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MIGUEL SOUSA TAVARES

Cinco candidatos à procura de uma campanha0:00 Quinta feira, 30/12/2010


A eleição presidencial, salvo as excepções dos saudosos tempos em que ainda havia coisas importantes para
decidir, é um ritual constitucional que, dizendo muito aos candidatos, diz pouco aos partidos e quase nada ao
país.
Manuel Alegre tinha razão, quando dizia, há poucas semanas, que ninguém estava a prestar atenção às
presidenciais, em que ele e outros tantos se afadigam há longos meses. As razões do desinteresse (apenas
levemente contrariado pelos recentes debates televisivos entre os candidatos), são várias e compreensíveis.
Primeira de todas, a noção que todos temos de que há coisas bem mais importantes com que nos
preocuparmos agora do que com as presidenciais. E, por mais que os candidatos tentem vender a importância
do acontecimento, é impossível disfarçar a rasa sensação de se tratar apenas de eleger o mais irrelevante dos
cargos políticos, em que a percepção do desempenho do seu titular é medido apenas por dois parâmetros: se
fez alguma coisa, extravasou os seus poderes e foi com certeza asneira; se nada fez, foi um bom Presidente. Daí
que a eleição presidencial, salvo as excepções dos saudosos tempos em que ainda havia coisas importantes
para decidir (Eanes vs Soares Carneiro, Soares vs Freitas do Amaral), é um ritual constitucional que, dizendo
muito aos candidatos, diz pouco aos partidos e quase nada ao país. Segunda razão para o desinteresse destas
presidenciais é o facto de não haver ninguém capaz de ser convencido de que o Presidente em funções não será
fatalmente reeleito, como sempre sucedeu e sempre sucederá - justamente porque o cargo, salvo imprevistas
tentações de haraquiri do inquilino do Palácio, é praticamente isento de riscos políticos. E terceira e última
razão, porque os candidatos em disputa não se têm mostrado capazes de produzir um discurso político que
possa atrair atenções, além da família e dos amigos. Diga-se o que se disser sobre a qualidade do debate
político em Portugal, todos os dias, na imprensa, somos desafiados por opiniões bem mais interessantes e
pertinentes do que as que até agora conhecemos da parte de cada um dos cinco candidatos a Belém. E isso dá
que pensar e, inevitavelmente, vai-se pagar na abstenção. Do menos para o mais, eis o panorama.
Defensor Moura é aquele senhor simpático que governou Viana do Castelo durante quinze anos (sem
conseguir derrubar o mastodonte do "prédio Coutinho"), que antes foi médico e controlador aéreo e que agora,
fruto de uma obscura disputa partidária, trocou Viana pelo parlamento - onde, segundo as suas próprias
palavras, chegou para gozar "uma pré-reforma". É também um "fervoroso adepto" da ruína definitiva do país
(também conhecida como projecto de regionalização) e onde talvez augure um lugar para si próprio no futuro.
E pouco mais se sabe de quem parece apenas aspirar aos seus trinta dias de fama. Se no parlamento se
considera em pré-reforma, é de crer que na presidência se consideraria no asilo.
Fernando Nobre é das primeiras experiências mais a sério de concorrência entre um candidato civil e os
candidatos profissionais - e o primeiro rotundo fiasco da experiência. Mal rodeado, mal aconselhado, Nobre
provou que um homem bom não faz um bom candidato e um homem sério não faz um sério candidato. Uma
coisa é vir de fora da política, coisa que o "povo" tanto reclama; outra coisa é a total impreparação política,
coisa que nem o "povo" aguenta. Afinal de contas, só Cavaco Silva é que se atreve a insinuar que o cargo de
Presidente da República não é um cargo político. Mas ele mostrou, no debate/massacre com Nobre que, pelo
menos e como lhe compete, conhece os poderes do Presidente e como funciona o sistema constitucional.
Francisco Lopes, a enésima figura de bonus pater familias produzida pelo PCP para efeitos presidenciais, é
também um homem simpático que fisicamente faz lembrar Napoleão e intelectualmente Jerónimo de Sousa.
Aos costumes diz nada, ou seja, o mesmo de sempre: a saída não está no capitalismo, nem na Europa, nem nos
mercados: está na "produtividade nacional". De facto: se pensarmos que os alemães só têm reforma aos 67
anos e os americanos só têm quinze dias de férias anuais ao fim de dez anos na empresa, há muito a fazer pela
produtividade. Quererá Francisco Lopes bater-se pela flexibilização laboral? Ou terá descoberto petróleo e nós
não sabemos?
Manuel Alegre é um D. Quixote em campanha por vários moinhos de vento. O primeiro deles é "o meu milhão
de votos", como ele gosta de dizer, lembrando 2005. Mas não existe tal "milhão de votos de Manuel Alegre":
existiu, sim, um milhão de votos num momento e numa circunstância política específica em que Alegre
recolheu (como outros o poderiam ter feito) o voto dos descontentes com a política e daqueles que, não
querendo Cavaco Silva, também não compreenderam o incompreensível regresso de Mário Soares. O segundo,
é a espada empunhada de defensor do "Estado social" - cujo, aliás, está sob revisão acelerada do governo do
principal partido que o apoia, como nunca esteve sob Cavaco Silva. Alegre imagina os eleitores mais
ignorantes do que são. Ele acha que lhe basta o papel de guardião oficial do 'Estado social' e outras "conquistas
de Abril", a denúncia dos "agiotas e especuladores dos mercados", para que as pessoas deixem de fazer as
perguntas estúpidas: quem, se não os "mercados", nos irão emprestar os 45.000 milhões de euros de dívida
que precisamos de renegociar em 2011? Como poderemos sustentar o Estado social, se pedimos emprestado a
7% de juros e crescemos a 1% ao ano? E daqui decorre o terceiro equívoco: todo o discurso de Alegre está
orientado para o passado e para a defesa do que existe, como se nada de essencial tivesse mudado desde 74.
Esse discurso nada diz, por exemplo, aos 300.000 jovens entre os 15 e os 30 anos da tal "geração NN" (não
estudam nem trabalham). Sem dúvida que tem razão em que a Europa precisa de ser revista e repensada e o
próprio capitalismo de casino tem de ser desmantelado. Mas o que Alegre parece propor, não apenas é
inviável, como fatal: que mude a Europa para que nós possamos continuar na mesma.
Cavaco Silva não precisa de fazer nada. Não precisa de colar cartazes, não precisa de correr as aldeias todas,
não precisa de fazer comícios, não precisa de puxar pelos galões de professor de Finanças Públicas, e não
precisa de reler a Constituição para não se deixar emaranhar nas escolásticas discussões sobre os poderes
presidenciais - que, diga-se a verdade, só ele parece ter entendido sem estados de alma. Há cinco anos, Alegre
avisava-nos de que Cavaco em Belém seria a constante ingerência na governação e o abuso dos poderes que lhe
competem. Agora, acusa-o de não ter interferido em nada e de ter subestimado o papel de um Presidente.
Cavaco só pode sorrir e seguir tranquilamente para a cerimónia de reentronização. Havia, de facto, diversos
episódios da sua presidência que justificavam que tivesse de se defender: coisas que devia ter dito e não disse e
outras que disse a despropósito; a falta de coragem política para usar o veto político em leis que não eram da
governação e com as quais não concordava; a figura constitucional inédita da promulgação após raspanete; o
sórdido episódio das "escutas" de Belém; o seu pesado silêncio perante a degradação ética da justiça e a sua
inércia para com humilhantes questiúnculas militares expostas na praça pública, por exemplo. Mas os seus
adversários ou não se atreveram a tal ou também eles não sabem ao certo para que serve o Presidente.

Histórias Exemplares0:00 Quinta feira, 15 de Julho de 2010


1- O interminável folhetim do "Jornal de Sexta", da TVI, agora centrado na guerra pessoal e judicial Manuela
Moura Guedes - José Sócrates, teve dois desenvolvimentos recentes cuja análise permite ver bem como mal
funciona a nossa justiça. Primeiro, foi a jornalista que apresentou queixa-crime contra o PM por este haver
dito que o "Jornal de Sexta" era "um jornal travestido, de caça ao home". A queixa começou por dormir o sono
dos justos durante oito meses num departamento errado, daí passando para as mãos de um delegado do
Ministério Público e de um juiz, os quais, sem mais, tomaram a insólita decisão de requerer ao Parlamento o
levantamento da imunidade parlamentar do PM para responder no processo. Emendada a mão, o processo foi
ao PGR, que o remeteu a quem de direito: o procurador do MP junto do Supremo. E este, em oito dias, tomou
a decisão de não acompanhar a queixa por não ver nela indícios de crime de difamação, tal como pretendido
pela queixosa. Ou seja, decidiu-se pela não acusação. Como, porém, se trata de um crime semipúblico, a
queixosa anunciou que, no uso de um direito que lhe cabe, vai prosseguir sozinha com a acusação particular.
Sem fazer qualquer juízo de valor no caso concreto, convém, todavia, chamar a atenção para este direito. Em
Portugal, é facílimo alguém acusar outrem de crime de difamação ou injúrias: basta pagar uma taxa de justiça
irrisória, acompanhar depois o andamento do processo e esperar que, finda a instrução, o MP acompanhe
depois a acusação particular para julgamento. Ora, o MP fá-lo, talvez, em 80% ou 90% dos casos - não porque
esteja de acordo como a acusação particular, mas porque não esteve para se incomodar a estudar o assunto.
Daqui resulta que, em inúmeras situações, o MP acaba a pedir a absolvição em julgamento, quando finalmente
se inteira do que estava em causa, e, inúmeras vezes também, o tribunal decreta a absolvição, quando entende
que tudo não passou de um banal e legítimo exercício do direito de opinião ou de informação. Entretanto, os
magistrados e todo o tribunal gastaram tempo de trabalho precioso a julgar uma causa que se revelou apenas
um abuso do direito de litigância - e ninguém vai pagar essa despesa; o arguido gastou dinheiro em advogado,
incomodou testemunhas para o defenderem, perdeu também o seu tempo, teve de se sentar no banco dos réus
como potencial criminoso e, muitas vezes, quando é figura pública, viu o seu nome ampliado na imprensa
como suspeito de um crime. Quanto ao queixoso, apesar de ter perdido a causa, conseguiu incomodar e fazer
gastar dinheiro a uma série de gente e, quando o seu objectivo era conseguir acusar alguém 'poderoso' ou
conhecido, satisfez a sua vontade, mesmo perdendo, mesmo com uma sentença que o deveria envergonhar. E
consegue tudo isto gastando apenas uns trocos e sem ter de reparar os danos e os trabalhos inúteis a que deu
causa. Havendo vontade e sensibilidade, isto resolvia-se de uma maneira bem simples. Primeiro, e nos casos
em que o MP não acompanhasse a acusação e esta viesse a ser derrotada em tribunal, apresentando ao
queixoso uma nota de custas judiciais finais que o levasse a pensar duas vezes antes de repetir a actuação.
Segundo, admitindo o chamado pedido reconvencional, que seria apenas um direito de indemnização a pagar
pelo queixoso ao arguido, caso este viesse a ser absolvido, e que compreendesse todas as despesas que o tinha
obrigado a fazer para se defender, acrescido de uma reparação por danos morais. E, terceiro, para obstar à
fuga posterior ao pagamento, o processo, finda a instrução, só poderia seguir para julgamento se o queixoso, a
requerimento do arguido, prestasse prévia caução que garantisse esse pagamento, caso ele viesse a ser
decretado no final.
Mas o que é deveras interessante é o Acto II deste enredo. No Acto II, José Sócrates apresentou também
queixa-crime contra os responsáveis pelo "Jornal de Sexta" que, semanas a fio, pegaram nas declarações de
um tal Charles Smith, gravadas particularmente, dizendo que, em tempos, o então ministro do Ambiente teria
sido corrompido para autorizar o Freeport de Alcochete. Declarações que a polícia inglesa, que as obteve em
primeira mão, já havia investigado e arquivado por concluir serem infundadas. Dizem os responsáveis do
"Jornal de Sexta" que essa divulgação foi apenas a de um "facto não desmentido". Não é verdade: nem é facto,
nem é não desmentido. Facto é apenas que o escocês disse aquilo, mas, como se entende facilmente, o facto
que interessa não é esse, mas sim a eventual corrupção de José Sócrates. E isso é o que o MP procura
afanosamente provar há seis anos, sem o conseguir nem desistir. E José Sócrates desmentiu várias vezes a
acusação, verbalmente e por escrito e onde o pôde fazer - visto que no próprio processo nem sequer foi ouvido,
ao menos como testemunha, até hoje. Aliás, nem se compreenderia como é que um chefe de Governo,
confrontado com tais suspeitas, se conseguiria manter em funções sem as desmentir.
Ora, sucedeu que, aparentemente pelas mesmas razões invocadas pelos jornalistas, o delegado do MP que
recebeu a queixa por difamação interposta por José Sócrates, entendeu arquivá-la por falta de fundamento. E,
esta sim, é uma decisão que já não pode passar sem comentário. É evidente que se alguém, mesmo que
desconhecido e sem nada que abone a sua credibilidade, acusa uma figura pública altamente colocada da
prática de um crime (e logo um primeiro-ministro de crime de corrupção!), isso é notícia. Mas qualquer
jornalista também sabe que é uma notícia a ser tratada com todas as cautelas e todos os sinais de alerta
ligados. Porque, sendo figura pública, e, para mais, governante, é muito fácil que a divulgação desadequada da
notícia permita uma condenação pública prévia que, depois, já não há arquivamento nem absolvição que a
consigam anular, em termos de opinião pública. O que se iria discutir, pois, não era o 'facto indesmentido' de
existir aquela gravação com a acusação do senhor Smith: era se a forma como ela foi insistentemente
divulgada pelo "Jornal de Sexta" e sistematicamente alimentada e acrescentada com outros elementos saídos
do processo, pelo método habitual, e todos eles sem hipóteses de contraditório por parte do visado, constituiu
ou não em si mesma uma forma de difamação agravada. Ou seja, se se tinha apenas tratado o assunto de
forma objectiva e informativa ou se a forma do seu tratamento tinha ultrapassado essa fronteira e se tinha
também tornado parte de um eventual crime de difamação. E isso julgar-se-ia ouvindo o testemunho dos
profissionais do ofício, a opinião de peritos e comparando a doutrina e a jurisprudência existentes. Eu só me
ocorre perguntar ao magistrado do MP que produziu este despacho de arquivamento o que pensaria se,
semanas a fio, um programa de televisão divulgasse uma acusação de um seu vizinho dizendo que o tinha
corrompido? Será que não se sentiria difamado e não quereria reparação, ou era-lhe indiferente?
2 - Uma das grandes artes do jornalismo é encontrar o título certo para uma notícia: um bom título quase
dispensa a leitura da notícia. Atente-se neste título do "Público" desta semana: "Cortes na cultura ameaçam
artistas independentes". O título diz tudo, embora esteja errado por contradição nos termos: se os cortes do
Estado nos apoios à cultura ameaçam os artistas independentes, porque lhes chamam independentes?
3 - Não faço parte dos admiradores do homem e da personagem que foi José Saramago. Mas faço parte
daqueles que acham que José Saramago foi um grande escritor da língua portuguesa e que, tendo sido, para
mais, um dos dois únicos Prémios Nobel do país até hoje (e o outro foi-o por méritos mais do que duvidosos),
o Presidente da República não podia, absolutamente, faltar ao seu enterro. E menos ainda dando a
inacreditável desculpa de que estava de férias nos Açores com a família, de há muito marcadas - como se o
cargo que ocupa fosse o de um vulgar funcionário público.
E assim, quando esta semana, desta vez nas ilhas de Cabo Verde, o Presidente de Portugal se lembrou de
defender o "património da língua portuguesa" (e até ralhar publicamente ao MNE, pela insuficiência de verbas
para promover a língua no estrangeiro), teve de ouvir, em contrapartida, o Presidente de Cabo Verde citar
cinco vezes Saramago - um exemplo desse património que Cavaco Silva não soube reconhecer quando devia.

Madrid nos mata0:00 Quinta feira, 8 de Julho de 2010


No espaço de dois dias tivemos de enfrentar dois desafios espanhóis do tipo 'mata-mata'. No futebol,
perdemos, mas parece que não fomos humilhados - o que foi motivo de alívio pátrio. Na PT, ganhámos, mas
consta que o jogo vai para prolongamento e, de uma forma ou de outra, a derrota está garantida. No futebol, a
nossa golden share, conhecida por CR7, nem chegou a ir propriamente a jogo; na PT, sim, rebentámos
patrioticamente com a bomba da golden share na cara da Telefónica - porque, afirmou o primeiro-ministro,
estava em causa "o interesse estratégico de Portugal".
Comecemos por aqui. Sempre me levantou as maiores dúvidas a invocação do interesse estratégico do país em
matéria de decisões económicas. Por exemplo: a mim parecia-me do interesse estratégico do país ter mantido
a Galp e a EDP como empresas públicas, mas elas foram privatizadas, com benefícios que os portugueses não
alcançam; e parece-me do interesse estratégico do país manter a TAP e a Águas de Portugal no Estado, mas há
uma vontade assanhada de as entregar rapidamente e em força. Em contrapartida, vi invocar o interesse
estratégico do país para construir sete estádios novos e remodelar por completo outros dois para o Euro-2004
(nove estádios para um Europeu com 16 equipas, dez na África do Sul para um Mundial com 32 equipas). Dos
nove estádios, quatro estão abandonados ou às moscas, constituindo um encargo fixo e eterno para as
respectivas autarquias, e um quinto conduziu à falência o clube proprietário. Também vi invocar o interesse
estratégico do país para justificar a aventura ruinosa do TGV que, na sua versão mais delirante, chegou a
prever ligações Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Aveiro-Salamanca, Lisboa-Madrid e a exótica ligação Faro-Huelva.
Felizmente, e como neste caso eram precisos dois para dançar o tango e, entretanto, o parceiro espanhol faliu
mais ainda do que nós, neste momento o interesse estratégico do TGV está limitado à crucial ligação Poceirão-
Badajoz. Passemos, então, a outro argumento, porque este, definitivamente, não me convenceu.
O segundo argumento é que a brasileira Vivo é fundamental para a PT e a PT fundamental para o país. Os
factos parecem demonstrar que não: se o tal 'núcleo duro' de accionistas nacionais de referência que, com a
oferta a 6500 milhões, achava exactamente o mesmo e, com a oferta a 7150 milhões, já deixou de achar, é
porque, de duas uma: afinal, não concordam que a Vivo seja essencial à PT ou não concordam que a PT seja
essencial ao país. E, se eles pensam assim, quem somos nós ou o Governo para pensar de maneira diferente?
Eu, colocado na posição simples, e admito que fácil, de mero consumidor dos serviços da PT, e desconhecendo
em concreto a tremenda importância da Vivo para a empresa, declaro que concordo absolutamente com a
segunda tese - a de que a PT não é essencial para o país. Pelo contrário, bem gostava de a ver substituída ou, ao
menos, em concorrência com outra que oferecesse, por exemplo, assinatura grátis, uma lista telefónica que se
entendesse ou um serviço de informações de números que não fosse aquele escândalo do 118.
O terceiro argumento é o de que a golden share existe para ser usada. E usada pelo Governo - que, neste caso,
de facto, nunca escondeu que o faria. Nesse ponto, pelo menos, José Sócrates tem razão: ninguém pode vir
dizer que não estava a par das regras do jogo e os accionistas, que agora se viram frustrados na sua legítima
vontade de encaixarem mais-valias, sabiam muito bem que eram accionistas de uma empresa onde o Estado
detinha um direito especial de voto e de veto, que um dia poderia vir a usar. Assim como também ninguém
ignora que, em casos idênticos, e com ou sem golden share, os espanhóis ou os franceses fariam o mesmo -
como já fizeram.
Não impede que haja aqui qualquer coisa de aberrante, que é o facto de o Estado poder, com o seu voto,
derrotar a vontade de três quartos dos accionistas de uma empresa privada, que tem assim uma natureza
híbrida, de privada para quase tudo, pública nas situações-limite. É uma empresa privada sob tutela, uma
figura que não cabe nas regras de qualquer capitalismo. Mas também é verdade que já ninguém sabe muito
bem quais são as regras actuais do capitalismo, visto que ele se encarregou alegremente de se converter a si
próprio numa selva sem regras: quem nos diria, há dois anos, que os contribuintes acabariam a salvar da
falência os bancos que foram os causadores de uma crise mundial sem precedentes, ditada exactamente pela
total subversão das regras do jogo e das simples regras de decoro e moralidade nos negócios?
Enfim, tudo isto é muito complicado para as nossas simples cabeças. Creio que, no final, a Telefónica acabará
por levar a sua avante - ou impondo nova assembleia-geral onde o Governo, pressionado, não renove o veto ao
negócio; ou por imposição do tribunal europeu; ou, gastando pouco mais e lançando uma OPA sobre a PT,
assim se tornando dona dela, da Vivo e do "interesse estratégico nacional". Até lá, de certeza que há alguém
que já ficou a ganhar: os mestres de direito e os advogados de negócios. Anuncia-se-lhes um mar de
oportunidades como há muito não viam. Seis mestres já começaram, aliás, a trabalhar, fornecendo "pareceres"
a favor da utilização da golden share. Amanhã aparecerão outros seis ou sessenta a defender exactamente o
contrário (e nem é de excluir até que alguns consigam dar pareceres num sentido e no outro - já aconteceu no
passado). Quanto aos advogados, preparam já as anunciadas acções de indemnização da Telefónica ou de
accionistas da PT contra o Estado e, se vierem a obter ganho de causa, adivinhem quem é que, no final, vai
acabar por pagar este impulso patriótico...
Eu só gostava, mas talvez seja esperar muito, que alguém me explicasse as regras do jogo, do ponto de vista do
interesse público. Porque, tal como as coisas vão acontecendo, torna-se difícil entender a lógica de tudo isto.
Reparem:
-BPN: nacionaliza-se; água: privatiza-se.
-BCP: ocupa-se; EDP: entrega-se.
-SCUT: não se paga; RTP: paga-se.
-Estádios de futebol: constroem-se; escolas: fecham-se.
-PT: protege-se, em nome do interesse nacional; Paisagem Protegida: urbaniza-se, em nome do interesse
nacional.
-Língua: vende-se aos brasileiros; brasileiros: perseguem-se.
-Espanhóis: parceiros estratégicos no TGV e na TVI; espanhóis: inimigos estratégicos na PT.
-Dinheiro para o país: não há; dinheiro para a Madeira: sobra.
-7000 milhões para a Vivo: pouco; 7000 milhões para o PIB: imenso, mais 10% de carga fiscal.
-TAP arruinada: mete-se dinheiro; TAP recuperada: vende-se.
-Desempregado crónico: subsidia-se; jovem desempregado: exila-se.
-Empregado efectivo: não se pode despedir; empregado a prazo há mais de 18 meses: despede-se.
-Marinha mercante e de pesca: liquida-se; submarinos: compram-se.
-Agricultura: paga-se para fechar; campos de golfe: paga-se para abrir.
E etc., etc., etc. Por favor, entendam-se, que já vai sendo tempo.

A caça ao Homem0:00 Quinta feira, 1 de Julho de 2010


Vinha no carro a ouvir o noticiário da rádio e o assunto principal era a convocatória que um juiz de instrução
criminal tinha enviado ao Parlamento para que o primeiro-ministro pudesse ser interrogado no âmbito de
uma queixa-crime particular por difamação e injúrias, interposta por Manuela Moura Guedes. E a notícia
acrescentava que a Comissão de Ética do Parlamento tinha recusado "levantar a imunidade" parlamentar ao
primeiro-ministro, por considerar que ele não é deputado. De seguida, ouviu-se a opinião de vários juristas, os
quais, para não variar, não coincidiam nas razões jurídicas, mas apenas na conclusão: a convocatória era
perfeitamente deslocada, fruto de uma precipitação do juiz, dando seguimento a um erro do Ministério
Público. Depois, dava-se conhecimento dos habituais comunicados da PGR e do Conselho Superior da
Magistratura, tentando justificar a argolada e chutando as culpas, subtilmente, de uns para os outros. Enfim,
seguia-se a opinião política sobre o assunto de um editor de jornal diário. E, em substância, declarou este, em
tom convicto e acusatório: mais um escândalo envolvendo José Sócrates, a gota de água que faltava num copo
já a transbordar, etc. e tal.
Fiquei a meditar naquilo: mais um escândalo envolvendo José Sócrates? Que escândalo - a trapalhada jurídica
a que ele era absolutamente alheio? O facto de alguém, no uso de um direito que cabe a qualquer um, ter
apresentado uma queixa-crime contra ele porque se julgou ofendida?
Recuemos no 'escândalo'. Há seis anos - seis! - que dois procuradores do MP e vários agentes da PJ investigam
o chamado 'caso Freeport', prorrogando sucessivamente todos os prazos, arrastando o processo sem que se
entenda para quê ou porquê, e fazendo desta investigação, junto com a do 'caso Maddie', a mais cara de
sempre do MP. Onde está o escândalo? No facto de se eternizar durante seis anos uma investigação que, só e
mais nada, visa apurar se o primeiro-ministro que nos governa foi ou não corrompido, mantendo entretanto
vivas as suspeitas sobre ele? No facto de essas suspeitas, e alguns documentos do processo, supostamente em
segredo de justiça, terem alimentado durante um ano a fio e em época eleitoral o "Jornal de Sexta" da TVI? No
facto de nem o procurador-geral da República, putativo superior hierárquico dos procuradores, ter poderes
para lhes ordenar que, concluam o que concluírem, ponham fim à investigação - coisa que não pode fazer
porque eles são 'independentes'? No facto de não haver ninguém, instituição alguma, que lhes possa exigir
responsabilidades por manterem um cidadão sob suspeita de corrupção durante seis anos, manchando
diariamente o seu nome na praça pública, e nisso gastando dezenas ou centenas de milhar de euros dos
contribuintes, porque eles são 'irresponsáveis'? No facto de nem sequer poderem ser afastados do processo,
como sucederia em qualquer empresa privada, porque são 'inamovíveis'? Será isso o escândalo? Não, o
escândalo é que o nome de José Sócrates esteja no processo - com razão ou sem razão, não importa.
Com razão ou sem razão - cada um julgará de acordo com os seus critérios de jornalismo - José Sócrates
acabou por se rebelar contra o "Jornal de Sexta" e desabafar que aquilo era "um jornal travestido, de caça ao
homem, motivada por razões de ódio pessoal". Disse o que muitos pensavam, mas raríssimos se atreveram a
dizer, o que é bem curioso: tinham mais medo do "Jornal de Sexta" do que de José Sócrates. E, quando
Sócrates, farto de se ver associado todas as semanas ao escândalo Freeport (onde nunca foi ouvido nem teve a
possibilidade de se defender!), reagiu, em defesa própria, foi outro escândalo: tentativa de censura, acto
próprio de alguém que "convive muito mal com a liberdade de imprensa". Quer dizer: se ele, insultado quase
diariamente aqui e ali (e, como se viu, com o perdão e o apoio da magistratura), resolve reagir em defesa
própria, é um censor. Parece assim que as funções de primeiro-ministro comportam muito menos direitos
nesta matéria do que as funções de qualquer outro cidadão: o PM, em nome da liberdade de imprensa, só tem
o direito de comer e calar. Se ele, reagindo, processa aqueles que entendeu que o ofenderam para lá dos limites
toleráveis, é um escândalo, uma ameaça à liberdade de imprensa - que, felizmente, os magistrados não
consentem. Mas se é alguém que o processa a ele, é outra vez um escândalo e da sua responsabilidade.
E mais escândalo a propósito da célebre tentativa de compra da TVI. Já aqui disse que também eu acho
impossível que o primeiro-ministro ignorasse a negociação em curso. Não sei se teve a ideia, se apenas a
incentivou ou consentiu ou nada disso. Mas que sabia dela, tenho poucas dúvidas. Só que isso não é crime e
mentir no Parlamento também não. Também já aqui escrevi que as escutas reveladas pelo "Sol" mostraram
quanto um certo círculo de amigos ou serventuários de José Sócrates representam a podridão da política e da
simples decência. É lamentável, para dizer o mínimo, que o primeiro-ministro precise dos serviços de gente
daquela e recorra ao expediente de comprar pequenos-almoços de propaganda política com um futebolista,
pagos por uma empresa de capitais maioritariamente públicos (o facto mais grave de todo este caso e que,
talvez por envolver um intocável futebolista, não foi seguido nem investigado a sério por ninguém). Mas, em
lado algum, no 'processo TVI', existiam indícios, mínimos que fossem, da prática de qualquer crime - a menos
que se queira subscrever a tese ad hoc dos magistrados de Aveiro, vendo na tentativa de compra da TVI pela
PT, eventualmente para silenciar o "Jornal de Sexta", suspeitas graves de um "crime de atentado ao Estado de
Direito" (assim confundindo alegremente Manuela Moura Guedes com o Estado de Direito).
O escândalo não esteve no facto de vários jornalistas, utilizando o expediente de se constituírem 'assistentes'
no processo-crime de Aveiro aproveitarem para ler as escutas e depois as publicarem, num desvirtuamento do
espírito da lei que é chocante e revelador do 'vale tudo' em que se caiu. O escândalo não é o facto de nos
dizerem que é tudo uma questão de tempo até que as escutas estejam ao alcance de todos, uma vez arquivado
o processo ou deduzida acusação - mesmo que os escutados não sejam parte no processo e a violação da sua
correspondência privada não possa ser validada nem usada em juízo. O escândalo não é que Pacheco Pereira
tenha andado a consultar escutas que não podem ser usadas em processo-crime porque a Constituição o
proíbe e com toda a razão e que, menos ainda, podem então ser usadas para um processo político e para a luta
partidária. Não, o escândalo foi que Mota Amaral, contra a vontade de Pacheco Pereira e o entusiasmo do
magistrado que enviou as escutas para o Parlamento, tenha tido a dignidade de defender a Constituição contra
a tentação estalinista de suspender os direitos e garantias individuais em nome do 'interesse público'.
Faça-se o juízo político, e até pessoal, que se fizer sobre José Sócrates, Mário Soares tem razão quando diz que
nenhum primeiro-ministro foi tão perseguido e atacado quanto ele. Tem contra ele a oposição normal, mas
tem também toda a magistratura, a quem se atreveu a tentar retirar alguns privilégios, como quinze dias dos
dois meses de férias a que tinham direito (já lhos devolveu), e um sem-número de jornalistas e colunistas que
vivem numa obsessão com a sua pessoa que é doentia e que os leva mesmo a julgar que quanto pior disserem
dele, mais populares serão. É certo que Sócrates se pôs a jeito muitas vezes. Que se meteu em demasiadas
trapalhadas e, sobretudo, que se fez rodear de alguma gente infrequentável. Mas há uma diferença no seu
estatuto, que é própria das democracias: ele foi eleito e os jornalistas e os magistrados não. Ao contrário dos
magistrados, Sócrates não é independente: depende do seu partido e, nas suas funções, depende do
Parlamento e do Presidente da República. Não é irresponsável - responde também perante a imprensa, a
opinião pública, os eleitores e os tribunais. Não é inamovível: pode ser afastado por nós nas próximas eleições
ou na Assembleia da República, a todo o tempo.
Por uma questão de formação, eu prefiro sempre ser governado por aqueles que posso ajudar a escolher e a
afastar, com o meu voto. É por isso que sou republicano e não monárquico. É por isso que me sinto mais
seguro quando o poder está nas mãos de quem foi eleito do que de quem tem um cargo vitalício ou não
escrutinável. E, como dizia Sartre, "daqui não saio".

Navegadores, diz ele0:00 Quinta feira, 24 de Junho de 2010


Parece que o amachucado orgulho pátrio se recomporia de imediato com a campanha gloriosa que nos espera
no Mundial de futebol. Num inquérito promovido por este jornal, e noutros idênticos de outros jornais, a
maior parte dos inquiridos declarava solenemente que confiavam que a nossa selecção chegasse à final do
Mundial. Ouvido na rua, nos fóruns de televisão e da Net, o povo também não tinha grandes dúvidas do
anunciado êxito - de tal forma que até parecia que quem se atrevesse a duvidar não era suficientemente
patriota ou português. Ensaiou-se repetir o clima de intimidação patriótica do Europeu de 2004, quando o
brasileiro Scolari mandou povoar o país de bandeiras nacionais e chegou a insultar uma jornalista que lhe fez
uma pergunta pouco 'patriótica' numa conferência de imprensa e os raros que não lhe prestaram vassalagem.
E, muito embora desta vez o clima tenha sido bem menos pressionante e triunfante, manteve-se o tom de
desconfiança larvar sobre aqueles que não manifestavam uma fé cega na excelência das capacidades dos
nossos 23 rapazes para chegarem à África do Sul e levarem tudo à frente. Aliás, a coisa começou há dois anos
atrás, quando o professor foi quase imposto por unanimidade nacional como seleccionador, desprezando-se as
vozes dos poucos que ousaram lembrar que o professor tinha atrás de si um currículo de onde constava um
êxito com uma selecção de miúdos, seguido de ininterruptos fiascos com graúdos, em várias partes do planeta,
incluindo um fiasco anterior com a própria selecção nacional.
Mas lá nos classificámos para o Mundial, in extremis e quase em agonia, e logo passámos à condição de
sermos um dos favoritos anunciados, porque tínhamos o Cristiano Ronaldo e a vontade indesmentível de ter
êxito - coisa que para muita gente é condição bastante para o ter. Durante os dois anos da fase de apuramento
e depois, nos chamados jogos de preparação, saltava à vista de qualquer um que não jogávamos nada, que não
havia ali sombra de equipa ou de estratégia, que não havia sequer trabalho de casa suficientemente feito, que
tínhamos uma dificuldade quase inultrapassável em marcar golos, bem demonstrada pelo facto de o próprio
Ronaldo há 16 meses não conseguir marcar um. Que importa? Continuámos favoritos, autoproclamados como
tal pelos jogadores, especialistas e povo em geral. Porquê? Porque sim, porque a pátria não se discute, como
dizia o outro.
E assim embarcámos para África, com os egos enfunados e uma embaixada baptizada de "Navegadores" pelo
próprio professor Queiroz - o qual tratou de informar a pátria de que tinha um feeling. Escreveram-se então
páginas densas de portuguesismo sobre os Navegadores e o Adamastor, que de novo seria submetido e, no
próprio dia do jogo primeiro, um jornal não se conteve e proclamou: "Heróis do mar!" Antes de ser, já o eram,
bem à portuguesa.
As televisões e os jornais encheram-se de infindáveis e repetitivas reportagens do habitual: os menus que os
dois cozinheiros da selecção faziam todos os dias, "e onde, obviamente, não podia faltar o indispensável
bacalhau e o cabrito", os treinos abertos durante 15 minutos e "onde deu para ver que o ambiente é o melhor
possível", as conferências de imprensa com as profundíssimas e interessantíssimas declarações dos "heróis do
mar" e onde toda a novidade reside em descobrir as diferenças: nos penteados, nos brincos, nas tatuagens. Na
véspera do jogo com a Costa do Marfim, apareceu, finalmente, qualquer coisa para contar, todavia
preocupante: o professor estava apreensivo com a relva do estádio, com o vento e com a chuva. Parece que o
adversário não ia enfrentar as mesmas contrariedades, aquilo era só entre os "navegadores" e os elementos, tal
qual como a armada de Bartolomeu Dias. Mas estes navegadores, pelos vistos, bem menos destemidos, contra
o vento e a chuva. Cabo das Tormentas, talvez, mas suave e sem tormenta.
Jabulani ao centro, sai Portugal. Bola para o lado, bola para trás; bola para o lado, bola para trás - assim,
suavemente, durante os três primeiros minutos, só para mostrar ao que vínhamos. Era como se o Bartolomeu
Dias tivesse zarpado de Belém, com toda a pátria a ver, e tivesse iniciado a sua aventura a fazer sucessivas
manobras de virar de bordo no estuário do Tejo, sem pressa alguma de se fazer ao mar. E assim navegaram os
navegadores durante hora e meia, com excepção de uma explosão do Cristiano Ronaldo que por pouco salvava
a 'táctica' do professor. Uma interminável, imensa, intragável chatice. Uma hora e meia de intenso cagaço.
Enfim, paciência, pensámos para connosco, é o primeiro jogo, isto vai melhorar logo a seguir. Mas o pior é
que, logo a seguir, entrou em cena o professor e, aí sim, é que eu fiquei apreensivo.
Explicou Carlos Queiroz que, se tudo tinha acabado obviamente a zero, a culpa tinha sido do adversário, "que
não quis assumir o jogo". E foi logo ralhando por antecipação com o próximo adversário, os malandros dos
coreanos, que vão fazer igual (descobriu ele, depois de intensos estudos, análises, observação de vídeos e
projecções técnico-tácticas). Graças a Deus, ele não é parvo e só isso é que nos safou de pior, bem pior. Então
não é que o espertinho do Eriksson, o treinador nomeado há um mês para dirigir a Costa do Marfim, tinha
planeado que a gente se aventurasse para a frente para depois ele nos apanhar em contragolpe? Ah, que
grande malandro! Não fosse nós termos um treinador "inteligente", como ele próprio se definiu, e teríamos
caído na ratoeira, como tantas vezes caem as equipas poderosas que ousam atacar as mais fracas! Vi, nessas
explicações do professor Queiroz, o reviver do espírito imortal do manguito do Zé-Povinho a todos os
espertinhos da vida que nos querem comer por parvos. Então, o Eriksson queria ver-nos a atacar? Ora, toma!
E os malandros dos marfinenses, mancomunados com a FIFA, que se atreveram a pôr o Drogba a jogar 15
minutos com uma tala a segurar o braço partido! Isso admite-se? Então o Nani faz uma luxação num ombro e
logo o dispensamos de todo o Mundial, e o Drogba parte um osso, é operado e 15 dias depois já quer jogar
contra nós? Isso é desportivismo que se tenha? E se ele tem enfiado uma cotovelada com a tala no Bruno
Alves? Ou, pior ainda, se tem enfiado a bola na nossa baliza, com tala e tudo? Graças a Deus, tínhamos lá o
professor para denunciar a tramóia e para que o mundo saiba que, para a 'táctica' do professor, é melhor um
Drogba de fora do que meio Drogba dentro.
No dia seguinte à estreia dos "heróis do mar", julgava eu que todos estariam de ressaca, lá pela selecção, no
mínimo amarfanhados com o coro unânime de desilusão que num repente se tinha sobreposto ao optimismo
sem limites que antes era lei. Qual quê! Dois mil (esses, sim, heróicos) emigrantes foram assistir ao treino da
selecção e sabem o que lhes disse o professor Carlos Queiroz? "Então, gostaram da equipa? Ficaram
orgulhosos? Isso é que é importante!"
E foi então que eu fiquei mesmo apreensivo. Percebi que há um erro fundamental de interpretação do
professor quanto ao mandato que lhe foi confiado. Ele acha que aquilo que vem mostrando é o bastante para
manter a pátria orgulhosa. E que, se daqui não passarmos, há sempre desculpas e explicações que nos
consolam e onde ele é emérito. Enquanto não nos matarem de vez, estamos vivos - e isso é que é importante. É
assim que ele pensa. Segunda-feira que vem, contra a Coreia do Querido Líder, selecção nº 104 no ranking da
FIFA, a nossa principal esperança é uma revolta a bordo ou uma manobra de génio do piloto principal, o
Cristiano Ronaldo. Vá, heróis do mar, revoltem-se: a pátria agradece.
Os despojos do Século XX0:00 Quinta feira, 17 de Junho de 2010
O PCP viu obviamente chumbada uma sua proposta para tributar os bancos a 25% e subir os impostos para os
titulares de imóveis de valor superior a 1200 000 euros e de iates e aviões particulares. Metendo no mesmo
saco realidades jurídicas e fiscais diferentes (os bancos estão aqui, mas os iates, aviões e casas de luxo estão
sediados em paraísos fiscais e em nome de empresas estrangeiras), os comunistas mostraram não estar
interessados nos resultados práticos da sua proposta mas apenas no seu efeito político. A justiça não é a utopia
nem a demagogia, mas exactamente o contrário: fazer o que se deve quando se pode. Dê o mundo as voltas que
der, os comunistas ortodoxos (que já quase só existem em Lisboa e no Alentejo) hão-de morrer a jurar que
tudo se resolve tirando aos ricos para dar aos pobres. E esta crença atinge por igual o BE, mas faz-me muita
confusão que um partido chefiado por um professor de economia se deixe arrastar sempre pelas teses
económicas populistas e simplistas do PCP. Quando oiço Francisco Louçã ou Jerónimo de Sousa a falarem de
economia e a reclamarem "uma política alternativa à de direita", ocorrem-me sempre as mesmas duas
perguntas: "Quanto custa?", "quem paga?". Quanto custa, é problema que eles não têm, pois que se
dispensaram de ter de se ocupar dessas questões de detalhe; quem paga, é simples: "os ricos". Será que sabem
que já não vivemos nos tempos do Robin Hood?
Vamos lá ser sérios: os 'ricos' a quem José Sócrates não pára de subir o IRS, não são os verdadeiramente ricos,
os donos de iates, aviões ou casas de luxo: esses, como toda a gente sabe, estão a salvo do assalto fiscal. Os
'ricos' que restam, a pagar 46,5% de IRS, são os que são bem pagos pelo seu trabalho e que não fogem ao
fisco... até ao dia em que fogem do país e vão ganhar mais e pagar menos noutro país, onde não são vistos
como o alvo a abater. São uma ínfima minoria que, em termos de saldo final, quase nada representam no bolo
das receitas fiscais: persegui-los é apenas um número de demagogia barata. Os grandes evasores, aqueles cujas
receitas sonegadas ao fisco poderiam, de facto, fazer a diferença, são aqueles que todos querem proteger: as
pequenas e médias empresas, as chamadas classe média e pequeno-burguesa. São, por exemplo, os
canalizadores, os electricistas, as empresas de reparação, de transporte, todos os prestadores de serviços à
escala doméstica que, quando lhes pedimos a conta, nos fazem a fatal pergunta: "Quer recibo? Se for com
recibo, são mais 20% de IVA...". São uns milhares de agentes económicos que todos os dias contratam dezenas
de milhares de transacções onde o cliente não paga IVA e eles não pagam nada e, se calhar, ainda vão sacar
apoios ao Estado. Não que eles sejam desonestos por natureza, mas porque o discurso entranhado de que
basta que os ricos paguem e tudo se resolve lhes criou a convicção de que estão dispensados de pagar. E como
desfazer esta institucionalizada batota (o que não seria difícil, juridicamente) seria contrariar a tese de que os
ricos é que devem pagar a crise, o poder político prefere apoiá-los a eles e castigar quem contrata os seus
serviços (e que, apesar de tudo, foi responsável pelo crescimento de 1,8% do PIB no último trimestre,
alavancado no consumo interno).
A esquerda tida como tal não gosta de enfrentar estas verdades, que contrariam a sua verdade ideológica.
Assim como não gosta de enfrentar a mais terrível verdade do nosso tempo: a de que o Estado social europeu,
tal como o conhecemos, está morto, não é mais sustentável. Nascido na Alemanha, nos primeiros anos do
reinado do Imperador Guilherme II e nos últimos anos de governo do chanceler Bismarck, com a introdução
do horário de trabalho de 60 horas semanais, o seguro de doença (1883) o de acidentes de trabalho (1884) e o
de invalidez e reforma (1889), o denominado Estado social europeu foi uma das maiores conquistas dos
últimos cem anos. Mas a sua longevidade só foi possível graças a 30 anos de devastação humana causada por
duas guerras na Europa ou ao facto de ele só ter sido introduzido em países como Portugal no último quartel
do século XX. O babyboom dos anos cinquenta conduziria, 30 anos mais tarde, a uma geração de reformados
de luxo e à crença, feita doutrina de Estado, de que ninguém mais caminharia sozinho sem o apoio público.
Essa conquista histórica nunca mais - nunca mais, acreditem - terá viabilidade. A menos que sejamos tão
cínicos, tão loucos ou tão irresponsáveis que julguemos poder continuar a adiar a solução e chutar o problema,
acrescentado, para as gerações seguintes. O Estado social europeu, tal como o construímos, está morto - não
porque seja injusto, não porque não seja um sonho mobilizador, não por razões ideológicas, mas por razões
lógicas: porque a matemática nos ensina que uma progressão aritmética jamais poderá alcançar uma
progressão geométrica. E se a nossa esperança de vida é hoje 20 anos mais elevada do que em 1950, se os
custos de saúde multiplicaram por dez, se cada vez estamos dispostos a trabalhar menos anos e se deixámos de
fazer filhos, quem e como poderá sustentar isto e mais tudo o resto, em matéria de prestações sociais?
E quem poderá explicar à nossa esquerda que não há forma de fugir a este debate e que os cemitérios estarão
cada vez mais cheios de mortos da fatal doença dos 'direitos adquiridos' e das verdades imutáveis? A crise, a
tão falada e malfadada crise, além da pirataria financeira, tem como causa primeira e evidente 20 anos de
mentira. Há 20 anos que todos os políticos europeus sabem que o regime em que vivemos não é sustentável.
Mas preferiram ocultar a verdade durante 20 anos do que enfrentar os eleitores olhos nos olhos.
PC 1 (politicamente correcto) O casal mediático de lésbicas lá conseguiu ser o primeiro a casar-se, ao abrigo da
nova lei (com a qual concordo). Mas aquela inconciliável pretensão de serem iguais, sendo simultaneamente
diferentes, levaram-nas a reclamar também o direito de adoptar o nome do marido, tal como algumas
mulheres fazem nos casamentos heterossexuais. Porém, como não havia marido, resolveram cada uma
adoptar o apelido da outra. Assim, a Helena Paixão ficou Helena Pires e a Teresa Pires ficou Teresa Paixão. Ou
seja: trocaram de nomes e continuaram com nomes diferentes. Não se importam que eu morra de riso?
PC 2 Resolvido o casamento, vem, fatalmente, a adopção (com a qual já não concordo). Uma socióloga
americana fez um estudo, prontamente divulgado cá, em que concluiu que os adolescentes rapazes, 'filhos' de
casais lésbicos, são 'menos agressivos' que os colegas de turma. É muito fácil fabricar conclusões em 'estudos'
destes, mas o que acho extraordinário é que se regozijem com a conclusão: não sabem que ser agressivo na
adolescência é uma coisa normal num adolescente normal e que há formas normais de canalizar essa
agressividade para outras coisas inócuas? Não acham estranho que os filhos de um casal lésbico não tenham
agressividade alguma? Ah, tem pai que é cego!
PC 3 O general Valença Pinto convocou uma conferência de imprensa para se queixar da desastrosa situação
financeira das FA - a qual, segundo ele, já compromete missões no estrangeiro, como no Afeganistão. A
imprensa divulgou a coisa e, nomeadamente, a edição de 20-5-2010 do "Correio da Manhã". O general não
desmentiu relato algum da imprensa, mas resolveu desmentir umas linhas que aqui escrevi, baseadas
inteiramente no relato da imprensa, invocando um direito de resposta ao qual, nos termos da lei, me é vedado
responder na mesma edição do jornal. Respondo agora e apenas para dizer que não fui só eu que estranhei que
um general ocupando o alto cargo de chefe do Estado-Maior das Forças Armadas discuta tais coisas em
público e pela forma como o fez. Mas, se entendeu fazê-lo, decerto não ignorava as leituras possíveis a que se
expôs. Nem mesmo um general consegue o milagre de ter o sol na eira e a chuva no nabal.
PC 4 Ouvi a ministra da Educação explicar que todos merecem uma nova oportunidade, que a natureza
humana no fundo é sempre boa, etc. e tal. Fiquei comovido, mas confesso que ainda não sei se percebi bem:
um aluno, com mais de 15 anos, repete o 8º ano e, das duas uma - se passar, passa para o 9º; se chumbar, salta
para o 10º? É mesmo assim? E o que tem a natureza humana que ver com isto?.

Junho 2010: para mais tarde recordar0:00 Quinta feira, 10 Junho 2010
1 Apresento-vos o SUCH: uma empresa pública juridicamente disfarçada de associação de utilidade pública,
cujo fim é "promover a redução de custos e a qualidade e eficiência da prestação de serviço por parte do
Serviço Nacional de Saúde". Na sua última gestão, o SUCH conseguiu a proeza de perder 5 milhões de euros,
com a mesma naturalidade com que empresas como a EPUL (que constrói casas por conta da CML, sem ter de
pagar os terrenos) consegue perder dinheiro. Mas o prejuízo e o endividamento bancário não são nada que
preocupe os administradores do SUCH - os quais, segundo um relatório preliminar do Tribunal de Contas, se
aumentaram 50% no vencimento no triénio 2006/8, atribuíram-se 25 viaturas de "uso não exclusivamente
profissional" e despesas de representação referentes a 14 meses por ano, além de prémios de 130.000 euros a
três directores por terem conseguido cumprir a que era a sua função: cobrar créditos. Pormenor irrelevante é
que o TC conclua ainda que o SUCH revele "falta de conhecimento das idiossincrasias do sector público da
saúde".
Quantos SUCH haverá por essa Administração Pública e Local fora? Quantos biliões não se poupariam se o
primeiro-ministro, pura e simplesmente, decretasse que cada Ministério teria de reduzir a sua despesa
corrente em 10% - e eles que se dessem ao trabalho de puxar pela imaginação e passar a pente fino todos os
gastos inúteis ou injustificados da teia de institutos e empresas públicas, fundações e associações, que tutelam?
Pois é: mas é tão mais fácil e imediato subir impostos a quem trabalha e produz riqueza para sustentar um
exército de milhares de afilhados e protegidos!
2 Vê-se que o Governo está em decomposição quando um homem competente e empenhado como Teixeira
dos Santos já não sabe o que há-de prever, o que há-de fazer, o que há-de dizer. Ele espera apenas que "este
ano" não seja preciso voltar a aumentar os impostos. Ele sabe que o aumento retroactivo de impostos é
proibido pela Constituição, mas acha que essa não é uma "proibição absoluta", que não deva ceder face ao
"bem comum" e à situação de emergência financeira em que estamos. Ou seja: segundo o ministro, parece que
a Constituição tem princípios absolutos e princípios relativos e que cabe a quem governa determinar, em cada
momento, quais são uns e quais são outros. Será que já vivemos em estado de sítio, quando a Constituição, ou
parte ela, pode ser suspensa?
Pois é, senhor ministro, suspenda a Constituição, que a gente paga, que remédio! Mas, se ao menos, não
houvesse o SUCH! Se não houvesse a EPUL! Se não houvesse umas centenas de empresas municipais a
duplicar as funções, os lugares e as despesas das câmaras! Se não houvesse o metro do Porto (praticamente
todo feito à superfície), que, em meia dúzia de anos acumulou quase 2000 milhões de prejuízo, onde as
receitas não chegam sequer para pagar metade das despesas com a dívida e cada bilhete que um utente paga
custa aos contribuintes 3,2 euros mais! Ah, senhor ministro, o Estado português é como um chefe de família
que passa o dia na taberna e no casino e depois rouba o ordenado à mulher e aos filhos para se sustentar! Por
favor, faça, diga-nos qualquer coisa que nos possa consolar patrioticamente dos sucessivos assaltos fiscais de
que somos alvo!
3 A Espanha suspendeu a construção de um dos troços da sua linha de TGV Madrid-Caia. É apenas um troço,
nada mais, mas a tão invocada ligação "estratégica" de Portugal à Europa em alta-velocidade precisa de todos
os troços. Parece que a Espanha manterá o seu compromisso de completar a sua parte no prazo previsto, até
2013. Parece que continua a valer um telefonema entre o nosso ministro das Obras Públicas e o ministro do
Fomento deles. Abençoado telefonema: neste momento, é o melhor instrumento "jurídico" de que dispomos
para não nos vermos amanhã com a gloriosa tarefa de rentabilizar um TGV entre Caia e o Poceirão.
Francamente, seria de mais.
4 Os espanhóis quiseram também comprar os 50% da Vivo que a PT detém no Brasil: ofereceram 5,3 mil
milhões, o que foi considerado pela PT, pelos seus principais accionistas, por José Sócrates, o ministro e o
secretário de Estado como uma ofensiva hostil e atentatória do interesse nacional. Sócrates não se ensaiou
mesmo nada para declarar que faria uso da golden share do Estado na PT para impedir a alternativa previsível
- que seria uma OPA da Telefónica sobre a própria PT. Unidos como unha e carne, Governo e accionistas
principais da PT garantiram que não cederiam, que a Vivo é estratégica para a PT e a PT é estratégica para
Portugal. Cinco dias depois, a oferta subiu para 6,5 milhões e as razões "estratégicas" para não vender
começaram a abrir caminho à estratégia de "tudo tem um preço". Vai haver violas metidas ao saco e um fado
que virará flamenco, mas eu, francamente, não me apoquento nada: a minha dose de patriotismo está-se a
esgotar com o assalto fiscal e o Mundial de futebol. De estratégico, para mim, é só isto: a PT é a maior e a pior
empresa de Portugal. Funciona em regime de monopólio de facto e presta um serviço público que é caro e
mau. Se alguém a quiser, e não apenas à sua enteada brasileira, eu até agradeço: pior não ficamos, de certeza.
5 Compreendo que uma escola com cinco ou dez alunos não é viável financeiramente nem aconselhável
pedagogicamente. Mas fechar todas as escolas (e são todas no Interior) com menos de 20 alunos já é diferente
e dificilmente explicável por razões que não apenas financeiras e de curto prazo. A médio e longo prazo, este é
o caminho certeiro para acabar de matar o Interior: atrás das crianças, vão os pais; atrás dos pais, vão os
empregos e a economia, o comércio e a vida activa; restam os avós, o vazio, as casas fechadas, as aldeias
mortas. Se alguém pensasse Portugal a longo prazo ou se, ao menos, estudasse o seu passado recente, veria
que este é o maior erro que cometemos. Poupamos hoje, pagamos amanhã. E caro.
6 O que mais me despertou a atenção na maravilhosa aventura programada da célebre professora stripper de
Mirandela, foi descobrir duas coisas: uma, que ela, afinal, não é professora, mas sim "monitora de tempos
livres"; a outra, que tem um ordenado por inteiro mas um horário de apenas seis horas semanais, as quais
pode acumular todas num dia, ficando com o resto da semana livre. Será que se eu me despir, também me
arranjam um emprego destes?
7 Pela segunda vez, o Governo vai tentar fazer passar a lei que tornará obrigatória a colocação de um chip em
todos carros e que permitirá ao Big Brother saber, em cada instante, onde estamos, o que fazemos e a que
velocidade circulamos. O objectivo evidente é poder sacar uma fortuna em multas sem levantar o traseiro da
cadeira. Mas eu desconfio que não é só isso: desconfio que, tal como sucedeu com os coletes, algures, aí entre
os 'especialistas', já alguém investiu uns milhares na compra dos chips e só espera, para os transformar em
milhões, que a lei seja aprovada.
8 Alguma direita (não necessariamente recomendável) ficou zangada com Cavaco Silva por ele não ter usado o
veto político à lei dos casamentos homossexuais. Eu percebo-os e não os percebo. Percebo-os, porque se um
Presidente, que não é eleito com um programa de governo, porque não vai governar, também prescinde de ter
um programa ideológico e de valores, então não está lá para fazer nada, excepto manter-se em funções. Mas
não os percebo, porque esse é exactamente o caso de Cavaco Silva, como já todos tinham obrigação de saber.
Cavaco não gosta de riscos, de atitudes morais, de confrontos ideológicos: gosta do terreno aplanado para seu
uso pessoal. Em cada escolha, em cada dilema, ele nunca corta a direito: arranja sempre maneira de se
encostar a uns sem se desencostar dos outros.

Uma campanha Presidencial triste0:00 Quinta feira, 3 de Junho de 2010


1 Manuel Alegre não merecia o tratamento de penosa humilhação a que a sua candidatura está a ser submetida
no PS. E certamente não merecia o enxovalho de personagens menores do PS, como José Lello. Mas, verdade
se diga, foi o próprio Manuel Alegre que se pôs a jeito, cometendo uma série de erros de análise e decisões
voluntaristas, certamente influenciadas pela memória do que foi a sua surpreendente campanha de há quatro
anos.
Primeiro e determinante erro foi acreditar que o célebre milhão de votos de 2005 era realmente seu, como não
se cansou de apregoar. Não era: parte era seu, mas a maior parte era o resultado de um momento e de
circunstâncias em que o eleitorado queria alguém mais 'fora' da política partidária e a falar uma linguagem
menos gasta. Em ruptura com o PS e o seu candidato oficial, Alegre apareceu como esse alguém, quase-
independente, mas não suficientemente para ter ganho. Em 2005, um candidato verdadeiramente
independente, vindo da esquerda, teria talvez derrotado Cavaco Silva. Agora, a circunstância é outra.
Não tendo percebido que o milhão de votos não estaria lá eternamente à sua espera, ele achou que podia voltar
à sua 'família': ao PS e ao Parlamento. Não o devia ter feito: com isso, matou a imagem de quase-independente
e colocou-se nas mãos do PS para uma nova tentativa, como agora se vê. Na qualidade de candidato oficial do
PS, Alegre aliena a maior parte do voto que esteve com ele em 2005; mas, sem o PS, já é tarde para ter
alternativa. É verdade que pode compensar os 'seus' votos que vai perder com os que irá ganhar entre os
socialistas. Mas, nos tempos que correm, nada indica que o saldo seja favorável.
O segundo erro foi começar tudo pelos jogos tácticos, tentando seduzir desde logo o Bloco de Esquerda e
algum eleitorado do PCP. Com isso, irritou grande parte do eleitorado PS, dividiu o do BE e não fez mossa
alguma no do PCP. Tornou-se um candidato de partes de várias esquerdas, em busca de sucesso numa
complicada operação de sobreviver à primeira volta, derrotando Fernando Nobre e evitando o K.O. de Cavaco,
para depois reunir toda a esquerda, sociologicamente maioritária, e derrotar o actual Presidente. É certo que já
assisti a um milagre em Presidenciais (em 86), mas neste não acredito.
Para azar de Alegre, a extrema-esquerda que ele resolveu cortejar esteve sempre militantemente contra os
governos de Sócrates, o que o tem obrigado a um ziguezague constante, ora contra as medidas do Governo ora
a favor das 'grandes linhas' de orientação do Governo. Escusado será dizer que isso não agradou a gregos nem
a troianos e ser-lhe-á recordado a seu tempo. Sobretudo, deu aos seus adversários dentro do PS um argumento
de peso, recordando que, enquanto o partido e o governo do partido atravessavam tempos terríveis a exigir o
cerrar de fileiras, o candidato autodesignado do PS entretinha-se a cortejar a oposição e a rua.
O terceiro erro foi ter lançado a sua candidatura cedo de mais, sem olhar para a situação do país ou do mundo,
sem perceber que os portugueses estavam (e estão ainda) interessados em tudo menos em ocupar-se da
situação pessoal do candidato Manuel Alegre. Como na peça de Pirandello, Alegre aparece agora como um
personagem em busca de autores a quem contar a história da sua candidatura. Mas, tal como estamos,
ninguém viu com bons olhos a sua pressa, apenas determinada pela lição colhida da estratégia seguida por
Jorge Sampaio, de se chegar à frente no PS, antes que alguém mais o fizesse. Mas, uma vez mais, são diversas
as circunstâncias - no PS e, sobretudo, no país.
Paradoxalmente, penso que a grande ajuda que Alegre pode vir a receber para evitar a vitória de Cavaco Silva à
primeira volta pode vir de... Fernando Nobre. Se Nobre conseguir arrancar com uma campanha minimamente
consistente, ele irá entrar no eleitorado de Cavaco, além de recolher votos novos. E isso pode fazer a diferença
que faltou em 2005 para evitar os 50% mais um voto de Cavaco Silva.
Quanto ao actual Presidente, confesso que seria a maior surpresa de mais de três décadas de democracia se ele
não se recandidatasse. Primeiro, porque todos o fazem, parece que o poder é difícil de desentranhar. Depois,
porque basta lembrar a fotografia de Cavaco Silva e a família subindo a rampa do Palácio de Belém no
primeiro dia do mandato, para não alimentar dúvidas: aquele era, não o retrato de um Presidente tomando
posse do seu cargo, mas de toda uma família tomando posse do palácio do poder. Na devida altura (para quem
não tem necessidade nem vantagem alguma em mostrar pressa), Cavaco dirá que a situação do país não lhe
permite afastar-se e abandonar o barco. E, uma vez recandidato, será, obviamente reeleito, porque, entre nós,
nem o Pato Donald perderia a reeleição presidencial. Este é, junto com o de MNE, o cargo político mais fácil
de exercer em Portugal, o que levanta menos riscos e o único que garante sempre dois mandatos completos ao
seu titular.
Não deixa, porém, de ser eloquente que, pela primeira vez, o Presidente em funções tenha de enfrentar dois
candidatos sérios e não apenas dois voluntários para o massacre. Quando Soares se recandidatou, o PSD nem
se atreveu a apresentar candidato e o CDS fez avançar Basílio Horta para uma monumental tareia. Quando
Sampaio se recandidatou, foi Joaquim Ferreira do Amaral quem se dispôs ao sacrifício anunciado. Mas, com
Cavaco Silva, ainda há margem para especular se ele consegue ou não garantir a reeleição à primeira volta. A
dimensão da sua vitória ou derrota política, que não eleitoral, resultará da comparação entre a percentagem
que obtiver, comparada com a dos seus antecessores. É quase o único motivo de curiosidade de uma eleição
ainda tão longínqua.
2 Se bem ouvi, Jaime Gama quer cortar nos chamados "custos da democracia": as subvenções aos partidos,
aos grupos parlamentares e às campanhas eleitorais. Deve andar a ouvir os fóruns audiovisuais onde o 'povo',
se o deixassem, acabava até com o Parlamento. Outros querem cortar no número de deputados, outros nos
computadores do parlamento, outros na sala de fumo, enfim, está aberto um campeonato de demagogia e
autoflagelação que, todavia, todos sabem, não resolve problema algum, apenas pode criar novos.
Valha-nos o general Valença Pinto, o chefe máximo das Forças Armadas. Enquanto, a sério ou a brincar, todos
falam em cortar despesas, o general queixa-se de que as FA já estão falidas - e ainda vamos em Maio. Para
ilustrar a situação a que se chegou, o general deu o exemplo do sistema de informações militares, que, segundo
ele, não estará a funcionar, por falta de dinheiro, "em nenhum dos teatros em que temos forças". Confesso
que, lendo a notícia, há várias coisas que me escapam: como é que as FA já estão falidas em Maio, se este ano
receberam um reforço orçamental de 5,6%; como é que já há um buraco de 80 milhões nas despesas com
pessoal das FA (quando, segundo uma fonte militar, "ele só costuma aparecer em Agosto"); como é que
havendo, pelos vistos, um tradicional buraco nas verbas com pessoal, o "subsídio da condição militar" subiu
nos últimos anos de 14,5 para 20%; como é que, faltando dinheiro, o general-comandante das FA, deixa que
ele falte nos "teatros de operações" antes de faltar em tudo o resto; e como, enfim, é que um CEMGFA convoca
uma conferência de imprensa para dizer isto em público.

Imperdoável0:00 Quinta feira, 27 de Maio de 2010


1-Há qualquer coisa de sórdido em imaginarmos a cena: algures, numa sala escondida da Assembleia da
República, José Pacheco Pereira deleita-se lendo as transcrições das escutas aos casos 'laterais' detectados no
âmbito do processo "Face Oculta". Enquanto esperava pela anunciada companhia do deputado comunista
João Oliveira, ele era o único entre todos os membros da CPI ao caso PT/TVI com tal privilégio - para o qual,
aliás, se voluntariou com indisfarçável gula. De muitos outros poderíamos, talvez, presumir falta de
consciência plena das consequências deste gesto. De Pacheco Pereira, não. Ele sabe muito bem que acabou de
atravessar uma linha na areia, para lá da qual se põe em causa o Estado de direito e de onde, provavelmente,
não há regresso.
O que está em jogo na CPI, recorde-se, é apurar se o PM mentiu ou não ao Parlamento quando disse que não
tinha tido conhecimento prévio da operação de compra de parte do capital da TVI pela PT. Seja qual for a
opinião que cada um tenha sobre isso, a convocação da comissão de inquérito implica, desde logo, duas coisas:
uma, que a oposição, em maioria na CPI, tem de conseguir fazer prova das suspeitas que a levaram a requerer
a comissão - e fazê-lo por meios lícitos; outra, a de que, feita essa prova, só resta derrubar o Governo.
Comecemos pela consequência política: deve o Governo ser derrubado, e nas circunstâncias actuais, porque o
PM mentiu sobre o caso TVI, ou porque, pura e simplesmente, mentiu no Parlamento? Bem, a mentira é
muito feia, mas, infelizmente, muito praticada por muito boa gente e não sei se é mais comum na política e
nos políticos do que no resto. Mas não tenho dúvidas de que os políticos mentem e que, muitas vezes, a gente
assobia para o ar e finge que não é importante ou que não demos por nada. Para não ir mais longe, basta
recuar um ano e recordar a mentira planeada e subjacente àquela espantosa história da conspiração montada
em Belém, com a conivência de um jornal, e com a qual se quis convencer o país de que o Governo escutava as
conversas da Presidência da República. Ninguém ficou com dúvidas de que toda a história fora fabricada e
plantada para ter efeitos políticos em período pré-eleitoral. E o que sucedeu? O Governo optou por não
explorar a história em seu proveito, o regime todo aceitou um pacto tácito de silêncio, o Presidente cumpriu
um período de nojo determinado pela evolução das sondagens e quem acabou ainda no banco dos réus foi o
"Diário de Notícias" - acusado de ter revelado um documento interno do "Público" que expunha toda a trama,
sem pudor. Como se vê, há mentiras que "o regular funcionamento das instituições democráticas" impõe que
sejam desvalorizadas e esquecidas rapidamente. Aliás, uma mentira produz muitas vezes esse efeito duplo no
seu destinatário: ter de ouvi-la e depois ter de esquecer que a ouviu.
Mas, nesta história, o principal já não é isso. Desde que, na segunda-feira passada, José Pacheco Pereira
mergulhou com volúpia de investigador na leitura das escutas dos personagens menores da história da TVI e
emergiu declarando, entusiasmado, que elas eram "avassaladoras", a questão principal passou a ser outra.
Pode uma comissão de inquérito parlamentar ter acesso a escutas telefónicas recolhidas no âmbito de uma
investigação criminal da justiça comum? Talvez possa, porque a lei lhe confere poderes de investigação iguais
aos dos tribunais. Iguais, mas não superiores: o que quer dizer que aquilo que não é lícito um tribunal usar
como prova também uma CPI o não pode fazer. E um tribunal só pode utilizar escutas telefónicas de um
suspeito quando ele acaba acusado por crime a que corresponda pena de prisão efectiva. Ora, qual é o crime de
José Sócrates ter eventualmente mentido sobre este assunto, ou mesmo de ter ele próprio ou o Governo
engendrado toda a operação TVI? Nenhum: um crime político, se tanto e se assim lhe quisermos chamar. Mas
esse crime não vem no Código Penal e a Constituição não autoriza escutas para espionagem ou investigação
política. Por isso, e preto no branco: o que Pacheco Pereira e João Oliveira fizeram é inconstitucional, é ilegal e
abusivo, e abre um precedente cujas consequências podem ser devastadoras. Eu compreendo que, como se
tem visto, todas as escutas daquela gente são uma rara oportunidade de entender como verdadeiramente
funciona o círculo íntimo do poder. Resta que outras escutas a outra gente - da família política de Pacheco
Pereira ou de João Oliveira - provavelmente também seriam fascinantes. E, todavia, não vale tudo.
Há aqui muita irresponsabilidade, para não dizer outra coisa. E a começar no juiz do Tribunal de Círculo do
Vouga que, sem sequer se preocupar com uma eventual sobreposição de poderes entre o judicial e o legislativo,
envia as gravações, a pedido, sabendo que elas não podem ser usadas como meio de prova excepto para o
julgamento de um crime, que não ocorre. Gostava de saber se a mesma colaboração se verificaria se o
Parlamento estivesse a investigar, por exemplo, a suspeita de corrupção de um magistrado (e, isso sim, é
crime)...
Mas o pior de tudo é o precedente. Deputados a quem compete, em primeira linha, a defesa do Estado de
direito e a preservação dos direitos e garantias individuais dos cidadãos promoveram, para fins de luta
política, uma descarada violação de regras constitucionais que protegem esses direitos. Escutar conversas
alheias, fora do âmbito estrito permitido pela lei, é como abrir as cartas dos outros, entrar em casa deles por
arrombamento e vasculhar as suas gavetas e cómodas. E utilizar como prova escutas telefónicas à margem da
lei, seja em que tipo de processo for, é como utilizar outros meios ilegais de prova - como as confissões obtidas
sob tortura, por exemplo. Juridicamente, constitucionalmente, é igual, sem tirar nem pôr. E escusaria de
acrescentar que para a saúde do regime democrático é infinitamente mais grave utilizar provas destas do que
apurar se o primeiro-ministro mentiu. É por isso, justamente, que as democracias têm regras de jogo que as
ditaduras dispensam.
2-Outra comissão - a da liberdade de informação - concluiu os seus trabalhos com o mais previsível e
lamentável dos resultados. Toda a oposição votou a favor da existência de ameaças à liberdade de informação e
todos os deputados do partido do Governo votaram contra. Nem um só deputado, da oposição ou do Governo,
se desviou do voto partidário; nem um só teve opinião diferente e própria; nem um só votou diferente daquilo
que já se sabia que ia ser o seu voto desde o início. Para quê insistir em perder tempo com estas palhaçadas
parlamentares?
O mais notável de tudo, para mim, é que a oposição, encabeçada pelo PSD, tenha feito votar uma conclusão
em que se afirma que a liberdade de informação em Portugal está ameaçada devido a uma complicada relação
entre o poder político, o poder económico e os media. Sem uma palavra sobre a situação na Madeira! Sem
uma palavra sobre a mais escandalosa situação de abuso e confusão entre o poder político, o poder económico
(que ele controla) e os raríssimos media que ainda não estão ao serviço da propaganda larvar do dr. Jardim!
Caramba, ó comissão, é obra! É preciso ter o topete para o fazer!
3-Topete também é ver o dr. João Rendeiro (que levou o BPP à falência e depois veio dizer que não tinha nada
a ver com aquilo, pois que era "apenas" presidente do seu Conselho de Administração) participar num fórum
sobre "economia e competitividade" e perorar contra as medidas do Governo. Ah, país de brandíssimos
costumes! Ou, como escreveu Camões, "Desculpado por certo, está Fernando,/Para quem tem de amor
experiência;/Mas antes, tendo livre a fantasia,/Por muito mais culpado o julgaria".
4-Topete ainda é negociar com o principal partido da oposição o segundo aumento "excepcional" de impostos
em dois meses - e para vigorar ano e meio - e, acordo feito, prolongar o ano e meio para três anos e logo
sugerir que o excepcional deve passar a definitivo. Ao mesmo tempo que tentavam, à socapa, tornar o aumento
retroactivo. Isso, sim, é mentir - e olhos nos olhos, que é o que mais custa a perdoar.

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