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DIVERSIDADE DE FUNGOS BRASILEIROS E ALIMENTAÇÃO: O QUE PODEMOS


CONSUMIR?

Conference Paper · June 2018

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Larissa Trierveiler Pereira Marcelo Aloisio Sulzbacher


Instituto de Botânica Universidade Federal de Santa Maria
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Juliano Marcon Baltazar


Universidade Federal de São Carlos
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Fungi Rickiani: revisão taxonômica de espécimes fúngicos corticioides e cifeloides (Agaricomycetes, Basidiomycota) depositados na coleção do Herbário Anchieta (PACA),
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DIVERSIDADE DE FUNGOS BRASILEIROS E ALIMENTAÇÃO:
O QUE PODEMOS CONSUMIR?

Larissa TRIERVEILER-PEREIRA1,2; Marcelo Aloisio SULZBACHER3 &


Juliano Marcon BALTAZAR4

1
Núcleo de Pesquisa em Micologia, Instituto de Botânica, São Paulo-SP;
2
FATEC “Professor Antonio Belizandro Barbosa Rezende”, Itapetininga-SP;
3
Departamento de Solos, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria-RS;
4
Centro de Ciências da Natureza, Campus Lagoa do Sino, Universidade Federal de São Carlos, Buri-SP;
E-mails: 1,2Lt_pereira@yahoo.com.br; 3marcelo_sulzbacher@yahoo.com.br; 4baltazarjmb@gmail.com

A alimentação é um hábito tão corriqueiro que muitas vezes não refletimos sobre
ele, principalmente quanto aos seus aspectos mais óbvios. Um deles é que nossos
alimentos são provenientes de organismos, e em alguns casos, correspondem ao
organismo em sua totalidade. A relação entre comida e espécies animais e vegetais é
bastante direta e facilmente lembrada (por exemplo, carne e verduras), mas outros
componentes da biodiversidade também são utilizados na alimentação, como bactérias
(Lactobacillus spp.), algas (utilizadas no sushi e outros pratos orientais) e fungos
(leveduras Saccharomyces spp. e cogumelos).
Apesar de terem sido considerados plantas no passado, os fungos constituem um
grupo à parte, o Reino Fungi. Eles são organismos heterotróficos que obtém seu alimento
por digestão externa, isto é, liberam suas enzimas digestivas no meio e absorvem os
nutrientes já digeridos. Isto os torna diferentes dos animais e das plantas.
Atualmente são conhecidas ao redor de 100 mil espécies de fungos, porém,
estima-se que a real diversidade seja de 5,1 milhões de espécies (Kirk et al., 2008;
Blackwell, 2011). Caso estes dados estejam corretos, nosso conhecimento atual
corresponde a apenas 1,9% da real diversidade. Os membros mais conhecidos dos fungos
são os cogumelos, mas eles não são os únicos fungos, tampouco são os únicos fungos
comestíveis.
Em um livro sobre fungos silvestres comestíveis, Boa (2004) afirmou que são
conhecidas mais de 1000 espécies considerando todos os grupos de fungos. Entretanto,
estudos mais recentes apontam que o número de fungos comestíveis conhecidos
atualmente pode ultrapassar 2.000 espécies (Choudhary et al., 2015).
O hábito de coleta e consumo de fungos comestíveis é comum em mais de 85
países. Muitos podem ser os benefícios do seu consumo, incluindo a ingestão de
proteínas, vitaminas, aminoácidos essenciais, minerais e fibras. Ainda, é importante
lembrar que se trata de um alimento com baixo teor de gordura. O valor nutricional das
espécies comestíveis de fungos é indiscutível e sua contribuição à dieta depende da
quantidade e frequência com que eles são consumidos (Boa, 2004).
Quanto à relação com os fungos, os povos podem ser classificados como
micófilos, quando possuem um interesse especial por esses organismos, utilizando-os em
rituais, medicamentos ou como fonte de alimento; ou não micófilos (também chamados
de micofóbicos), quando não demonstram especial interesse pelos fungos ou até mesmo
possuem aversão a eles (Fidalgo, 1968).
Como exemplos de povos e nações micofílicas podemos citar os espanhóis,
franceses, italianos, russos, japoneses, chineses, entre outros. Dessa forma, possuem uma
rica cultura sobre fungos e cogumelos e muitos nomes populares dedicados às espécies.
No Japão, por exemplo, mais de 100 tipos de fungos silvestres são conhecidos pela
população em geral, e todos esses possuem pelo menos um nome popular (Hall et al.,
2003).
Na América Latina a tradição de coleta e consumo de fungos silvestres é notável
do México à Guatemala, e depois diminui abruptamente nos demais países. Por mais que
algumas comunidades tradicionais utilizem fungos silvestres na alimentação, esse hábito
não é notavelmente marcante em todo o país (Boa, 2004).
Para o Brasil, não existem levantamentos precisos sobre o número de espécies
comestíveis conhecidas e estimadas, em parte porque ainda conhecemos muito pouco
sobre as espécies fúngicas que aqui ocorrem. Em um trabalho sobre a biodiversidade
brasileira, Lewinsohn & Prado (2005) estimaram que a diversidade de fungos no Brasil
seja de 150 a 264 mil espécies. Até 2015, haviam sido citadas 5.719 espécies de fungos
para o Brasil segundo Maia et al. (2015), o que corresponde entre 2,19% a 5,72% da
diversidade estimada por Lewinsohn & Prado (2005). Em nenhum desses trabalhos foi
descriminado quantas espécies de fungos eram comestíveis.
No nosso país, o consumo de fungos comestíveis ainda é pequeno, sendo que
majoritariamente são consumidos os cogumelos produzidos em escala comercial, como o
champignon ou Portobello (Agaricus bisporus), o shimeji ou cogumelo-ostra (Pleurotus
spp.) e o shiitake (Lentinula edodes) (Ishikawa et al., 2017). Segundo Urben & Oliveira
(1998), os principais fatores que contribuem para esse baixo consumo é a falta de tradição
na culinária brasileira e o preço relativamente alto dos cogumelos no mercado brasileiro.
Ainda menos notável é o consumo de fungos silvestres, já que em nosso país há
pouca tradição de sua coleta e consumo. Apesar dos povos nativos brasileiros terem sido
classificados como não micofílicos e existirem poucas referências na literatura sobre o
uso de fungos na alimentação indígena brasileira (Fidalgo, 1968), recentemente um livro
de extremo valor cultural foi publicado pelos índios yanomamis em parceria com
cientistas brasileiros: “Ana Amopö: Cogumelos” (Sanuma et al., 2016). Esse livro
bilíngue, escrito em sanöma (uma das línguas da família linguística Yanomami) e
português, é ricamente ilustrado e traz fotos dos fungos consumidos pelos índios, além
de sua forma de cultivo e preparo. Tamanho é o valor dessa obra literária recém-
publicada, que a mesma foi agraciada com o prêmio da 59a. edição do Prêmio Jabuti, na
categoria Gastronomia (Jabuti, 2017).
Entre as espécies consumidas por esses indígenas, pode-se citar: Polyporus
aquosus, Polyporus philippinensis, Polyporus tricholoma, Pleurotus albidus, Pleurotus
djamor, Lentinula raphanica, Lentinus concavus, Hydnopolyporus fimbriatus, Lentinus
crinitus, Panus velutinus, Panus strigellus e Favolus brasiliensis. Com apenas uma
exceção, todas as espécies incluídas no livro possuem nomes populares em sanöma.
Também entre as espécies consumidas no Brasil está o popularmente conhecido
“pão-de-índio”, que pode se referir a duas espécies: Polyporus sapurema, descrita para
Santa Catarina e provavelmente distribuída pela Mata Atlântica, e Polyporus indigenus,
que ocorre na Amazônia. O interessante é que nessas espécies a parte consumida não é o
“cogumelo” em si, mas o esclerócio subterrâneo, que trata-se de uma massa compacta de
micélio endurecido. Há registros de esclerócios de P. indigenus pesando cerca de 60 kg
(Aguiar & Sousa, 1981).
Já na região sul do país, é possível encontrar fungos comestíveis em florestas
nativas de mata atlântica. Entre as espécies de cogumelos comestíveis ocorrentes nestas
formações destacam-se: Armillaria puiggarii, Auricularia spp., Coprinus comatus,
Favolus brasiliensis, Lepista sordida, Oudemansiella cubensis, Pleurotus spp. (várias
espécies como Pleurotus djamor e Pleurotus pulmonaris) e Stropharia rugosoannulata.
No Paraná, Meijer (2008) identifica cerca de 100 espécies encontradas em floresta
ombrófila mista que são relatadas na literatura como comestíveis.
Também são frequentes espécies de fungos que ocorrem em associação com
espécies vegetais florestais, chamadas de ectomicorrízicas (que estabelecem uma relação
íntima com as raízes de determinadas plantas), que foram introduzidas juntamente com
espécies de árvores exóticas (pinus e eucalipto). Estes fungos ocorrem na época de outono
e sua coleta segue até o início da primavera em diferentes partes da regiões do sul, e é
uma prática que vem aumentando a cada ano. Um exemplo de região onde a cultura
micofílica está expandindo é a Serra Catarinense, onde moradores de municípios como
Lages, Otacílio Costa e Urupema coletam espécies de cogumelos comestíveis nas
plantações de Pinus. No passado, esta região era dominada por florestas de araucária, mas
com a vinda de empresas de celulose, a monocultura de Pinus se espalhou. Espécies como
Boletus edulis (também conhecido como porcini), Laccaria lateritia, Laccaria laccata,
Lactarius deliciosus, Lepista nuda, Suillus granulatus e Suillus luteus estão entre as mais
encontradas e coletadas nas plantações de Pinus (Fig. 1). Aos poucos, empresas e
associações dedicadas a esta atividade estão se instalando nestas regiões e os cogumelos
dessas espécies estão sendo vendidos secos ou frescos para diferentes regiões do Brasil.
As espécies do gênero Morchella também são muito apreciadas na culinária
internacional, devido ao seu sabor delicado e pelo fato de não existirem espécies tóxicas
no gênero (Dominguéz de Toledo, 1987). Apesar de não serem comuns, espécimes de
Morchella já foram encontrados no Rio Grande do Sul (Cortez et al., 2004).

Figura 1. Exemplos de cogumelos exóticos comestíveis coletados em plantações de Pinus na região sul do
Brasil: A. Boletus edulis (porcini); B. Lactarius deliciosus (chamados de níscalos ou robellón na Espanha).
Fotos são autoria de M.A. Sulzbacher.

Em São Paulo, Ishikawa et al. (2017) relatam que cerca de 90 espécies de fungos
comestíveis foram registradas no estado. A Tabela 1 traz os nomes de algumas espécies
silvestres comestíveis que poderiam ser encontradas na região e no estado de São Paulo.
Algumas dessas espécies são apresentadas na Figura 2.

Tabela 1. Exemplos de espécies de fungos comestíveis* (nativos e exóticos) que podem


ser encontradas no estado de São Paulo.
Agaricus campestris Gymnopilus junonius Panus velutinus
Agaricus silvaticus Laetiporus spp. Phallus indusiatus
Agaricus volvatulus Lentinula raphanica Pholiota bicolor
Armillaria puiggarii Lentinus bertieri Pleurotus djamor
Auricularia delicata Lentinus crinitus Pleurotus pulmonaris
Auricularia fuscosuccinea Lepista nuda Podaxis pistillaris
Auricularia nigricans Lepista sordida Polyporus sapurema
Calvatia cyathiformis Macrolepiota bonaerensis Polyporus tricholoma
Coprinus comatus Neoclitocybe byssiseda Psathyrella candolleana
Favolus brasiliensis Oudemansiella cubensis Pseudohydnum gelatinosum
Fistulina hepatica Panus strigellus Tremella fuciformis

*a comestibilidade das espécies é apontada por diversos autores: Guzmán (1977), Boa (2004), Meijer
(2008), Sanuma et al. (2006), Vargas-Isla et al. (2013) e Ishikawa et al. (2017).

Sobre a coleta de fungos silvestres para consumo, é importante lembrar que não
existe uma regra fácil para diferenciar se um cogumelo/fungo é comestível ou tóxico. É
preciso ter certo conhecimento na identificação básica de fungos, utilizando bons livros
de referência ou guias de campos, mas que infelizmente ainda são raros no Brasil. Se
estiver na dúvida quanto à identificação de um cogumelo, é melhor não consumir.
Ainda, devemos ressaltar que os fungos podem acumular metais pesados e
radioisótopos, podendo conter uma concentração de até 100 vezes maior do que no solo
onde foi coletado. Dessa forma, é importante não consumir fungos coletados perto de
estradas, rodovias, áreas que podem estar contaminadas com metais pesados ou áreas
onde agrotóxicos e outros defensivos agrícolas foram pulverizados (Hall et al., 2003).
Outras informações interessantes sobre coleta e consumo de fungos silvestres foram
apontadas por Rigo (2017).
Figura 2. Exemplos de fungos silvestres comestíveis que ocorrem no Brasil: A. Auricularia fuscosuccinea;
B. Laetiporus sp.; C. Oudemansiella cubensis; D. Panus strigellus; E. Favolus brasiliensis (= Polyporus
tenuiculus); F. Pleurotus djamor var. roseus (= Pleurotus ostreatoroseus). Fotos são autoria de L.
Trierveiler-Pereira.

Referências
Aguiar, I.J.A.; Alves M.S. 1981. Polyporus indigenus I. Araujo & M. A. Sousa, nova espécie da Amazônia.
Acta Amazonica 11(3): 449–455.
Blackwell, M. 2011. The Fungi: 1, 2, 3 … 5.1 million species? American Journal of Botany 98(3): 426–
438.
Boa, E. 2004. Wild edible fungi, a global overview of their use and importance to people. Food and
Agriculture Organization of the United Nations, Roma.
Choudhary, M.; Devi, R.; Datta, A.; Kumar, A.; Jat, H. 2015. Diversity of wild edible mushrooms in Indian
Subcontinent and its neighboring countries. Recent Advances in Biology and Medicine 1: 69–76.
Cortez, V.G.; Coelho, G.; Guerrero, R.T. 2004. Morchella esculenta (Ascomycota): uma rara espécie
encontrada em Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. Biociências (Porto Alegre) 12(1): 51–53.
Dominguéz de Toledo, L.S. 1987. Sobre la presencia de Morchella esculenta (Morchellaceae,
Ascomycotina) em Argentina. Boletín de le Sociedad Argentina de Botánica 25(1-2): 79–84.
Fidalgo, O. 1968. Conhecimento micológico dos índios brasileiros. Revista de Antropologia 15/16: 27–34.
Guzmán, G. 1977. Identificación de los hongos comestibles, venenosos, alucinantes y destructores de la
madera. LIMUSA, Mexico.
Hall, I.R.; Stephenson, S.L.; Buchanan, P.K.; Yun, W.; Cole, A.L.J. 2003. Edible and poisonous
mushrooms of the world. Timber Press, Portland & Cambridge.
Ishikawa, N.K.; Vargas-Isla, R.; Gomes, D.; Menolli Jr., N. 2017. Principais cogumelos comestíveis
cultivados e nativos do estado de São Paulo. Pesquisa & Tecnologia 14(2).
Jabuti, 2007. Premiados 2017. Disponível em: <https://www.premiojabuti.com.br/premiados-por-
edicao/premiacao/?ano=2017>. Acesso em Maio 2018.
Kirk, P.M.; Cannon, P.F.; Minter, D.W.; Stalpers, J.A. 2008. Ainsworth & Bisby’s Dictionary of the Fungi.
10ª ed. CABI Europe, Wallingford.
Lewinsohn, T.M; Prado, P.I. 2005. How many species are there in Brazil? Conservation Biology, 19(3):
619–624.
Maia, L.C.; Carvalho Júnior, A.A.; Cavalcanti, L.H.; Gugliotta, A.M.; Drechsler-Santos, E.R. et al. 2015.
Diversity of Brazilian Fungi. Rodriguésia 66(4): 1033–1045.
de Meijer, A.A.R. 2008. Macrofungos notáveis das Florestas de Pinheiro-do-Paraná. EMBRAPA,
Colombo.
Rigo, N. 2017. O Brasil tem porcini. Fomos em busca dos cogumelos na Serra Catarinense. Paladar,
Estadão. Disponível em: <https://paladar.estadao.com.br/noticias/comida,em-busca-do-porcini-
brasileiro,70001921503>. Acesso em: Maio 2018.
Sanuma, O.I.; Tokimoto, K.; Sanuma, C.; Autuori, J.; Sanuma, L.R.; Sanuma, M.; Maertins, M.S.; Menolli
Jr., N.; Ishikawa, N.K.; Apiammö, R.S. (Orgs.). 2016. Ana amopö – Cogumelos. Enciclopédia dos
alimentos Yanomami (Sanöma). Instituto Socioambiental, São Paulo.
Urben, A.F.; Oliveira, C. 1998. Cogumelos comestíveis: utilização e fontes energéticas. In: Revisão Anual
de Patologia de Plantas, 1998. RAPP, Passo Fundo, v. 6: 173–196.
Vargas-Isla, R.; Ishikawa, N.K.; Py-Daniel, V. 2013. Contribuições etnomicológicas dos povos indígenas
da Amazônia. Biota Amazônia 3(1): 58–65.

Observação: Não foram incluídos nesse trabalho os nomes dos autores das espécies fúngicas, entretanto, todos
os nomes científicos aqui citados podem ser verificados no banco de dados online INDEX FUNGORUM
(http://www.indexfungorum.org/Names/Names.asp).

Citar como: TRIERVEILER-PEREIRA, L.; SULZBACHER, M.A.; BALTAZAR, J.M. 2018. Diversidade de fungos
brasileiros e alimentação: o que podemos consumir? In: III Fórum Ambiental de Angatuba, 2018, Angatuba-SP.
Resumo Expandido nos Anais do III Fórum Ambiental de Angatuba, 2008.

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