dava para o beco. O garoto aparecia de vez em
quando para uns minutos de conversa e depois
desaparecia.
— Estou lendo — Graeham respondeu.
— Sabe ler? É padre, por acaso?
— Estudei para me tornar um, mas acabei
virando soldado.
— Eu queria saber ler.
— Você é jovem, ainda há tempo.
— Quem é que haveria de me ensinar? — Adam
deu uma risada sardônica.
Aquela era uma excelente pergunta.
— Como costuma passar o tempo? — Graeham
perguntou.
— Perambulando por aí. Faço uns bicos às vezes:
remendo roupas, cuido de jardins.
— Sabe costurar? — Graeham ficou surpreso.
Manchas rosadas coloriram as faces sujas do
menino.
— Garotos também podem costurar, sabia?
— É possível — Graeham ponderou, mas sabia
que havia pouquíssimos.
— Aquela mulher — Adam apontou para a frente
da loja, onde Joanna atendia a um freguês. — Ela é
sua esposa ou namorada?
— Não.
— Não tem namorada?
Graeham meneou a cabeça, nunca tinha
encontrado Phillipa, não poderia considerá-la sua
namorada. Adam o fitou com os olhos apertados.
— Gosta de garotos?
— O quê?
— Existem homens que gostam de garotos —
Adam confidenciou num tom de quem conta algo
surpreendente.
— Sei disso, mas asseguro que não sou desse
tipo.
— Foi o que pensei — o menino disse sem
nenhum vestígio de humor. — Não há muitos
mesmo. A maioria dos homens maus vai atrás das
meninas. Se ela não é sua esposa, nem sua
namorada, porque você mora aqui?
Mais uma excelente pergunta, visto sua falta de
progressos. Outra semana tinha se passado e, por
mais que tocasse no assunto, Joanna se recusava a
ajudá-lo. O comportamento dela desde o sábado em
que o acusara de tê-la usado tinha melhorado, mas
ele sentia falta de como se relacionavam antes.
Na maioria dos dias, nem a via até o meio da
manhã quando ela retornava das suas "compras"
diárias, apesar de voltar de mãos vazias com
bastante frequência. Então era hora de abrir a loja e
só se viam às refeições, pautadas com pouca
conversa.
Não devia ansiar pela companhia dela, não devia
se esforçar para espiá-la, nem ficar atento aos
ruídos da cama sobre a sua tarde da noite. Ela
estava comprometida agora, ou logo estaria, e ele
também. Aquilo era loucura.
— Como disse? — Graeham perguntou ao notar
que Adam lhe fizera uma pergunta.
— Acha que a mulher da loja tem trabalho para
mim?
— O nome dela é Joanna Chapman, e eu duvido.
— Joanna fazia tudo sozinha.
— E você? — Adam perguntou. — Estou sem
dinheiro.
— Isso depende. O que sabe fazer além de
remendar roupas e cuidar de jardins?
— Posso entregar mensagens, pegar água do rio,
cuidar de galinhas, acender o fogo, cuidar de
panelas, fazer compras.
— Não preciso disso, a sra. Joanna faz as
compras todas as manhãs, ou pelo menos acho que
sim. — Uma ideia se formou na sua cabeça. — Seria
capaz de seguir alguém sem ser visto?
— Acho que sim. Mas vai lhe custar.
Sorrindo, Graeham pegou a bolsa de moedas,
movendo-se com muito mais facilidade desde que
trocara as talas. Pegou quatro centavos e os
estendeu.
— Oba! — Os olhos do garoto se arregalaram. —
Quem quer que eu siga?
— Quero que siga a sra. Joanna amanhã de
manhã. — Graeham se sentou na ponta da cama. —
Ela sai pela porta dos fundos bem cedo e segue pela
rua Milk. Volta no meio da manhã. Quero que a siga
sem que ela note e depois venha me contar para
onde ela foi. Acha que consegue fazer isso? —
Quanto mais pensava nas escapadelas matinais de
Joanna, mais curioso ficava.
— Sem problemas. — Adam guardou as moedas.
Olhando para a pilha de livros ao lado da cama,
perguntou: — Onde aprendeu a ler?
— Em Holy Trinity.
— Eu durmo lá às vezes, no estábulo — o menino
disse sem pensar.
— Quando nos encontramos pela primeira vez,
disse que seus pais eram talhoiros e que vocês
moravam em Shambles. Na semana passada,
mencionou ter de correr para a rua Fleet antes que
os portões se fechassem, dizendo que vivia lá.
Porque dorme no estábulo da Holy Trinity se tem
uma casa, Adam?
O garoto se afastou da janela.
— Não fuja, Adam. — Graeham se levantou
depressa. — Gosta de doces? Eu o tinha guardado
para depois do jantar, mas já estou satisfeito. Pode
ficar com ele se quiser.
Adam olhava para o doce com desejo, porém
disse:
— Minha mãe me disse para nunca aceitar doces
de homens.
— Não sou um desses homens, lembra?
Rápido como um esquilo, Adam passou a mão
pela grade e apanhou o doce.
— Sua mãe me parece uma mulher muito sábia.
— Graeham disse, apoiando-se nas muletas.
— Ela era. —Adam mordiscou o doce.
— Seu pai. Ele também já morreu? — Graeham
perguntou.
Adam o encarou e depois assentiu, ainda
mastigando.
— Porque não queria que eu soubesse? — Ele
voltou a se sentar.
— Ninguém sabe, não é seguro.
Graeham assentiu como se entendesse, mas a
verdade era que estava atônito.
— Porque não começa do começo, Adam. De
onde você veio?
O garoto o encarou com os olhos cheios de
suspeita.
— Só quero ajudá-lo, precisa confiar em alguém,
Adam.
— Meu pai era servo da Laystoke Manor, ao norte
daqui. Tinha seu pedacinho de terra na vila.
Plantávamos muitas coisas, eu ajudava. Eu cuidava
dos meus irmãos também.
— O que fê-lo vir para cá?
— Éramos muitos — o menino deu uma nova
dentada —, e a terra não era o bastante para nos
sustentar. Eu era o mais velho, por isso fui escolhido
para vir para cá e ser aprendiz da sra. Hertha, uma
tecelã.
— Era aprendiz de tecelão? — Graeham estava
surpreso, aquilo era trabalho de mulher.
— Eu gostava, e a sra. Hertha era boa comigo. O
marido nem tanto.
— Ele batia em você?
— Não, ele. olhava para mim. De um jeito
estranho. Um dia, me pegou tomando banho e
tentou me ajudar. Eu joguei sabão nos olhos dele e
disse que meu pai era grande como um urso e viria
para Londres se soubesse que algo me incomodava.
Por isso, ele me deixou de lado, por um tempo.
— O que houve, então?
Adam terminou de comer o doce com uma
expressão triste no rosto.
— A febre amarela chegou a Laystoke e matou a
minha família. Meu pai, minha mãe, meus seis
irmãos e irmãs. Todos, exceto tio Oswin, porque ele
é ruim demais para morrer.
— Sinto muito. — Graeham não sabia mais o que
dizer. — E com você, o que aconteceu depois?
— O marido da sra. Hertha logo descobriu e
imaginou que poderia fazer o que bem quisesse já
que meu pai não poderia me defender. Mas eu não
fiquei por perto. Fugi antes que ele tentasse
qualquer coisa.
— E agora mora nas ruas. E dorme onde? Nos
estábulos, nos becos?
— Não é tão ruim agora que já está mais quente.
Sou pequeno, as pessoas nem me percebem.
— Porque não dorme nos abrigos? — Graeham
perguntou.
— Estão cheios de pessoas ruins, não gosto de
ficar lá. Há muitos homens maus em Londres. É
preciso ficar atento para sobreviver, Adam dissera
um dia.
— Foi esperta em se vestir como menino.
Adam, ou qualquer que fosse seu nome
verdadeiro, parou de lamber os dedos de pronto.
— Como descobriu?
— Não foi só uma coisa, e, na verdade, até que é
um menino bem convincente. Qual é seu verdadeiro
nome?
— Alice.
— Lindo nome.
Alice sorriu de modo encantador. Encantador
demais, revelando-se uma menina por baixo do
disfarce. Logo um dos "homens maus" também a
descobriria, e Graeham não queria pensar no que
poderia acontecer.
— Não pode continuar a viver nas ruas desse
jeito. Um movimento chamou a atenção de
Graeham,
Joanna se aproximava com a cerveja que sempre
lhe servia nesse horário. Ficou imaginando se ela se
importaria em acolher mais um desabrigado. Alice
poderia dormir na saleta. Qualquer coisa era melhor
do que as ruas.
— Ela não pode me ver, senão poderá me
reconhecer amanhã.
— Não se preocupe com isso. — Graeham estava
mais preocupado em afastar a menina das ruas do
que em descobrir o segredo das andanças matinais
de Joanna. — Quero lhe apresentar alguém,
senhora.
— Quem? — Joanna perguntou, olhando ao
redor. Quando Graeham se virou para a janela, Alice
tinha sumido.

Abraçada a um galho da frondosa árvore acima


da janela da cozinha de Joanna, Alice viu quando a
dona da loja saiu pela porta dos fundos com a sacola
de compras na mão. Estivera à espreita desde a
aurora, temerosa de perdê-la de vista. Só depois
que seu alvo virou a esquina, achou prudente
descer.
Entrou no beco bem a tempo de ver Joanna virar
à esquerda na rua Milk. A mulher deu uma olhadela
na sua direção e seguiu em frente. Alice esperava
não ter sido notada. Chegando ao fim do beco,
espiou e viu a mulher bater à porta da casa azul e
vermelha e entrar em seguida. Como havia uma
igreja bem em frente, ela achou que aquele seria
um bom posto de vigília. A espera era a pior parte
dessa tarefa. Conseguia seguir pessoas sem
problemas, mas ficar esperando sem nada para
fazer era excruciante.
Algum tempo depois, a porta voltou a se abrir e
Joanna apareceu. Olhou para os lados e voltou pelo
caminho de antes. Quando ela estava fora de vista,
Alice se pôs a segui-la. Mal virou a esquina e Joanna
a encarou, com as mãos no quadril.
— Porque está me seguindo?
Alice deu meia-volta, mas antes de conseguir
fugir, sentiu as mãos da mulher nos seus ombros.
— Não tão rápido.
— Solte-me, não fiz nada! — Não fora cuidadosa.
O sargento ficaria desapontado, talvez até quisesse
o dinheiro de volta. Chutou com força para se soltar.
Joanna gritou e afrouxou o aperto. Alice se virou,
mas as mãos voltaram a segurá-la e o movimento
fez seu chapéu cair, revelando duas trancas
compridas. Surpresa, Joanna quase a deixou
escapar, mas se recobrou a tempo e impediu a fuga
da menina.
— Espere, precisamos ter uma conversinha —
disse e levou-a arrastada pelo beco. — O sargento
Fox me contou que havia uma garotinha chamada
Alice andando por aí vestida como moleque.
Presumo que seja você. — Joanna conduziu-a para
casa, até o depósito, onde o sargento aguardava
com expressão triste.
— Bom dia, Alice.
— Desculpe, sargento, ela me viu — Alice disse
quando foi solta. — Posso lhe devolver três moedas,
mas usei uma para comer.
Joana o encarou, e Graeham cerrou os olhos.
Percebendo o que tinha acabado de fazer, Alice
sentiu o estômago revirar e escondeu as trancas sob
o chapéu que Joanna já lhe devolvera.
— Suas moedas, sargento? — perguntou Joanna
num tom acusatório. — Presumo que a tenha
pagado para me seguir.
Ele só suspirou em resposta.
— Foi o que imaginei.
— Eu precisava saber onde vai todas as manhãs.
E não me venha com a história sobre fazer compras,
pois nunca traz nada para casa.
— Ela foi para a casa azul e vermelha! — Alice
informou, achando que assim pudesse manter o
dinheiro.
— Foi o que pensei. — O sargento sorriu.
Joanna encarou Alice por um instante antes de se
voltar para Graeham.
— Está testando minha paciência, sargento. —
Ela não parecia zangada, mas como poderia não
estar?
Alice engoliu em seco. Os dois estavam bravos
um com o outro e com ela. Pensando melhor, pegou
as moedas e estendeu a mão.
— Tome, fui pega, então.
— Pode ficar com elas, não as quero de volta.
Aquilo fez com que ela se sentisse ainda pior.
— Poderia ter simplesmente me perguntado onde
eu ia — Joanna disse.
— Teria me contado a verdade? — Graeham
inquiriu. Sem que fosse notada, Alice afastou a
cortina.
— Esse não é o ponto. Vou continuar a visitar
Ada, mas não por sua causa. Não espere que eu
seja sua espiã.
— Eu entendo — Graeham disse com presunção.
— Mas também sei que a senhora é uma pessoa
honrada que não deixaria de fazer o que fosse
necessário caso soubesse de algo que coloque a sra.
Ada em perigo. Falaria comigo antes que fosse
tarde.
Alice passou pela cortina e correu até a porta dos
fundos.
— Alice! — Graeham chamou. A menina ouviu a
mulher dizer que a seguiria, mas ela sabia que tinha
uma boa dianteira e não seria pega.
— Alice, volte aqui! — O sargento gritava pela
janela.
Alice sabia, entretanto, que jamais voltaria a vê-
los. Já tinha causado muitos problemas. Não poderia
voltar.

— Obrigada por me receber, senhor prior. —


Joanna, que tinha ido ao monastério Holy Trinity
naquela mesma tarde, estava diante do frei Simon
de Cricklade.
— Não há de quê. — Ele deu a volta na
escrivaninha e apontou para uma cadeira no canto
da sala, sentando-se na da frente. — Quando soube
que tinha sido enviada por Graeham Fox, não pude
deixar de atendê-la. Há onze anos não vejo aquele
rapaz, embora imagine que ele não seja mais o
rapaz de antes.
O prior era idoso e tinha um olhar astuto e
generoso, que logo colocou Joanna à vontade.
— Lamento que ele não possa ter vindo. Uma
perna quebrada, a senhora me disse?
— Exato, foi obra de uns ladrões. Mas ele disse
que pretende vir visitá-lo antes de regressar a
Beauvais no próximo mês.
— Eu adoraria isso.
— O motivo que me traz aqui, porém, é para
pedir que me ajude a encontrar uma criança. É uma
menina, que se veste de menino por segurança. Ela
é órfã e não tem onde ficar, seu nome é Alice, mas
já se apresentou como Adam.
Frei Simon ficou pensativo.
— Não vejo como ajudá-la. O nosso monastério é
bem isolado da comunidade. Seria melhor notificar a
patrulha.
— Foi o que fiz, mas há tantos garotos nas
mesmas condições nas ruas. Vim até o senhor
porque ela vem dormir nos seus estábulos, às vezes.
Os olhos do ancião se iluminaram.
— Ah, os freis já me disseram que vez por outra
alguns vêm dormir aqui, pedi para que não os
incomodassem.
— Se eles encontrarem uma criança de cerca
nove ou dez anos, peço que mande me chamar ou
ao sargento Fox. Moro na rua Woods, na primeira
casa depois do beco, próximo à esquina da
Newgate.
— E quanto ao sargento Fox, onde posso
encontrá-lo?
— Comigo. — Joanna sentiu uma onda de
embaraço. — Isto é, ele está alugando meu depósito
até se recuperar.
Frei Simon assentiu, quase sorrindo, Joanna
sabia que ele suspeitava que o relacionamento entre
eles fosse além disso.
— Tenho dificuldades para imaginar Graeham
como um soldado. Passei catorze anos tentando
prepará-lo para uma vida no clero. Ele era um aluno
brilhante, um dos mais inteligentes que tivemos
aqui. Estava sempre procurando um livro novo na
biblioteca.
— Ele ainda lê bastante.
— É um dos passatempos prediletos daqueles
que buscam a solidão, ou que se resignaram a ela.
Graeham nunca foi de depender dos outros, quer
seja para companhia ou qualquer outro motivo, um
fato fora do comum num lugar como este, no qual
as crianças costumam andar em bandos. Se ele
precisava de algo, geralmente se arranjava sozinho.
Se estava entediado, encontrava um modo de se
entreter. — Um brilho lhe iluminou os olhos. — Há
uma porta na muralha da cidade dentro da nossa
propriedade, sabia disso?
— Não. — Joanna só sabia dos sete portões
vigiados da cidade.
— Fica perto de um dos dormitórios. O judiciário
nos permite mantê-lo porque nos dá acesso a um
campo que mantemos do lado de fora dos muros,
desde que nos comprometamos a fechá-lo à noite.
Graeham descobriu um modo de destrancá-la e, nas
noites quentes de verão, escapulia depois que todos
estavam dormindo, andava até Smithfield e nadava
na lagoa. Era o tipo de coisa que um grupo de
rapazes faria como travessura, mas Graeham ia
sozinho, e com certa regularidade.
— Ele me contou essa aventura, porém não creio
que ele imagine que o senhor soubesse.
— Poucas coisas que aconteceram em Holy
Trinity no último meio século me passaram
despercebidas.
— Disse ter preparado Graeham para uma
carreira clerical. Ficou desapontado por ele ter
seguido outro destino?
— Sempre desejei que ele tivesse feito votos,
houve uma época em que essa era a intenção dele.
— Frei Simon deu de ombros e pousou a taça. — Eu
devia ter desconfiado que ele encontraria outro
caminho, pois nunca se sentiu parte de Holy Trinity.
Os outros meninos o respeitavam, mas nunca o
aceitaram completamente como um deles. Credito
isso ao fato de ele ter sempre vivido aqui e não ter
outro lar. Os meninos não compreendiam muito bem
a situação dele, achavam que gozava de privilégios,
o que não era verdade, é claro, mas os rumores
correram do mesmo modo.
— Ele me contou que veio para cá ainda bebê.
Isso não é costumeiro, é?
— Não, mas dadas as circunstâncias. O pai vivia
um dilema. Fez uma contribuição generosa em troca
da educação do menino, porém não foi por isso que
concordei. Bebês nascidos sob tais circunstâncias
muitas vezes simplesmente. — o olhar do frei se
tornou sério — desaparecem.
— Quais circunstâncias? Ele.
— A senhora não sabe? Eu pensei que. — O frei
meneou a cabeça. — Me desculpe. Quanto mais
velho fico, menos discreto me torno. Vivo dizendo
aos meninos que grande parte da sabedoria é a
discrição, mas essa parece ser uma lição que preciso
reaprender.
— Eu gostaria muito de saber, frei. — Joanna
prendeu o olhar do ancião.
— Então a senhora terá de perguntar a Graeham
— ele respondeu.
No caminho de volta para casa, Joanna ficou se
perguntando se teria coragem de perguntar, e, caso
o fizesse, se Graeham responderia.
O relacionamento deles andava desgastado
desde a discussão do sábado anterior, vinha
melhorando aos poucos, embora ela tentasse
cultivar a raiva do princípio. Como o irmão, porém,
ela não era de guardar mágoa.
Não conseguia nem ficar aborrecida por ele ter
mandado Alice segui-la. O que poderia esperar
depois de mentir sobre suas escapadas matinais?
Não poderia odiá-lo já que ela mesma estava sendo
desonesta, mentindo sobre Prewitt.
Desejava poder odiá-lo, entretanto. Seria muito
melhor detestar Graeham Fox do que pensar nele.
da maneira que vinha fazendo. Ele era uma
distração com a qual não podia lidar, ainda mais
quando tinha de pensar sobre a proposta de Robert.
A véspera de São João seria dali a cinco dias
apenas.
A chuva começou a cair quando ela virou a
esquina da rua Woods, assim que entrou em casa
tirou os sapatos encharcados e pendurou o manto
no corredor. Achou que o sargento estaria no
depósito, mas ao atravessar a saleta iluminada viu
que ele estava na loja, próximo ao cavalete de
bordados.
Ele parecia estar avaliando algo nas mãos, mas
Joanna não conseguiu decifrar o que era daquela
distância. A palha estalou sob seus pés descalços, e
mesmo assim ele não pareceu notar sua presença.
Somente quando entrou na loja, ele se virou.
Joanna olhou para a mão dele, Graeham tinha
seu dedal de couro do dedo mindinho. Encabulado,
ele o retirou e o devolveu à caixa de costura.
— Conseguiu falar com frei Simon?
— Sim, ele disse que nos ajudaria avisando assim
que Alice aparecer.
Graeham assentiu de modo distraído e pegou a
caneca de vinho que tinha depositado na mesa de
trabalho dela. Levou-a aos lábios e sorveu o líquido,
os gestos lentos, o olhar fora de foco.
— Quanto já bebeu? — ela perguntou.
— Não o bastante. — Graeham passou por ela a
caminho da saleta, onde voltou a encher a caneca.
Joanna não o vira bêbado desde a primeira noite
quando ele se autoinduzira ao torpor para aliviar a
dor. Curiosa, seguiu-o e perguntou:
— O que o atormenta, sargento?
Graeham tomou tudo de um gole só e seguiu
para o depósito.
— Aparte o fato de que há uma garotinha sozinha
nas ruas de Londres e de que não há nada que eu
possa fazer?
— Falei com a patrulha, fui a Holy.
— Está chovendo, Deus do céu! — Ele sentou-se
na cama e tentou apoiar a muleta na parede, mas
ela caiu no chão.
Praguejando baixinho, ele se inclinou para pegá-
la, mas Joanna já se baixara para fazer o mesmo.
Acabaram se tocando, o braço de Graeham resvalou
no seio dela, o cabelo acariciou o rosto de Joanna.
Sem equilíbrio devido ao excesso de álcool, ele
fechou os olhos e se segurou no ombro dela.
— Estou tonto.
— Não estou surpresa. — Joanna tentou controlar
a voz a despeito do coração acelerado. O toque, a
proximidade, o cheiro dele a tiravam do prumo.
Tola. Pegou a muleta e a apoiou na parede. —
Deveria se deitar.
Resmungando, deixou que ela o ajudasse. Os
olhos azuis a encararam com tal intensidade que
Joanna ficou sem fôlego.
— Descanse um pouco — ela disse bruscamente
ao se endireitar. — Vou guardar isto. — Ela pegou o
jarro e se virou, mas foi detida pela mão forte na
faixa bordada que tinha à cintura. As chaves
penduradas na corrente tilintaram.
— Não vá — ele pediu.
Ela o fitou com o peito arfante, o coração em
descompasso.
— Sente-se comigo — ele disse suavemente, a
voz um pouco distorcida pela bebida. — Deixe isso
de lado e sente-se aqui. Não vou mais beber, só
quero. — Ele fechou os olhos, o punho cerrado ao
redor da faixa, os nós dos dedos resvalando o seu
quadril. — Por favor. — Ele deu um puxão no tecido.
Joanna pousou a jarra no baú e se sentou na
beira da cama. Ele não a soltou, como se
acreditasse que ela fugiria se estivesse livre. Sentia-
se nervosa por estar tão perto dele, na cama.
Do lado de fora, a chuva se intensificou,
castigando a persiana. Graeham olhou para a janela,
as sobrancelhas unidas. Ela sabia no que ele
pensava.
— Ela vai encontrar um abrigo para passar a
noite — Joanna tentou reconfortá-lo. — Alice
conhece as ruas. Quem sabe ela não decida que
esta é uma boa noite para dormir no estábulo de
Holy Trinity? Nesse caso, teremos notícias em breve.
— Isso se os freis conseguirem apanhá-la.
Maldita perna! Se eu não estivesse entrevado desta
maneira, eu mesmo sairia pelas ruas à sua procura.
Diabos, eu teria impedido que ela fugisse, isso sim!
Detesto depender dos outros.
— Frei Simon disse isso a seu respeito. Que o
senhor nunca foi de depender de outros. Disse que
se precisava de alguma coisa, ia lá e resolvia o
problema, se estava entediado, encontrava um
modo de se distrair. — Ela sorriu. — Ele sabia sobre
as escapadas à noite para nadar no lago.
— Não! — Graeham riu. — Eu devia ter
desconfiado.
— Estou feliz em ver que seu humor está
melhorando. Graeham sorriu para ela daquele jeito
preguiçoso que só ele sabia fazer.
— A senhora é a responsável por isso. Só de
estar ao seu lado, fico. — A expressão dele tornou-
se sóbria. Ainda segurando-a pela faixa, apoiou o
braço livre sobre os olhos e suspirou. — Estou
bêbado.
— Quem sabe não seria bom dormir um pouco?
— Não. Quero saber o que mais ele lhe contou
sobre mim.
— Disse que era um rapaz muito inteligente e
que, numa época, desejava se tornar frei, mas
depois escolheu um caminho diverso. Falou também
que o senhor costumava ficar só.
— Frei Simon lhe disse por quê? Joanna hesitou
um instante.
— Ele disse que os outros meninos não o
compreendiam muito bem pelo fato de ter crescido
no monastério desde bebê.
— Ele lhe contou o porquê disso? — Ele a
prendeu com o olhar.
— Não exatamente. Ele. deu a entender que o
senhor era. — Como poderia dizer aquilo de maneira
gentil?
— Um bastardo. O bastardo de um homem rico,
obviamente.
— Frei Simon disse que ele fez uma generosa
contribuição ao priorado para compensar pela sua
criação.
— Doze marcos por ano, além do custo adicional
de uma ama-seca nos dois primeiros.
— Doze marcos! — O pai de Graeham devia ser
muito rico. — Quem. Não, isso não e da minha
conta.
— Quem é meu pai? Não faço a menor ideia.
— Frei Simon nunca lhe revelou isso?
— Não, ele jurou manter segredo. Houve uma
época, antes de eu parar de me importar com isso,
que eu implorava para que ele me contasse. Só
disse que fui concebido por um homem importante e
por uma dama de boa família com a qual não era
casado. Imagino que eu teria sido uma vergonha
para todos os envolvidos. Devo me sentir grato por
ter sido encaminhado para Holy Trinity. Teria sido
muito mais fácil e barato me abandonar na floresta.
Joanna esfregou os braços, estremecendo ante a
ideia horrenda.
Os dedos de Graeham subiram pela faixa,
afagando-a no quadril por sobre a saia.
— Está tremendo.
— Fico triste ao pensar em bebês não desejados.
— Jurei que nunca. — Os olhos de Graeham se
endureceram. — Jurei a mim mesmo que nunca
teria um filho bastardo. Todas as crianças merecem
pais que as queiram e um lar.
Joanna ficou pensando em como os homens
poderiam evitar ter filhos. A resposta veio num
pedaço de conversa ouvida atrás da porta: Eu pedi
que ela fizesse à maneira franca. Havia outras
formas de um homem se satisfazer sem arriscar
uma gravidez, ela ponderou ao se lembrar das
coisas que Prewitt a obrigava a fazer. Sem dúvida, o
belo sargento de olhos azuis estava mais do que
familiarizado com as variações mais pecaminosas do
ato de amor. Num impulso travesso, ela comentou:
— Se tivesse escolhido o clero, como era desejo
de frei Simon, esse não seria um problema.
— Essa solução não me agradava. Após catorze
anos, soube que jamais poderia passar o resto da
minha vida num monastério. Pensei em fazer parte
da Ordem dos Frades Menores, os clérigos vivem
sob certas restrições, mas pelo menos têm maior
contato com o mundo.
— E essas restrições costumam ser ignoradas —
Joanna comentou lembrando-se das muitas histórias
a respeito de diáconos que mantinham amantes. —
O que houve quando completou catorze anos?
Graeham diminuiu a pressão sobre a faixa,
passando o polegar sobre o bordado, o movimento
gentil da mão como uma suave carícia em Joanna.
— Meu pai pediu a frei Simon que me mandasse
para Beauvais a fim de que eu trabalhasse para seu
velho amigo lorde Gui como escrevente. Fiquei
enfurecido. Eu esperava passar pela cerimônia da
tonsura no verão seguinte e ir para Oxford estudar
teologia e dialética, mas meu pai insistiu para que
eu passasse dois anos trabalhando antes disso. Sem
o dinheiro dele, eu não teria como pagar os
professores, não tive escolha a não ser obedecer.
Cheguei a Beauvais cheio de ressentimento e
determinado a ser o pior funcionário de lorde Gui
para que ele quisesse se livrar de mim o mais rápido
possível.
— Todavia permaneceu por. Quantos anos?
— Onze. — Graeham sorriu, os dedos subindo e
descendo pela faixa, resvalando no quadril de
Joanna e provocando arrepios por onde passavam.
— Lorde Gui se afeiçoou a mim, e eu a ele. Não
consegui trabalhar porcamente, por isso me
esforcei. Escrevia a correspondência e entregava
mensagens, porém sempre que ele me concedia um
tempo livre, eu corria para o campo de treinos e
observava os soldados se exercitando. Posso
imaginar como eu devia parecer para eles: um
rapazola inexperiente num hábito escuro de olhos
arregalados diante de homens empunhando
espadas, machados e lutando sobre cavalos. Numa
tarde lorde Gui me levou até seu comandante e
pediu que ele me instruísse com as armas menores
e que me ensinasse a me defender usando mãos e
pés. Fiquei extasiado e meu entusiasmo me
transformou num excelente aprendiz. num ano eu
brandia espadas e arremessava lanças montado em
cavalos. Lorde Gui encontrou um substituto para as
minhas funções.
— O que aconteceu quando o prazo de dois anos
passou?
— Lorde Gui me ofereceu uma posição no seu
corpo de soldados, e eu aceitei.
— Chegou a perguntar a ele sobre seu pai?
— Uma vez. — Graeham ficou sério. — Ele disse
que meu pai fê-lo jurar segredo. Disse também que
não gostava de manter esse segredo, mas que não
tinha alternativa. Eu disse a mim mesmo que já não
importava mais, por isso não voltei a tocar no
assunto. Se ele não me quis. — Graeham virou o
rosto para a parede, o queixo tenso.
Joanna o tocou na mão.
— Lamento muito.
Graeham soltou a faixa e segurou-a, levantando
a mão ao rosto.
Joanna respirou fundo ao sentir os nós dos seus
dedos na boca máscula. Por um ápice acreditou que
ele a beijaria na mão, mas ele não fez isso.
Fechando os olhos, ele murmurou:
— Adoro o seu cheiro. — Ele abriu a mão dela e a
espalmou ao encontro da sua face.
Ela prendeu o fôlego ante a sensação erótica do
início da barba por fazer arranhando-lhe a palma.
Pressionando a mão contra o rosto, Graeham
disse:
— Deus, como eu gostaria.
— Sim? — ela sussurrou, o coração apertado no
peito. Ele levantou as pálpebras e a encarou, o calor
nos seus olhos dando espaço à resignação.
— Eu gostaria de não ter ficado tão bêbado —
disse, soltando-lhe a mão.
Joanna se levantou, tentando se recompor.
— Descanse, sargento. Garanto que se sentirá
melhor pela manhã. Durma bem.
— Senhora? — Graeham se levantou sobre um
cotovelo.
— Pois não?
Ele pareceu ter dificuldade para encontrar as
palavras certas. Por fim, suspirando, voltou a se
deitar e disse:
— Boa noite.
— Boa noite, sargento.

A rua Newgate estava tão abarrotada de


pedestres para as festividades de São João que
Joanna e Hugh levaram o dobro do tempo para
chegar à igreja de São Miguel.
Fazendo sombra com a mão para ver sob o sol
forte, Joanna esquadrinhava a multidão à procura de
Robert e das filhas. A mistura de gente era maior
até do que no mercado de sexta-feira e a maioria se
vestia com a elegância dos dias santos. Sem querer
repetir a roupa, Joanna escolhera o vestido menos
puído, o azul-marinho, e o adornara com um cinto
elegante e uma bela bolsa. Cobrira os cabelos com
um véu fino e o tinha prendido com uma fita
bordada.
— Lá estão eles. — Hugh apontou para um grupo
de pessoas em volta de dois malabaristas. No meio
delas estavam Robert, as meninas. e Margaret.
Robert e Margaret se entreolhavam, rindo,
Catherine chupava seus dois dedos prediletos e
Beatrix se remexia nos braços do pai.
Hugh colocou as mãos ao redor da boca em
forma de concha e gritou:
— Robert!
O loiro se virou e sorriu ao vê-los. Margaret
também se virou, o sorriso falseando ao ver Joanna.
Ela sabe que Robert me pediu em casamento.
Margaret a olhou e deu um sorriso contido, e
Joanna teve de admirá-la por isso. A mulher
enfrentaria a situação de cabeça erguida e
sobreviveria com graciosidade.
Joanna se perguntou se agiria da mesma maneira
se a situação fosse reversa, se o homem que amava
estivesse se preparando para se casar com outra
mulher. Imediatamente imaginou Graeham Fox
ajoelhado diante do altar ao lado de uma mulher de
rosto desconhecido e sentiu um aperto nas
entranhas, uma dor profunda na alma.
E ela nem mesmo o amava. Estava apenas.
encantada. Fascinada. Obcecada.
Mas não apaixonada.
— Papai, veja! —A pequena Catherine apontou
para um acrobata se equilibrando sobre uma vara
segura por dois outros colegas, vestidos em roupas
multicoloridas. A menina pulava e se remexia,
buscando uma melhor visão.
— Venha cá. — Robert a ergueu sobre os ombros
e a segurou pelas pernas. — Melhor assim?
— Sim! — Ela bateu palmas, gritando feliz. —
Veja, Beatrix!
A irmãzinha estava no meio da soneca da tarde
no colo de Margaret, braços e pernas soltos, a boca
rosada entreaberta, sem se importar com o caos
que a circundava.
As horas passavam rapidamente. O dia era
dedicado às festividades, os cidadãos mais
influentes tinham organizado mesas repletas de
doces e bebidas grátis. À noite, sendo o toque de
recolher suspenso, aconteceria a tão aguardada
Vigília do Meio do Verão, um desfile anual dos
cidadãos mais proeminentes de Londres.
Joanna, ao lado de Hugh, encobriu os olhos para
ver quais seriam as atrações seguintes, mas teve a
atenção momentaneamente capturada por um
lampejo vermelho no meio da multidão.
Imediatamente pensou em Alice e no seu chapéu
esfarrapado. Cinco dias tinham se passado desde a
manhã do seu desaparecimento e não houvera sinal
dela desde então. Era como se ela tivesse
evaporado no ar. Joanna suspeitava que a menina
não seria encontrada a menos que quisesse e rezava
todas as noites por sua segurança. Graeham ainda
se lamentava e se culpava por tê-la assustado.
— O que foi? — Hugh perguntou.
— Nada. — Joanna meneou a cabeça.
Pouco mais tarde, quando um ilusionista fazia
truques, ela viu o lampejo vermelho de novo uns
vinte metros mais adiante. Ele apareceu e
desapareceu num piscar de olhos. Joanna ficou
estática, os olhos presos no lugar onde tinha visto o
chapéu. Hugh sorriu com indulgência.
— Nada de novo?
Robert, segurando Catherine pela mão, se
aproximou e perguntou:
— Algo errado, milady?
Joanna balançou a cabeça, mas em seguida
voltou a enxergar o chapéu vermelho. No instante
seguinte, a cabeça da criança se virou brevemente,
porém por tempo suficiente para que ela pudesse
distinguir as feições.
— Alice — Joanna sussurrou. Hugh e Robert
trocaram um olhar.
— É Alice, Hugh. A menina de quem lhe falei a
semana passada. Ali, veja, aquele chapéu vermelho.
— Joanna suspendeu a saia e começou a se mover
na direção apontada. Se a chamasse, a menina
fugiria. — Não consigo mais vê-la.
— Deixe comigo. — Hugh se afastou.
— Quem é ela? — Robert perguntou.
Joanna contou a ele e a Margaret o que sabia
sobre a menina.
— Uma menininha sozinha nas ruas desta cidade,
pobrezinha — Margaret comentou ainda segurando
Beatrix adormecida e passando um braço protetor
ao redor de Catherine.
Hugh reapareceu, segurando Alice, que se
debatia, sob um braço.
— Solte-me, seu. seu maldito vira-lata!
— Se quer praguejar, posso ensinar algumas
ofensas melhores do que essa — Hugh disse
calmamente.
— Não faça isso, por favor — Joanna replicou.
A menina parou de lutar ao ouvir a voz conhecida
e olhou para cima, o chapéu torto revelando uma
longa trança.
— Sra. Joanna.
— Olá, Alice. Fiquei preocupada, pensei que não
voltaria a vê-la.
— Poderia dizer a esse. bastardo para me soltar?
— Bastardo? Já é uma melhora, mas estou certo
de que pode fazer ainda melhor — Hugh caçoou.
— Este cavalheiro é meu irmão, Hugh de
Wexford. Pode chamá-lo de sir Hugh. E estes são sir
Robert e lady Margaret. Não tenho a mínima
intenção de pedir que ele a solte até que você
prometa não fugir.
— Eu dou a minha palavra — Alice respondeu
rápido demais.
— Jure sobre isto — Hugh disse, colocando a mão
da menina sobre o cristal no cabo da sua espada. —
Há um pouco de palha da manjedoura de Belém
nele. Um juramento sobre esta relíquia é sagrado —
ele afirmou, o tom tão sério que Joanna teve de se
controlar para não rir. — Se quebrar tal juramento,
Deus encontrará um meio de puni-la. Então, jura
diante de Deus-Todo-Poderoso e de todos os santos
que ficará quieta se eu a soltar?
— O que fará se eu não jurar?
— Encontrarei uma corda e a amarrarei.
— Está bem, eu prometo.
Hugh a colocou no chão e sacudiu a poeira da
roupa da menina. Ela se esquivou do toque e enfiou
a trança embaixo do chapéu, a carranca exagerada
desaparecendo diante de Beatrix, que começava a
acordar.
— Um bebê.
— Gosta de bebês? — Margaret sorriu. Alice
assentiu, hipnotizada por Beatrix.
— Ela é minha irmã — Catherine informou
orgulhosa.
— Ela é muito bonita. Você também. Quantos
anos você tem?
Catherine mostrou os cinco dedos de uma mão.
— E você?
— Dez. Qual o seu nome?
— Catherine. E o seu?
— Alice.
Catherine pareceu confusa.
— Você não parece uma garota.
Alice hesitou, porém depois tirou o chapéu,
soltando as trancas, e o prendeu no cinto.
— Porque se veste como menino? — Catherine
riu. Alice franziu o cenho, sem saber como explicar
sua situação para uma menina tão nova como ela.
— Aposto como sei a resposta — Robert
intercedeu, baixando-se diante da filha. — Lembra
como Gillian gostava de usar calças e camisas para
cavalgar?
— Mamãe brigava com ela por causa disso, mas
o senhor, não.
— Sim, mamãe e eu nem sempre concordamos
quanto a Gillian, mas nós dois a amávamos muito.
Gillian achava que era mais confortável vestir calças
para cavalgar. — Robert olhou para Alice. — Talvez
seja por isso que Alice se veste assim, por ser mais
confortável.
Percebendo a dica, Alice concordou.
— Eu posso usar calças, papai? — Catherine
perguntou.
Margaret arqueou uma sobrancelha de modo
eloquente como quem diz "viu o que você fez?"
— Quem sabe um dia? Quando você estiver
pronta para longas cavalgadas.
— Você cavalga bastante? — Catherine
perguntou a Alice.
— Eu costumava andar de mula quando morava
em Laystoke. Eu tinha uma irmã da sua idade, e ela
montava atrás de mim.
— Papai diz que eu sou nova demais para
montar. — Catherine fez beicinho.
— Não quero acidentes — Robert disse. — Eu não
quero que você. se machuque. — Pela expressão
séria, Joanna sabia que ele pensava na esposa e na
filha mortas.
— E se Alice for comigo? — a filha perguntou.
Robert e Margaret trocaram um olhar.
— Eu não moro perto de você — Alice disse.
— Onde você mora?
Alice titubeou e depois respondeu:
— Aqui em Londres.
— Onde em Londres? Alice mordeu o lábio
inferior.
Joanna pensava num modo de distrair a atenção
da pequena quando Robert perguntou:
— Quem quer bolinhos?
— Eu! — Catherine exclamou feliz. Beatrix bateu
as mãozinhas imitando a irmã.
Alice ficou mais contente e ia dizer alguma coisa,
mas logo se recompôs, incerta se o convite a incluía.
— Alice — Robert disse, tocando-a no ombro —,
porque não leva Catherine até aquela barraca onde
estão distribuindo os doces? Pegue três, um para
cada uma de vocês.
— Sim, milorde.
Quando as duas meninas se afastaram de mãos
dadas, Margaret se virou para o primo.
— Ela até se parece com Gillian, não é mesmo,
Robert?
Robert assentiu e, sério, observou a menina.
— Um pouco.

***
— Posso lhe falar a sós, milady? — Robert
perguntou a Joanna.
Aquele era o momento pelo qual Joanna esperara
o dia inteiro. Com o sol se pondo e pintando o céu
em tons de laranja, era evidente que era hora de
uma resposta.
— Sim, milorde, é claro.
Hugh e Margaret os olharam de esguelha quando
os dois começaram a se afastar. Hugh piscou na sua
direção, feliz por seu esquema estar funcionando.
Margaret desviou o olhar, a expressão vazia.
Aquela rua estava mais escura e mais silenciosa
e, depois que dois garotos passaram correndo,
praticamente deserta. Os dois caminhavam em
silêncio até Robert tocar no seu cotovelo. Eles se
viraram de frente, e Robert respirou fundo:
— Pensou a respeito do meu pedido?
— Estou muito honrada que queira se casar
comigo, lorde Robert. Aprecio muito a sua
companhia e suas filhas são maravilhosas. Contudo,
não posso aceitar.
— Posso saber por quê?
A imagem de Graeham Fox se materializou na
mente dela. A senhora é feliz? ele perguntara.
Aquilo, porém, não tinha nada a ver com o sargento.
Não poderia ser. A questão era Margaret.
Joanna ergueu o olhar e o fitou.
— Por causa da sua prima.
Robert fechou os olhos por um breve instante.
— Margaret. Eu lhe disse, ela partirá de
Ramswick depois que eu.
— Eu sei. — Joanna pousou uma das mãos no
braço dele. — Ela vai fazer os votos sagrados.
Mesmo assim, continuará a amá-la.
— Eu. — Robert balançou a cabeça. — Nada pode
acontecer entre mim e Margaret. Ela é minha prima.
— Em terceiro grau. Sei que pretendeu se casar
com ela no passado.
— A cúria romana negou santificar o matrimônio.
— Deveria ter se casado mesmo assim. Ainda há
tempo.
O rosto dele revelava seu conflito interior.
— Meus pais. Eles morreriam de desgosto.
— Por algum motivo, duvido que isso possa
acontecer.
— Não os conhece, milady. Eles são
absurdamente devotos. Se eu desrespeitasse a
autoridade da Igreja, eles acabariam morrendo de
fato.
— Achei que meu pai fosse morrer quando me
casei com Prewitt. Ele ficou com raiva, furioso, na
verdade, mas continua vivo até hoje.
— E vocês não se falam até hoje. Perdão, milady.
Isso não cabe a mim julgar.
Joanna segurou as duas mãos de Robert.
— Só porque meu pai me repudiou, não quer
dizer que o mesmo vai lhe acontecer. William de
Wexford é um homem amargo. Pelo que sei dos
seus pais, eles parecem boas pessoas. Eles o
perdoarão.
— Eles ficarão chocados, magoados. Furiosos.
— Está preocupado em ser deserdado?
— Só me importo com Ramswick, e meu pai me
deu a propriedade há muito tempo, não pode tomá-
la de mim.
— Então, deixe-os bravos. Eles o amam,
acabarão superando tudo.
— E se não superarem?
— Nunca fez nada contra a vontade deles, nem
quando era moço?
— Não, jamais.
— Então já está mais do que na hora. — Joanna
riu. — Precisa fazer algo muito significativo para
compensar essa falha. Eu diria que casar com
Margaret é mais do que suficiente.
— Se eu me casasse com ela, seria uma traição
para com meus pais — Robert rebateu.
— Prefere trair Margaret, então?
Ele empalideceu e soltou as mãos.
— Traí-la!
— Está traindo o amor que sente por ela, um
amor que nunca acabará, não importa o quanto se
esforce. Como acha que ela se sente agora, sabendo
que pediu a minha mão?
— Ela aceita. Foi o que me disse.
— Assim como milorde aceitaria, caso a situação
fosse inversa, imagino.
— Ela não vai se casar, vai se tornar freira.
— E se ela estivesse pensando em se casar, unir-
se a outro homem, jurar fidelidade perante o altar,
partilhar a cama com.
— Ela não está!
— Não ficaria tão satisfeito, posso apostar.
— Não estou satisfeito, pelo amor de Deus! — ele
rebateu.
— Conformado, então — Joanna continuou,
achando interessante o modo como o fleumático
Robert começou a se exaltar, um nervo pulsando na
lateral do pescoço.
— Não se importaria se ela aceitasse se casar
com, digamos. Hugh?
— Hugh! — Robert exclamou, parecendo tão
alterado que Joanna se sentiu tentada, só por um
instante, a assegurá-lo da verdade. Que Hugh era
um espírito indomado demais para se prender aos
laços do matrimônio.
Em vez disso, ela acabou dizendo:
— Eu não deveria ter mencionado nada. Esqueça
o que.
— Hugh? — Robert a agarrou no braço chegando
a machucá-la com a intensidade do aperto. Muito
interessante. — Ele pediu a mão de Margaret?
— Não. Milorde, solte-me, acabará deixando
marcas. Ele a soltou e deu um passo para trás,
indignado.
— Ele tem a intenção?
— Eu não devia ter dito nada. Foi muito
indiscreto da minha parte.
— Ele vai? — Os punhos de Robert se fecharam.
Joanna esperava que ele e Hugh não acabassem às
vias de fato por causa das suas artimanhas, mesmo
assim, decidiu arriscar.
— Milorde, por favor — disse ela, retrocedendo.
— Eu não deveria ter mencionado isso.
— Jesus Cristo. — ele murmurou, pressionando
os punhos nas têmporas.
— Seria melhor voltarmos para junto dos outros
— Joanna sugeriu.
Ele estava parado com as mãos no quadril, os
olhos cerrados, o peito arfante.
— Vá na frente — ele disse depois de um minuto.
— Vou daqui a pouco.
Virando-se, ela segurou a saia e se dirigiu de
volta à rua Aldgate.
— Eles estão chegando! — Alice e Catherine
gritaram ao mesmo tempo ao ouvirem o distante
rufar dos tambores, sinalizando a aproximação do
desfile.
A procissão tinha começado do lado oeste da
cidade, próximo à Catedral de São Paulo e
terminaria no lado leste, diante de Holy Trinity.
Alice e Catherine tinham se tornado inseparáveis
no decorrer do dia. Vendo como Alice interagia com
a menina mais nova, brincando e conversando,
Joanna percebeu o quanto ela devia sentir falta dos
irmãos, e como devia gostar do papel de irmã mais
velha.
Robert vinha se mostrando nervoso e distante
desde a conversa com Joanna. Ele não parecia nem
um pouco interessado nas festividades, mal
despregando os olhos da prima.
— Robert não me parece muito feliz — Hugh
comentou.
Eles estavam à espera do desfile ao lado de
Margaret e das meninas. Robert, que dissera não
estar interessado, sentou-se nos degraus da igreja
de Santo André com a adormecida Beatrix no colo.
— Ele devia estar feliz. Afinal, você aceitou o
pedido de casamento.
— Bem, quanto a isso. Eu.
— Joanna. — Hugh gemeu. — Ah, diabos!
— São eles: Gog e Magog! — Catherine apontou
para a caricata representação dos gigantes que se
apresentavam para a multidão com gritos conforme
avançavam pelas ruas.
Em seguida vinham os cidadãos mais
proeminentes, liderados pelos três homens que
representavam os interesses do rei em Londres: o
administrador judiciário e os dois barões: Gilbert de
Montfichet e Walter, filho de Robert e neto de
Richard, nos seus mais belos costumes.
Joanna notou que lorde Gilbert tinha envelhecido
desde que ela servira lady Fayette. Continuava belo
e garboso, mas os cabelos negros haviam
embranquecido e o rosto estava mais marcado. O
barão pareceu notá-la ao passar os penetrantes
olhos azuis pela multidão e, por um instante, eles
demonstraram confusão.
Não tinham se falado desde que ela aceitara se
casar com Prewitt, preterindo o filho mais novo dele.
Ela ficou se perguntando se ele sabia alguma coisa
sobre o rumo que sua vida tomara.
Inclinou a cabeça num leve cumprimento. Depois
de uma ligeira hesitação, ele retribuiu a saudação e
seguiu em frente.
Os dois delegados vieram depois deles e, em
seguida numa única fila, as duas dúzias de
conselheiros, seus porta-estandartes e sargentos.
Por fim passaram os diretores das associações de
comércio, agrupados de acordo com os diversos
distritos. Lionel Oxwyke, a expressão mais azeda do
que nunca, a reconheceu e fez um aceno com a
cabeça. Rolf Le Fever a cobiçou como se ela
estivesse nua na multidão. Joanna se empertigou e
o enfrentou com o olhar. Ele cedeu, olhando para o
outro lado.
Dançarinas e mais músicos fechavam o desfile.
Conforme a multidão começava a dispersar, Joanna
notou que Margaret não estava mais por perto.
Olhando ao redor, viu que ela caminhava na direção
de Robert. Ele ergueu o rosto com a aproximação
dela, repentinamente animado pela primeira vez
naquela noite. Sentando-se ao lado dele na
escadaria da igreja, ela começou a falar.
— Está encarando — Hugh a repreendeu. Joanna
se virou, recompondo-se.
— Alice, Catherine, fiquem perto de mim. Eu não
quero que se percam na multidão.
Um minuto mais tarde, Margaret e Robert, agora
com Beatrix apoiada no ombro, juntaram-se a eles.
— Papai, perdeu tudo! — Catherine exclamou.
— Vi Gog e Magog — ele replicou. — Você ficou
assustada?
— Não, Alice me disse que eram de mentira.
— Obrigado, Alice — disse ele —, por cuidar de
Catherine.
— Não quis que ela ficasse com medo. — Alice
deu de ombros.
Margaret se baixou diante dela para conversar
frente a frente.
— Alice, é verdade que não tem parentes?
O sorriso de Alice se desfez e a menina relanceou
o olhar apreensiva para os rostos dos adultos.
— Não vou para nenhum abrigo.
Temerosa de que a menina tentasse fugir
novamente, Joanna colocou a mão no ombro dela.
— Ninguém vai fazer isso, Alice.
— Pensei que talvez você quisesse viver em
Ramswick — Margaret comentou.
— Ramswick
— É a minha casa — Robert esclareceu. — Não
passa de um punhado de terras.
— Uma fazenda? — Os olhos de Alice se
iluminaram.
— Sim, várias pequenas fazendas compondo uma
grande, na verdade.
— Você viveria na casa da fazenda e dormiria no
quarto das meninas — Margaret disse e, olhando
para Robert, completou: — Há uma cama perfeita
para o seu tamanho, um colchão de penas e uma
linda colcha cor-de-rosa.
— Diga sim! — Catherine implorou, puxando a
manga de Alice.
Alice olhava para Robert e para Margaret,
obviamente surpresa.
— Por quê?
— Nós gostamos de você, e Catherine a adora —
Margaret explicou.
— Vou ser um tipo de criada, é isso?
— Não, será minha protegida — Robert disse. —
Eu a educarei como se. — Respirou fundo, a voz
demonstrando emoção. — Como se fosse uma filha.
— Terá belos vestidos e receberá educação. O
capelão de lorde Robert a ensinará a ler e a fazer
contas. Aprenderá a administrar uma casa e,
quando tiver idade o suficiente, nós arranjaremos
um homem de boa família para se casar, um que
tenha uma casa e, assim, você terá seu próprio lar.
Gostaria que isso acontecesse? — Margaret
perguntou.
— Isso foi ideia sua? — Alice perguntou.
— Sim. — Margaret olhou para Joanna e pareceu
perturbada por um instante. — Desculpe. Eu deveria
tê-la consultado já que.
Então Robert ainda não contara a ela sobre a
recusa do pedido.
— Não há porque me consultar — Joanna
respondeu num tom que esperava esclarecesse a
situação.
Margaret se levantou e olhou de Joanna para
Robert, que assentiu com a cabeça. Eles se
perderam nesse olhar por um longo momento.
— E então, Alice, acha que gostaria de viver em
Ramswick? — Joanna perguntou.
— Tem certeza de que concorda com isso,
senhor? — Alice perguntou a Robert.
— Eu ficarei muito feliz se vier connosco, Alice,
bem como lady Margaret imaginou. — Com um olhar
afetuoso para a prima, completou: — Ela é uma
mulher muito inteligente.
— Aceite. — Hugh deu um empurrãozinho na
menina. Alice os olhou sorrindo, o queixo
ligeiramente trêmulo.
— Sim.
Catherine emitiu um gritinho de contentamento.
— Obrigada, papai. Obrigada, tia Margaret. Vou
ter uma irmã mais velha de novo!
— Onde está Robert? — Hugh perguntou ao notar
o fim das festividades. — As crianças estão
cansadas.
Joanna, em cujos ombros Beatrix dormia no
momento, olhou ao redor e viu um casal perto da
fogueira.
— Lá estão eles. — Ela apontou.
Robert falava e Margaret ouvia. Ele parecia muito
envolvido na conversa, os gestos começaram a se
ampliar, a expressão se mostrou angustiada.
Margaret levantou as mãos, e ele as tomou entre as
suas, puxando-a para perto.
— Está encarando de novo — Hugh disse
baixinho.
— E você, não?
Soltando uma das mãos, Robert fez uma carícia
tímida no rosto da moça, que fechou os olhos. Ele
continuou a falar, e sua postura se mostrava
determinada. Ela assentiu e abriu os olhos nos quais
lágrimas brilhavam. Robert enxugou-as com os
polegares e disse algo com expressão suplicante.
Margaret assentiu e disse "sim". Joanna conseguiu
ler os lábios dela ao aceitar o pedido de Robert. O
rosto dele se iluminou de felicidade. Também tinha
as faces húmidas com as próprias lágrimas. Robert
segurou o queixo de Margaret e o inclinou, baixou a
cabeça, tocou-a nos lábios e se afastou.
Pegando-a nos braços, voltou a baixar a cabeça e
a beijou. Um beijo de verdade, dessa vez. Ela
pareceu momentaneamente atordoada, mas em
seguida, retribuiu o braço e o beijo. Um beijo que se
prolongou até terem de se afastar para poder
respirar.
Joanna sentiu uma alegria apertando-lhe o
coração e humedecendo seus olhos.
Hugh pigarreou.
— Isso só pode ter o seu dedo — disse ele de
modo acusatório.
Joanna se virou de frente para o irmão, contente
por ver que ele também parecia emocionado.
— Não me parece indiferente a essa reviravolta
nos fatos.
— Isto é por causa da fumaça das fogueiras —
ele disse, enxugando os olhos.
— Ah, sim.
— Ele teria sido um excelente marido, Joanna.
Espero que saiba o quanto é tola.
Ela suspirou e pensou em Graeham Fox.
— Lamento informar que sei disso já há algum
tempo.

Algo no som dos passos no beco alertou os


sentidos de Graeham, eram rápidos e leves.
De pronto, ele pensou em Alice e sentiu o peito
apertado, porém logo se lembrou de que a menina
já não vagava pelas ruas da cidade, nem dormia ao
relento. Havia uma semana, ela passara a morar em
Ramswick, sob a guarda de lorde Robert. Sentia-se
imensamente grato que ela tivesse encontrado um
lar tão bom. Era muito mais do que a própria Joanna
poderia oferecer. Como tutelada de lorde Robert,
Alice teria uma vida privilegiada e um futuro
assegurado. Todas as noites Graeham agradecia a
Deus por ter garantido a segurança daquela criança.
As passadas continuaram pelo beco até o pátio
interno das casas. Pensando melhor, eram pesadas
demais para pertencer a uma criança, deviam ser de
uma mulher. Já passara muito do toque de recolher,
e as únicas mulheres que andavam pelas ruas
àquela hora eram as meretrizes. Porém, elas não
costumavam correr, a menos que estivesse algo
errado.
Graeham apagou a vela que usava para ler,
destrancou a persiana e espiou na escuridão,
imaginando se conseguiria ajudar a mulher, caso ela
estivesse em apuros. Pelo pouco que conseguia ver,
contudo, ela não parecia uma prostituta. Usava um
manto escuro com capuz, e as meretrizes jamais
cobriam os cabelos, normalmente seus melhores
atributos. Em noites frias, o que não era o caso,
usavam mantos em cores berrantes a fim de se
destacar.
A mulher correu para o portão de Le Fever,
abriu-o e foi em direção à casa.
Graeham se sentou na cama, imediatamente
alerta. Pensou que ela bateria à porta, em vez disso,
porém, ela se baixou e pegou um seixo. Depois,
afastou-se alguns passos e atirou-o na janela do
segundo andar. Após esperar um instante, ela jogou
mais uma pedrinha na janela de Le Fever que, em
seguida, abriu-a.
A mulher fez um gesto para que ele descesse. Ele
assentiu e fechou a janela.
Apesar da luz de dentro do quarto que iluminou
brevemente o quintal, Graeham não conseguiu
divisar as feições da mulher.
Logo a porta se abriu e Le Fever apareceu. Havia
trocado a roupa de dormir por uma túnica e calças
de cores mais sóbrias que as costumeiras. A mulher
disse algo e cobriu o rosto com as mãos. Ele a
pegou pelo braço, cruzou o portão e levou-a até o
beco.
Graeham ouviu os passos. Quando pararam, uma
voz lamuriosa feminina disse:
— Rolf, eu não posso.
As palavras foram abruptamente interrompidas.
Algum tempo depois a voz voltou, sem fôlego, mas
ainda chorosa.
— Seus beijos não vão resolver a situação. O que
estamos fazendo é errado, e o que você quer que eu
faça é ainda. — Mais silêncio seguido por gemidos
suaves e o farfalhar de tecido. — Aqui não, Rolf. —
A voz dela estava rouca, como se tivesse chorado
por horas, ela parecia ser jovem.
— Ninguém pode nos ver — ele disse. — Fique
quieta, apenas deixe-me tocá-la. — A moça arfou. —
E assim, gosta?
— Rolf, por favor. Aqui não.
Tentando persuadi-la, ele disse num tom manso:
— Você adora quando eu faço isso, já está quase
pronta. Preciso de você agora. Sinta isto, parece que
eu vou conseguir esperar?
Tudo ficou quieto por mais alguns instantes.
Quando romperam o beijo, os dois arfavam.
— Não com tanta força — ele reclamou. — Será
que nunca vai aprender? Sim. Assim mesmo. Um
pouco mais rápido. Mais. Pare!
A persiana da janela sacudiu quando ele
pressionou a moça com força contra ela.
— Erga as saias. Ponha suas pernas ao meu
redor. Segure-se.
Ela ofegou e a persiana começou a ranger no
ritmo do movimento dos amantes. Depois de alguns
minutos, Le Fever gemeu e a moça se pôs a chorar.
— De novo não, que inferno!
Graeham ouviu quando a moça voltou a colocar
os pés no chão, e eles ajeitaram as roupas.
— Olive, você não seria tão má companhia se
não chorasse tanto! — Le Fever reclamou.
Olive? Olive e Le Fever?
— Rolf, eu imploro, precisamos discutir isso. É
assassinato, um pecado! Eu não posso.
— Pode e vai fazer.
— Rolf, ouça.
— Quero que cuide disso, entendeu? E logo. Está
demorando demais, você sabe o que deve ser feito,
então faça!
— Oh, Deus, Rolf. Eu não posso.
Le Fever suspirou, demonstrando impaciência.
— Venha aqui. Calma, detesto quando chora,
sabe disso, não? Tome, limpe o nariz. Acalme-se,
querida. Desculpe se fui duro.
Cobra ardilosa, Graeham pensou.
— Consigo ser tão estúpido. Não sei porque você
me aguenta.
— Eu. t-te. a-amo — ela gaguejou entre soluços.
— Eu também te amo, Olive. Do fundo do meu
coração. Nosso futuro juntos significa tudo para
mim, e é por isso que você não tem escolha. Precisa
cuidar disso. Sei que entende, só está com um
pouco de medo, o que é natural. Mas essa é a única
maneira, não? — Depois de uma pausa, ele insistiu:
— Não é, Olive?
— S-sim.
— Muito bem. Você tem tudo de que precisa na
loja, todos os ingredientes?
— Só há dois e, sim, eu os tenho. Eu só queria
não ter de fazer isso.
— E claro que não quer. Eu também detesto
pensar nisso, mas não temos escolha, lembra? Quer
ser minha esposa, não?
— Mais do que tudo.
— Vá, então. Prepare a mistura e faça o que tem
de ser feito. Agora. Antes que perca a coragem.
— Sim, Rolf, vou cuidar de tudo. — Ela respirou
fundo.
— Essa é a minha garota. Amanhã a esta hora,
estará tudo terminado e você saberá que esse era o
único caminho.
Graeham ouviu-os se beijar em despedida e, em
seguida, os passos dela seguiram em direção à rua
Woods. Alguns instantes mais tarde, Le Fever se
virou e voltou para casa.
Apoiando-se nas muletas, Graeham foi até a
cortina e parou. Só estava com a roupa de baixo,
por causa do calor, mas Joanna sempre parecia um
pouco agitada quando o via sem camisa. Por isso,
pegou-a do gancho da parede e vestiu-a antes de
seguir para a escada. Parou no primeiro degrau,
desejando não ter de acordá-la e, acima de tudo,
não ter de envolvê-la ainda mais nas suas
complicações. Praguejando baixinho, ele a chamou:
— Sra. Joanna? — Silêncio. — Senhora, acorde.
Por favor, preciso da sua ajuda.
Graeham ouviu o rangido do estrado da cama e,
em seguida, Joanna disse sonolenta:
— Sargento, está tudo bem?
— Sim, só preciso da sua ajuda.
Ele ouviu os passos nas tábuas do andar de cima
e imaginou-a saindo da cama, nua. A imagem o
excitou, a despeito da urgência da situação.
Lembrou-se então de que, àquela altura, ela já
devia estar noiva. E ele também tinha de pensar em
Phillipa.
Aquilo, no entanto, não o impedia de desejar
Joanna. Nunca deixaria de querê-la. Mesmo depois
de estar estabelecido em Oxfordshire com Phillipa,
sabia que ainda sonharia com Joanna, ainda ansiaria
por ela. Lembraria dela, assim como o coração se
lembrava de bater e os pulmões, de respirar.
Joanna desceu a escada apressada, o roupão de
seda amarrado, e os cabelos dourados soltos. Estava
com o rosto rosado pelo calor da cama.
O coração de Graeham parecia querer sair pela
boca. Não a vira mais daquele modo desde a noite
do banho fazia mais de um mês, ainda tinha
gravado na memória cada detalhe, à custa das
muitas noites insones, sozinho na sua cama estreita.
Ele passou os dedos pelos cabelos, tentando
ignorar a latência na virilha e feliz por ter vestido a
camisa e, assim, conseguir esconder a evidência do
seu desejo.
— Me perdoe por tê-la acordado.
— O que aconteceu? — Ela olhou para a perna
dele e fechou o roupão um pouco mais. A seda se
moldou sobre os seios arredondados, delineando o
contorno delicado.
— Talvez nada de mais, mas eu poderia apostar
que algo muito grave está para acontecer. Ouvi um
casal no beco agora há pouco. Rolf Le Fever e.
Olive.
— Olive? Talvez ele tenha precisado de remédio
para a esposa.
— Senhora, só há um motivo capaz de fazer um
homem e uma mulher se encontrarem no meio da
noite.
— Olive e Le Fever? — Ela meneou a cabeça. —
Não, só pode estar imaginando coisas.
— Ele teve relações com ela contra a parede.
— Não deve ter sido Olive — ela disse,
ruborizada. — Talvez.
— Ouvi a voz dela. Não a reconheci de imediato
porque ela chorava, mas depois que ele a chamou
pelo nome, pude perceber que era ela de fato.
Fiquei com a impressão de que. eles são íntimos há
algum tempo.
— Oh, meu Deus! — Joanna sentou-se no banco
ao lado da mesa, parecendo atordoada e triste. — E
quanto a Damian? Ele a ama e. Bem, pensei que ela
também o amasse.
— Talvez ela o ame. As questões amorosas não
costumam ser simples. Normalmente são bem
complicadas. Inexplicáveis.
Ela ergueu o rosto e o fitou. Graeham sentiu o
peso das palavras não ditas entre eles, como uma
nuvem carregada à espera de um lampejo que a
faça se libertar da chuva. Joanna foi a primeira a
desviar o olhar.
— Disse que precisava de mim.
— E preciso. — Demais e por muitos motivos.
— O que quer?
Tentando se concentrar no problema imediato,
ele respondeu:
— Eu gostaria que fosse até a farmácia. Olive
está preparando uma poção e.
— Não. Parece ter se esquecido — ela disse,
levantando-se — de que não vou espionar meus
vizinhos no seu benefício.
— Senhora, lamento pelo que aconteceu antes,
mas isto é importante. Pelo menos estou sendo
honesto desta vez, em vez de pedir que vá até lá
sob falsos pretextos.
— Imagino que isso seja um bom começo, mas
prometi a mim mesma que jamais me deixaria usar
por qualquer outro homem. para nada. Essa é uma
promessa que pretendo cumprir. — Ela se virou na
direção da escada. — Boa noite, sargento.
Ele claudicou e a segurou pela cintura enquanto
ela colocava o pé no primeiro degrau.
— Sei que se importa com Ada ou não a visitaria
todas as manhãs.
Joanna baixou o pé, ainda de costas para ele e
segurando o corrimão. Graeham sentiu a tensão nas
costas dela e apertou o braço na cintura delgada,
dizendo a si mesmo que era para que ela não
subisse. O ventre dela era quente e firme sob a seda
deslizante, o perfume o inebriava. Ele queria trazê-
la para junto do peito, enterrar o rosto nos cabelos
sedosos, pressionar-se contra ela, dentro dela.
Ele engoliu em seco, lutando para se controlar.
— Leva comida para Ada todos os dias. Sei que
faz isso por temer que ela esteja sendo envenenada.
— Solte-me, sargento — Joanna exigiu com a
respiração entrecortada.
Ele apertou o abraço, aproximando-se e sentindo
os cabelos sedosos de encontro à sua face, a seda
fria resvalando nas suas coxas desnudas.
— Subira as escadas se eu a soltar.
— Prometo que não farei isso.
Graeham a soltou com relutância, baixando a
mão lentamente, deixando-a ficar um instante a
mais na curva do quadril antes de retroceder. Era
como se estivesse abraçando uma amante, nunca
mais teria uma desculpa para segurá-la daquela
forma.
Joanna se virou de frente, mas evitou olhá-lo.
— De fato, pensei em envenenamento no início.
Achei que se ela comesse somente o que eu levasse,
ela melhoraria, mas de nada adiantou.
— Também suspeitou do tônico, não?
— Sim, mas não passa de uma infusão de mil-
folhas.
— Isso se Olive estiver lhe contando a verdade.
— Olive não é uma assassina — Joanna afirmou
categoricamente, encarando-o.
— Ela é uma moça impressionável, e Le Fever
não teria escrúpulos em usá-la em benefício próprio.
— E isso incluiria assassinato?
— Ouvi quando ela mencionou exatamente essa
palavra.
— Conte-me tudo — ela pediu, voltando a sentar-
se.
— Havia algo de que ele queria que ela
"cuidasse" e logo. Olive falou que aquilo seria
assassinato, mas concordou porque ele afirmou que
apenas assim poderiam se casar.
— Ele nunca se casaria com ela. Le Fever
escolheria alguém que o alavancasse socialmente e
não uma moça humilde.
— Olive não sabe disso. Ela está iludida e pode
estar preparando uma dose fatal do que quer que
esteja oferecendo diariamente a Ada. Le Fever deve
ter pedido que o processo fosse lento, simulando
uma morte natural a fim de não levantar suspeitas,
mas agora.
— Não pode ser, custo a acreditar.
— E, todavia — Graeham se sentou ao lado dela
—, Le Fever mandou-a de volta à farmácia para
"preparar a mistura" antes que perdesse a coragem.
Ele disse que a esta altura, amanhã, estaria tudo
acabado. Deduzi com isso que Olive entregará
amanhã a dose fatal.
— O que quer que eu faça?
— Vá até a farmácia e veja o que ela está
aprontando.
— Assim, no meio da noite?
— Diga que precisa de. de algo para dormir. Dê
uma olhada, veja o que ela está fazendo. Faça
perguntas, se puder, sem levantar suspeitas.
— Eu me sentiria uma traidora, enganando-a
dessa maneira.
— Não posso ir eu mesmo — Graeham mostrou a
perna. — Prefere que eu mande o delegado? — ele
perguntou, embora desejasse deixar as autoridades
ao largo da situação a fim de não comprometer a
discrição da sua missão.
— Ainda não. — Ela se levantou. — Se isso não
for o que parece ser, prefiro não envolver a polícia.
— Pegou o manto do gancho e colocou-o sobre o
roupão.
Graeham a seguiu até a loja, onde a viu calçar os
tamancos e sair. Deixou a porta entreaberta para
espiar a rua. Joanna bateu à porta da farmácia e,
instantes depois, Olive a atendeu, parecendo
surpresa por vê-la tão tarde. Joanna disse-lhe algo e
a moça deixou-a entrar.
Ele ficou de pé olhando para a farmácia fechada
até sentir a perna latejar. A noite estava quente, e
ele começou a suar, molhando a camisa.
Joanna estava demorando demais. Devia haver
algo errado. Nunca deveria tê-la mandado para lá.
Ela corria perigo. Estavam planeando um
assassinato, e ele a colocara no olho do furacão,
sem considerar a segurança dela. Tinha ficado
despreocupado porque era apenas Olive, mas se a
moça estava envenenando Ada, seria capaz de
qualquer coisa.
Pensando assim, abriu mais a porta e pôs o pé na
rua. Nesse instante, Joanna saiu da farmácia.
Graeham se apressou a entrar na loja para não
correr o risco de ser visto.
— Estava preocupado — disse com um suspiro
quando ela entrou na loja.
— Não tanto, já que me mandou ir lá. — Ela tirou
os tamancos e seguiu para a saleta.
Graeham a seguiu, sentou-se no banco e apoiou
as muletas.
— Olive lhe disse algo?
— Não, ela parecia muito distraída. Preparou o
remédio para mim como se estivesse em transe. Eu
teria medo de tomá-lo. Vai que ela se confundiu com
os ingredientes. — Joanna jogou um pacote na
mesa.
— O que ela fazia quando a senhora chegou lá?
— Moía ervas.
— A senhora as reconheceu?
— Não.
— E o senhor? — Tirando a mão debaixo do
manto, ela estendeu dois punhados de ervas secas
amarrados por um barbante.
— A senhora. as roubou?
— Sim. Se esses são mesmo os ingredientes de
um veneno, pensei que seria melhor tomá-los de
Olive antes que ela cometesse uma loucura.
Graeham pegou um punhado, cheirou-o e depois
o outro. Não os reconheceu nem pela aparência nem
pelo cheiro.
— Ela pode ter mais disso no estoque.
— Eu sei. — Joanna tirou o manto, pendurou-o e
enxugou o suor da testa. — Só pensei nisso depois.
Quem sabe ela pelo menos não reconsidera?
— Ou talvez ela vá até Le Fever amanhã e conte
tudo, nesse caso ele pode decidir que a senhora é
uma ameaça. — Graeham balançou a cabeça. — Não
posso condená-la por pegar essas ervas, eu
provavelmente teria feito o mesmo. Só espero que
não tenha se colocado em risco.
Voltando para perto da mesa, Joanna pegou as
ervas misteriosas mais uma vez e ponderou:
— Preocupo-me com Ada. Devíamos chamar o
delegado logo de manhã.
Graeham suspirou pesaroso, mas concordou. Não
tinha mais como evitar o envolvimento da polícia se
queria manter Ada a salvo. Se não estivesse
impossibilitado, iria até a casa de Le Fever naquele
instante e a arrancaria de lá, mas do jeito que
estavam as coisas.
— Tem razão. Detesto isso, mas.
— Por quê? É responsabilidade da polícia
investigar esse tipo de coisa. Porque hesitaria em
chamá-la? — Ela o fitou, confusa, a luz da vela
provocando centelhas douradas nos olhos
castanhos.
— Quando fui enviado para cá para resgatar a
sra. Ada, pediram-me que eu agisse com cautela e
discrição.
Joanna arrancou uma das folhas e a esfregou nas
mãos.
— Ah, isso faz parte das coisas que não tem "a
liberdade de revelar".
Graeham sentiu vergonha por esconder tanto,
sendo que pedia a sua ajuda constantemente. Em
todos os aspectos, exceto o da mentira sobre o
marido, Joanna mostrava-se uma pessoa de inteira
confiança. Mesmo esse ligeiro desvio era
compreensível, uma mentira inocente. Não podia
culpá-la por tentar manter distante um soldado
solteiro, jovem e desconhecido. Podia culpar-se,
contudo, por não revelar coisas que ela tinha o
direito de saber, já que acabara se envolvendo por
demais.
— Não tenho sido justo com a senhora — disse,
por fim. — Conquistou o direito de saber mais, saber
quem me enviou para cá.
Joanna ficou calada, colocou as ervas na mesa e
se sentou. Não do lado oposto, como de costume,
mas ao lado dele.
— Foi meu senhor supremo, o barão Gui de
Beauvais.
— Porque eu não poderia saber disso?
— Porque — Graeham respirou fundo — Ada Le
Fever é filha ilegítima dele. Ninguém sabe disso,
além do tio que as criou em Paris e, claro, Rolf Le
Fever. Ele descobriu logo após o casamento, e é por
isso que a odeia tanto e faz ameaças. O casamento
deveria lhe trazer benefícios, mas ele acabou ficando
preso a um "segredo sórdido", como ele mesmo diz.
— Lorde Gui começou a se preocupar com as
ameaças e os abusos e o convocou para resgatá-la.
— Balançando a cabeça, Joanna completou: — Que
falta de sorte ter sido atacado por aqueles ladrões
antes de conseguir cumprir sua missão.
— Não creio que fossem meros ladrões. Naquela
tarde eu visitei Le Fever. Ele estava relutante em
entregar a esposa, então o subornei com a
promessa de cinquenta marcos. Ele pediu que eu
voltasse mais tarde, assim teria tempo de prepará-la
para a viagem. Olive estava lá, e eu pedi que
preparasse tônico em quantidade suficiente.
— Olive estava lá? Ela o viu e ficou sabendo que
levaria Ada embora. E por isso que não queria que
ela o visse?
— Isso mesmo. Eu voltei e acabei numa
emboscada armada por um homem que se fez
passar por Byram. Ele e seus dois comparsas
levaram o dinheiro, meu cavalo e teriam me matado
se Hugh não tivesse aparecido.
— Acredita que Le Fever seja o responsável pela
emboscada?
— Sim, imagino que ele quisesse ficar com o
dinheiro sem passar pela indignidade de entregar a
esposa.
— Ele não deveria ficar contente em se ver livre
dela?
— Não se esqueça de que ele a está
envenenando desde a época do Natal, só esperando
para o ataque final. Ele a queria morta para poder
se casar novamente, e não de volta a Paris, o que
levantaria perguntas sobre os motivos que levaram
o pai a buscá-la.
— Desculpe pelo que vou dizer, sargento, mas
me parece que o barão agiu de má-fé ao entregá-la
em casamento sem explicar a situação.
— Ele mesmo admite isso. Tenho de confessar
que fiquei desapontado quando ele me disse o que
havia feito. Sem falar no fato de ter escondido as
duas filhas em Paris durante todo esse tempo. Fico
me perguntando se todos os homens importantes
têm filhos bastardos espalhados pelo mundo.
— Duas? Ah, sim, tinha me esquecido. Ada tem
uma irmã chamada Phillipa, não?
O pânico apertou a garganta de Graeham ao
ouvir o nome da sua futura esposa nos lábios de
Joanna.
— Sim, elas são gêmeas — conseguiu dizer por
fim.
— O marido de Phillipa sabe a verdade ou
também foi mantido no escuro?
Aquela era sua chance de esclarecer tudo, de ser
franco com Joanna como ela merecia. Graeham
sentiu o coração bater mais forte ao tentar escolher
as palavras mais adequadas. Phillipa ainda não se
casou. Eu estou prometido para ela. Nós nos
casaremos assim que eu levar Ada de volta para a
França.
— Sargento? — O ombro de Joanna resvalou no
de Graeham quando ela se virou de frente para ele.
Seda contra linho, texturas femininas e músculos
torneados, calor.
Deus, que perfume delicioso. Tudo o que ele mais
queria era se afundar nos cabelos dourados,
mergulhar no corpo macio.
— Há algo errado? — Joanna insistiu.
Graeham pegou uma das ervas e a esmagou nos
dedos.
— Phillipa ainda não se casou — disse ele com
voz distante e vazia. — Eu estou. — Quando
levantou o olhar e mergulhou nos olhos castanhos
cintilantes de Joanna precisou se lembrar de
respirar.
— Espero que lorde Gui seja mais franco com
próximo genro do que com o último.
— Eu estou. — Graeham meneou a cabeça,
desgostoso consigo mesmo, com a situação em que
se metera. — Eu estou certo de que ele será.
Ela o encarou atentamente de um modo que o
deixava desconcertado.
— Lorde Gui deve tê-lo em alta estima para
confiar-lhe tal segredo.
Graeham continuou esmagando as ervas, sem
olhar para ela.
— Ele foi quase como um pai para mim durante a
minha adolescência.
— Quase?
Ele pensou um minuto.
— Eu o respeitava. Ainda o respeito apesar das
suas ações irrefletidas nesse assunto e da
infidelidade. Sinto afeto por ele e gosto de pensar
que a recíproca é verdadeira. Ele foi bom para mim,
me deu oportunidades, mas. — Ele levantou o rosto
e a fitou. — Ainda durmo no alojamento. Ainda vivo
para cumprir as ordens dele como qualquer outro
soldado. Não sou um filho. só uma espécie de
agregado. Tento não me esquecer disso. Seu
depósito é o único lugar no qual já tive alguma
privacidade. Nunca tive um lar, tampouco algum
tipo de família.
— Estou certa de que sentiu muita falta dessas
coisas, mas ao crescer do modo como cresceu, teve
certos benefícios. Tornou-se um homem
independente, auto-confiante. Essas são qualidades
admiráveis.
— Eu sei. Admiro-as na senhora.
Joanna baixou os olhos, deixando a declaração
pairar no ar.
— Nós somos muito parecidos — disse ele baixo,
consciente da pressão do ombro dela contra o seu,
da suave carícia da seda ao longo da sua perna. —
Deve ter notado isso.
Ela assentiu, o olhar perdido nas mãos
espalmadas no tampo da mesa.
— Sei que tivemos nossas diferenças — ele
continuou, sentindo-se tonto como se estivesse
caindo num abismo escuro e misterioso, levando-a
consigo. — Quando conversamos, porém, sinto
como se estivesse com. um amigo, alguém em
sintonia comigo. Sei que sentiu a mesma solidão
que eu, o mesmo isolamento.
Atrevido, ele pegou as mãos dela e, mesmo
assim, Joanna não o olhou. Em meios aos cachos
dourados que a cobriam, Graeham notou o peito
arfante. Apertou a mão dela e disse:
— Desculpe-me pelas mentiras — pediu ele,
referindo-se em especial à omissão sobre o
compromisso com Phillipa. — Lamento tudo o que fiz
para afastá-la.
— Também não fui sincera. — Ela enroscou os
dedos nos dele. — Preciso lhe contar algo, uma
coisa que eu deveria ter dito desde o início.
— Senhora.
— Deixe-me falar, por favor. Sinto-me um tanto
tola agora por ter escondido isso e. um pouco
envergonhada. Deixei-o pensar que sou uma mulher
casada, mas não sou. Sou viúva. Meu marido
morreu o ano passado em Gênova.
— Eu sei. Já há algum tempo.
— Desde quando? — ela perguntou num fio de
voz.
— Desde o dia do mercado.
— Sabe desde aquele dia? — Uma ponta de raiva
se uniu à descrença. — Isso foi há um mês!
— Senhora. — Graeham tentava acalmá-la,
sentindo-se como se tivesse acabado de fazer um
movimento tolo numa partida de xadrez, o qual não
poderia ser desfeito. — Eu entendi por que.
— Como pôde me deixar fingir quando já sabia
de tudo? — perguntou ela com um tremor na voz.
Os olhos estavam arregalados, as faces, rubras.
— Por favor, me escute. — Ele pressionou os
dedos dela.
— Sinto-me tão tola. Não posso ficar aqui. — Ela
libertou a mão e se levantou. — Boa noite, sargento.
— Não! — Graeham segurou-a pela cintura com
as duas mãos. — Fique, por favor.
— Solte-me! — ela exclamou, tentando afastar as
mãos fortes. — Já fui humilhada o bastante. Não me
obrigue a ficar aqui e.
— Joanna.
— Deixe-me ir. — Bateu nos braços dele.
Graeham a soltou e, colocando as mãos sobre o
tampo, levantou-se.
— Joanna, fique. Eu só quero.
— Deixe-me em paz. — Ela se virou, e ele a
segurou pelo braço. Tentando se desvencilhar, ela
virou o corpo. O movimento abrupto fez o roupão
escorregar pelo ombro.
— Joanna! — A tala e a falta de espaço entre o
banco e a mesa o desequilibraram, mas quando
Joanna lhe deu as costas, ele se apoiou nos ombros
dela. Um estava descoberto, e ele ficou desorientado
ao sentir a maciez da pele sob sua palma.
Virando-se, ela o golpeou. Um punho o acertou
no antebraço, o outro na lateral do ombro. Os socos
não foram fortes, mas conseguiram desequilibrá-lo.
Graeham tombou para o lado, virando o banco e
caindo por sobre ele. Praguejando ao sentir uma dor
instantânea na perna, ele rolou, saindo de cima do
banco, e segurou a tala com as duas mãos.
— Graeham! — Joanna se ajoelhou ao seu lado, o
cabelo resvalando-o como ondas conforme ela o
tocava para verificar a perna imobilizada.
Apesar da situação constrangedora, Graeham
sentiu-se gratificado por ouvi-la chamando pelo
nome pela primeira vez.
— Deus meu! Eu sinto muito. Está se sentindo
bem? Cerrando os dentes, ele assentiu. Esticando a
perna, conseguiu se sentar.
— Graças a Deus! — ela exclamou. — Eu não
quis machucá-lo. Nunca bati em ninguém. Eu só. —
Ela começou a se levantar.
— Não. — Ele a pegou pela cintura e fê-la cair no
chão coberto de palha.
Com um grito de ultraje, Joanna tentou se
sentar, apenas para ser empurrada de volta. Tentou
se desvencilhar, mas Graeham a deteve, deitando-a
e cobrindo-a com o próprio corpo para que ficasse
quieta.
— Solte-me! — Ela se debatia e o empurrava. —
Saia de cima de mim!
— Não. — Ele a prendeu pelos pulsos e segurou-
os acima da cabeça.
O roupão cedeu conforme ela se debatia,
expondo a parte superior do peito e um ombro.
Graeham conseguia ver a curva do seio, a aréola
ainda coberta poderia ser revelada se Joanna
continuasse a se remexer daquela forma. O desejo,
puro e selvagem, pulsava na sua virilha, mas ela,
concentrada em se soltar, parecia não ter notado.
— Joanna, pare com isso — ele disse com o
cabelo caindo no rosto enquanto tentava prendê-la
com o olhar. — Pare.
— Por quê? — ela gritou. — Porque não me disse
que sabia da verdade?
Com suavidade, ele a fitou nos olhos e
respondeu:
— Eu estava esperando que me contasse.
Joanna fitou os luminosos olhos azuis de
Graeham, sentindo o coração bater mais forte. As
mãos dele eram como amarras de ferro nos seus
pulsos, o corpo, pesado e sólido, firmava-a no chão.
A perna imobilizada dele prendia suas coxas e,
através da seda fluida, ela sentia uma coluna de
rocha quente pressionando-a no quadril. Fechou os
olhos para fugir do olhar penetrante e da
tempestade de emoções, mas isso só serviu para
aumentar sua percepção do corpo dele. O suor
másculo delicioso, o resvalar do linho da camisa dele
no seu peito a cada respiração, respiração essa que
a atingia no rosto, nos lábios, e que se aproximava,
cada vez mais quente e convidativa.
Voltou a abrir os olhos e se perdeu no azul
intenso. Ele estava perto. Não havia um caminho de
volta.
Graeham a tocou nos lábios, e ela se sentiu
despencar no calor e na inevitabilidade. O beijo não
foi gentil, foi sombrio e áspero, carregado de desejo,
e ela se rendeu. Cedeu aos lábios exigentes e à
língua invasora.
Ele soltou-lhe os pulsos e entrelaçou os dedos
nos dela, possessivamente. Joanna correspondeu.
Possua-me.
Graeham afastou-lhe as pernas com a sua.
Beijando-a sem cessar, pressionou o corpo contra o
dela.
Joanna arqueou-se, tornando o toque mais
íntimo, aproximado suas partes macias da dureza
viril de Graeham. Ela se sentia latejar onde os
corpos se tocavam.
Ele interrompeu o beijo, ofegante e, com uma
das mãos, desfez o nó das ceroulas num movimento
apressado, os dedos atrapalhados, resvalando-a
através da seda húmida numa carícia fugaz.
Ela sussurrou o nome dele numa súplica,
revelando uma necessidade primordial, sentiu as
mãos quentes e ásperas na sua pele no segundo que
ele levou para afastar o roupão, apenas o suficiente
para se aninhar no calor das suas coxas.
Então, Graeham a beijou novamente, segurando-
a pelas mãos enquanto se preparava para torná-la
sua. Joanna sentiu-se arder quando ele a penetrou.
Fazia tanto tempo. Ela ficou tensa e um choramingo
escapou da sua garganta.
Graeham interrompeu-se e, sustentando-se nos
cotovelos, fitou-a com preocupação.
— Joanna? Você.
— Estou bem. — Ela apertou as mãos dele e
arqueou o corpo. A necessidade de se sentir
completa era tão grande que não se importava com
o desconforto. Na verdade, recebia-o de boa
vontade, pois era como se Graeham a estivesse
declarando dele, tomando seu corpo como tomara
sua alma.
Ele recuou e voltou a investir em movimentos
suaves. Cada estocada ia mais fundo, abrindo
caminho, invadindo-a centímetro a centímetro.
A dor inicial foi substituída por outra sensação,
um formigamento quente, um crescente contínuo
que a deixava sem fôlego e que fazia-a gemer e
apertar as mãos de Graeham.
Os cabelos dele, soltos e húmidos, os envolviam,
a respiração entrecortada ficava cada vez mais
frenética, os movimentos mostravam-se mais
intensos e a palha sob eles estalava no mesmo
ritmo.
Precisando dele no seu âmago, Joanna ergueu o
quadril e o envolveu com as pernas.
— Oh, Deus. Joanna, não. — ele pediu, com o
olhar fora de foco e o corpo trêmulo.
— Por quê? O que.
— É muito. Não consigo. Oh. — Ele enterrou o
rosto na curva do seu pescoço, gemendo com
selvageria.
Joanna sentiu os tremores trespassando-o, e a
fúria do prazer dele a inundou. Sentiu-se completa a
ponto de querer chorar.
— Desculpe, Joanna — ele sussurrou, o corpo
relaxado pesando sobre o dela, as mãos ainda
entrelaçadas.
— Por quê?
— Porque eu. — Suspirou. Sustentando o peso do
corpo nos cotovelos, desvencilhou as mãos para
segurá-la pelo rosto. — Eu não queria terminar
dentro de você. — Fitou-a com intensidade
querendo que ela entendesse seus motivos.
Jurei a mim mesmo que nunca teria um filho
bastardo.
Joanna franziu o cenho ao perceber a extensão
do que tinham feito.
— Foi minha culpa, não? — Ela desenrolou as
pernas da cintura dele. — Foi porque eu.
— Eu adorei — ele a interrompeu com doçura,
acarinhando-a na coxa e lançando-lhe um sorriso
tranquilizador. — E essa é outra coisa que lamento:
terminei cedo demais.
— Cedo demais? — ela indagou, surpresa. Como
um homem podia terminar cedo demais? Terminava
quando terminava, oras.
Graeham afastou uma mecha do cabelo molhado
dela da face e beijou-a ali.
— Não esperei por você.
— Por mim? Quer dizer. — Confusa, Joanna
refletiu sobre esse novo conceito de um amante que
se preocupasse com sua satisfação. Prewitt a tomara
de todas as formas possíveis, mas nunca a tocara
com a intenção de lhe dar prazer. Depois que ele
adormecia, ela às vezes se tocava, a fim de chegar
ao alívio de que tanto necessitava, para em seguida
se sentir envergonhada e ainda mais solitária.
Sem sair de dentro do corpo macio, Graeham
elevou-se um pouco e afastou o roupão, expondo-
lhe os seios. Seus olhos se iluminaram quando ele a
espalmou, acariciando-a de uma forma que fê-la
ronronar como um gato e enviou uma centelha de
fogo ao ponto em que se uniam.
Graeham sentiu a reação imediata e respondeu
com um movimento de quadril, embora sua ereção
estivesse diminuindo. Continuou com os
movimentos gentis enquanto desfazia o nó do
roupão. Abrindo-o por completo, fitou-a como olhar
turvo de desejo com o qual ela já se habituara.
— Você é linda, Joanna.
— Deixe-me vê-lo também — ela pediu, puxando
a camisa. — Tire isto.
Graeham conseguiu tirar a peça e enxugou o
rosto antes de atirá-la longe. O peito e os ombros
cintilando com uma camada de suor a enfeitiçaram.
Joanna o acariciou como vinha desejando havia
semanas, saboreando os contornos dos músculos
definidos sob suas palmas.
Ele desceu uma das mãos pelo ventre dela, a
caminho da porção de pelos que se misturavam aos
seus, sempre se movendo num contínuo rítmico que
ela não conseguia deixar de acompanhar. No
começo o toque foi suave, enlouquecedora-mente
fugaz.
Joanna o segurou pelos ombros, estremecendo
sem notar. Somente quando ela implorou, Graeham
intensificou a carícia íntima, sondando e atacando,
mas recuando no último instante até que ela
começasse a se debater e gemer. Joanna jogou a
cabeça para trás.
— Oh, Graeham, por favor.
Com um gemido, ele se afundou nela, recuou e
voltou a investir, sem cessar as carícias. Mesmo
estando à beira do precipício, alguma parte do seu
ser notou que ele recuperara a ereção. Ele fazia
amor com ela novamente sem ter deixado seu corpo
após a primeira vez.
Joanna gritou quando chegou ao cume,
perdendo-se no prazer que explodiu dentro dela.
Quando seu êxtase arrefeceu, Graeham a beijou
com avidez, movimentando-se num ritmo crescente,
o suor os cobria, e as mãos impacientes a
acariciavam nos cabelos, nos seios, nos quadris.
Ela se agarrou a ele no segundo clímax
arrasador, os dedos enroscando-se nos cabelos,
acariciando as costas fortes. A energia violenta do
ato de amor fazia-a se sentir perversa, bela e cheia
de abandono.
Ao sentir que o prazer dela se acalmava,
Graeham a agarrou pelos quadris, com o rosto
afogueado, e um som, quase de dor, escapou da sua
garganta. Prontamente, retrocedeu, deixando-a
vazia. Ele investiu uma, duas vezes, depois ficou
imóvel, tenso e trêmulo, segurando-a com tanta
intensidade que ela mal conseguia respirar. Então
ele deixou-se cair sobre ela, ofegante.
Alguns minutos mais tarde, depois de recuperar o
fôlego, Joanna disse, com um sorriso tímido:
— Eu não sabia que os homens conseguiam isso:
fazer amor duas vezes seguidas.
Levantando o rosto da curva suave do seu
pescoço, Graeham riu.
— Nem eu. — E beijou-a profundamente.
— Nunca fiquei numa cama tão grande —
Graeham comentou mais tarde, naquela mesma
noite.
O quarto dela era muito bonito: arejado, claro e
convidativo. A cama era enorme, com um
confortável colchão de penas, cercada por cortinas
brancas. As velas brilhavam através do tecido,
lançando sombras nas curvas do corpo nu enrolado
no seu. Graeham se comprazia com o peso leve do
corpo feminino, com o frescor dos lençóis de linho e,
mais do que tudo, com a intimidade e o
companheirismo, sentimentos inéditos e
maravilhosos para ele.
— Foi louco ao insistir em subir — ela murmurou
de encontro ao peito largo. — Achei que nunca
conseguiria.
Ele passou os dedos pelos longos fios sedosos.
— Eu queria dormir com você.
— A vontade devia ser grande. Fez caretas de
dor em cada degrau.
Ainda havia alguns pedaços de palha no cabelo
dela. Graeham os retirou com cuidado e os jogou no
chão.
— Nunca dormi com ninguém antes.
— Nunca? — Ela se levantou sobre o cotovelo
para fitá-lo.
Ele sacudiu a cabeça.
— Nem mesmo. — Ela desviou o olhar, pousando
a cabeça no ombro forte. — Nem mesmo quando
esteve com outra mulher?
— E claro que já tive relações numa cama. — E
em muitos outros lugares, como atrás da lavanderia
de lorde Gui com as lavadeiras, na despensa com as
criadas, em pórticos escuros nas ruas de Paris com
prostitutas. Mas Joanna não ia querer saber desses
detalhes. — Depois de terminar eu ia embora.
— Suas amantes nunca pediram que ficasse?
— Não eram amantes, Joanna. Eram apenas
mulheres disponíveis.
— Prostitutas?
— Algumas vezes — ele respondeu, consciente
de que ela devia estar pensando em Leoda. — Na
maioria das vezes, não. Eram mulheres que se
davam livremente, sem querer nada em troca. Elas
nunca significaram nada para mim. O sexo era mais
uma. necessidade física do que qualquer outra coisa.
Não era como foi connosco lá embaixo. Aquilo foi.
— Mágico — ela completou.
Ele a abraçou e beijou-a nos cabelos.
— Sim. Você é uma feiticeira que me prendeu em
algum encantamento. Uma feiticeira linda e
devassa.
— Devassa! — Ela escondeu o rosto no peito
dele. — Não!
Ele riu da tolice dela.
— Devassa de uma boa maneira. Você ficou tão.
desenfreada nos meus braços, e livre. E eu também
me senti assim, você me fez sentir assim. Foi a
primeira vez que deixei de me sentir à parte, só.
Você me fez sentir como seu eu fosse um só com
você, como se juntos fôssemos um. Isso faz algum
sentido para você?
— Sim. Eu também me senti assim.
— Só lamento não ter sido mais gentil — ele
acrescentou ao se lembrar da reação dela quando a
penetrara pela primeira vez. Ela era tão apertada
quanto uma virgem, ou com o que ele imaginava
que uma virgem seria, já que nunca estivera com
uma. Jamais estivera com uma mulher cujo corpo se
ajustasse ao seu com tanta perfeição. Fora incrível,
quente e sensual, mas também o deixara nervoso.
— Eu a machuquei?
— Não.
Ele sabia que ela só dizia aquilo para não magoá-
lo.
— Deve fazer tempo que não partilha a cama
com um homem.
— Cinco anos. Peguei Prewitt em flagrante com a
mulher do vendedor de aves e o expulsei para o
depósito.
Graeham riu.
— Sempre imaginei o que ele tinha aprontado
para merecer tal destino. Não houve mais ninguém
desde então? Ele ficava longe por meses a fio, e
você ficou só?
— Eu era uma mulher casada.
— Só no papel.
— Mesmo assim seria adultério. Os homens se
mantinham longe porque eu era comprometida.
— Mas não continuaram longe quando enviuvou.
— Não, mas eu mantive a minha distância. A
maioria dos homens só quer uma relação
descomplicada com uma mulher experiente. Alguns
são casados, noivos. Mas só me querem por causa
do meu corpo. Desprezo a ideia de ser usada de tal
forma, fico nauseada só de pensar nisso.
Graeham sentiu um nó de arrependimento se
formar no estômago. Ele, para todos os efeitos, era
noivo de Phillipa. Mas Joanna não estava noiva
também? Pigarreando, disse:
— Sei a respeito de Robert de Ramswick.
— O que tem Robert?
Ele afastou uma mecha de cabelo dela, tentando
falar num tom calmo. Afinal, o pecado dos dois não
era o mesmo?
— Sei que ele a pediu em casamento.
— Aquele domingo, você ouviu.
— O bastante para entender quais eram as
intenções dele. — Graeham a abraçou de modo
possessivo e esfregou o nariz no cabelo perfumado.
— Detesto imaginá-la esposa dele, de qualquer
outro homem além. — Além de mim? Ele fechou os
olhos ante a impossibilidade da situação deles e da
dor que sabia ser inevitável. — Estou feliz por você
se casar com um homem de posses. Isto é, eu
quero ficar feliz por você. Estou tentando ficar feliz
por você, mas.
— Não estou noiva, Graeham. — Ela rolou de
lado, enroscando as pernas nas dele, com os seios
sobre o peito largo, os olhos fixos nos dele. — Nem
de Robert, nem de ninguém.
— Mas ele a pediu.
— E eu recusei.
— Mesmo? — Por melhor que fosse a novidade,
também era surpreendente. Robert era jovem, rico,
bonito e, a julgar pelo que fizera por Alice, um
homem de caráter. Casando-se com ele, Joanna se
livraria da penúria.
— Porque fez isso?
— Além do fato de eu não amá-lo?
— Isso não a deteria. — Uma coisa que Graeham
aprendera a respeito de Joanna era que ela era uma
mulher pragmática, que fazia o que tinha de ser
feito. Aquela era uma das muitas qualidades que
admirava nela.
— É verdade — ela admitiu —, mas o fato é que
Robert ama a prima. Ele me fez o pedido porque
precisava de uma mãe para as filhas e achava que
os pais morreriam de desgosto caso se casasse com
Margaret. Fico feliz em dizer que ele, finalmente,
recobrou o juízo. — Ela sorriu de um modo que a
deixava com a aparência de uma garotinha
satisfeita. — Eles ficaram noivos formalmente numa
cerimônia na capela de Ramswick alguns dias atrás
e se casarão no início de agosto.
— E os pais dele?
— Robert estava certo ao achar que se oporiam,
mas Hugh me disse que eles foram à cerimônia e
pareciam bem saudáveis. — Joanna franziu o cenho.
— Como pôde pensar que eu estava noiva de Robert
se eu. se nós.
— Imaginei que você tivesse se deixado levar
pelo calor do momento.
Ela sorriu com sarcasmo.
— A meu ver, a paixão é algo que precisa da
nossa permissão para nos deixar ensandecidos.
Ele balançou a cabeça, rindo.
— Às vezes chego a pensar que você é
pragmática demais.
— Eu o quis hoje à noite. Eu o quero desde o dia
que chegou.
— É mesmo? — Graeham indagou, absurdamente
feliz por saber que a paixão que o atormentava nas
últimas semanas não era um sentimento unilateral.
— Contudo, não importa o quanto eu o
desejasse, eu nunca teria me deixado levar se
tivesse aceitado a proposta de Robert. A infidelidade
para com um noivo também é considerada adultério.
A Igreja diz isso, e é assim que eu penso. É traição.
Graeham sentiu a culpa lhe morder as entranhas.
Sempre abominara a ideia da infidelidade, não pela
condenação na Igreja, mas por causa das
circunstâncias do seu nascimento. Quando proferisse
os votos no altar, honraria a mulher que estivesse
com seu anel, esquecendo-se de todas as outras.
Achava que seria fiel à noiva antes mesmo de ir
para o altar. Era a coisa certa a fazer, e ele era um
homem honrado. No entanto, nem pensara em
Phillipa quando tirara o roupão de Joanna e a
tomara no chão da saleta.
E claro que havia circunstâncias atenuantes.
Nunca encontrara Phillipa. Não sentia nada por ela,
não havia nenhum sentimento de devoção que o
impedisse de ir para a cama com outra mulher. O
compromisso deles não fora formalizado, não havia
contrato assinado, nenhuma cerimônia de noivado
tinha sido realizada. Entretanto, aquelas não eram
meras formalidades? Afinal, ele e Phillipa estavam
prometidos um para o outro.
Fazer amor com Joanna era, de fato, uma forma
de traição, de espírito se nada mais. Sentia uma
ponta de culpa, mas não vergonha. Como poderia se
arrepender de ter partilhado seu corpo e sua alma
com uma mulher que amava tão profundamente,
tão.
— Deus. — Não podia amá-la, não devia.
Todavia, sim, a amava. Como poderia ser de outro
modo? Uma parte sua se alegrava de ter encontrado
sua alma gêmea, outra parte, aquela que ansiava
por um lar, sentia-se aterrorizada com essa
mudança no curso da sua vida.
Aquilo não poderia terminar bem para nenhum
dos dois. Só poderia ficar com Joanna se desistisse
de Phillipa e da propriedade em Oxfordshire,
abandonasse Beauvais e voltasse para a Inglaterra,
tornando-se um soldado sem terras, sem emprego,
sem futuro. Teria Joanna, pois uma mulher como ela
estaria disposta a se estabelecer junto a um homem
sem perspectiva, mas ele perderia toda a esperança,
seus sonhos e anseios.
— O que aconteceu, Graeham? — Apoiada num
cotovelo, Joanna o afagava no rosto, os seios
encostados no seu peito.
Ele fechou os olhos, imensamente emocionado só
por ouvir seu nome nos lábios dela.
— Não é nada — ele mentiu. — Continue me
tocando e tudo terminará bem.
Ela mudou de posição, beijou-o e acariciou-o. Os
movimentos suaves dos seus dedos lentamente
reacenderam o desejo. Ele enrijeceu, e Joanna se
colocou sobre ele, guiando-o para sua entrada
humedecida. Ela jogou a cabeça para trás e gemeu,
conforme ele a invadia.
Joanna estava encantadora e provocante fazendo
amor com ele daquela forma, mas era muito
perigoso.
— Você tem de me deixar ficar por cima, ou não
conseguirei me afastar a tempo.
— Deixe comigo — ela disse. — Só me diga
quando.
— Que mulher habilidosa você é — ele disse
pegando-a pelos cabelos e baixando-a para beijá-la.
— Como consegui viver sem você?
— Você é feliz? — ela perguntou, movendo-se
sensualmente, os longos cabelos formando uma
cortina entre eles, o estrado da cama rangendo.
Um dia aquela tinha sido a sua "pergunta
impertinente". Agora era a dela. Graeham sorriu e
acariciou-a nas costas, nos quadris, nas nádegas
arredondadas que subiam e desciam, levando-o para
cada vez mais perto do prazer total.
— Sim. Delirantemente feliz.
— Seu eu pudesse ficar aqui para sempre, assim,
com você, sem passado, nem futuro, só nós dois,
acho que seria feliz para sempre.
— Eu também — Graeham disse, desejando do
fundo do coração que isso fosse possível e
perguntando-se, pela enésima vez, como tudo tinha
ficado tão maravilhoso e aterrorizantemente
complicado ao mesmo tempo.

CAPÍTULO V

— Gostaria de lhe perguntar uma coisa, Ada —


Joanna disse ao pegar a última colherada do mingau
que preparara para a nova amiga. — É a respeito do
seu marido. — Ela hesitava em contar o que sabia à
enferma, já que ela pouco podia fazer por estar
entrevada à cama. Um pouco antes da visita
matinal, tinha entregado uma moeda a um menino
para que ele entregasse o bilhete de Graeham a
respeito da suspeita de assassinato ao delegado
mais próximo de West Cheap.
Ada engoliu com dificuldade, tossiu e disse:
— Não posso lhe dizer nada a respeito de Rolf, já
que ele não vem me ver desde a quaresma.
— Sim, mas quando ele ainda a visitava, ele
parecia estranho? Diferente?
— A meu ver Rolf sempre agiu de modo
estranho. Por quê?
Joanna se ocupou em guardar os utensílios na
cesta e respondeu com cautela:
— Só acho estranho que não veja seu marido há
tantos meses. — Pensando em Graeham,
acrescentou: — Eu detestaria essa situação.
Os dois tinham passado a noite acordados,
conversando e fazendo amor. Muitas vezes haviam
decidido dormir, mas um deles acabava comentando
algo que levava a uma nova conversa e, enquanto
falavam, ele a acariciava, e ela não conseguia deixar
de retribuir. Como resultado, Joanna estava mais
cansada e feliz do que em qualquer outra ocasião.
— Achei que você estivesse acostumada a ficar
sem seu marido. A semana passada mesmo me
disse que não sentia a falta dele. Eu sinto o mesmo
por Rolf.
As duas se entreolharam e riram, mas o esforço
foi demais para Ada, que acabou repousando a
cabeça nos travesseiros. Joanna lamentava ver uma
pessoa com a qual passara a se importar tanto
definhar daquela forma.
— Quer água? — ofereceu.
— Não, é difícil de engolir. Eu gostaria que lesse
para mim, se puder.
Joanna leu mais tempo do que de costume,
apreensiva em deixá-la só, mesmo que não
estivesse correndo perigo imediato, já que o tônico
só seria entregue mais tarde. Pouco depois a
enferma fechou os olhos, mas antes de adormecer
por completo disse:
— Houve um episódio. Na primavera, depois da
Páscoa, mas antes de Pentecostes. Naquela tarde
Aethel subiu e disse que Rolf a mandara me trocar
para uma viagem e arrumar meus pertences, pois
alguém viria me buscar.
Fora quando Graeham tinha chegado para levar
Ada embora.
— Fiquei surpresa, mas depois imaginei que meu
pai tinha ordenado a alguém que me apanhasse. Eu
fiquei muito animada com a perspectiva de deixar
esta casa, ainda que soubesse que uma viagem
seria uma prova muito difícil nas minhas condições.
Sentei-me perto da janela, mas as horas passaram e
ninguém apareceu.
Joanna sentiu-se tentada a contar todos os
detalhes daquele dia, porém sabia que ainda não era
hora. Sem falar que aquela revelação de Ada
levantava novas dúvidas.
— Esperei até depois do toque de recolher — Ada
continuou —, contudo Aethel subiu e me convenceu
a me trocar e me deitar. Nunca descobri o que
aconteceu.
Ada estava trêmula, com frio novamente. Joanna
se levantou e cobriu-a com outra manta.
— Preciso ir agora, mas volto mais tarde.
— Vai voltar? — Ada parecia surpresa e contente
ao mesmo tempo. A moça devia se sentir muito só.
— Sim. Agora, descanse. E lembre-se: não coma
nada que lhe oferecerem, nem beba.
— Já disse isso mil vezes hoje — Ada replicou
com um sorriso indulgente.
— Nem o tônico, mesmo que seja Aethel.
— Eu sei, eu sei. O que está acontecendo,
Joanna?
— Explicarei mais tarde, quando tudo estiver
resolvido. Volto assim que puder.
Quando chegou em casa, Joanna encontrou
Graeham conversando com um homem barbudo
chamado Nyle Orlenge, o subdelegado enviado em
resposta ao chamado.
— Bom dia, senhora. — Ele foi direto ao ponto. —
Se o sargento estiver correto, parece que a vida de
uma mulher corre perigo, e vocês acreditam que
seja obra do marido e da amante?
— Detesto pensar que Olive esteja metida nisso
— Joanna disse —, mas é o que tudo indica. Ela não
é má pessoa, mas é jovem e impressionável.
— Ela parece estar dominada por Le Fever, ele a
está forçando a fazer isso — Graeham completou.
— É possível — Joanna disse.
— Possível? — Nyle inquiriu enquanto Graeham a
olhava surpreso. — O sargento parecia certo ao
acusar o homem de tentativa de assassinato.
— Aconteceu alguma coisa que eu não sei? —
Graeham perguntou.
Joanna relatou o que Ada acabara de lhe contar.
— Se ele tinha intenção de se livrar dela, porque
mandou prepará-la para a viagem? As peças não se
encaixam — Graeham concluiu.
— Deixem que cuido disso — declarou o policial.
— Porém, tenho de agir com cautela. Le Fever é um
homem influente, e não podemos fazer acusações
sem provas.
Graeham pegou as ervas de cima da mesa e
comentou:
— Por certo algum outro farmacêutico saberá
identificar estas ervas.
— Sem dúvida. No entanto, mesmo que elas
sejam venenosas, não há como provar que Le Fever
esteja por trás de tudo. O que temos de fazer é
atravessar a rua e interrogar essa Olive. Uma
confissão facilitaria meu trabalho e, se ela implicar
Le Fever, tanto melhor. — Nyle abriu a porta. —
Vamos?
— Acha que consegue atravessar a rua? —
Joanna perguntou a Graeham ao ver que ele tinha
calçado a pesada bota pela primeira vez em seis
semanas.
— Consegui subir as escadas, não consegui? —
Olhando para a porta, viu que o policial estava de
costas, por isso, inclinou-se e roubou um beijo
rápido de Joanna. — Como frei Simon sempre dizia:
querer é poder.
Graeham podia ser forte, mas até chegar à
farmácia apoiado nas muletas e em Joanna, o
subdelegado já interrogava Olive.
— Sra. Joanna! — a moça exclamou. — Este
homem diz que poderá me prender. Sabe. — As
palavras se perderam quando ela reconheceu
Graeham.
— Lembra-se de mim? — ele perguntou.
— A-acho que sim. Não esteve na casa do sr. Le
Fever há algum tempo? Ia levar a sra. Ada embora.
O que está acontecendo? Não fiz nada.
— Sabemos que não queria, Olive — Joanna
assegurou.
— Não queria o quê? — Olive perguntou. Nyle
mostrou as ervas e perguntou:
— Reconhece isso?
— Deus meu! — Pálida, ela pôs a mão no
estômago. — Estou ficando enjoada.
Joanna se aproximou e ajudou-a a se sentar.
— baixe a cabeça e respire fundo.
— Eu não queria, mas ele disse que não havia
saída — Olive disse com a cabeça entre as mãos.
— Sabemos disso, Olive. — Joanna lhe dava
tapinhas nas costas. — Ele a convenceu a fazer isso,
o que será um atenuante. Talvez leve algumas
chibatadas, mas acredito que se livrará da forca, já
que ainda.
— Forca?! — Olive exclamou com os olhos
lacrimejantes. — Não sabia que enforcavam as
mulheres por isso. Não tive a intenção, eu não
queria. Mas ele disse que se fôssemos adiante e
tivéssemos o bebê, ele jamais poderia se casar
comigo por causa do escândalo.
Joanna olhou para Graeham e Nyle, que
pareciam tão confusos quanto ela. Ajoelhando-se
diante da moça, perguntou:
— Está grávida de Le Fever?
Olive fechou os olhos e pôs a mão na boca, o
rosto coberto por uma camada de suor.
Graeham passou uma bacia para Joanna, que a
colocou ao alcance de Olive bem a tempo. Quando a
moça começou a se sentir melhor, limpou o rosto e
perguntou:
— Não é por isso que querem me prender?
Porque eu estava tentando abortar?
— Olive, conte-nos o que aconteceu — Joanna
pediu. — Desde o começo. Você e Le Fever. Há
quanto tempo?
— Desde a época do Natal, quando a esposa dele
adoeceu. Comecei a levar o tônico, e ele passou a. a
me notar.
— Ele a seduziu? — Joanna perguntou com
suavidade.
— Eu tentei resistir porque ele era casado e
porque eu amava Damian. E eu não conseguia
acreditar que um homem como ele pudesse ver
algum atrativo em mim. Ele tem influência, dinheiro,
é bonito. Rolf não desistiu, disse que me amava, que
precisava de mim. Quando a mulher dele começou a
piorar, acho que por causa da bile negra, Rolf disse
que ela estava morrendo e que se casaria comigo. —
Olive balançou a cabeça. — Eu permiti que ele
fizesse o que queria comigo. E agora carrego esse
bebê no meu ventre e estou arruinada.
— Não entendo — Graeham comentou. — Ele
disse que não poderia se casar se você tivesse o
bebê?
— Sim. Um homem na posição dele jamais
poderia se casar com uma moça com um filho fora
do casamento, mesmo sendo dele. Rolf me fez jurar
que eu usaria as ervas para me livrar da criança.
— Quer ter o bebê? — Joanna perguntou.
— Sim, mas se a senhora não tivesse aparecido
no meio da noite, eu teria ido em frente. Quando vi
que tinha levado as ervas embora, refleti e vi que
assim era melhor. A senhora evitou que eu
cometesse um terrível pecado. Depois que saiu,
fiquei me perguntando o que a senhora faria no meu
lugar. E tão sábia, sabe sempre o que fazer. Pensei
que a senhora teria o bebê mesmo se não tivesse
marido, levantaria a cabeça e daria o melhor de si. É
isso o que eu vou fazer. — Olive se empertigou e
encarou Joanna com um sorriso fraco. Joanna
apertou a mão dela.
— Só que agora vou ser presa por querer me
livrar do bebê. — Olive se lamentou.
— Isso não é motivo para condenar uma mulher
— Joanna garantiu.
— Mas ele — Olive apontou para Nyle — me disse
que veio aqui para me prender e está segurando as
ervas, então pensei que.
— Houve um engano. Todos nós nos enganamos
— Joanna explicou.
O policial deu um passo à frente.
— Não necessariamente. Vocês dois parecem
aceitar a palavra dela, mas no meu ofício aprendi a
olhar tudo com ceticismo.
— Ela é inocente — Graeham a defendeu. — É
um tanto impressionável, falta-lhe juízo, mas não
passa de uma menina.
— É evidente que ela não é uma assassina —
disse Joanna.
— Assassina! — Olive exclamou.
— Quando Le Fever lhe propôs adulterar o tônico
da esposa? — Nyle a acuou. — Foi antes ou depois
de se tornar amante dele?
— Estou passando mal de novo. — Olive fechou
os olhos.
— Deixe-a em paz — Joanna intercedeu. — Ela
não envenenou Ada.
— Talvez, mas pensem bem. Uma jovem grávida,
desesperada para casar com o pai da criança. A
moça é aprendiz na farmácia. A esposa está
acamada. Só bastava temperar o tônico com algum
ingrediente que a envenenasse gradualmente.
Quando fosse o momento certo, bastaria dar uma
dose letal e ninguém perceberia. Talvez nem Le
Fever saiba disso. Quem sabe ela não armou esse
plano sozinha?
— Como pode dizer tal coisa diante desta jovem
trêmula e desesperada? — Joanna perguntou.
— Senhora, duvidaria das coisas que vi nos meus
vinte anos de carreira. Vi muitas pessoas jurarem
inocência para em seguida voltarem a matar.
— Não fiz nada! Eu queria me casar com Rolf,
mas jamais perderia minha alma cometendo um
assassinato — Olive afirmou, levantando-se.
Mostrando as ervas, Nyle sentenciou:
— Se isto for mesmo o que diz que é, e não
algum tipo de veneno, estará livre. Vou mandar
analisá-las. Nesse meio tempo, será levada para a
cadeia.
— Cadeia? — Joanna exclamou. — Não pode
levá-la.
— Ela é suspeita num caso de tentativa de
homicídio. — Nyle sacou as algemas.
— Não precisa disso — Graeham interferiu. — Ela
o acompanhará sem se opor, não é, Olive?
— Sim, eu prometo. Por favor, não me algeme.
— Está bem, mas não tente nenhuma gracinha.
Não hesitarei em usar de força.
— E quanto a Le Fever? — Graeham perguntou.
— Não pode prender Olive e não fazer nada com ele.
— Vou interrogá-lo, fique certo disso. Ele mora
naquela casa azul e vermelha, não?
— Isso mesmo, mas a esta hora o encontrará no
mercado de seda. Ele passa as manhãs lá.
— Irei para lá assim que deixar esta moça na
cadeia.
Joanna abraçou Olive e garantiu:
— Tomarei providências para que saia de lá antes
do anoitecer.

Depois que todos se foram, Elswyth afastou a


cortina atrás da qual ouvira tudo e entrou na loja.
O local estava escuro, devido às janelas e porta
fechadas, mas, pelas frestas das persianas, fachos
de luz entravam, destacando o pó em suspenso.
Elswyth agitou as mãos, para frente e para trás,
fazendo com que ele se movimentasse numa dança
lenta.
Deteve o olhar nos frascos azuis vindos de
Veneza, que tinham lhe custado uma fortuna, e
lembrou-se do dia em que a viúva do mercador
tentara roubar um. Ela, no entanto, havia sido mais
esperta e detivera Joanna Chapman. Contou e
recontou os frascos para se certificar que estavam
todos lá. A ladra vadia nunca conseguiria levar um
para casa.
Olhou ao redor e viu que a loja estava limpa,
Olive limpara até mesmo as cinzas sob o caldeirão.
Pegou um dos frascos azuis e o atirou no fogo
morto. Um atrás do outro, quebrou todos os frascos.
Não importava o que pudesse acontecer, Joanna não
ficaria com nenhum deles.
Elswyth ficou arfante porque destruir trinta e
quatro frascos de vidro veneziano era uma tarefa
extenuante, e não porque estivesse triste ou
aborrecida. O tempo da ira passara. O ódio
borbulhante que sentira no último ano era coisa do
passado, tinha sido substituído pela certeza fria do
que precisava ser feito. A decisão tinha se formado
na sua cabeça ao ouvir a filha chorando por causa
do maldito canalha que plantara sua semente na
barriga dela.
Elswyth pegou uma folha e pena e se pôs a
trabalhar. Molhando a ponta da pena na tinta,
escreveu na bela letra cursiva da qual sempre se
orgulhara:
Olive,
Ficará se perguntando porque fiz o que fiz. E por
isso que estou escrevendo esta carta antes de agir.
Thomas Harper, sentado no barril diante da
cozinha de Joanna, inalou o cheiro do mingau
queimando e se perguntou onde ela estaria. Ela e o
sargento, pois, quando espiou pelas frestas da
persiana do depósito, viu que o cômodo estava vazio
pela primeira vez desde que o soldado passara a
morar lá.
Quando os sinos da igreja soaram as Tércias, a
porta de trás da casa azul e vermelha se abriu, a
criada rechonchuda cumprimentou o criado que
estava trabalhando no estábulo e saiu pelo beco.
Já passava muito do horário costumeiro em que
tomava o desjejum, e a fome lhe corroía o
estômago. Estava tentado a entrar na cozinha, pois
sabia que a dona da casa não se importaria,
sabendo que sua doença não era tão facilmente
contraída como muitos imaginavam. Só o que o
segurava eram os olhares atentos da esposa do
cambista que cuidava do jardim. O fato de alguém
vê-lo entrar ali o levaria à morte.
Uma lufada de riso reverberou por seu peito. Não
deixava de ser patético que uma criatura como ele
ainda temesse a morte. Vinha conseguindo se virar
por conta própria, apesar das ulcerações em boa
parte do corpo, mas o inevitável dava os primeiros
sinais: estava ficando cego do olho bom. Logo a
escuridão o envolveria por completo, e ele ficaria
totalmente dependente. Portanto, porque se
importar com a morte?
Desgostoso com o momento de autopiedade,
fechou os olhos e pintou na mente a imagem da
amada de tantos anos atrás. A mulher que mesmo
estando somente na sua imaginação conseguia
confortá-lo.
— Thomas.
Abrindo os olhos, viu-se diante de Joanna
Chapman e Graeham Fox.
— Senhora, Graeham — cumprimentou-os. —
Acho que esta é a primeira vez que o vejo do lado
de fora, sargento. Não tinha percebido como seu
cabelo é avermelhado.
— E lindo à luz do dia — Joanna disse, passando
os dedos pelos cabelos de Graeham.
O sargento sorriu para ela de modo tão ardente
que Thomas sentiu como se estivesse invadindo a
intimidade deles. Interessante.
— Como está se sentindo hoje, Thomas? —
Graeham perguntou.
— Nunca estive melhor. Bem, talvez eu esteja
exagerando.
Graeham deu um sorriso leve e bocejou. Joanna
também.
Muito interessante.
— O mingau está começando a cheirar — Joanna
comentou ao entrar na cozinha. — Terei de jogá-lo
fora, mas seria uma pena desperdiçar a parte de
cima. Gostaria de comer um pouco, Thomas?
Thomas olhou para o céu e riu. Ainda achava
engraçado o modo como ela fazia parecer a caridade
dela um favor que ele lhe faria.
— Eu não me importaria em ajudá-la, senhora.
Enquanto aguardava, viu que a porta da casa azul e
vermelha voltou a se abrir. Dessa vez era o
mercador que saía. Graeham se encolheu na soleira
da porta quando o homem se aproximava da rua
Milk.
— Não quer ser visto, sargento? — Thomas
perguntou.
— Não por esse homem.
Algo na expressão séria do sargento evitou que
Thomas fizesse mais perguntas.
Assim que o dono da casa se afastou, a porta se
abriu mais uma vez, e a cozinheira saiu, tirando o
avental e ajeitando os cabelos. Olhando para os
lados para se certificar de que o patrão já tinha ido,
ela entrou no estábulo para se encontrar com
Byram.
— Eles deveriam procurar um lugar mais discreto
para se encontrar — Graeham disse. — Um dia
desses vão acabar sendo pegos em flagrante.
— De acordo com Publilius Syrus — Thomas citou
—, foi Deus que decretou que o amor e a sabedoria
são opostos que não se atraem.
— E bem verdade. — Graeham soou melancólico.
— O que é verdade? — Joanna apareceu com o
mingau.
Parecendo desconfortável por algum motivo,
Graeham disse:
— Thomas disse que pareço cansado, e eu disse
que era verdade.
— Deveria aproveitar para descansar. — Joanna
bocejou de novo. — Eu faria o mesmo, mas prometi
a Ada que iria vê-la de novo. — Tocou na mão de
Graeham depois de servir o mingau. — Vá dormir
um pouco.
Ele a acariciou com os nós dos dedos.
— Está tão cansada quanto eu.
— Vou dormir depois. — passou os olhos por
Thomas e pela casa de Le Fever — que tudo estiver
mais tranquilo.
— Não gosto de vê-la naquela casa, sabendo
como andam as coisas — Graeham disse.
— Le Fever nem está lá.
— Mesmo assim, fique atenta.
— Você se preocupa demais. — Joanna voltou
para a cozinha para levar a concha e depois foi para
a casa de Ada, entrando sem bater.
— Se eu não estivesse com tanta fome —
Thomas disse antes de colocar uma colherada na
boca —, eu teria um milhão de perguntas para lhe
fazer.
— Então fico feliz que esteja com fome. — Com
um sorriso e um aceno, Graeham se dirigiu para o
interior da casa.
Thomas terminou de comer e, depois de beber
água e lavar a tigela, recostou-se sem ter mais nada
para fazer. O pior da sua doença era, talvez, não ter
nada com que se ocupar. Por fim, estando cansado
de descansar, pôs-se de pé e foi para a janela do
depósito para se despedir de Graeham, mas ele já
ressonava.
— Tenha doces sonhos, sargento. — Ele
claudicou pelo pátio em direção ao beco, mas
perdeu o equilíbrio quando uma mulher esbarrou
nele.
O que mais temia, o contato humano, aconteceu,
e ele ficou esperando que alguém desse o alarme. A
mulher, no entanto, nem o notara. Caminhava com
passos determinados, apesar da aparência
descomposta: estava desgrenhada, descalça e
parecia vestir somente uma camisola. E bem suja
por sinal. Levava um odre de vinho atravessado pelo
peito e empunhava uma vassoura de palha, de
ponta cabeça, como se fosse um cetro.
Thomas viu quando ela cruzou o pátio em direção
ao portão de Le Fever, entrou e parou, olhando ao
redor, como se estivesse procurando por alguma
coisa. O olhar se iluminou ao ver a porta do
estábulo, e ela seguiu naquela direção.
Palha. Precisava de palha.
Elswyth viu um punhado do lado de fora do
estábulo e foi apanhar. Próximo à porta viu que
havia palha mais fresca do lado de dentro, ao lado
de um rastelo. Entrou e, ao ouvir um arfar, virou-se
e viu a cozinheira e o criado de Le Fever se
divertindo num monte de feno.
Imaginou Olive e Le Fever fazendo o mesmo,
talvez ali mesmo, e sentiu-se tomada pelo ódio. Só
por um ápice, pois se lembrou que o momento para
a raiva havia passado. Agora era hora de agir.
Ao pegar o feno, ela esbarrou no rastelo, e o
casal se sobressaltou com o barulho.
— Byram! Há alguém aqui!
Elswyth correu para a porta, saiu e trancou-a.
— Ei! — Byram chamou. — Volte aqui! O que
pensa que está fazendo?
Elswyth levou a palha para a casa vermelha e
azul e entrou, consciente de que havia duas pessoas
observando seus passos: o leproso e a esposa do
cambista.
A casa estava escura e deserta, o que era um
ótimo presságio: ninguém a atrapalharia. Acendeu a
palha da vassoura no fogão e a levantou como se
fosse uma tocha. Seguiu até a despensa, perto da
escada de serviço, e despejou um pouco da palha
que carregava, ateando fogo em seguida.
Depois foi para a frente da casa, subiu a outra
escada e ouviu a voz de uma mulher. Joanna
Chapman recitava trechos de um salmo: "Ninguém
que pratica o logro, permanecerá na minha casa,
ninguém que pronuncia mentiras continuará na
minha presença."
Reconhecendo o salmo, Elswyth sorriu, contente
em ver que refletia perfeitamente o que carregava
no seu coração. Outro bom presságio!
Deixando cair o resto da palha na porta do
terceiro andar, Elswyth ateou fogo novamente,
assegurando assim que as duas saídas estivessem
bloqueadas.
Em poucos minutos, o fogo consumiria todo o
telhado, a casa estaria tomada por fumaça, o colmo
queimado cairia no solário do terceiro andar, as
vigas cederiam, haveria gritos e pranto de dentro do
cômodo. Elswyth lamentava não poder ficar para
assistir, mas tinha um plano a seguir.
Saiu pela porta da frente, limpou as mãos e,
ignorando os olhares, seguiu para a rua Newgate a
caminho do mercado de seda.
Graeham estava sonhando. Era um sonho
maravilhoso, pois nele Joanna era sua esposa e
estava grávida. Nunca estivera mais contente na sua
vida.
Parecia que moravam naquela mesma casa, mas
pela janela, em vez da confusão da rua Woods, via
os campos verdejantes da propriedade em
Oxfordshire.
— Graeham! — Uma voz distante o chamava.
Protegendo os olhos do sol, Graeham viu que era o
barão Gui quem o chamava. O que fazia sentido,
pois, no sonho, Joanna era filha dele. Casando-se
com ela, adquirira a posse das terras. Era perfeito,
não precisava se contentar com Phillipa, podia ter
Joanna.
— Graeham, é a casa de Le Fever! — lorde Gui
exclamava.
— Besteira, ela é minha. — Graeham se virou
para admirar a casa da fazenda e ficou assombrado
ao ver que estava pintada de azul e vermelho.
Saía fumaça pela chaminé, e Manfrid estava
sentado no telhado, miando. Estranho, o gato nunca
miava.
— Graeham! Venha rápido! — A voz insistente de
lorde Gui parecia mais distante.
Ele, entretanto, não queria sair. Queria continuar
na cama com Joanna, escondido pelas cortinas
brancas. Ela o beijava e. Miaaau!
Manfrid pulou no seu peito e o cutucou com o
focinho.
— Vá embora! — Ele entreabriu os olhos,
pesaroso em despertar. Sentou-se e apanhou o gato
pelo cachaço, colocando-o no chão. — Pelo amor de.
— Miaaau! — Manfrid subiu na janela. Graeham
passou os dedos pelos cabelos, zangado por ter o
sonho interrompido na melhor parte. Esticou-se para
fechar a janela e ficou estático.
Fumaça subia pelo teto da casa de Le Fever, e as
chamas se espalhavam pela cobertura de colmo.
Joanna estava lá!
— Não! — ele gritou.
Apanhando as muletas, saiu o mais rápido que
pôde. Rose Oxwyke, parada no jardim, fitava a casa
em chamas de boca aberta.
— Joanna! — Graeham gritou.
— Graeham! Graças a Deus! — Thomas, sujo de
fuligem, saía da casa com um balde vazio. — Elas
estão presas no terceiro andar — disse ao encher o
balde no poço. — As escadas estão bloqueadas, e
elas não podem sair pelas janelas.
— Joanna!
Ouviram murros na porta do estábulo.
— Deixem-nos sair!
Graeham apanhou o balde das mãos de Thomas
e correu para a casa gritando:
— Abra a porta do estábulo. Byram pode nos
ajudar.
— Não entre aí! — Rose gritou do jardim. — Não
pode ajudá-las. Acabará morrendo também!
O pânico tomou conta de Graeham quando ele
entrou no corredor enfumaçado. A parte de trás
parecia mais tomada pelo fogo e pela fumaça, então
ele seguiu até a frente da casa.
As escadas da frente também estavam
incendiadas, e ele tentou deter o fogo com a água.
As labaredas cederam um instante, mas se
reavivaram em segundos.
— Graeham! — Thomas gritou da parte de trás.
— Estou aqui na frente! — Apertando os olhos,
ele viu uma cortina de couro. Agarrou-a e cobriu o
fogo com ela, tentando abafar as chamas. — Onde
está Byram?
— Ele não quis entrar, disse que seria suicídio.
— A outra escada está mais bloqueada, esta é a
nossa única chance. — Graeham voltou para o
cômodo do qual tinha arrancado a cortina e viu que
era um depósito cheio de prateleiras com rolos de
tecidos. Aquilo teria de servir.
— O que está fazendo? — Thomas perguntou
enquanto tentava abafar as chamas com os pés.
— Thomas, saia daí, suas pernas estão pegando
fogo!
— Não sinto nada — o leproso disse numa voz
distante e controlada.
— Venha, me ajude. — Jogou uns rolos de
tecidos nas escadas. Os rolos eram grossos o
bastante para abafar as chamas.
Aos poucos, os dois homens começaram a subir,
o fogo abafado pelos metros e metros de tecido.
Graeham amaldiçoava a perna quebrada que fazia-o
avançar devagar. No último lance, os degraus
estavam obstruídos por vigas caídas na diagonal.
— Joanna! — Graeham gritou entre acessos de
tosse.
— Graeham? — Ele mal pôde ouvir a voz
chamando-o através da porta fechada e do barulho
da casa em chamas.
— Deus! — Ela estava viva!
— Graeham, vá embora! Não pode nos ajudar!
— Não vou deixá-la aqui. Estou subindo!
Outra viga caiu diante dele, espalhando faíscas.
Graeham retrocedeu um passo por causa do calor e
por saber o que estava prestes a enfrentar.
Tinha de limpar o caminho para chegar até a
porta do quarto. Havia três vigas e o fogo que
lambia as paredes, o chão. Se conseguisse chegar
até o quarto, teria queimaduras em todo o corpo.
— Você morrerá — Thomas disse.
— E provável. — Mas Joanna viveria, e Ada
também. Graeham, contudo, fixava o pensamento
em Joanna e num modo de conseguir salvá-la.
Respirou fundo para criar coragem, o que provocou
novo acesso de tosse.
— Nunca conseguirá chegar até lá. A dor vai
detê-lo.
— Preciso tentar! Joanna está lá! — ele gritou.
— Sei disso. — Thomas tirou o chapéu de palha,
atirou-o pela escada e cobriu a cabeça com o capuz
com um olhar determinado.
Graeham agarrou o ombro do leproso.
— O que você.
— Eu não sinto dor, nem nas pernas, nem nos
braços. Estou ficando cego, sargento — ele disse tão
baixo que Graeham quase não o ouviu. — Deseje-
me boa sorte.
— Boa sorte, amigo — ele disse, apertando o
ombro de Thomas.
Thomas hesitou só um segundo antes de investir
contra o fogo.
Graeham não conseguiu olhar, fechou os olhos e
fez o sinal-da-cruz. Depois os abriu novamente e viu
que Thomas já derrubara a primeira viga. Tal qual
um fantasma envolto pela fumaça, ele avançava e,
com as mãos sem proteção, agarrava a segunda
viga. O manto começava a pegar fogo.
— Thomas!
As chamas subiam pelas pernas, espalhando-se
pelas ataduras que envolviam as chagas. Graeham
murmurou uma prece quando o leproso chegou ao
último degrau e abriu a porta.
Thomas cambaleou para dentro do quarto, uma
tocha humana. Ele retirou o manto, mas as roupas
já pegavam fogo. Graeham viu no meio à fumaça
duas figuras envoltas em cobertas. Joanna se
descobriu e tentou abafar as chamas que envolviam
Thomas, caído no chão.
Graeham prendeu o fôlego e partiu escada
acima, protegendo o rosto com os braços. Até
chegar ao quarto, a camisa estava pegando fogo.
Retirou-a apressado, contente por ter as calças
intactas.
— Graeham, seu cabelo! — Joanna arrancou o
véu e cobriu a cabeça dele, extinguindo o fogo.
Nesse instante, depois de um rugido, parte do
telhado caiu. Não havia tempo a perder. Olhando ao
redor, Graeham viu que o colchão ainda estava
intacto. Ele foi até o canto do quarto, agarrou o
colchão e o atirou pelas escadas.
— Vamos! Depressa!
— Thomas não pode andar, nem Ada! — Joanna
disse.
— Eu consigo andar, sim — afirmou a frágil, mas
determinada, Ada.
— Joanna, ajude-a — Graeham disse ao tomar
Thomas nos braços. — Eu cuido de Thomas.
— Deixe-me — o leproso gemeu, todo queimado.
— Não posso fazer isso, amigo. — Graeham
incitou Ada e Joanna a seguirem em frente,
passando pelo vão e sobre o colchão até os últimos
degraus.
Atrás deles, o teto do quarto cedeu num baque
ensurdecedor. Logo baixo, ouviram vozes e barulho
de água. Os vizinhos tinham se juntado e tentavam
deter o incêndio.
Os homens os ajudaram a sair, levando-os para o
meio da rua. Cambaleantes, respiraram fundo, à
procura de ar fresco. Ada, deitada de lado, tossia.
Thomas, imóvel, seria considerado morto não fosse
o peito que ainda se movimentava. No meio da
confusão de homens com baldes, Graeham pegou
Joanna nos braços, trêmulo com a emoção que
apertava seu peito.
— Tive tanto medo — ele sussurrou ao encontro
dos cabelos. — Pensei que.
Eu te amo. Eu te amo tanto.
Não podia lhe dizer isso. Ele sabia que não podia
dar vazão aos sentimentos. Não tinha nada a
oferecer, não podia prometer nada. Declarar seu
amor naquelas circunstâncias seria uma crueldade
que só lhes traria mais sofrimento.
Pesava-lhe na alma saber que tinha o dever de
lhe contar sobre Phillipa e sobre a propriedade em
Oxfordshire. Devia contar tudo, mas duvidava ter a
coragem necessária. A escolha menos dolorosa,
embora vergonhosa, seria escrever uma carta
quando tivesse voltado para a Normandia.
Joanna sussurrou algo no seu ombro que ele mal
conseguiu ouvir na confusão em que estavam
envoltos.
— Eu te amo.
Ela tinha mesmo pronunciado as palavras, ou
fora um golpe da sua imaginação, algo que desejava
ouvir, apesar da sua razão chamar aquilo de
insensatez?
Graeham não respondeu, apenas a segurou,
desejando poder nunca mais soltá-la.
Ao meio-dia, Rolf Le Fever, passeando pelos
corredores vazios do mercado de seda, achou ter
sentido cheiro de fumaça. Era um cheiro comum em
Londres, visto que as moradias de tetos de colmo
tão próximas, com o fogo do fogão aceso de
contínuo, eram propícias a incêndios. Se o tempo
estava seco, um simples incêndio podia se alastrar
rapidamente, dizimando bairros inteiros.
Rolf tinha cinco anos de idade quando um
incêndio dessa magnitude acabara com a casa dos
pais e com o negócio de seda da família. Ficar
reduzido a morar no porão intocado pelas chamas
enquanto reconstruíam a vida tinha envergonhado
os pais, e essa vergonha também o atingira.
Enquanto garoto, sonhava com o dia em que teria
uma vida de riqueza, luxo e conforto. Teria uma bela
casa, lindas roupas e jóias e, mais importante, a
mulher certa, uma moça de sangue azul.
Alcançara o sucesso, tendo tudo o que sempre
havia desejado, exceto a esposa certa. E tudo por
culpa de lorde Gui e suas artimanhas.
Parou e respirou fundo. Não queria pensar
naquilo. Aquele era o seu melhor momento no dia.
Quando todos voltavam para casa para o almoço,
ele ficava vagando no meio às diversas barracas,
refestelando os sentidos no meio a tantas belezas. A
barraca que mais apreciava era a de um mercador
florentino que se especializara em comercializar
sedas em tons de vermelho. Desde garoto tinha
predileção pela beleza pungente da cor do sangue.
Tocou nos tecidos, apreciando a textura.
— Rolf.
Ele se virou ao chamado e se viu diante de uma
mulher. Surpreso, perguntou:
— Elswyth? — Não conseguia se lembrar da
última vez em que a vira, mas. — O que faz aqui?
Porque está vestida desse jeito?
Acenando com a cabeça e pegando o odre de
vinho, ela respondeu:
— Vim fazer um brinde ao nosso futuro juntos.
— Nosso futuro? Do que está falando, mulher?
— Você e eu, juntos. — Ela estendeu o odre, os
olhos estranhamente brilhantes.
— Elswyth, eu e você não temos um futuro em
comum.
— Então porque disse que queria se casar
comigo? Ele mal se lembrava daquilo, fazia tanto
tempo. Às vezes dizia coisas para amansar as
mulheres.
— Isso foi há muito tempo, Elswyth.
— Apenas um ano, Rolf. Disse que me queria. Eu
me entreguei a você porque disse que me queria
como esposa. Duas semanas mais tarde, você voltou
de Paris com ela.
Ele riu com amargura.
— Acredite em mim, minha cara, não fiquei mais
feliz do que você com o rumo que as coisas
tomaram. Foi um erro e me arrependo do fundo do
meu coração.
— E verdade? — Os olhos estranhos se
iluminaram ainda mais.
— Lamento ter conhecido aquela mulher e, acima
de tudo, ter me casado com ela.
— Ela o roubou de mim. Fiquei devastada. — Ela
deu um passo para a frente, e ele retrocedeu,
encostando-se nas sedas. — Ela era jovem e bela,
mas inescrupulosa. Roubou o homem de outra
mulher. Ela o tentou, e você não pôde resistir.
— Isso mesmo — Rolf concordou, aproveitando a
desculpa. — Fui tão vítima quanto você. Agora, se
me der licença.
— Foi isso mesmo o que pensei e, por isso, tomei
certas medidas.
Ele hesitou, incerto se queria saber mais
detalhes, mas acabou perguntando:
— Que medidas?
Elswyth sorriu como uma criança travessa.
— Não acreditou de fato que um defluxo pudesse
durar seis meses, acreditou?
Ele a encarou e retrocedeu mais uns passos. Ela
diminuiu a distância.
— O tônico não era uma simples infusão de mil-
folhas — ele concluiu, impressionado e supresso.
— Era sim, foi a própria Olive quem preparou.
— Então, o que.
— Já ouviu falar em dorônico? — Ela riu com uma
ponta de loucura. — Vem da raiz de uma planta
chamada acônito. Os antigos a chamavam de
rainha-mãe dos venenos. Quer saber por quê?
Não podia ser verdade. Ele sempre pensara que
Elswyth fosse uma mulher dócil, que o agradaria
quando desejasse, esperando ser chamada
novamente.
— Um pedacinho de dorônico, um bocadinho só,
ajuda as pessoas a dormirem e tira a dor. Mas um
tantinho a mais, pode deixar qualquer pessoa mais
doente do que nunca e, na dose certa, é responsável
por uma morte rápida e desagradável. Olive nem
sabe que eu tenho essa erva no quintal. Não a
guardo na loja. Quando preciso, vou até o jardim e
cavo conforme a necessidade.
Ele olhou para as unhas sujas da mulher. A julgar
pela aparência, Elswyth vinha precisando bastante
dessa erva.
— No Natal, quando o sr. Aldfrith disse que ela
precisaria de uma dose diária de tônico, eu sempre
arranjava uma desculpa para afastar Olive e
"temperava" a infusão. Olive nunca desconfiou.
— E Ada foi ficando cada vez mais doente.
— Não vê como era um plano perfeito? Quando
chegasse a hora, eu aumentaria a dose e ninguém
jamais desconfiaria. Com a maldita cadela fora do
caminho, você poderia se casar comigo.
— Porque está me contando tudo isso? — Estava
convencido de que Elswyth não era uma tola. Por
que, então, revelar tudo?
— Há seis semanas, Olive voltou para casa
dizendo que um homem tinha ido à sua casa e que
voltaria mais tarde para levar Ada de volta a Paris.
— Os olhos dela tinham adquirido um brilho vidrado.
— Um sargento chamado Graeham Fox.
Naturalmente, eu não poderia permitir que isso
acontecesse. Como você poderia se casar comigo se
sua esposa estivesse viva em Paris?
— Na verdade — disse, perturbado pelo olhar
enlouquecido da mulher —, ele nunca voltou.
— Porque eu dei um jeito nisso. Sabe, em West
Cheap conseguimos encontrar homens capazes de
tudo. Arranjei três malandros dispostos a partir o
crânio do sargento ao meio em troca dos cinquenta
marcos.
Então era por isso que o bastardo nunca voltara.
Seu respeito por Elswyth cresceu ainda mais.
— Foi o que fizeram? Mataram mesmo o homem?
— Ele não voltou, voltou? — Elswyth sorriu com a
boca, mas não com os olhos.
— Deus do céu, mulher! — Ele gargalhou. —
Chegou a esse ponto só para se casar comigo?
— Isso era muito importante para mim. Então
pode imaginar o meu assombro quando descobri que
andou com a minha filha.
A gargalhada perdeu a força, tornando-se um
riso nervoso.
— Não sei do que está falando.
— Sei de tudo, Rolf, inclusive que ela está
grávida. Ouvi dos lábios dela.
Ele deu de ombros, tentando formar um sorriso
charmoso, ciente, porém de que nem quando moço
fora bom nesse truque.
— O que posso dizer, minha cara? Sou um
homem, e Olive.
— Ela o provocou.
— Isso mesmo. Ela me provocou e eu não
consegui resis.
— Eu ainda o quero, Rolf.
— Ah! Que maravilha! — Jesus Cristo!
— Preciso de você. Preciso ficar sempre ao seu
lado.
— Bem, infelizmente, ainda temos o pequeno
problema quanto à minha esposa.
— Ela não é mais um problema.
— Não? — Le Fever engoliu em seco.
— Cuidei dela. Sua esposa recebeu o que
merecia.
— Ela está. — O ar deixou os pulmões dele. Seria
verdade? Estaria livre do casamento que o
envergonhava?
— Ela está morta. Você é um viúvo agora. Pode
se casar com quem quiser. — Ela estendeu o odre.
— Venha, celebre comigo.
Le Fever retrocedeu ainda mais contra o abrigo
das sedas, olhando com desconfiança para o odre.
— Como posso saber o que há aí dentro?
— Pensa que quero envenená-lo? — Levando o
odre aos lábios, Elswyth deu uma bela golada antes
de voltar a oferecer a bebida.
Sentindo-se mais seguro, Rolf deu um golinho.
Era um vinho barato, doce demais, porém não
parecia ter sido adulterado. Bebeu mais, querendo
acalmar os nervos.
— Como foi que administrou a dose letal?
— Dose letal? Não, não. Não a envenenei. O
mercador parou no meio de um gole.
— Não entendo. Disse que estava planeando.
— Meus planos sofreram uma leve modificação —
ela disse de modo pragmático. — Precisei mudar, já
que o delegado estava desconfiado. Tive de
encontrar outro jeito.
A apreensão fez um calafrio subir pela espinha de
Le Fever.
— O que quer dizer com isso? — perguntou
sentindo a língua subitamente grossa. — Como a
matou?
— Com fogo.
A fumaça. Rolf farejou o ar, ou tentou. Sentiu
que a garganta, o nariz e a boca estavam
amortecidos, não sentia o cheiro de nada. O odre
escapou dos seus dedos.
— Aquela casa era feia mesmo — ela disse com
voz ébria, escorregando para o chão.
— Pôs fogo na minha casa? — A voz de Le Fever
estava tão pastosa quanto a dela. Tentou agarrá-la,
mas desequilibrou-se e segurou um punhado de
tecido, levando-o para baixo e amortecendo sua
queda. — Sua vadia! Incendiou a minha casa,
minhas sedas! — Estava arruinado. Era a história do
seu pai se repetindo.
Elswyth ria alucinada, mas por fim o riso se
tornou uma série de engasgos. Ajoelhada, ela arfava
e segurava o peito.
— O que há de errado com você? — ele
perguntou ao mesmo tempo em que começou a
sentir um aperto no peito e a visão embaçar.
— Um dos. motivos pelos quais. — Elswyth
resfolegava — eles a chamam de rainha-mãe dos
venenos. é que é difícil de detectar. — O corpo dela
se retesou e caiu no chão.
— Não! — Le Fever sentia frio, um gelo correndo
pelas veias, os dentes batendo em agonia.
Precisava de ajuda, tinha de sair dali. Tentou se
levantar, mas tudo o que conseguiu foi se enroscar
no emaranhado de seda. Desequilibrando-se,
arrancou os pendões expostos e caiu numa confusão
de rubi, carmina, rosa, vermelho-sangue.
Preciso de você. Preciso ficar sempre ao seu lado.
Os olhos de Elswyth estavam vazios,
contemplando o futuro deles juntos.
Le Fever tinha, de fato, subestimado a antiga
amante.
O mercado de seda parecia estranhamente vazio
e silencioso quando o subdelegado Nyle Orlege
chegou para interrogar Le Fever.
Passou pela entrada e seguiu por um corredor,
onde divisou um aglomerado de pessoas.
— Alguém sabe onde posso encontrar Rolf Le
Fever? — Nyle perguntou num tom que não admitia
o silêncio como resposta.
As cabeças se voltaram, encarando-o com
interesse. As algemas na cintura chamaram a
atenção, e o grupo de homens abriu passagem.
A primeira coisa que Nyle notou foi uma barraca
toda revolvida, os tecidos espalhados pelo chão.
Provavelmente um ato de vandalismo de jovens que
não tinham o que fazer. Olhando melhor, porém, viu
dois pares de pernas enroscados no meio aos tons
de vermelho: pernas de homens envoltas em
chamativas calças de seda e pernas de mulher, os
pés descalços e sujos.
— Que inferno! — Nyle exclamou, já sentindo o
início do cheiro de cadáveres em rápida putrefação
no calor do verão.

— Como está a perna? — Joanna perguntou a


Graeham ao destrancar a porta.
As talas tinham sido retiradas naquela manhã. Já
estavam no fim da tarde, e o dia fora longo.
Primeiro, o funeral de Thomas no leprosário São
Egídio onde, depois de seis dias, ele finalmente
sucumbira às queimaduras horrendas. Depois, à
tarde, assistiram ao casamento de Olive e Damian
Oxwyke, unidos numa cerimônia simples na Igreja
Maria Madalena na rua Milk.
— Não está tão ruim — Graeham respondeu,
seguindo-a pelo corredor. Livre das talas, sua
elegância natural ao caminhar dava os primeiros
sinais, ainda que passasse a se mover com mais
rigidez com o correr das horas.
Joanna sorriu ao pendurar o manto no gancho e
retirar o véu da cabeça.
— Não precisa de massagem, então?
Quando o cirurgião removera as talas, tinha
recomendado uma massagem firme para aliviar o
desconforto dos músculos tensos após tanto tempo
em desuso, deixando um unguento próprio para
esse fim.
Percebendo seu olhar, Graeham sorriu e rebateu:
— Sua raposa atrevida. — Aproximou-se dela por
trás e espalmou as mãos nos seios cobertos pela
túnica violeta, acariciando-os até deixá-la sem
fôlego. — Mal posso esperar para ser massajado.
— Se não quiser, não precisa.
Ele a tomou nos braços num movimento fluido e
a carregou até o depósito onde estava o unguento.
O cômodo estava fresco por ter ficado fechado o dia
inteiro.
Colocando-a de pé, ele tirou o cinto e a túnica.
Sentou-se na ponta da cama, onde já não dormia
fazia mais de uma semana, e tirou as botas e calças,
ficando apenas com a camisa e as ceroulas.
— Fiquei surpreso ao ver Lionel abraçar Olive
depois da cerimônia — ele disse, deitando-se. —
Ainda mais depois do quanto lhe custou para
cancelar o contrato com a outra menina.
A carta de Elswyth para a filha, na qual
confessava tudo o que fizera, não mencionava a
gravidez de Olive, e muito menos o envolvimento
dela com Le Fever. Damian, que sabia de tudo e não
se importava com o fato de Olive ter se deitado com
outro homem, assumira o bebê como seu, forçando
o pai a aceitar sua união com a moça. Era o que a
Igreja e os costumes mandavam.
— Aposto que sei o que o levou a aceitá-la —
Joanna comentou, abrindo um pequeno pote de
unguento. — Alguns dias atrás, ela me disse que fez
um preparado para o estômago dele e, pelo visto, o
remédio surtiu o efeito desejado.
— Viu o modo como Olive olhava para Damian
durante os votos? — Graeham sorriu.
— E como ele retribuía. Le Fever será uma
memória longínqua em pouco tempo. Quando o
bebê nascer, eles já terão esquecido quem é o pai.
— O amor tem um estranho poder — ele refletiu.
— Parece capaz de mudar até a natureza das coisas,
como a alquimia. — Fitou-a, mas em seguida
desviou o olhar.
Joanna lhe deu as costas, sentando-se nos pés
da cama. Graeham não tinha falado de amor com
ela. Não comentara nada após sua declaração, ao
saírem da casa em chamas de Le Fever na semana
anterior. Talvez não a tivesse ouvido. Ou talvez sim.
Decidiu que não a repetiria, não até ouvi-la na
boca dele. Joanna sabia o que lhe ia no coração, a
magia que os envolvia era poderosa demais para ser
unilateral. Ele a amava. Tinha de amá-la.
Quem sabe o que o perturbava era o fato de ser
um soldado sem terras? Talvez achasse que não
tinha direito de se apaixonar ou que esse seria um
ato desajuizado. Era desajuizado, Joanna bem o
sabia, e mesmo assim ela não tinha uma resposta
pronta para o futuro dos dois. Tudo o que sabia era
que o amava e que não podia conviver com a ideia
de não ter o sentimento correspondido.
Graeham abriria o coração quando estivesse
pronto. Ela só esperava que isso acontecesse antes
de ele partir. Ele planeava viajar levando Ada dali a
quatro dias, no meio do mês, e escrevera a lorde
Gui para que os recebesse em Paris até o dia vinte.
Ada tinha passado a semana no hospital São
Bartolomeu e, aos poucos, já se mostrava mais
disposta, corada, praticamente recuperada do
envenenamento gradual. Ela já não ficava mais
deitada, Joanna soube ao visitá-la, e passava o
tempo ajudando as freiras com os outros enfermos.
Ainda que não fosse afeita à filosofia e à lógica como
a irmã, dava sinais de gostar de medicina. Disse até
mesmo que tentaria convencer o pai a enviá-la a
Salerno, para uma universidade em que aceitavam
mulheres.
— Joanna? — Ela sentiu os dedos de Graeham no
seu pescoço e fechou os olhos para desfrutar do
toque. — Ficou tão calada. Há algo errado?
— Não sei — disse baixinho para em seguida se
corrigir: — Não, não há nada errado. O dia foi longo
e cansativo.
— Qualquer dia que comece com o enterro de um
amigo será assim. — Ele acariciou as costas dela a
fim de confortá-la.
Joanna assentiu. Tinha chorado sem cessar no
enterro de Thomas, Graeham a segurara,
sussurrando palavras de conforto.
— Ele morreu tentando salvar a mim e a Ada.
— Foi assim que ele quis morrer. Thomas não
queria se transformar numa coisa, dizimado pela
doença. Escolheu morrer como um homem, do
melhor calibre. Ele haveria de querer que nos
alegrássemos por ele, não que nos lamentássemos.
— Sei disso — Joanna se forçou a dizer. Esfregou
as mãos com o óleo e pôs-se a massajar-lhe a
perna. — Que tal?
— Pode ser mais firme.
Na noite anterior, ele tinha lhe sussurrado a
mesma coisa sobre um tipo diferente de toque. Seu
corpo se aqueceu com a lembrança. Conforme
prosseguia com a massagem, sentiu os músculos da
perna dele começarem a relaxar.
— Mais para cima — ele pediu.
Joanna pegou mais óleo e passou no joelho e na
coxa. Graeham levantou a camisa e desatou o nó
das ceroulas.
— Mais para cima? — Ele estava totalmente
ereto. Tomou a mão dela e guiou-a para o membro
pulsante.
Durante as noites infindáveis de amor, Joanna
aprendera como o corpo dele funcionava, assim
como ele tinha tomado conhecimento das reações
dela.
Graeham terminou de se despir, sentou-se atrás
dela e perguntou baixinho, puxando o cordão que
prendia a túnica:
— Onde, Joanna. Onde você sente dor?
Joanna ofegou. Ele escorregou a túnica pelos
ombros dela, desnudando-a até a cintura. As trancas
cobriam-lhe o torso, e Graeham as soltou, deixando
o longo cabelo cair como uma cascata pelas costas.
O coração dela disparou ao vê-lo colocar os
dedos no pote de unguento,
— Onde sente dor? — ele voltou a perguntar. Ela
afundou as mãos nas coxas dele, desejando-o.
— Conte-me.
Ela sacudiu a cabeça, trêmula de desejo, mas
reticente em verbalizar, mesmo depois de tantas
noites partilhadas.
Passando o braço por ela, Graeham envolveu um
seio, circundando a aréola com o dedo.
— Aqui?
Ela prendeu a respiração e assentiu.
Os lábios dele a acariciaram na nuca, fazendo um
trilho de beijos ao mesmo tempo em que a mão
ministrava carícias sem fim, apertando, beliscando,
roçando. O outro seio recebeu o mesmo tratamento,
e ela arqueou as costas, esfregando-se no peito dele
sem resistir.
— Onde mais?
Ela gemeu e cravou as unhas nas coxas fortes.
Graeham, depois de pegar mais óleo, mergulhou a
mão dentro da sua túnica.
Joanna se esqueceu de respirar.
O primeiro toque, suave, incitou o fogo interior
do corpo dela. O outro braço de Graeham a
mantinha firme no lugar enquanto ele aprofundava a
exploração. Pressionava-lhe o corpo, o sexo rígido
resvalava a parte baixa das costas dela. Joanna se
debateu, gemendo.
— Pare! — exclamou quando o prazer aumentou,
pronto para desfazê-la em mil pedaços. — Espere.
— Não — ele murmurou no seu ouvido. — Quero
vê-la se desmanchar nos meus braços desse jeito.
— E afundou os dedos, afagando-a com a palma
inteira.
Joanna gritou ao ser assolada pelo clímax, um
choque de prazer que se multiplicou com a carícia
insistente. Os ouvidos reverberavam quando ela se
deixou cair sobre ele. Num único movimento, ele a
despiu, deixando-a apenas com as meias pretas.
Deitou-a de lado, ficando por trás, e passou um
braço por baixo dela, a mão se fechando sobre o
seio arredondado. A outra resvalou o quadril quando
ele se esticou para tocá-la, abrindo-a para recebê-
lo. Numa única investida, preencheu-a com sua
masculinidade. Inclinando-se sobre ela, sussurrou:
— Ah, como eu gostaria de poder ficar. — Beijou-
a e continuou: — Por tudo o que há de mais
sagrado, eu gostaria de não deixá-la.
— Você. você voltará? — Ela, por fim, fez a
pergunta que vinha evitando havia tanto tempo.
A mão de Graeham a apertou uma fração de
segundo. Joanna sentiu o peito dele inflar antes de
responder:
— Eu voltarei à Inglaterra em algumas semanas.
— De vez?
Com certa hesitação, ele assentiu:
— Sim, de vez.
Joanna encheu-se de contentamento e se virou
para encará-lo, mas Graeham tinha o rosto
escondido nos seus cabelos.
— Sentirei a sua falta — ele disse.
— Serão poucas semanas.
Graeham nada disse, e Joanna sentiu a ereção
começar a murchar dentro de si.
— Eu também sentirei a sua falta, mas ainda
temos quatro dias antes que você viaje. Precisamos
aproveitar todo o tempo que nos resta. — Ela tomou
a mão forte e a guiou para a parte em que os dois
se uniam. Agitou-se com as carícias, excitada mais
uma vez. Os movimentos ritmados do seu quadril o
acenderam novamente e, em questão de minutos,
ela gemia num novo espasmo de prazer.
Segurando-a pelo quadril, Graeham afundou-se
no calor molhado.
— Deus do céu, Joanna. — Ele a rolou no
colchão, com o rosto para baixo, e investiu com
ímpeto, segurando-a pelos cabelos, gemendo de
modo quase desesperador.
A Joanna pareceu que ele queria se livrar de algo
que o torturava. Ele a tomava de um modo
compulsivamente animalesco, como se a marcasse
como sua.
De súbito soltou-a, virou-a de frente e caiu sobre
ela, ofegante, com um gemido de angústia
escapando da garganta enquanto estremecia de
prazer. Graeham levantou o rosto e a fitou. Havia
algo estranho no olhar dele.
— Eu a machuquei?
Ela sorriu e pousou a palma no rosto áspero pela
barba que começava a crescer.
— Você nunca poderia me machucar, Graeham.
Fechando os olhos, ele aninhou o rosto na curva
suave do pescoço dela.
— Sim, eu poderia.

— Lindo este lugar, não? — Joanna comentou


com Hugh ao saírem da capela de Ramswick, onde
Robert e Margaret tinham, acabado de se casar.
— Você poderia ter sido a dona disto tudo. —
Hugh fez um gesto amplo com as mãos que
abarcava a propriedade.
Joanna não precisava que o irmão a lembrasse
disso. Só conseguia pensar naquilo desde que
haviam chegado para a cerimônia. Ramswick era
sua ideia de paraíso: pastos, floresta, riachos, uma
linda vila com pequenos chalés alinhados. Ali se
sentia em paz, diferentemente do que na confusão
de West Cheap.
Com um gesto de cabeça, ela indicou o casal logo
adiante caminhando de mãos dadas e comentou:
— Olhe para eles. Foram feitos um para o outro.
— Assim como você e Graeham?
Hugh descobrira o relacionamento deles por
acaso, numa manhã em que aparecera muito cedo,
vindo diretamente da farra. Ele havia encontrado
Graeham descendo as escadas somente de ceroulas.
A princípio, acusara o sargento de ter renegado a
promessa de não macular a honra de Joanna e
depois voltara a ameaçá-lo, dizendo que o faria
comer as próprias partes pudicas. Sem dúvida, teria
forçado o sargento a se casar com a irmã se ele não
fosse um marido tão inadequado. Como sempre,
porém, Hugh logo se acalmara, a ira evaporando
diante da indignação da irmã.
Mesmo naquele momento, antes que ele
recomeçasse o sermão, ela o lembrou:
— Tenho um amante, Hugh. Isso pode ser
pecaminoso e não muito sábio, mas sou uma mulher
adulta e sou livre para cometer meus próprios erros.
— Esse é o problema, irmãzinha. — Hugh falava
baixo para que as pessoas que os cercavam não
ouvissem. — Sempre seguiu sua cabeça, e muitas
vezes acabou se arrependendo. Só não quero que se
machuque de novo.
— Graeham não é Prewitt, Hugh.
— Não de maneira óbvia. Eu gosto dele, sabe
disso, mas pense bem. Como Prewitt, ele a cortejou
e depois desapareceu.
— Graeham não desapareceu — ela o defendeu.
— Ele foi acompanhar Ada a Paris. Foi isso o que o
trouxe para cá em primeiro lugar. Ele voltará em
poucas semanas, já lhe disse.
— Sim, mas por quê? Ele diz que vai voltar de
vez para a Inglaterra. Ele lhe contou por quê? Lorde
Gui vai libertá-lo das suas obrigações? Graeham vai
se empregar com outro lorde? Vai vender seus
serviços no exterior, como eu?
— Não, estou certa de que ele não faria isso. —
Joanna não saberia conviver com aquilo. Já bastava
ter de se preocupar com o irmão, não suportaria
viver longe de Graeham, preocupando-se com o seu
bem-estar.
— Porque ele vai voltar, Joanna? Por sua causa?
Ele tem algum plano para.
— Eu não sei, maldição! — Algumas cabeças se
voltaram para encará-los. Joanna fitou a grama aos
seus pés e sentiu as faces corarem.
Tinham se passado três semanas desde que
Graeham acompanhara Ada através do canal da
Mancha, e mais pareciam três anos. Sentia
saudades, precisava vê-lo, segurá-lo, sussurrar a
novidade eletrizante no seu ouvido.
— O que Graeham quis dizer com "algumas
semanas"? — Hugh insistiu. — Quatro? Cinco?
— Eu não sei. — Mas como desejaria saber. —
Hugh, realmente não quero falar sobre esse
assunto.
— Eu sei, mas tenho a obrigação de ajudá-la a
enxergar as coisas como elas são. Sou a única
família que tem.
Aquilo era um fato. Lorde William de Wexford
fora convidado para as núpcias, mas declinara o
convite ao saber que a filha estaria ali. Joanna não
podia mais contar com o pai, só com o irmão. E
agora com Graeham.
— Como pode dar certo entre vocês dois?
— Encontraremos um modo. — Joanna pousou a
mão no ventre. Logo adiante as mesas do banquete
estavam dispostas. Um pouco de pão costumava
acalmar o mal-estar matinal.
— Culpo-me por tê-lo levado à sua casa — Hugh
confessou.
— Já me disse isso muitas vezes. Quanto a mim,
sinto-me grata que tenha trazido Graeham para a
minha vida. — Ela o beijou no rosto. — Obrigada.
— Não irá me agradecer se o seu coração for
partido.
— Isso não acontecerá.
— Ele disse que a ama?
— Já disse que não quero falar sobre isso.
— Ah. — Hugh concluiu com tristeza —, foi o que
pensei.
— Eu sei que ele me ama. Só não quero falar a
respeito.
Gritinhos animados se aproximavam. Catherine e
Alice logo os ultrapassaram de mãos dadas, rindo de
excitação. Alice estava irreconhecível num lindo
vestido claro, com o cabelo loiro adornado com
margaridas.
— Bom dia, senhora! Bom dia, sir Hugh! — ela os
cumprimentou enquanto corria.
Joanna e Hugh retribuíram o cumprimento, mas
as meninas já estavam longe.
— Alice está florescendo aqui — Joanna
observou.
— Você também, se estivesse no lugar dela.
Joanna tinha certeza disso. O que mais queria era
viver no campo. Todas as noites sonhava com um
chalé em algum lugar distante da cidade. E nesses
sonhos, Graeham estaria ao seu lado, como seu
marido.
Antes de chegarem às mesas, Hugh a virou de
frente e disse:
— Você deveria vender a casa em West Cheap e
comprar outra no campo.
— Acha que já não pensei nisso? Não vai
funcionar. Eu até conseguiria dinheiro suficiente
para uma nova casa, mas não poderia comprar
terras. Não desejo morar apertada numa vila
qualquer. Preciso de terras para cultivar, para
chamar de minhas.
— Deixe-me ajudá-la. Posso comprar alguns
acres para prover seu sustento se tiver dificuldades
em vender seus bordados.
— Hugh, sabe que não posso permitir isso.
— Porque não? Está esperando Graeham voltar,
casar com você e tirá-la da cidade?
— Não. — Não exatamente.
— Tem esperanças? Desesperadamente.
— Não posso aceitar porque já comprou a casa
em West Cheap. Prometi nunca mais aceitar a sua
caridade.
— Não é caridade. Sou seu irmão, pelo amor de
Deus! Tenho todo o direito de cuidar de você.
— Não preciso que cuide de mim. — Só tinha de
esperar Graeham voltar para depois decidirem
juntos o que fazer.
Como se estivesse lendo seus pensamentos,
Hugh disse:
— Quer estejam casados ou não, precisarão de
outro lugar para morar. E improvável que ele
consiga sustentá-la.
— Hugh, pare com isso. — Joanna estava
angustiada em ver que a história se repetia.
Libertou-se do abraço do irmão. — Estou aqui para
comemorar um casamento e para me divertir. Não
vou mais falar sobre Graeham.
E foi o que fez. Depois de comer um pouco,
sentiu o estômago mais calmo. O clima estava
agradável, a comida, deliciosa e a música, que fê-la
recordar Thomas, extraordinária. Robert e Margaret
sentados ao lado das meninas e dos pais formavam
um lindo casal.
Além dos nobres da vizinhança, a comemoração
contava com a presença dos londrinos importantes,
como os delegados e os barões, Gilbert e Walter.
Joanna cumprimentara lorde Gilbert e a esposa
na capela, sentindo-se pouco à vontade depois de
ter rejeitado o filho caçula deles seis anos atrás.
Mesmo assim, eles tinham sido extremamente
corteses, especialmente lady Fayette, que tomara
suas mãos e dissera o quanto sentira a sua falta.
Diversas vezes durante o banquete, Joanna
sentira os olhos de lorde Gilbert na sua direção.
Ainda assim, ficou surpresa quando ele se
aproximou da sua mesa, deixando-a apreensiva com
sua majestosa elegância. Ela soltou um suspiro de
alívio quando tudo o que ele disse foi:
— Está encantadora hoje, milady.
— Obrigada, milorde. — Joanna fez um gesto
para a mesa ora vazia. — Gostaria de se juntar a
nós?
— Obrigado. — O lorde sentou-se no banco ao
lado dela. — É bom vê-lo novamente, Hugh. Soube
que anda lutando na região do Reno.
— Sim, voltarei no próximo mês.
Lorde Gilbert assentiu, pigarreou e ficou olhando
de um para outro, tamborilando os dedos no tampo
da mesa. Joanna e Hugh se entreolharam, sem
saber o que dizer. Pigarreando novamente, o barão
se voltou para Joanna.
— Lamento muito a morte do seu marido, lady
Joanna.
— Obrigada, milorde. Sinto muito pelo ocorrido
com Geoffrey — disse ela, referindo-se à morte do
primogênito do barão.
Ele respirou fundo.
— Eu gostaria que soubesse que entendi. Bem,
não há seis anos, somente mais tarde, porque se
recusou a casar-se com Nicholas.
Surpresa com essa confissão, Joanna só
conseguiu assentir.
Com o olhar preso nas mãos, o barão
prosseguiu:
— Naquela época, confesso que não entendi seus
motivos. Eu sabia das predileções fora do normal
dele, é claro, mas sempre acreditei que fosse uma
coisa passageira, própria da juventude. Foi
ingenuidade minha, hoje sei disso, porém acreditava
que uma bela jovem como a senhora pudesse. — Ele
fez um gesto amplo com as mãos.
— Mudá-lo? — Hugh se prontificou, com um
sorriso torto nos lábios, que indicava o que ele
achava daquilo.
O barão suspirou e olhou tristonho para Joanna.
— Está claro que a senhora teve mais juízo.
Tinha razão em recusar o noivado. Acabamos
casando Nicholas com a filha de lorde Alger, Mabila.
Estão casados há cinco anos e não produziram
nenhum herdeiro. Vivem infelizes, levando vidas
praticamente separadas.
Hugh levou o cálice de vinho aos lábios, olhando
para Joanna por sobre a borda, tentando entender
onde aquela conversa levaria. Estava intrigado com
as revelações pessoais do barão.
— Com a morte de Geoffrey, Nicholas herdará o
baronato e Montfichet. — Ele balançou a cabeça. —
Nicholas não é um mau sujeito, apenas não é um
barão adequado. Não é um líder, é apenas um rapaz
que aprecia bom vinho, boa música e a companhia
de outros jovens como ele. — Fechando os olhos,
suspirou. — Se Geoffrey estivesse vivo.
— Deve ser devastador perder um filho — Hugh
comentou —, mas tem outro e ele ainda pode
surpreendê-lo. Dê tempo ao tempo, Nicholas ainda é
jovem e.
— Outros dois — lorde Gilbert disse baixinho.
— Como disse?
— Tenho dois filhos: Nicholas e. e um filho
bastardo que nunca reconheci. Envergonho-me de
confessar que nunca o vi. — Virando-se para
Joanna, disse:—Acredito que o conheça. O nome
dele é Graeham Fox.
O ar escapou dos pulmões de Joanna numa
rajada, e Hugh derramou o vinho na toalha de linho.
Nesse instante, os dois outros casais que estavam
acomodados à mesa com eles voltaram rindo. De
súbito se encontraram cercados por pessoas.
— O que acham de continuarmos nossa conversa
caminhando? — Lorde Gilbert lançou um olhar
significativo para os recém-chegados.
Assentindo, Joanna se levantou e caminhou ao
lado do irmão e do barão em direção ao riacho. Por
fim, o lorde retomou a conversa:
— Vinte e seis anos atrás, meu irmão Charles foi
abatido numa batalha, deixando uma viúva,
Constance. Ela era herdeira do castelo Kilthorpe. Ela
era. — O barão se deteve à margem do riacho,
perdido em pensamentos. — Os cabelos dela eram
loiro-avermelhados, ela tinha olhos verdes e era
encantadora. Inteligente. Sempre conseguia me
fazer rir. Eu sempre. senti carinho por ela. Carinho
demais, talvez. O sentimento era mútuo, mas ela
era a esposa do meu irmão, e eu era casado. Bem, o
castelo Kilthorpe era um ponto estratégico nas
defesas do rei. Mal Charles caiu ao chão, o rei
pensou num marido substituto para Constance. Fui
enviado para junto dela para negociar o contrato de
casamento, embora ela não tivesse escolha, pois
teria de aceitar o arranjo. Fui sozinho, lady Fayette
ficou em casa. Isso não deveria ter acontecido.
Constance estava de luto por Charles, eu a amparei
e confortei. Foi. complicado. Ainda não consigo
explicar como tudo aconteceu. Talvez a culpa tenha
sido do vinho ou. Não sei. — Ele meneou a cabeça.
— Aconteceu.
— Ela engravidou? — Hugh perguntou.
— Sim. Ela era a minha cunhada, a prometida do
rei a um dos seus mais importantes vassalos. Pobre
garota, ela ficou fora de si quando descobriu a
gravidez. Não havia maneira de fazer a criança
passar por filho do meu irmão, pois Charles estivera
ausente por muitos meses antes de morrer. Eu me
consumi em vergonha e me preocupei com o futuro
dela.
— O que fizeram, então? — Joanna perguntou.
— Disse ao rei e ao pretendente que Constance
concordara com o casamento, mas que ainda estava
muito triste com a morte do marido para voltar a se
casar imediatamente. Lorde Brian poderia assumir o
castelo, mas, em nome do decoro, ela viveria noutro
lugar até a realização do casamento.
— Muito engenhoso — Hugh murmurou.
— Ela passou a gestação toda num convento,
onde nosso filho nasceu em segredo. Arranjei com
os freis de Holy Trinity para que o criassem lá.
Constance ficou arrasada ao entregar o bebê, era
seu primogênito, mas não havia alternativa. Depois
de um tempo, voltou para o castelo e se casou com
lorde Brian. Um ano mais tarde morreu no parto de
gêmeos.
Lorde Gilbert olhava para o vazio com seus
penetrantes olhos azuis, tão parecidos com os de
Graeham. Como não notar as semelhanças, agora
que sabiam do parentesco? Graeham tinha o mesmo
porte altivo do pai, o nariz aristocrático, os ossos da
face proeminentes.
— Na maior parte do tempo, tentei esquecer que
tinha um filho ilegítimo. As lembranças eram
vergonhosas, tristes. Quando frei Simon, o prior de
Holy Trinity.
— Eu o conheço. — Joanna e Graeham haviam
feito uma visita antes que ele partisse.
— Quando ele me disse que Graeham tinha a
intenção de fazer votos, senti a necessidade de
intervir. Meu irmão mais novo fora obrigado a seguir
carreira na Igreja e teve a vida arruinada. Ele não
tinha vocação. Muitos jovens decidem seguir esse
caminho sem saber do que estão abrindo mão, pois
não veem alternativa. Refleti muito e cheguei à
conclusão que Graeham tinha crescido sendo
poupado em demasia. Era evidente que queria uma
carreira no clero, era a única vida que conhecia.
— Foi então que o enviou a Beauvais — Joanna
concluiu.
— Sim, lorde Gui é um bom amigo de longa data.
Eu sabia que podia confiar nele para guiar os passos
do garoto. Pedi que observasse para ver se
Graeham tinha aptidão com as armas, e é claro que
ele tem. O resto vocês sabem.
— Porque está nos contando tudo isso? — Joanna
perguntou.
— Em vinte e três de junho recebi uma carta de
lorde Gui contando-me que havia enviado Graeham
numa importante missão a Londres. A tarefa estava
levando mais tempo do que Graeham antecipara, e
ele encontrara abrigo em West Cheap, na casa de
uma mulher cujo nome era, claro, familiar. O seu,
Joanna. Gui implorou para que eu o visitasse, que
me apresentasse como pai dele, contudo parecia
loucura quebrar o silêncio depois de tantos anos.
Então, quando a vi no desfile na Vigília de Verão,
pensei que aquilo talvez fosse um sinal. Senti-me
tentado a procurar Graeham, pois lorde Gui apenas
o elogiava enquanto Nicholas é. bem, um
desapontamento. Os homens gostam de pensar que
procriaram herdeiros decentes, capazes de levar a
linhagem adiante. Ainda assim, eu não estava de
todo convencido. Então, alguns dias atrás, ao voltar
de uma viagem, minha esposa me aguardava na
porta com uma carta de lorde Gui nas mãos. —
Lorde Gilbert balançou a cabeça. — A parte mais
estranha foi que ela não ficou brava com a minha
infidelidade, mas por eu ter abandonado meu filho.
Ela disse que a única forma pela qual eu poderia me
redimir seria seguindo os conselhos de lorde Gui e
procurando Graeham. Ela estava bem determinada
quanto a isso e, é claro, tinha toda a razão. Eu
deveria tê-lo reconhecido desde o início. Então, eu
havia decidido procurá-lo quando uma nova carta
chegou, ontem mesmo, dizendo que Graeham
completara sua missão e estaria partindo de Londres
em quinze de julho.
— E verdade, milorde — Joanna disse. — O
sargento Fox voltou à Normandia três semanas
atrás.
— Então é para lá que devo ir. Já passou da hora
de eu me entender com meu filho. Não conseguirei
mais me ver no espelho. nem dormir com minha
esposa — ele acrescentou tímido — se não encontrá-
lo e reconhecê-lo publicamente.
Joanna sorriu.
— Sei que isso significará muito para ele.
— Meu único arrependimento é não ter tomado
essa decisão a tempo de vê-lo se casar.
— Casar? — Hugh perguntou.
— Ah, vocês não sabiam — o barão disse,
sorrindo. — Graeham casou-se com uma mulher de
nome Phillipa em Paris há cerca de uma semana.
Imagino que ela seja uma tutelada de lorde Gui ou
algo do tipo.
Joanna sentiu o sangue ribombar nos ouvidos.
— Tem certeza? — Hugh quis saber.
— Lorde Gui me contou tudo nessa última carta.
Já estava tudo acertado há algum tempo. Firmaram
a data para dois de agosto quando Graeham disse
que estava voltando.
— Jesus. — Joanna murmurou. O barão parecia
não notar o estado em que ela estava.
— Eles vão morar na Inglaterra. Lorde Gui deu a
Graeham uma propriedade em Oxfordshire. Pelo
visto uma recompensa pela missão cumprida.
Joanna sentiu-se tonta, o estômago embrulhado.
É tão nobre que está passando por tudo isso sem
nada a lucrar?
Talvez eu seja.
Ele mentira. E não pela primeira vez. Nem pela
última.
Eu voltarei à Inglaterra em algumas semanas, ele
dissera. Só se esquecera de mencionar o fato de que
voltaria casado. Será que ele imaginava que ela
concordaria em ser apenas a amante?
Não era de admirar que ele nunca tivesse
declarado seu amor. Ele a estivera usando o tempo
todo, no início como informante, depois como
amante. Como ela pudera permitir isso?
— Milady, está passando mal? — o barão
perguntou. — Está tão pálida.
Joanna sentiu-se tonta, então, Hugh envolveu-a
com o braço e guiou-a até um toco de árvore,
fazendo-a se sentar e baixar a cabeça.
As vozes dos dois homens soavam abafadas,
como se viessem de muito longe. Hugh ordenava
que respirasse fundo e explicava a lorde Gilbert que
o estômago dela não andava muito bom.
Se aquela fosse a verdade. Mas não era. O que
haveria de fazer com seu futuro agora?
Lorde Gilbert acabou se despedindo, desejando
melhoras.
— Espere! — Joanna levantou a cabeça.
— Sim, milady — o barão respondeu.
— Eu. eu gostaria de saber se poderia levar uma
carta minha ao sargento Fox quando for à
Normandia?
— Certamente. Imagino que queira expressar
felicidades pelo casamento.
— É. isso — ela disse. — Levarei a carta à sua
casa amanhã.
— Não se preocupe. Mandarei um criado ir buscar
na sua casa. Ao meio-dia seria conveniente? — ele
perguntou.
— Sim, a carta estará pronta.
O barão se curvou numa saudação e se afastou.
Hugh se ajoelhou diante dela, tomando-a pelas
mãos.
— Joanna, eu.
— Não diga que sente muito — disse ela num
tom distante. — Tentou me avisar, eu não dei
ouvidos. É tudo culpa minha.
— Fui eu quem o levou à sua casa. — Hugh
acariciou-a nas mãos. — Eu devia ter mais juízo, em
vez de instalar um desconhecido na sua casa, só
porque ele me pareceu um bom homem.
— Não se culpe, eu tenho um fraco por esse tipo
de homem: belos, charmosos e inescrupulosos
demônios.
— O que vai escrever na carta?
— Que vou me mudar para o interior e que não
quero voltar a vê-lo.
— Graças a Deus! Isso quer dizer que vai aceitar
a minha ajuda?
— Somente o suficiente para encontrar um bom
lugar longe de Londres. Eu não queria fazer isso. Eu
tinha esperanças de que Graeham voltasse e se
casasse comigo, mas agora eu. Eu não tenho
escolha, levando-se em conta que. Maldição!
— Praguejando novamente, irmãzinha? Devo
alertá-la que o povo do interior não aprecia
mulheres com maus modos.
— Estou grávida, Hugh.
Os olhos dele se arregalaram com o choque. Ele
se pôs de pé, o rosto irado. Começou a andar de um
lado para outro diante dela, com os punhos
cerrados.
— Vou matá-lo. Vou encontrá-lo e esganá-lo.
— Pensei que a ameaça envolvia alimentá-lo com
as partes.
— Isso vem antes. Eu o caparei e depois o
estrangularei!
— Hugh — Joanna o chamou, tentando aparentar
calma. — Sabe que nós estávamos dormindo juntos.
— Mas há modos de prevenir. — Ele fez um gesto
indicando o ventre. — Coisas que os homens podem
fazer para evitar. Deus, Joanna, ele deveria saber o
que fazer!
— Ele sabia — ela disse, sentindo-se corar. —
Exceto na primeira vez.
Um rugido escapou do peito de Hugh.
— Ele sabia antes de ir embora?
— Não. Eu mesma só fiquei sabendo depois. —
No dia seguinte à partida dele, na verdade. Seu
período menstrual nunca tinha se atrasado antes.
Isso aliado ao enjôo e ao cansaço.
Hugh voltou ao seu lugar diante dela.
— Porque não me contou antes?
— Eu queria contar primeiro a Graeham quando
ele voltasse. Eu tinha certeza de que ele se casaria
comigo.
— Não acha melhor contar tudo nessa carta que
vai escrever?
— Não, ele deixou claro que nunca quis ter um
filho ilegítimo.
— Mas hoje ele o tem. Não seria melhor se ele
soubesse disso? Agora ele é um homem com posses,
poderá ajudar financeiramente.
— Não entende, Hugh? Ele é um homem casado.
Seria muita humilhação impor minha presença e a
do nosso filho, sabendo que ele não se importa.
— Não mesmo?
Sentirei sua falta, ele tinha dito.
— Talvez um pouco. Não tenho como saber ao
certo. Ele sempre foi tão convincente, tão charmoso.
Tudo o que sei é que ele não se importava o
bastante e que me usou. Eu estava disponível.
— E agora carrega um filho dele — Hugh
completou.
— Não lamento por isso, Hugh. Apesar de tudo,
quero esta criança. Não posso, porém, continuar na
cidade.
— É verdade. Quando a barriga começar a
aparecer, você será alvo de fofoca e estará
arruinada.
— Não estou pensando na minha reputação. Só
não quero criar uma criança na cidade. Também não
suporto mais ficar naquela casa, onde tudo me
lembra Graeham.
— Tudo bem se quiser ignorar sua reputação,
mas terá de me prometer uma coisa Joanna:
quando se estabelecer novamente, deixará as
pessoas pensarem que acabou de enviuvar e que o
bebê é do seu marido. Não há porque dificultar as
coisas.
— Está certo, mas terá de me prometer uma
coisa também — ela pediu.
— O quê?
— Não irá atrás de Graeham e não o. mutilará.
Hugh revirou os olhos e prometeu com a mão na
espada.
— Prometo sobre a manjedoura do menino Jesus
que não usarei minha espada em Graeham Fox.
— Nem a adaga — ela completou.
— Nem a adaga — ele concordou.
— Sei que está furioso com ele, mas o tempo
cura tudo. Só não quero que faça algo de que venha
a se arrepender.
— O tempo não terá impacto algum na minha ira
em relação àquele maldito — Hugh prometeu com
expressão feroz.
— Tolice. Você nunca conseguiu ficar bravo com
ninguém durante muito tempo.
— Ficarei irado com Graeham Fox até meu último
suspiro — Hugh afirmou sério. — Espere e verá.

O ar frio do mês de outubro envolveu Joanna


quando ela saiu do chalezinho no fim da tarde para
alimentar as galinhas. As folhas amareladas do
carvalho que cobriam o telhado tremeram com uma
lufada vinda da floresta logo além do seu pequeno
pasto.
Quem sabe um dia não poderia adquirir uma ou
duas ovelhas para pastarem naquele trecho, a lã
seria bem-vinda. Alguns porcos também, já que
durante o verão eles comeriam na floresta e no
inverno serviriam de alimento. Por enquanto,
porém, tinha de se contentar com as galinhas, que a
ajudavam a se manter com a venda dos ovos, e a
cabra, que fornecia o leite de que tanto necessitava
nos últimos meses.
Manfrid se aproximou a passos lentos enquanto
ela cruzava o galinheiro com o saco de ração. Ele se
jogou aos seus pés com a barriga para cima,
implorando um carinho. Joanna se baixou e o cocou,
provocando o ronronar tão conhecido.
O gato havia sentido muito a falta de Graeham
depois que ele partira. Nos primeiros dias, vagava
pelo depósito, como se esperasse que o antigo
inquilino se materializasse por encanto.
Para mim é um mistério porque se dá ao trabalho
de mantê-lo, medroso como ele é, Graeham dissera
um dia, todavia fizera amizade com o felino do
mesmo modo, e o bichano acabara provando o seu
valor. Quem ouvisse Graeham narrar os
acontecimentos do dia do incêndio, acreditaria de
fato que ele só acordara por causa do chamado
insistente de Manfrid.
Joanna estava contente por ter conseguido trazer
os gatos para o novo lar. Petronilla era uma
excelente caçadora, deixando a casa livre de
roedores, e Manfrid. Bem, Manfrid era Manfrid.
Mantinha seu colo quente à noite e lhe fazia
companhia. Os poucos vizinhos que tinha moravam
longe e eram muito ocupados para visitarem com
frequência, sem falar em Hugh, que partira no mês
anterior depois de se certificar que ela estava bem
instalada.
Estava acostumada a viver sozinha, foram as
semanas ao lado de Graeham que a tinham deixado
mimada. Que Deus a ajudasse, mas como sentia a
falta dele, mesmo sabendo que hoje era um homem
casado.
Pela primeira vez na vida, sentira como se fosse
parte de alguém, não só desejada fisicamente, mas
amada de verdade.
Tudo, porém, não passara de uma ilusão.
Certificara-se de que Graeham Fox não voltaria a
usá-la mudando-se para o interior, bem longe do
seu antigo endereço. Ninguém em Londres sabia do
seu paradeiro, era como se tivesse desaparecido da
face da Terra. Graeham não a encontraria nem num
milhão de anos, mesmo que tentasse. Isso tanto a
confortava quanto a deprimia.
Deu uma última coçadela em Manfrid e se
levantou para prosseguir com seus afazeres. Então
teve de lutar contra uma onda de tontura. Ainda
bem que, estando no quarto mês, essas vertigens já
não eram tão frequentes. No início, além da
fraqueza e dos enjôos, chegara a desmaiar algumas
vezes, mas de acordo com a parteira das imediações
eram ocorrências comuns no começo da gestação.
Manfrid ficou subitamente alerta e se pôs de pé.
Se fosse Petronilla, Joanna arriscaria dizer que havia
uma presa nos arredores, mas Manfrid não era de
fazer aquilo. O gato seguiu pelo caminho que levava
para o pasto e se sentou, o rabo abanando, olhando
para a floresta.
Joanna ia se virando para o galinheiro quando
um movimento no limite da floresta chamou sua
atenção. Apertando os olhos contra o pôr-do-sol
alaranjado, notou um homem vindo a cavalo.
Ficou imaginando quem seria, já que o pessoal
local montava em mulas ou caminhava. Cavalos
eram um luxo naquela região.
Tocou a adaga presa ao cinto, uma precaução
necessária para uma mulher vivendo sozinha num
lugar ermo como aquele. Só esperava que fosse um
dos nobres locais ou um padre, e não.
Notou os cabelos avermelhados do homem na
altura do colarinho da túnica de montaria. As pernas
estavam cobertas por perneiras presas por tiras de
couro cruzadas.
— Virgem Santa Maria.
O saco de ração caiu com um baque surdo no
chão.
Era ele.
Graças a Deus, ele a encontrara.
Oh, Deus, porque ele tinha de encontrá-la?
Joanna pressionou a mão no ventre, censurando-
se mentalmente por sua falta de compostura.
Odiava Graeham Fox. Desprezava-o por tê-la usado
e mentido, por tê-la engravidado, por se casar com
outra.
Como ele a tinha encontrado, se Hugh era o
único a saber do seu paradeiro?
Graeham diminuiu o passo do garanhão e se
aproximou pelo caminho de terra batida. Os olhos
azuis ainda tinham o poder de lhe tirar o fôlego.
Havia algo diferente nele. O nariz estava inchado no
meio e havia uma cicatriz fina no
##olho/sobrancelha<<supercílio. Ele parou a
montaria.
— Joanna, meu Deus, é você mesmo.
Ela envolveu a própria cintura com os braços
num gesto de autodefesa e o encarou.
A expressão dele ficou mais séria. Graeham
desmontou e prendeu o cavalo a uma árvore
próxima. Manfrid já se esfregava nas pernas fortes,
então ele se baixou e o afagou.
— Pelo menos você sentiu a minha falta, não é
mesmo, garoto?
Manfrid ronronou satisfeito. Graeham ergueu o
rosto e a fitou.
— Senti tantas saudades. Achei que nunca mais
voltaria a vê-la.
Ele se levantou e deu um passo à frente. Joanna
retrocedeu, e ele parou.
— Sei que está zangada comigo.
— Não faz ideia do quanto. — A voz dela era
baixa e trêmula.
— Você precisa me ouvir. — Ele mostrou as
palmas como numa súplica, e se aproximou. — Por
favor, me ouça.
— Vá para o inferno! — Joanna retrocedeu ainda
mais conforme ele avançava. Graeham acabou
prendendo-a de encontro à parede do galinheiro. Ela
o empurrou, mas era como lutar contra um muro.
— Não acredito. — ele disse, o olhar passeando
por seus cabelos, olhos, boca, seios e se detendo
sobre o ventre arredondado com os primeiro sinais
da gestação. Ele baixou uma das mãos sobre a
barriga dela, acariciando-a de leve, a expressão
maravilhada.
Então ele sabia.
Olhando-a nos olhos novamente, ele murmurou:
— Está ainda mais bonita do que antes. Não
pensei que isso fosse possível.
O rosto viril estava muito próximo. Graeham se
inclinava sobre ela, o olhar preso nos lábios rosados.
Ela tentou negar num movimento de cabeça, que só
serviu para que os lábios se roçassem.
Um gemido de saudade surgiu no peito de
Joanna quando ele a beijou, os lábios tão quentes e
ávidos. Ele a segurava pelo rosto e enroscava os
dedos nos seus cabelos. O mundo virou. Joanna o
agarrou pela túnica, o coração aos pulos com a
mistura de emoções que a assolava: amor e ódio,
desejo, confusão.
Como ele conseguia fazer aquilo com ela? Que
tipo de poder ele exercia sobre sua determinação?
Ela se sentia drogada pela proximidade dele, pelo
calor, pelo perfume tão familiar de que tanto sentira
falta. Ele interrompeu o beijo e sussurrou:
— Eu te amo.
— Oh, não, mais mentiras! — Ela cobriu os
ouvidos com as mãos. — Pare de mentir para mim,
Graeham, é tudo o que peço.
Ele afastou-lhe as mãos dos ouvidos.
— É a pura verdade, Joanna, eu juro. Eu deveria
ter lhe dito isso há muito tempo, mas fui um idiota.
— Levando as mãos dela aos lábios, beijou-as. — Eu
te amo, Joanna, eu.
— E quanto a Phillipa? Também a ama ou se
casou com ela somente por causa das terras?
Soltando-lhe as mãos, Graeham a acariciou no
rosto.
— Joanna.
— Veio me procurar para que eu seja sua
amante? Acredita mesmo que eu estarei sempre à
disposição para quando você sentir vontade?
— Não é nada disso, Joanna.
— Volte para sua esposa, Graeham. — Joanna o
empurrou com tanta força que ele deu um passo
para trás, abrindo espaço bastante para que ela se
esgueirasse.
Joanna andou rápido em direção ao chalé. Se
conseguisse chegar a tempo, entraria e trancaria a
porta. Ele poderia esmurrar o quanto quisesse, não
permitiria que ele entrasse. Entretanto, ao passar
pelo saco de ração, automaticamente se baixou para
pegá-lo, ficando tonta ao se endireitar.
Por favor, Deus, agora não, ela pensou ao ser
tomada pela escuridão da vertigem.
— Joanna? — Antes que ela chegasse ao chão,
sentiu os braços fortes de Graeham amparando-a.
Ela se aninhou no abraço, como se fosse um
bebê de colo, e sentiu as passadas largas conforme
ele a carregava quase sem sentidos.
Graeham chutou a porta, parou um instante e
começou a se mover novamente ao vislumbrar a
cama. baixou-a com gentileza no colchão, afofando
o travesseiro sob sua cabeça. Acariciou seus
cabelos, a testa e depois se afastou.
Sentindo-se subitamente desolada, Joanna
entreabriu os olhos e o viu ao lado da pia,
humedecendo um pano.
— O que está acontecendo, Joanna? — ele
perguntou aflito, sentando-se ao seu lado e
passando o pano na sua testa. — Está doente? Quer
que eu chame um médico?
Ela balançou a cabeça devagar.
— O começo da gestação foi um pouco difícil,
mas já está melhorando.
O olhar dele pousou no seu ventre. Ele colocou a
mão ali com suavidade, de modo protetor.
— Há algo de errado? O bebê está bem?
— A parteira disse que está tudo bem.
— Você precisa de um médico, não de uma.
— Não há médicos por estas imediações, e
Claennis é uma ótima parteira.
Ele passou a mão pela elevação na barriga, a
expressão perturbada.
— Tem sido duro para você. Detesto pensar no
que passou desde que parti. — Olhando ao redor,
para as paredes caiadas e os vasos de flores em
todos os cantos do pequeno cômodo, completou: —
E mesmo assim, você conseguiu se arranjar. A sua
força é uma das coisas que mais amo em você.
Ela arrancou o pano das mãos dele e o
comprimiu na testa que latejava.
— Não diga isso.
— Isso o quê? — Ele se inclinou sobre ela, as
mãos apoiadas na cama ao lado da sua cabeça. —
Que te amo?
— Não quero ouvir.
— É a verdade, Joanna. Se eu tivesse algum
juízo, teria lhe dito isso há muitos meses. Deixe-me
dizer isso agora.
— Por quê? Para que você tente entrar embaixo
das minhas saias mais uma vez?
— Lá vem você com essa conversa de novo.
— Eu posso ser uma tola, uma ingênua,
extremamente influenciável por demônios bonitos e
charmosos como você, mas.
— Eu sou bonito e charmoso? — ele perguntou
com um sorriso satisfeito. — Você me ama também.
— Isso é a sua vaidade falando mais alto. Como
eu poderia amar um homem que me usou de
maneira tão vil?
— Eu a usei — ele admitiu. — Deixei que você se
entregasse a mim sem esclarecer a minha situação
com Phillipa. Eu não sabia o que fazer. Eu te amava
com profundidade e te queria muito, mas não
conseguia desistir das terras em Oxfordshire. Como
um cretino, sonhava em ter você e as terras, mas é
claro, isso não era possível. Como um homem
imperfeito, cometi muitos erros que a fizeram
sofrer, e ainda assim você me ama. Senti isso
quando me beijou.
— Foi você quem me beijou — ela corrigiu.
— Mas você correspondeu. Agora, diga que me
ama.
— Não. Ele se inclinou um pouco mais, os olhos
azuis derretendo-a.
— Ama sim, confesse.
— Posso não ter um pingo de juízo no que se
refere a você, Graeham Fox, mas sei que não devo
retribuir os carinhos de um homem casado.
— Admiro sua virtude, mas isso não é realmente
necessário. Não sou casado.
Ela estreitou os olhos.
— É, sim. Lorde Gilbert me disse. Lorde Gui
contou tudo para ele numa carta.
— Lorde Gui escreveu dizendo que havia uma
data para a cerimônia. Nunca me casei com Phillipa.
— Porque não? — perguntou ela, surpresa.
— Porque não a amo. Eu amo você. Só você. Ela
o fitou, insegura, e depois devolveu o pano.
— Ajude-me a me sentar, por favor.
Deixando o pano de lado, ele a amparou e a
ajudou a se sentar ao seu lado.
— O que aconteceu depois que partiu para a
Normandia?
— Só consegui pensar em você no trajeto de
Londres a Dover. Ada perguntava o que havia de
errado e eu inventei que estava doente. De certo
modo, não deixava de ser verdade: eu estava
doente do coração pelo que tinha feito com você e
pela perspectiva de perdê-la. Era um sentimento
que me corroía. Foi ainda pior quando o barco
começou a cruzar o canal. Enquanto nos
afastávamos, só conseguia pensar que nunca mais a
veria. Começou a chover e todos foram se abrigar.
Eu fiquei debaixo da chuva, chorando. Eu não
chorava desde criança.
Joanna se viu afagando-o nas mãos.
— Lorde Gui estava nos esperando na casa do
irmão em Paris. Phillipa também estava lá. Naquela
hora eu já sabia o que tinha de fazer. Levei Phillipa
para um canto e contei que não poderia me casar
com ela porque amava outra mulher, sempre
amaria. Confessei que seria um terrível marido se
me casasse com qualquer outra pessoa.
— Como ela recebeu a notícia?
— Pareceu desapontada no início porque estava
ansiosa para estudar em Oxford. Lorde Gui não
conseguiu vê-la infeliz, então decidiu passar a
propriedade diretamente para o nome dela, sem que
precisasse se casar. Com isso, ela ficou radiante. O
barão me chamou de tolo por recusar tamanha
oferta, e eu respondi que eu era mais tolo ainda,
pois queria pedir demissão para voltar para a
Inglaterra.
— Meu Deus — Joanna sussurrou, atônita por ver
o quanto ele sacrificara por ela.
— Lorde Gui me pediu que ficasse o tempo
suficiente para acompanhar Phillipa a Oxfordshire
em outubro. Ele precisaria desse tempo para ajeitar
a casa e os criados para recebê-la. Senti que devia
isso a ele depois de tudo o que ele fez por mim em
todos esses anos. Fiquei algumas semanas em Paris,
ajudando-o nos negócios. Quando voltamos a
Beauvais, encontramos lorde. — ele se interrompeu,
a boca torta. — Encontramos meu pai esperando por
nós.
— Deve ter sido um choque descobrir que é filho
de Gilbert de Montfichet — Joanna comentou.
— Levou um tempo para que eu me habituasse a
essa ideia. Pensando em retrospetiva, eu deveria ter
desconfiado que era ele ou alguém do nível dele.
Porque outro motivo lorde Gui estaria disposto a
entregar a mão da filha a um sargento ilegítimo?
Aos olhos dele eu era Graeham, filho de Gilbert, o
barão de Montfichet.
— Imagino que o encontro tenha sido muito
emocionante.
— E foi. Até ele me entregar a sua carta.
— Ah, a minha carta. — Ela apertou a mão dele.
— Você não disse para onde iria. Eu tinha de
encontrá-la. Voltei imediatamente a Londres. O
homem que comprou a sua casa me disse que fazia
poucos dias que você tinha se mudado e que ele não
tinha ideia para onde você havia ido. Procurei Olive
e Damian, Robert de Ramswick, frei Simon, todos os
seus vizinhos, e ninguém sabia de nada. Quase
enlouqueci. Saí de Londres e passei duas semanas
indo de vila em vila, perguntando por você.
— Ah, Graeham.
— Por fim voltei à Normandia para acompanhar
Phillipa até Oxfordshire. Quando cheguei a Beauvais,
descobri que o barão tinha um hóspede. Seu irmão.
— Hugh? — Joanna perguntou, com os olhos
arregalados.
— Ele foi me procurar enquanto eu vasculhava a
Inglaterra à sua procura.
— Mas ele prometeu que não o procuraria.
— Na verdade, o que ele prometeu, pelo que me
contou, foi não me separar das minhas partes
privadas. Asseguro-lhe que ele não tentou isso. Bem
que tentou transformar meu rosto.
Ela esticou a mão e tocou as cicatrizes na bela
face.
— Ele quebrou seu nariz.
— Retribuí o favor.
— Quebrou o nariz de Hugh?
— Não queria que eu apanhasse sem responder
na mesma moeda, queria? — Graeham sorriu. — Ele
até me agradeceu depois. Alegou ser bonito demais
antes disso.
— Essas parecem palavras vindas do meu irmão.
Suponho então que vocês se entenderam no final?
— Sim, depois que eu consegui me explicar. Ele
logo ficou contente, me deu uns tapinhas nas costas
e me deu seu endereço. Pouco depois partiu para o
Reno. Joanna riu.
— Ele me disse que ficaria zangado com você até
o último suspiro.
— Hugh disse isso? Ele é incapaz de ficar bravo
durante muito tempo.
— Eu sei.
Graeham passou os dedos longos e calejados no
contorno do rosto dela, nos lábios.
— É tão bom ver você sorrir de novo, Joanna.
Senti falta do seu riso. Por favor, diga que não me
odeia mais.
— Eu não te odeio mais. Acho que nunca odiei,
por mais que tentasse.
Ele a perscrutou com o olhar penetrante,
enxergando fundo na alma.
— Diga que me ama, por favor.
— Eu te amo — ela disse com um nó na
garganta, os olhos húmidos. — Eu te amo,
Graeham, muito.
Ele a agarrou e a beijou com paixão.
— Nunca quis que você fosse minha amante —
ele sussurrou ao encontro dos lábios dela. — Sabe
disso, não sabe?
Joanna assentiu.
— Quero que seja minha esposa.
Ela assentiu mais uma vez com as lágrimas
rolando pelas faces. Ele as enxugou com os
polegares.
— Eu não te mereço, não depois do que fiz você
passar. Sei que deve estar preocupada com o que
posso oferecer, afinal, temos um bebê a caminho e.
— Podemos morar aqui — ela disse, envolvendo-
o pelo pescoço e beijando-o. — Não me importo com
o lugar em que moramos desde que eu esteja ao
seu lado. Eu vendo os ovos e posso pegar roupa
para lavar. Não importa, Graeham, eu te amo.
Quero ser sua esposa.
— Mesmo que eu não tenha nada para oferecer?
Ela tocou o ventre.
— Já me deu tanto. Não consigo imaginar nada
melhor do que viver com você aqui, neste pequeno
chalé, rodeada de filhos. E tudo o que eu quero,
juro.
Graeham apoiou a testa na dela e sorriu.
— Devo supor então que quer que eu recuse as
terras que me pai me ofereceu?
Ela o encarou de olhos arregalados.
— Lorde Gilbert, ele.
— Ele disse que já passara da hora de agir ao
meu favor e me deu a propriedade de Eastingham,
perto de Londres. As terras são ótimas para o
cultivo e há uma linda vila bem no meio. Há
pomares, lagos, pastos para as ovelhas e vacas.
— isso tudo vai ser seu?
— Nosso. Já é, de fato. Eles me chamariam de
lorde Graeham.
— Lorde Graeham — ela disse sem acreditar. —
Graeham de Eastingham.
— E a senhora, milady, será Joanna de
Eastingham assim que eu encontrar um padre para
nos casar. O melhor de tudo é que há uma imensa
casa de pedras com quartos para muito mais
crianças do que caberiam aqui. Mas se preferir.
Posso dizer a ele que não aceitamos.
— Não faça isso.
— Juro que é você quem manda. — Ele roçou o
queixo na face macia. — Se quiser ficar aqui, basta
dizer. Só quero agradá-la.
— Você quer mesmo me agradar, não quer? —
Ela o beijou e abraçou.
— Sim. — Ele suspirou e trilhou a mão desde o
pescoço até um seio escondido pelo vestido. — E só
no que tenho pensando ultimamente. em te dar
prazer.
— Sabe o que me daria prazer neste instante,
milorde? — ela murmurou contra o ouvido dele.
— Deus, espero que sim! — ele disse, baixando-a
na cama.
E, por fim, foi o que Graeham fez.

FIM

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