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leva até os mamíferos: o corpo das fêmeas da espécie é definido como um nicho
ecológico para a sua descendência. Isso leva a uma dramática virada interna na
evolução. O que nós vemos é um uso dual das fêmeas de uma espécie. De agora em
diante elas não são somente sistemas de ovos postos, mas feminilidade significa a fase
bem-sucedida de um sistema de ovulação. Elas põem os ovos dentro de si próprias e
tornam seu próprio corpo disponível como um nicho ecológico (uma adaptação
evolutiva dos mamíferos) para sua descendência. Desse modo, elas se tornam mães
animais integradas e o nascimento para a ser uma espécie de evento esperado. O útero
como ninho e abrigo. E a placenta como casca desse “ovo”. Poderíamos imaginar a
metáfora das Esferas para o processo de formação do feto como “a bolha fervendo na
espuma”. Vemos em ovos de répteis ou aves uma membrana bem fina que cobre o seu
interior um sistema mais evoluído nos mamíferos é visto quando uma membrana maior
e mais maleável é constituída ao redor do feto. Isso corroboraria a tese de Sloterdijk em
dizer que somos todos hermafroditas2.
E não raro, a eucaristia é um exemplo dessa aliança. Pão e vinho se
transubstanciam, respectivamente, no corpo e sangue de Cristo. Se olharmos João 6:54
temos: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o
ressuscitarei no último dia” e João e 58: “Este é o pão que desceu do céu; não é o caso
de vossos pais, que comeram o maná e morreram; quem comer este pão viverá para
sempre”. Temos ainda batizados na água e festas de entrelaçamento por meio de bebida
comum como uma fonte da vida – uma segunda vida? Sem a água para semear a terra
não há frutos. Sloterdijk fala bastante sobre como a placenta é enterrada [4], suspensa ao
ar, queimada ou imersa em líquidos. Mais tarde esse meio íntimo líquido levará os
homens modernos a falarem no telefone, usar a internet, estarem em comunicação
contínua. Desde o início, diz Sloterdijk, “a história do eu é antes de tudo uma história do
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O desenvolvimento das gônadas faz parte da determinação cromossômica do sexo, ou seja, vem a partir
de uma carga genética, transmitida de geração em geração. Nos mamíferos em geral, usa-se o sistema
XY de determinação. Ambos os sexos se iniciam com uma gônada bipotente, ou seja, indiferenciada. Isso
é uma situação bem peculiar, visto que, em geral, os órgãos têm apenas um destino possível, mesmo em
um estado primário. A gônada rudimentar aparece próxima aos rins rudimentares no início do
desenvolvimento (na quarta semana em humanos) e permanecem assim por um longo período (até a
sétima semana em humanos). O desenvolvimento ocorre a partir do mesoderma intermediário, havendo
proliferação de células na chamada crista genital, que dará origem à parte somática das gônadas, cercando
as células germinativas, que migrarão até essa região. A gônada bipotente, então, precisa se diferenciar, a
partir do genótipo do indivíduo. Não são os hormônios que influenciam a diferenciação das gônadas, mas
sim o componente genético. A gônada já diferenciada irá então, produzir hormônios que auxiliarão no
funcionamento correto do órgão. A diferenciação ocorre em algum dos sistemas de canais pares: o de
Wolffian, no sentido masculino e o de Müller, no sentido feminino.
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pregador e profeta. Uma explicação aqui se faz necessária. Tales de Mileto havia falado:
“tudo é água” (uma arkhé, um princípio de tudo). Tudo fica mais translúcido, quando a
narrativa ontológica aqui desenvolvida começa na esfera íntima, na microesferologia.
As esferas são pequenas formas ou um sistema de autoprodução capaz de criar um tipo
de impermeabilização imunológica dos homens perante o exterior que os atinge e
durante essa autoprodução o homem abandona sua condição de animal para um
processo de hominização, um autotransporte. Uma antropogênese por vias de uma
transferência antropotécnica. A bolha é também uma pequena esfera em ressonância
psico-acústica ou espaço de ressonância capaz de aprender e de se reproduzir pela
aprendizagem cujo individual comparece como polo de ressonância das relações
coletivas. O homem para Sloterdijk é um arquiteto clandestino de espaços interiores
para poder existir. Isso porque o homem é um construtor de lares, de algo como “o
dentro”, e nisso coabita e coexiste. Falar de Esferas não é, portanto, simplesmente
desenvolver uma “teoria da intimidade simbiótica” e do surrealismo dual, mas a teoria
das Esferas começa como psicologia da construção do espaço interior partindo de
correspondências biunívocas, mas ela se estende para uma “teoria geral dos vasos
autógenos”. É esta teoria que provê todas as formas abstratas de imunologia. Sob o
signo de Esferas coloca-se, por fim, a questão acerca da forma das criações políticas de
espaço no mundo. Para Sloterdijk, a psicologia esférica vem antes da política das
Esferas. A filosofia da intimidade deve fundar a morfologia topológica política. Essa
sequência é assim porque cada vida percorre em seu começo uma fase em que uma
suave demência a dois preenche o mundo. Cuidados extáticos misturam mãe e criança
em uma redoma de proximidade e amor, cujos ecos se mostram efetivos em todas as
circunstâncias para uma vida feliz. Desse dois rapidamente vem um terceiro, um quatro.
Com a saída da vida individualizante para fora de seu invólucro original, surgem os
polos suplementares e configurações espaciais mais extensas, que determinam, a cada
passo, uma crescente amplitude de cuidados e participações até se chegar a vida adulta.
A esferologia é pensada desde o início com processos de transposições das
microesferas para as macroesferas. Mas o que ela exprime inicialmente é a saída do
vivente dos regaços maternos sejam eles reais ou virtuais. E daí para o cosmos denso
das civilizações regionais desenvolvidas e, para além delas, os mundos de espuma não
redondos e não densos da moderna cultura global. As Esferas são formas enquanto
forças do destino. Começando pelo murmúrio fetal em suas águas escuras privadas, até
o globo cósmico-imperial. Fazendo isso encontramos (pelo menos na forma com eu li)
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Referências:
[1] COUTURE, Jean Pierre. Sloterdijk. Malden (US) e Cambridge (UK): Polity Press,
2016, p. 35.
[2] HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães, 1987, pp.
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chaminés, esses telhados que se amontoam cada tarde diante da minha janela? Mas,
todas as manhãs, a mesma ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem
que o espelho impõe: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na
verdade. Meu corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É
através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar
irremediável a que estou condenado. Depois de tudo, creio que é contra ele e como que
para apagá-lo, que nasceram todas as utopias. A que se devem o prestígio da utopia, da
beleza, da maravilha da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas é um
lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será belo, límpido, transparente,
luminoso, veloz, colossal em sua potência, infinito em sua duração, desligado, invisível,
protegido, sempre transfigurado; e é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a
mais inextirpável no coração dos homens, seja precisamente a utopia de um corpo
incorpóreo. O país das fadas, dos duendes, dos gênios, dos magos, e bem, é o país onde
os corpos se transportam à velocidade da luz, onde as feridas se curam imediatamente,
onde caímos de uma montanha sem nos machucar, onde se é visível quando se quer e
invisível quando se deseja. Se há um país mágico é realmente para que nele eu seja um
príncipe encantado e todos os lindos peraltas se tornem peludos e feios como ursos. Mas
há ainda outra utopia dedicada a desfazer os corpos. Essa utopia é o país dos mortos, são
as grandes cidades utópicas deixadas pela civilização egípcia. Mas, o que são as
múmias? São a utopia do corpo negado e transfigurado. As múmias são o grande corpo
utópico que persiste através do tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos; as
estátuas, que, desde a Idade Média, prolongam uma juventude que não terá fim.
Atualmente, existem esses simples cubos de mármore, corpos geometrizados pela pedra,
figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E nessa cidade
de utopia dos mortos, eis aqui que meu corpo se torna sólido como uma coisa, eterno
como um deus. Mas, talvez, a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através
das quais apagamos a triste topologia do corpo nos seja administrada pelo grande mito
da alma, fornecido desde o fundo da história ocidental. A alma funciona
maravilhosamente dentro do meu corpo. Nele se aloja, evidentemente, mas sabe escapar
dele: escapa para ver as coisas, através das janelas dos meus olhos, escapa para sonhar
quando durmo, para sobreviver quando morro. A minha alma é bela, pura, branca. E se
meu corpo barroso – em todo o caso não muito limpo – vem a se sujar, é certo que
haverá uma virtude, um poder, mil gestos sagrados que a restabelecerão em sua pureza
primeira. A minha alma durará muito tempo, e mais que muito tempo, quando o meu
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velho corpo apodrecer. Viva a minha alma! É o meu corpo luminoso, purificado,
virtuoso, ágil, móvel, tíbio, fresco; é o meu corpo liso, castrado, arredondado como uma
bolha de sabão. E eis que o meu corpo, pela virtude de todas essas utopias, desapareceu.
Desapareceu como a chama de uma vela que alguém sopra. A alma, as tumbas, os
gênios e as fadas se apropriaram pela força dele, o fizeram desaparecer em um piscar de
olhos, sopraram sobre seu peso, sobre sua feiura, e me restituíram um corpo fulgurante e
perpétuo [...texto continua].
[5] BATAILLE, George. A Parte Maldita. Tradução Júlio Castañon Guimarães. São
Paulo e Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 50. Para ele são importantes as relações
intersolares, as emissões de raios que se dão de astro a astro, o perpassar das entranhas,
o fazer prenhe e o emprenhar. O sol como elemento que dá tudo e gera vida sem pedir
nada em troca.
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Figuras:
Espumas
Transição de uma bolsa de bolhas a uma parede poliédrica aplanada, segundo estudos
de Frei Otto.
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Bíblia:
- Jonas 2:1 “E orou Jonas ao SENHOR, seu Deus, das entranhas do peixe”.
- Jonas 2:2 “E disse: Na minha angústia clamei ao Senhor, e ele me respondeu; do ventre do
inferno gritei, e tu ouviste a minha voz”.
- Marcos 1:8 “Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o
Espírito Santo”.
- Marcos 16:16 “Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado”.
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