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O MITO DE LOGOS VS MYTHOS

Em seu artigo Plato Philomythos, Diskin Clay (1938-2014) dedica uma seção
completa (p. 210-215) para denunciar “O mito de logos vs mythos”, isto é, a falsa
oposição entre ambos no corpus platônico.

(p. 211) “Platão, cuja hostilidade em relação à poesia era notória na antiguidade,
como ela é agora, parece ser um inimigo do mito, mas seu Sócrates, que se
apresenta como o inimigo mais feroz da poesia nos diálogos platônicos, foi
cativado por Esopo e seus mitos. No final de sua vida, em resposta a uma visão
recorrente dos sonhos, advertindo-o a “tornar-se musical”, Sócrates foi levado a
versificar as fábulas de Esopo (usualmente chamadas ainoi). Sócrates os chama
mythoi (Phaedo 60-C-D). O quão instrutivo seria para os seres humanos,
possuidores de logos, falar com animais é evidente no Statesman 272B de Platão,
uma cena belamente ilustrada pela figura vermelha kylix no Vaticano, mostrando
uma raposa instruindo Esopo (Figura 1)”.

“Platão comporta uma semelhança com Sócrates. Ele pareceria se qualificar como
o devoto filosófico do mito (o philomythos como philosophos) que Aristóteles
descreve em Metafísica A. Ou, talvez, a ordem deva ser revertida para descrevê-lo
como o filósofo devoto, não tanto aos mitos tradicionais de sua cultura grega, mas
à criação de novos mitos para combater o encantamento dos antigos”.

No entanto, em outros momentos, ele cria em seus diálogos uma distinção entre o
que constitui um mythos e o que qualifica como logos – o pensamento racional,
lógico e “científico” –, por exemplo em Górgias 523A. Todavia, a distinção não se
sustenta sempre, visto que em outros lugares “o que nós consideraríamos como
sua verdade seriamente entendida é frequentemente tratado como um mythos, e as
ficções, baseadas em relatos tradicionais, são chamadas logoi”.

(p. 212) “Em muitos casos, sua própria linguagem nos permite determinar o que
ele considerava um mythos, mas uma mudança de perspectiva pode faz um
mythos de um logos e um logos de um mythos”.
“O censo dos ‘mitos’ platônicos (…) são geralmente baseados em uma história
tradicional e (...) corrigem essa história pela substituição de uma versão filosófica
dela. Assim, eles tendem a descrever uma realidade sobrenatural ou uma realidade
que transcende nossa experiência humana, mas que nossa experiência pode nos
dar um indício: isto é, o que permanece oculto no presente, o passado remoto, e o
que aguarda a alma humana no futuro. Esses mitos platônicos são usualmente
atribuídos a uma fonte oral anônima; eles não podem ser confirmados ou
falsificados, exceto por alguém que teve a experiência dessas realidades, tal como
o Er ficcional do mito de Er na República ou os ‘arautos’ responsáveis por nossa
fraca memória da Idade de Ouro, que viveram na “cúspide” das grandes reversões
periódicas do tempo no mito do Estadista (271A)”.

“Para alguns de seus mitos, ele (que significa Sócrates) cria uma contrapartida
filosófica para os relatos poéticos tradicionais das origens, como faz na República
(3.414B-415D), onde ele oferece um mito dos metais para combater e suplantar o
‘mito dos metais’ de Hesíodo em Trabalhos e Dias (109–201”).

Na República (10.514A-517A), seu Sócrates oferece uma versão impressionante


do submundo para suplantar o livro homérico dos mortos na Odisseia II.

(p. 213) “A verdadeira querela de Platão não é com o mito grego; é com a poesia
da polis grega e suas representações falsas e degradantes da realidade. Por esse
motivo, poetas e mitos são frequentemente associados em seus diálogos, como é o
caso da tradição hesiódica de Urano sendo castrada por seu filho Crono, a
primeira mentira poética condenada na República.”.

(p. 214) “Mas Platão é ele mesmo próprio um fabricador, fiel à etimologia que seu
nome sugeria aos leitores gregos. Platon (em grego) foi corretamente levado a
sugerir platton, o fabricante [República 3.415A]”.

“Os mitos de Platão oferecem contra-encantamentos às tradições da cultura grega.


O termo ‘contra-encantamento’ é próprio de Platão. Ele descreve argumentos dos
diálogos platônicos como o encantamento filosófico que libertará seus ouvintes do
encanto da poesia tradicional (República 10.608A). Eles se assemelham aos mitos
gregos no sentido de que envolvem o maravilhoso (to thaumaston), o
desconhecido, e o ‘transumano’ (para adaptar a palavra trasumanar de Dante no
Paradiso 1.70). Eles conectam humanos com o divino e nosso mundo com um
mundo que se encontra fora do alcance da vista humana. Aqui é indiferente se eles
são chamados mythoi ou logoi. Porém sua posição e função no interior de um
diálogo platônico trazem o seu significado”. Por exemplo, quando os mitos são
colocados no final ou próximo ao final do diálogo, a exemplos dos Górgias, Fedro
e República, como se o encerrasse ou concluísse, é sintomática: “Sócrates não
pode levar seus interlocutores a argumentar”.

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