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Esferas: Espumas e Bolhas

Devemos entender por “sociedade” um agregado de microesferas (casais lares,


empresas, associações) de formatos diferentes (poliédricos), como as bolhas isoladas em
um monte de espuma, limitam umas com as outras, se empilham umas sobre e debaixo
de outras, se amontoam umas ao redor de outras sem ser realmente acessível umas para
outras, nem efetivamente separáveis umas das outras. As bolhas na espuma, isto é,
casais e agregados familiares, as equipes de sobrevivência e comunidades de
superveniência são micro-continentes constituídos autorreferencialmente. Não importa o
quanto eles finjam estar unidos com o outro e com o exterior, em princípio eles só são
apanhados em cada caso em si mesmos. As unidades simbiônticas (O vilão Venom de
Homem-Aranha é descrito como um simbionte. Um organismo que acaba se
conectando com um humano, digamos uma associação íntima com compartilhamento de
coisas) são conformadoras de um mundo sempre em si e para si junto a grupos
modeladores de mundos que fazem o mesmo a sua própria maneira e com aquelas que
estão constritas pelo princípio do co-isolamento, formando uma montagem interativa.
Suas semelhanças mútuas permitem tirar uma conclusão de que elas estão apenas
reciprocamente em intensas comunicações e amplamente abertas umas para as outras,
mas na realidade, a maioria dessas semelhanças de umas com as outras é simplesmente
uma gênese em ondas comuns de imitação. Sloterdijk usa aqui uma imagem bastante
significativa. Diz ele que devemos imaginar em ocupantes de veículos que viajam em
filas uns atrás dos outros nas avenidas. Cada grupo de viajantes conforma-se dentro uma
célula ressonante, mas entre os veículos reina o isolamento e assim estão bem, já que a
comunicação entre esses grupos significaria colisão. A comunicação ou a sintonia entre
eles não se produz por uma troca ou um intercâmbio pessoal e direto entre as células, e
sim pela infiltração mimética de normas, estímulos, mídias, mercadorias contagiosas e
símbolos semelhantes.
O que vemos nos meios de comunicação hoje ao falar sobre “globalização” é,
nada mais que morfologicamente falando uma guerra universal de espumas. São
espumas humanas desenvolvidas. Diante desse cenário, Sloterdijk fala sobre patologias
das esferas no processo pós-moderno fez emergir uma tríplice questão.
Sloterdijk (2016, p. 68):
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O primeiro é da alçada da ciência política, na medida em que as espumas são,


tendencialmente, estruturas ingovernáveis que pendem para a anarquia
morfológica. O segundo é cognitivo, na medida em que sujeitos associados e
indivíduos que vivem nas espumas não podem mais formar um mundo
inteiro, já que a própria ideia de mundo inteiro, com sua acentuação
tipicamente holística, pertence obviamente à era esgotada das monoesferas ou
círculos metafísicos de inclusão total. O terceiro, por fim, é psicológico, na
medida em que a tendência de indivíduos isolados em espumas é perder a
força para formar espaços psíquicos e atrofiar-se em pontos isolados
depressivos, que dispõem em uma roda arbitrária (corretamente denominada,
em termos sistêmicos, o ambiente); tais indivíduos sofrem dessa deficiência
imunitária desencadeada pelo aniquilamento das solidariedades – sem falar,
ainda, por enquanto, das novas imunizações através da participação nas
criações de esferas regeneradas. Para as pessoas privadas, esferodeficientes,
seu período de vida torna-se uma autoinflingida incomunicabilidade; seus
egos sem dimensão, tíbios nos atos, pobres em participação, olham fixamente
pela janela da mídia as imagens de paisagens animadas. Para as culturas de
massas agudizadas, é típico que as imagens animadas tornem-se muito mais
vivas que a maioria dos que as observam: repetição do animismo no pináculo
da modernidade.

De cada um dos lugares na espuma abrem perspectivas ao adjacente, mas não


há a disposição de visões panorâmicas gerais, no caso mais ambicioso dentro de uma
bolha se formulam hipérboles, que resultam úteis em numerosas bolhas vizinhas.
Seletivamente é possível a transmissão de mensagens e notícias, porém não há saídas ao
todo. Para a esferologia de Sloterdijk, especialmente nas espumas, que aceita o ser-em-
na-espuma como uma determinação primária da situação, as supervisões que chegam a
conclusão do mundo único são completamente inacessíveis e talvez impossíveis e nem
desejáveis. Como já mencionado, se falamos das espumas devemos abandonar a
metafísica clássica com a ideia de monoesferas centrais, totalizantes e omni-
compreensíveis. A melhor visão seria como sistemas de bairros assimétricos entre
estufas de intimidade e mundos próprios geralmente de tamanhos médios, as espumas
são meios transparentes e opacos. A situação da espuma é uma montagem relativa de
visão ao redor e de cegueira. Todo o Dasein (ser-aí ou ser-em-no-mundo) entendido
como ser-em-na-espuma abre um claro no impenetrável. A esferologia plural foi
tomando de conta provisoriamente na moderna biologia pela noção do conceito de
“entorno”. Creio que foi um erro acreditar que o mundo humano proporcionaria uma
plataforma comum para todos os seres vivos. Todo ser vivo tem uma plataforma
especial, ela é específica para si e é tão real como a plataforma especial dos seres
humanos. Por esse reconhecimento conseguimos uma nova visão do universo. Este não
consiste em uma única bolha de sabão, que havíamos inflado e soprado para cima no
nosso horizonte até o infinito, e sim milhões e milhões de bolhas de sabão estreitamente
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delimitadas que se cruzam e se interferem por todas as partes. Se pensarmos em animais


cada um possui um habitat com seu entorno. A aranha com seu ninho de teias, formigas
com seu ninho, aves fazem seu ninho com gravetos e folhas e os homens em bolhas-
esferas. No lugar da super bolha de sabão filosófica, do mundo-uno, de cujas formas
vimos em Esferas II - Globos, sobretudo, aparece uma aglomeração policósmica, que
pode descrever-se como agrupamento de grupos, como espumas semi-opacas composta
de estruturas espaciais conformadoras de mundos. É importante compreender que essa
multiplicidade ilimitada de modos de existência sensíveis nos entornos estruturados com
sentido já está desembocada em um nível de inteligência animal, e, pelo que sabemos,
não existe animal algum que haja um inventário de todos os demais animais e os
refizera a si mesmos. O homem talvez seja o mais perto disso com as espumas
ontológicas.
As totalidades circunstanciadas (ou os limites do meu mundo) que não
podemos abandonar são chamadas de “entornos” ou “meio ambientes”. São uma
denominação de origem da biologia creio eu. O próprio Heidegger menciona que
plantas e animais estão mergulhados no seio de seus ambientes próprios (terra, raízes,
água), estão envoltos por uma espacialidade que os forma, “mas nunca estão inseridos
livremente na clareira do ser – e só esta clareira é ‘mundo’ –, por isso, falta-lhes a
linguagem. Que se atente bem para a inversão: o homem é que é chamado pelo ser para
pastorá-lo. “É o ser que emprega os homens como guardiões”, diz Sloterdijk. E em
seguida, completa: “o local em que esse emprego é válido é a clareira (Lichtung), ou o
lugar onde o ser surge como aquilo que é”. O ser é o que é. Não é isso ou aquilo. Não é
o ente. O ser é o que é, e surge assim na clareira, que, sendo o aí do ser-aí, é o próprio
Dasein. Este, o Dasein, “pode ser encontrado onde há uma interrupção na opacidade da
natureza, onde há uma passagem para o céu aberto acima, tornando possível a
observação”; é “onde há luz suficiente para o “Dasein” notar sua própria existência [1].
Não é porque lhes falta a linguagem que eles são sem mundo. Linguagem não é
expressão de ser vivo. Linguagem é “advento iluminador-velador do ser”. Ela vela o ser,
ilumina-o. “A clareira em si é o ser”. Clareira é ser, é mundo e a linguagem que vela o
ser, ilumina-o, é a “casa do ser”. Quando Sloterdijk diz que se está produzindo o claro
(no lançamento da pedra que é análogo à linguagem), ele está dizendo que está se
produzindo o ser, o mundo, pois ao se produzir a linguagem se está produzindo a casa
do ser [2]. Se a passagem de um Umwelt (ambiente) “natural” para uma do tipo técnico
envolve a saída ao aberto e, consequentemente, um novo isolamento (ou
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“insulamento”), é necessário pensar o processo no qual os pré-humanos, isto é, esses


que ainda não são humanos (“animais”), mas que implicaram e foram implicados,
paulatinamente, no processo de construção do humano, criaram muros e barreiras,
ilhando-se contra o exterior. Necessário dizer que tal “saída ao aberto” é, ela mesma, a
própria passagem entre as duas formas de conformação, “natural” e técnica, híbrida.
Junto a isso, também os meios técnicos se alteram progressivamente, no sentido de um
afastamento da dependência fisiológica da Umwelt por meio de instrumentos. A
fisiologia, portanto, acaba sendo paulatinamente alterada e refinada, a fim de atender às
demandas adaptativas da estufa. No entanto, na instabilidade inerente ao espaço interior,
que se vê em conflito com o exterior e, ao mesmo tempo, que se vê sob o risco de
perder a organização interna, há sempre a possibilidade de rompimento e implosão da
estufa. Se animais são adestrados o homem é domesticado dentro de sua própria cultura.
Isso se dá provavelmente pela “transferência” da qual Sloterdijk fala no início
de Esferas I: Bolhas e em Crítica da Razão Cínica 1. O que consideramos vida é sempre
uma vida no entorno e esse entorno é também contra um ambiente e em oposição a
muitos ambientes estranhos. Sloterdijk irá falar como as espumas de certa forma criam
uma topologia do espaço. Devemos ter em consideração processos esferopoiéticos que
são formados debaixo dos espaços habitados, edifícios e demais formas de aglomeração
arquitetônica. Uma visão que segue a ideia de edifício com uma bolha de sabão. A
bolha de sabão é perfeitamente harmônica quando e está bem repartida, bem como
regulada desde dentro. O exterior é o resultado de um interior. Nesse giro ante a leveza,
o explícito se manifesta com uma função moderna da ciência e da cultura. Se apresenta
como o agente de explicações civilizatórias em geral. As culturas serão o preenchimento
de esferas-bolhas com ar que criam tensão (que serão hierárquicas como sábios x
ordinários, pastor x ovelha, general x soldado, sagrado x profano, rei x súditos; até
mesmo os primeiros caciques, chefes, xamãs ou homens sabem mais que os outros)
entre aqueles que compartilham dessa geometria do espaço. A respeito dela, deve ficar
gravado que a partir de agora há de ser sempre também ciência da técnica e da prática
administrativa para o trabalho de estufas culturais. Depois de que as culturas,
exatamente elas, já não parecem instaladas devemos nos preocupar de sua permanência
e de sua regeneração cultivando-as, reescrevendo-as, filtrando-as, explicando-as,
reformando-as. A cultura de todas as culturas se converterá em critério de civilização.
Depois das Bolhas e Globos, o ser-em-no-mundo foi descrito por relações de construção
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SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, pp. 87-88.
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e projeção de tecnólogos midiáticos, arquitetos de interiores, médicos, os desenhos de


atmosferas. O que se entende por espacialidade, as atmosferas e as situações
envolventes nas quais nós mantemos segundo nossos próprios planos, valorações e
necessitadas, entra em cena, as atividades construtivas e reconstrutivas. Uma visão que
poderia facilitar aqui é um Playground para criança, mas aqueles cheios de ar feitos de
espumas ou como balões. Se elas voltarem é porque são produtos de explicação os
objetos dignos de conservação. Nada mais que estarão abaixo de um tipo de vigilância e
uma preocupação sócio-política constante e fundamental. Temos o novo desenho
técnico. O que era “mundo da vida”, agora se converteu em técnica climática. Ar em
lugares inesperados.
Nietzsche fala do corpo como um campo plural de seres vivos, com “vontades”
(bem aspadas) diversas. Essa “biologia” de Nietzsche recorre a fatos conhecidos, postos
aqui e acolá por estudiosos atuais, a respeito da flora intestinal, mas também de como
todo o nosso corpo é lugar de milhares de bactérias, se seres vivos que nos são vitais,
que decidem muito sobre o que fazemos, representando mais de 80% das células que
carregamos. Se pensarmos que vários desses seres são responsáveis pelo que podemos
ou não podemos fazer no controle da absorção da serotonina, que é nosso regulador de
felicidade, então realmente as questões de uma vontade celular plural. De fato, temos de
considerar que somos um ecossistema, um campo de trocas e simbioses, alguma coisa
feita antes do barro adamítico que da crença de um eu individual, autônomo, iluminista,
forjado pelo liberalismo e referendado por Descartes e Kant filosoficamente. Aliás, se
começarmos a pensar o corpo a partir dessas disposições, certamente entenderemos
melhor a noções de ressonância de Sloterdijk, que nos afasta da dicotomia cultura-
natureza, aliás, uma dicotomia que mais atrapalha que ajuda no nosso entendimento de
nós mesmos. Mesmo após todo alerta pós-moderno sobre as falhas da filosofia do
sujeito, ainda estamos patinando nesta filosofia tradicional, às vezes falando não mais
como Descartes, mas ainda falando como Habermas, em intersubjetividade linguística e
coisas do tipo. Talvez tenhamos que levar a sério a ideia de que o corpo é um campo de
ressonâncias ou “o corpo é um lugar” de acordo com Foucault em “O corpo Utópico”
[3] um sistema de comportas que pode lembrar, às vezes, uma cidadela de paredes
tênues, porosas, com aspectos de bonecas russas umas encaixadas nas outras, mas de
modo surreal, em que o maior cabe no menor. Começando por essa via, pode ser que
consigamos dar passos maiores a respeito daquela desconfiança de Nietzsche quanto à
ideia de que somos donos de nosso nariz para além dos gostos do nosso nariz. Para
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terminar. Desde o colégio aprendemos que mitocôndrias foram, no passado, animais


com vida própria que, um dia, acabaram sendo incorporados pelo sistema e hoje estão,
como meros órgãos.
A descrição de Sloterdijk funciona como uma espécie de “parede celular” onde
os diversos tipos de mecanismos, possam se deixar fluir, uma parede resistente sem que
ela seja uma espécie de barreira, mas ao mesmo tempo flexível, como se fossem
“microfibrilas” permitindo que uma célula possa crescer. Membranas ativas são muros.
Mas não quaisquer muros. Uma bolha não pode dar certo e ser rígida. Ela não pode ser
uma câmara num tipo de enclausuramento. O problema do Muro de Berlim foi que ele
não era uma membrana, como os modernos muros. Ele se fez de pedra e ideologia.
Membranas podem ser de vários materiais, menos o ideológico. As membranas devem
ser pragmáticas. Nesses apontamentos a “sociedade” aparece como carpete
interconectado. E sua dimensão mais importante é sua capacidade de prolongamento
espacial lateral. As “sociedades” se compõe de seres que estão dentro e fora de sua
associação.
De grande ajuda este “giro monadológico” os ajudou a destronar a ilusão do
individualismo clássico quando se referem aos membros das “sociedades burguesas” de
modo que a partir de agora só podemos pensar as “sociedades” como uma reunião
reunida ou como composição de composições, mas devemos aproveitar isso e dar um
“giro diadológico”. Uma forma cujos conteúdos lhes proporciona coexistência de dois
em interações fortes. Multiplicidade de díadas, cujas unidades elementares não
constituem indivíduos, mas casais, moléculas simbióticas, lares, comunidades de
ressonância como já foi fala basicamente em todo o Esferas - I: Bolhas. Vimos, que o
que se chama Bolha é um local que se faz por “relações fortes”, essa sim é a resposta
para a coexistência. Um local cujas característica consiste em que os seres humanos em
um espaço-próximo criam uma relação psíquica de convívios recíprocos numa espécie
de “receptáculos autógenos”. Logo, a multiplicidade desses espaços (auto-receptáculos)
nos conduz para as espumas.
Se vermos o sistema reprodutor tanto masculino como feminino (2 testículos e
2 ovários), teremos a predominância do duplo esférico quase como se especificamente a
mulher, pusesse um ovo em si mesma. Entre insetos, répteis, peixes e pássaros – isto é,
entre a grande variedade de espécies – o ovo fertilizado, o portador da informação
genética, é posto em um ambiente exterior que vagamente possui as propriedades de um
útero ou ninho externo. Agora, algo muito incrível acontece na linha evolucionária que
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leva até os mamíferos: o corpo das fêmeas da espécie é definido como um nicho
ecológico para a sua descendência. Isso leva a uma dramática virada interna na
evolução. O que nós vemos é um uso dual das fêmeas de uma espécie. De agora em
diante elas não são somente sistemas de ovos postos, mas feminilidade significa a fase
bem-sucedida de um sistema de ovulação. Elas põem os ovos dentro de si próprias e
tornam seu próprio corpo disponível como um nicho ecológico (uma adaptação
evolutiva dos mamíferos) para sua descendência. Desse modo, elas se tornam mães
animais integradas e o nascimento para a ser uma espécie de evento esperado. O útero
como ninho e abrigo. E a placenta como casca desse “ovo”. Poderíamos imaginar a
metáfora das Esferas para o processo de formação do feto como “a bolha fervendo na
espuma”. Vemos em ovos de répteis ou aves uma membrana bem fina que cobre o seu
interior um sistema mais evoluído nos mamíferos é visto quando uma membrana maior
e mais maleável é constituída ao redor do feto. Isso corroboraria a tese de Sloterdijk em
dizer que somos todos hermafroditas2.
E não raro, a eucaristia é um exemplo dessa aliança. Pão e vinho se
transubstanciam, respectivamente, no corpo e sangue de Cristo. Se olharmos João 6:54
temos: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o
ressuscitarei no último dia” e João e 58: “Este é o pão que desceu do céu; não é o caso
de vossos pais, que comeram o maná e morreram; quem comer este pão viverá para
sempre”. Temos ainda batizados na água e festas de entrelaçamento por meio de bebida
comum como uma fonte da vida – uma segunda vida? Sem a água para semear a terra
não há frutos. Sloterdijk fala bastante sobre como a placenta é enterrada [4], suspensa ao
ar, queimada ou imersa em líquidos. Mais tarde esse meio íntimo líquido levará os
homens modernos a falarem no telefone, usar a internet, estarem em comunicação
contínua. Desde o início, diz Sloterdijk, “a história do eu é antes de tudo uma história do

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O desenvolvimento das gônadas faz parte da determinação cromossômica do sexo, ou seja, vem a partir
de uma carga genética, transmitida de geração em geração. Nos mamíferos em geral, usa-se o sistema
XY de determinação. Ambos os sexos se iniciam com uma gônada bipotente, ou seja, indiferenciada. Isso
é uma situação bem peculiar, visto que, em geral, os órgãos têm apenas um destino possível, mesmo em
um estado primário. A gônada rudimentar aparece próxima aos rins rudimentares no início do
desenvolvimento (na quarta semana em humanos) e permanecem assim por um longo período (até a
sétima semana em humanos). O desenvolvimento ocorre a partir do mesoderma intermediário, havendo
proliferação de células na chamada crista genital, que dará origem à parte somática das gônadas, cercando
as células germinativas, que migrarão até essa região. A gônada bipotente, então, precisa se diferenciar, a
partir do genótipo do indivíduo. Não são os hormônios que influenciam a diferenciação das gônadas, mas
sim o componente genético. A gônada já diferenciada irá então, produzir hormônios que auxiliarão no
funcionamento correto do órgão. A diferenciação ocorre em algum dos sistemas de canais pares: o de
Wolffian, no sentido masculino e o de Müller, no sentido feminino.
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auto-transporte”. Vemos também em culturas mais primitivas guerreiros que bebiam


sangue dos seus inimigos derrotados e mortos, nossos índios com o hábito de comer
placenta, alguns mamíferos depois de parirem comem sua própria placenta, mais
recentemente na sociedade contemporânea, vemos pílulas feitas de placenta e pessoas se
alimentando de placenta. Em alguns lugares há uma gastronomia surgindo nesse
sentido. Seria possível pensar em um mundo moderno, uma nova aliança com uma
ontologia do dois? As pessoas estarão despertando de seu útero? Parece que toda a
renovação e transformação é sempre feita em um interior. Como na nossa primeira casa
ou em você mesmo ao comer a hóstia que é o corpo de cristo. Esse líquido específico
parece despertar e ter uma capacidade geradora de transformações. Estamos falando que
isso tem a ver com uma teoria do penetrar-penetrado, com uma ética do
transbordamento e da inserção em outros, com uma lógica da absorção e da remissão.
As metáforas da interpenetração, do perpassar por entranhas e do estar prenhe e
emprenhar são suficientes para que não se pense no modelo de um indivíduo unitário e
solitário ou de um indivíduo no contexto de uma interação ou um acontecimento
intersubjetivo. O personagem principal no primeiro livro é Jonas e o complexo de Jonas.
Jonas 1:17 “Preparou, pois, o Senhor um grande peixe, para que tragasse a Jonas; e
esteve Jonas três dias e três noites nas entranhas do peixe, João 6:54 “Quem come a
minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” e
Mateus 12:40 “Pois, como Jonas esteve três dias e três noites no ventre da baleia, assim
estará o Filho do homem três dias e três noites no seio da terra”. Trata-se de alguém que
foi engolido e que, ao sair, vai deixar de fugir e assumir sua função, mas também se
trata de alguém que, vindo das entranhas da baleia, passou três dias numa espécie de
interior escuro e tendo sido imiscuído novamente em um tipo de líquido amniótico,
atravessado por nutrientes de vários tipos da própria baleia sai de lá modificado. Algo
“mágico” aconteceu. Tudo que o novo líquido amniótico fez foi colocar para o hóspede
a seiva e o suco gástrico de outro. O que ali o hóspede teve foi o líquido para ser bebido,
o creme para se tornar um lambuzado e os ingredientes que fizeram os seus poros [5]
comporem um corpo enquanto uma fina peneira dentro da baleia. Jonas deveria
experimentar um tipo de sopa contida de vários ingredientes e temperos. Passados os
três dias, saiu dali para tornar-se o que se é, o novo profeta, aceitar a missão que Deus
lhe havia dado. Jonas deveria ser ousado e confiante. Então começou a orar a Deus,
iniciando o processo de tomar seu destino. Deus atendeu o seu chamado e fez a baleia
cuspi-lo. Uma vez fora desse interior, Jonas compreendeu tudo e assumiu a missão de
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pregador e profeta. Uma explicação aqui se faz necessária. Tales de Mileto havia falado:
“tudo é água” (uma arkhé, um princípio de tudo). Tudo fica mais translúcido, quando a
narrativa ontológica aqui desenvolvida começa na esfera íntima, na microesferologia.
As esferas são pequenas formas ou um sistema de autoprodução capaz de criar um tipo
de impermeabilização imunológica dos homens perante o exterior que os atinge e
durante essa autoprodução o homem abandona sua condição de animal para um
processo de hominização, um autotransporte. Uma antropogênese por vias de uma
transferência antropotécnica. A bolha é também uma pequena esfera em ressonância
psico-acústica ou espaço de ressonância capaz de aprender e de se reproduzir pela
aprendizagem cujo individual comparece como polo de ressonância das relações
coletivas. O homem para Sloterdijk é um arquiteto clandestino de espaços interiores
para poder existir. Isso porque o homem é um construtor de lares, de algo como “o
dentro”, e nisso coabita e coexiste. Falar de Esferas não é, portanto, simplesmente
desenvolver uma “teoria da intimidade simbiótica” e do surrealismo dual, mas a teoria
das Esferas começa como psicologia da construção do espaço interior partindo de
correspondências biunívocas, mas ela se estende para uma “teoria geral dos vasos
autógenos”. É esta teoria que provê todas as formas abstratas de imunologia. Sob o
signo de Esferas coloca-se, por fim, a questão acerca da forma das criações políticas de
espaço no mundo. Para Sloterdijk, a psicologia esférica vem antes da política das
Esferas. A filosofia da intimidade deve fundar a morfologia topológica política. Essa
sequência é assim porque cada vida percorre em seu começo uma fase em que uma
suave demência a dois preenche o mundo. Cuidados extáticos misturam mãe e criança
em uma redoma de proximidade e amor, cujos ecos se mostram efetivos em todas as
circunstâncias para uma vida feliz. Desse dois rapidamente vem um terceiro, um quatro.
Com a saída da vida individualizante para fora de seu invólucro original, surgem os
polos suplementares e configurações espaciais mais extensas, que determinam, a cada
passo, uma crescente amplitude de cuidados e participações até se chegar a vida adulta.
A esferologia é pensada desde o início com processos de transposições das
microesferas para as macroesferas. Mas o que ela exprime inicialmente é a saída do
vivente dos regaços maternos sejam eles reais ou virtuais. E daí para o cosmos denso
das civilizações regionais desenvolvidas e, para além delas, os mundos de espuma não
redondos e não densos da moderna cultura global. As Esferas são formas enquanto
forças do destino. Começando pelo murmúrio fetal em suas águas escuras privadas, até
o globo cósmico-imperial. Fazendo isso encontramos (pelo menos na forma com eu li)
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um pensamento antecipador de contornos definidos para o século que estamos ao se


encontrar impedido ante a incerteza a respeito da solidariedade de seus semelhantes
porque sua vitória só pode acontecer perante a derrota de outros. O estar no mundo é
muito mais decisivo e fala muito mais sobre nós mesmos que qualquer pergunta
existencialista possa fazer. O “Dasein”, o sujeito, ontologicamente falando é espacial,
porque quando se fala no “ser-aí” esse “aí” é o campo histórico. O sujeito não pode
semear sua história senão por meio de um espaço. Porque por mais que o aí do ser-aí
seja histórico e, assim sendo, nos dê o “Dasein” como o que se mostra fora das
abstrações que buscam tradicionalmente descrever o homem, colocando-o sempre em
uma linha de etiquetagem de ideias preconcebidas, ideias substancialistas e
essencialistas. A historicidade completa necessita se ater ao espaço. Fora disso, o “aí”
do ser-aí ainda seria, também, uma abstração. O “Dasein” não pode esbanjar
historicidade se não esbanja espacialidade.
A resposta de Sloterdijk sobre essa pergunta é só uma. Estamos em esferas. Por
isso, a indagação pelo nosso onde faz mais sentido do que nunca, pois se dirige ao lugar
que os homens se produzem para nele poder existir tal como são. Esse lugar leva, aqui
em memória de uma venerável tradição, o nome Esfera.
Eduardo Rocha. São Luís, Maranhão, Brazil. 03/06/2018.
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Referências:

[1] COUTURE, Jean Pierre. Sloterdijk. Malden (US) e Cambridge (UK): Polity Press,
2016, p. 35.

[2] HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães, 1987, pp.
48-60.

[3] FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico e as Heterotopias. São Paulo: Editora: N-


1 Edições, 2013, pp. 1-2. Basta eu acordar, que não posso escapar deste lugar que,
docemente, ansiosamente, ocupa uma vez mais em cada despertar. Não que me prenda
ao lugar – porque depois de tudo eu posso não apenas mexer, andar por aí, mas posso
movimentá-lo, removê-lo, mudá-lo de lugar –, mas somente por isso: não posso me
deslocar sem ele. Não posso deixá-lo onde está para ir a outro lugar. Posso ir até o fim
do mundo, posso me esconder, de manhã, debaixo das cobertas, encolher o máximo
possível, posso deixar-me queimar ao sol na praia, mas o corpo sempre estará onde eu
estou. Ele está aqui, irreparavelmente, nunca em outro lugar. Meu corpo é o contrário de
uma utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar absoluto, o pequeno fragmento
de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo. Meu
corpo, topia desapiedada. E se, por ventura, eu vivesse com ele em uma espécie de
familiaridade gastada, como com uma sombra, como com essas coisas de todos os dias
que finalmente deixei de ver e que a vida passou para segundo plano, como essas
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chaminés, esses telhados que se amontoam cada tarde diante da minha janela? Mas,
todas as manhãs, a mesma ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem
que o espelho impõe: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na
verdade. Meu corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É
através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar
irremediável a que estou condenado. Depois de tudo, creio que é contra ele e como que
para apagá-lo, que nasceram todas as utopias. A que se devem o prestígio da utopia, da
beleza, da maravilha da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas é um
lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será belo, límpido, transparente,
luminoso, veloz, colossal em sua potência, infinito em sua duração, desligado, invisível,
protegido, sempre transfigurado; e é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a
mais inextirpável no coração dos homens, seja precisamente a utopia de um corpo
incorpóreo. O país das fadas, dos duendes, dos gênios, dos magos, e bem, é o país onde
os corpos se transportam à velocidade da luz, onde as feridas se curam imediatamente,
onde caímos de uma montanha sem nos machucar, onde se é visível quando se quer e
invisível quando se deseja. Se há um país mágico é realmente para que nele eu seja um
príncipe encantado e todos os lindos peraltas se tornem peludos e feios como ursos. Mas
há ainda outra utopia dedicada a desfazer os corpos. Essa utopia é o país dos mortos, são
as grandes cidades utópicas deixadas pela civilização egípcia. Mas, o que são as
múmias?  São a utopia do corpo negado e transfigurado. As múmias são o grande corpo
utópico que persiste através do tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos; as
estátuas, que, desde a Idade Média, prolongam uma juventude que não terá fim.
Atualmente, existem esses simples cubos de mármore, corpos geometrizados pela pedra,
figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E nessa cidade
de utopia dos mortos, eis aqui que meu corpo se torna sólido como uma coisa, eterno
como um deus. Mas, talvez, a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através
das quais apagamos a triste topologia do corpo nos seja administrada pelo grande mito
da alma, fornecido desde o fundo da história ocidental. A alma funciona
maravilhosamente dentro do meu corpo. Nele se aloja, evidentemente, mas sabe escapar
dele: escapa para ver as coisas, através das janelas dos meus olhos, escapa para sonhar
quando durmo, para sobreviver quando morro. A minha alma é bela, pura, branca. E se
meu corpo barroso – em todo o caso não muito limpo – vem a se sujar, é certo que
haverá uma virtude, um poder, mil gestos sagrados que a restabelecerão em sua pureza
primeira. A minha alma durará muito tempo, e mais que muito tempo, quando o meu
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velho corpo apodrecer. Viva a minha alma!  É o meu corpo luminoso, purificado,
virtuoso, ágil, móvel, tíbio, fresco; é o meu corpo liso, castrado, arredondado como uma
bolha de sabão. E eis que o meu corpo, pela virtude de todas essas utopias, desapareceu.
Desapareceu como a chama de uma vela que alguém sopra. A alma, as tumbas, os
gênios e as fadas se apropriaram pela força dele, o fizeram desaparecer em um piscar de
olhos, sopraram sobre seu peso, sobre sua feiura, e me restituíram um corpo fulgurante e
perpétuo [...texto continua].

[4] SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Bolhas (Microesferologia). Tradução José Oscar


de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, pp. 344-345. Capítulo 5 (O
Acompanhante Originário – Réquiem para um Órgão Rejeitado). Bíblia: Mateus 3:10
“E também agora está posto o machado à raiz das árvores; toda a árvore, pois, que não
produz bom fruto, é cortada e lançada no fogo”.

[5] BATAILLE, George. A Parte Maldita. Tradução Júlio Castañon Guimarães. São
Paulo e Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 50. Para ele são importantes as relações
intersolares, as emissões de raios que se dão de astro a astro, o perpassar das entranhas,
o fazer prenhe e o emprenhar. O sol como elemento que dá tudo e gera vida sem pedir
nada em troca.
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Figuras:

Desenho de Útero. Embrião e Placenta. Leonardo da Vinci. (1510).


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Espumas

Transição de uma bolsa de bolhas a uma parede poliédrica aplanada, segundo estudos
de Frei Otto.
16

Sartre andando e sua sombra o acompanhando, Antanas Sutkus (1965).


17

O Nascimento de Vênus. Sandro Botticelli. (1477-1478). A deusa está prestes a deixar


seu barco, uma concha ancorada no centro da composição. Embora o nome do quadro
se refira ao nascimento de Vênus, este fato se deu em circunstâncias menos poéticas.
De acordo com a mitologia grega, a deusa teria surgido da espuma fértil criada quando
os órgãos genitais de seu pai, Urano, foram jogados no mar.
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Desenho de Jonas. Mapa (1595).

Bíblia:

- Jonas 2:1 “E orou Jonas ao SENHOR, seu Deus, das entranhas do peixe”.

- Jonas 2:2 “E disse: Na minha angústia clamei ao Senhor, e ele me respondeu; do ventre do
inferno gritei, e tu ouviste a minha voz”.

- Marcos 1:8 “Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o
Espírito Santo”.

- Marcos 16:16 “Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado”.
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Jardim das Delícias. Hieronymus Bosch. (1504).


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