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Camila Antunes

O Filho do Imperador

Camila Antunes

Copyright© 2017 Segunda edição independente 2018


Todos os Direitos Reservados.

Capa: Noemi Nicoletti


Revisão: Milena Antunes César

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Camila Antunes
O Filho do Imperador
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MAPA DO CONTINENTE

SUL-EQUATORIAL-1

(Antiga América do Sul)

Novo Mundo
Para aqueles a quem devo tudo o que sou, pai e mãe.
“ – Eu não sei por que, mas sempre fui apaixonado

pela ideia do verão.”

Fala de Olaf em “Frozen”,

de Walt Disney Animation Studios.


Sumário
Prólogo
O vestido branco
O sorriso fácil
O anfitrião malquisto
O efeito das flores
O livro secreto
O perfume doce
A chave dourada
A epifania
Visita ao estábulo
A clareira
O sentimento sublime
O destino infausto
Uma nova hóspede
Uma linha tênue entre o amor e o perigo
O dia depois do beijo
Uma descoberta amarga
O passado encoberto
O mal-entendido
O festival de verão
O novo começo
O novo acordo
De volta ao lar
Epílogo
Agradecimentos
Prólogo

De pé, ao lado da lareira que nunca fora acesa, Kilian segurava uma taça
de vinho branco com uma das mãos. O polegar da outra estava apoiado sobre a
mandíbula, sustentando os dois dedos que usava para esfregar a têmpora. Seu
cenho, franzido, indicava que algo o incomodava. Não dava para saber ao certo
se era alguma dor física ou apenas aborrecimento.

Ele vestia seu traje verde de gala, que tradicionalmente usava nos bailes
de aniversário da irmã. Uma janela estava entreaberta atrás de Karen, de modo
que as cores do crepúsculo invadiam o ambiente e, refletindo sobre a pele do
rosto do rapaz, tornavam o rubor causado pela raiva que ele sentia por ela
naquele momento ainda mais intenso.

Durante longos minutos a moça observara, paralisada, o movimento da


luz sobre a face dele. A fina cortina de organza branca que cobria todas as
janelas do recinto era impulsionada pelo vento, aumentando e diminuindo a
intensidade das cores que ousadamente adentravam aquele que era seu lugar
preferido no castelo, a biblioteca real.

Os lábios de seu irmão transformaram-se em uma linha após terem


discutido tão fervorosamente e ela pôde notar que ele frequentemente contraía a
mandíbula por baixo da camada vermelha de pele. Todo aquele silêncio que se
instaurara entre os dois começava a fazer com que ficasse inquieta. Não
conseguia imaginar o que se passava pela cabeça dele, mas sem dúvidas, era
algo sobre o qual ela odiaria tomar conhecimento.

Kilian não lidava bem com desafios e contestações, tampouco a jovem


era boa em fazê-los. Nunca houvera desafiado o irmão até agora. Não por falta
de força, o que ela tinha convicção, mas porque nunca teve um motivo real para
fazê-lo.
Ele a criou da melhor forma que pôde, e a garota sabia disso.
Apenas oito anos de idade separavam os dois, o que determinava a Kilian
exatos dezessete anos de vida quando seus pais morreram. Karen seria
eternamente grata a ele pela dedicação e zelo que dispensou a ela, enquanto
era apenas uma criança. Ainda assim, não parecia coerente que, naquela
nação do Novo Mundo, a qual justamente se diferenciava de muitas outras
no que se referia ao direito das mulheres, justo sua única princesa fosse
obrigada a se casar com um desconhecido por questões políticas. O que a
tornava diferente das outras meninas, que poderiam seguir o rumo de suas
vidas como bem entendiam, afinal?

− É tão difícil para você entender que eu precisei me


comprometer? − o rei repetiu a mesma pergunta, pela terceira ou quarta vez,
voltando-se para Karen.

A jovem mal podia acreditar nas palavras que ouvia. Todo esforço
que fizera até agora, tentando se fazer entender pelo irmão, cada palavra
que usou para argumentar, pareciam não ter surtido efeito algum sobre sua
consciência. Ele estava exaustivamente irredutível, entretanto, ela se
recusava a aceitar − conhecendo Kilian − que ele realmente seria capaz de
submetê-la a um acordo tão absurdo.

− Este é o ponto − afirmou, em tom de súplica. − Você não vê,


meu irmão? Não comprometeu a si mesmo, mas a mim.
O jovem rei não era de todo insensível. No fundo, aquele desespero
de Karen para livrar-se da obrigação que lhe impusera, fazia seu coração
pesar. Embora não o suficiente para convencê-lo a voltar atrás.

Kilian esfregou os olhos, sem soltar sua taça. Em seguida, passou a


mão pelos cabelos negros e encarou-a com o rosto sombrio, antes de
declarar:

− Karen, pare de se lamentar. É tarde para isso. E completamente


inútil − dizendo essas palavras, simplesmente saiu, deixando-a sozinha e em
total estado de frustração.

A frieza do irmão a quem sempre havia venerado, causou-lhe um


arrepio terrível na espinha. Durante toda sua vida, a princesa teve muitas
impressões sobre ele, mas nunca a de que não sentia
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afeto por ela. Então se sentou lentamente no sofá branco de matelassê em que
costumava ler, encarando a taça de vinho, agora vazia, que o rei abandonara
sobre a mesa de centro. Colocou as mãos sobre os olhos na vã tentativa de livrar-
se de seus pensamentos sombrios. A ideia de ser desprezada pela pessoa a quem
mais amava no mundo, entretanto, fez com que todo o medo que reprimira até
aquele momento transbordasse pelos olhos.

Do outro lado da porta, Kilian apoiava-se de costas, ouvindo os soluços


da irmã atravessarem-na e atingirem seu coração como um punhal. Ele cerrava
os olhos, como se procurasse dentro de si, uma solução para amenizar o
sofrimento dela, mas por mais que pensasse, não conseguia compreender de fato
o motivo pelo qual ela sentia tanta dor. Não era como se Karen estivesse
apaixonada por alguém de quem ele a separaria. Jamais poderia imaginar, na
ocasião de seu acordo com o imperador, que em momento algum ela se oporia às
condições que os dois estabeleceram.

Era simples para ele: qualquer mulher se sentiria lisonjeada por se casar
com um rei. Ele sabia disso porque era um. Desde que era apenas uma criança,
as meninas lhe davam atenção especial. Agora, aos vinte e três anos, não era
diferente. Kilian repudiava a ideia de se casar porque sabia que o principal
motivo que a maioria de suas pretendentes tinha para desejar tornar-se sua
esposa, estava diretamente ligado à coroa que ele carregava. Seu pai uma vez lhe
disse que o poder era a mais eficiente arma de sedução, e ele sabia do que falava.
O jovem rei usava esse conhecimento como uma defesa. Recusava-se a se
apaixonar e, só por garantia, limitava-se a manter as mais superficiais relações
físicas com qualquer mulher que aceitasse seus termos.

Mas Karen, Karen era a luz de sua vida. Tudo em que ele conseguia
pensar era no quanto seria sortudo o homem com o qual ela se casasse. Sua irmã
era delicada, carinhosa e parecia sempre feliz. Desde que perderam seus pais, ela
fora o principal motivo para ele permanecer firme. Mais do que todo o reino.
Agora, ele se sentia a pessoa mais estúpida da face da terra, por sequer imaginar
que
a moça pudesse não querer se casar com o filho do imperador de Lima. Ela
seria mulher do homem mais importante do planeta, e a ideia simplesmente
não lhe agradava. Sua Majestade não sabia ao certo se a raiva que sentia era
mesmo da irmã, por ser tão incompreensiva, ou de si mesmo, por
simplesmente não a ter consultado antes. Agora, a essa altura do acordo, era
tarde demais. Karen teria que obedecê-lo. Gostasse ou não.

⚜⚜⚜

Kilian vira o pai reinar por poucos anos. Onze, para ser exato. Nesse
tempo, contudo, acompanhara cada um de seus passos. Era como se o
destino ou algo sobrenatural – se acreditasse nesse tipo de superstição – o
preparassem para reinar desde muito novo. O jovem rei acabou ganhando o
coração de seu povo, ao erradicar a Peste do reino, quando negociou com o
Império de Lima, a vacina que havia sido desenvolvida em seus
laboratórios. Eles não tinham apenas a prevenção para o que chamavam de
Grande Mal, como também sua cura.

Após a Terceira Guerra, nada além da Peste havia causado tantas


mortes no Novo Mundo. Para começar, foi por causa dela que a própria
Guerra se instaurou e, quando se imaginaram livres, ela voltou pior, mais
forte e mortal. Na Idade Contemporânea, o Mal era conhecido como peste
suína, ou cólera dos porcos, já que era restrito apenas ao contágio desses
animais, mas depois de algumas mutações, o vírus passou a contaminar
humanos.

Uma tentativa fracassada de erradicá-lo fez com que, ainda mais


modificado, se fortalecesse ao ponto de ser usado como uma arma biológica
perigosa nas mãos da organização terrorista nas quais acabou caindo. Ela
ironicamente se autodenominava de A Nova Ordem. A Ordem era
estruturada e havia se espalhado como uma praga através dos continentes,
ao ponto de se tornar necessário que o mundo inteiro se unisse para
combatê-la. Todas as nações despiram-se de suas vaidades quando a
realidade caótica estava instaurada. E, no fim da guerra, a maior parte da
divisão geográfica do planeta foi alterada, tendo sido repartida entre os doze
grandes exércitos que, apenas depois de quinze anos de guerra,
conseguiram derrotar a Nova Ordem e erradicá-la da face da Terra.

Em homenagem aos exércitos, os meses do ano passaram a ser batizados


com os nomes dos seus respectivos generais: o primeiro mês, de Eleno, que
estava à frente do exército da maior parte dos países leste continente europeu; O
segundo mês, de Elijah, em homenagem ao general do norte do antigo continente
americano; O mês de Alef, terceiro do ano, era uma referência ao exército
australiano; O quarto mês, Jairus, estava relacionado às forças armadas dos
países ao noroeste do continente americano, enquanto do seu sudeste vinham os
homens de Ramoni, que batizou o quinto mês do ano. O sexto exército provinha
da parte central da antiga América e era comandado por Mirtes, a única general
do sexo feminino. O sétimo mês foi nomeado pelo líder do exército asiático,
Kim. O oitavo, Lucius, em que agora estavam, do sul da África. O nome do nono
e último mês do verão equatorial, que provinha da antiga Rússia, era Ivo; o
décimo chamava-se Gaio, e vinha do norte da África; a antiga nação de Israel,
era liderada por Zacariah, que nomeou o décimo primeiro mês. E o por fim,
havia o mês de Morgan, líder do exército da Grã-Bretanha.

Mesmo que a história de sua Era pudesse fazer a maioria das pessoas
comuns acreditarem ser um verdadeiro milagre que a humanidade passasse por
aquilo e que permanecesse, após mil anos ainda, Kilian não se comovia. O
ceticismo era a maior característica do Novo Mundo. As religiões foram banidas
da maior parte dos países, por serem “uma causa potencial de discórdias
internacionais que deveriam ser evitadas em prol da perpetuação da espécie
humana”. E ele era prático, adepto a esse pensamento. Para o rei, a salvação de
sua nação dava-se por conta do acordo que fizera com o Império. A questão era
que nada se conquistava da mão de Lima sem um preço. E o preço que Kilian
tinha a pagar, embora não entendesse o motivo, era a mão de sua irmã.

⚜⚜⚜

Quando finalmente secou as lágrimas, a princesa dirigiu-se até o


espelho. Ela encarou seu reflexo, ficando instantaneamente perplexa com a
imagem que encontrou. Seus olhos estavam vermelhos e inchados, como
não ficavam desde o pior ano de sua vida.
Ela tinha apenas nove anos quando seus pais adoeceram, acometidos
pela peste. Quando eles se foram, Kilian se tornara tudo o que tinha. Nunca
imaginou que chegaria o dia em que ele iria querer livrar-se dela com tão
pouca dificuldade.

Usou seu lenço branco com as bordas douradas para tentar dar um
jeito em sua aparência, mas logo se arrependeu, ao lembrar-se do que
aquelas cores representavam. Eram as cores da bandeira de Lima. Cores as
quais ela começava a odiar.

Lembrou-se das viagens que fizeram em família para o império e


das vezes em que se encontrou com o príncipe Sales. Ele sempre fora
cortês, embora pouco interessado em sua vida ou na de seu irmão. Eles se
conheciam há tantos anos e ao mesmo tempo não sabiam nada um do outro.
Ela deveria ter suspeitado, quando Kilian adiantou o baile, que algo estava
fora do comum. Sempre faziam sua viagem para Lima antes do evento, mas
este ano seria diferente. Havia um motivo encoberto o tempo inteiro, do
qual era jamais desconfiara.

Quanto mais a princesa pensava sobre o assunto, digerindo essa


epifania, mais amargura sentia por ser a pessoa menos informada sobre o
rumo da sua própria vida.

De repente, ainda perdida em seus devaneios, escutou o som de um


pequeno sino, indicando que alguém solicitava entrar na biblioteca. Quando
viu o mordomo abrir a porta, não imaginou que seria a condessa Leila
Maia, sua única amiga, quem seria anunciada.

− Mande-a entrar, Davi − solicitou ao criado, que era ainda mais jovem
que seu irmão. − Por favor.

Uma saia de chifon verde, no tom idêntico ao da farda do rei, se estendeu


pela tapeçaria. Leila entrara magnífica, com seus pesados cabelos castanhos
soltos sobre os ombros. Apesar de saber que de fato ela era, tecnicamente, sua
única amiga, Karen ficava cada vez menos feliz ao encontrá-la. Há muito tempo
desconfiava que o apreço que a condessa sentia por ela era puramente
oportunista. Bastava que Kilian estivesse no recinto para que a princesa se
tornasse invisível para ela. Naquele momento, entretanto, Karen preferiu
acreditar que a condessa estivesse genuinamente preocupada com seu bem-estar.
Mas não conseguiu sustentar a hipótese por mais de um minuto.

− Olá, Vossa Alteza Maravilhosa − cumprimentou, com uma doçura


massivamente forçada. − Sua Majestade me disse que estaria aqui.
− Então já o encontrou? – Controlou-se para não revirar os olhos. −
Espero que ele esteja se divertindo no meu baile.
− Karen! − Sentou-se ao seu lado, impaciente. − Estamos todos
esperando você para a valsa! O príncipe Sales está lá. Como pode deixar passar
uma oportunidade como essa?

Karen tinha certeza, sem que ninguém precisasse lhe contar, que aquela
era uma oportunidade a qual a condessa jamais desperdiçaria, caso tivesse a
chance.

Analisando melhor, a valsa era, inclusive, uma boa explicação para que
ela viesse à sua procura. Kilian precisava escolher um par para a primeira dança
e só faria isso quando a irmã estivesse presente. Contudo, ela podia prever que a
escolha dele não seria Leila. Nunca era Leila.

Levantando-se, a princesa compreendeu que não teria como escapar


daquela noite, de modo que consertou o vestido para, enfim, juntar-se aos
convidados. Estava prestes a alcançar a condessa quando, passando em frente ao
espelho, ao fitar o próprio reflexo, uma ideia lhe ocorreu.

− Leila − chamou, fazendo a amiga, que já estava na porta, voltar


sua atenção para ela. − Faça-me um favor. Vá na frente e diga que já estou
chegando. Preciso passar em meus aposentos.

A condessa concordou, satisfeita, fazendo uma reverência rápida, por


educação. Quando ela saiu, Karen dirigiu-se rapidamente para o quarto, a fim de
colocar o plano em prática. Kilian podia querer livrar-se da irmã − o que o
tornava uma decepção para ela − mas não iria conseguir isso tão fácil quanto
pensava.
UM
O vestido branco

Ingrid mordia as unhas, um hábito, na opinião de Karen, extremamente


odioso. Não importava o quanto a princesa insistisse para que ela parasse, sua
dama de companhia era simplesmente incapaz de conter o impulso quando
estava nervosa. Depois pedia perdão pelos péssimos modos, mas Sua Alteza
sabia que o arrependimento só duraria um minuto.

Karen estava seminua em seu quarto, enquanto alguns andares abaixo


dela o baile de seu décimo quinto aniversário acontecia. O tecido do seu vestido
branco de rendas francesas, que tinha uma longa cauda com aplicações de
bordado dourado, escorreu por seu corpo, acomodando-se em volta dos pés. O
vestido foi um presente do irmão e agora ela sabia exatamente o porquê da
escolha daquelas cores. A farda do príncipe Sales levava os tons da bandeira do
império, uma bandeira branca, cujo centro possuía a ilustração de um enorme
Leão Dourado, símbolo da família De Ravin. Kilian planejara que Karen fosse o
par perfeito para o príncipe, já que em breve selariam sua futura união. A única
coisa que a tranquilizava era o fato de que anúncio público aconteceria apenas
meses mais tarde. Naquela noite, após o baile, o “acordo” aconteceria apenas em
família.
A princípio, Ingrid tentou se opor à ideia da troca de vestidos. Mas sabia
que não poderia ir contra a vontade de Sua Alteza. Por isso, a jovem roeu as
unhas até não sobrar mais nada além da cabeça dos dedos para mordiscar. A
princesa, que parecia acuada quando chegou ao aposento, já exibia um sorriso
travesso no rosto. Em todos aqueles anos, Ingrid podia dizer que já a conhecia
bem. Cada um dos seus fáceis sorrisos tinha um significado. Aquele,
excepcionalmente maroto, não podia significar boa coisa.
Levantando um pé de cada vez, Karen saiu de dentro da veste da
qual se despira. Seus pés tamanho trinta e seis, estavam cobertos por um
precioso scarpin, revestido de pérolas, o qual dentre todos os que possuía,
era seu preferido. Além de garantirem um caminhar satisfatoriamente
elegante, aquele par lhe concedia doze centímetros a mais de altura.
Ela caminhou até uma gaveta, a qual abriu com cautela. Vasculhou
por alguns segundos até que encontrasse o que procurava. Tirou de lá um
lenço verde escuro, cuidadosamente dobrado, e quando finalmente o
estendeu, lá estava ela: a bandeira de sua pátria. Era isso que ela faria hoje
em seu baile: uma honra ao país do pai. A bandeira de Vera Cruz era
simples: uma cruz branca contornada por dois finos traços: vermelho e
dourado, atravessava o verde escuro, sua cor predominante. Mas essa era a
cor que Kilian e a maior parte de suas pretendentes usariam. Precisava de
uma solução rápida e prática, quando de repente, olhando para seus vestidos
usados, uma ideia lhe ocorreu.
− Ingrid! − chamou, fazendo a menina saltar sobre si mesma. − Você
borda! Poderia fazer uma coisa para mim agora?

A dama ficou desconfiada, mas admitiu que podia bordar. Quando a


ideia finalmente lhe foi exposta, entretanto, ela sugeriu algo mais prático.
− Se Vossa Alteza pretende usar esse modelo ainda esta noite –
tentou explicar. − Creio que uma aplicação seja a melhor saída.
− Faça como quiser. Mas que seja resplandecente − ordenou,
mal contendo a euforia.
Ingrid se pôs a trabalhar, e não conseguiu esconder que, no fundo,
ficara orgulhosa da perspicácia da princesa. Não seria de todo mal que esse
novo pretendente tivesse um pouco de trabalho, afinal.

− Veja só! Novecentos e noventa e sete anos após a Terceira


Guerra e uma mulher não tem o direito de escolher com quem ou se quer se
casar − pensava consigo mesma, enquanto fazia seu melhor trabalho.

Quando enfim terminou, ajudou Karen a vestir-se de novo. O


mesmo modelo do qual acabara de despir-se, agora, porém, com as
modificações que as duas fizeram.
Ao chegar à escada do salão de festas, Karen fora anunciada por um dos
criados. Todos pareceram positivamente surpresos quando puseram os olhos
nela, exceto pelo irmão que, com os olhos atônitos, não parava de pressionar a
mandíbula − uma mania que tinha − em sinal de desaprovação. Ela sabia que ele
se sentira desafiado, o que em ocasiões normais, provavelmente não ocorreria.
Era o reino dele que ela estava homenageando, afinal.

Enquanto descia, o maravilhoso tecido da sua saia deslizava pela escada.


Nela, antes apenas branca com aplicações douradas, estava estampada uma
grande cruz em seda vermelha, que há pouco pertencia à cauda de um vestido da
princesa. Ingrid aproveitara o bordado da própria peça para representar o
tracejado dourado da bandeira. Só o verde faltava, mas o recado estava bem
dado. Não existia espaço para qualquer leão ali. E já havia verde o suficiente no
salão.

Do lado esquerdo do ambiente estavam quatro homens vestidos


impecavelmente de branco. Um deles, de cabelo loiro acobreado, não tinha
nenhum tom de dourado no fardamento, em vez disso, carregava uma medalha
na forma de uma pequena cruz de contorno vermelho, o que significava
Comando Real de Vera Cruz. O sorriso caloroso no rosto, ela conhecia bem.
Tratava-se de seu primo, Dumas Pascoal, duque de Ilhabela, comandante da
Guarda Real do seu país e o que ela tinha de mais próximo em matéria de
família, além de seu irmão. Pela expressão em seu rosto, Dumas parecia ter
aprovado o traje da princesa. Ao lado dele, negro e altivo, estava o imperador de
Lima. Apesar do título, o homem era relativamente jovem. Não tanto quando seu
irmão, é claro, mas não tão experiente quanto seu pai seria se estivesse entre
eles. O imperador Dom Fernão de Ravin e seu pai, o rei Ur Orleans, foram
amigos de guerra, o que garantiu a Vera Cruz alguns anos de aliança com a
maior nação do Novo Mundo. Ao lado dele, estavam seus filhos Sales e Roque,
cujos olhares não desviavam dela.

Apesar do vestido e de todo o tule que compunha sua anágua, Karen se


sentia despida por aqueles olhares. Nunca antes tivera tanta certeza de que
aquelas pessoas eram completos desconhecidos.

Assim que alcançou o último degrau, o irmão aproximou-se dela, tomando-


a pela mão e, inclinando a cabeça em sua direção, da forma mais discreta
que pôde, sussurrou em seu ouvido:
− Diga-me o que isso significa.

Ela não conseguiu conter uma risada abafada, para completa


irritação do rei, que cessou os passos e virou-se em sua direção, tomando o
cuidado necessário para que quem estivesse em volta não percebesse o teor
da conversa.

− Acha que isso é uma espécie de brincadeira, Karen? − insistiu,


inexpressivo, tentando intimidá-la. Mas ela o conhecia bem. Por baixo
daquela pose de déspota irredutível, estava desesperado. Por um momento,
sentiu pena do nervosismo do irmão, diante de sua travessura.

− De forma alguma, irmão. Eu apenas quis homenageá-lo. Não sei


até quando estarei por aqui para honrar nossas cores, não
é mesmo?

Essas palavras o fizeram engolir em seco. Não que ele tivesse


considerado que fossem sinceras, mas, ainda assim, decidiu que era
conveniente mudar de assunto. Tomando-a pelo braço, anunciou que a
levaria até o príncipe para que dançassem a primeira valsa. O coração de
Karen se apertou, mas ela sabia que, caso precisasse fazer uma cena, aquele
não seria o local indicado. Jamais constrangeria o irmão efetivamente na
frente dos seus súditos. Se aquele aniversário tinha algum significado, era
que ela não era mais uma criança.

Quando chegaram até a família imperial, Karen se esforçou para não


ruborizar. Ela se lembrara dos conselhos da mãe sobre controlar a
respiração da melhor maneira possível para manter os ânimos sob controle.
E era boa nisso.

Aproveitou o momento em que se cumprimentavam para encarar os


dois príncipes e sentia como se os estivesse vendo realmente pela primeira
vez.

Roque, o mais novo, se aproximava um pouco mais de sua idade.


Para falar com precisão, ele completaria dezessete em dois meses. Ainda
assim, não era ele a pessoa a quem ela fora prometida − apesar de se sentir,
na verdade, vendida.
O rapaz era magro e atlético, embora não muito alto para o padrão de sua
família. Seus traços eram fortes: lábios grossos, como os do pai. O cabelo bem
rente à cabeça, estilo militar, como o de um príncipe deveria ser. Roque era
como uma cópia não muito fiel de seu irmão, cujas feições eram parecidas, mas
a altura e os músculos eram capazes de fazer qualquer pessoa distinguir os dois,
mesmo a uma longa distância.
Diferiam também nos olhos. Os olhos de Roque eram negros como a
noite, enquanto os do herdeiro do império, segundo todas as pessoas descreviam,
eram cor de mel. Mas Karen sempre achou que aquele tom se parecia mais com
a cor de uma bala que ela costumava comer na infância. Bala de caramelo. −
Olhos caramelos, são os que ele tem − pensava.
Sales era pelo menos cinco centímetros mais alto do que ela. Isso quando
a moça usava seus scarpins, o que garantia ao príncipe, no mínimo, dezessete
centímetros de diferença. Seus ombros eram largos e os braços os
acompanhavam em proporção. Ele não era o mais simpático entre os dois, mas
era justamente com quem ela deveria se casar.
O príncipe Sales tocou em sua mão para beijá-la em cumprimento e, de
repente, os pensamentos de Karen a levaram à sua suíte de Núpcias. Ela
estremeceu sob o pensamento de seu corpo, magro e com pouquíssima força,
sendo tocado por aquelas mãos enormes. Desejou, com toda sua alma, que
houvesse alguma delicadeza por trás daquela figura bruta.
− Não está sorrindo, princesa? − Sales comentou, com uma curva
debochada nos lábios. Ela paralisou, dando-se conta de que sorrir amigavelmente
nunca fora o forte dele. − Que mal lhe acometeu?

− O que isso quer dizer? − Kilian interveio, ríspido. O que fez com
que todos os olhares, incluindo o do imperador, se voltassem para ele.
− Não quer dizer nada − anunciou o pai do menino, que logo se
virou para dirigir-se ao filho. − Não aprendeu nada sobre ser cortês?
− É claro que sim, meu pai − sorrindo assimetricamente, fez pouco
caso da repreensão. − Eu só estava brincando com Karen. Ela sabe, não é?
− Cla-claro − concordou a moça, olhando para as mãos. Kilian
franziu o cenho, desaprovando aquela interação entre o

casal, cujo destino ele ajudara a traçar. Decidiu chamar a atenção da irmã
para algo que não fosse o príncipe e assim, talvez, aliviar a tensão entre os
dois. Tocando com delicadeza em suas costas, deu-lhe um beijo no rosto, o
que fez Sales desviar o olhar, constrangido pela demonstração de afeto.
Karen sorriu para ele, agradecida. Ela sabia que aquela era uma forma do
irmão demonstrar o quanto ela era amada por ele, e como deveria ser
tratada.

− Você já escolheu sua parceira para a primeira valsa? −


perguntou a princesa, aproveitando a trégua entre os dois.

− Ainda não − respondeu, entediado. − Quem você me sugere?


Karen olhou ao redor e sentiu pena das expressões de expectativa das
moças solteiras do recinto. Nenhuma delas, ela sabia, interessaria a Kilian por
mais de uma noite, embora o que ela mais desejasse fosse que ele finalmente se
apaixonasse por alguém. Bom, isso era o que ela costumava desejar, antes que
ele tirasse a sua chance de se apaixonar.
Passando os olhos pelas moças, seu olhar bateu na condessa Leila, e
antes que pudesse sugerir qualquer coisa, Kilian sussurrou que não tinha “a
menor chance”. Ela sentiu uma pontada de pena, embora soubesse que a
condessa livre durante a valsa, era tudo que seu primo, o duque, gostaria de
ter.

− O que acha da lady Ítala? Filha do Conde de Valverde?

− Não a lady Ítala, Karen − respondeu, repreendendo-a por conhecer


suas intenções. − Nada vai acontecer entre nós que não tenha acontecido
naquele verão. Você gostaria que eu lhe desse falsas esperanças?
– Está bem. Desculpe-me − aceitou, enquanto corria os olhos por
elas mais uma vez. − A princesa Sofia! Ela não vem a muitos bailes meus.
Kilian revirou os olhos. A princesa Sofia Bragança se atrevia a usar
verde. Eles sequer se conheciam de verdade. E ela era infinitamente mais
nova do que ele. Era quase da idade de Karen, o que, pensando bem, era
ideal para evitar expectativas. Ninguém acharia que Kilian estivesse
procurando por uma segunda filha.

− Só você mesmo, irmãzinha, para me fazer dançar uma valsa com


a filha daquele homem − comentou, referindo-se ao rei de Nova Mariana, a
quem assumidamente repugnava. − Vamos descobrir se algo de bom vem
daquela nação, afinal. Ainda que sejam, ao menos, bons modos.
Karen observou o irmão se aproximar da princesa, cuja expressão era de
pura perplexidade. Tomando-a pela mão, ele convidou-a para dançar. A moça
assentiu, empolgada, e Karen pode ouvir quando o rei ofereceu a ela “minutos de
trégua” entre seus países. A jovem não hesitou por um minuto sequer.

− Então ele está aí, embora tímido − uma voz rouca soou às suas
costas, fazendo com que ela voltasse a realidade. Num passe de mágica, o sorriso
que começava a esboçar, desaparecera. – Concede-me esta dança?
Ela aceitou, graciosamente, repetindo diversas vezes o exercício de
respiração de sua mãe. Tomada pela mão, foi levada pelo príncipe até o centro
do salão, onde se uniu ao irmão e à princesa Sofia.

Sales se posicionou a sua frente, imponente como um gigante. Tomou-a


pela cintura, e ela repousou as mãos em seu peito. Por alguns segundos, teve a
impressão de que o ritmo cardíaco dele estava mais acelerado do que o normal,
mas não tinha certeza se era mesmo isso o que de fato sentira ou se, na verdade,
a velocidade da pulsação de seu próprio sangue a deixava confusa. Karen espiou
por cima dos ombros dele, na medida em que conseguiu fazê-lo, imaginando
como o príncipe mais novo seria, provavelmente, mais adequado para ela. Além
de menor e mais delicado, Roque era infinitamente mais amigável que o irmão.
Ele observava com simpatia, enquanto os dois dançavam.
Toda a brutalidade de Sales, contudo, não o fazia um mau dançarino. O
rosto dele estava próximo ao seu pescoço e sua transpiração causava nela uma
cócega incomum. Os pelos de seu braço se arrepiaram um pouco e ela agradeceu
por ter mantido em seu vestido as mangas compridas. Em dado momento, o
príncipe afastou a cabeça para passar seus olhos − olhos cor-de-caramelo − sobre
ela, e comentou, com aquela voz enrouquecida:

− Você está linda hoje.

A jovem fitou-o por um minuto inteiro, demorando a se dar conta de


que estava paralisada. Tentou processar o significado do calor que surgiu
em suas vísceras ao som dessas palavras, e acabou levando mais tempo do
que o habitual para agradecer.

Com isso, pôde reparar em Sales pela segunda vez e constatar que o
rosto dele, quando observado assim, tão de perto, parecia mais bonito do
que se lembrava. O queixo quadrado do rapaz, o fazia parecer ter bem mais
do que dezenove anos de idade. Talvez isso fosse acentuado ainda mais
pelos traços fortes. Seu nariz era largo e levemente arredondado, enquanto
os lábios eram carnudos, contrastando com os seus, tão finos. Era
impossível que ela deixasse de pensar naquela boca sobre a sua. Se seria
macia e no gosto que teria.

− Você está bem? − perguntou o príncipe, olhando profundamente


dentro de seus olhos castanhos. Karen confirmou com a cabeça, começando
a pensar que aquela valsa não seria tão ruim assim, afinal. Ele era bom
dançarino e a guiava com destreza. Ocasionalmente, acabou notando
também que seu perfume não era de todo mal. Todas as suas ações até agora
indicavam que ele poderia ser mais agradável do que a princesa contava.
Ainda assim, ela sabia, era cedo demais para conclusões quaisquer.
DOIS
O sorriso fácil

Entre um passo e outro, Sales não desviava o olhar do dela. Qualquer


pessoa se sentiria cortejada ao ser fitada com tanta profundidade, mas algo
naqueles olhos caramelos deixava Karen inquieta.

− Está calada − ele comentou, inclinando a cabeça sobre os ombros da


moça, no que suas orelhas se esbarraram de leve e ela pôde sentir o toque quente
da sua pele.

− Tenho pensado muito − confessou e imediatamente o sentiu soltar


o peso da respiração em seu pescoço, como se estivesse prestes a ouvir palavras
que gostaria de evitar. O calor entre eles estava ainda mais inebriante, de modo
que ela precisara esforçar-se para manter a concentração. − Nessa coisa toda…
sobre nós… sobre não termos escolha.
− Não venha me dizer que não está ansiosa por isso − sussurrou
com ironia, sem se preocupar em disfarçar a arrogância de quem sabia que era
desejado. Ainda assim, continuava executando movimentos perfeitos.
Aparentemente, Karen não era a única naquele salão a quem fora ensinado como
controlar suas emoções.

− O… o quê? − perguntou, subitamente constrangida. − Se é essa a


impressão que tem a meu respeito…

− Poupe meus ouvidos − interrompeu-a, indiferente. − Não pense que não


sei o que você e seu irmão estão fazendo. Não finja que não se aproveitam da
fraqueza que meu pai tem pelo seu. − Sua voz estava calma, quase doce, como se
o comentário que fazia fosse uma coisa tão clara, que não devesse surpreendê-la.

Ao som dessa acusação infundada, porém, Karen perdeu totalmente o


compasso. Tentou afastar-se dele, mas sentiu que sua mão a pressionava ainda
mais contra o corpo. A expressão de seu rosto era tranquila, totalmente
indecifrável, e ela não conseguia acreditar que alguém pudesse ser tão
dissimulado.
− Nossa música ainda não acabou − comentou, em tom de
desagrado. Ela olhou em volta e percebeu que outros casais se juntaram a
eles. − Devo supor que irá me tratar com tão pouca elegância quando se
tornar minha esposa?

− Se − Karen respondeu, firme. Recuperando a compostura, se


esforçava ao máximo para não demonstrar fraqueza. − Se eu me tornar sua
esposa, o que não pretendo, manterei a elegância que aprendi com minha
mãe.

Franzindo o cenho, Sales não conseguiu encobrir a surpresa. Pela


primeira vez naquela noite (ou em toda sua vida), ele parecia finalmente ter
se dado conta que alguém, talvez, não quisesse pertencer a ele. Ele
pretendia ferir os sentimentos da jovem princesa, mas aquilo que tinha
acabado de ouvir soara completamente diferente do som que se espera
escutar quando um coração se parte. Na verdade, parecia-se muito mais
com um genuíno desprezo.

O príncipe reparou nela pela centésima vez desde que desceu a


escadaria, exalando confiança. Seus cabelos negros caíam em cascata sobre
os ombros, emoldurando o rosto perfeito, levemente bronzeado. Seus traços
finos e corpo magro salientavam o contraste entre os dois, mas ele não
podia evitar admitir que ela era muito bonita. Bonita como o tipo de menina
que ele costumava ter aos seus pés (e dispensar com frequência). Não.
Pensando bem, Karen era ainda mais, o que não dava a ela o direito de tirar
proveito disso. Ele sabia que aquele tipo de beleza geralmente estava
acompanhada da certeza de conseguir conquistá-lo com facilidade.
Entretanto, ela ainda insistia em fingir que não se importava com ele.
Por um momento, Sales chegou a pensar que Karen não seria capaz
de interpretar aquela indiferença que estava tão empenhada em demonstrar.
Ela parecia sincera. Ainda assim, não tinha o menor dos motivos para
confiar nela.

À lembrança de sua mãe, a princesa se pegou pensando em como


tudo aquilo poderia ser diferente, caso ela estivesse viva. Dificilmente a
rainha Zélia permitiria que passasse por uma situação como aquela. E por
mais determinado que o irmão fosse, ela se recusava a acreditar que ele iria
contra a vontade da mãe quando o assunto era família. Seu coração
começara a pesar dentro do peito, mas em um passe de mágica, antes que as
lágrimas extravasassem por seus olhos, aquela música aparentemente
eterna, finalmente chegou ao fim. Sales tomou-a mecanicamente pelo braço
e entregou-a ao rei Kilian, com quem trocou de parceira.

− O que foi? − o irmão perguntou, percebendo imediatamente que


algo não corria bem com ela.

Ao ouvir sua voz familiar, a moça deixou escapar uma lágrima que o fez
se mexer nervosamente à espera de uma nova cena de pirraça. Como nenhuma
palavra saiu de sua boca, e lágrima alguma veio depois daquela, Kilian apenas
estendeu a mão para secá-la e, aproximando-se de seu rosto, sussurrou
“biblioteca”. Com isso, ela entendeu que deveriam, primeiro, terminar aquela
valsa, mas que em breve teriam uma nova conversa. A princesa consentiu com a
cabeça, secretamente grata por aquela nova oportunidade de desabafar.
Do outro lado do salão, Dom Fernão observava as expressões com
cautela. Os olhos vagavam do filho, que dançava despretensiosamente com a
jovem Sofia, para a futura nora que, com o rosto angustiado, sussurrava ao
ouvido do irmão.

Colocando, distraidamente, sua taça de champanhe sobre a bandeja que


um criado carregava, ele dirigiu-se para o centro da sala, onde todos dançavam,
para não deixar escapar de seus olhos o que quer que acontecesse dentro das
suntuosas paredes.

Dom Fernão tinha um amigo que salvara sua vida e uma promessa a
cumprir como dívida. Ele sempre cumpria suas promessas. Por mais que Kilian
estivesse se saindo bem como rei ao longo desses dois anos, o Imperador não
tinha certeza que aquele jovem teria culhões para fazer o que era certo.

Quando a música enfim acabou, viu o Rei Kilian tomar a irmã pelo braço
e, sem dar satisfação alguma, retirar-se para a biblioteca. Decidiu segui-los e
conseguiu alcançá-los antes que entrassem no recinto.

Kilian olhou-o de soslaio, irritado com aquela invasão de


privacidade, mas o homem não pareceu importar-se. Dirigiu-se diretamente
à princesa, sem fazer qualquer cerimônia e sem rodeios.

− Minha querida, não pude deixar de notar sua angústia. Pode


me dizer o que está acontecendo?
Karen virou-se para o irmão, com o olhar de pânico e suplicou, ali
mesmo, na frente do imperador:
− Meu irmão, ele é horrível! Não faça com que eu me case
com ele! Eu imploro!
Kilian abriu a boca para falar alguma coisa, mas antes que tivesse
tempo, uma voz veio do corredor, de onde Sales e Roque surgiram juntos,
sem parecerem se importar por não terem sido requisitados.
− Ótimo. Não posso me casar com alguém que mude de
opinião tão depressa.
− Cale-se, Sales! − o pai se exaltou, perdendo o controle que tanto
procurara manter. − Você não tem voz ativa aqui.
Para a surpresa de Karen, o rapaz baixou os olhos e obedeceu ao
pai. Simplesmente assim: o futuro soberano do Novo Mundo calou-se
diante daquela alegação absurda de que não tinha direito de opinar sobre
sua própria vida. A princesa estava prestes a criticá-lo mentalmente, quando
lhe ocorreu a ideia de que, se Kilian a repreendesse em público, ela
provavelmente teria a mesma reação.

− Vamos nos sentar, por favor − pediu Kilian, apontando na


direção da biblioteca. − Esse não é um assunto para se tratar em um
corredor.
Dom Fernão, passando os olhos nos guardas que estavam ao redor,
acenou com a cabeça, indicando que estava de acordo. Todos entraram, e
Kilian riu-se da memória trágica que lhe veio à mente: o choro da irmã, que
ouvira há algumas horas através daquela mesma porta. Eles acabaram de
realizar um trabalho vão, o que decidiu ignorar. Tinha problemas para se
preocupar, maiores do que fofocas entre guardas e criados.
− Deixe que ele fale, Dom Fernão − Kilian sugeriu, cruzando os
braços e se colocando de frente para o príncipe, mantendo alguns metros de
distância entre os dois. − Quero ouvir o que pensa o homem que irá casar-se com
minha irmã.

− Pois bem, se é o que deseja − o homem soltou em suspiro,


gesticulando com irritação.
Sales agradou-se da oportunidade que recebera com, mal podia acreditar,
a aprovação do pai. Ele não iria desperdiçá-la criando expectativas naquele
singelo rei. Permaneceu inexpressivo, empenhado em demonstrar que não se
importava com a opinião de Kilian a seu respeito, ou com o que quer que
pudesse acontecer.

− Não vou mentir, eu estava enganado − soltou com indiferença. − Tive a


impressão errada da sua irmã. Ela não parece uma aproveitadora, afinal.

O imperador, que estava sentado, levantou-se imediatamente para calá-lo.


Seu irmão meneava a cabeça, escondida pelas mãos, em lamento pelo desastre
que previa. Kilian, entretanto, avançou em sua direção para encará-lo ainda mais
de perto.

– Repita o que disse.

Um arrepio percorreu o corpo de Karen. Ela sabia que para defendê-la, o


irmão não se importaria com quem ele era. O problema era que nenhum daqueles
dois pareciam desistir de qualquer coisa sem brigar primeiro. E qualquer briga
que surgisse dali, teria a fatalidade de uma guerra. E uma guerra contra o
império de Lima dizimaria seu país antes mesmo de começar. Imediatamente, ela
começou a se arrepender por não ter aceitado a proposta de uma vez.

Ciente da superioridade de sua nação a Vera Cruz, Sales debochou da


ameaça de Kilian. Com um sorriso irônico, desviou-se do olhar inquisitivo do
rei, e acabou despejando sobre ele o que pensava de verdade.
− Não me leve a mal, meu caro. Você deve entender tão bem quanto
eu como são essas coisas. Existem mulheres que dariam tudo por uma coroa.

− Ela já tem uma coroa − defendeu o rei, entre os dentes cerrados,


enquanto o fuzilava com os olhos.
− De fato. Embora não como a minha − deixou escapar,
arrependendo-se imediatamente por ter sido tão sincero. Virando-se para
Karen, tentou inutilmente soar menos desagradável. − Mas não

é nada pessoal, princesa. Eu apenas… sempre tive dificuldade de confiar em


pessoas de riso fácil.
− Basta! − o pai interpelou enquanto uma veia assustadora surgia em
sua testa. − O que pensa que está fazendo ao agir dessa maneira? Será
possível que a essa altura da sua vida, você ainda seja incapaz de assumir
um compromisso?

− O senhor já me comprometeu, meu pai. − Era terrível para


ele que, por mais que tentasse, não conseguisse se fazer entender. −
Infelizmente não percebe que eu não preciso de outra pessoa em minha
vida, quando já sou um homem completo.

O imperador não pareceu se comover.

− Comple… − interrompeu-se para soltar uma risada


desacreditada. − Completo? Você é um homem completo?
− Sim. Sou completo − reafirmou, sério. Sua convicção fez
Karen enrugar a testa, perdida em seus pensamentos. Ela ficou desconfiada
daquela escolha de palavras e curiosa para saber o significado que elas
tinham. O que ele queria dizer com “ser completo”?

− Acha que me fará voltar atrás em minha palavra? Confiando


você ou não, esse casamento acontecerá.
− Eu não disse o contrário − afirmou, simplesmente. Estava ciente
de que tudo o que saísse de sua boca agora, inevitavelmente, soaria como
soberba ou desprezo.

− Isso está fora de questão − Kilian interveio, pensativo, dando-se


conta de que não poderia permitir que aquilo fosse adiante. Como alguém
poderia criticar o sorriso de sua irmã, quando essa sempre fora, de longe, sua
maior qualidade? Karen era radiante, desde que nasceu. Foi o sorriso dela que o
capacitou a superar a ausência precoce do pai, com quem passava a maior parte
do tempo. Foi por aquele sorriso que encontrou forças para passar de príncipe
regente a rei, imediatamente após completar a maioridade. Não podia suportar a
ideia de que Karen viveria com alguém que iria reprimi-la ou tirar-lhe o sorriso.
− O quê? − perguntaram Karen e Dom Fernão, em uníssono.

− Isso não vai acontecer − repetiu, e depois dirigiu-se a irmã,


convicto. − Você não irá se casar com esse sujeito.
− Kilian − Karen interveio assustada. Seus olhos vagavam entre o
irmão e o pai de Sales e, embora fosse isso o que queria desde o começo, sentiu
medo. − Você tem… tem certeza?
Roque levantou-se, pronunciando-se pela primeira vez.

− Não pode estar falando sério. Não fica bem para um rei mudar de
ideia.
Encarando-o, o rei lhe perguntou:
− Você tem irmãs, Vossa Alteza Imperial?

− Não − respondeu, baixando os olhos.

− Kilian − Dom Fernão suspirou, controlando-se. − Você sabe que


não posso aceitar isso.
− Sei o que acha que deve ao meu pai. Mas isto está fora de questão
− repetiu, apontando com o indicador, que vagava entre Karen e Sales.
− E quanto ao que deve a mim?

Agora ele se sentiu desafiado. Kilian não se esquecera que o acordo


sobre o casamento de Karen fora feito na época em que Lima disponibilizou para
Vera Cruz a tecnologia da vacina contra a Peste o que, muito provavelmente,
salvou o país da devastação. Apesar disso, não fazia sentido para ele que o
imperador fizesse tanta questão de um casamento entre o herdeiro e sua irmã,
tendo em vista que essa união seria, política ou economicamente, muito mais
benéfica para a família Orleans do que a para a De Ravin.

− Não há vantagem para você nisso − justificou, tentando dissuadi-


lo.
− Kilian, não seja moleque − ralhou o imperador, entredentes, já
exaltado − Eu tenho uma dívida com seu pai. Uma dívida de vida.
− E pretende pagá-la condenando sua única filha a ser eternamente
infeliz?
− Por Deus, eles são jovens! Vão mudar de ideia!
− Perdoe-me, Dom Fernão, mas não vejo como isso pode dar
certo − lamentou-se o jovem, começando a pensar nos problemas que essa
decisão lhe traria.

− Papai − Roque interviu, para a surpresa de todos. Seus olhos


estavam atônitos, como se ele considerasse um pensamento brilhante. − Se
me permite sugerir, por que não mantemos de pé, como já estava
combinado, a recepção que faríamos à família real de Vera Cruz em nossa
casa? Durante esses dias, peço permissão para cortejar a princesa Karen. Se
ao final da viagem nos parecer bem, e se ela aceitar, que se case comigo.
Todos o encararam com estranheza, principalmente pela facilidade
com que aquelas palavras surgiram de sua boca. Não parecia uma ideia
nova, e tampouco pareceu agradar ao pai.
− Você, Roque? Esse não era o plano… – ponderava. − Não
vejo cabimento. Você mal tem idade para se casar.
− Papai − ele insistiu, sereno. − Não é de hoje que tenho
apreço pela princesa. Sempre nos demos bem, temos muito em comum e
nossa idade é praticamente a mesma. Menos de dois anos me separam de
meu irmão e não acho que esteja menos apto para me casar do que ele −
argumentou, como se a justificativa do pai fosse absurda. − Não selaríamos
a união de imediato, assim como os dois também não fariam. Além disso,
acredito que Karen tenha simpatia por mim.
Todos os rostos do recinto se viraram para a princesa, de repente,
buscando uma confirmação. Ela engoliu em seco. Não fazia mais do que
alguns minutos que se livrara de um casamento indesejado e já havia
encontrado outro. Não era isso que esperava para seu tão sonhado baile de
quinze anos, mas não interviria dessa vez. Se a união sugerida por Roque
era facultativa, ainda teria algumas semanas para recusar. Deu apenas um
meio sorriso, contido, receosa de que ele parecesse fácil.
Kilian, no fundo, ficou admirado com a atitude do príncipe, e o
imperador, embora insatisfeito, também acabou conformando-se.
Ela estava contrariada só pelo fato de ter que se submeter ao cortejo
de Roque, mas também sabia o que era sofrer pressão por parte de Dom
Fernão. Ele era intimidante e não os deu outra escolha senão concordar com
alguma daquelas propostas. A segunda, sem dúvidas, era a que ela menos
desprezava.

Após selarem um novo acordo, todos deixaram a biblioteca e, como se


tudo não estivesse ruim o bastante, Karen precisou manter-se com a aparência
feliz pelo resto do baile, até que os demais convidados fossem embora. Aqueles
se tornaram, sem dúvidas, alguns dos sorrisos mais difíceis que ela já fora
obrigada a sustentar na vida.
TRÊS
O anfitrião malquisto
“Esta seria a maior
infelicidade de todas: achar
agradável um homem que
decidimos odiar!“

Orgulho e Preconceito, Jane


Austen.

Duas dúzias de malas. Era o que, entre presentes e pertences,


levariam a Lima. Kilian não parecia se importar com aquela quantidade
exagerada de bagagem, a qual trazia à memória da princesa o tempo em que
seria obrigada a passar sob o mesmo teto do que Sales de Ravin.

Enquanto Moises, o valete do rei, e Ingrid acomodavam as bagagens


em um dos automóveis que os levaria ao aeroporto, Karen despedia-se do
duque Dumas, seu primo, que permaneceria no Castelo Marisco na ausência
da família real.

Percebendo a angústia da prima, ele deu a ela recomendações para


manter a calma e não se deixar abater pelas provocações de Sales. Tentou
dar-lhe também, alguns conselhos amorosos, mas Karen decidiu que os
ignoraria. Ela não era tão ingênua e tampouco estava tão desesperada para
receber conselhos de alguém cujo empenho incessante era conquistar sua
melhor amiga, a qual, assumidamente, caía de amores pelo rei.

Ao entrar no automóvel, lançou um olhar para o jardim do castelo.


O lugar onde passou maravilhosos momentos da sua infância, entre aquelas
tulipas de cores várias, tão bem cuidadas pelo senhor Arão. O velho
jardineiro acenou para ela em despedida, enquanto

36 Camila Antunes
regava suas plantas, e a princesa respondeu o gesto com um tchauzinho
pesaroso. Nunca antes fora tão difícil para a princesa partir de sua casa. Nunca
houvera, também, um risco tão grande de que ela não voltasse.

Eles passaram pelos portões, pegando uma estrada longa, que


serpenteava entre a vegetação da intocada mata. Ao seu lado direito, podia ouvir
o marulho do Atlântico, que se agitava com braveza, e ela queria acreditar que o
motivo de todo estardalhaço era que ele (o mar) não suportava vê-la partir. Não
para um destino tão incerto.

Kilian fechou os olhos e não demorou muito mais do que alguns minutos
para pegar no sono, deixando claro para Karen que ela estaria solitária durante o
todo o percurso até o aeroporto. Ingrid e Moises eram os criados que os
acompanhariam, mas viajavam ambos em um segundo automóvel, o mesmo que
levava a bagagem da família.

Além dos dois, seguiria com eles também Portos, o oficial responsável
pela guarda pessoal de Kilian. Este era jovem, polido, mas algo em seu olhar
causava calafrios em Karen. Ele estava sentado no banco da frente, junto ao
condutor do veículo e, ao espiá-la pelo espelho retrovisor, lançou-lhe um sorriso
macabro. Não eram raros os momentos em que a princesa tinha a impressão de
que aquele homem tivesse algo contra ela − talvez a odiasse − e, mesmo se
aquilo fosse coisa da sua cabeça, nunca ficaria confortável o bastante para se dar
ao benefício da dúvida. Pressionando um botão no painel ao seu lado, ela
sussurrou um pedido de licença e fez com que uma tela subisse entre as cabines,
separando os compartimentos em que estavam. Aqueles olhos sombrios,
entretanto, ficaram em sua memória durante mais algum tempo. Ela se perguntou
como alguém daquele tipo teria conquistado a confiança do irmão. De repente
lhe ocorreu o pensamento de que existia muitas coisas sobre Kilian que
ignorava. Coisas das quais jamais tinha se dado conta. Até agora.

Sobre o colo, Karen folheava um livro na intenção de ocupar a mente.


Era uma antologia de contos, dentre os quais estava seu preferido. Tratava-se de
uma antiga ficção histórica, escrita na idade

O Filho do Imperador 37
contemporânea, que ela mesma já havia lido algumas vezes. Com uma
mocinha que tinha problemas na fala e um capitão charmoso, o conto falava
sobre como o amor verdadeiro era capaz de vencer todas as diferenças. De
repente, alguma coisa fez seu estômago embrulhar, e a princesa se deu
conta de que todos os sonhos ocultos que já tivera, imaginando que um dia
iria se apaixonar por um homem que a tratasse da mesma forma como
Henry tratava Rebecca, estavam muito próximos de desvanecerem para
sempre.

Karen folheou aquelas páginas à procura do título. Quando


finalmente encontrou, passou o dedo sobre as letras, que estavam em
relevo. “Assim como és”, de Naiara Aimeé, trouxe a sua memória a forma
como seu primeiro pretendente reagira ao simples fato de que ela sorria
demais. “Riso fácil”, ele disse. E insinuou que ela não fosse de confiança.
Sales a detestava exatamente assim: como ela era. E hoje, ela não tinha
dúvida alguma, era recíproco.

A princesa não pôde deixar de se lembrar de Roque, e desejou em


seu íntimo que ao menos ele não fosse como o irmão. Por mais que ela
quisesse evitá-lo e que de maneira alguma desejasse aceitá-lo como marido,
não estava assim tão segura de que conseguiria se livrar facilmente dos
planos do imperador.

⚜⚜⚜

A viagem de Salvaterra, capital de Vera Cruz, até Ravin, em Lima,


foi tranquila como de costume. Karen conseguiu desligar-se de suas
angústias e dormir um pouco durante aquelas duas horas que passou na
aeronave real. Despertou apenas durante o pouso e percebeu que seu irmão
a fitava. Constrangido por ter sido pego, o rei desviou os olhos para a janela
ao seu lado. Ela não conseguiu evitar desejar, em seu íntimo, que ele
estivesse sentindo muita culpa pela situação em que a colocara. O
relacionamento dos irmãos nunca estivera tão conturbado, desde que a
princesa se lembrava.

Ao sair do ambiente climatizado do avião, Karen retirou o casaco e


as luvas, entregando-os para Ingrid, que a acompanhava. Sen-
38 Camila Antunes
tiu o cheiro do verde, característico de Lima e o ar quente e úmido chocouse
contra sua pele. Antes que deixassem o aeroporto, o tecido das costas do vestido
que ela usava, já começava a molhar-se com suor. Percorreram um curto
caminho até o expresso imperial, como era chamado o veículo que os levaria até
o palácio. Um homem robusto, impecavelmente uniformizado, os aguardava na
porta e acenou, cumprimentando-os, assim que se aproximaram.

− Majestade. Vossa Alteza Real. Sejam bem-vindos de volta à Lima


− disse, muito educado, enquanto abria a porta para que os dois se
acomodassem.

Observando a paisagem que já conhecia bem, Karen não podia deixar de


admitir que Ravin era uma cidade impressionante. Ela fora projetada de maneira
que o verde de sua vegetação convivesse harmonicamente com os enormes
edifícios arranha-céus que se erguiam ao longo do caminho. Sob o indício de
escuridão, que se aproximava com o entardecer, as luzes começavam a acender,
deixando a cidade ainda mais encantadora. Os letreiros luminosos e coloridos
dividiam espaço com as grandes mangueiras, que sombreavam as ruas durante o
dia. Lima era totalmente diferente de qualquer reino do sul equatorial, e
indiscutivelmente destacava-se sobre eles. Não era à toa que o Império era
considerado uma grande potência.

Deixando as pomposas construções e as luzes para trás, eles começaram


a se aproximar de uma área predominantemente verde. Alguns rebanhos e um
enorme vinhedo começavam a surgir e o estômago de Karen contraiu-se diante
da compreensão de que já estavam dentro do território do castelo. À medida que
adentravam a estrada ladrilhada, um enorme portão branco surgia na frente deles.
Em seu centro, o brasão imperial reluzia imponente, com a figura de um leão
dourado.

Enquanto o expresso imperial se aproximava, o leão dividiu-se ao meio,


quando as portas metálicas se abriram, afastando-se para lados opostos.
Passaram pelos portões, tomando o caminho através de uma pequena ponte, que
atravessava o lago das vitórias régias. Surgiu na memória de Karen a lembrança
de Sales, anos atrás, dizendo

O Filho do Imperador 39
que aquela planta era capaz de sustentar o peso de uma pessoa. Hoje,
olhando para ela sob a lembrança da força do príncipe, a moça duvidava
muito que alguém como ele estaria incluído naquela estatística.

A família imperial estava à sua espera na entrada, Dom Fernão e os


filhos em posição de sentido e impecavelmente fardados. Alguns oficiais do
exército do imperador se posicionaram a sua volta, em formação, além de
criados do castelo.

Quando desembarcaram, o imperador foi o primeiro a cumprimentar


Kilian, calorosamente. Não parecia o mesmo homem que insinuara que seu
irmão fosse um moleque, semanas atrás. Roque exibia um sorriso contido,
sem tirar os olhos dela, ao contrário de Sales, que mal a encarava. Ainda
assim, todos vieram cumprimentá-la. A começar por Dom Fernão, que lhe
deu um breve beijo nas costas da mão. Ele foi seguido pelo filho mais
velho, que repetiu o gesto do pai, ainda sem erguer os olhos em sua direção.

Quando chegou a vez de Roque, ele se aproximou com cautela. Ao


tomá-la pela mão, fez sobre ela uma carícia com o polegar, e sua boca
demorou-se na pele da princesa por um tempo bem mais longo do que o
necessário. Uma leve sensação de náusea a atingiu, diante da tentativa de
galanteio do jovem príncipe.

Kilian soltou um suspiro com pesar, parecendo notar a angústia da


irmã, mas não disse coisa alguma. Em vez disso, o rei abriu um largo
sorriso, cumprimentando Roque como a boa educação recomendava.

Aquele seria um longo verão.

⚜⚜⚜

Karen agradeceu aos céus quando finalmente chegou ao ambiente


climatizado do quarto em que ficaria hospedada. O clima era quente em
Vera Cruz, mas a temperatura em Ravin era terrivelmente alta.

Ela tomou um rápido banho e solicitou que Ingrid lhe fizesse um


penteado. A dama era boa nisso e Karen apreciava sua compa-
40 Camila Antunes
nhia. As duas passaram aqueles minutos tendo uma boa conversa, como
costumavam fazer. Ingrid usava grampos para prender o cabelo de Sua Alteza
em um coque bem alto, com o qual ela estava habituada. Nas laterais, contudo,
duas mexas encaracoladas pendiam soltas, conferindo à princesa um charme ao
qual ela mesmo ignorava. Quando a dama finalizou, constatou que o serviço
estava perfeito e Karen, graciosa.

Ao tocar o sino que anunciava o horário da refeição, ela se dirigiu para o


salão de jantar, onde se reuniu com seu irmão e a família De Ravin. A mesa
estava localizada no centro da grande sala, sobre a tapeçaria persa, tão antiga
quanto cara. Acima deles, um enorme lustre de cristal iluminava o ambiente.
Não fosse pelos tons escuros do mogno que revestia a parede, aquele salão
poderia lembrar perfeitamente o de sua própria casa, mas em um tamanho
infinitamente maior e com uma mesa muito mais comprida.

O imperador ocupava o assento de uma das pontas, enquanto Kilian, o do


lado oposto. Os príncipes estavam nas laterais, em torno de seu pai, e ela sabia
que deveria se acomodar próximo ao seu irmão.

Karen se sentia estranha. Ela e Kilian jamais fariam uma refeição tão fria
e formal para tão poucos convidados. Se estivessem em Salvaterra agora,
jantariam na sacada, descontraídos, com o Duque Dumas Pascoal ao seu lado e
observando as flores plantadas pelo senhor Arão. Cada segundo que se passava
enquanto estava naquela mesa, conferia a Karen a certeza de que não pertencia
àquele lugar.

− Diga-me, princesa − iniciou Roque, em uma tentativa desajeitada


de chamar sua atenção. − Como está se sentindo agora que tem quinze anos
completos? − Com o canto dos olhos, ela pôde perceber que Kilian controlava o
meio sorriso debochado que já conhecia bem. Virou-se, sem muita empolgação,
para responder a pergunta do príncipe, a tempo de notar que o irmão dele estava
rolando as pupilas sob as pálpebras, em sinal de tédio.

− Exatamente a mesma de semanas atrás – respondeu, seca, para


que ele percebesse que nada havia mudado e que sua posição contrária ao
casamento arranjado permanecia inalterada, mesmo com a substituição do noivo.
O Filho do Imperador 41
Ele assentiu, constrangido, fazendo-a sentir uma pontada de culpa.
O pobre não merecia ser tratado assim quando nunca fora descortês com
ela. − Mas ele era simplesmente, apesar de bonito, tão sem graça.

Não demorou muito para que ela se lembrasse da figura de Roque


em seu baile, encarando-a com simpatia durante a valsa, enquanto ouvia
aquelas palavras terrivelmente grosseiras proferidas pelo príncipe herdeiro.
Karen lembrou-se que, quando estava se sentindo sem saída, desejou que
fosse Roque e não Sales, a pessoa com quem precisasse se casar. De
repente, lançando-lhe um olhar terno, mas sem sorrir demais (para evitar
dar esse gosto ao irmão dele), ela se dirigiu ao jovem príncipe novamente.

− Você entenderá em breve − disse, com a voz mais doce que


conseguiu. − Já que não falta muito para que comemoremos o seu próprio
aniversário.
No novo mundo, a comemoração dos quinze anos de uma moça era
equivalente aos dezessete de um rapaz.
Ele devolveu a Karen um olhar agradecido, mas palavra nenhuma
saiu de sua boca. Sales, ela pôde notar, agora contraía o intercílio em sinal
de curiosidade. Ele certamente não esperava aquela atitude condolente da
princesa diante do péssimo jeito de seu irmão para cortejos.

− Se for como as jovens de nossa família, provavelmente


estava ansiosa para seu baile de debutante − Sales comentou, sem erguer
olhos. Ela imediatamente virou-se na direção dele e não disse uma palavra
sequer. Dessa forma, todos na mesa pareceram inquietar-se, exceto por ele,
que estava alheio ao fuzilamento que recebia através dos olhos da princesa.
Ela esperou que o silêncio durasse tempo demais, para que o príncipe
olhasse em sua direção. Quando finalmente o fez, encontrou o rosto de
Karen, fitando-o com a expressão fechada. Era tudo o que a princesa
precisava, de modo que voltou seu olhar para o prato e pôs-se a comer.

− Está certo − sussurrou Sales, não tão baixo que não pudesse
ser ouvido. − Eu mereço isso.
Entendendo que ela não o perdoara e que não demonstrava o menor
interesse por desenvolver qualquer contato amigável com
42 Camila Antunes
ele, o príncipe voltou-se para o irmão, puxando algum assunto sobre armas, ao
qual a moça ignorava. Dom Fernão e Kilian também tinham sobre o que discutir.
Karen só tinha a si mesma e, pela primeira vez, estava feliz por não receber
atenção demasiada. Ainda mais satisfeita estaria, não fossem as olhadelas de
soslaio que recebia de Roque com frequência.

Quando terminaram o jantar, Roque veio até ela a fim de convidá-la para
um passeio pelo jardim na manhã seguinte. A princesa consentiu, evidentemente,
porque sabia que estava ali para interpretar esse papel. Ainda assim, não
demorou a se retirar, deixando o rapaz sozinho com seus olhos brilhantes e seu
sorriso satisfeito.

Após subir as escadas, ela virou no corredor, na direção onde ficava seu
alojamento, mas antes mesmo que se aproximasse da entrada do quarto,
percebeu a presença de uma figura grande e soberba parada em frente sua porta.
− Isso só pode ser brincadeira – pensou. − Com o que ele gostaria de me
importunar a essa hora?

− Com licença − pediu, sem mesmo ter o trabalho de perguntar o


que ele estaria fazendo ali.
− Por favor, não faça assim − disse o príncipe, tocando-a no braço.
Karen imediatamente esquivou-se de sua mão com um movimento arredio.

− Não me toque, por gentileza – respondeu, seca. Ela tentou passar


pela muralha que parecia o corpo dele, mas viu-se completamente sem saída. O
fato de Sales não respeitar seu desejo de manter distância só aumentava a
antipatia que ela lhe dispensava.
− Karen, desculpe. Eu não vou te tocar. Apenas me escute − suplicou,
levantando as mãos no ar, em sinal de rendição. Ele agiria conforme ela pediu.
− Não me chame assim − ralhou, considerando um disparate que ele
tivesse coragem de lhe dirigir a palavra, quem dirá chamá-la pelo primeiro
nome! − Acaso dei a entender que teria liberdade para isso, Vossa Alteza
Imperial?
Sales abriu a boca, mas se conteve por um segundo, antes de responder:

O Filho do Imperador 43
− Esse título não soa bem na sua boca, Vossa Alteza Real. Mas
farei como quiser.

Ele tinha razão. Parecia ridículo o modo como se dirigiram um ao


outro, principalmente na situação em que estavam. Eram praticamente
cunhados. Mesmo que, segundo os planos dela, isso não fosse durar muito
tempo.

− Diga-me de uma vez o que quer, Sales − resmungou, dando-


se temporariamente por vencida. − Eu realmente preciso descansar.

− Eu já disse – seu rosto era inexpressivo, contudo pareceu


decifrar a expressão confusa do dela, no que se pôs a explicar: − Perdoe-me
por ter dito palavras tão cruéis e pelas coisas que insinuei sobre você.
Admito que algumas foram intencionais, entretanto, a partir de certo
momento, não consegui me fazer entender. Posso ter sido mal interpretado,
ainda assim insisto que me perdoe. Tenho me sentido péssimo desde aquela
noite.

Ela piscou os olhos, desacreditada. Estava desarmada. Podia odiar


um Sales que zombava dela, de seu irmão ou de seu país. Mas não era tão
simples, por assim dizer, odiar um homem tão imponente que se
demonstrava arrependido e, para completar, perdia perdão por tê-la
magoado.

O problema era que ela estava decidida a odiá-lo e, às vezes,

é infinitamente mais cômodo distorcer os fatos do que admitir que possa estar
errada sobre eles.

− Então esta é a questão? − perguntou, fazendo com que ele a


encarasse, confuso. − É isso que você deseja? Que eu te perdoe para que
você se sinta melhor? − De repente ela se deu conta de que foi exatamente o
que fizera com Roque, minutos atrás. Perdoara-o pelo constrangimento que
lhe causara, apenas porque sentiu pena dele. Ela queria que Roque se
sentisse melhor. A questão é que Sales não era o irmão, e ele tinha feito
muito mais do que escolher as palavras erradas para galanteá-la.

Como quem havia sido pego de surpresa, ele permaneceu mudo


diante dessa contestação.

− Pois vou dizer-lhe uma coisa, Vossa Alteza Imperial – a prin-

44 Camila Antunes
cesa anunciou, com as mãos apoiadas nos quadris. − Não me importam seus
sentimentos.

Dessa vez, ele − que cruzava os braços sobre o peito − apenas comprimiu
os lábios, confirmando discretamente com a cabeça, como se tivesse captado
algum recado, e deu um passo para o lado, liberando a passagem para a porta.

Karen avançou, com pisadas pesadas, entrando em seu quarto e, pela


primeira vez em toda sua vida, contrariou os conselhos da mãe, batendo
estridentemente uma porta no rosto de alguém.
QUATRO
O efeito das flores
“Para que vieste

Na minha janela

Meter o nariz?”

A um passarinho - Vinicius de
Moraes

A pior forma de ser acordado quando você não está feliz é, digamos,
ser acordado romanticamente.

Karen abriu os olhos, irritada com o melodioso canto vindo da


janela. O som alto e agudo que invadira seu quarto a fez despertar de um
sonho que envolvia certo príncipe sendo abandonado no altar. Arrastando
os pés, ela se forçou a ir até a janela para abri-la e descobrir do que aquilo
se tratava. Imaginou que qualquer que fosse o pássaro que a incomodava,
bateria as asas e fugiria para longe assim que se aproximasse. Entretanto,
para sua surpresa, uma ave pequenina, de asas negras e cabeça vermelha, a
fitava como se olhasse de soslaio. Enxerido, virava a cabecinha para irritá-
la ainda mais. Karen percebeu na hora que se tratava de um uirapuru. O
pássaro do amor, como era conhecido, não se incomodava com sua
presença e, por uma ironia do destino, escolheu logo a sua janela para
cantarolar naquela manhã. A princesa, porém, não pareceu divertir-se com
aquela peça pregada pela natureza, e esforçou-se para enxotá-lo dali o mais
rápido que pôde.

Com a ajuda de Ingrid, que chegou ao seu quarto no horário


marcado, ela se arrumou para o passeio no jardim. A dama a fez um
penteado trançado e uma maquiagem leve, ideal para a manhã. Satisfeita
com o reflexo de seu vestido branco de renda, que admirava no espelho,
Karen colocou uma tiara de brilhantes. Estava perfeita.
46 Camila Antunes
Naquela manhã, ela participou do café em família e, mesmo percebendo
os olhares furtivos de que Sales insistia em lançar em sua direção, desejou que a
refeição não acabasse tão rápido, de modo que o momento em que ficaria a sós
com Roque demorasse um pouco mais para chegar. Mas chegou. E chegou mais
depressa do que gostaria.

O príncipe caçula se aproximou com um sorriso largo no rosto e estendeu


a mão para pegar a sua. Deu-lhe um beijo demorado, como aparentemente
gostava de fazer e ofereceu o braço para que ela o tomasse. De soslaio, a
princesa notou que o olhar de Sales acompanhava os dois até deixarem o recinto
e, por algum motivo, isso fez com que ela levasse a mão que estava solta até o
braço de Roque, interpretando alegria por compartilharem aquele momento.
Com o canto dos olhos percebeu, pelo movimento de sua mandíbula, que o
Delfim trancava os dentes e uma sensação de prazer se ascendeu em seu íntimo
1

sem que ela tenha se dado conta.

Os dois caminharam para o exterior do palácio e chegaram a um jardim.


Ela examinou as rosas e hortênsias que embelezam o lugar e acabou lembrando-
se das tulipas de sua casa. Por um momento, passou-lhe pela cabeça que o lugar
não era tão grandioso quanto seu próprio quintal. Mas Roque não agia como
alguém que já chegara a seu destino.

− Posso saber para onde está me levando? − perguntou, tentando


não soar tão desconfiada quanto na verdade estava. − Pensei que faríamos um
passeio pelo jardim.

− É exatamente o que faremos, minha querida − disse, com uma


intimidade que fez Karen sentir uma espécie de embrulho nas vísceras. Ela não
sabia que os dois já estavam nesse ponto do cortejo, onde se apelidavam
carinhosamente. − Contudo, não neste jardim.

Tranquilamente, ele prosseguiu até a muralha que delimitava

1 Delfim é o nome que se dá ao herdeiro do trono da França. No Novo Mundo, o Império de Lima é
formado por alguns estados da Amazônia brasileira e outros países, incluindo a Guiana Francesa, colônia da
França na América do Sul desde 1667 e principal território da União Europeia no continente.

O Filho do Imperador 47
uma das laterais do castelo. Os dois precisaram andar por um bocado de
tempo, até alcançá-la, de modo que o calor já começava a incomodar a
princesa. Ainda assim, a moça preferiu calar-se sobre o recente mal-estar,
visto que o príncipe parecia tão determinado a concluir o que fazia.

Quando enfim chegaram, os dois pararam em frente a uma grande


porta, quase camuflada pela cobertura de plantas trepadeiras que, de um
verde muito intenso, estendiam-se pelos tijolos que constituíam a velha
muralha. Roque puxou uma chave dourada do bolso e, satisfeito, encaixou-
a no buraco da fechadura.

Assim que o príncipe a girou, a porta moveu-se para fora, deixando


escapar um vão através do qual Karen conseguiu espiar. Quando Roque a
abriu por completo, a menina já estava encantada. Seus olhos acenderam à
visão de uma trilha ladrilhada, cercada por samambaias choronas que abria
caminho para um maravilhoso jardim. Ao seu centro, havia um imponente
chafariz de mármore, com três tanques em forma de taça e a escultura de
um grande leão no topo. Sobre a cabeça do leão, estendia-se um florão
adornado com ramos esculpidos, do qual brotava a água corrente.

Rosas de todas as cores estendiam-se pelo lugar, os tons


serpenteavam uns entre os outros, formando uma onda floral em volta do
chafariz. No canto direito havia um balanço com dois lugares, cujas
correntes que os suspendiam eram cobertas por folhagens. Toda a atmosfera
local recendia à vegetação e Karen percebeu que lá dentro sequer conseguia
sentir calor. O jardim era fresco e seu aroma era delicioso. O som ambiente
devia-se a um pequeno córrego. Uma nascente que passava em seus fundos.
Ela poderia ficar ali durante horas, até mesmo sozinha, caso tivesse um bom
livro que a fizesse companhia.

Soltando-se do braço de Roque, caminhou até o balanço para se


sentar e ele a seguiu, fazendo o mesmo, enquanto estudava sua reação.

− Isso é fantástico − exclamou, admirada − Em todos esses anos de


visitas eu nunca soube que existia! É novo?

− Na verdade não − respondeu, com os olhos levemente


sombrios. − Era da minha mãe.
48 Camila Antunes
− Ah, desculpe − se havia uma coisa da qual Karen entendia, era
como podia ser doloroso falar sobre seus falecidos pais. − Eu não imaginava.

− Não. Tudo bem. − ele a tranquilizou, tocando sua mão que


segurava a corrente do balanço. A mão dele aconchegou-se na dela. Desta vez,
entretanto, Karen não se sentiu mal. − Ninguém vem aqui além de mim.

− Nem mesmo seu pai ou seu irmão?

Roque meneou a cabeça em negação.

− É muito dolorido para eles. Você sabe, encarar a verdade. É difícil


vir até aqui sem que nos lembremos dela.

− Mas isso não é um problema para você − sussurrou com


ternura.

− Não – afirmou, fitando-a profundamente com um olhar dolorido.


− Eu gosto de me lembrar.

Os dois ficaram em silêncio por alguns minutos e Karen encarava as


flores, sentindo-se ligada a ele por aquela dor que compartilhavam. Os dois eram
apenas príncipes, príncipes que jamais herdariam as mesmas responsabilidades
que os irmãos. Os dois conheciam o alívio por não precisarem ser fortes quando
gostariam de chorar e ao mesmo tempo, a angústia por ter a dor negligenciada,
como se todas aquelas tragédias familiares não os afetassem diretamente ou com
a mesma intensidade em que afetavam os herdeiros. Espiando-o pelo canto dos
olhos, percebeu ele ainda a encarava.

Dando-se conta da olhadela, Roque deslizou o polegar sobre a mão que


ainda segurava, acariciando-a. Um calor aconchegante tomou conta do coração
de Karen, e ela começou a perceber que o terreno que estava pisando era um
pouco mais instável do que previra. Ainda assim, não desejou afastá-lo.

Que mal aquele carinho inocente poderia fazer, afinal?

− Como passou a noite? – O rapaz quebrou o silêncio.

− Ótima − respondeu, finalmente virando-se em sua direção.


Decidiu encobrir o fato de que sonhara que estava rejeitando um príncipe no
altar e, principalmente, que o príncipe em questão não

O Filho do Imperador 49
era ele. − Teria sido melhor, não fosse o uirapuru que apareceu muito cedo
em minha janela.

Roque franziu a testa, duvidando da veracidade daquela informação.

− Está certa de que era um uirapuru? Esses pássaros são muito


raros. Eu mesmo moro aqui desde que nasci e só devo tê-los visto no
máximo duas vezes na vida.

− Bom, a menos que exista outra espécie de ave com asas


pretas, cabeça vermelha, barriga amarela e um canto estridentemente agudo
por aqui, creio que eu esteja certa, sim. Tive que enxotá-lo para parar de me
atormentar.

Incrédulo, o príncipe abriu um sorriso travesso, que causou uma


súbita comichão no estômago de Karen.

− Privilégio, minha querida. Foi o que você enxotou de sua janela


esta manhã. Um privilégio − fez uma pausa, ainda sorrindo, antes de
continuar: − Sabe o que dizem sobre ser despertado por um uirapuru?

− Não, não sei − respondeu, preparando-se para o que já previa


escutar.

− Acontece quando você será agraciada, no dia em questão, com


uma surpresa de amor.

Cobrindo as bochechas com as mãos, Karen tentou evitar, em vão,


que o calor que acometia seu rosto a fizesse corar. Antes que pudesse tentar
controlar a respiração, entretanto, o príncipe tratou de fazê-la entender que
o plano não dera certo.

− Sabe o que eu adoro? − perguntou e aguardou que ela negas-


se com a cabeça, para apenas depois prosseguir: − O fato da sua pele clara
sempre deixar transparecer seus sentimentos.

Karen fitou o brilho inconveniente que resplandecia nos olhos dele.


Algo estava acontecendo ali. Algo que provavelmente surgira por conta do
efeito das flores. Ela precisava sair daquele lugar perigoso depressa. Fugir
da rede na qual ele estava tentando prendê-la. Alguma coisa, entretanto, a
tornava incapaz de desviar os olhos dos dele. Alguma coisa impedia que
suas palpitações mantivessem

50 Camila Antunes
o ritmo convencional. O calor que começara a surgir dentro dela há alguns
minutos passou a consumi-la ainda mais. Para seu desgosto, o calor era bom,
aconchegante, delicioso.

Malditas flores.
CINCO
O livro secreto

Após levar a princesa de volta ao palácio, Roque despediu-se dela


com um beijo no rosto. Ele retirou-se com o objetivo de se preparar para a
caçada que faria com Kilian, enquanto Karen ainda procuraria algo para se
distrair. Ela estava irritada consigo mesma por tê-lo dado esperança e pior,
por ter apreciado o momento que compartilharam.

Depois de almoçar e tomar um banho gelado para livrar-se do calor


que sentia, colocou seu novo vestido de crochê, ao qual Ingrid cosera
especialmente para essa viagem. Ele caia perfeitamente em seu corpo, sem
precisar de anágua. Era leve e consideravelmente fresco, ideal para usar
durante a tarde. Perfumou-se, pôs sua tiara sobre os cabelos soltos e se
dirigiu à biblioteca. Roque iria demorar para voltar da caçada e até lá, ela
decidiu: desfrutaria do seu tempo a sós, fazendo o que mais gostava.

Quando chegou ao local, entretanto, percebeu que ele não estava


vazio. Sentado em uma poltrona próxima à janela aberta, Sales folheava um
livro grosso, que apoiava sobre as pernas cruzadas, e parecia absorto por
suas páginas.

Em vez do repúdio habitual, porém, ela não pôde evitar sentir uma
pontada de curiosidade.

Nunca imaginou que os dois pudessem ter alguma coisa em comum.


Menos ainda que essa coisa seria justo seu passatempo preferido. Leitura.

Deslizando os dedos sobre os títulos de uma estante, Karen tentou


ignorá-lo, mas é difícil passar despercebida por um local completamente
vazio e silencioso, por mais que a única outra pessoa presente esteja
totalmente concentrada.

52 Camila Antunes
Não demorou para que o príncipe notasse sua presença e virasse a cabeça
em sua direção. Com um suspiro, ele deixou claro que a visão da princesa não
era a coisa pela qual mais ansiava naquele momento. Era como se,
exaustivamente, Sales estivesse esperando por um insulto.

− Boa tarde − cumprimentou, levantando os olhos na direção dela,


por cima dos óculos de leitura que usava.

− Boa tarde – respondeu, contida. Não queria brigar. Não ao menos


antes de descobrir o que ele fazia ali. Aproximou-se devagar, fingindo-se
desinteressada, mas o príncipe simplesmente fechou o livro, virando a capa de
couro para baixo, propositalmente, para que ela não visse do que se tratava. Que
desagradável, pensou, controlando-se para não se sentir ofendida. Afinal, não era
educado ser tão curiosa.

− Posso me sentar ao seu lado? − perguntou para a surpresa do


rapaz que, franzindo o cenho, encarou-a por alguns segundos, antes de
responder:

− Sinta-se à vontade.

Sales permaneceu imóvel enquanto seu olhar ainda sobressaltava as


lentes dos óculos em seu rosto. Com os olhos, ele acompanhou cada movimento
que ela fazia quando se acomodava ao seu lado. Esticando o indicador, empurrou
os óculos contra o intercílio e baixou a vista para o próprio colo, onde o livro
repousava, em segui-da, virou-se para Karen. Ela encarava a paisagem através da
janela, sentindo o aroma fresco da vegetação invadir o recinto. Fechou os olhos
por um momento, na intenção de apreciar a sensação, mas a inquietação do
rapaz, que se movimentava na poltrona consertando a postura, a fez perceber que
sua presença provavelmente o incomodava, de modo que voltou sua atenção para
ele:

− Estou atrapalhando sua leitura?

Ele a encarava, perplexo. Após terem feito três refeições inteiras sem
qualquer interação, Karen estava ali, agindo como se os dois fossem bons
amigos. O Delfim estava cansado de suas rixas, tinha que admitir, mas não podia
evitar achar graça daquilo, quando per-
O Filho do Imperador 53
cebia perfeitamente o que ela tentava fazer. O príncipe conteve o impulso
de dar uma risada, e decidiu entrar no jogo dela.

− De maneira alguma – disse. − Eu queria mesmo fazer uma

pausa.

− Ah. Claro − suspirou, desviando os olhos que repousavam sobre as


mãos do príncipe para a janela. Karen ficava cada vez mais curiosa com o
mistério que ele fazia e começava a demonstrar os sinais de sua
impaciência.

Ele, por sua vez, permaneceu calado, na intenção de descobrir até


onde ela levaria aquilo.

− Sabe − ela iniciou. − Estava pensando se você não deveria


me indicar uma leitura. Quem sabe essa que estava fazendo?

− Não − respondeu, cobrindo a capa com as mãos. − Eu ainda


não terminei.

− Ah, desculpe − a princesa controlou o rubor que queria


surgir em seu rosto e tentou parecer despretensiosa. − E do que se trata?

A risada que ele continha de repente escapou-lhe dos lábios, soando


espontânea e sonora. Diante disso, Karen perdeu a compostura e
enrubesceu, inevitavelmente.

− Você simplesmente não consegue controlar a curiosidade,


não é mesmo?

Ela baixou os olhos constrangida. Não pôde evitar sentir uma leve
pontada de frustração por ter sido desmascarada.

− Não precisa enrubescer, Vossa Alteza − Sales prosseguiu, com a


voz surpreendentemente terna. − Eu também fico curioso em relação à
leitura de terceiros. Acho que esse é um hábito que temos em comum.

Elevando o olhar para ele, deu um sorriso, em sinal de que aceitaria


aquela trégua. A batalha entre os dois já era forçosa e enfadonha. Ambos,
embora se recusassem a admitir, não viam a hora de que ela chegasse ao
fim.

− Está certo – concordou. − Então vai me dizer do que se trata?


Sales hesitou. Aquela não era uma coisa a qual ele realmente

gostaria de fazer. A partir do momento em que o fizesse, estaria ex-

54 Camila Antunes
posto a uma série de contestações entediantes, como nas raras vezes em que isso
aconteceu, ao longo de sua vida.

− Não sei. Não estou certo de que você entenderia.

Karen continuou encarando-o, agora com estranheza. Que tipo de leitura


misteriosa ele andava fazendo, afinal?

Ela ainda argumentou com bom humor, dizendo que, vindo dele, nada a
chocaria. Mas não poderia estar mais enganada. Assim que Sales virou o livro
em seu colo para que lesse as letras douradas da capa, seus olhos saltaram do
rosto. A princesa definitivamente não esperava por algo como aquilo.

− Uma… Bíblia? − perguntou, no que Sales apenas deu de ombros.


− Onde você… como conseguiu isso?
As bíblias eram livros antigos, religiosos, que há muito foram proibidos.
No Novo Mundo, não se podia contar esse tipo de histórias como se elas fossem
verdade. Apenas raros anciãos ainda acreditavam nelas. Admitir que se tivesse
fé, em qualquer nível, era uma grande vergonha. Em Vera Cruz não havia
bíblias. Ela sequer podia imaginar que alguma ainda existisse.

− Você quer ver uma coisa proibida? − ele inquiriu, com um sorriso
sombrio.
− Você vai me mostrar uma coisa proibida? − duvidou, erguendo
uma sobrancelha para ele. Sales não pôde deixar de notar que essa era uma
mania que ela e o irmão tinham herdado em comum.

Levantando-se, ele colocou a Bíblia sob o braço e estendeu a mão livre


para pegar a dela. Aquela trégua estava indo longe demais.
Mesmo assim, a princesa aceitou.

− Não poderia ser o seu futuro noivo a fazê-lo – argumentou o


Delfim. − Ele é sempre muito certinho.
− E você não acha, futura Majestade Imperial, que deveria ser o
contrário?
− Sabe, Branca de Neve, eu ainda não sou um imperador. Ain-da
posso me meter em encrencas.
Karen quis sorrir diante daquela explicação, todavia, por mais que
estivessem se entendendo naquele momento, ela sempre − sempre − se sentia
mal em abrir qualquer espécie de sorriso na frente dele.

O Filho do Imperador 55
− Então − conteve-se em dizer. − Para onde vamos?

− Venha comigo.

Sales a tomou pelo braço o que foi, por assim dizer, muito estranho.
Seus músculos rijos se contraíram quando ela passou as mãos sobre eles.
Karen era curiosa e queria senti-los. A camisa dele era fina e ela podia
sentir seu calor, como se estivesse tocando na própria pele do príncipe. Não
pôde deixar de notar que a manga de Roque nunca ficava assim, tão justa
em seu braço. Ela tentou parecer despretensiosa, mas era difícil disfarçar
que, na verdade, estava silenciosamente comparando o corpo dele com o do
irmão caçula.

Com os braços entrelaçados, os dois caminharam até uma das


enormes estantes encostadas na parede.

− Gosta de filmes contemporâneos, Alteza?

− Sim − afirmou, estranhando a pergunta inesperada. − Mas o


que isso tem a ver?

− Está vendo aquele livro − esticando o dedo indicador, ele apontou


para o objeto, sem tocá-lo. − Com a capa vermelha e o Leão de Ravin
bordado?

Ela confirmou, sinalizando positivamente com a cabeça.

− Pegue-o.

Karen soltou o braço dele para se aproximar da estante. Encarou o


livro com curiosidade, ponderando sobre o que o príncipe havia insinuado.
Ela, que era esperta, deduziu sobre o que aquilo se tratava. Ainda assim, se
recusava a acreditar que fosse mesmo verdade. Sales estava tirando sarro de
sua cara, ela podia apostar.

Esticou a mão, desacreditada, e passou o dedo sobre o bordado do


símbolo da família imperial. Seu polegar deslizou até o canto superior da
capa, e puxou o livro para si, a fim de retirá-lo da estante.
De repente, a menina ouviu um estrondoso ranger, que a fez saltar
para trás, quando a coisa mais excitante aconteceu: a estante moveu-se,
abrindo para o interior de uma sala secreta. Seus olhos brilhavam, mal
acreditando na imagem que viam.

− Você não vai entrar? − Sales indagou, não conseguindo


evitar um meio sorriso diante daquele encantamento.

56 Camila Antunes
− Cla… claro.

Seus pés a conduziram para dentro, boquiaberta. Os olhos examinavam o


local, que possuía livros inúmeros, escritos em diversas línguas. Não havia
janelas. Apenas uma singela entrada de ar, algumas estantes e uma pequena mesa
com uma só cadeira em um dos cantos. Sua mente divagava sobre quantas
surpresas mais aquele castelo esconderia, quando Sales a seguiu, fechando a
porta atrás deles.

− Isso… são…

− Bíblias? – completou. − Sim, como pode ver.

Era inacreditável. Esse lugar era como uma verdadeira alma, que
escondia centenas de pensamentos proibidos.

− Você é o dono desse lugar?

− Bom, sim. Meu pai não sabe sobre ele. Mandei que instalassem
em segredo, enquanto ele viajava. Ele não vem a biblioteca, e simplesmente não
se importa.

− Isso não é possível. Ele é o Imperador − duvidou, enquanto


digeria o assunto. − E os criados? Quem cuida disso tudo? Quem mantém o
lugar limpo?

− Eu cuido. Tenho colecionado bíblias há seis anos, desde que li a


primeira, sem que ninguém saiba.

Ela realmente conseguira se meter em uma encrenca. O fato de estar em


um lugar, dentro do palácio imperial, ao qual seu próprio dono desconhecia,
certamente não poderia ser uma boa ideia.

− Está me dizendo − insistiu em tentar entender. − Que


absolutamente ninguém, exceto você e a pessoa que a construiu, sabe sobre a
existência dessa sala?

− Sim − Sales se contentou em responder. Ele começava a se


indagar se aquela tinha sido uma boa ideia.
− E nunca contou para ninguém?

− Não − engolia em seco, estudando sua reação.

Karen encarava-o, perplexa.

− Não vou mentir dizendo que não esteja surpresa que você tenha
escolhido a mim para fazê-lo.

− Eu não duvido. Estou surpreso também.

O Filho do Imperador 57
⚜⚜⚜

Ela andou através da sala, examinando cada uma das estantes. Ali
estavam vários exemplares do mesmo livro, em diferentes línguas, formatos
e tamanhos. Karen não pôde evitar impressionar-se com o fato de que, com
apenas doze anos, ele tivesse adquirido aquele hábito.

Enquanto ele descansava seu exemplar sobre a mesa, ela resolveu


sondá-lo um pouco mais.

− Eu não gostaria de invadir sua privacidade, mas, se me


permite perguntar… por quê?

O príncipe sorriu, apoiando-se de costas na mesa. As duas mãos se


escoraram sobre ela, ao lado do corpo, e ele batucava com os dedos,
enquanto processava a pergunta.

− É uma longa história, Vossa Alteza.

− Eu não me importo em ouvir − afirmou, insistente e ele se deu por


vencido.

− Aos doze anos encontrei uma bíblia no gabinete de meu pai.


Fiquei curioso e a tirei de lá antes de que ele percebesse. Meu pai recebia
muitos livros proibidos para descarte. Eu sequer imaginava o conteúdo que
ela carregava até abrir a primeira página.

De pé e com as mãos cruzadas sobre o colo, Karen fitava-o, ouvindo


atentamente cada uma dessas palavras. Estava curiosa a respeito de como a
leitura de um simples livro teria tomado essas proporções.

− O que tinha lá? − perguntou, ansiosa.

− Vida − afirmou com um brilho intenso nos olhos, ao qual ela


jamais vira em pessoa alguma.

− Como assim? − a princesa deu um passo para trás, imaginando por


um momento se não estava trancada naquela sala com um homem louco.
− Karen, eu sou uma pessoa estudada, você sabe… − explicou,
desprendendo-se da mesa. − Mesmo sendo um garoto, com todas as
responsabilidades que eu carregava… e depois de ter perdido minha

58 Camila Antunes
mãe… a vida não fazia sentido para mim. Nunca fez sentido passarmos por essa
vida, estarmos aqui agora e amanhã não mais. Eu sentia um vazio imenso dentro
de mim. Até ler as palavras deste livro e me sentir… como se estivesse…

− Completo − concluiu, com ternura. Sales assentiu com a cabeça.


Era exatamente como se sentia.
Ele andou a até ela, como se tivesse uma missão: a de fazê-la
compreender suas palavras. Passo após passo, mentalizava um pedido de
instrução. Quando estava próximo o suficiente, o príncipe gesticulou para que
ela passasse por ele e abrisse a Bíblia que deixou sobre a mesa.

Karen entendeu o recado, e sua curiosidade a instigava a fazê-lo,


entretanto, em seu âmago, algo a fazia sentir um terror desconhecido.
Lentamente, ela avançou até a mesa e, com as mãos trêmulas, virou a capa do
livro.
Folheou algumas páginas até achar o primeiro título: Gênesis, capítulo 1.
Passou os olhos sobre as letras pequenas: “No princípio criou Deus os céus e a
terra”. De repente, algo se embrulhou em seu estômago. Como um reflexo,
Karen fechou aquele livro rapidamente. Apoiou a mão sobre o couro da capa e
virou-se para Sales, a tempo de flagrar o olhar de confusão no rosto dele.

− Desculpe − disse. − Mas não acredito em magia.

− O quê? – o Delfim deixou escapar uma expressão de surpresa. − Não!


Não se trata disso. Aliás, passa longe de ser algo desse tipo. Aí dentro há
registros sobre os mais antigos reinos e reis dessa terra. As mais antigas batalhas
e guerras. Histórias de esperança e histórias de amor. − Sem se dar conta do que
estava fazendo, Sales a tomou pelas mãos e percebeu que ela tremia. − Ei, está…
você está com medo?

Envergonhada, Karen desviou os olhos para a parede, no que o rapaz se


comoveu e, acima de tudo, compreendeu sua estranheza. Ele levou a mão dela
até seu peito, como se tentasse fazê-la entender o sentimento sublime que se
passava em seu coração.

O Filho do Imperador 59
− Não, não sinta medo. É algo assustador, eu admito. Mas ao
mesmo tempo é… − demorou alguns segundos para encontrar a palavra
certa. − É libertador.

− Por favor, solte-me − suplicou, olhando para sua mão


espalmada, pressionada contra o peito dele. Teve um vislumbre de
lembrança da valsa que dançaram quando, por um momento, ela resolveu
baixar a guarda e ele esmagou-a por completo.

Quando a princesa puxou abruptamente a mão para fora da dele,


Sales deixou escapar um sorriso de auto reprovação, dando-se conta do que
(e com quem) estava fazendo. Ela não poderia manter a trégua até, pelo
menos, o fim daquele dia?

− Cuidado − a princesa advertiu, sem esconder a mágoa em

sua voz.

− Cuidado? − confuso e exausto, resmungou. − Cuidado com

o quê?

− Não sorria tão facilmente. As pessoas podem perder a


confiança em você.

− Ah, Karen! Quanto mais eu preciso pedir que me perdoe por


isso? – ele meneava a cabeça. Havia um vestígio de dor em seus olhos e,
naquele momento, parecia mais sincero do que nunca. – Sinto-me tão mal
por ter lhe tirado o sorriso. Perdoe-me pelas coisas horríveis que eu disse a
você. Por ter feito você se sentir incapaz de continuar sorrindo.

Ela não se sentia incapaz de sorrir. Apenas não gostava de fazer isso
na frente dele. Mas algo ali continuava estranho. Ele simplesmente não
desistia de demonstrar arrependimento. Estava se tornando um trabalho
exaustivo, lembrar-se de odiá-lo.

Karen apoiou o queixo em uma das mãos, enquanto a outra


sustentava seu cotovelo. Ela parecia refletir, antes de perguntar:
− Por que é tão importante que eu perdoe você?

− Porque sim − respondeu, desviando os olhos para a Bíblia. Os


sentimentos da princesa, que estavam à flor da pele, se

transformaram mais uma vez. De repente, ela sentira uma vontade súbita de
conhecer aquelas palavras que forçaram uma pessoa tão grosseira a lhe
dizer coisas tão ternas.

60 Camila Antunes
− Será que… será que eu posso ficar com uma delas?

O brilho dos olhos de Sales se reascendeu e ele deixou escapar um


pequeno sorriso. Há muito tempo sentia necessidade de compartilhar aquelas
palavras.

− Fique com esta. Mas seja discreta – advertiu. − E cuidadosa. Isto


é um empréstimo apenas.

− Obrigada − a moça agradeceu, tomando o livro nos braços e


preparando-se para sair do recinto. Ela despediu-se, educada, mas sem fazer
contato físico.

− E, Karen… − chamou quando ela alcançou a porta, fazendo-a


voltar-se para ele.

− Sim?

− Devo entender que eu estou perdoado?

A princesa abriu um sorriso discreto, hesitante por um momento, mas


acabou respondendo:

− Temporariamente, sim.
SEIS
O perfume doce

Algumas vantagens sobre o cortejo de Roque ter sido sugerido de


última hora eram óbvias. Como, por exemplo, o fato de que ele estava
sempre ocupado. Roque não se planejara para passar o verão dando atenção
à Karen e, por conta disso, quase sempre estava ausente. Pelo menos assim
ela conseguiria manter-se segura. Sales, por sua vez, tinha bastante tempo
disponível, mas nunca era visto. Quando escutava as reclamações de Dom
Fernão pelos sumiços constantes e inexplicáveis do filho mais velho, ela
não podia deixar de refletir o quanto era curioso que soubesse exatamente
onde encontrá-lo.

Durante dois dias a princesa manteve a bíblia oculta em uma das


suas gavetas. Não teve coragem de ler uma só letra, tampouco de falar com
Sales sobre qualquer assunto. Todas as vezes em que pensava se deveria
falar sobre aquilo, ou mesmo abrir aquele livro, uma sensação de pavor
tomava conta dela, como se a qualquer momento pudesse ser pega em
flagrante.

Naquela tarde a família imperial receberia a visita do grão-duque de


Alenquer, sua esposa e filha. O grão-duque, Fausto de Ravin, era irmão de
Dom Fernão. Sua filha, Ana Julia, era apaixonada por Kilian desde a
infância e, por mais que ele negue, Karen já o pegou lançando diversos
olhares para ela. Julia passava a impressão de ser um doce de pessoa e a
princesa não se importaria se ela se tornasse sua cunhada. Não se um dia ela
pretendesse ter sobrinhos. Quem sabe ela não fosse seu fio de esperança?
Quem sabe ainda, o imperador ficasse feliz em conceder a mão da sobrinha
ao seu irmão e se esquecesse da sua existência?

62 Camila Antunes
Na frente da entrada principal do palácio, eles receberam calorosamente
a família de Julia e a princesa percebeu que os tais olhares ainda estavam lá.
Imediatamente, adiantou-se para lançar um abraço carinhoso na moça, afinal de
contas, no caso de se tornarem cunhadas, queria garantir que fossem grandes
amigas.

Quando Karen passou por Sales, discretamente o rapaz envolveu seu


braço com a mão e, esticando-se até seu ouvido sussurrou:
– Sei o que está tentando fazer.

Com o cenho franzido, Karen virou-se para encará-lo e o tocou na mão,


para que a soltasse. O príncipe entendeu o recado e se afastou, mas não antes de
notar que os olhos de seu irmão caçula estavam cravados nele.

Karen esfregou o local em que a mão de Sales encostara. Ele o havia


feito com delicadeza, mas ainda assim ela precisou de alguns minutos para
deixar de sentir o calor provocado por seu toque quente.
Roque veio ao seu encontro com um olhar desconfiado no rosto, para
perguntar se ficaria bem durante os dias em que ele estaria fora. Ele se ausentaria
por cinco dias, para uma competição de equitação. Ela consentiu e aceitou
encontrar-se com ele no jardim secreto naquela tarde.

Finalmente cercada por outras mulheres, Karen se dirigiu para a


biblioteca, onde ela, Ana Julia e a mãe − a grã-duquesa Evelise − se reuniriam
para um chá.
As duas falavam empolgadamente sobre a viagem de Alenquer a Ravin,
mas tudo em que Karen conseguia se concentrar era na estante falsa, visível
através dos ombros de Evelise, que parecia convidá-la a adentrar sua alcova
secreta.
− Algum problema, querida? − inquiriu Julia, nitidamente
empenhada em obter sua simpatia também.
− Não − respondeu, com um sorriso amarelo. − Só estou um pouco
indisposta. Mas que vergonha! Foram vocês que acabaram de fazer uma
cansativa viagem.
− Tudo bem, minha querida − a grã-duquesa interviu. − Esse nosso
clima não é para qualquer um, mesmo. Muito me admira que esse choque de
umidade não a tenha adoecido.
O Filho do Imperador 63
− Não, senhora. Estou acostumada com o calor. Embora em Vera
Cruz ele não seja tão intenso quanto aqui, ainda assim o é.
− Fique à vontade − Julia recomendou, como se estivesse em
sua própria casa. − Não queremos incomodá-la. Além disso, se não estou
enganada, você tem um compromisso com meu primo mais jovem.

Roque! Menos de uma hora se passara e Karen já havia se esquecido


do encontro que teriam no jardim.
− Ah, céus! A senhorita tem toda a razão! − exclamou, encarando o
relógio cuco na parede − Por favor, desculpem-me, mas realmente preciso
ir.

Mãe e filha riram-se do comportamento distraído da princesa o que,


no fundo, a irritou um pouco. Ela pediu licença para se retirar e se despediu
com elegância. Porém, antes que deixasse o cômodo, ouviu o sussurro de
uma voz fina, que não soube dizer ao certo a qual das duas pertencia:

− Estranho, eu poderia jurar que ela fora prometida ao mais

velho.

Karen revirou os olhos enquanto andava de volta para seus


aposentos. Ela poderia jurar que teria o direito de fazer suas próprias
escolhas.

⚜⚜⚜

Assim que pisou no corredor de seu andar, a princesa foi obrigada a


rolar os olhos mais uma vez. Mal podia acreditar que Sales estava lá de
novo, apoiado em sua porta. Desta vez, entretanto, ele estava
confiantemente encostado nela, com os braços cruzados sobre o peito. Seu
olhar sarcástico e um sorriso travesso, assimétrico, o acompanhavam. Ela
sentiu uma vibração incômoda em seu peito, a qual atribuiu ao desejo de
evitálo, por conta do último encontro.

− Há quanto tempo você está aí? − perguntou com simpatia,


em vez de pôr fim à trégua entre os dois, como provavelmente deveria.
− Há apenas cinco minutos − disse, sem desfazer a ironia de sua
expressão − Estava contando que você viesse se aprontar para o seu
compromisso.

64 Camila Antunes
− E posso saber o que deseja?

− Em primeiro lugar, gostaria de saber se você se lembra de quem eu


sou. − A princesa franziu o rosto, tentando entender o que aquilo
significava. − Já que mal me encara ou cumprimenta − desprendendo as
costas da porta andou com passos lentos na direção dela, aproximando a
boca do seu ouvido para cuidar que nenhum guarda escutasse o que ele
tinha para dizer. − Além disso, gostaria de lembrá-la que Sua Alteza Real
tem a posse de um objeto que me pertence. − sussurrou, gerando uma
agitação incomum dentro dela.
− Um objeto muito raro, pelo qual eu dispenso um enorme apreço.

− Eu v-vou… vou devolver − gaguejou, virando-se em sua


direção. De repente, perdeu as palavras, quando se deu conta de que seus
rostos estavam tão próximos um do outro que, ao menor movimento que
fizesse, seus narizes se tocariam.
A expressão dele ficou séria de imediato e, com uma das mãos,
segurou-a de leve pelo cotovelo. Os olhos cor-de-caramelo percorriam todo
o seu rosto e, em um sussurro, quase como se estivesse divagando, deixou
escapar:
− Doce.

− O quê? − sua voz mal saia da garganta.

− Seu perfume. É doce − delirava, agindo como um homem


embriagado. − Você recende a baunilha.
− Está tudo bem por aqui? − a voz de Roque surgiu no
corredor, fazendo Karen saltar sobre o próprio corpo. Sales, por sua vez,
apenas afastou a cabeça devagar, virando-se despreocupadamente para o
irmão, que o encarava, nitidamente insatisfeito.
− Cla-Claro − a princesa respondeu, sem deixar de perceber,
pelo canto dos olhos, que o esboço do sorriso que Sales exibia há alguns
minutos atrás, agora estava ainda mais malicioso.
− Você já está pronta, querida? − Roque perguntou, sem
desviar os olhos do príncipe herdeiro
− Sim – mentiu. − Já estava a caminho.

Sales franziu o cenho diante da falsa afirmação da menina e voltou a


cruzar os braços sobre o peito.
− E para onde a senhorita vai, assim tão bem arrumada, a essa
hora? − provocou.

O Filho do Imperador 65
− Para um passeio no jardim − ela respondeu, tentando repreendê-lo
com um olhar fuzilador, que ele escolheu ignorar. − O jardim secreto do
castelo.

De repente algo na expressão de Sales mudou, fazendo-a sentir


como se tivesse dito algo errado. Ele desviou os olhos na direção do irmão
e meneou a cabeça, em reprovação. Roque, de alguma forma, foi afetado
por aquela repreensão sem palavras. O caçula olhou para os próprios pés,
para evitá-lo, e tomou Karen pelos braços, despedindo-se.

Enquanto avançavam em direção à escada, nada precisou ser dito


para que ela percebesse que algo aconteceu ali. Aqueles dois acabaram de
se comunicar com os olhos, uma conversa bastante desagradável.

− Vosssa Alteza Real − Sales gritou, quando eles alcançaram o


fim do corredor. Ambos viraram-se em sua direção. − Eu adoro baunilha.
O irmão ficou imóvel por alguns segundos. Mas recusou-se a
perguntar o que aquilo significava. Com as mãos espalmadas nas costas da
princesa, ele continuou conduzindo-a para fora do corredor. Contudo, antes
que descessem a escada, Karen arriscou um último olhar, sobre os ombros,
na direção de Sales.

Como ela imaginava, os fortes braços dele se mantinham cruzados e


os dentes estavam cravados sobre os lábios curvos. Ao encontrar os olhos
dela, seu sorriso se escancarou e ele lhe lançou uma piscadela. A princesa
virou a cabeça rapidamente, apertando os olhos. Repreendendo-se
intimamente por ter olhado para trás.
SETE
A chave dourada

Puxando-a pela cintura, Roque desceu as escadas sem dizer uma palavra.
Ela ficou intrigada por ele não ter percebido que aquele era o mesmo vestido que
usara na recepção de seu tio, mais cedo. Talvez, na verdade, tenha notado.
Talvez apenas tenha decidido ignorar que em vez de se preparar para o encontro
que marcaram, ela estivesse ocupada flertando com seu irmão.

Roque estava acostumado a perder para Sales. A não ser pela caça, que o
primogênito repudiava, ele perdia sempre. Perdia nas competições de hipismo,
na confiança do pai e na atenção das mulheres. Mas ele não iria perder Karen.
Não agora que tê-la para si era, pela primeira vez, uma possibilidade real. Sales
já desperdiçara sua chance. Ela era exclusivamente dele, e ele desperdiçou.
Roque não a deixaria escapar agora. Não deixaria que ela caísse no jogo do
irmão. Ele tomaria uma atitude, e faria isso imediatamente.

Com firmeza, atravessou o pátio do castelo, determinado a alcançar a


muralha, e ela sabia exatamente para onde iriam. Quando finalmente chegaram
ao jardim, em vez de abrir a porta, ele tomou uma de suas mãos. Primeiro, virou-
a para cima, de forma que sua palma ficasse aberta. Levou os dedos ao bolso
interno de suas vestes, de onde tirou a chave a qual, com delicadeza, depositou
na mão da princesa. Enquanto ele fechava os dedos dela com os seus próprios,
Karen encarou o objeto dourado em suas mãos, sem entender direito o que
aquilo significava. Passou os dedos por sua extensão, concentrada em cada um
dos seus detalhes precisos. Aquela chave fora adornada com pequenos diamantes
e tinha singelas gravações em sua superfície. Um leão, cercado por diversas
rosas. As rosas de Ravin.

O Filho do Imperador 67
− Não vai abrir? − ele perguntou, sem se preocupar em dar
nenhuma explicação.
A princesa encaixou o objeto na fechadura e, assim que a girou, a
porta moveu-se, deixando escapar um pequeno feixe de luz. Com a mão,
terminou de abri-la e, mais uma vez, encantou-se com aquele lugar mágico.

− Acho que nunca vou me cansar de espantar-me com esse

lugar.

Roque abriu um sorriso. Estava satisfeito em causar esse efeito

nela.

− Fico feliz − soltou. − Existe um motivo para eu ter passado essa


chave a você.
Karen conteve os passos e virou-se em sua direção. Fazendo o
melhor uso possível do seu senso de lógica, tentava adivinhar o que ele
estava tentando dizer com aquilo. Ela não estava muito certa se gostaria de
perguntar diretamente a ele. Antes de que fosse preciso tomar coragem,
entretanto, o príncipe explicou:

− Quero que fique com ela.

− Roque, eu não posso. Era da sua mãe.

− É apenas um empréstimo, querida. Só até que eu volte −


justificou, sem explicar que, na verdade aquela era a melhor forma de
mantê-la longe do seu irmão, enquanto estivesse fora. Aquele era um lugar
no qual Sales se recusava a pisar. Ele se aproximou, esticando as mãos para
pegar em uma mecha negra dos cabelos dela, que estava solta sobre o rosto.
Deslizou os dedos sobre a mecha, antes de colocá-la segura, atrás da orelha
da princesa. − Quero que você tenha momentos agradáveis aqui. Traga um
dos seus livros, passe um tempo do seu dia no jardim. Traga sua dama.
Como é mesmo o nome dela?

− Ingrid − respondeu, engolindo em seco.

− Traga Ingrid, se preferir. Mas pense em mim. Não tenha


dúvidas de que minha mente será ocupada por você − insistia, enquanto
afagava seu rosto. − Eu quero que esse seja o nosso lugar agora.

Karen tentara. Ela podia jurar que tentara conter o sorriso. Mas
Roque sabia como ser doce. Às vezes em excesso, mas não ago-

68 Camila Antunes
ra. Não para ela. Ele era sensível à natureza e sensível às coisas que ela gostava.
Sem dúvidas, não era rude ou arrogante como o irmão. Ele não era tão cheio de
si. E isso era bom. Às vezes. Bem, era bom naquele momento.

Quando o sorriso escapou, todavia, a expressão no rosto de Roque se


modificou. Para falar a verdade, ele ficou totalmente sem sombra de expressão
alguma. Seus olhos se fixaram nos lábios dela e ali permaneceram repousados
por muitos, muitos segundos. Tantos que, quando finalmente se desviaram para
os olhos de Karen, não havia mais sinal de sorriso em seu rosto.

− Desculpe-me − pediu atônito. Seu olhar exageradamente


arregalado denunciava certo desespero.

− Desculpar pelo quê?

− Porque irei beijála.

Mais uma vez ela engoliu a própria saliva. Não deveria deixar isso
acontecer. Não era o que tinha em mente.

− Nanão acho que seja uma boa ideia − sussurrou quando ele deu o
primeiro passo em sua direção. Passando as mãos uma na outra, ela pôde sentir o
quanto estavam suadas.

Ele as tocou, separando-as.

− Eu sei. É por isso que estou me desculpando.

O rosto de Roque ficava cada vez mais próximo. Tão próximo que seu
perfume deixou um gosto doce na boca dela. As mãos ainda suavam, as pernas
estavam trêmulas, a boca salivava. Ela não estava certa de que queria aquilo.
Tampouco de que queria evitar. Nunca fora beijada antes, e não podia resistir à
curiosidade de conhecer essa sensação. Ao mesmo tempo, quão prudente seria
beijar o homem cuja proposta de casamento pretendia recusar? Com os olhos
semicerrados, Roque investiu a boca contra a sua, mas Karen hesitou, dando um
passo para trás. O príncipe levou as mãos até seu queixo, erguendo-o para si.
Mais uma tentativa. Mais um passo em sua direção. Como ele a queria! Passou
seus braços por sua cintura. Sua mão encaixou-se em seu quadril. Mais uma
investida contra seus lábios, dessa vez ele a alcançaria. Karen desviou o rosto
O Filho do Imperador 69
em vinte e cinco graus. O beijo atingiu o alvo pela metade: apenas no canto
dos lábios.

A adrenalina tomou conta do corpo da princesa, fazendo com que


tudo vibrasse dentro dela.

Roque se afastou. Ele não a pressionaria mais. Sabia que ela estava
começando a ceder. Sabia, como nunca, que Karen não era inatingível. Ele
poderia alcançar seu coração se continuasse tentan-do. Ele alcançaria.
Desde que ninguém ficasse em seu caminho.

⚜⚜⚜

Sentando sobre a cama, Karen tentou normalizar a respiração que


estava ofegante desde que deixara o jardim secreto de Roque. A chave
estava em sua mão, reluzindo imponente.

Alguém saiu de dentro de seu closet, e o som de sua voz a fez saltar
sobre a cama, derrubando a chave no chão.

− Como foi o passeio?

Ingrid assustou-se, igualmente, com a reação da princesa às suas


palavras, soltando um grito curto.

− Por Deus! Perdoe-me, Vossa Alteza! − suplicou, curvando-se


para apanhar a chave, que fora parar em seus pés.

− Ingrid! Você não tem jeito! Por que estava de tocaia?

− Eu não… não estava de tocaia − protestou, entregando o


objeto para ela, sem conter um olhar curioso. − Eu separava seu vestido
para o jantar.

− Obrigada − Karen ignorou sua explicação e andou até a


penteadeira onde, abrindo uma caixa de joias, depositou a chave. Ela notou
que ali havia uma bandeja a qual continha um pequeno papel timbrado. −
Quando pretendia me contar que isso estava à minha espera? − perguntou,
com voz de censura.

− Agora mesmo – a jovem dama sentiu-se corar, e Karen


soltou um suspiro, convencendo-se a não se irritar com as trapalhadas da
moça. Virando-se para Ingrid, com a expressão mais tolerante que
conseguira encenar, pediu que ela fosse descansar um pouco. Sen-

70 Camila Antunes
tou-se na cadeira e desdobrou o papel, a fim de conhecer seu conteúdo. Tratava-
se de um recado sem assinatura, que só podia pertencer a uma pessoa.

“Vossa Alteza real,

Não pude deixar de notar que a senhorita tem me


evitado.

Curiosamente, nada me tira da cabeça que tem


fugido não de mim, mas de um determinado assunto.

O objeto pelo qual tenho bastante apreço e que está


em sua posse, pode parecer apenas mais um para Vossa
Alteza, mas sinto necessidade de informá-la que nele estão
minhas marcações e anotações mais pessoais. Portanto,
espero tê-lo de volta.

Não tem sido prático para mim utilizar nenhum


outro e sinto necessidade de consultá-lo diariamente.

A propósito, suas palavras não saíram da minha


cabeça. Você disse se tratar de mágica e eu me dei ao direito
de contestá-la novamente. Minha cara, mágica não existe.
Isso é loucura. Eu poderia repetir durante horas essas
palavras em seus ouvidos. Desta vez, entretanto, o objeto se
defenderá sozinho.

Receba o recado que ele tem para você em MT


22:29b”

Karen analisava as últimas palavras do papel, tentando decifrar o que


aquelas siglas significavam. Levantando-se, ela foi até a gaveta e, passando os
trêmulos dedos pelo puxador, tomou coragem para abri-la.
Quando enfim pegou o objeto, colocou-o com cuidado sobre a
penteadeira e virou sua capa, abrindo-o. Reprimindo a comichão que surgia em
seu estômago, Karen procurou o índice, onde conseguiu

O Filho do Imperador 71
identificar o que as siglas significavam. Mateus. Era um livro. Um
testemunho. Um testemunho escrito por alguém há milhares de anos.

Ela observou que os capítulos, geralmente curtos, continham versos


igualmente numerados. “Mateus, capítulo vinte e dois” – pensou. “O verso
deve corresponder ao número vinte e nove. Mas ‘b’? ‘B’ provavelmente
correspondia à segunda parte do verso.”

Isso. Ela estava certa de que era isso. Sentando na cadeira da


Penteadeira, preparou-se para ler, ainda trêmula, aquelas palavras.

“Errais, não conhecendo as Escrituras, nem o poder de Deus.”

Um temor terrível se instalou no coração de Karen, que fechou o


livro rapidamente, e odiou a si mesma por ter seguido as instruções de
Sales. Ele só queria provocá-la, deixá-la com medo. Mas não iria funcionar.
Em hipótese alguma sentiria medo de um bocado de papel. Levantando-se,
pôs o livro sob o braço e saiu, atravessando o corredor com pisadas fortes,
na direção do único lugar da casa onde tinha certeza de que iria encontrá-lo.
OITO
A epifania

Pisoteando o assoalho. Foi exatamente assim que Karen atravessou


o corredor. Ela entrou na biblioteca, parando em frente à estante que
procurava.

− Está tentando me deixar com medo? − esbravejou, depois de


esmurrar a porta secreta. A princesa notou que pouco adiantaria, porque a
sala provavelmente havia sido construída à prova de som. Puxou alguns
livros até encontrar o certo e entrou, repetindo sua pergunta com efeito.

Sales estava sentado à mesa, encarando-a com o olhar surpreso. Ela


desviou os olhos para uma cadeira vaga ao seu lado, uma cadeira que não
existia da última vez em que esteve ali.

− Eu ouvi da primeira vez que você gritou − respondeu,


tirando os óculos e se levantando. Os olhos desatentos da princesa
desviaram-se para os dele. − Qual a necessidade disso?

Karen se obrigou a mudar de tom ao perceber que ele não estava na


defensiva, mas não ao ponto de soar amigável.

− O que significa aquele bilhete?

Com tranquilidade, Sales deu dois passos lentos em sua direção e,


delicadamente, levou à mão ao seu antebraço.

− Por favor, vamos lá para fora − pediu em um sussurro rouco.

− Não me sinto bem em discutir aqui dentro. Além disso, não quero chamar
atenção para esse lugar.

Consideravelmente constrangida pela mansidão das palavras dele,


ela acabou concordando. Deu um passo para trás quando ele esticou a mão
para girar a trava interna da porta. Sales sabia ser um cavalheiro quando
queria.

O Filho do Imperador 73
Ele sinalizou para que ela saísse primeiro e a seguiu, logo depois.
Enquanto andavam pelo corredor estreito, entre as estantes da biblioteca,
um peso se formou no coração da princesa. Ela sabia que fora mais ríspida
do que o estritamente necessário e que, dessa vez, ele não havia dado
qualquer motivo para isso.

Nesse caso, decidiu virar-se em sua direção para pedir desculpas,


entretanto, quando o fez, acabou descobrindo que ele estava mais perto do
seu corpo do que havia calculado. Seu rosto deparou-se com o peitoral do
rapaz, o qual estava coberto por uma fina camisa cinza, convencionalmente
colada. Ela paralisou diante da visão daqueles músculos, de modo que as
palavras, mais uma vez, fugiram-lhe à memória.

Sales permaneceu calado por um momento, como se aquela reação


houvesse exercido algum efeito também sobre ele, mas logo despertou,
perguntando sobre o que aquilo se tratava. Mantendo o corpo imóvel, Karen
abriu a boca, na tentativa de responder, mas segundos se passaram sem que
nenhuma palavra saísse por ela. Ali, naquele corredor apertado, entre
aqueles livros empoeirados: edições raras de antigos contos e poemas, ele
percebeu os sentimentos que causava nela. Karen poderia dizer o que
quisesse: que não estava interessada em casar-se com o herdeiro do
império; que não pretendia separar-se da própria família ou, até mesmo, que
desejava se tornar esposa do irmão dele. O Delfim não acreditaria, não
totalmente, que não causava efeito algum sobre o seu coração. O que ainda
não tinha se dado conta, porém, era do fato de que, talvez, desejasse causá-
lo.

− Karen − chamou, encaixando a palma da mão na lateral de


sua mandíbula e deslizando o polegar de leve por sua bochecha. − O que
está acontecendo?

O rosto dela se inclinou um pouco na direção do seu toque quente, e


seus olhos se fecharam diante da sensação que o movimento causava em
sua pele. Sales se aproximou mais, e uma vibração suave surgiu dentro
peito dela.

− O que foi? − insistia, com seu sussurro inebriante, rouco.

− Eu… eu não gostei da mensagem que você me mandou −


respondeu, encarando o chão em volta dos seus pés.

74 Camila Antunes
Ele abriu um sorriso breve, pela primeira vez naquele dia.

− Você não tem muito senso de humor, não é? − perguntou, sem se


afastar.

Ignorando o calor que sentia, a princesa voltou os olhos na direção dele.

− Na verdade, esse é um defeito seu − cutucou, embora tenha soado


mais terna do que irônica.

− Você provavelmente está certa.

Karen levantou uma das mãos e levou até a dele. Devagar, afastou aquele
toque do seu rosto, o que ironicamente a fez sentir um vazio imediato. Depois
andou até a saída do apertado corredor, esperando que ele viesse atrás dela,
exatamente como aconteceu.

Quando chegaram até o salão da biblioteca, ela se sentou elegantemente


em uma poltrona, mas Sales permaneceu de pé, encarando-a. Agora que ele fora
acometido por aquela epifania sobre os sentimentos da princesa, não conseguia
tirar os olhos dela. Tudo em que pensava era no motivo de estar tão satisfeito
com isso.

− Desculpe-me − falou, na tentativa de não deixar transparecer seus


pensamentos. − Queria te ajudar a encontrar alguma coragem para abrir o livro.

− E achou que me encorajaria ao me fazer ler um verso


assustador?

− Karen − ele suspirou, acomodando-se ao seu lado. – Não foi


minha intenção assustar você. Só queria ter alguém para compartilhar isso. Não
desejo magoá-la como fiz naquela noite. Nunca mais. Por favor, acredite em
minha palavra.

− Pare com isso, Sales − implorou, meneando a cabeça. Agora que


estava longe do toque dele, pensava com mais clareza. Seus dedos tocavam as
próprias têmporas. − Por favor, pare de me infernizar! Não sei o que você está
tentando fazer, mas isso não é certo.
Um vislumbre de mágoa surgiu em seus olhos, de modo que Karen
precisou esforçar-se para não sentir arrependimento. Antes que ele pudesse
protestar… ou convencê-la do contrário… ou tocá-la de novo, ela continuou:

O Filho do Imperador 75
− Falo sério, Vossa Alteza. Não acho que nossa interação seja
adequada para duas pessoas que se consideram cunhadas.

− Eu não sou seu cunhado − defendeu-se. − Ou você ficou


noiva de Roque sem que eu ficasse sabendo?

− Não − ela o encarou sentindo, sem entender bem o motivo, a


necessidade de esclarecer. − Não estamos noivos. Mas como você sabe, é o
que ele pretende… e não acho que seja certo trair a confiança de Roque,
que sempre foi tão honesto comigo.

Erguendo as sobrancelhas, o príncipe deixou escapar o esboço de


um sorriso debochado.

− O que foi?

Instantaneamente, Sales arrependeu-se de sua transparência. Não


conseguiu escolher palavras que o ajudassem a responder, então deu a pior
resposta possível para uma garota:

− Nada.

− Nada, não. O que está insinuando?

− Nada, Karen. Eu te avisei. Sou encrenca.

Um intenso e terrível mal-estar acometeu o corpo da princesa, de


repente. Seu semblante transformou-se, de modo que Sales acabou ficando
preocupado.

− Karen? − Ela despertou com o tom insistente de sua voz, o que


indicava sua desatenção àquelas palavras − Você está bem?

− Eu… − suas mãos ergueram-se até, mais uma vez,


alcançarem as têmporas. − Não. Estranho. De repente tive um déjà-vu.

Sales intrigou-se.

− De que tipo?
− Acho que você não iria gostar de saber − hesitou, incerta.

− Diga-me de uma vez, querida, já que chegamos a esse ponto.


Ou ficarei preocupado.

− Foi um sonho de alguns dias atrás − suspirou, enquanto


preparava-se para se explicar. − Só agora me dei conta de que o tive,
novamente, esta noite. E nesta manhã, mais uma vez, precisei espantar um
pássaro que me incomodava na janela. Tudo isso é muito esquisito.

76 Camila Antunes
A cada palavra que ela dizia, o príncipe se sentia mais confuso.

− O que acontecia nesse sonho?

− Você estava nele − admitiu, para sua surpresa. − Era o nosso


casamento, forçado por nossas famílias. Quando cheguei ao altar, senti muito
medo, de modo que levantei a saia do meu vestido e corri na direção contrária a
você.

Sales permanecia calado, sem saber exatamente como deveria se sentir


diante dessa revelação, mas não havia acabado. Ela continuava.

− Corri até chegar à beira de um rio, que provavelmente não existe,


e lá encontrei um homem… um carpinteiro.

− O quê? − sobressaltou-se, assustando-a. − Como você sabe que


era um carpinteiro?

− Ele trabalhava à margem do rio… bom, isso até ser interrompido


por minha chegada dramática.

− E o que aconteceu? Ele falou com você?

− Sim − respondeu, ainda surpresa com aquela reação exage-rada. −


Ele me cumprimentou e perguntou o que estava acontecendo. Eu disse que
acabara de me meter em uma grande encrenca, a qual poderia custar a cabeça do
meu irmão e que nunca me perdoaria por isso. Lágrimas desciam pelo meu rosto
freneticamente e o homem tocou em meu ombro, fazendo-me sentir uma paz
imediata.

Sales engoliu em seco.

− Ele tocou em você?

− Sim.

− E o que mais ele disse?

Ela pensou durante um tempo, sem conseguir evitar considerar esquisito


que se lembrasse de tantos detalhes daquele sonho.

− Disse que isso não aconteceria. Que tudo ficaria bem, que eu
saberia o que fazer e que as coisas se resolveriam… desde que eu fosse até ele.
Quando eu respondi que eu já estava bem ali e que não entendia como ele
poderia me ajudar, o homem falou que se eu quisesse, ele tornaria leve todo meu
fardo… e por algum motivo, eu simplesmente acreditei nele.

O Filho do Imperador 77
Agora era Sales quem estava perplexo.

− O mais estranho − ela divagava. − É que todas essas


memórias vieram à minha cabeça assim, como uma enxurrada, de uma hora
para outra.

Ele mantinha os olhos saltados do rosto e conseguia pensar em


centenas de questionamentos para fazer, mas antes que pudesse perguntar
sobre qualquer coisa, os dois ouviram um ranger na porta, e viraram-se para
observar Júlia e Evelise adentrarem o ambiente.

− Olha quem está aqui − a jovem disse, com o semblante


resplandecente, quando bateu os olhos na princesa. − Minha querida Karen!

Ela ainda se recuperava de seus pensamentos, de modo que tudo que


conseguiu foi lançar a Julia um sorriso forçado.
− Podemos nos juntar a vocês? − a grã-duquesa perguntou,
enquanto levava os olhos de Sales para Karen.
− É claro, minha tia − respondeu o jovem. − Vou pedir que nos
sirvam algum chá.
− Obrigada, querido − agradeceu, sentando-se ao mesmo tempo em
que o príncipe se levantava.
Sales poderia ter chamado algum criado pela campainha, mas
preferiu retirar-se do recinto. Levou as mãos à testa, afagando a própria
pele, como se isso pudesse desfazer a confusão que surgira em sua mente.
No corredor, orientou que um dos guardas encontrasse um criado e
providenciasse o que precisava, enquanto esperava mais um tempo para
voltar para a biblioteca. Enquanto isso, a esposa que deixou escapar pelos
dedos permanecia no cômodo ao lado, com sua prima e sua inquisidora tia.

− Então − a mulher se dirigiu a princesa, quando observou que


o herdeiro de Lima estava fora da área de risco. − Esses meus sobrinhos,
heim? Difícil se decidir…

− Mamãe! Por Deus! − Julia exclamou, em pânico. − Não diga


uma coisa dessas. Vai constranger Sua Alteza.
Karen procurou não se irritar com aquele comentário inconveniente,
contudo, tampouco se constrangeu. Não era ela quem deveria se sentir
constrangida.
78 Camila Antunes
− Não tenho pelo que me decidir, minha querida. É com Roque que
estou comprometida. Sales é apenas um bom amigo.
− Ah − ela respondeu, desinteressada. − Eu tive a equivocada
impressão de que vocês não se dessem bem. Engano meu.
− Tem razão – disparou. − Foi um engano.

Julia, nervosa, procurou mudar de assunto.

− Mamãe é assim mesmo, minha querida. Não se importe. Tenho


certeza de que você e Roque estão indo muito bem. Ele parece apaixonado. Você
é muito sortuda.

− Obrigada – conteve-se em responder, quando na verdade gostaria de


falar sobre o quanto era curioso que a sortuda daquele “relacionamento” fosse a
princesa, a qual iria trocar a singela coroa do irmão por uma muito mais pesada.
− Não estou certa de que ele esteja tão apaixonado assim. Quem sabe até o fim
do verão.

Analisando sua própria resposta, se deu conta de que não estava certa do
motivo de ter fingindo interesse em conquistar Roque, porém, acreditou que,
muito provavelmente, esse motivo foi ter sido flagrada pela grã-duquesa.

− Se me permite aconselhá-la − Julia continuou. − Devo dizer que


às vezes, para conquistar um homem, uma mulher precisa fazê-lo perceber o que
pode proporcioná-lo.

Karen segurou-se para não levar as mãos à boca, chocada com aquelas
palavras. Recusou-se a acreditar que tinha entendido o que ela dissera.

− Você realmente acredita que pode conquistar alguém assim?

− Minha querida, se há alguma coisa que eu aprendi é que o órgão


que os homens usam para pensar não é exatamente o cérebro. Se é que me
entende…

Era o fim. Ela realmente estava dizendo aquelas coisas. E fazia isso na
frente da própria mãe.
− Entender, entendo. Embora eu não acredite que você esteja se
referindo ao coração, que é onde mora a maioria das coisas duradouras.
Enrubescendo, Julia desviou os olhos, mas não se deu por vencida.
Apesar do sentimento de pena que acabou lhe acometendo pelo

O Filho do Imperador 79
constrangimento da moça, Karen memorizou que deveria alertar o irmão
sobre aquele perigo iminente. Se Julia investisse com esse plano em Kilian,
ele jamais perceberia suas intenções. Acharia que ela era uma mulher
moderna, como a Lady Ítala, com quem ele costumava sair, e tinha as
mesmas intenções que ele: divertir-se e seguir com sua vida, exatamente da
mesma maneira como sempre foi. Até mesmo a condessa Leila era esperta
o suficiente para saber que não conquistaria Kilian dessa forma. Pelo
menos, Karen achava que fosse.

− Com todo o respeito, Vossa Alteza − ela disse, polidamente. −


Quando for mais velha, você entenderá.

Ouvindo os passos de Sales, a princesa limitou-se em lançar para ela


um meio sorriso, embora não estivesse satisfeita em deixá-la acreditar que
havia concordado com aquilo.

Quando o rapaz enfim estava de volta e o chá já havia sido servido


pelos criados, a prima encontrou um jeito de puxar um novo assunto:

− Então, Vossa Alteza Real, creio que depois de todos esses anos nos
visitando, já tenha se ambientado ao palácio.

− Já conheço, sim, alguns lugares.

− Magnífico, não? − perguntou, descansando sua xícara em um


pires, enquanto monopolizava a conversa. − Eu simplesmente adoro esse
lugar!

− Quando éramos crianças, − Sales comentou com uma


nostalgia inocente. − Julia vivia nos obrigando a bancarmos os
exploradores. Não ficaria admirado se ela conhecesse cada cômodo aqui,
ainda melhor do que eu.

− Cada canto! − afirmou, orgulhosa. − Exceto pelo jardim


secreto. Esse sempre foi o lugar de Roque. − Inclinou-se, cobrindo a boca
com as mãos, como se fosse revelar um segredo. − Era para lá que ele ia
quando queria desvirtuar suas namoradas.

Subitamente, Karen sentiu um aperto no estômago. O que ela estava


dizendo? Quantas “namoradas” Roque levou para aquele jardim?

A princesa percebeu que Sales enrijeceu ao seu lado. Quando virou-


se para ele, viu que comprimia os lábios, encarando-a com…

80 Camila Antunes
pena. Ele estava compadecido dela, por ser tão estúpida. Estava compadecido e
nem um pouco surpreso. Ele sabia. Durante todo esse tempo, ele sabia que seu
irmão a fazia de idiota.

− Com licença – disse, levantando-se, sem se preocupar com a falta


de cortesia. − Não estou me sentindo bem.

Julia tentou se desculpar, justificando que isso foi há muito tempo, e que
ela não tinha motivos para sentir ciúmes. É claro que Julia não sabia que Roque
havia dito a ela que nunca levara ninguém até lá. Que havia dito que ela era uma
exceção, porque era “especial” e que aquele era o lugar “deles”.

− Julia − Sales advertiu. − Deixe-a ir.


NOVE
Visita ao estábulo

Karen ouviu um toc na porta quando afundava o rosto no


travesseiro. Essa era uma técnica que usava todas as vezes em que sentia
vergonha. Prendia a respiração até o rubor desaparecer de sua face.

− Ingrid, vá embora − gritou, levantando o rosto. − Não


insista! Eu já disse que não quero ver ninguém.

Ela ouviu um ranger e soube que a moça não tinha dado ouvidos ao
que acabara de pedir. Sem se virar para a porta, resmungou algumas
palavras e voltou a afundar a cabeça.

− Você é impossível! Será que não pode fazer o que te


mandam uma única vez?

− Olha só quem não está sendo legal com a pobre dama de


companhia − uma voz rouca comentou, atrás de sua cabeça.

Sales? − pensou, saltando sobre si mesma. − Não era para ele me


ver assim.

Sentando-se depressa, consertou a postura, mas não conseguia


encará-lo.

− O que está fazendo aqui? Por que entrou sem permissão?

− Estava preocupado com você, Branca de Neve.

− Pare de me chamar desse jeito. Eu não sou assim tão branca


− disse, erguendo os olhos para ele. − Além disso, não sou tão delicada.

− Bom, você é branca o bastante para que eu te chame assim.


E com certeza, é muito delicada. Principalmente quando não está gritando
comigo ou batendo portas no meu rosto. Isso sem falar na magreza.

− Então foi por isso que não quis se casar comigo?

− O quê?

− Você me acha muito magra?

82 Camila Antunes
Paralisado, Sales piscou os olhos, vasculhando em sua mente o indício de
alguma coisa da qual falara que pudesse tê-la levado a essa conclusão.

− Está louca? Que tipo de pessoa superficial você acha que eu

sou?

− Você não precisa ser superficial para não se sentir atraído por
mim.
Mulheres.

− Karen, acredite. Você é perfeita exatamente como é.

Ela suspirou, enrolando um bocado dos cabelos nos dedos e percebeu que
Sales desviou os olhos para aquela mecha.

− Desculpe-me – disse. − Foi uma pergunta idiota.

− De fato.

− Ei − a princesa protestou, beliscando seu abdômen. − Vossa


Alteza Imperial não precisava concordar com isso.
Ele tomou sua mão para pará-la e quando se deram conta de que estavam
sorrindo um para o outro, desfizeram as expressões, mas nenhum dos dois
conseguiu desviar o olhar. Estavam tão próximos que Karen teve a impressão de
poder sentir o cheiro da calda de amora do cheesecake que ele comia ainda
pouco, durante o chá que compartilharam.

Sales pigarreou, procurando a voz que precisava para soltar as palavras


que tentava dizer:
− Sinto muito pelo que ouviu na biblioteca.

Ela baixou os olhos, voltando a sentir uma pontada de vergonha. Não era
que estivesse magoada pela falta de autenticidade dos sentimentos de Roque, em
si. Ele tinha agido mal, sim, mas o que mais a incomodava era o fato de ter
acreditado que fosse especial para ele. De ter acreditado quando todos ao seu
redor exceto, talvez, Kilian, soubessem que ela não era. Quando voltou os olhos
para Sales, perguntou por que ele não havia contado a verdade e deixado que
fizesse papel de idiota.
− Você sabe que não cabia a mim − justificou, fazendo-a soltar um
suspiro. Ele tinha razão. Karen lembrou do olhar de reprovação que ele lançou
ao irmão outro dia mesmo, no corredor.

O Filho do Imperador 83
− Seu irmão e eu teremos uma conversinha quando ele voltar
dessa competição.
Ela percebeu a menção de um sorriso querendo surgir em seus
lábios. Um sorriso que Sales tentava reprimir. Ele não queria ser indiscreto
sobre o quanto aquilo o deixava satisfeito. De repente, Karen se pegou
olhando para sua boca contorcida. Ela a fitava, não despretensiosamente,
mas com um fascínio quase hipnótico.

− Eu vim te fazer um convite − ele disse, ao fim de uma frase


que ela mal escutou.
− Que tipo de convite? − Permanecia hipnotizada.

− O quanto você gosta de cavalos?

A princesa encontrou seu olhar, empolgada com aquela pergunta.

− Está brincando? Eu trouxe meu traje de montaria! Suma


daqui e me encontre em dez minutos.
− Quando eu disse que iríamos montar?

Seu sorriso voltou a desfazer-se, mas não antes de Sales abrir o seu,
para tranquilizá-la.

− Estou brincando. Não se demore. Venho buscá-la daqui a pouco.


Preciso me trocar também.

Menos de uma hora havia se passado quando os dois chegaram ao


estábulo. O cuidador trouxe até eles dois animais imponentes, já selados.
Karen os observou com admiração. Um deles, o cavalo de Sales, que ela já
conhecia, se chamava Castanho (pelo simples fato de que era inteiramente
castanho). Ele era um Quarto de Milha forte, que já tinha ganhado algumas
competições com o dono. Olhando para o equino, não conseguiu evitar
lembrar-se da primeira vez que montou.

O príncipe, que parecia adivinhar o que se passava em sua cabeça,


comentou em um sussurro:

− Há dois anos você não parecia tão empolgada. Ela riu-se da


lembrança.
− Foi assustador subir em um animal que tinha quatrocentas
vezes o peso do meu corpo, o qual eu não podia controlar.

84 Camila Antunes
Ela percebeu que Sales se continha para não dar uma risada.

− Eu poderia jurar que você nunca mais montaria depois daquele


dia, quando o bicho disparou em galope com você em cima.

− “Ele sente o seu medo”, você disse. E até que ficou preocupado
comigo!

− Eu nunca desejei o seu mal, Branca de Neve.

Karen sorriu para ele, mas quando percebeu que iria corar, desviou seus
olhos para a égua branca, quase lisa, exceto pela mancha escura na fronte,
próxima às orelhas, e nas patas (o que a fazia parecer calçar quatro botinas
negras).

− Eu não conheço essa menina − disse, acariciando a alva crina do


animal.

− É um animal novo no castelo. Eu mandei que a trouxessem há


dois meses, para o caso de você querer montar quando chegasse.

Ela encarou-o, surpresa.

− Você pediu que a trouxessem para mim? Por quê?

− É um Manga Larga Marchador − disse, mas como ela não fez menção
de ter entendido o recado, decidiu explicar. − Você sempre sentia dores lombares
quando montava em um Quarto de Milha, mas isso não vai acontecer quando
estiver com Tiara. Ela tem o andar macio.

− Você realmente a trouxe por mim, Sales? − perguntou,


desacreditada. − Estava cuidando do meu bem-estar, mesmo quando não
concordava com nosso casamento?

Ele diminuiu a distância entre os dois com o passo que deu em sua
direção. Estavam próximos mais uma vez. Agora não havia vestígio de amora,
mas um frescor de eucalipto em seu hálito, e ela percebeu que ele escovara os
dentes no curto período de tempo em que se separaram desde que ele estivera em
seu quarto. Ele tocou a única mecha de seu cabelo que havia escapado do
elástico que o prendia, e passou-a por trás de sua orelha.

− Eu sempre cuidaria de você, minha querida. Mesmo que não


concordasse com aquele arranjo de nossos pais. Mesmo que eu…

– conteve-se, mas só por um momento. − Mesmo que tivesse a im-

O Filho do Imperador 85
pressão errada de suas intenções. Eu sempre teria cuidado de você, da sua
delicadeza, e até mesmo dos seus sorrisos excessivos.

Ela baixou os olhos e ele soube que sua indelicadeza no baile ainda
a causava alguma dor.

− Ah Karen, eu estava errado. Eu lamento tanto. Faz ideia de quanto


eu lamento?

Como um tambor, o coração da princesa saltou dentro do peito.

− Vo-você… − gaguejou, mas conteve-se para se corrigir. −


Nós não podemos lamentar, Sales. Não agora. Não temos esse direito.

Agora era ele quem desviava o olhar.

− Eu sei − sussurrou, contraindo a mandíbula, sem encará-la.

− Sei que não tenho o direito e que tampouco seria justo. Eu sei do que abri
mão. Mas não posso evitar lamentar.

Karen virou-se de costas para ele, dirigindo-se até Tiara. De repente,


deu-se conta de como aquele nome era perfeito para ela, já que a mancha
em sua cabeça, que se destacava ainda mais por estar acompanhada pelo
cabresto dourado, parecia-se mesmo com o acessório que tanto gostava.
Sales tentou perguntar se ela precisava de ajuda, mas antes mesmo que ele
completasse a frase, com as mãos na sela, a princesa pegou impulso para
erguer-se, e com a perna direita atravessou o dorso do animal, acomodando-
se sobre ele.

− Você não vem? − provocou.

Fitando sua imagem, antes de responder, ele se permitiu admirá-la.


A naturalidade em que montou sobre o bicho, quando esperava que o
fizesse à amazona . Sua pele levemente bronzeada, reluzindo sobre o sol
2

quente e as gotas de suor que charmosamente se formavam em sua testa.


Ele notou também que a calça branca que ela usava, estava relativamente
justa em suas coxas, demonstrando que não era assim tão magra quanto
aparentava. Não que ele não achasse sua magreza atraente, mas não
conseguiu evitar indagar-se como poderia ser possível que ela ficasse ainda
mais bonita de calças do que quando usava seus vestidos.

2 Técnica de montaria, que consiste em fazê-la com as duas pernas do lado esquerdo do cavalo.

86 Camila Antunes
Sales soltou um profundo suspiro, antes de montar em Castanho. Dom
Fernão o avisara que mudaria de ideia sobre Karen e ele odiava que seu pai
estivesse certo.

⚜⚜⚜

Enquanto cavalgavam sob o brilho alaranjado do crepúsculo, Karen se


percebeu realmente impressionada com o passo macio de Tiara.

Os dois atravessaram o extenso pátio e ela viu Kilian acenar pela janela
que espiara, com o canto dos olhos, desejando não encontrar ninguém. Mesmo
sem compreender totalmente o motivo, sentiu o sangue aquecer sua face, ciente
de que corara um pouco, um hábito o qual, aparentemente, começava a se tornar
frequente.

Prosseguiram sob a fresca brisa do entardecer que os acompanhava. O


delicioso vento acariciava seus cabelos quando eles ouviram o som das águas
correntes de um riacho.

− Estamos próximos da Mata Densa − ela disse, cautelosa. − A


julgar pela hora, não seria mais prudente que voltássemos?

− Não confia na minha proteção? − Perguntou, mexendo em suas


vestes para lhe exibir a espada que carregava.

− Confio em sua proteção e conheço suas habilidades − afirmou, a


fim de massagear seu ego, embora fosse mesmo verdade. − Ainda assim,
carregamos o sangue real de uma nação e de um império nas veias, e acho que
seríamos alvos fáceis em uma emboscada. Principalmente pelo fato imprudente
de estarmos sozinhos.

Sales abriu um sorriso condolente. Enquanto ele considerou atraente o


senso de prudência da princesa, ela sentiu uma pontada de decepção pela
necessidade de explicar coisas tão óbvias a ele.

O Delfim, por sua vez, deu a volta com castanho, posicionando-se à sua
frente.
− Ah, Branca de Neve, não seja tola. Eu nunca estou sozinho. Ela
franziu o cenho, sentindo-se confusa. O que ele queria dizer com nunca estar
sozinho?

O Filho do Imperador 87
Olhou em volta e, pelo extenso campo aberto que estava diante dos
seus olhos, duvidou que alguém os acompanhara, mesmo com discrição.
Antes que pudesse perguntar, no entanto, Sales adentrou a mata, galopando
em castanho e tornando difícil para ela alcançá-lo.

− Vamos, Karen! Ou a deixarei sozinha nos perigos do campo

aberto.

− Grosseiro! − sussurrou, e quando finalmente o alcançou,


estava prestes a acusá-lo de sofrer de transtorno bipolar, quando ele se
desdobrou em uma enorme gargalhada. Até mesmo castanho parecia rir-se
dela.

O que havia de tão engraçado?

− Sales! − repreendeu, séria. − O que acha que está fazendo? Para


onde estamos indo? Já escureceu! É perigoso…

Ele revirou os olhos.

− Não é perigoso. Eu sei exatamente o que estou fazendo. Não


me ofenda insinuando que não sou capaz de me virar em minha própria
casa. Tenho uma coisa para te mostrar − ele uniu o indicador e o polegar,
levando-os aos lábios, com os quais emitiu um som agudo. Uma espécie de
assobio.

De repente, pequenas fagulhas surgiram, fagulhas as quais,


conforme se aproximavam, Karen conseguia identificar como tochas.
Tochas nas mãos de pessoas. Ela já havia contado sete deles, quando se
virou para encarar Sales. Ele não parecia surpreso. Pelo contrário. Estava
totalmente calmo, avaliando sua reação.

− Do… do que se trata isso? É algu-alguma ar-arma-madilha?

− o ar parecia rarefeito em suas vias respiratórias, de modo que ficava difícil


terminar uma frase sem gaguejar.

Ele desceu do cavalo, caminhando até ela. Seus olhos eram


tranquilos, sem medo… como se carregassem outro segredo. Mais um.
DEZ
A clareira

− Não! Fique calma! − ele tentou tranquilizá-la. − Não tem motivos


para se assustar. Eles são meus amigos.

Estava mais do que claro que Sales ainda não aprendera a melhor
maneira de “não assustá-la”. Calma era tudo que ela não estava naquele
momento. Karen não se movia, exceto pelas mãos, que se apertavam em torno
das rédeas de Tiara, receosa do que poderia acontecer se as soltasse. Por um
breve momento, teve a impressão de que a égua compartilhava sua angustia.

Conforme as pessoas se aproximavam, contudo, ela podia enxergá-los


com clareza. Viu que não se tratavam de soldados ou tampouco delinquentes.
Eram pessoas normais. Quatro mulheres e três homens. Camponeses. Alguns
bem jovens e outros mais velhos.

− Bem-vindo de volta, Sales! − Um rapaz de cabelos acobreados e


pele levemente morena, que deveria ter a idade dele, exclamou, dando-lhe uma
tocha a qual acendeu com a sua própria.

Karen não pôde deixar de ficar intrigada com aquilo. Quem eram aquelas
pessoas? Camponeses que o chamavam pelo nome?

O príncipe abriu o braço que estava desocupado e o jovem fez o mesmo.


Os dois trocaram um abraço fraterno.

− Karen, esse é Oscar, meu irmão − disse, simplesmente. Essa


revelação fez Karen ficar chocada por alguns segundos, mas seus poucos
conhecimentos de genética a fizeram compreender, em pouco tempo, que não
havia como aquele menino ruivo ser irmão de Sales. Não no sentido literal.
Ele se curvou, fazendo uma breve reverência antes de cumprimentá-la.

O Filho do Imperador 89
− Vossa Alteza Real.

− Por favor − interrompeu, com as mãos espalmadas, estendidas


para ele. − Apenas Karen, já que é como um irmão para meu futuro
cunhado… − precisou limpar a garganta após dizer essas palavras, e não
pôde deixar de notar que Sales apertava os dentes.

O rapaz abriu um meio sorriso comovido, como se pudesse ler o que


se passava em sua mente, antes de recusar a oferta.
− Eu não seria capaz disso, Alteza. Eu e Sales nos conhecemos
desde muito jovens.
Ela aceitou − embora não conseguisse ver como isso podia ser
verdade − e desceu de Tiara para conhecer os demais. Foi o próprio Oscar
quem fez as honras.

Entre as moças, uma se parecia muito com o jovem camponês,


estava claro que os dois eram irmãos: o mesmo tom e textura de cabelo, os
mesmos traços. Seu nome era Olga e ela aparentava ter a sua idade.

Acácia era a mais velha, ela tinha a pele num tom escuro, como a do
príncipe, e estava acompanhada por seu filho Miguel, de nove anos, que era
levemente mais claro que a mãe. Logo Karen descobriu o porquê. O
próximo homem que lhe foi apresentado, de estrutura altiva, cabelos
grisalhos e a pele clara, se chamava Bráulio, e era pai de Miguel. Ela não
entendeu bem, mas Oscar se referia a ele como “pregador”.

Havia ainda outras duas moças, Perla e Marisa, ambas de pele


morena, com cabelos muito lisos, longos e olhos levemente puxados. Karen
não pôde deixar de notar sua beleza excêntrica, e muito menos a forma
como a mais velha delas olhava para Sales.

Ele era o príncipe herdeiro e não era exatamente uma surpresa que
fosse desejado. Mas Karen sabia que ele conhecia aquelas pessoas. Ele as
conhecia bem, porque cumprimentou a cada uma delas com um abraço
caloroso e a princesa teve bastante certeza, apesar da pouca luz, que pôde
perceber a pele de Perla enrubescer ao seu toque. Ela era apaixonada por
ele.

Oscar e Sales prenderam os animais a duas árvores, fazendo a


angústia de Karen aumentar. Eles tinham planos para aquela noi-

90 Camila Antunes
te. Planos aos quais ela desconhecia por completo. Sales era mesmo uma grande
encrenca, uma encrenca que lhe fora anunciada e ela decidira ignorar. Seu corpo
ainda tremia um pouco quando ele se aproximou dela e, curvando-se, sussurrou
em seu ouvido:

− Minha querida, não fique sempre na defensiva. Confie um pouco


mais em mim.

− Como pode me pedir isso − ela devolveu-lhe o sussurro. −


Quando me enganou para trazer-me para este lugar sem me consultar?

As pessoas que cercavam os dois mantiveram distância, dando-lhes


privacidade.

− Karen − ele estendeu a mão para tocá-la. − Eu não faria nada que
te colocasse em risco. Quero muito te mostrar uma coisa e… bom, esse pode não
ter sido o método mais inteligente… ou o mais decente… mas foi tudo o que
consegui pensar. Não se ressinta de novo. Tudo o que eu te peço é para que
confie em mim.

Algo dentro dela se derreteu, mais uma parte da pequena geleira que se
forçava a firmar em seu peito. Uma sensação incompreensível de paz preencheu
seu coração e ela decidiu confiar nele. Confirmou com a cabeça e Sales a tomou
pelo braço, repousando a mão sobre a sua.

− Tem ideia de como isso foi assustador? – resmungou. − Se Kilian


soubesse…

− Fique calma, minha cunhada – provocou. − Eu me entendo com


seu irmão.

Ela pensou na improbabilidade disso, mas preferiu manter-se em silêncio.


Parou de perguntar para onde iriam e resolveu apenas acompanhá-los. No
caminho, entre as árvores de largos troncos e seu altíssimo dossel, deu-se conta
de que não tinha outra opção, a não ser confiar inteiramente em sua palavra.
Ainda assim, por algum motivo, aquela paz não a deixara. Ela não sentia medo.

Poucos minutos de caminhada foram suficientes para que o grupo


chegasse a uma clareira relvada, onde a trilha desembocava. Ervas rasteiras
cobriam o chão, como se fossem a tapeçaria esver-

O Filho do Imperador 91
deada de um salão de festas arredondado. Eles fincaram suas tochas na
relva macia, formando um círculo cujo centro era adornado por pequenos
troncos simétricos de lenha que abasteciam uma fogueira.

− É prudente ascender uma fogueira na floresta? − perguntou.

− Nós escolhemos esse lugar a dedo, Vossa Alteza − foi Oscar


quem deu a explicação. − E tomamos o cuidado necessário.

− Escolheram para quê? E por que precisam dela? Acaso há


necessidade de nos aquecermos neste tempo fresco? Não se preocupam em
chamar atenção de inimigos com a fumaça?

Oscar ergueu uma sobrancelha.

− Uma pergunta de cada vez − Sales interviu. − Não precisa


massacrá-lo desse jeito.

Ela abriu um pequeno sorriso, lembrando-se do quanto pode soar


intimidante para desconhecidos.

− Perdoe-me, Oscar – e corando, controlou-se. − Para que a


fogueira?

− Nós precisaremos de luz, Alteza… para nossa leitura. Logo a


senhorita entenderá. Não nos preocupamos com a fumaça pois temos a
segurança da Guarda Imperial armada em torno da mata e sobre o calor do
fogo… ele não nos incomoda tanto.

Aos poucos, as pessoas foram se acomodando em volta da fogueira


e Bráulio, ela notou, tinha um lugar de destaque. Mesmo sem conseguir
entender direito aquilo que se passava, Karen resolveu que não faria mais
perguntas. Decidiu que apenas observaria e tentou despir-se dos
preconceitos que carregava.

Bíblias surgiram de dentro das vestes e bolsas que eles carregavam.


Sales também tinha uma, um pouco menor do que aquela que a emprestara.
Estavam acomodados lado a lado e ela percebeu que, por mais que
resistisse, não conseguiria fugir de compartilhar aquela leitura. Bráulio
tomou a palavra.

− Vamos começar mais uma reunião. Eu quero agradecer a presença


de todos, em especial a da nossa convidada de honra, Sua Alteza Real de
Vera Cruz, Karen Orleans − todos bateram palmas e ela não conseguiu
disfarçar o cenho franzido. Ainda assim, acenou com

92 Camila Antunes
a cabeça, em agradecimento. − Na semana passada, o nosso irmão Sales
expressou o desejo, apesar da insegurança, que sentia de trazê-la até aqui. E
vejam só, parece que criou coragem.

Ela ergueu os olhos para ele, que mantinha a cabeça baixa e um


sorriso tímido, com o qual não combinava. Abrindo seu próprio sorriso, não
resistiu considerar aquela reação bastante meiga.

− Vossa Alteza − Bráulio prosseguiu. − Queremos que se sinta

à vontade em nosso meio. Não esperamos que a senhorita nos compreenda de


imediato ou as nossas intenções. Mas saiba que estamos aqui de coração puro,
apenas para celebrarmos o presente em comum que recebemos.

− Presente? − perguntou, vagando seu olhar entre Sales o


pregador.

− Sim − continuou. – Vossa Alteza já recebeu um presente que


considerasse extremamente precioso?

Sem ter certeza do que ele esperava como resposta, ela soltou:

− Bom, sim… eu acho… talvez.

− Nós sim − prosseguiu, um brilho intenso latejava em seus olhos.


Aquele brilho, por si só, fazia o coração da moça saltar. − E é um presente
tão lindo, tão precioso… que não podemos guardar para nós mesmos.
Temos a necessidade de compartilhá-lo. É por isso que Vossa Alteza está
aqui. Sales quis dividir isso com você.

Sua mão deslizou para o antebraço do príncipe e percorreu o


caminho até a dele. Quando enfim a encontrou, seus dedos entrelaçaram-se
com naturalidade, como se tivessem ensaiado.

− O presente que fala… é o livro proibido, não é? − Os dedos


de Sales afagavam os dela e, com o canto dos olhos, percebeu que ele
mantinha os dele fechados. Ela não sabia exatamente como deveria agir,
então simplesmente permaneceu como estava.
− Na verdade, não. O livro é apenas uma forma de encontrá-lo.
O presente é, na verdade, uma pessoa.

− Eu… não entendo.

Nesse momento, Sales soltou-se com delicadeza, afagou suas costas


brevemente e cruzou as próprias mãos na frente do corpo. Ele

O Filho do Imperador 93
a queria totalmente concentrada no que iria ouvir, e ela não se importou.
Estava intrigada e sabia que o toque de Sales não ajudaria em muita coisa,
além de roubar-lhe boa parte da atenção.

O homem começou a contar uma história que acontecera há muitos


anos. A história de um bebê que nasceu de uma virgem para reinar sobre o
mundo. Aquilo se pareceria muito com mágica, se não se parecesse com
algo muito, muito, maior.

− Eu não entendo! Um rei que nasceu em um estábulo? Bráulio


confirmou, dando um breve sorriso. Ele voltou anos
na história e a mente de Karen foi transportada no tempo pelo poder
daquelas palavras.
− Há milhares de anos, quando o mundo em que vivemos não
existia, tudo que havia era Deus. Ele criou a terra e todas as outras coisas.
Criou as luzes do céu, as plantas, as águas, os animais… e ficou muito feliz
com isso.
− Já ouvi essa versão. Deus criou o homem do pó da terra e soprou
sobre ele… − Karen se segurou para não rolar os olhos.
− Exatamente, Alteza. E quando soprou, concedeu-lhe o fôlego
de vida − ele colocou a mão em um dos bolsos, de onde tirou algumas
pedras coloridas. Depositou-as, todas, à sua frente e, erguendo uma de cor
amarela, continuou sua explicação.
− Ele criou o homem (e o amou de maneira extraordinária) para que
vivesse com Ele, nas regiões celestiais, onde não há choro, nem dor, apenas
alegria… é um lugar lindo, com portas de pérolas e ruas de ouro − Bráulio
descia a pedra amarela ao mesmo tempo em que sua expressão se
transformava. Agora, seu aspecto estava mais sério e ele tinha uma pedra
preta nas mãos. − Infelizmente o homem seguiu pelo caminho errado.
Ouviu a maus conselhos e pensou em seus próprios interesses, cometendo a
transgressão de desobedecer a Deus. A transgressão do homem o afastou de
seu criador e do céu, afinal o mal e o bem não podem viver no mesmo
lugar.

− Então − Karen indagou. − O suposto céu se tornou


inalcançável para sempre? Sendo assim, qual é o ponto?
94 Camila Antunes
Bráulio insinuou um meio sorriso, demonstrando-se feliz com aquela
curiosidade. Descansou cuidadosamente a pedra negra à sua frente, trocando-a
por uma vermelha.

− Havia uma forma de resgatar o homem. Uma forma que


machucaria ainda mais o coração do criador. − Karen desviou os olhos da pedra.
Finalmente começava a entender.

− Sangue? − perguntou, no que ele confirmou com a cabeça. −


Sacrifício… o filho da virgem − concluiu a princesa.

− O Filho de Deus − Bráulio enfatizou. − Esse homem não foi


concebido por maneiras naturais e o criador escolheu a mais pura entre as
mulheres para carregá-lo.

− Então ele realmente era um rei? Era o filho de Deus?

− Sim, era tudo isso. Ele era um Rei, filho de Deus e era o próprio
Deus − percebendo sua expressão confusa, o pregador desacelerou. Karen
aproveitou para espiar Sales, que agora repousava uma das mãos em frente sua
face, com os olhos fechados. − E não foi nada fácil para Maria, a mulher que
Deus escolheu para ser sua mãe. Ela era noiva de um homem bom… que estava
prestes a abandoná-la. Então o Criador se revelou a ele também, enviando um de
seus anjos para orientá-lo a cuidar daquela mulher e de seu filho.

− E ele aceitou?

− Sim − respondeu, radiante. − Imagine a confusão na cabeça do


homem! Dentre tantos nobres que poderiam ter sido designados para essa
missão, o Criador do Universo escolheu justo a ele, um simples carpinteiro.

Ao som dessas palavras, o coração de Karen saltou. Ela lembrou-se


imediatamente de seu sonho e virou-se para encarar Sales, que agora tinha os
olhos abertos. Ele pressionou os lábios, sorrindo para ela e sussurrou “eu sei”.
Suas mãos se tocaram de novo. Dessa vez, como se compartilhassem uma
informação especial, sublime. Karen, de repente, sentiu-se privilegiada, como se
de alguma forma aquele Deus quisesse se revelar para ela também.

− Pregador? − ela chamou.


− Pois não, Vossa Alteza.

O Filho do Imperador 95
− Por acaso o senhor saberia me dizer se… esse homem, o
menino… Deus…

− Jesus − Sales ajudou.

− Jesus. Esse Jesus… ele seguiu a profissão de seu pai? − a


princesa sentiu um aperto em sua mão, indicando que Sales já sabia a
resposta.

− Sim − Bráulio respondeu, o cenho franzido demonstrando


estranheza. − Essa era a profissão dele também. Por quê?

− Nada − se limitou em revelar por enquanto, e sentiu a mão


do príncipe se afrouxar um pouco da sua. − Curiosidade apenas.

Seu coração estava aos pulos e pelo suor que vinha das mãos do
futuro imperador, ele compartilhava da sua ansiedade, o que era no mínimo
curioso.

− Por favor, pregador, continue a história.

Mais satisfeito do que nunca, Bráulio explicou o sacrifício do qual


falara. Erguendo uma pedrinha muito alva e redonda, ele contou que o
sangue do Filho único de Deus fazia aquilo com o homem: livrava-o da
sujeira da transgressão e seu interior tornava-se limpo, puro, sem mácula.
Branco como aquela pequena pedra. Como a neve que caía sobre os reinos
mais extremos da terra.

Lágrimas começaram a rolar pelo rosto de Karen. Ela chegou a


pensar que nunca teria acreditado nas coisas que ouvira em circunstâncias
comuns. Todavia, não poderia ignorar a visita que o carpinteiro a fizera em
seus sonhos. Ela esforçava-se ao máximo, entretanto, não conseguia se
lembrar do rosto dele. Nada disso fazia sentido, contudo, se como o
pregador anunciara, ele estivesse morto.

Enquanto ainda estava perdida nesses pensamentos, ela o ouviu falar


sobre os dias que vieram após o sacrifício. O terceiro, mais precisamente,
quando o carpinteiro ressurgiu dos mortos. Ele subiu ao céu, mas deixou
entre os homens o seu espírito, o Espírito Santo, como Bráulio chamava.
Uma pedra verde estava em suas mãos representando a vida plena e a
esperança. Uma vida em que a humanidade não precisaria ser afastada do
seu amoroso Criador e a esperança de que o Homem está vivo e que um dia
retornaria.

96 Camila Antunes
A princesa não pensava mais em nada, absorta naquelas palavras.

No exato momento em que o pregador perguntou que sinalizasse o desejo


de viver aquela experiência, com uma naturalidade assustadora até mesmo para
ela, sua mão se ergueu. Não foi exatamente uma coisa involuntária, mas como se
algo em seu íntimo a impulsionasse a tomar aquela decisão. Um calafrio
percorreu seu corpo e, ao mesmo tempo, uma espécie de fogo consumia seu
coração. Era como se o Espírito Santo confirmasse que aquela era a escolha
certa.

Tocando seu ombro, Sales a fitou com lágrimas nos olhos. Seu olhar não
era malicioso, não era irônico, era cheio de ternura e − ela podia notar − orgulho.

Ele abriu um sorriso sincero e, com a voz embargada, disse que ela
acabara de tomar a melhor decisão de sua vida.
ONZE
O sentimento sublime
“Pois a palavra de Deus é
viva e eficaz, e mais afiada
que qualquer espada de dois
gumes; ela penetra até o ponto
de dividir alma e espírito,
juntas e medulas, e julga os
pensamentos e as intenções do
coração.”

Hebreus 4:12 (Bíblia Sagrada)

Nada se comparava à paz que Karen sentira ao despertar naquela


manhã. As palavras do pregador estavam frescas em sua memória e as
lembranças da clareira aqueciam seu coração com um calor mais intenso
que as chamas dançantes da fogueira que acenderam na floresta. Ela
pensara no momento especial em que todos falaram com Deus, incluindo
Sales, como se fosse um amigo íntimo, quando fecharam os olhos e
proferiram palavras elogiosas em nome do filho sacrificado. Mesmo que
não tenha recebido nenhuma resposta audível, os sentimentos da princesa
confirmaram que o Espírito do qual falavam estava presente ali.

Agora, ela abria os olhos − com mais disposição do que geralmente


sentia ao despertar pela manhã naquele país − esticava os braços para os
lados, enquanto se sentava, espreguiçando-se com elegância. Olhando para
sua cabeceira, notou um envelope com o selo imperial. Karen não precisou
abri-lo para saber que aquilo era coisa de Sales. Algo proporcionava um
pequeno peso àquele envelope, de

98 Camila Antunes
modo que a princesa percebeu que não era papel o que havia em seu conteúdo, o
que só fez deixá-la ainda mais curiosa. Passou uma mão por sua borda e, com a
outra, pegou sua pequena faca adornada em pérolas púrpuras − dulcícolas − para
abri-lo com cuidado. Em seu interior havia uma fina corrente de ouro, uma
pulseira que tinha como pingente uma pequena esmeralda cerceada por
brilhantes.

Uma pedra verde. A cor da esperança.

Karen posicionou o objeto em torno de seu pulso e, mesmo com um


pouco de dificuldade, conseguiu colocá-lo. Finalmente levantou-se da cama e
saiu para encontrar-se com o irmão e a família de Ravin, radiante.

O imperador anunciara o adiantamento do festival de verão, para


aumentar sua euforia. Era raro nas visitas em que os irmãos Orleans faziam
anualmente a Lima, que acontecesse esse festival. Ele se trata de uma festa
realizada para os nobres pelo Império. Começava durante a tarde e se estendia
durante toda a noite. A última em que Karen esteve presente foi há cinco anos e
ela podia se lembrar das bandeirolas coloridas, dos fogos de artifício e de como
aquelas danças típicas e alegres eram diferentes das do seu país.

− É uma pena que Roque não esteja presente durante o festival para
lhe fazer companhia, minha querida. − Dom Fernão comentou, fazendo Karen
sentir-se mal imediatamente. Não era certo que ela não sentisse sua falta, menos
ainda que dispensasse tanto apreço pela companhia de seu irmão.

Evelise, a grã-duquesa, enxeriu-se no assunto.

− Temos certeza que Sales não deixará que essa ausência seja
sentida, não é mesmo, meu sobrinho?
− Mamãe! − Julia sussurrou e Karen percebeu que todos os homens
da mesa, exceto Sales, que mantinha os olhos no próprio prato, se entreolharam
interrogativamente.

− O que está insinuando, mulher? − Lorde Fausto indagou com


pouca delicadeza, dando a Karen uma vaga ideia do motivo de sua esposa
parecer sempre tão amargurada.

Fingindo desinteresse, a princesa concentrou-se no conteúdo de seu prato


e pôde sentir, mais do que ver, o olhar do rei Kilian sobre

O Filho do Imperador 99
ela. Conhecendo-o como o conhecia, tinha certeza que se o encarasse,
mesmo que por um segundo, ele imediatamente descobriria todas as pistas
que precisava para desvendar os sentimentos que ela insistia em esconder, e
isso era uma coisa a qual preferia evitar.

− De maneira alguma eu deixaria Karen se sentir sozinha −


Sales interveio sem parecer preocupar-se com a opinião da tia.
− É claro que não − o tio concordou. − Os dois são amigos
desde a infância. Nada mais normal do que passarem o tempo juntos. Não
tire todas as pessoas pelos maus hábitos da sua família.
Nenhum músculo de Evelise se moveu depois das palavras ríspidas
do marido. Alguns segundos se passaram até que ela despertasse e levasse o
garfo com um pedaço de croissant à boca. A princesa pôde perceber o
Delfim enrijecendo-se ao seu lado e notou por sua postura que apesar da
língua solta da tia, a forma como havia sido tratada na frente de todos o
incomodara. O Imperador, por sua vez, pigarreou e voltou a falar sobre o
festival, não antes de lançar um último olhar para os jovens, no instante
exato em que suas mãos se esbarraram sob a mesa. Elas se entrelaçaram por
um breve momento, mas logo se afastaram. Aquela sucinta atitude,
contudo, foi suficiente para que a sensação do toque um do outro
permanecesse em suas peles, durante toda a manhã.

⚜⚜⚜

Durante a tarde, Karen resolveu ir até o jardim. Ela embalara sua


Bíblia em um papel de seda a fim de levá-la até lá. Para sua surpresa,
todavia, ao aproximar-se da muralha, notou a presença robusta de Sales,
que estava próximo à pequena porta, segurando consigo uma bolsa preta, no
formato de um instrumento musical.

− Oi − cumprimentou com sutileza, o que não foi suficiente para


deixar de surpreendê-lo.
− Ei − ele abriu um sorriso satisfeito ao vê-la e desviou os
olhos para sua mão. Aproximou-se e causou um alvoroço nos sentimen-

100 Camila Antunes


tos dela quando, pendurando a bolsa nos ombros, passou os braços ao seu redor,
apertando-a contra o corpo. Virando-se para seu rosto, lançou um beijo em sua
face.

Íntimo. Assustadoramente íntimo − os pensamentos de Karen


borbulharam diante daquela expressão de afeto com a qual não estava
acostumada. Nem mesmo do próprio irmão recebia aquele tipo de abraço.

− Eu preciso viver me lembrando do quanto vocês costumam ser


calorosos neste lugar. − O príncipe sorriu, hipnotizando-a. − Sales – continuou a
princesa. − O que faz aqui?

Com o olhar triste, ele admitiu que encarava a porta, tomando coragem
para entrar no lugar no qual compartilhara tantos momentos com a falecida mãe.

− Por que não fazemos isso juntos? − sugeriu ela, no que Sales deu
um passo para trás, incerto.

− Foi… foi só um pensamento bobo… na verdade eu… eu estava


indo a outro lugar… − sua voz era falha, um tanto sôfrega, e fazia o coração de
Karen apertar-se. − Além disso, eu tinha uma chave da qual me desfiz.

De dentro de um dos bolsos de seu vestido, Karen retirou a pequena


chave, abrindo sua mão para fazê-lo enxergá-la. Dessa forma, o príncipe soltou
um suspiro, embora não confiante, que confirmava sua aceitação em fazer o que
ela pedia.

− Vamos, vamos fazer de uma vez.

Ela entregou a chave a Sales, que a encaixou na velha fechadura,


hesitando a princípio. A princesa repousou a mão sobre a dele e abriu um sorriso,
incentivando-o a girá-la. Ele consentiu com a cabeça e, embora trêmulo,
finalmente o fez.

Karen foi a primeira a entrar, mas quando se voltou para trás, notou que o
Delfim estava paralisado na porta. Seus olhos, olhos cor-de-caramelo e
lacrimejados, varriam o lugar enquanto a garganta engolia em seco.

− Está… exatamente igual − as palavras finalmente saíram, quando ele


deu o primeiro passo para o interior do jardim. − Não

O Filho do Imperador 101


posso negar que Roque fez um bom trabalho mantendo isso aqui. Eles se
aproximaram do centro do lugar e sentaram-se na

mureta do grande chafariz. Antes que a princesa pudesse perguntar qualquer


coisa, ele abriu sua bolsa, retirando o instrumento.

− Eu havia me esquecido desse seu talento − comentou,


percebendo que ele reprimia a silhueta de um sorriso.

− Mas eu não me esqueci do seu. Lembro-me muito bem da sua bela


voz.

− Você é muito bondoso − comentou, enquanto ele posicionava


o violão em seu colo e o afinava.

− Que bom que pensa assim. Desse modo, não me negaria um


pedido, não é?

Brincando com o bordado de seu vestido com as pontas dos dedos,


ela inclinou levemente a cabeça para o lado, fazendo um pouco de charme.

− O que você quer desta vez?

− Quero que cante para mim.

− O quê? – gargalhou. − Minha nossa, Sales! O que eu cantaria? Com


um sorriso travesso, ele sacou um papel do bolso e entregou para ela, que o
desdobrou cuidadosamente.

− É uma coisa que encontrei em um dos livros.

− Ah, Sales! − seus olhos percorriam a folha, enquanto ele


tocava as primeiras notas − É lindo!

− Cante para mim − pediu, sua cabeça balançava sutilmente,


num compasso perfeitamente ritmado. − Para Ele…
− Sou a tempestade Você a calmaria

Ele puxou, mas logo calou-se para que a princesa desse


continuidade:

− Sou a escuridão, Você é o sol dos


meus dias

102 Camila Antunes


O suave som de sua voz fez Sales fechar os olhos.

Só o teu abraço

me faz sorrir.

Senhor, minha vida

depende de ti.

Naturalmente, as vozes de ambos se misturaram, perfeitamente divididas.


Sales permanecia com os olhos fechados e Karen mantinha os seus no papel,
eventualmente erguendo-os em direção ao jovem, a fim de espiá-lo.

Sou só um vaso

Estou tão trincado

Mas pode quebrar

Se é para tu remoldar

Se ainda sou digno de te sentir

Pegue em minha mão e me faça sorrir. 3

− Sales… Agora que sei que existe um Deus, que visivelmente se


interessa por nós, estive pensando… − ela parou por um momento,
envergonhada, ponderando se realmente deveria fazer aquela pergunta, mas por
fim prosseguiu. − Sendo Ele tão poderoso, não parece uma grande injustiça todo
sofrimento que há no mundo?

− Você não é a primeira pessoa a refletir sobre isso, Branca de


Neve… imagine só o que não se passa na cabeça das pessoas que não tem uma
vida como a nossa.

− Como assim? − ela se surpreendeu. − Você acha que a realeza e a


nobreza passam por menos sofrimentos que as demais pessoas?
Ele ergueu uma sobrancelha, antes de responder.

− Não sei quanto aos sofrimentos, mas… sem dúvidas por menos
dificuldades… − A princesa olhou para as próprias mãos, mas Sales ergueu seu
queixo com as pontas dos dedos. – Ei, sei o que está pensando… eu não estou
menosprezando sua dor pela perda dos seus pais.

3 ”Uma última música”, Ester Dias.

O Filho do Imperador 103


− Não vejo como isso pode fazer sentido, Sales… − agora ele
afagava sua bochecha, mas ela não o encarava.
− Ah, branquinha… pense bem… se você e seu irmão não
vivessem em um palácio… não dormissem em quartos seguros…
suficientemente separados de seus pais… se não tivessem seus próprios
talheres e pratos, provavelmente também não estariam aqui. Veja a minha
mãe… − Karen ergueu os olhos para ele. − Ela e meu pai não dividiam o
mesmo quarto… eles pouco contato tinham, ao ponto de que, quando
descobrimos a doença… não era tarde para ele.

− E quanto a você e seu irmão?

− Ah, nós éramos próximos dela. − Ele olhou em volta,


fazendo uma pausa. − Papai diz que foi um milagre − curiosamente, seus
olhos reluziam. − Você pode acreditar que essas palavras saíram da boca
dele?

− Não… − ela repousou a mão sobre a sua. − Não consigo


imaginar, mesmo.
− Sobre a sua pergunta inicial – continuou. − Os sofrimentos
do mundo não estavam nos planos de Deus. Somos nós que repetidamente
os causamos. Os homens estão cegos, vivendo suas vidas egoistamente.

De repente, a princesa deu-se conta do que conhecer as palavras da


Bíblia significava.
− Minha nossa, Sales! Isso confere a nós uma grande
responsabilidade. − Ele confirmou com a cabeça, entendendo perfeitamente
o que ela quis dizer.

− Sim, porque conhecemos a verdade. E quando a conhecemos,


Karen, tudo simplesmente se transforma. A compreensão da verdadeira
felicidade, e principalmente de uma vida eterna, muda os pensamentos.
Nossa perspectiva dos sofrimentos deste mundo se transforma diante do
entendimento da vida eterna. O que são os anos que vivemos perto da
eternidade?

Aquecido, o coração dela não conseguiu evitar expressar como se


sentia. Ela tocou em seu rosto, antes de admitir aquilo que há algum tempo
concluíra:
− Ah, meu querido! Você será um grande imperador!

104 Camila Antunes


Sales fechou os olhos ao calor do seu toque e resolveu apreciar a
sensação durante alguns segundos, antes de abri-los outra vez.

− Com a ajuda de Deus.

− Com a ajuda de Deus.

Depois de minutos em silêncio, minutos de olhares trocados, o príncipe


passou a mão por seus ombros. Com seus fortes braços, puxou-a contra si e
descansou a testa na sua. Repousou o violão ao seu lado e com a ponta dos dedos
tocou o pingente da pulseira com a qual a presenteara. Os dois observaram seus
dedos brincarem com a esmeralda por alguns minutos, até que Karen ergueu o
queixo pontudo na direção de seu rosto.

− Ei − ele sussurrou, encontrando seus olhos.

− Ei.

Soltando um suspiro, o jovem aproximou o rosto do dela, de modo que


poucos centímetros os separavam. O aroma que sentiam era o da pele um do
outro, apesar de todo o perfume das flores à sua volta. Era como se nenhuma das
coisas ao seu redor estivesse lá de fato. Todas as coisas desapareceram enquanto
eles estavam nos braços um do outro. Tudo que sentiam era a presença do outro.
O calor do outro. A súplica no olhar do outro. Foi assim, sem mais nem menos,
sem darem-se conta de quem tomara a iniciativa, que seus lábios se encontraram.
Eles simplesmente se fundiram, suavemente. Primeiro fechados, e todas as
sensações do mundo explodiram em seus corações. Depois se abriram um pouco,
e Sales levou as mãos aos cabelos dela. Maior do que o carinho que sentia, era o
desejo sobre-humano de torná-la a pessoa mais importante de sua vida. De beijá-
la do jeito certo. Com o coração em chamas, ele se afastou com suavidade,
depositando pequenos beijos, carícias mais espaçadas, à medida que iam
cessando.

Ela abriu um sorriso, antes de sussurrar:

− O que estamos fazendo?

− Provavelmente – respondeu, rouco, embora tão suave quanto,


repousando a testa na sua. – Metendo-nos em encrenca.
O sorriso da princesa se manteve, todavia, não por muito tempo.
Ouviram alguém pigarrear e abruptamente se afastaram. Assim

O Filho do Imperador 105


que se viraram na direção do som, sem imaginar quem pudesse estar ali,
depararam-se com o rei de Vera Cruz.

Kilian estava acompanhado de Portos. Ele parecia assustado, os


olhos arregalados, e abriu a boca para dizer alguma coisa, mas as palavras
não saíram. E assim permaneceu o rei por intermináveis e aflitivos
segundos.

− Acho melhor virem comigo − disse, por fim.

Algo se embrulhou no estômago de Karen. Ela conhecia o irmão e


reconhecia seu olhar obscuro, que nunca vinha acompanha-do de boas
notícias.

Sales se levantou imediatamente.

− Kilian. Eu te devo uma explicação, mas por favor, não


entenda errado.

O olhar do jovem rei vagava entre os dois, e sua expressão era de


dor e confusão. Ele engolia em seco, gélido. Karen estava mais certa do que
nunca: algo estava errado.

− Meu irmão − perguntou, levantando-se e indo até ele. − O que


aconteceu?

Virando-se para Sales, Kilian fitou-o nos olhos, e achou por bem ser
direto.

− Trago notícias do seu irmão.


DOZE
O destino infausto

Esquecendo-se do instrumento que estava apoiado em sua perna e até


mesmo da companhia de Karen, Sales rompeu para fora do jardim após as
notícias de Kilian. A princesa, o rei e seu guarda o seguiram com cautela, metros
atrás da vantagem que ele abrira, observando as passadas longas e angustiadas
que dava em direção ao castelo.

Ao adentrar o salão principal, deparou-se com a família reunida. Lorde


Fausto afagava as costas de Dom Fernão que, sentado em uma poltrona, tinha a
cabeça apoiada nas mãos. Todos os olhares se ergueram para Sales quando ele
surgiu no ambiente.

– Onde ele está? – perguntou, o olhar atônito entregava o temor que


sentia.

O pai levantou os olhos vermelhos para ele, uma visão que lhe causou a
sensação de ter levado um soco na boca do estômago.

O Imperador havia chorado.

– Meu pai – Sales engoliu em seco, antes de repetir a pergunta. Uma


angustiante ânsia de vômito já começava a apoderar-se de seu corpo. – Onde ele
está?

– Ele está vivo, filho. Está em seu quarto agora. – O príncipe começara a
esboçar um sorriso de alívio, quando foi interrompido pelo pai. – Mas não está
bem. Nem acordado.

Sales soltou os ombros e virou-se para porta, percebendo que Karen e seu
irmão estavam ali, escutando cada palavra. Seus olhos encontraram os dela,
contudo imediatamente se desviaram para fixarem-se em um ponto qualquer.
Karen notou que ele apertava os dentes.
– Eu posso ir até lá? – perguntou, provavelmente para o pai, mas não
encarava nada além dos próprios pés.

O Filho do Imperador 107


O imperador confirmou, explicando que havia uma enfermeira no
quarto, a qual poderia dar a ele melhores detalhes sobre o que aconteceu.
Então se retirou, ensimesmado, sem olhar para a princesa novamente.

Ela passou os dedos pela saia no vestido, procurando alguma coisa


para dizer, quando sentiu a mão do irmão afagar seus cabelos.

– Vamos nos sentar, minha princesa. – Minha princesa. Kilian só a


chamava assim nos momentos mais difíceis para, ela tinha certeza, lembrá-
la do quanto era capaz de ser forte.

Sempre obediente ao seu comando, acomodou-se com ele em um


sofá, próximo à família de Dom Fernão. Todos os semblantes estavam
abatidos, mas ninguém se atrevia a falar sobre o que aconteceu. Parecendo
adivinhar sua angústia, Kilian sussurrou ao seu ouvido:

– Foi durante uma corrida. Houve um ataque da resistência.

– Ah! – Karen empertigou-se em seu assento.

A simples menção à resistência, fazia um calafrio tomar conta de


seu corpo. Tratava-se de um grupo radical que sequestrava e matava
qualquer pessoa que simpatizasse com o sistema estabelecido no pós-
guerra. Ela varreu os olhos pela sala e deparou-se com semblantes
aterrorizados. Todos ali tinham linhagem nobre ou real e todos eram
potenciais alvos da resistência, que odiava os impérios, as monarquias, a
nobreza e tudo o que eles representavam. Todos, exceto uma pessoa. Portos,
o guarda, que apoiado no umbral da sala, mantinha sua habitual expressão
obscura. A princesa sacudiu a cabeça para afastar dos pensamentos a ideia
de que havia um sorriso escondido naqueles lábios.

– Eles estavam armados, alguns entre os guardas – ela resistiu voltar


os olhos para Portos mais uma vez. – E entraram atirando.

– Ah, Roque! – seus olhos se encheram de lágrimas e ela


imediatamente passou a culpar-se pelo ressentimento que guardara dele
durante esses dias. Aquilo agora parecia não significar nada.

– Ele foi atingido. Primeiro no braço, depois nas costas, o que o fez
cair do animal no qual estava montado. Ei… – ele a entregou seu lenço,
tomando-a pela mão. – As balas foram removidas. Ele vai ficar bem.

108 Camila Antunes


– Você acha, meu irmão? Kilian engoliu em seco.
– Estamos esperançosos que sim.

⚜⚜⚜

Apenas um andar acima de onde estavam, Sales adentrara o quarto no


qual seu irmão caçula se encontrava desacordado. Uma senhora vestida de
branco separava alguns medicamentos.

– Vossa Alteza – Ela prontamente curvou-se ao vê-lo se aproximar da


porta entreaberta.
– Por favor, fique à vontade − disse, com a voz fraca, enquanto fitava a
imagem de seu irmão, desacordado sobre a própria cama.
– Todos os nossos corações estão apertados, meu senhor. Mas ele está
estável… e temos esperança.
Sales a fitou com pesar, mas – ela poderia jurar – havia paz em seu
semblante.
– Obrigado – sussurrou, com gentileza, antes de se aproximar do leito. O
príncipe levou a mão até a testa do irmão e a sensação de sua pele quente trouxe
outra dose de ânimo ao seu coração. – É bom que continue assim, infante . 4

– Vou deixá-los a sós – a enfermeira anunciou, derretida por aquela


demonstração fraterna de carinho. Sales consentiu e encostou a porta após sua
saída. Aproximando-se novamente da cama, ajoelhou-se. Com as mãos sobre a
cabeça de Roque, fechou os olhos e, entre suas lágrimas pesadas, implorou ao
seu Deus pela vida do irmão.

– Um imperador nunca implora – uma voz fraca veio de cima de sua


cabeça, fazendo-o soltar uma lufada de ar e, inevitavelmente, abrir um sorriso.
– Ah, meu Deus! – ele levantou e foi até a porta gritando pela enfermeira
que apareceu em poucos segundos. Sales a ordenou que avisasse ao imperador e
ao médico de plantão sobre o estado de Roque.

4 Filho do rei, mas não o herdeiro do trono (Portugal, Espanha e Império de Lima).

O Filho do Imperador 109


– Sales, espera – ele tentou pedir, mas a mulher já havia
desaparecido.

– Não fale, moleque. Não sabemos como você deve se comportar.


Acho que eu deveria ter chamado o doutor Noronha, em vez de pedir por
qualquer um.

– Eu sou perfeitamente capaz de falar.

– Você se lembra do que aconteceu?

– Lembro-me muito bem, embora não seja capaz de explicar.


Acredito que seja coisa da resistência.

Suas palavras deixaram o irmão estático. Só naquele momento ele


se deu conta de que sequer se perguntara o que havia acontecido com
Roque. Se isso fosse verdade, se fora coisa da resistência, então eles tinham
um problema. Nenhum ataque rebelde havia atingido diretamente a família
Imperial de Lima antes.

– E-eu… não sei dizer… acabei de saber.

– Onde está minha querida?

– O quê? – ele acordou de seus pensamentos.

– Karen. Onde ela está?

Algo se revirou no estômago de Sales ao som dessa pergunta. Ainda


podia sentir o gosto dos lábios de Karen em sua boca, mas não podia causar
ao irmão mais essa dor. Contaria sobre seus sentimentos. É claro que
contaria. Mas aquela não era a hora. Haveria outra oportunidade.

– Ah, ela! – fingiu desdém. – Está na sala. Está preocupada com


você. – Apesar de não fazer ideia de como a princesa estava se sentindo, ele
queria acreditar que era desta forma.

– Não a deixe entrar.


– O… o quê? Por quê?

– Quero ver o médico antes – disse, e engoliu em seco, respirando


pesadamente. – Não me sinto completamente bem.

– O que você tem? – Sales se inclinou sobre ele, o cenho franzido de


preocupação.

– Não enlouqueça – advertiu. – Mas não posso sentir minhas pernas.

110 Camila Antunes


O Delfim esticou as mãos e, com os dedos, agarrou o lençol que o cobria.
Em um só movimento, o arrancou do corpo do irmão para examinar seu aspecto.

– Tente movê-las.

– Sales – o irmão o fitava. Ele podia notar a dor em seu semblante. – Eu


já tentei. Simplesmente não obedecem.

– Vou chamar o médico – anunciou, avançando para porta.

– Você já fez isso, meu irmão – Roque tentou manter a calma.

– Fale-me sobre Karen. – Implorou, fazendo-o estacionar. De costas, Sales


esboçou uma careta que o irmão não podia ver.

– O que tem ela?

– Eu recebi uma estranha correspondência de Ana Júlia durante a


competição, pedindo-me para entrar em contato com ela o quanto antes, porque
pode ter passado a impressão errada sobre mim à minha futura esposa. Você sabe
do que se trata?

Voltando-se para ele, Sales engoliu em seco.

– Tem certeza de que quer falar sobre isso agora?

– Ora, certeza absoluta! Isso tem tirado meu sono. – ele se conteve. –
Exceto, obviamente, por esse último que tive em excesso. Se sabe do que se
trata, fale de uma vez!

– Bem… – soltando um suspiro e se acomodando no assento ao lado da


cama, o herdeiro iniciou a explicação. – Nossa prima deixou escapar algo sobre
suas antigas atividades no jardim…

– Ah, não!

– Roque, você deveria ter suposto que ela acabaria descobrindo quais
eram suas reais intenções…
– Do que está falando, Sales? Eu a amo. – Ele tentou se levantar, mas
tudo o que conseguia era elevar um pouco o tronco, apoiando o braço sem
ferimento contra a cama. – Eu a amo e não tinha intenções levianas com ela.
Como você pôde ter pensado isso quando a pedi que se tornasse minha esposa?

O irmão se mexeu nervosamente.

– Por favor, fique parado até o médico chegar. Eu tenho… tenho certeza
de que ela vai entender, Roque. Sabe como as mulheres

O Filho do Imperador 111


podem ter a mania irritante de sentirem ciúmes de um passado que não
podemos mudar.
– Não, Sales! Mas que droga! – ele levou uma mão à testa,
pressionando os olhos com força. Aparentava estar irritado consigo mesmo.
– Karen não é assim – o Delfim sabia disso. – Eu disse a ela que era a única
que eu tinha levado até lá.
– Por que você faria isso?

– Porque sou um idiota! E queria que ela se apaixonasse por mim


também.
– Filho – a voz de Dom Fernão evitou que o herdeiro continuasse
aquela conversa que tanto o angustiava. Ele adentrou o recinto,
acompanhado do doutor Noronha e avançou em Roque para abraçá-lo.
Puxou-o para si com força, e afundou-o em seus braços. Até mesmo o
caçula ficou surpreso com o aperto daquele abraço.

– Ah, meu filho! Que alegria te ver acordado. O doutor Noronha irá
examiná-lo e logo depois seu tio quer te ver. Peço que me perdoe por deixar
sua noiva por último.
– Ela não é minha noiva ainda, mas… não há problema. Fico feliz
que eu possa ficar a sós com ela sem ter que me preocupar com o tempo.
Mas deixe-me conversar sozinho com o doutor Noronha por um tempo,
meu pai. Depois ficarei mais confortável para receber a atenção de vocês.

Depois de muita relutância, Sales conseguiu tirar o Imperador do


quarto para que Roque pudesse entender o que acontecia com seu corpo. Os
dois esperaram ao lado de fora, consolando um ao outro, até que o médico
sinalizou para que entrassem.

⚜⚜⚜

Os dois únicos integrantes da família real de Vera Cruz aguardavam


para visitar o príncipe, ao lado de fora de seu quarto. O médico já os havia
informado sobre o estado de Roque e disse que tinha informações
inconclusivas sobre a gravidade de sua condição. Sales

112 Camila Antunes


e o pai se retiraram com ele, bem como o grão-duque e sua esposa.

Só havia Ana Julia no quarto de Roque, além de vozes alteradas.

Eles ouviram um barulho anunciando que alguém abria a porta. Assim


que Julia passou por ela, lançou um olhar para Karen.

A princesa e o rei entraram, entretanto por mais que tivessem se


concentrado em manter uma boa postura diante de qualquer que fosse a situação
que encontrariam, jamais estariam preparados para aquilo.

− Minha princesa! Perdoe-me, por favor! − Assim que o infante


bateu os olhos nela, lágrimas escorreram por seu rosto. − Eu não te levei até lá
com segundas intenções!

Karen estava parada. Mais precisamente, petrificada. Kilian passou ao


seu lado, lançando-lhe um olhar de estranheza e foi até Roque, tocando-lhe o
peito.

− Ei, meu rapaz − cumprimentou, surpreendendo a irmã com aquela


irreverência. − Você está bem?

− Kilian, eu preciso que a sua irmã acredite em mim. Diga a ela.

− Vou deixar vocês conversarem e você mesmo pode fazer isso, está
bem?

Ele concordou com a cabeça.

− Mas eu espero − o rei continuou, contraindo o maxilar − espero


que esteja falando a verdade… e caso não esteja, é melhor que se sinta bastante
arrependido.

− Jamais. Eu jamais faria isso com ela. Tem a minha palavra.

− Que bom. Não minta para minha irmã outra vez. Isso é um aviso
− ele se virou e desejou melhoras, antes de andar de volta até Karen. Lançou-lhe
um beijo demorado na testa e finalmente se retirou.
Karen se aproximou, pedindo que o príncipe se calasse.

− Você precisa descansar, Roque − conseguiu dizer, engolindo em


seco. − Não entendo porque Julia foi tocar nesse assunto agora.

− Eu não conseguirei descansar sem saber que acredita em


mim. Ela se inclinou sobre ele e seus braços o envolveram em um

abraço.

− Karen eu… − disse, controlando a respiração. − Eu espero que entenda


que não te obrigarei a casar-se com um inválido. Eu ja-

O Filho do Imperador 113


mais faria isso com você. Mas por favor, não dispense ódio a mim.

Sua decepção seria meu maior castigo.

− Ei, não pense nisso. Que tipo de pessoa eu seria se


abandonasse você agora?
− Não quero que fique comigo por obrigação, Karen. − Por mais que
quisesse agradecê-lo por aquelas palavras, virar-se de costas e sair por
aquela porta diretamente para os braços do irmão dele, Karen tinha plena
consciência do quanto isso seria cruel. Roque já perdeu tanto e a própria
reação de Sales deixava bastante claro que não a colocaria acima dele em
sua vida.

− Roque, nós já tínhamos um compromisso. Isso aconteceu agora,


mas poderia ter sido depois. Poderíamos estar casados. Acharia certo que eu
abandonasse você?
− Não é a mesma coisa. Além disso, você não pode abandonar
quem se recusa a receber o seu amor.
− Pois então, eu recuso a sua recusa.

Ele fechou os olhos, como se aquelas palavras lhe trouxessem

alívio.

− Mas ouça com atenção.

− Sim?

− Jamais, em hipótese alguma, minta para mim outra vez. Ele


abriu um breve sorriso.
− Ah, minha princesa! Jamais foi minha intenção enganá-la e
isso acabou sendo justamente o que fiz. Eu, porém, juro pela minha
miserável vida que isso jamais se repetirá.
Com um sorriso morno, ela levou a mão aos cabelos dele, que
estavam maiores do que o convencional. Nem mesmo nos cabelos, ele tinha
a masculinidade do irmão. Os seus eram mais macios, não tão crespos.
Karen deslizou os dedos ali durante longos minutos, tentando lhe trazer um
pouco de conforto.
Meneando a cabeça, ela tentou afastar esses pensamentos. Assim,
percebeu a voz do noivo − era isso que seriam daqui para frente − que já
falava, sem que ela percebesse.

114 Camila Antunes


− Eu poderia até mesmo viver desse jeito, se todas as noites
recebesse seu doce toque.

Um peso se formou no coração de Karen, mas ela segurou as lágrimas


que queriam brotar nos seus olhos. “A percepção dos sofrimentos se
transforma”, mentalizou.
TREZE
Uma nova hóspede

O gélido metal da cadeira de Roque fazia um som cortante por onde


passava. Ele ecoava pelo salão de visitas do castelo, que agora estava
sempre cheio. Nos dias que seguiram o acidente, o palácio não parava de
receber visitas. Toda a nobreza do império estava presente ali, incluindo
alguns rostos conhecidos, para a surpresa de Karen.

O primeiro grande susto aconteceu quando uma criança muito bem


vestida puxou a barra de seu vestido, enquanto ela conversava com a
enfermeira de Roque no saguão. Ela encarou o menino por vários segundos
tentando entender os motivos pelos quais conhecia seu rosto. Não demorou
muito para que sua memória voltasse à clareira e a deixasse completamente
consternada enquanto procurava o significado daquilo. A mãe do menino
veio ao seu encontro para pedir que se comportasse e Karen ergueu os olhos
para surpreender-se ao encontrar os de Acácia.

– Vossa Alteza! Perdoe-me pelos maus modos de Miguel – pediu,


com doçura.

Miguel? Como era possível que…

E foi assim que ela entendeu que aqueles camponeses não eram
camponeses de verdade. Bráulio, o pregador, se uniu à esposa e ao filho,
vindo cumprimentá-la.

– Alteza – curvou-se, em reverência. – Creio que não fomos


apresentados.

A princesa examinou seu uniforme, segurando o impulso de seu


queixo, que teimava em tentar cair.

– Lorde Comandante da Guarda Imperial! É um prazer finalmente


conhecê-lo.
116 Camila Antunes
Ele abriu um sorriso terno, bem diferente do que se esperava de um
Lorde Comandante, antes de se retirar e deixou a princesa atordoada com os
próprios pensamentos. Ela deveria estar concentrada em Roque, mas tudo o que
conseguia pensar era na proximidade de Sales com aquelas pessoas, nos riscos
que corriam e em quantas mais delas existiam. Que todos eram nobres ela, para
sua insegurança, descobriria em breve.

Com pesar, a moça observava o príncipe herdeiro do outro lado do


cômodo. Ele estava com os olhos fixos nos seus, segurando uma taça de
champanhe quando uma jovem tocou-lhe o braço. Karen desviou o olhar dos
olhos dele para o rosto da recém-chegada e imediatamente percebeu que se
tratava de Perla.

– É a filha do Barão da Encosta Nortenha – a voz de Roque surgiu ao seu


lado. – Acho que em vez de me cumprimentar ela achou que seria mais
adequado consolar meu irmão primeiro – sorriu por um breve momento.

Apoiando a mão em seu ombro, a princesa se inclinou, depositando um


breve beijo na bochecha. Deu um sorriso amarelo para que não revelasse seus
pensamentos, mas a verdade era que saber do título de Perla gerava nela uma
espécie de comichão incômoda, uma perturbação física que a acometia
profundamente. Saber que ela era uma esposa viável para Sales, ainda que,
naquele momento, estivesse mais claro do que a luz do sol que não havia a
menor possibilidade de que os dois ficassem juntos, já que Sales, nobre como
era, jamais agregaria outra dor ao sofrimento do irmão. Ela mesma não gostaria
de fazer isso.

– Como está se sentindo nesta manhã?

– Após uma semana paralisado? – perguntou, soltando um suspiro de


arrependimento imediato pela rispidez de suas palavras. Palavras ríspidas
estavam, inclusive, cada vez mais frequentes em seu vocabulário durante essa
semana, o que Karen entendia perfeitamente. Não poderia ser fácil para um
príncipe tão ativo ter, de uma hora para a outra, que viver de um jeito tão
limitado. Percebendo que a deixou sem jeito, ele se compadeceu e acabou
amolecendo. –
O Filho do Imperador 117
Sentindo-me grato pela sua companhia, basicamente. Todo o resto não
importa – olhou em volta. – É na verdade um pouco maçante.

– Você quer sair daqui? – sugeriu, travessa, e gostou de perceber a


faísca de ânimo que sua pergunta acendeu em Roque.

– Acompanhado por você? Com toda a certeza.

A princesa se posicionou atrás dele, para empurrar sua cadeira, mas


o ouviu resmungar por alguma coisa.

– Mas que droga!

Sua perna direita escorregou da cadeira ao movimento de Karen, de


modo que ela precisou posicionar-se de frente para ele, a fim de consertá-la.
Infelizmente, o lamento do príncipe foi alto o suficiente para que todos os
olhares compadecidos dos convidados se voltassem na direção dos dois.

– Deixe que eu faça isso, Alteza – interveio a enfermeira.

– Não, Silvia. Tudo bem – sinalizou, já ajoelhada sobre o próprio


vestido. – Eu faço.

– Ah, Karen! Quão horrível é ter que se ajoelhar para cuidar de um


cadeirante com o qual está comprometida a se casar? – Roque sussurrou,
desgostoso.

– Se o cadeirante em questão for um jovem e belo príncipe, não


muito – e com isso ela o fez soltar uma gargalhada sonora, pela primeira
vez desde que tudo aconteceu. Erguendo os olhos, a princesa encontrou os
de Sales, que comprimia os lábios, em agradecimento.

– Ah, minha querida! – o infante sussurrou, desfazendo o sorriso. –


Como eu tenho sorte por ter você.

⚜⚜⚜

– Agora que estamos nesta sacada – Karen comentou, enquanto


observava o horizonte. Os dois sentiam a brisa fresca da noite amazônica
lhes tocar a pele. Esse era um dos poucos momentos do dia em que se podia
encontrar prazer em sentir o clima natural da cidade. Muitas árvores
frondosas cercavam o local, tornando-o ainda mais fresco e úmido e um
aroma característico recendia da

118 Camila Antunes


vegetação – estou pensando se vir até aqui e abandonar as pessoas que
vieram visitá-lo tenha sido uma ideia educada.

Ele sorriu, com deboche.

– A última coisa com a qual tenho me importado é com a boa


educação.

Apoiando as costas em uma suntuosa coluna, ela o encarou,


cerrando os olhos brincalhões.

– O quê? – ele indagou.

– Não parece do seu feitio ignorar os bons modos.

Passando o dedo sobre um botão no braço de sua cadeira, o príncipe


se aproximou dela.

– As situações nos transformam, não é mesmo?

– Você acredita mesmo nisso? – ponderou, aceitando a mão que ele


estendia para ela. – Digo, que uma pessoa realmente pode mudar?

– Talvez. Não sei bem no que acredito sobre todas as pessoas do


mundo, mas sei de uma coisa. Algo está diferente em mim. Algo além da
minha óbvia limitação física.

Karen assustou-se quando, num só movimento, Roque puxou seu


corpo para si. Ela tentou manter o equilíbrio, mas era tarde demais. Já
estava sentada em seu colo, sem conseguir conter o riso.

– O que está fazendo? – perguntou, entre gargalhadas, apoiando-se


em seus ombros. Ele, porém, mantinha-se sério e seus olhos pareciam
concentrados em admirá-la de perto. – Roque! Está me constrangendo.

– Não deveria ficar constrangida por ser desejada pelo homem que
tanto te ama.

Estava ficando pior, sua pele começava a dar indícios da vergonha


que sentia.

– Aquele dia no jardim, quando quase nos beijamos e eu logo fui


embora, só fez com que eu te desejasse ainda mais.

– Ah, eu não estava pronta, Roque…

– Não, não estava – ele acariciava seu rosto e cabelos com uma
mão, enquanto a outra envolvia sua cintura. – Quero que se sinta

à vontade comigo. Você será minha esposa, Karen. – Ela soltou um

O Filho do Imperador 119


suspiro. Ele tinha razão. – Diga-me, minha princesa, você foi ao nosso
jardim enquanto estive fora?

Essa pergunta fez com que ela congelasse. Imagens de Sales


tocando violão e o som da música que cantaram juntos surgiram em sua
cabeça. Ela passou as mãos sobre os lábios e lembrou-se do beijo que
recebera do Delfim.

– Sim – respondeu, afinal. – Sim, eu estive no jardim. Ele sorriu.


– Espero que tenha se lembrado de mim. É lá que quero beijá-la pela
primeira vez.
– Não – ela disse, fazendo-se de ofendida, quando na verdade, tudo
o que desejava era manter a lembrança de seu primeiro beijo inviolada. –
Não me peça isso quando sei que você levou outras garotas até lá com o
mesmo objetivo.

De repente Roque sentiu-se um tolo. Que ideia brilhante ele tivera!


A de trazer à tona esse doloroso assunto.
– Ah, minha querida! Não tem que sentir ciúmes. Nenhuma mulher
jamais causou ao meu coração os sentimentos que você provoca.
Esticando o corpo para frente, ele aproximou o rosto do dela, que
prendeu a respiração, tentando controlar o nervosismo que a acometia. O
rosto de Roque ficava mais e mais perto e seus olhos estavam fechados.
Karen tinha consciência que não ficaria bem fugir de seu beijo agora, de
modo que se convenceu a recebê-lo. Quando os lábios dele roçaram os seus,
um pigarro fez com que seus rostos afastassem, embora ela tenha
permanecido sentada onde estava.

– Sales – o irmão cumprimentou, sem disfarçar o desagrado na voz.


– O que deseja?
Karen tentou se levantar mas sentiu a mão do príncipe pesar em seu
quadril. Ele queria que ela continuasse exatamente onde estava. Quando
finalmente conseguiu reunir coragem para encarar o homem a quem
verdadeiramente amava, percebeu que ele estava decidido a ignorá-la. Seus
olhos estavam voltados diretamente para Roque, como se ele estivesse
sozinho no ambiente.

– Lady Perla está aqui para falar com você. Gostaria que de-
monstrasse bons modos.
120 Camila Antunes
– Lady Perla? – sentindo-se seguro, ele afrouxou a mão que
aprisionava a princesa e ela aproveitou para escapar de seu colo. – Por
favor, peça que entre.
Assim que Sales sinalizou, Perla adentrou o ambiente com sua irmã
Marisa e fez uma breve reverência para o príncipe. Para Karen, as duas
abriram um breve sorriso, sendo o da primeira, consideravelmente mais
ligeiro que o da segunda.
– Vossa alteza – Perla iniciou. – Vim trazer-lhe a notícia de uma
combinação de nossos pais.
Roque franzia o cenho, sem entender, enquanto Sales encarava
qualquer coisa que não fosse Karen, até o momento em que cravou os olhos
em seu vestido amarrotado. Sem jeito, ela passou a mão sobre o amassado
da saia e, mais uma vez, o Delfim desviou o rosto.

– Como Vossa alteza deve saber, eu servi à Guarda Imperial com


Oscar e seu irmão – ela virou-se para Sales e abriu um sorriso, ao qual ele
respondeu em cumplicidade. – Nesse período desenvolvi habilidades em
enfermagem e fisioterapia, e fui diplomada em ambas as áreas. Sendo
assim, minha família e eu decidimos colocar essas habilidades à sua
disposição.

– Minha nossa, Lady Perla. Eu fico muito grato, mas isso não

é preciso.

– Eu faço questão, Vossa Alteza. Além disso, soubemos que a


enfermeira que tem te acompanhado tem uma família para cuidar e não
poderia te dispensar atenção integral por muito tempo.
– E é o que a senhorita fará? Dispensará atenção integral a

mim?

– Essa é a ideia – afirmou.

– Então você morará aqui? – Karen perguntou, gerando uma


tempestade de olhares sobre ela, entretanto, ela apenas se concentrava no de
Sales. Em seus olhos, procurava por algum sinal que entregasse o que ele
pensava sobre isso, mas o príncipe herdeiro estava completamente
indecifrável. – Vai se mudar para o castelo?
O Filho do Imperador 121
– Durante um tempo, sim – afirmou, desconcertada. E voltou-se
para a princesa. – Mas prometo desaparecer quando precisarem ficar a sós.

O sorriso amarelo de Karen foi sua tentativa de disfarçar o fato de


que companhia de Perla a Roque era, em toda aquela armação, o que menos
a preocupava.
CATORZE
Uma linha tênue entre o amor e o perigo

Quando ouviu a proposta de Perla, uma amiga a quem Sales queria tão
bem, o Delfim começou a sugerir ideias para que o Barão da Encosta permitisse
sua estadia no castelo.

– Não sei, Alteza. Nós vamos ficar durante todo o verão. Minha ideia era
que Perla passasse as noites em nossa casa de férias e viesse ao castelo pelas
manhãs. Conhecemos o poder de alcance da boca do povo o suficiente para
considerarmos imprudente hospedar uma filha na casa de um príncipe solteiro.

– Não se preocupe com a reputação de Perla, meu amigo – Dom Fernão


interviu. – Ninguém ousará falar sobre ela enquanto estiver sob meu teto. Além
disso, Marisa poderia ficar também. Tendo em vista o compromisso de Roque, a
presença da irmã aqui servirá como um resguardo contra as más línguas.

Após ponderar por minutos, o pai concordou com a oferta, e Sales,


oferecendo os braços às amigas, se empenhou em procurar o irmão,
acompanhado pelas duas, para contar-lhe a novidade.

Um dos guardas informou que ele tinha ido à sacada, acompanhado de


Karen, de modo que os três atravessaram o salão de visitas até se aproximarem
do local. No entanto, a fina cortina de organza que separava os dois ambientes,
fora empurrada de leve, dançante, em decorrência da brisa que investia contra
ela, revelando a cena de

O Filho do Imperador 123


uma princesa aos risos, no colo de seu irmão. A tiara em sua cabeça reluzia,
apesar da fraca iluminação do local, em sincronia com a pequena esmeralda
pendente na corrente em seu pulso, que envolvia o pescoço de Roque.

Sales sentiu o olhar de Perla sobre ele, quando a moça desprendeu o


braço do seu. Logo a irmã fez o mesmo, e as duas esperavam suas
orientações sobre como deveriam agir diante da cena que flagravam. Ele
levantou uma mão espalmada, sinalizando que o aguardassem ali.

Lentamente, seus pés o aproximavam dos dois. Enquanto percorria


esse caminho, ele observou o jovem príncipe envolvê-la pelos quadris e
aproximar o rosto do dela, conforme seu sorriso desaparecia. Sales podia
sentir o sangue fervendo sob suas veias. Uma revolta lhe invadia o peito.
Por aquele momento, pelas circunstâncias e por seus próprios sentimentos.
Ele entendia que não seria justo que o irmão fosse ainda mais ferido. Não
era o que ele desejava. Embora naquele momento, tudo o que conseguia
sentir era a vontade de afastar Karen daquele colo. Da situação que seu
sorriso insinuava apreciar tanto. Do beijo que estava prestes a receber, até
ele soltar um pigarro.

Roque não disfarçou a insatisfação pela interrupção de seu romance,


mas Sales não se sensibilizou. Ele se dirigiu diretamente ao irmão,
enquanto sentia o olhar de Karen o fulminando. Não podia controlar a raiva
que sentia dela. Era inacreditável que durante toda essa semana ele tivesse
sofrido com sua ausência, enquanto ela se divertia sem dificuldade.

Despejou a notícia sobre ele e pediu que Perla e Marisa se


aproximassem. Porém, o que mais o magoou, foi a noção da resistência de
Karen à hospedagem das irmãs.

Ela se atreve a sentir ciúmes.

– Prometo desaparecer quando vocês precisarem ficar a sós

– Perla tentou amenizar o clima esquisito que a reação de Karen causou e a


princesa abriu um sorriso, nada convincente, fazendo o ódio do Delfim
inflamar. Estava claro que aquilo não a consolava. Karen parecia
genuinamente incomodada com a companhia que Perla faria a Roque.
124 Camila Antunes
– Agora, pombinhos, vamos deixá-los à vontade.

Ele sorriu, em uma interpretação perfeita. Como se realmente estivesse


feliz pelos dois. Poderia jurar que um traço de dor faiscou nos olhos da princesa,
se não parecesse tão ridículo que ela fosse tão indecisa. Tomando Perla pelo
braço, retirou-se da sacada, e Marisa os seguiu.

Ele sentiu as mãos da filha do barão afagarem seu bíceps, o que o deixou
desconfortável. Bem diferente da sensação que teve há alguns dias na biblioteca,
quando Karen fez o mesmo. Cada minuto que se passava em que mais coisas o
faziam pensar nela, era um minuto que ele passava sentindo vontade de esmurrar
alguma coisa. Sua irritação era incomum, desenfreada, de uma maneira como
nunca antes sentira.

– Não é lindo? – Perla quebrou o silêncio.

– Perdão. O quê?

Ela falava em um tom que o fazia compreender que aquela era uma
repetição. Sales estava totalmente alheio às coisas que a moça falava.

– A forma como se amam. O jeito natural em que sorriam um para o


outro… o fato de Karen não ter desistido do seu irmão – explicou, com a pele
morena levemente corada. – Você já se imaginou algum dia amando alguém
assim?
Ele a encarou estupefato. O que Perla estava fazendo? Provocando-o?
Ela percebera sua irritação e decidiu tripudiar em seus sentimentos?

A moça o fitava de volta, cada vez mais rubra, aguardando sua resposta.
Seus cabelos negros estavam penteados para trás, a franja presa em um fino arco
de metal. Do arco em diante, um topete suave e muito bem arrumado se
formava, e as pontas dos fios muito lisos, terminavam em sua cintura. Os olhos
grandes e negros eram inquisitivos e sugeriam algo ao qual ele não poderia
decifrar. Sales não teria tolerância para qualquer que fosse o jogo dela, então
apenas tocou em sua mão, retirando-a do braço dele.

O Filho do Imperador 125


Perla encarava-o, surpresa e até, ele podia dizer, decepcionada,
enquanto ele lhe dava as costas.

– Tenha uma boa noite, senhorita.

⚜⚜⚜

Em seus aposentos, Sales dispensou o valete que já havia lhe


preparado o banho. Agradeceu secretamente pela água quente na banheira.
Apesar de não estar frio – como nunca era por ali – era relaxante o
suficiente para fazer desaparecer a dor que latejava em suas têmporas. Ele
abriu cada botão de seu uniforme branco e colocou-o num cabide. Depois,
levou as mãos até a barra da camisa de algodão que vestia por baixo da
farda, e a ergueu até a cabeça, lançando-a no chão, com furor. Sales
encarava seu reflexo no espelho. O futuro imperador. Seu peitoral, grande e
musculoso, subia e descia, sincronizado com o arfar de sua respiração. Seu
rosto era bem desenhado e, ele reconhecia, imponente. Mas por dentro, ah!
Por dentro ele se sentia em frangalhos. Nunca antes se sentira tão perdido.
Nunca antes ficara sem saber o que pedir a Deus.

Ele ergueu uma perna de cada vez, sentindo o calor da água aquecer
sua pele. Quando, enfim, deitou-se, fechou os olhos para apreciar aquela
rara sensação de paz em uma semana inteira. Aquele era o momento ideal
para traçar um plano que o ajudasse a reassumir o controle do seu coração.
E ele sabia, como sempre soubera, o quanto era importante para o império
que guardasse o coração.

⚜⚜⚜

Se existe uma coisa complicada em sempre ter um valete à sua


disposição é tornar-se incapaz de realizar tarefas básicas sozinho. Quando
finalizou o banho, Sales olhou ao redor, mas não encontrou toalha. Para
piorar, ele espiou pela porta do banheiro, e viu que deixara seu quarto
entreaberto para o corredor.

126 Camila Antunes


– Mas que droga! – resmungou sozinho. – Que raio de maneira usarei
para sair daqui?
O príncipe correu os olhos pelo recinto e avistou, em uma prateleira, um
calção de banho, o qual se apressou em vestir. Quando saiu da área do banheiro,
percebeu que a porta principal estava fechada.

– Mas como…

– Ah, meu Deus! – ouviu Karen gritar, da direção de sua cama, onde uma
toalha repousava, muito bem dobrada. As mãos cobriam os olhos e a pele
assumira um tom escarlate.

Ele olhou para os pés, que estavam ensopados, bem como o chão que
pisava.
– O que faz aqui? – perguntou, cruzando os braços. O Sales debochado
estava de volta, num passe de mágica. Rindo-se da invasão da princesa
comprometida. Embora por dentro seu coração estivesse vibrando por sua
presença. Como não recebeu resposta, deu um passo em sua direção.

– Não – advertiu, esticando uma das mãos em sua direção. O que só o fez
constatar que ela o espiava entre os dedos. – Não se aproxime. Você vai molhar
todo o lugar.

– Olhe para mim, Karen. Eu não estou nu. Estou com um traje público de
banho.
Aos poucos, ela cedeu, descobrindo os olhos. Tentou manter-se
concentrada no seu rosto, e não no forte peito descoberto.
– O que está fazendo aqui?

– Eu… eu não sei.

– Ah! Não sabe? – ele deu mais um passo, mas seu olhar não era o
mesmo que o de costume. – Seu noivo sabe que está nos aposentos do irmão
dele, Vossa Alteza?

– Não faça isso, Sales. Por favor. Acha que é fácil para mim reprimir os
sentimentos que tenho por você?
– Foi o que me pareceu esta noite – disse, dando outro passo, para
ensopar outro bloco de porcelanato. – Você não disfarçou os ciúmes pelos
cuidados de Perla ao meu irmão.

– Não seja tolo, Vossa Alteza. Não foi isso que me incomodou. – ele
estacionou, percebendo que agora ela o encarava. Segura.

O Filho do Imperador 127


Mandona. Com as mãos na cintura e o nariz empinado que tanto o atraíam.
Não havia maneira de aquilo ser mentira, nem por um momento. – E sim a
forma confortável como ela estava empoleirada em seu braço.

Um sentimento tão quente e confortável quanto imprudente tomou


conta do coração do príncipe e ele descruzou os braços que estavam sobre o
peito, fazendo os olhos de Karen estacionarem ali.

– Estou com frio – reclamou, encarando a toalha que repousava na


cama ao lado dela.

Passando as mãos pelo pedaço de pano, ela o jogou sobre ele, ciente
que deveria desviar o olhar, mas não o fez.

Seu peito nu era hipnotizante. Karen nunca vira um homem tão


pouco vestido antes. Os banhos de mar que tomava com Kilian, desde a
infância, certamente não contavam. Ele não era como seu irmão. Tampouco
o efeito que lhe causava. Sua forma atlética era evidenciada pela ausência
de pelos e sua pele, escura e uniforme, faziam qualquer outro tom parecer
completamente sem graça. Ele era um homem lindo e, naquele momento,
enquanto enxugava o corpo com a toalha que lhe passara, ela imaginou que
provavelmente fosse o mais lindo do mundo.

A princesa percebeu que não respirava, de modo que precisou soltar


o ar, de repente. Ele estava de frente para ela e seus olhos a fitavam
profundos. Aqueles olhos, como todas as outras coisas carameladas,
pareciam capazes de lhe propiciar um prazer intenso, se pudesse prová-los.
Ela não pôde evitar morder os lábios, movida por esse pensamento.

Sales se aproximou subitamente, esticando a mão para tocar em sua


boca e, sem pedir permissão, puxou seu lábio com o polegar, soltando-o dos
dentes. Ao sentir aquele toque, a princesa estremeceu por dentro. Seu
estômago foi acometido por um frio repentino. Ela insinuou que iria recuar
e por um segundo passou a impressão de que daria um passo para trás, mas
se conteve.

− Não faça isso − ele ordenou, aparentemente esquecendo-se de que


ela não era sua súdita.
128 Camila Antunes
− Nã-não fazer o que? − perguntou, sentindo-se imediatamente
envergonhada pela dificuldade com que as palavras saíram de sua boca.
− Morder os lábios − esclareceu, inexpressivo. − Não faça isso se
não quiser que eu perca completamente o controle.
Perder o controle? Ela mal podia acreditar que ele fosse capaz de dizer
aquelas palavras com tanta franqueza. Queria manter-se firme, inabalável, mas
estava genuinamente curiosa sobre que tipo de controle poderia fazê-lo perder
em circunstâncias tão perigosas.

Ele agora secava os cabelos, sem tirar dela seus olhos. Parecia provocá-
la, consciente do efeito que sua aparência causava sobre ela. Seu braço, erguido
daquela forma, evidenciava ainda mais a rigidez e a definição de seus músculos.
Assim era difícil concentrar-se. Ela fechou os olhos, tomando a coragem
necessária para fazer o que queria. Quando os abriu, passou os dentes sobre os
lábios mais uma vez, e cravou-os sobre eles, como se estivesse provando uma
fruta suculenta.

Sales paralisou-se imediatamente.

− Está brincando comigo? − perguntou, alarmado.

Karen não respondeu, apenas abriu um sorriso, com os cantos da boca,


mantendo o lábio inferior entre os dentes. A toalha branca que o príncipe erguia
foi arremessada com força ao chão, e as mãos que a seguravam, a tomaram
ferozmente pela cintura.
− Ah, não brinque comigo, Vossa Alteza – disse entredentes. − Não sabe
que sou um homem perigoso?

− Eu duvido − ela finalmente respondeu, em um sussurro. − Que você


ofereça a mim algum perigo real.

Seus olhos agora queimavam-se, simultaneamente. Karen segurava em


seus braços e, àquela altura, já não podiam disfarçar o que desejavam fazer.

− Você não faz ideia – sibilou, aproximando o rosto do dela. O


Delfim encostou sua boca no lábio que ela ainda a pouco

mordia, fazendo com que Karen sentisse um formigamento maravilhoso. De


leve, puxou-o para dentro dos seus e, após alguns segundos, o soltou no mesmo
ritmo suave. Ele afastou-se muito pouco, até que a ponta dos seus narizes se
tocassem e deixou escapar um sorriso de prazer, ao qual Karen retribuiu, com
carinho.

O Filho do Imperador 129


Sem pressa, levou sua mão até o rosto da moça e o afagou de leve,
estudando sua textura, enquanto ela, que havia passado os braços em volta
de seu pescoço, acariciava seus cabelos negros, levemente ásperos,
masculinos, deliciosos.

Os olhos de um, perderam-se nos do outro, e quando se lembraram


que nada os impedia – não naquele momento – outro beijo aconteceu. Desta
vez, não tão curto, mas igualmente suave. Sales usara os lábios para abrir
sua boca com delicadeza, segurando o queixo dela em auxílio, com o
cuidado de quem tocava em um objeto raro, precioso, delicado. Delicado
como ela era aos seus olhos: uma pérola nos braços de um brutamontes.

Ela, por sua vez, sentia-se como uma flor em estágio de botão:

jovem, desabrochando nas mãos de um habilidoso jardineiro.

− Ah, Karen − ele sussurrou, com a boca sobre a dela, como se


saboreasse os fonemas de seu nome. Enquanto provava o gosto dela,
desesperava-se em segredo, certo de que precisaria de mais, muito mais
daquilo em breve. Quanto mais ele pensava, mais a puxava para si,
prendendo-a com o braço que a envolvia. Quanto mais próximos eles
pareciam, intensificava-se sua necessidade pelo calor do corpo dela.

Karen se sentia entregue e deixava-se levar. As potenciais


consequências que aquele momento traria sequer passavam por sua cabeça.
Tudo o que ela pensava era em como o calor que surgira dentro de si, a
impulsionava para um lugar específico: os braços de Sales − e em como
aquele lugar era o mais delicioso do que qualquer outro em que jamais
esteve.

Quando o beijo finalmente cessou, os dois se afastaram com um


passo e, ficando um de frente para o outro, aguardaram que sua respiração e
seu ritmo cardíaco se normalizassem. Karen precisou abrir um pouco a boca
para respirar, e o peito de Sales subia e descia, cada vez mais devagar.
QUINZE
O dia depois do beijo

– Sales, nós não deveríamos… – Karen sussurrou, quando encontrou


algum fôlego.

– Não – ele a interrompeu. – Por favor, não diga nada. Vamos apenas nos
contentar em dormir com a lembrança deste momento.

Ela consentiu, embora no fundo se sentisse culpada. Sales passou a mão


por seu cabelo solto, cacheado sobre os ombros, como se ela estivesse se
aprontado para dormir. Só agora ele percebia que ela ainda usava o mesmo
vestido e sua mente se perdeu imaginando as coisas que a levaram até ali.

– Vamos descansar nossas cabeças em nossos travesseiros e fingir, só por


hoje, que tudo foi diferente na noite do seu aniversário. Que eu agi como um
homem decente e honrei o compromisso que meu pai fez com o seu. Que você
aceitou se tornar minha esposa e que isso que acaba de acontecer nada mais é do
que uma expressão de afeto de noivos que se amam perdidamente.

A moça abriu a boca para dizer alguma coisa. Talvez que o que ele
dissera fosse verdade. Talvez que realmente o amava perdidamente. Mas ele
pressionou o polegar nos seus lábios, que ainda estavam vermelhos do beijo, e
meneou negativamente a cabeça pedindo para que se calasse. Ela, mais uma vez,
consentiu.

– Boa noite, Sales.

– Boa noite, minha princesa.

Quando Karen saiu, ele se deitou sobre a cama, proibindo-se de imaginar


qualquer coisa diferente das palavras que acabara de proferir.

O Filho do Imperador 131


⚜⚜⚜

A princesa percorreu todo o caminho do corredor até seu quarto com


as mãos sobre o ventre, sentindo a umidade do corpo de Sales, que havia
sido transferida para o tecido que trajava. Alguns guardas de serviço a
olhavam de soslaio, mas nenhum deles se atreveu a perguntar o que havia
de errado. Quando voltou ao seu quarto, deparou-se com Ingrid, sentada ao
pé da cama, que roía as unhas de preocupação. Ela saltou sobre si mesma
assim que ouviu o ranger da maçaneta, e preparava-se para perguntar como
tudo havia sido, até que encontrou os olhos espavoridos de Sua Alteza Real.

Dando-se conta do que estava prestes a acontecer, Ingrid apressou-


se em sua direção e abriu os braços para recebê-la, envolvendo-a com
carinho. Karen, por sua vez, afundou-se em seu peito amigo – mais do que
qualquer outro – e permitiu-se chorar aos soluços.

Os dedos da dama emaranharam-se nos cabelos de sua princesa, que


com seu pranto, encharcava-lhe o vestido. Vê-la sentir toda essa dor e ao
menos conseguir compreender o motivo, a fazia sentir-se como uma inútil.

– Vossa Alteza, por favor, diga-me o que aconteceu! O Delfim


destratou a senhorita?

Não houve resposta, apenas mais soluços intermináveis.

– Quem ele pensa que é? Não tem autoridade sobre a senhorita! A


senhorita não é sua súdita! – disparou, descontrolada, tomada pela fúria em
ver sua princesa sentir-se tão frágil.

– Não, Ingrid, não – conseguiu dizer, entre as lágrimas – Ele foi


gentil e maravilhoso!

A dama de companhia ficou em completo estado de perplexidade.

– O que vocês fizeram?

– Ele me beijou. Nós nos beijamos, Ingrid! Mais de uma vez e… e


agora eu não sei o que fazer – um rio corrente escorria por suas bochechas.
– O que eu faço, Ingrid? Como vou viver sem ele, agora que o entreguei
meu coração?

132 Camila Antunes


– Ah, minha princesa! – Ingrid estacionou suas palavras. Ela não tinha o
que dizer. Não tinha experiência alguma no amor. Não conseguia mensurar a dor
do seu coração. Tudo que sentia era vontade de render-se ao choro que queria
brotar de seus olhos, e derramar todas aquelas lágrimas no lugar de sua princesa.
– Por favor, não fique assim.

As duas permaneceram juntas, engalfinhadas na cama, até que Karen


pegou no sono. Ela imaginou como era triste o fato de que a princesa não tinha
uma mãe para consolá-la e convenceu-se internamente a visitar a sua, assim que
voltassem para Salvaterra.

⚜⚜⚜

– Ah, papai, por favor! Não tem cabimento! Apenas dê o bendito


festival!
Estavam todos à mesa do café da manhã mais conturbado da semana.
Sales não apareceu, o que fez Karen remexer-se durante todo o tempo, como se
um alfinete a espetasse a cada cinco segundos. Kilian também estava ausente,
em uma chamada de vídeo com o duque Dumas, seu primo, que estava em
Salvaterra, regendo Vera Cruz. O rei precisava compensar sua ausência de
alguma forma, e essas reuniões com o primo estavam cada vez mais constantes.
Enquanto isso, Roque tentava convencer o imperador a continuar com os planos
do festival de verão. Depois de muita insistência, ele começava a dar indícios de
que poderia considerar a hipótese.

– Eu estou vivo, afinal! Que tenhamos ao menos um pouco de diversão.


Quero dar isso a Karen antes que ela vá embora, já que não estaremos juntos na
ocasião do meu aniversário – ele passou a mão em seu queixo, mas ela desviou o
rosto, envergonhada. Não conseguia encarálo, não depois do que havia
acontecido na noite anterior. Roque observou que Perla fora a única na mesa a
notar a reação arredia da princesa, e lançou para ela um sorriso amarelo, que a
fez enrubescer de imediato.

O Filho do Imperador 133


– Consinta, Fernão. Não seja tão turrão. Há algumas semanas você
estava tão empolgado – Lorde Fausto interviu. – Deixe o menino ter um
pouco de diversão.

O imperador soltou um suspiro pesado pelas narinas.

– Se é tão importante assim para você, meu filho, então faremos o


festival. Que seja – ele levou o garfo com um pedaço de seu croissant à
boca, e depois de engolir, resmungou: – Mas onde diabos se meteu o
Delfim? Até quando ele vai continuar desaparecendo desse jeito?

– Ele não está no quarto – Roque comentou – Eu passei por lá essa


manhã.
Karen preferiu não pensar sobre a sala das bíblias, preocupada que
alguém pudesse decifrar sua expressão e descobrir o esconderijo de Sales.
Sentiu o futuro noivo tocar-lhe a mão e o espiou com o canto dos olhos. Ele
levou a boca até seu ouvido para sussurrar algumas palavras.

– Precisamos conversar – afirmou, sem dar pista do teor do diálogo.


– Depois. A sós.
Gélida, ela confirmou com a cabeça. Seria possível que ele houvesse
descoberto sobre o acontecimento da noite anterior? Sales, certamente, não
falaria nada. Mas ela fora vista saindo dos aposentos do irmão dele,
molhada, em plena madrugada, por diversos guardas. Será possível que
algum deles se atreveria a trair o Delfim?

Ao fim do café da manhã, todos estavam para se retirarem da mesa


quando Sales e Oscar adentram a sala de refeições, às gargalha-das,
vestidos em trajes de montaria, com direito a botas enlameadas. O ruivo
corou ao perceber que tinham companhia, mas Sales não pareceu
constrangido.

– Bom dia – cumprimentou a todos, radiante. A princesa encontrou


um tempo para espiar o cenho franzido de Roque, enquanto empurrava sua
cadeira.

– Estamos de saída – o infante anunciou, seco e Karen empurrou a


cadeira do futuro noivo entre os dois amigos. Antes que deixassem o salão,
entretanto, o rapaz a quem Sales tinha como irmão cumprimentou a moça.
134 Camila Antunes
– Vossa Alteza Real.

– Bom dia, Oscar.

– Vocês já se conhecem? – Roque perguntou, intrigado. Ele não fez


questão de disfarçar o incômodo pela descontração no cumprimento de Karen. –
Como se conhecem?

Ela encarou os rapazes, de pé a sua frente, aproveitando-se da vantagem


que tinha por não poder ser vista por Roque, sem ter convicção se deveria ou não
falar a verdade. Oscar engoliu em seco, dando a ela a certeza que precisava para
saber que aquilo era um segredo que deveria ser guardado até mesmo dele.

– Um gato mordeu sua língua? Responda!

– Roque! – Dom Fernão advertiu. – Não se esqueça que está falando com
um oficial do meu exército e seu superior.

– Isso é ridículo – resmungou, cerrando os dentes, um hábito que tinha


em comum com o irmão. Karen apoiou a mão em seu ombro para acalmá-lo e
ele baixou os olhos, como se somente com aquele toque voltasse a se dar conta
de que ela estava presente ali.

– Não tem problema, Majestade, eu explico – respondeu, firme,


voltando-se para Roque. – Eu e a princesa nos conhecemos durante a sua
viagem. Estive com minha irmã no castelo e todos ficamos amigos.

– Claro. Com licença – disse, sem demonstrar remorso. Oscar apenas deu
um passo para o lado para abrir passagem. Karen o empurrou para fora dali,
sentindo o olhar de Sales queimar sua pele.

⚜⚜⚜

– Sobre o que quer conversar? – Perguntou, séria, não mais temerosa.


Não depois da cena constrangedora que acabou de presenciar.

– Ah, não faça essa cara, minha princesa. Eu e o capitão nunca nos
entendemos.
– Você não precisava ser tão desagradável. Não combina com você. Isso
está mais para o seu irmão.

O Filho do Imperador 135


Ele ergueu uma das sobrancelhas.

– Desculpe-me, está bem? Eu não suporto aquele cara e… vê-la


chamá-lo pelo nome… isso me tirou do sério.
– Porque vocês não se dão bem? – Ela perguntou, acomodando-se
em uma poltrona à sua frente. Os dois estavam tão próximos que os seus
joelhos roçavam. Ela se pegou pensando se Roque podia sentir aquele
toque, mas não ousou perguntá-lo. O príncipe soltou um suspiro.

– Após servirmos juntos na batalha de Alenquer, sabíamos que


alguns dos tenentes receberiam promoções a capitães. Quando saímos
vitoriosos, porém, ele e Sales foram honrados por meu pai. Ele e não eu.

– Ah – ela baixou os olhos, decidindo que, se fosse pedir


explicações sobre aquilo, não seria para Roque. – Certo.
– Não o chame pelo primeiro nome, por favor. Você será minha
esposa e isso seria um desrespeito a mim.
Como pouco custaria a ela fazer o que ele estava pedindo, acabou
concordando. Ao mesmo tempo, não queria perguntar a ele como deveria
chamar o capitão, visto que este deu a entender que ela se tornara amiga,
inclusive de sua irmã e seria completamente ridículo que, nessas
circunstâncias, não conhecesse o nome de sua família. Dessa forma, tentou
enganá-lo para fazê-lo falar.

– Oscar não é um nome muito comum em Vera Cruz. Até que

é bonito – jogou.

– Se é bonito de se pronunciar, pouco me importa – resmungou e


Karen se lamentou internamente, inquieta. – Mas Capitão Belmonte soa
menos amargo em seus lábios, já que teremos que manter a classe de
cumprimentá-lo.

– Será Capitão Belmonte então, já que é tão importante para

você.

Ele a encarou, desconfiado. Não lhe passou despercebida a ironia de


suas palavras.
– O que foi, Karen?

– Ah, meu querido – entregou. – Será que não percebe a


infantilidade em seus ciúmes?

136 Camila Antunes


Um suspiro pesado ecoou pela biblioteca.

– Karen, leve-me para o meu quarto.

– Ah, Roque, não me leve a mal.

– Tudo bem, faço isso sozinho, então.

Ela tentou se levantar para acompanhá-lo, mas ele ergueu uma mão
espalmada, pedindo para que se contivesse.
– Ao menos me diga o que queria conversar comigo – pediu, quando sua
cadeira já alcançava a saída e Roque deteve-se, sem virar-se para ela.

– Não se sinta enciumada por causa da presença de Perla. Notei sua


reação arredia, e posso dizer que ela também. A moça só quer ajudar e eu só
tenho olhos para você, apesar de tudo.
– Apesar de tudo? – perguntou, surpresa, contudo não recebeu resposta
alguma.
– Você não tem com o que se preocupar – concluiu, antes de se retirar.
Quando ele já estava longe o bastante, a princesa soltou os ombros e
desfez a postura, antes de sussurrar:
– Não estou preocupada.

⚜⚜⚜

– Meu irmão agora não atende mais à porta? – Karen ralhou, ao deparar-
se com Moisés, o valete, na entrada do quarto de Kilian.
– Vossa Alteza, entre, por favor. Ele ainda está em reunião com o duque
Pascoal.
Ela franziu o cenho, certa de que aquilo não poderia ser um bom sinal.
Começara a suspeitar que Dumas não estava dando conta do acúmulo de tarefas.
Andou até onde Kilian estava e ele percebeu sua presença.

– Karen, venha até aqui. Sente-se comigo.

Ela obedeceu, acomodando-se ao seu lado. De frente para ele, o Duque


de Ilhabela aparecia na tela.
O Filho do Imperador 137
– Olá, meu primo! – a princesinha cumprimentou.

– Karen, eu recebi as notícias de Roque. Sinto muito por vocês.

– Obrigada – conteve-se em dizer, engolindo em seco. – Agora me


diga porque prende meu irmão por tanto tempo. Sabia que ele não tomou
café da manhã?

O rosto do duque consternou-se.

– Por Deus, Kilian! Por que não me disse? Eu poderia esperar.

– Isso não é verdade – o rei defendeu-se, revirando os olhos. – Eu


tomei meu café no quarto.
– Do que tanto falam? – Karen quis saber, ignorando o argumento
do irmão, e percebeu que o primo baixara os olhos, do outro lado. – O que
foi?

– Teremos que voltar – foi Kilian quem esclareceu.

– O quê? Por quê?

– Complicações, minha irmã. Dumas precisará ir a Ilhabela, para o


Palácio de Praia, resolver pendência inadiáveis, e terá que deixar o Marisco
sozinho.

– Mas Dumas não pode esperar?

– Não podemos pedir isso, minha irmã. Ele tem sua própria casa e
suas próprias funções, que nunca foram poucas.
– Eu estou bem aqui, pessoal. – Dumas sorria do outro lado. Um
formigamento se instalou em seu estômago. Karen não

podia ir embora. Não agora. Seus sentimentos estavam tão confusos! Ela
não queria se afastar de Sales e sua ida para casa agora, praticamente selaria
seu compromisso com Roque. A essa altura, já não tinha tantas esperanças
de livrar-se dele, todavia não estava nos seus planos apressar a coisa toda.
Pensou também em Perla e em como ela estaria tão próxima de Sales na sua
ausência.
“Roque, Roque. Meu compromisso é com Roque.” Provavelmente isso
seria o melhor para ela. Provavelmente

distância fosse a melhor solução para organizar seus pensamentos.

Mas ela não queria deixar Lima. Não ainda.

– Por favor meu irmão, deixe que eu fique.

– Kilian – Dumas interveio – É melhor que conversem sozinhos.


Amanhã, a essa mesma hora?

138 Camila Antunes


Kilian lançou um olhar de soslaio para a irmã.

– Uma hora mais tarde, após o café da família imperial.

– Então ficamos combinados – o duque afirmou, e o rei estendeu a mão


para tocar uma tecla. Quando a tela do computador escureceu, ele virou-se para a
irmã, que estava rígida ao seu lado.

– Você anda tão complicada, Karen! Seus sentimentos imprevisíveis…


precisamos mesmo ter essa conversa.
DEZESSEIS
Uma descoberta amarga

A princesa estava atenta, encarando seu irmão e rei, que discursava


incansavelmente. Ela apoiava as mãos sobre o colo e, com uma delas,
tocava a pequena pedra verde que pendia de um dos pulsos. As palavras
dele chegavam duras aos seus ouvidos e, em certo momento, encarou as
próprias mãos, fazendo Kilian perder a paciência.

– Você está ao menos ouvindo alguma coisa do que falo?

– Estou – respondeu, com os olhos ainda fixos no colo. De repente,


Kilian notou que uma gota escorreu pela pequena esmeralda que havia na
mão da irmã. Ele sentou-se à sua frente e, soltando um suspiro, passou o
dedo sobre a joia, secando a lágrima que acabara de cair.

– Primeiro, você e o Delfim não se suportam – sussurrou, de cenho


franzido. – Depois, encontro os dois trocando carícias. Logo em seguida,
reafirma o compromisso com o irmão dele, por quem nunca demonstrou o
menor dos afetos – ela ergueu os olhos marejados para ele. – Por que não
me diz o que está acontecendo, Karen? Acaso pensa que permitirei que se
case com qualquer pessoa apenas por pena?

– Não é tão simples, Kilian – tentava explicar. – Roque realmente


me ama, apesar do seu recente e compreensível comportamento arredio.

– Não temos certeza se é recente – interrompeu. – Nunca antes


passamos tanto tempo hospedados neste castelo. Nem de perto o suficiente
para conhecê-los bem.

140 Camila Antunes


– Certo. Não temos certeza. Mas como irei saber? Ele me ama, Kilian, e
eu sei que poderia amá-lo também – disparou. – Tenho certeza de que poderia.
Acho que estava até chegando perto disso. Ele sempre foi tão cortês, mas
Sales…
– Não passou nem perto disso – afirmou, olhando-a de baixo para cima,
sugestivo, com sua sobrancelha negra erguida.
– No começo não, mas… – hesitou.

– Esse Ravin é um belo idiota irresponsável. Como ele ousa te seduzir


depois de ter te rejeitado?
– Não foi bem assim, Kilian.

– Ah! – o rei, levantou-se outra vez, esfregando as mãos sobre o rosto. –


De repente nada é o que parece com você, Karen! O que está acontecendo,
afinal?
– Eu não sei dizer – lágrimas ameaçavam eclodirem de novo, e Kilian
conteve-se ao perceber os sinais.
– Vou pensar – disse. – Vou decidir se você fica ou não. Mas, se isso
acontecer, Karen, quero Ingrid do seu lado o tempo inteiro. Não vou querer ouvir
o menor dos rumores de que você tenha ficado sozinha no mesmo ambiente do
que qualquer um desses dois.
– Está bem – respondeu, esperançosa.

– E não quero saber de você montando naquela égua desacompanhada. À


vista de todos, no pátio, esteja sempre com um homem por perto.
– Certo.

– Nem indo àquele jardim. É muito isolado.

– Como quiser – respondeu, aliviada por ele não ter dito nada sobre a
sala secreta da biblioteca. Ainda que, no fundo, soubesse que o irmão jamais
tocaria no assunto. Afinal, não poderia.

⚜⚜⚜

Aquela não foi uma noite tranquila para Karen. Ela passara muito tempo
refletindo sobre a possível volta para Vera Cruz e pouco
O Filho do Imperador 141
tempo descansando. Quando Ingrid a encontrou pela manhã, passou
minutos se lamentando pelas olheiras que se formaram em seu rosto.

– Eu não deveria fazer o que ele me pediu – resmungou, com a cara


amarrada, enquanto entrelaçava os fios negros de Karen em uma trança
embutida. Imediatamente, a princesa ergueu os olhos para ela.

– Ele? Ele quem, Ingrid?

– Sua Alteza-Toda-Poderosa-Imperial. Aquele Dom Sales de

Ravin.

Soltando toda trança que estava quase pronta, Karen girou em sua
direção, a fim de encará-la.

– Ingrid! – exclamou, séria. – Lembre-se de quem eu sou e não me


esconda nada. O que Sales disse a você? E quando?

A moça soltou um suspiro pelo nariz e, enfiando a mão em um dos


bolsos, retirou um papel dobrado, o qual entregou a princesa. Karen, por
sua vez, desdobrou o bilhete apressadamente, curiosa com o conteúdo que
ali havia.

“Encontre-me na sala secreta”.

– Ele mandou que um criado trouxesse isso e me pediu que a


entregasse. Seja o que for, Vossa Alteza, não faça o que ele quer! Isso só irá
magoá-la ainda mais.

– Ingrid. – Encarou-a. – Não me diga o que fazer.

– Como quiser.

A moça baixou os olhos e retirou-se do quarto, fazendo Karen


imediatamente sentir-se culpada por tratá-la daquela forma. Ingrid a amava
e se preocupava com ela, e todo esse sentimento era recíproco, mas se havia
uma coisa que a dama desconhecia, eram limites.
Ela se apressou em arrumar o cabelo e saiu pela porta, correndo
pelos degraus da escada, como fazia quando era criança. Empolgada,
escancarou a porta da biblioteca e deu de cara com uma cena que não
esperava.

Ana Julia estava sentada de costas para ela. Descendo o olhar, notou
que a menina não estava sobre um sofá ou uma banqueta e sim sobre…
pernas? Essa não! Julia se sentava no colo de alguém.

142 Camila Antunes


Um homem. Com a saia do vestido suspensa até a cintura por mãos masculinas,
ela se inclinou para trás, a fim de que a cabeça do homem alcançasse seu decote.
Antes que os olhos dela percebessem a presença de Karen, seu movimento
deixou à mostra os cabelos negros da pessoa que estava por baixo dela.

− Kilian! – gritou a princesa, fazendo a moça saltar para longe, em


um só movimento.
O jovem rei ficou atônito, sem conseguir dizer uma palavra sequer.
Karen desviava os olhos dos dois para a estante falsa, imaginando se Sales
suspeitava que aquilo estava acontecendo ali fora.

− Ah, meu Deus! − Ana Julia exclamou, tapando o rosto, antes de


sair correndo pela porta.
Kilian mexia na braguilha de sua calça, movimentando-a de um lado para
o outro, tentando consertar aquilo que tinha lá dentro. Karen desejou não ter
prestado atenção o suficiente para notar que estava fechada, mas não pôde evitar
o alívio que a acometeu após essa constatação.

− Kilian, o que… o que pensa que está fazendo?

O rei se levantou, passando a mão sobre a barba rala.

− Karen, eu sou um adulto e, desde que me lembro, não te devo


satisfações − se conteve em dizer, em um sussurro entediado.
− Meu irmão! Isso não é certo…

− Já chega − interrompeu-a, tentando dar o assunto como encerrado.


− Caso considere isso tão errado assim, seja você, casta.
O rei passou por ela, contraindo a mandíbula, em direção à saída do
cômodo, mas ela não iria deixar isso passar batido. De jeito nenhum. Menos
ainda após o sermão que recebeu sobre ficar sozinha com os príncipes.

− Kilian, volte aqui, AGORA.

Com o olhar surpreso, o irmão virou-se imediatamente em sua direção.

− O que faz você pensar que pode falar assim comigo?

− O que me faz pensar? Você está louco? – bufou. − Quem sabe a


cena absurda que você acaba de me obrigar a assistir? Não tem respeito por essa
casa ou por essa família?

O Filho do Imperador 143


Kilian voltou até o sofá onde estava há apenas alguns minutos, para
sentar-se e, após soltar um suspiro, descansou a testa sobre as mãos.

− Você provavelmente tem razão. Desculpe-me. Ana Julia…


ela me faz perder a cabeça.
Ela levantou uma sobrancelha e se acomodou ao lado dele, o
tomando pelas mãos.
− Ah, meu irmão. Não seja tolo. Eu não sou a mais experiente
das pessoas, mas já percebi que Julia acha que pode fazer você se apaixonar
por ela. Mas eu conheço você. Sei que não avançaria os limites de maneira
tão descuidada com uma pessoa por quem estivesse apaixonado.

Ele sorriu, fitando-a nos olhos. Provavelmente estava certa. Sua


irmã o conhecia bem. Ainda assim, resolveu perguntar:
− Por que diz isso?

− Porque você tem zelo pelas pessoas que ama.

− Está assim tão certa de que eu não tenho sentimentos por Julia? −
divagou em voz alta, como se ele mesmo procurasse por essa certeza. −
Porque acho tão estranho que em grande parte do tempo, ela não saia da
minha cabeça.
− Ah, meu irmão! Como posso ter certeza? Só você pode encontrar a
resposta que procura. Tente perguntar a si mesmo se consegue imaginá-la
ao seu lado para sempre.
− Acho que… − ponderou, contraindo a mandíbula mais uma
vez, com o olhar perdido − acho que posso fazer isso.
− Então já está a caminho da sua resposta.

Kilian se levantou, lançando para ela um meio sorriso em gratidão,


deu-lhe um beijo na testa, despedindo-se e fez um comentário sobre ter
perdido o momento em que ela acabou ficando tão madura.
Karen, de repente, percebeu que sequer sabia de onde tirara aquelas
palavras. Elas apenas surgiram no seu coração.

⚜⚜⚜

Arrastando sua cadeira por toda a rampa improvisada, que lhe dava
acesso ao quarto, Roque tocou na porta, que foi aberta por seu

144 Camila Antunes


valete − um senhor muito calado e grisalho − que o servia desde que se
lembrava. Antes de entrar, pensara algumas vezes se não deveria apenas voltar e
pedir desculpas para Karen. Foi tão duro convencê-la a estar com ele e agora
simplesmente a destratara por ter sido sincera. Por mais que aquela opinião o
tenha machucado, ele começara a se sentir culpado, desde o momento em que
deixara a biblioteca.

– Vitor, o que está olhando? – perguntou ao homem que lhe encarava,


mas logo deu-se conta de sua aspereza, e fechou os olhos, medindo as palavras.
Quando enfim tornou a abri-los, sentia-se mais calmo. – Gostaria de me dizer
alguma coisa?
– Tenho notícias, meu senhor. Mas não sei se é uma boa ideia… O
valete parecia nervoso de um modo que Roque nunca tinha
visto. E os dois conviviam por anos.

– O que te aflige tanto, homem?

– São notícias da princesa, Vossa Alteza.

– Da princesa? Minha princesa? Karen? – Roque quis ter certeza. Fossem


quais fossem as notícias, pelo aspecto de Vítor, o príncipe deduzira que não
seriam boas para ele. De repente, o arrependimento que sentia por ter sido duro
com ela começava a se dissipar em seu peito.

– Como o senhor sabe eu tenho uma neta pequena, filha de minha filha
viúva. E Sua Majestade permitiu que as duas vivessem aqui comigo, desde que
meu genro morreu em batalha. – Roque confirmou, franzindo o cenho. O que
aquilo teria a ver com Karen? – No meio da madrugada de hoje, minha neta
ardeu em febre e eu, para ajudar minha filha, decidi ir até o ambulatório procurar
por medicamentos. No meio do corredor, entretanto, eu percebi que a princesa se
esgueirava para o quarto.

– Estava espiando minha noiva, Vítor?

– De maneira alguma, meu senhor.

– Mas não deixou que ela te visse?

– Não, Vossa Alteza.


– E por que não, Vítor?

O Filho do Imperador 145


O valete desceu os olhos, procurando as palavras que usaria.

– Porque acredito que Sua Alteza Real não gostaria de ser vista por
mim naquelas circunstâncias, meu príncipe. Acontece que ela estava
assustada, com as vestes molhadas.

– Vítor, seja direto. Nada do que está me dizendo faz o menor


sentindo.

– Ela saía do quarto do herdeiro, Alteza.

Roque sentiu seu estômago arder, como se tivesse recebido um


golpe de uma afiada adaga. Ele engoliu a saliva e virou-se para o valete,
segurando-se para não descontar nele a raiva que sentia naquele momento.

– Deixe-me sozinho.

– É claro – ele confirmou com a cabeça, preparando-se


imediatamente para sair do quarto. Contudo, quando alcançou a porta, o
príncipe chamou sua atenção.

– Vítor – sussurrou.

– Pois não, Vossa Alteza.

– Obrigado por sua lealdade, velho amigo.


DEZESSETE
O passado encoberto

Um ruído quase imperceptível se fez quando Karen puxou o livro falso


da estante que dava acesso à sala secreta. Devagar, ela deu alguns passos para o
interior do local. Era estranho que tudo estivesse escuro. Sales provavelmente
não havia chegado, embora ele não parecesse do tipo que se atrasava.

Levou o dedo até um pequeno interruptor, fazendo as luzes se


ascenderem. Para sua surpresa, havia um homem sentado na poltrona que bem
conhecia, entretanto, não se tratava do Delfim, mas sim…

– Dom Fernão?

Ela sentiu necessidade de se curvar, pois achava que estava prestes a


perder a cabeça. Se seria sentenciada à morte, que fosse ao menos uma morte
sem dor.

– Parece surpresa, criança – o imperador afirmou, o semblante

sério.

– De fato, Majestade.

– Não achava, mocinha, que realmente haveria um lugar dentro da casa


do Imperador do Novo Mundo, ao qual ele mesmo não conhecesse, não é?

Ela sentia o próprio sangue correr freneticamente pelas veias, num ritmo
acelerado e constante. Olhava em volta, para as prateleiras limpas por Sales,
intactas, intocadas.

O Filho do Imperador 147


– Isso sempre me pareceu, de fato, improvável, mas… – franziu o
cenho, sem saber ao certo o que pensar. – Desculpe-me, eu não entendo.

– Como acha que meu filho encontrou a primeira Bíblia?

Ela ponderou.

– Ele disse que foi no seu gabinete, quando criança.

– Acha mesmo que eu não sentiria falta de um objeto tão valioso?


Ou que eu o deixaria desprotegido por aí? Acha que uma simples criança
conseguiria entrar num aposento imperial e sair com um objeto sem sequer
ser notada? Ainda que essa criança fosse o futuro imperador? Assim a
senhorita me ofende. – A expressão do imperador permanecia calma,
compassiva, até o ponto de Karen acreditar que não corria perigo.

– Desculpe, Majestade, mas ainda não compreendo. – A princesa


repousou as mãos na frente do corpo. Por mais que se esforçasse, não
conseguia encontrar cabimento em toda aquela história.

– Nada disso faz sentido.

– Sente-se, criança – Dom Fernão apontou para a cadeira vaga ao


seu lado. – Vamos ter uma conversa.

Ela obedeceu e, com passos lentos, dirigiu-se ao assento. Percebeu


que as pernas pareciam um pouco trêmulas, mas esforçou-se ao máximo
para não se deixar notar.

– Majestade, antes de qualquer coisa – contestou, com a postura


impecável. Dom Fernão não pôde evitar encarar a jovem moça com uma
certa admiração. Ela o fazia lembrar-se da mãe. – Gostaria que me
explicasse por que Sales entregou um bilhete a minha dama, quando é o
senhor quem está aqui.

O homem sorriu, cruzando os braços sobre o peito.

– Puro palpite, minha querida. Eu contava que meu filho não


conhecesse sua letra, já que meus criados interceptaram alguns bilhetes
dele, que haviam sido endereçados à senhorita, mas nunca suas respostas.
Por sorte estava certo. Conheço o meu filho o suficiente para saber que ele
é do tipo que apenas dá ordens. Também conheço mulheres apaixonadas
para saber que simplesmente obe-

148 Camila Antunes


decem. – O rosto de Karen ardeu em chamas e o sorriso debochado do
imperador, que a encarava como se ela fosse uma criança ingênua, demonstrava
que ele podia notar o rubor enfurecido de sua pele. – Eu fiz com que uma criada
escrevesse para Sales, remarcando esse encontro para o jardim secreto, de modo
que não podemos nos demorar muito. Logo ele se cansará de esperar e estará de
volta. Pude notar, inclusive, que a senhorita não é muito pontual.

– Tive que resolver um problema de família – conteve-se em

dizer.

– Certo. – O homem ergueu uma sobrancelha.

Karen soltou um suspiro, passando a mão pela saia do vestido, um hábito


que tinha quando estava nervosa. Um hábito que compartilhava com Zélia,
Fernão reparou.

– Diga-me o que está fazendo.

Ela ergueu os olhos interrogativos para ele, mas sabia do que a pergunta
se tratava. No entanto, o que diria? Meu coração traidor não consegue amar seu
filho caçula, com quem estou comprometida, porque está preso ao mais velho.
Aquele mesmo a quem rejeitei quando Vossa Majestade sugeriu que nos
casássemos?

– Eu… temo que não haja uma resposta, senhor.

– Vou contar-lhe uma história, querida, que você provavelmente não


deveria saber. Ainda assim, estando aqui deste jeito, olhando-a em minha frente,
simplesmente não posso evitar.

Esfregando as mãos uma na outra, a princesa começou a se sentir


ansiosa. Aquilo tudo ainda era um mistério para ela. O que exatamente estava
acontecendo e o que o imperador poderia querer?

– Deve saber que eu e sua mãe nos conhecíamos desde muito jovens.

– Sim. Vocês estudaram juntos na Universidade de Lima.


Ele abriu um meio sorriso nostálgico, que gerou nela certa desconfiança.

– Não estudamos juntos, apenas. Fomos apaixonados.

Karen mal podia acreditar que ouvira aquelas palavras. Chegou a tentar
despertar a si mesma, para ter a certeza de que tudo aquilo não se passava de um
sonho bastante estranho.

O Filho do Imperador 149


– Bom, ao menos um de nós era – ele limpou a garganta. – Sua mãe
se formou em História Natural, enquanto eu me formei em Engenharia
Naval. Ela era uma cidadã de Vera Cruz e, desde criança, encantada por seu
pai. Nem o fato da minha coroa ser mais poderosa do que dele a
impressionava, por isso eu não estranhei quando se opôs ao casamento com
Sales. Você tem o coração dela, os olhos, o cabelo… desde que era muito
pequena eu já notara. Provavelmente não seria tão parecida com sua mãe se
fosse minha filha, e isso seria uma pena. Deus, de fato, sabe o que faz.

Ela assustou-se. O imperador realmente havia dito tudo aquilo. Ele


disse que amava sua mãe, que fora apaixonado por ela e, o mais assustador,
disse o nome de Deus.

– No começo, eu odiei seu pai, porque ele me tirou Zélia. Muito


tempo se passou até que eu percebesse que ela nunca fora minha.
– Mas a imperatriz…

– Não se engane – Dom Fernão a interrompeu. – Eu amei minha


esposa mais do que a mim mesmo, mas jamais esqueci sua mãe.
– Karen tocou na mão do imperador, que a encarou de forma divertida,
antes de continuar: – Seu pai e eu lutamos contra a Nova Ásia, lado a lado
e, acredite, uma guerra amolece os corações. Eu o conheci bem, e ele foi
um homem honrado. Um homem que mereceu sua mãe e que morreu por
ela. Foi uma pena não ter tido um longo reinado. Seu pai tirou minha vida
quando levou sua mãe embora, mas foi ele quem me devolveu a vida em
um campo de batalha. Ele se arriscou por mim e eu pude sobreviver para
arriscar-me por ele.

– Eu me lembro dessa história. Vocês salvaram um ao outro.

– Nada como um dia após o outro.

– Papai disse que ficou muito grato porque o senhor estava vivo
para salvá-lo.
Ele sorriu.

– Assim nasceu uma bela aliança. Seu pai me prometeu seu


herdeiro, mas eu não tive filhas, então ele me prometeu você e eu o prometi
meu primogênito. Eu não queria nada menos do que uma aliança eterna
entre nossos reinos. Entre meu reino e o de Zélia. – Ele hesitou, antes de
prosseguir. – Ainda não quero.

150 Camila Antunes


Karen engoliu em seco. Com os dedos, levou uma mecha solta de cabelo
para atrás da orelha, enquanto assimilava o que aquelas palavras poderiam
significar. Roque não era o herdeiro. Ele não representava uma aliança eterna
entre os reinos.

– Vossa Majestade está dizendo que…

– Não posso querer um filho feliz às custas da miséria de outro.

– Mas quer que eu fique com Sales? Para eternizar sua aliança com
minha mãe?

– Não sou eu, nem seu irmão que temos que querer. – Como era curioso
que essas palavras saíssem justo de sua boca. – Nem mesmo Sales ou Roque. É
apenas você. Você é amada pelos dois, mas não pode amar aos dois, Karen.
Precisa se decidir ou causará mais destruição a esta família, a este império, do
que qualquer praga ou mesmo a peste negra.

Um gosto amargo lhe subiu à garganta. Como seus sentimentos poderiam


causar tanta destruição? Como ela poderia decidir sobre o que não havia
escolha?

– O senhor não entende? Eu não tenho pelo que me decidir. Eu amo um


dos seus filhos. – Seus dedos brincavam com a corrente em seu pulso – Apenas
um deles. E sei que sou correspondida. Tenho certeza! Mas ele se recusa a
magoar o irmão.

– Entendo.

– Então, essa é a questão.

– Magoe-o você.

– O quê? – a princesa sobressaltou-se.

– Eu não gostaria que Roque, além de ter que carregar todo o sofrimento
de sua condição atual, fosse condenado a viver pelo resto dos seus dias com
alguém que ama o irmão. Com alguém, que mesmo que viesse a amá-lo, tivesse
Sales em seus pensamentos.
– Como o senhor tinha minha mãe?

Ele tomou sua mão, e ali repousou um beijo discreto, despedindo-se,


antes de levantar-se.

– Acredite, minha querida, você tampouco irá querer se encontrar nessa


posição.

O Filho do Imperador 151


Ela concordou, fazendo uma reverência, antes que o imperador se
retirasse. Quando ele alcançou a porta, porém, Karen chamou por seu
nome, fazendo-o interromper os passos, sem virar-se para trás.

– Dom Fernão?

– Sim?

– Como soube que era Sales, o filho de quem eu falava? Ainda de


costas, o homem deu sua resposta:

– Todos os meus garotos possuem defeitos e qualidades, criança.


Mas apenas um deles é capaz de tomar uma atitude tão altruísta.

⚜⚜⚜

Ao sair dali, Karen fora direto ao estábulo, contrariando as ordens


do irmão, e pedindo ao cuidador que selasse Tiara para que ela cavalgasse
sozinha.

– Vossa Alteza acha que seria prudente…

– Como é mesmo seu nome? – interrompeu.

– Ian, Vossa Alteza – o rapaz respondeu, um pouco amedrontado


com a pergunta.

– Ian, ainda não nos conhecemos, não é? – Ela abria para ele seu
melhor sorriso. Se fosse mesmo como a mãe, em alguns minutos ele estaria
encantado por ela. – Você negaria o pedido de uma dama?

– Vo-vossa Alteza é ma-mais que uma dama. E se… se isso lhe


oferecesse risco, te-temo que deveria negar, sim.

– Não faça assim, ou sou capaz de me sentir destruída –


interpretava. Ela conseguiria aquela égua!

– Vossa Alteza se-sequer está vestida adequadamente.


– Deixe-a em paz, Ian. Sua Alteza é bastante capaz de cavalgar
como bem entender, não acha?

O menino empalideceu, o que deixou Karen tentada a virar-se na


direção daquela voz ligeiramente conhecida. Quando encontrou a quem
pertencia, surpreendeu-se.

– Prega… – o olhar alarmando do homem, a fez corrigir-se. – Lorde


Comandante! Que surpresa vê-lo aqui.

152 Camila Antunes


– Vim aconselhar Sua Majestade – afirmou, encarando-a. – Eu me
pergunto se ele conseguiu o que gostaria.

Ela olhou para ele e depois para o garoto, que parecia ter congelado sobre
os próprios pés.

– Vá, Ian! – o homem ordenou. – Sele a égua da princesa.

– Si-sim se-senhor.

Karen o observou por um momento, enquanto se afastava, especulando


sobre o jovem rapaz. Ela não pôde deixar de notar que o pregador reprimia um
meio sorriso.

– Ian é gago? – a princesa tomou coragem para perguntar.

– Apenas quando é pego flertando com princesas, ou sendo seduzido por


elas – afirmou, fazendo-a sorrir envergonhada.

– Eu não estava… – Karen lembrou-se de quem ele era e imediatamente


desistiu de enganá-lo. Então, apenas apertou os lábios, antes de admitir. – Bom,
parece que o senhor me pegou.

Bráulio lhe lançou uma piscadela, no que Karen agradeceu, com uma
reverência brincalhona.

– Então, o senhor conhece o segredo do imperador?

– Somos amigos há muito tempo – afirmou, distraidamente.

– Desde antes de você nascer. Poucas coisas ficam escondidas, quando se


conhece alguém assim.

– Eu não entendo – ela insistia. – Por que ele passaria uma


responsabilidade como essa para Sales, enquanto era apenas um menino?

Olhando sobre ela, o homem sinalizou para que Ian se aproximasse com
Tiara, a princesa se calou e abriu espaço entre eles para o cuidador posicionar a
égua. Ela acariciou seu pelo macio com carinho, antes de tomar impulso para
montá-la. Olhou para o pregador, esperando resposta, porém não obteve êxito.

– Isto, infelizmente, não cabe a mim explicar – afirmou, antes de


aconselhá-la a cavalgar com prudência e passar longe da janela do quarto no
qual o irmão estava hospedado.

A princesa consentiu, agradecendo o conselho, e se retirou.

O Filho do Imperador 153


⚜⚜⚜

Karen galopou sobre Tiara, sentindo o vento cortar-lhe o rosto, por


toda extensão do pátio do castelo onde havia guardas espalhados. Ela
extravasou seus sentimentos deixando as lágrimas jorrarem do rosto
enquanto decidia o que fazer. Seus sentimentos estavam claros. Era a Sales
que ela amava. Ela diria isso a ele e os dois ficariam juntos. Foi o que sua
mãe fez. Ficou com o homem que amava, não foi?

Não precisaria ser agora. Ela poderia esperar até que Roque se
recuperasse do rompimento, por respeito, mas valeria a pena.

Quando finalmente voltou ao estábulo para devolver Tiara, chamou


por Ian, mas um rapaz muito bem vestido a aguardava em seu lugar.

Quando Sales virou-se para ela, seu semblante estava fechado, os


braços cruzados sobre o peito e os dentes cerrados.

Antes mesmo que Karen compreendesse o motivo da sua presença,


ele avançou sobre ela.

– Como pôde ser tão irresponsável, garota?

– Garota?

– No que estava pensando?

– Ei! Controle-se, senhor! Quem você acha que é para levantar a


voz para mim? – Essa reação o fez conter-se. Com uma mão no quadril e
outra na nuca, ele virou-se de costas, inquieto. Naquela pose, Karen pôde
notar, Sales parecia sentir algum incômodo que se espalhava por toda a
coluna. Quando voltou a olhar para ela, porém, demonstrava-se ainda mais
indignado. Mas algo que viu em seu rosto o fez conter-se. – Você esteve
chorando?

– Não, Sales! Não mude de assunto! Apenas uma pessoa tem direito
de falar assim comigo, e é a pessoa que vive por mim.
O Delfim aproximou-se dela, a voz estava mais suave. No rosto,
contudo, não havia sinal de arrependimento.

– Agora imagine você, que após ter passado horas conversando com
essa “pessoa”, convencendo-a de que você estaria segura e

154 Camila Antunes


bem cuidada no castelo de meu pai, eu não tenha te encontrado na droga de lugar
nenhum, Karen!

Ele tentou tocá-la no rosto, mas Karen desviou-se. Ela o encarava, mas
não sentia vontade de explicar-se, não sentia necessidade de dar a ele qualquer
satisfação. Entretanto, ainda assim, não queria irritá-lo.

– Boa noite, Sales – disse, dando-lhe as costas.

– O quê? Está falando sério, Karen? Irá me virar as costas? – Ela se


conteve, dando-se conta de que, provavelmente, ninguém jamais lhe fizera isso,
exceto talvez, seu pai. Acontece, para a infelicidade do Delfim, que ela estava
muito acostumada a desacatar herdeiros de tronos e não se deixaria intimidar por
ele. Então, apenas virou-se para dizer:

– Amanhã conversaremos. Quando você estiver mais calmo e lembrar-se


de como deve se dirigir a uma princesa. Enquanto isso, eu lhe enviarei um ou
dois poemas de minha autoria. Mas não se gabe, haverá nisto o exclusivo intuito
de ensiná-lo a reconhecer minha letra.
DEZOITO
O mal-entendido

Agora, sozinha em seu quarto, a princesa se sentava à beira da


cama. O livro pesado, com a robusta capa em couro atanado, repousava
sobre seu colo. Os dedos desenhavam as palavras douradas bordadas sobre
aquela capa. Ela aprendera sobre a importância daquele livro quando esteve
na clareira. Agora, entretanto, mal sabia por onde começar a lê-lo. De seu
interior, havia escorregado uma folha de papel com a letra de Sales. A
princesa repousou aquela folha sobre a cama e, contemplando-a, percebeu
que se tratava do resumo de alguns temas do livro.

Dentre os tópicos, um em particular lhe chamara a atenção.

“A mulher mais fiel da história”

Ela franziu o cenho, abrindo o livro nas páginas indicadas. Passou


uma boa parte da noite imersa naquelas palavras, até que, em certo
momento, foi até a escrivaninha atrás de caneta e papel. Com cuidado,
rabiscou algumas anotações e trancou-as em sua caixinha de joias.

Na manhã seguinte, a princesa despertara com uma batida


incessante em sua porta. Ela esfregou os olhos e depois estendeu os braços,
empertigando o corpo para espreguiçar-se. Andou até a porta e, girando a
pequena chave, destravou-a para deparar-se com Ingrid.

– O que é isso? Não me diga que perdeu suas chaves outra vez?

– Enquanto a moça corava, a princesa desviou os olhos para a bandeja que


ela carregava. O leite, frios e frutas que a adornavam, prontamente
acalmaram seu ânimo.

– Vossa Alteza perdeu a hora do café da manhã e eu pensei em


trazê-lo, mas não encontrei minhas chaves.
156 Camila Antunes
– Esta não é exatamente uma novidade, não é mesmo? – perguntou,
abrindo caminho para a dama passar. – Em contrapartida, o que seria das minhas
manhãs sem você?

Ingrid encarou-a com estranhamento, enquanto repousava a bandeja ao


pé da cama.

– Vossa Alteza está de ótimo humor. Acaso foi ao quarto de algum jovem
príncipe outra vez? Aquele, para ser precisa, a quem Vossa Alteza não deveria
visitar?

Karen revirou os olhos, com preguiça de relutar contra a impertinência da


moça.

– Não foi nada disso, Ingrid. Mas se quer mesmo saber, eu tenho algumas
novidades para compartilhar.

Sua Alteza sinalizou para que ela se acomodasse ao seu lado e insistiu
para que comessem juntas. Não era como se não tivessem intimidade para isso,
todavia nunca fora fácil para Ingrid se sentir totalmente confortável nessa
situação. No meio da refeição, a princesa contou a ela sobre os planos de romper
com Roque, e percebeu que a dama a encarava com cautela.

– O que foi, Ingrid? – disparou. – Por que essa cara?

– Nada! Só… tente não parecer tão empolgada quando contar isso a ele.

– Certo – ponderou, tentando conter os sentimentos. – Você tem razão.

Levantando-se, Ingrid começou a organizar a louça que utilizaram, para


levá-la até a cozinha, mas ainda antes que se retirasse, outro “toc” vindo da porta
fora ouvido por elas. As duas se encararam e a dama dirigiu-se à entrada.

Sales estava ao umbral, o rosto tenso fez Ingrid engolir em seco. Não foi
preciso que ele dissesse nada para que a moça entendesse: aquela era a hora de
se retirar. Desse modo, ela cumprimentou-o com uma reverência curta e, pedindo
licença, dirigiu-se para a cozinha.

Karen fitou-o com um sorriso recatado, bastante controlado, já que não


havia se esquecido da sua grosseria do dia anterior. A

O Filho do Imperador 157


princesa, inclusive, culpava-se por não conseguir manter-se irritada com
ele.

Ela sentou-se ereta, esperando que ele se aproximasse. Sales,


entretanto, deu apenas um passo para a frente, fechando a porta atrás de si.

– Você está bem? – perguntou, parecendo genuinamente


preocupado, embora Karen não conseguisse compreender o porquê.
– Sim.

– Parece que você anda perdendo a hora com frequência nesses


últimos tempos. – Ela deu de ombros e caminhou em sua direção.
– Onde está seu irmão?

– Você não o tem visto?

– Já faz quase dois dias que ele não me procura. Acha que desistiu
de mim?
– Isso não faz o menor sentido, a menos que… – Sales ponderou.
Algo estava errado. – Essa não! – sussurrou. – Ele sabe.
– O quê?

– Roque sabe sobre nós.

Karen sorriu, argumentando que não se importava. Já que Sales


estava ali, lhe contaria a novidade de sua decisão. Ela o abraçaria e
entregaria a ele o seu coração. Quando o alcançou, porém, no meio da
tentativa de abraçá-lo, ele a segurou pelos braços, impedindo-a.

– Karen, o que está fazendo? – Ela ruborizou imediatamente. Uma


sensação horrível de vergonha brotou em seu peito.
– Eu… abraçando você.

Percebendo sua expressão confusa, Sales a convidou a se sentar.

– Karen, ontem eu pedi para que nos encontrássemos porque queria


me desculpar.
– Do que está falando? Desculpar-se pelo quê?
– Por ter deixado meus sentimentos confundirem você. Pelo meu
egoísmo.
– Sales, pare.

– Você tinha razão, Branca de Neve, quando disse que não


deveríamos. E eu não poderia tê-la encorajado. Não podemos viver desse
jeito. Eu não sou um traidor.

158 Camila Antunes


– Nem eu! – ela se defendeu, exaltando-se.

– Eu sei, minha querida. – Sales tentou tocar em seu rosto, mas ela
desviou-se, arredia. – Não me entenda mal. O que eu mais desejava era que tudo
fosse diferente.

A princesa levantou-se. Não podia estar mais constrangida. As lágrimas


começavam a insinuar despontarem de seus olhos, de modo que ela se sentiu
obrigada a dar as costas para ele.

– Olhe para mim, Karen.

– Não me peça isso – afirmou, a voz embargada. E, aproximando-se dela,


ele se sentiu na obrigação de dizer:

– Então me ouça, porque direi essas palavras uma única vez. Eu te amo,
Karen. Amo como nunca senti, mas não posso fazer isso ao meu próprio irmão.

Destruída, irritada, desejando matá-lo por não lutar por ela, Karen virou-
se para ele. Lágrimas grossas lhe encharcavam as bochechas, quando ela
avançou sobre o corpo do rapaz. Seu indicador, em riste, tocava-lhe o peito, e ele
examinava seu rosto com surpresa.

– Acha que está fazendo um bem ao seu irmão? E quanto ao que está
fazendo comigo?

– Karen! – Ele estendeu a mão, tomando-a pelo cotovelo, que ela puxou
para si.

– Não me toque.

– Desculpe – gesticulando, sinalizou rendição. Seu rosto estava perplexo


e sua mente trabalhava maneiras de engolir cada palavra que proferira naquele
quarto.

– Você sequer deixou que eu falasse! Sequer perguntou o que eu queria!


Então será como deseja, Vossa Majestade.

– Não faça isso.


– Porque não, Vossa Majestade? É assim que te chamarei um dia, não é?
Quando for mulher de seu irmão.

– Acalme-se, por favor.

Ela calou-se, encarando-o. Delicada, tocou no lenço que havia sobre sua
penteadeira e secou o próprio rosto, mantendo sempre distância do Delfim.

O Filho do Imperador 159


– Está certo. Já que iremos por esse caminho, eu te darei uma prova
de como será a nossa vida nesse castelo.
Ela levou as mãos até a corrente que estava em seu pulso, e puxou-a
de uma só vez, arrebentando-a no fecho. Tomou o pulso de Sales e enfiou-a
em sua mão, malcriada.
– Ah, Karen… – lamentou, olhando para o objeto que, com tanto
carinho, mandou que forjassem para ela.
A princesa, porém, não pareceu ouvi-lo. Em vez disso, marchou
para fora do quarto, rápido demais para que ele conseguisse pará-la, de
modo que sua única opção foi segui-la, para onde quer que estivesse indo.

⚜⚜⚜

As lâmpadas do enorme lustre lhe doíam a visão, de modo que o


infante precisava manter os olhos fechados durante todo o processo de
fisioterapia em que se deitava naquela esteira esquisita. Era a terceira vez
naquela semana em que Roque passava pelos mesmos exercícios. Perla
estava agachada à sua frente, repetindo as mesmas perguntas maçantes das
outras duas vezes. Ele entreabriu os olhos, e a mancha escura que surgiu
quando encarou as fortes luzes do lustre logo se dissipou em outras,
menores. Um cabelo negro e muito liso pendeu à sua frente e um rosto
angelical tomou forma, quando Perla debruçou sobre ele.

– Tudo bem, Vossa Alteza?

Roque não respondeu, apenas cerrou os olhos mais uma vez e


lançou a ela outra pergunta.
– O que vocês veem nele?

– Perdão?

– É só pela coroa? Por que ele será imperador? É o poder? Ou outra


coisa?
A moça sentiu-se aliviada pelo príncipe manter seus olhos muito
bem fechados, principalmente porque isso o impedia de vê-
160 Camila Antunes
-la enrubescer. Nunca tinha admitido em voz alta seus sentimentos pelo Delfim,
exceto, talvez, para a irmã.

– Não sei do que Vossa Alteza está falando.

– Falo sério, Perla – disse, esforçando-se para sentar-se. Ela rapidamente


tocou em suas costas, procurando sustentá-lo. Roque olhou em seus olhos e,
percebendo que estavam próximos demais, Perla se constrangeu. – O que vocês
e todas as outras veem de tão especial em meu irmão, que não seja a coroa que
ele carregará?

– Está tentando me ofender, meu príncipe? – De repente ela ficou séria,


de uma forma como ele nunca tinha visto. – Porque tudo que tenho feito até
agora é tentar ajudá-lo.

Contraindo o cenho, Roque meneou a cabeça negativamente. Com os


braços, e um pouco de dificuldade por não ter onde apoiar-se agora que havia
afastado a moça, ele puxou as duas pernas para fora da espécie de maca que
sustentava a esteira, de modo que elas pendiam, soltas e imóveis, sem encostar
no chão.

– De maneira alguma! Não me entenda mal. – Ele se conteve e soltou


uma risada maligna. – Acho incrível que eu não precise fazer o menor dos
esforços para que as pessoas esperem o pior de mim!

Perla se aproximou e, com um impulso, sentou-se ao seu lado. Suas


pernas também pendiam na esteira e ela as balançava para frente e para trás.
Roque a observava naquela irreverência até que ela se conteve, provavelmente
dando-se conta de que aquela poderia ser uma mania de muito mal gosto, dadas
as circunstâncias em que o rapaz ao seu lado se encontrava.

– Nem pela coroa, nem pelo poder. Eu diria que é pelo encanto. E
acredite, aproveite essa confissão, pois não irei repetir. Já me sinto tola o
suficiente fazendo isso em voz alta uma única vez. Mas, convenhamos, que
menina nunca sonhou em casar-se com um príncipe?

– Pura e simplesmente por ser um príncipe?

– Bem, sim – respondeu, alcançando o chão com um salto. – Mas agora


já chega! Eu já falei demais.

A expressão de Roque, entretanto, não compartilhava o mesmo bom


humor da jovem.

O Filho do Imperador 161


– Eu sou um príncipe – sibilou, seco.

– Estou surpresa que ache que não há milhares de garotas por esse
reino que suspirem por você.

– Do que adianta ter o coração de todo o reino, Perla, se há apenas


um que me importa?

Perla baixou os olhos para os próprios pés, e quando os ergueu


novamente, abriu a boca e insinuou dizer alguma coisa, quando um barulho
estridente a interrompeu. Karen rompeu pela porta e avançou na direção do
infante, e esbarrando nos ombros de Perla, sussurrou um pequeno e
distraído pedido de desculpas para ela. Segundos depois, Sales surgiu,
cessando seus passos no umbral da porta.

Roque encarou a princesa, o rosto ligeiramente vermelho o fitava


como se travasse uma batalha pessoal.

– Eu sei que você sabe – disse ela, fazendo-o cerrar os dentes. Os


olhos do príncipe desviaram-se para a porta, onde o irmão se encontrava.
Demoraram-se nos dele por segundos que pareciam intermináveis, e Karen
tocou em seu rosto, virando-o para ela. Roque fechou os olhos ao seu toque,
mas depois fitou seu olhar como ela queria. – E quero me desculpar.

– Você sabe o que eu sinto por você, minha querida, mas não
brinque comigo.

Ela hesitou, entretanto não por muito tempo.

– Eu nunca menti para você, Roque, e não pretendo começar agora.


Então vou te dizer apenas uma coisa, e espero que isso seja suficiente.
Estou arrependida e seu irmão também. Se ainda me quiser, ele não se
oporá e nem entrará no nosso caminho.

– Nosso compromisso é uma piada, Karen. Que prova você já me


deu de que o leva a sério?

Sem hesitar, Karen lançou os braços em seu pescoço e encostando o


corpo na maca, puxou o rosto dele até o seu, de modo que ele precisou usar
as mãos para apoiar-se. Com todos os sentimentos do mundo pesando em
seu coração contra o Delfim, ela deu em Roque um beijo profundo, ardente,
que ele retribuiu com satisfação. O infante estava tão satisfeito por
finalmente ter conseguido aquele

162 Camila Antunes


beijo, que mal parecia se importar com o que o motivou. Quando ela se afastou
de sua boca, ele a envolveu pela cintura e virou-se para a porta, porém, não mais
encontrou o irmão.
DEZENOVE
O festival de verão

Sales a seguia pelo corredor, irritada e determinada, mas nada lhe


pesava mais o coração do que as lágrimas que a fizera derramar. Ele queria
abordá-la e dizer que esquecesse aquilo, contudo no fundo sentia-se
envergonhado por perceber que preferia o choro do irmão ao dela. Quando
estava para alcançá-la, Karen rompeu pela porta do centro fisioterápico e
avançou no pescoço de Roque. Foi assim, simples: todo arrependimento
que sentia esvaiu-se. Como ela podia machucá-lo desse jeito? Tudo o que
ele dissera, disse com um motivo, mas aquilo, aquilo era pura vingança. Ele
não suportava ficar para assistir aquela cena. E a odiava por insinuar que a
veria por todos os dias de sua vida, ainda que, agora que a empurrara para
os braços do infante, isso certamente se tornaria realidade. Odiava também
o irmão, por aceitá-la de bom grado, apesar de saber que provavelmente
faria o mesmo.

Seus passos o conduziram para a biblioteca, mas ele não foi até sua
sala secreta. Em vez disso, caminhou até uma escrivaninha e, com
violência, passou a mão sobre ela, derrubando alguns livros no chão. Como
uma fera indomada, Sales apoiou as duas mãos sobre o móvel, cerrando os
dentes e controlando a respiração. A voz de seu pai, às suas costas, não foi o
suficiente para constrangê-lo, mas o fez fechar os olhos e apertar os lábios,
insatisfeito pelo flagrante.

– O que está acontecendo aqui?

Sales virou-se, tentando manter a calma, já que não estava com


humor para uma hora de discurso sobre a importância do domínio próprio.

164 Camila Antunes


– Acho que o senhor já imagina, meu pai. Mas por favor, não pisoteie em
meu coração. Todos já percebemos que era o senhor quem tinha razão desde o
começo.

O homem andou até ele e tocou-lhe o ombro, apoiando-se, de costas, no


mesmo móvel em que o filho se escorava. Lado a lado, os dois cruzaram os
braços sobre o peito, sincronicamente, antes que o imperador começasse a falar.

– Já não importa quem estava certo, meu filho. Acho que nenhum de nós
saberia dizer.
– O que importa então? – Ele o encarava angustiado, implorando por
uma resposta que o confortasse. Dom Fernão soltou apenas um meio sorriso,
fazendo-o entender que não a tinha.

– Você precisa pensar um pouco mais em si, meu filho. Um imperador


precisa ter equilíbrio emocional. – O jovem esforçou-se para não revirar os
olhos. – Seu coração deve estar saudável para reinar. Cuide bem dele, pois será a
fonte de toda sua vida e da vida do povo ao qual você governará. Se não fizer
por você, escute seu velho pai, faça pelo império.

Todos aqueles conselhos abstratos deixaram o rapaz ainda mais confuso.


– Meu coração nunca se sentiu tão amargurado como quando achou que
perderíamos Roque – admitiu, em um sussurro. – Eu não suportei vê-lo daquela
maneira. Ainda não suporto.

– Eu também não, Sales. Como acha que me sinto vendo meu próprio
filho, tão jovem e saudável, naquele estado? Quanta lágrima acha que já
derramei por ele? Eu daria tudo para estar em seu lugar. Ainda assim, tenho
certeza, você não está fazendo nenhum bem dando a ele essa ilusão. A nenhum
de vocês dois.

Em silêncio, ele consentiu com a cabeça. O pai apertou seu ombro e se


retirou, deixando-o sozinho com seus pensamentos.

⚜⚜⚜

O Delfim saiu para cavalgar naquele sábado, na tentativa de recuperar-se


da mágoa que ainda nutria pela princesa. Durante toda
O Filho do Imperador 165
aquela semana ele tentara evitá-la. Sequer compareceu na cerimônia de
despedida do rei Kilian para Vera Cruz. Ouviu dizer que Karen implorara
para ir com o irmão, mas por algum motivo, embora lhe parecesse pouco
provável, o rei Kilian decidira que não era a hora e a convenceu a ficar mais
um pouco. Enquanto caminhava para o estábulo percebeu Oscar com uma
expressão estranha na entrada.

– Bom dia, irmão – cumprimentou, tentando decifrar o que se


passava.

– Bom dia. Devo informá-lo que há alguém aqui com quem você
não gostaria de encontrar-se.

Antes que o Delfim conseguisse pedir alguma explicação, Tiara


surgiu de trás das vigas de madeira. Atrás dela, uma outra égua da família.

– Bom dia, Vossa Alteza Imperial – cumprimentou Olga, montada


na égua cujo nome Sales não se lembrava.

– Bom dia, senhorita. – Ele trancou os dentes, e não dirigiu os olhos


para Tiara, quando cumprimentou por obrigação: – Bom dia, Vossa Alteza
Real.

– Bom dia – respondeu, seca, passando elegantemente por ele. O olhar


de Sales desviou-se para suas coxas e depois, outra

vez, para o amigo. Quando as duas estavam longe o suficiente, Oscar


comentou:

– Por um momento, cheguei a pensar que Vossa Alteza iria devorá-


la ou coisa assim.

O Delfim soltou um suspiro irritado, considerando que essa


provavelmente tenha sido sua vontade, de fato. Que plano ele precisaria
elaborar para não se sentir assim pelo resto da vida?

– Quando foi que elas ficaram amigas?

– Durante essa semana em que você desapareceu, abandonando-a,


certamente.

Sales encarou-o.

– Acaso é comigo que a princesa está comprometida?

– Calma, meu amigo. Não seja injusto comigo. Sei muito bem os
sentimentos que nutrem um pelo outro, aos quais os dois insis-

166 Camila Antunes


tem em evitar. Mas você não acha estranho que ela esteja sempre sozinha e
que Roque esteja sempre com Perla?

– Perla está aqui para isso.

– Certo – Oscar desistiu de discutir. – Vamos aos cavalos. Sugiro


tomarmos a direção da mata.

– De acordo.

⚜⚜⚜

Olga e Karen se aproximaram durante a última semana, desde a


despedida de Kilian no castelo. Ficaram ainda mais unidas pelas fofocas
sobre Ana Júlia ter ido com ele para Vera Cruz, o que deixou o grão-duque
enfurecido. Dom Fernão passou vários dias acalmando

o irmão.

– A senhorita Ana Júlia é tão sortuda! Seu irmão é um homem muito


bonito. – Olga voltou ao assunto, durante a cavalgada.

– Eu não sei, Olga. Não estou convencida dos sentimentos de


Kilian… mas posso estar enganada.

– Acha que ele não a ama? – inquiriu a moça, intrigada.

– Não sou capaz de dizer. Nunca vi mulher alguma tocar-lhe o


coração. Entretanto já vi Kilian se aventurar com algumas. Com Ana
Júlia… enfim, não me parece diferente.

– Nossa! Espero que ela saiba disso.

– Acho que ela sabe onde está se metendo. – A princesa lhe lançou
uma piscadela enquanto se aproximavam de um riacho.

Olga foi a primeira a livrar-se da roupa que usava, ficando só de


roupas de baixo. Ela usava um corpete claro, que quase chegava a parecerse
com um maiô. Karen, entretanto, sentiu-se acanhada.

– Vamos, princesa! Não é como se não tivéssemos feito isso

antes.

– Mas das outras vezes em que nos banhamos não havia um príncipe
à solta por aí com seu irmão – hesitou. – E se eles nos pegarem?

O Filho do Imperador 167


– Por favor, Karen! Não pegarão. Meu irmão e Sua Alteza nunca
cavalgam no sentido da mata, a menos que estejam indo à clareira, mas hoje
não haverá encontro.

Receosa, ela levantou a camisa, mas desistiu.

– Vou entrar assim mesmo.

– De roupa? – Olga fez uma careta.

– Sim. Eu tenho uma reserva na bolsa. – Atravessando uma perna,


desmontou de Tiara e cuidou de amarrá-la ao tronco de uma árvore. Depois,
ergueu os fios de cabelo e fez um coque bem alto, sentindo o ar fresco da
manhã aliviar o calor do pescoço até agora abafado.

Em passos lentos, Karen caminhou até a margem para juntar-se a


Olga, que já se banhava. Quando a água lhe atingira o joelho, porém, um
grito irritado rompeu por trás dela.

– Olga! O que pensa que está fazendo? – Oscar tirava a camisa e


ordenava, insistentemente para que ela saísse da água. Enquanto isso, Sales
virava o rosto para o lado. – Perdeu completamente o juízo, garota?

Quando a moça saiu, o irmão a obrigou a vestir a camisa e subir no


cavalo. Karen pensou em defendê-la para o capitão, mas a julgar por sua
irritação, achou que era melhor ficar calada.

– Oscar, só estávamos nos refrescando. Ninguém vem aqui. – Olga


protestou, a voz embargada denunciava seu constrangimento.
– E acaso eu e Sales somos ninguém? Você não tem juízo?
Poderíamos ser guardas, ou qualquer outro tipo de pessoa!
Karen abaixou-se, torcendo a barra da calça. Calada, ela andou até
Tiara. Quando passou por Sales, contudo, percebeu seu olhar sobre ela.

– Acho bom que não diga nada.

– Não direi – respondeu o Delfim e, mesmo sem se virar para ele, a


princesa podia jurar que havia uma curva em seus lábios.
⚜⚜⚜

No cair da tarde, ela se dirigiu aos aposentos de Roque,


convencendo-se de que deveria passar algum tempo com ele. Antes de

168 Camila Antunes


alcançar a entrada, no entanto, ouviu uma voz feminina, que imediatamente
reconheceu. A porta estava entreaberta, de modo que a princesa não precisou
bater. Quando chegou até lá, Karen cessou os passos e observou a cena do
príncipe com sua cuidadora.

Os dois riam naturalmente e pareciam bastante à vontade na presença um


do outro. Quando Roque percebeu que ela estava parada na porta, porém,
estendeu os braços, convidativo, antes de exclamar na mesma empolgação:

– Minha princesa!

– Interrompo? – perguntou, aproximando-se dos dois. Percebeu que o


sorriso de Perla murchara e ela arrumou uma desculpa qualquer para sair. Roque
a pediu que ficasse, mas a moça apenas negou e se retirou. Karen ficou, durante
algum tempo, observando-a caminhar até a saída e, desviando os olhos para o
futuro noivo, percebeu que ele fazia o mesmo. De imediato, a princesa notou que
algo novo e pouco inocente começara a acontecer entre os dois, contudo, em vez
de ciúmes, ela foi acometida por uma espécie incomum de conforto, embora não
soubesse explicar o porquê.

– Você quer dar um passeio comigo? – inquiriu com carinho.

– É claro! – Os olhos dele brilhavam, esperançosos. Vamos até a sacada


observar os preparativos para a primeira noite de festival.
Karen consentiu e, posicionando-se atrás dele, empurrou a cadeira até lá.
Os dois permaneceram calados, observando a montagem da festa. Um coreto no
jardim havia sido ornamentado com peônias e, ao seu redor, bandeirinhas
coloridas se estendiam por muitos metros. Tudo ficava alegre e colorido.

– Espere até ver os fogos de artifício – Roque interrompeu seus


pensamentos, percebendo sua expressão admirada.
– Está tudo muito lindo.

– Não tanto quanto você.

Ela corou e encarou as próprias mãos, sentindo-se um pouco


incomodada. Nem mesmo um simples elogio daquele rapaz lhe soava agradável.
⚜⚜⚜

O Filho do Imperador 169


As pequenas lanternas espalhadas e as bandeirolas coloridas
alegravam o local, mas o coração do Delfim permanecia magoado. A culpa
fora dele, ele sabia. Muito provavelmente perdera a melhor chance que teve
de ouvir uma declaração de sua amada.

Ele olhava ao redor, sentindo-se sozinho com a ausência de Oscar,


que voltara para casa para castigar a irmã. Bráulio era um bom amigo, mas
estava ocupado com a família. Seu pai, ele tentava evitar, de modo que só
lhe restou a própria companhia. Então, afundou as mãos nos bolsos da farda
que usava e decidiu caminhar sozinho.

Em certo ponto da festa, Sales avistou a cadeira do irmão, que


estava cercado por Karen e Perla, duas garotas que já foram apaixonadas
por ele. Marisa também estava junto, entretanto mesmo de longe, o príncipe
podia notar que ela mal falava. Ele se aproximou, cautelosamente, sem
conseguir prever como seria recebido. O mistério logo terminou, assim que
Karen colocou os olhos nele.

– Ora, vejam se não é o Delfim! – a princesa exclamou, a voz


forçosa. Ela estava deslumbrante. Seu cabelo preso, em um penteado alto,
mostrava o pescoço. O vestido de alças finas era amarelo claro e cinturado,
acentuando seus quadris.

– Boa noite – Sales cumprimentou, com cara de poucos amigos.

– A noite está ótima! – Ela se antecipou aos outros. – Marisa,


Roque, vamos dar uma volta? Aposto que Perla e o Delfim gostariam de
conversar em particular.

Roque desviou os olhos para Perla, que a essa altura engolia em


seco. Sales não disse uma palavra, enquanto Karen lhe dava as costas,
levando o infante consigo. Marisa insinuou retirar-se com eles, mas a irmã
agarrou-a pelo braço.

– Fique. – Sussurrou, e os três, constrangidos, tiveram que procurar


por algum assunto.

Sentados próximos a uma barraca de prendas, Karen e Roque


conversavam. Para melhor dizer, a princesa tagarelava enquanto ele olhava
por cima de seus ombros, observando a cuidadora conversar com o irmão.
Após alguns minutos ele a percebeu vindo em sua

170 Camila Antunes


direção com o semblante fechado, de modo que pediu para Karen lhe buscar algo
para beber. Ela saltou, fazendo sua vontade, e não estava mais por perto quando
Perla chegou, semicerrando os olhos para ele.

– Escute aqui, meu príncipe. Com todo o respeito, peça para sua futura
noiva controlar-se. Se Vossa Alteza Imperial não se importa em ser uma peça no
jogo desses dois, fique sabendo que eu me importo. Mantenham-me fora disso.
Roque ameaçou responder, mas Dom Fernão chamou a atenção de todos
para que se juntassem à mesa de refeição. Perla se posicionou atrás dele,
sinalizando para Karen que o levaria até lá. A princesa consentiu, e quando
chegaram ao local, cada uma acomodou-se em uma das cadeiras que o
rodeavam. O irmão, por sua vez, sentou-se de frente para ele, no lado oposto da
mesa.

Antes de se servir, Sales baixou os olhos e calou-se por um momento.


Ninguém, além de Karen e, talvez Perla, parecia notar o que ele fazia. Karen
baixou seus olhos e, igualmente, fez um breve agradecimento pelo alimento.
Apenas os homens mais importantes, como o general do Exército, o
Lorde Comandante, e alguns embaixadores de países da Aliança, se sentavam
próximos da família imperial. Todos eles, exceto Bráulio, pareciam empenhados
em mimar o Delfim.
Alguns o elogiavam, outros relembravam os feitos do passado. Pareciam
preocupados que, caso Dom Fernão falecesse a qualquer momento, o novo
imperador se esquecesse deles.
– Lembro-me quando o Delfim ganhou a honraria de caça – um homem
que Karen não conhecia anunciou.
– Foi épico – elogiou o pai. – Sales nunca gostou de caçar.

– Ele me deu essa medalha – Roque comentou, distraidamente. Sales


dirigiu um sorriso para ele, aproveitando o momento
para propor uma trégua.

– Sempre gostamos de compartilhar nossas conquistas, não é, irmão?

O Filho do Imperador 171


– Não seja assim tão baixo – o infante soltou, fazendo todos os
olhos erguerem-se dos pratos. Seu semblante ofendido fez Sales arregalar
os olhos, dando-se conta da dubiedade das suas palavras.

– Não seja tolo, Roque.

– Garotos! – Dom Fernão repreendeu.

– De fato – Roque continuou. – Compartilhamos muitas coisas, mas


minha esposa não será uma delas.

– Ótimo. Agora eu sou uma “coisa” – Karen se pronunciou pela


primeira vez. – Vocês estão agindo feito duas crianças ridículas.

– Eu não estava falando de você – Sales encarou-a, perplexo. – Não


sei como chegamos a isso.

– Não venha com essa, Sales! – o infante bradou, tomando a mão de


Karen sobre a mesa. – Minha esposa será exclusivamente minha. É
importante que você entenda que minha condição não é um empecilho para
isso.

– Roque, você está me envergonhando. – Karen puxou a mão que


ele segurava, mas isto não o inibiu.

– Quando ela entrar em meu quarto para consumarmos nosso


matrimônio, eu estarei em lugares onde você nunca esteve ou estará.

Essas palavras foram a gota d’água. Nem mesmo Dom Fernão


interviu quando Sales levantou-se da cadeira, esmurrando a mesa em um
estrondo.

– Já chega.

Ele deu a volta por ela, até o assento de Roque, e ergueu-o pela
camisa, até que seus rostos estivessem na mesma altura.

– Sales – o Pai finalmente levantou-se, mas o Delfim não desviou os


olhos do irmão, dizendo entredentes:
– Como ousa se referir a ela assim quando nem mesmo o irmão está
aqui para defendê-la? Você não passa de um maldito covarde.

– O que acha que está fazendo? – Havia pânico em seu olhar. –


Solte-me imediatamente!

– Isso acabou. Neste momento. Você entendeu?

– Solte-me, Sales. Você não tem poder para isso. – Seus olhos
desviaram-se para o pai, interrogativamente.

172 Camila Antunes


– Sales, solte seu irmão.

Ele não parecia ouvir, até que uma mão lhe tocou o antebraço.
Imediatamente Sales reconheceu o toque cálido de Karen, e seus músculos
rígidos relaxaram. Ele desceu Roque até a cadeira e, enquanto o irmão encarava
as próprias pernas com estranheza, tomou-a pelo braço, afastando-a dele.

– Desculpe-me por ter sido obrigada a ouvir isso.

Karen engoliu em seco. Nunca o vira tão transtornado. Ela tocou seu
rosto e entreabriu os lábios, insinuando uma resposta, quando um grito de dor
irrompeu em seus ouvidos. Os dois viraram-se para encarar o infante, que se
contorcia sobre a cadeira. Perla o socorria e Dom Fernão já havia saltado em sua
direção. Alguém gritou pelo doutor Noronha, que por sorte estava presente.

Sales encarava a cena, toda aquela correria ao socorro de Roque, e tinha


certeza de que não podia ser fingimento. Nunca vira o irmão agonizar daquela
forma.

– Minhas pernas! – bradava, infligindo a ele o pior sentimento de culpa.


Parecendo adivinhar seus pensamentos, quando o imperador carregou o filho
para fora dali, passando por ele, Perla parou à sua frente, para dizer:

– Não se preocupe. Dor é um bom sinal.

Ele consentiu, aflito, deixando uma lágrima escapar.


VINTE
O recomeço

Todos aguardavam do lado de fora do centro fisioterápico, exceto


por Dom Fernão, que estava lá dentro com o filho, e Sales, que se retirara
por um momento. Quando enfim saíram da sala, Roque já estava mais
calmo, embora suado e abatido, e pediu para ser levado para o quarto.

– Eu… devo acompanhá-lo? – Karen perguntou, insegura sobre o


que fazer.

O infante, porém, sequer olhou para ela.

– Quero Perla comigo.

As duas encararam-se e a princesa consentiu com a cabeça,


apertando os lábios para ela, em um meio-sorriso. Não podia evitar o alívio
por não ter que se sentir, forçosamente, uma intrusa mais uma vez.

Quando passaram por Karen, porém, Roque sinalizou para que a


moça parasse. Os olhos permaneciam fixos nas próprias pernas.

– Desculpe-me por envergonhá-la – resmungou entredentes. A voz


saía como se lhe ferisse a garganta.

– Não pense nisso agora – Ela tentou interromper, mas ele meneou a
cabeça.

– Ele tem razão, Karen. Por mais que me doa, nós dois sabemos a
verdade. Isso acabou.

– Roque… – ela olhou em volta. Algumas pessoas fingiam


desinteresse, outras não faziam questão de disfarçar os olhares. – Não é
melhor que conversemos em uma outra hora?
– Não. O melhor é encerrarmos o assunto de uma vez – sua voz
estava um pouco mais alterada que o de costume. Até mesmo Perla

174 Camila Antunes


parecia assustada. A cuidadora tocou-lhe no ombro e o infante, com um sorriso
desgostoso, levou a mão até a dela, cobrindo-a com sua.

– Depois de tudo, Karen! De todo esse tempo te cortejando. Eu te entreguei o


meu coração e derramei lágrimas por você! Enfrentei meu próprio irmão, meu
futuro rei! E tudo isso para você nunca dirigir a mim menor afeto. Eu nunca fiz
nada além de te amar e foi assim que me retribuiu: ficando ao lado de Sales na
frente de toda essa gente.

Ele apontou com a cabeça e Karen voltou a olhar ao redor para ver que
todos os encaravam. Ela manteve a expressão firme para mostrar que não estava
envergonhada. Pelo contrário, nenhuma palavra poderia descrever o peso que
parecia sair de seu corpo. Durante esse tempo, pensava em inúmeras maneiras de
encerrar o compromisso e agora ele simplesmente estava fazendo isto.
Entregando a liberdade de volta para ela, assim, de mão beijada. Karen ficou ali,
parada por alguns segundos, analisando como aquela atitude do infante tornava
tudo, incluindo a falta de remorso que sentia, tão mais fácil.

– Roque – Perla tentou interromper, mas sua súplica foi tão ignorada por
ele quanto seu olhar de compaixão pela princesa.

– Eu sequer posso dizer que quero sua infelicidade, porque estaria


mentindo – ele sorriu, desacreditado, jogando o pescoço para trás para conter as
lágrimas que ameaçavam escorrer de seus olhos marejados. Mas se posso te
conceder alguma felicidade, que seja esta: a de te tornar livre de qualquer
compromisso comigo.

Karen estarreceu-se, de modo que, quando ele se retirou, tudo o que


sentiu vontade de fazer foi caminhar na direção de seu quarto.

A princesa subiu as escadas devagar, num local que não havia sido
adaptado para rampa. Sua mão deslizou pelo corrimão gelado até chegar ao seu
andar. O coração ainda processava os últimos acontecimentos quando ela avistou
Sales parado à porta, exatamente como costumava fazer nos primeiros dias de
sua estadia. A primeira coisa que pensou foi em não contar a ele sobre a cena de
Roque e o fim do seu compromisso. Nada justificava que Sales não lutasse por
ela, que ela não fosse prioridade em sua vida ou que a decisão de ficarem juntos
não partisse dele.
O Filho do Imperador 175
– Ouvi dizer que as dores de meu irmão cessaram – resmungou,
quando ela o alcançou.
– Sim.

– Então o que está fazendo aqui?

– Ele me pediu para descansar. Não era eu quem deveria lhe fazer
essa pergunta?
Ela passou por ele, entrando no quarto, mas quando sugeriu fechar a
porta o príncipe estendeu a mão, segurando-a.
– Já passamos por isso – disse, caminhando em sua direção. Seus
passos firmes a faziam andar para trás. – Escute o que eu tenho a dizer.

– Apenas diga, Sales. – Ela fechou os olhos, exausta. – Diga de uma


vez.
– Você estava certa. Eu estava errado – afirmou, mas Karen parecia
ainda mais confusa.
– Do que está falando?

– De tudo. Eu não deveria ter priorizado os sentimentos de meu


irmão aos seus. Droga, eu não deveria ter priorizado por um momento
sequer. Eu fui um idiota, Karen, um completo idiota desde o primeiro
capítulo da nossa história. Desde o dia do seu aniversário.
– Está enganado, Vossa Alteza. – Karen não podia esquivarse, de
modo que continuou afastando-se para trás. – Esse não foi nosso primeiro
capítulo. Esta história começou há muitos anos, desde a amizade de nossos
pais.
– Não importa. Nós podemos começar de novo. Podemos escrever
uma história nova, se você me perdoar.
– Bom, parece mesmo que estamos condenados a estabelecermos
parentesco.
– Você virá de novo com essa coisa de parentesco? – A essa altura,
as costas da princesa já estavam contra a parede.
– O que fará com seu tão precioso irmão? – Mais uma vez resolveu
testá-lo.
– Eu me entendo com ele. Ele terá que aceitar.
176 Camila Antunes
– E quanto a mim? Você acha que pode me perdoar? Acha que pode
esquecer-se daquele beijo? Não seria melhor deixar tudo como está?

– Deixe-me ver se entendo – Sales disse, mais um passo em sua direção.


Agora, com o mais sucinto movimento, seus corpos se tocariam. – Caso eu não
possa, seríamos parentes?

– Exatamente, Vossa Alteza.

Ele esticou um braço, espalmando a mão na parede ao seu lado e Karen


fixou os olhos em seus músculos. Qualquer coisa pare-cia mais simples do que
encarar o seu olhar.

– E suponho que dividiríamos este teto?

– Isso não seria escolha minha. – Seus olhos desviaram-se para sua
lateral livre, mas logo o Delfim encurralou-a com o outro braço.

– E ficaríamos próximos, desse jeito?

– Ora, não desse jeito.

Ele abafou uma gargalhada, contudo a distância entre os dois era tão
ínfima que ela pôde sentir o gosto do seu hálito.

– E acha que eu poderia evitar? Acaso quer me tornar um pecador?

– Não! – respondeu, em tom de indignação. O fato de o Delfim não saber


a verdade sobre o fim de seu compromisso com Roque tornava aquela pergunta
ainda mais esquisita. – Meu Deus, Sales!

Ele não se comoveu. Em vez disso, prosseguiu com o discurso:

– Diga-me, princesa, seremos parentes que fazem isto? – perguntou,


pressionando o tronco contra o dela.

– Não. – Karen insinuou afastá-lo, contudo as mãos que repousaram no


peito dele, jamais chegaram a empurrá-lo. Nem mesmo quando o rosto do
príncipe alcançou seu ombro semi descoberto.
– Entendo. Seremos parentes que fazem isto? – sussurrou, com a boca
quase alcançando sua pele. Então levou dois dedos cuidadosamente até a alça
fina de seu vestido e escorregou-a pelo ombro, que Karen ergueu um pouco, em
reflexo. Sales depositou um beijo úmido ali, fazendo-a deitar o pescoço naquele
sentido. As mãos dele firmaram-se em seus braços.

O Filho do Imperador 177


– Responda. Seremos?

– Na-não. – Calor subia por suas pernas, fogo por sua espinha.

– Hum. – A boca deslocou-se para seu pescoço. Mais beijos úmidos,


de lábios entreabertos, foram investidos naquele novo terreno. – Quando
formos parentes, minha querida, faremos isto? – despejou as palavras na
pele dela, que se arrepiou, responsiva.

As mãos que descansavam no peitoral do príncipe, migraram para


seus cabelos, pedindo por ele.

– Ah, Sales, que droga!

– Você não respondeu – continuou, levando as mãos para as costas


dela, e as desceu até a altura dos quadris da moça, puxando-a para si. –
Responda ao seu futuro imperador.

– Você não é meu… – Karen tentou rebater, mas ele jogou a cabeça
para trás para encará-la e tratou de impedir que ela concluísse a frase.

– Ah, mas se formos parentes, serei. Não serei, princesa?

Ela sabia que ele estava certo, mas o que aquilo queria dizer?

– Está me ameaçando, Sales de Ravin?

– Olhe em meus olhos. Diga-me você mesma.

Ela o encarou, enquanto o príncipe afrouxava os braços que a


cercavam, com cuidado. Como ele era cuidadoso com ela. Como poderia
desejar sair daqueles braços? Agora que os dois estavam juntos desse jeito,
mais do que nunca lhe parecia ridículo que ela tivesse considerado viverem
sob o mesmo teto estando casada com seu irmão. Como ela poderia fazê-lo?
Como poderia casar-se com qualquer pessoa que não fosse ele?

– Não entendo o que esse olhar significa – sussurrou, engolindo a


própria saliva.
Os dois já não se tocavam quando ele resolveu explicar:

– Escute bem o que vou dizer, Karen – disse, o semblante


inexpressivo. – Sim, nós seremos parentes. Seremos parentes exatamente
como você sugeriu. Mas eu sou o segundo homem mais poderoso do
mundo, e não estou brincando quando digo que haverá um preço para isso.
Haverá uma condição, está ouvindo? – o olhar dele era

178 Camila Antunes


desesperado, beirava ao perverso, e o coração de Karen perdeu-se no ritmo
desenfreado de seus batimentos. – Apenas seremos parentes sob essa
condição: você será minha e eu serei seu. Eu serei a droga do seu
imperador, Karen, e você será minha rainha. Será minha imperatriz e minha
esposa. Nenhum outro homem irá te tocar, além daquele que você ama. –
Agachando-se, ele se ajoelhou. – Seja minha esposa e eu nunca… Meu
Deus! Eu te prometo, meu amor…. Nunca mais porei Roque ou outra
pessoa acima de você outra vez.

– Sales… – seu olhar atônito vislumbrava aquela cena, sem


realmente enxergar com clareza que o futuro Imperador do Novo Mundo
estava de joelhos aos seus pés.

– Case-se comigo, minha querida. Não posso realmente ordená-la a


fazer isto, mas, com toda a minha alma, eu suplico. Aceite-me, meu amor.

Sem conseguir conter as lágrimas, Karen levou as mãos aos lábios e,


de repente, deu as costas para ele.

– Karen… – sussurrou, angustiado, e ela apenas estendeu uma mão


espalmada pedindo para que esperasse. Sales fechou a boca e aproveitou
para procurar em seu bolso o objeto que lhe faltara durante o pedido. Nesse
meio tempo, a moça caminhou até a penteadeira, onde abriu seu singelo baú
de joias. De lá tirou um pequeno papel dobrado e caminhou de volta até o
príncipe. Posicionando-se

à sua frente, abaixou-se até que seus joelhos estivessem dobrados, exatamente
como os dele. Ela não reprimia mais o choro, de modo que Sales precisou
secar suas lágrimas com as próprias mãos.

– Isto é um sim? – perguntou, esperançoso.

– Em breve você saberá. – Desdobrando o papel, Karen passou os


olhos por ele, e deixou escapar um breve sorriso, preparando-se para recitar
as palavras que um dia resolvera guardar para seu amado.

Ela inspirou profundamente, como se precisasse de fôlego extra para


ler:
– Não me instes para que te deixe, e não me peças que te abandone;
porque aonde quer que tu fores, irei eu, e onde quer que pousares, ali
pousarei eu; o teu povo será o meu povo, o teu Deus será o meu

O Filho do Imperador 179


Deus. – Uma lágrima correu pelo rosto de Sales ao som daquelas palavras
que já conhecia bem. Karen inclinou-se para ele, descansando um beijo
suave sobre o rastro que ela deixou, mas logo voltou a sua posição para
concluir a leitura – Onde quer que morreres, morrerei eu, e ali serei
sepultada. Faça-me assim o Senhor, e outro tanto, se outra coisa que não
seja a morte me separar de ti.
5

O Delfim a tomou pela mão, envolvendo seu pulso com a corrente


que fizera para ela e Karen percebeu, ao lado da esmeralda agora havia um
pequeno diamante em forma de coração. O jovem príncipe encostou os
lábios ali, depositando na corrente um beijo casto, para logo em seguida
tomar os lábios da amada e fazer o mesmo. Seus corações estavam em
sincronia e suas testas descansaram-se uma na outra. Os dois mal pareciam
acreditar que, finalmente, nada os impediria de ficarem juntos.
5 Versículos bíblicos (16 e 17) do primeiro capítulo do livro de Rute. No contexto original, essas
palavras são ditas de numa nora para a sogra.
VINTE E UM
O novo acordo

Com os dedos entrelaçados, os dois correram pelos degraus do castelo,


avançando pelos lances de escada, ignorando os olhares curiosos dos criados e
dos guardas, até que finalmente chegaram ao jardim. Ainda havia resquícios da
festa que acontecera ali: bandeirolas pisoteadas, algumas ainda penduradas.
Funcionários que faziam a limpeza final ergueram os olhos para os dois,
cumprimentaram com suas reverências costumeiras, e voltaram ao trabalho. Pela
cintura, Sales a afastou para longe do alcance das pessoas, e os dois chegaram ao
lago das vitórias régias, no jardim. Ele posicionou-se na frente dela, repousando
as mãos em seus quadris e encarando seus olhos. Karen tocava-lhe os braços
musculosos com delicadeza. O ritmo do coração permanecia frenético em
decorrência dos últimos acontecimentos.

Ávido, cobriu a boca dela com a sua, sentindo o calor que


convencionalmente surgia, sempre que os dois estavam tão próximos. Sua mão
deslizava pelo tecido fino do vestido da moça. Tão fino era, que os dedos do
Delfim eram capazes de sentir a calidez da pele dela enquanto tomava aqueles
lábios para si, como um homem desesperado, inebriando-se aos poucos com um
doce elixir, aprazível, balsâmico, cujo sabor o fizesse beirar à loucura. Seus
movimentos eram cada vez mais sôfregos, aturdidos, até que lhe faltou fôlego,
de modo que precisou forçar-se a parar por um momento, por menor que fosse a
vontade que sentisse de fazê-lo.

– Ah, Karen – conseguiu dizer, ofegante, com o rosto dela entre as mãos.
– Sou incapaz de explicar os sentimentos que você causa a mim.
Com os olhos, Sales varria sua face levemente corada, a boca entreaberta,
e seus olhos, belíssimos olhos castanhos, que possuíam

O Filho do Imperador 181


um brilho ainda mais intenso do que o habitual. Naquele momento, mais do
que nunca, ele tinha certeza de que não haveria outra pessoa no mundo que
pudesse ocupar aquele lugar em sua vida. Depois dela, jamais haveria outra
pessoa que ele cogitasse aceitar em sua família, em sua cama ou no trono ao
lado daquele ao qual ele ocuparia. Não haveria outra pessoa a quem ele
pudesse entregar o bem mais precioso que tinha, pois jamais poderia aceitar
dá-lo a alguém por quem sentisse menos do que aquilo que sentia agora.
Aquele, ele sabia, era o segundo maior sentimento que possuíra. O segundo
melhor momento que vivera. Até agora.

– Sales – Karen sussurrou, desviando o rosto quando ele investira os


lábios em sua direção mais uma vez. Suas mãos o empurravam com
delicadeza. A voz falhava. – É melhor… que nós… nos controlemos.

– Ah, meu bem – disse, depositando um beijo que lhe atingiu


metade dos lábios e afrouxando a mão que lhe apertava as costas. – Você
está certa. Desculpe-me.

Deu um passo para trás, recompondo-se, e acariciou o rosto dela


com suavidade.

– Se meu irmão sonhar com uma coisa dessas, é capaz de matar a


nós dois – a angústia em sua voz fez com que ele sentisse uma pontada de
remorso.

– É melhor que voltemos para dentro do castelo. Não gostaria de ter


problemas com Kilian. Não quero que nada atrapalhe a felicidade da minha
noiva.

Ele já a puxava pelas mãos, quando o braço pesou. Virando-se para


encará-la, percebeu que ela não se movia.

– Na verdade – ela sussurrou. – Há algo sobre o qual gostaria que


falássemos.

Uma ruga de preocupação surgiu no rosto do príncipe e alguma dose


de coragem foi necessária para perguntar do que o assunto se tratava:

– Você pensou melhor? Está arrependida por ter se decido por


mim?

182 Camila Antunes


– Decidido-me por você? Sales, eu jamais me decidi por você. Não é
como se eu tivesse feito uma escolha entre você e seu irmão.
Ele a encarava, intrigado.

– Eu amo você, Sales, e não o amo. Mas se precisasse escolher entre os


dois, eu teria escolhido a mim. – Os olhos do príncipe entregavam o que ela
imaginava que estivesse pensando. As palavras bonitas que dizia neste momento,
não condiziam com a forma como agiu nas últimas semanas. – Quer saber,
Sales? Toda essa coisa com Roque, no começo, era divertida. Eu nunca tive a
intenção de me apaixonar por ele, mas cheguei ao ponto de achar que poderia.
Isso foi no começo. Não depois do que houve entre nós. Todo esse tempo, Sales,
exceto pelos momentos em que estávamos nos alfinetando, todo esse tempo que
passei com ele, se foi pensando em alguém, esse alguém era você. Eu vi a dor
em seus olhos. Foi o seu desejo de fazê-lo feliz que me deu vontade de fazê-lo
feliz.

– O que está dizendo, meu amor?

– Estou dizendo que não houve escolha, Vossa Alteza. Não há o que
escolher, entendeu? É você que eu amo. Apenas você.
Os lábios dele elevaram-se em uma pequena curva, uma curva de alívio,
e ele tomou sua mão para depositar um beijo suave. Ainda assim, estava certo de
que havia mais a ser dito, de modo que fechou os olhos um por um momento e,
quando voltou a abri-los, sussurrou:
– Por que eu sinto que há um “porém” por vir?

– Porém… – ela prosseguiu, erguendo um ombro até tocar o queixo,


numa espécie de charme cuidadoso, o que só poderia significar que Sales não
iria gostar das palavras que diria. – Eu tenho um pedido a fazer.

Um pequeno aceno de cabeça, foi o seu sinal para que ela continuasse.
– Tornar-me sua esposa é tudo o que eu mais desejo, eu te prometo. –
Seus dedos deslizaram sobre o queixo quadrado do rapaz.
– Mas eu… eu não quero que isso aconteça agora.

– Não precisa ser agora.


O Filho do Imperador 183
– Deixe-me concluir. – Karen esboçou um meio sorriso delicado. –
Não me sinto pronta ainda. Não me sinto uma mulher capaz de… bom,
cumprir certas obrigações conjugais. Sou só uma menina…

Sales agora tinha uma expressão maliciosa no rosto.

– Entendo.

– Além disso – permaneceu séria. – Há outras coisas que gostaria de


viver antes de me tornar uma mulher casada. Outras experiências. – Antes
que a sobrancelha dele tocasse o cabelo, de tão erguida que estava, resolveu
esclarecer: – Como me formar, por exemplo.

Sales, que ainda segurava sua mão, soltou um suspiro pesado.


Aquela não era a melhor proposta que ela lhe fizera. Era, porém, razoável.
O que seriam alguns anos perto de uma vida inteira juntos, afinal?

– De quanto tempo você precisa?

– O que meu noivo me sugere?

Ele jogou a cabeça para trás, olhando para cima, como se esperasse
que a resposta para aquilo caísse do céu. Que despencasse de alguma
estrela, ou que a voz do próprio Deus rasgasse o firmamento para ajudá-lo a
decidir.

– Há um homem na bíblia que esperou catorze anos para casar-se


com a mulher amada, e ele a amou até o dia em que ela fechou os olhos.

– Jacó.

– Alguém andou estudando. – Não conseguiu disfarçar o orgulho.

Ela consentiu, brincalhona, antes de acalmá-lo.

– Não vamos precisar de tanto tempo, eu prometo. Três aniversários


serão o suficiente.
Ele ponderou por um momento, para logo concordar.
– Dezoito. É uma boa idade. Eu gosto.

Os dois sorriram, antes de perderem-se em outro beijo.

⚜⚜⚜

Com um giro lento, quase imperceptível, na maçaneta, Karen voltou


ao quarto, no meio da madrugada. Através da porta entrea-

184 Camila Antunes


berta e com apenas a cabeça no interior do recinto, o Delfim se despediu dela,
soltando estalos intermináveis em seus lábios. Os dois pareciam incapazes de
passarem cinco minutos sozinhos, e ela começava a se preocupar, secretamente,
com o que aconteceria com seus sentimentos ao fim do verão.

– Bom dia, joia do dia! − Na manhã seguinte, Ingrid a despertou com um


leve sopro nos cabelos.

Karen abriu os olhos, sonolenta, e esboçou para ela um meio sorriso


caloroso. Seu coração sentia uma paz maravilhosa, daquelas que a pessoa sente
quando finalmente resolve um problema pendente, ou quando enfim tem uma
conquista que há muito esperava.

– Bom dia! Que horas são? – perguntou, sentando-se na cama e cruzando


as pernas à frente do corpo. Com as mãos, deu duas batidinhas leves no colchão
para que Ingrid se juntasse a ela.

– Tarde demais para o café da manhã imperial!

– Ah! – Ela afundou o rosto nas próprias mãos. – Outra vez? Não quero
nem imaginar o que Dom Fernão deve estar pensando sobre mim neste
momento!

– Que a senhorita é péssima em honrar seus compromissos,


provavelmente.

– Ingrid! – ela protestou, irreverente. Passando as mãos sobre uma


almofada, jogou-a de leve sobre a dama. – Você não tem jeito.

A moça sorriu e empertigou-se ao seu lado.

– Pulseira nova? – Em seu rosto, estava estampada a curiosidade pela


explicação que esperava.

– Pulseira antiga. Pingente novo – Sua Alteza explicou, tentando fazer


mistério, embora soubesse, não conseguiria manter segredo sobre os
acontecimentos da noite anterior por mais nenhum minuto. Desse modo, ela deu
um pequeno pulo sobre a cama, aproximando-se ainda mais de sua dama, e
envolveu seu braço para contar seu segredo. Foi assim que Karen contou-lhe
tudo – bom, quase tudo, já que omitiu os fatos sobre a sala secreta e a clareira –
até que finalmente chegou à noite anterior e ao pedido de casamento.

O Filho do Imperador 185


– Minha nossa – Ingrid comentou, com uma naturalidade peculiar. –
Que história interessante.

– Interessante? – Karen ergueu uma das sobrancelhas, seus


sentimentos eram um misto de surpresa e decepção. – É só o que tem a
dizer?

Foi quando ela se deu conta. Ingrid não fitava seus olhos, em vez
disso, a moça encarava fixamente as próprias mãos. Ainda assim, a princesa
teve bastante certeza, era possível perceber que ela corava.

– Ingrid, o que está me escondendo? – Inquiriu.

– Na-nada. Por que Vossa Alteza me toma?

– Está me escondendo algo, sim, Ingrid! Trate de me explicar do


que se trata.

– Ah, a senhorita realmente me conhece muito bem, devo admitir,


mas eu não gostaria de contar o que escondo, Vossa Alteza.

– Ingrid! – Karen repetiu, impaciente. – Eu não me importo. Aliás,


eu não esperava que você sentisse vontade de me contar um segredo que
está guardando. Não sou uma total idiota!

– Claro que não, Vossa Alteza.

– Então fale de uma vez, criatura!

– Tudo bem, já que não tenho opção. Eu direi, mas faço um

aviso: a senhorita não ficará satisfeita.

Um raio de preocupação se refletiu na espinha de Karen. Ela já


pedia a Deus, em silêncio, que o que quer que Ingrid escondesse não
interferisse no seu compromisso com Sales.

– Diga, Ingrid!
– Bem… acontece que… talvez… isso não tenha sido uma completa
novidade para mim.

– Como assim? Como não é uma novidade? Já suspeitava que


ficaríamos juntos? É disso que fala?

– Não exatamente.

– O quê, então?

– Talvez eu estivesse em seu quarto, ontem, quando a senhorita


chegou do festival…

186 Camila Antunes


– O quê? – Karen saltou da cama, parando de frente para ela.
Imediatamente sua mente começou a trabalhar para rever os acontecimentos da
noite anterior naquele quarto.

– Mas juro que não vi nada demais! Eu apenas estava no closet e… ouvi
vozes e… acabei ficando constrangida demais para sair de lá quando vi o Delfim
pressionando a senhorita na parede…

Ela agora cerrava os olhos com força, levando quatro dedos até a testa.
Mal se lembrava dessa parte da história.
– Ah, meu Deus!

– Por favor, perdoe-me. Quando ele se afastou da senhorita eu fiquei


aliviada, e estava esperando que saísse quando se ajoelhou na sua frente. Desse
modo fiquei encurralada: eu não podia simplesmente interromper uma cena
como aquela.

A princesa deu as costas para ela, desacreditada. O rosto, provavelmente


corado como um tomate maduro, afundava nas próprias mãos. Karen se recusava
a acreditar que aquele momento tão íntimo fora presenciado por outra pessoa.
Aproximando-se, Ingrid teve a audácia de tocá-la no braço, como se pedisse, por
favor, para que ela relaxasse.

– Eu tentei não ouvir ou fofocar, mas… foi tudo tão lindo.

– Foi lindo mesmo, não foi? – sussurrou com a voz abafada. Seu coração
estava inclinado a sentir-se aliviado, pelo simples fato de saírem do quarto e não
terem trocado mais carícias por ali. Karen também se inclinou, quando deixou o
corpo pender na direção de Ingrid, que abriu os braços, envolvendo-a enquanto
ainda escondia o rosto. Apreciando a sensação de maciez ao acariciar os cabelos
de sua princesa, a dama disse baixinho:

– Finalmente aquele tolo deu-se conta da joia que tinha ao seu alcance.
Eu não poderia estar mais feliz pela senhorita.
Karen soltou as mãos e retribuiu o abraço da amiga. O sorriso em seu
rosto não poderia estar mais escancarado.
– Ah, Ingrid! Se eu apenas pudesse descrever em palavras o que estou
sentido! Obrigada por se alegrar comigo!
– Nada me alegraria mais do que ver se concretizarem os desejos do seu
coração.

O Filho do Imperador 187


Enquanto ainda se encaravam, emocionadas, uma batida fez-se na
porta do quarto. Ingrid apressou-se para atender, quando um criado, atônito,
ao qual nenhuma das duas conhecia, insistiu para que o acompanhassem
com urgência até o centro fisioterápico.

O coração de Karen saltou sobre o peito e, agarrando a dama pela


mão, ela pôs-se a seguir o jovem rapaz.

Quando adentraram a sala, avistaram Roque de pé, com os braços


meio erguidos ao lado do corpo, apoiados em uma muleta. Ao seu lado,
Perla lhe dava suporte e ao fundo do cômodo estava Sales, com os lábios
pressionados e olhos marejados.

Lágrimas pesadas escorriam dos olhos do infante quando ele os


ergueu para ela. Nenhuma palavra foi dita por eles. Houve apenas silêncio,
lágrimas, alguns meio sorrisos, outros (como o de Roque) escancarados, e o
som do pulsar de muitos corações. Até que um ruído estrondoso fez com
que todos se voltassem para a porta lateral do recinto, de onde Dom Fernão
irrompeu.

Durante alguns segundos, ele permaneceu estático, encarando o


filho caçula com o rosto atônito, angustiado, como se precisasse saber o que
aquilo significava, antes de esboçar outra expressão.

– Espere – Roque pediu ao pai, para logo encarar a cuidadora, que


passou uma das mãos por suas costas.
Foi quando aconteceu.

Lentamente, um dos joelhos do infante se ergueu e, mantendo a


concentração, ou talvez o equilíbrio, ou talvez as duas coisas, ele conseguiu
mover a perna ligeiramente para frente, até apoiá-la novamente no chão. O
pai deu um passo em sua direção.

– Espere! – insistiu. – Eu vou até o senhor.

O cenho do homem franziu-se completamente enquanto aguardava.


Do lado oposto, Sales tinha o cotovelo apoiado no braço que cruzava o
corpo e passava a mão sobre o rosto, do queixo aos olhos, observando
aquela cena.
E assim Roque cumpriu o que prometera. Passo após passo,
enquanto se aproximava do pai. Antes que o alcançasse, porém, o

188 Camila Antunes


imperador avançou, com os braços escancarados, recebendo o filho que se
desmontava na segurança de seu colo. O rosto do homem, afundado em seu
pescoço, estava contraído. Os dedos apertavam-se tanto em sua camisa branca,
que desapareceram sob ela. Roque estava praticamente erguido do chão, sendo
ensopado pelo choro e soluços daquele homem tão grande quanto seu irmão.

Ingrid pedira licença tão logo saíra da sala com a princesa e o Delfim,
deixando-os a sós no corredor do ambulatório. Cuidadoso, o príncipe ergueu
uma das mãos da noiva até os lábios e a manteve ali por longos segundos, como
se apenas a sensação de seu toque ou o aroma que recendia de sua pele gerassem
um efeito balsâmico sobre ele. Karen levou a outra mão até a lateral de seu rosto
fazendo-lhe, com o polegar, um carinho na têmpora.

− Como está se sentindo, meu querido?

Sales inflou as bochechas, soltando uma lufada de ar pela boca. Uma


pequena lágrima – cuja procedência Karen fora incapaz de deduzir – escapou de
um de seus olhos, diretamente para o carpete.

– Eu não poderia estar mais grato a Deus.


VINTE E DOIS
De volta ao lar
“Tudo tem o seu tempo
determinado, e há tempo para
todo propósito debaixo do céu:
tempo de abraçar e tempo de
afastar-se de abraçar.”

Eclesiastes 3:1,5 (Bíblia Sagrada).

Tanta coisa acontecera na última semana, e agora que Karen


guardava suas coisas, mal podia acreditar que estivesse tão feliz com o
desfecho daquele verão. Ingrid e Olga a ajudavam com as roupas, que
saiam do closet diretamente para suas malas, e ela aproveitava os intervalos
para espiar pela janela o noivo que se exibia elegantemente montado em
castanho.

Sales vigiava sua janela, com o habitual meio-sorriso travesso.


Roque havia desaparecido por um tempo. Ele não engoliu bem a história de
seu noivado com o irmão, mesmo apesar do bom momento que vivia em
sua saúde. Ainda assim, algo dizia a princesa que, mais do que nunca, o
infante não encontraria dificuldade para superá-la.

Quando a última peça de roupa foi guardada, as três dobraram-se de


rir ao perceberem que não conseguiam fechar a mala. Karen chegou a
sentar-se sobre ela, fazendo Ingrid gargalhar até enrubescer.

− Acredito que posso ajudar com isso – a voz imponente de Dom


Fernão fez a moça corar por seus péssimos modos, enquanto as amigas
saltaram para longe uma da outra, em um desespero mal disfarçado.

− Vossa Majestade – disseram em uníssono, com uma


reverência tão exagerada que os rostos quase chegavam a tocarem os pés.

190 Camila Antunes


− Boa tarde, senhoritas – ele cumprimentou contendo o riso e se
aproximou da jovem princesa, estendendo a mão para ela. Totalmente
envergonhada, Karen a aceitou, usando-a para tomar impulso e levantar-se da
mala abarrotada de seus pertences que jazia sobre a cama. Sem dificuldade, o
imperador apoiou uma das mãos sobre o objeto e com a outra, puxou o pequeno
zíper, fechando a bagagem em um só movimento.

− Não tão boa – Karen respondeu, roubando o olhar do homem para ela.
– Afinal sentirei saudades do meu tão querido sogro.
Dom Fernão, a quem ela tanto aprendera a admirar nesses últimos dias,
deixou escapar um sorriso infantil, que lhe derreteu o coração. O imperador
estendeu os braços para a futura nora, a filha de sua amada amiga, e aconchegou-
a com carinho.
− Também sentirei sua falta, criança. Você sabe bem que é como uma
verdadeira filha para mim. – Quando os dois finalmente afastaram-se um do
outro, ele a tomou pela mão, deslizando o polegar sobre o anel que pertencera a
sua antiga esposa. Sales o havia entregado a ela quando revelou o compromisso
ao pai. – Não posso deixar de reafirmar minha imensurável alegria ou de dizer
mais uma vez que esse anel no seu dedo é um enlevo aos meus olhos.

A princesa deixou escapar uma lágrima, a qual ele mesmo secou. Quando
lhe beijou a testa, o Imperador percebeu que as outras duas mocinhas presentes
no quarto também tinham os olhos marejados.

⚜⚜⚜

Os dois haviam passado a tarde juntos. Sales leu algumas palavras do


livro secreto para ela na sala que ainda ignorava que seu pai conhecia. Ele a
ensinara muitas coisas durante o verão e não deixou de ensinar naquele dia. O
Delfim sentia necessidade de fazê-la conhecer o livro e a presenteou com um,
instruindo-a a nele meditar diariamente. Depois caminharam de mãos dadas,
dando voltas repetidas ao longo do lago do jardim até o findar do crepúsculo.
Agora

O Filho do Imperador 191


já era noite e estavam no aeroporto preparando-se para a despedida que no
fundo desejavam adiar.
O príncipe tinha os olhos molhados e segurava sua mão com força.
Com os dedos livres, acariciava a joia em seu pulso.
− Vamos ficar bem, não é?

Ela sorriu, levando as mãos até o rosto dele. Inspirou profundamente


e, com doçura, respondeu:
− Hoje eu sirvo com amor e devoção ao Criador do universo e
todas as coisas cooperam para o meu bem.
Essas palavras foram suficientes para fortalecerem seu coração. Ele
a apertou contra o peito e depositou um beijo doce em sua boca. O cenho
franzido, os lábios fechados, a respiração entrecortada, o desejo de
memorizar os sentimentos que a proximidade dos seus corpos lhe causava.

− Vai com Deus, Branca de Neve. Logo estaremos juntos outra


vez – sussurrou, antes que ela embarcasse na aeronave imperial.

⚜⚜⚜

Dizem que o lar é onde o coração está, e o coração de Karen, a


julgar pelas lágrimas que ela derramara no caminho, havia ficado em Lima.
Ainda assim, a sensação de familiaridade a invadiu instantaneamente,
quando pisou em Vera Cruz. Por hora, aquele ainda era seu lar.

Kilian estava numa sala de retenção, esperando por ela, mas ao


contrário do sorriso que costumava abrir quando se encontravam, o jovem
rei exibia uma ruga de preocupação em sua testa.

− Minha princesa! – exclamou. Os olhos suavizaram-se ao


encontrarem os dela.
Enquanto Ingrid contentou-se em fazer uma breve reverência e
desviar os olhos para os pés – Ingrid jamais encarava o rei. − Karen
adiantou os passos para cair nos braços que o irmão abrira para ela.
− Que saudades, meu querido irmão!

192 Camila Antunes


− Veja só esse anel – disse, afastando-se. − Fico feliz que meu
futuro cunhado seja tão generoso com minha irmãzinha.

− Era da mãe dele, portanto o valor é inestimável.

O sorriso breve que ele abriu em resposta foi o suficiente para deixá-la
intrigada. A princesa encaixou seu braço no dele e caminhou ao seu lado até o
expresso real. Os dois entraram na parte de trás do automóvel enquanto Ingrid
sentou-se na cabine dianteira, em um ambiente separado. Karen não conseguiu
esperar que chegassem a Salvaterra para perguntar o que estava acontecendo
com ele.

− Kilian, por favor, diga-me o que está havendo.

Ele soltou um suspiro pela narina, e levou a mão ao rosto, esfregando a


barba que tinha por fazer.

− Julia foi embora.

−O quê? – Karen sobressaltou-se. – Por quê?

− Ela não quis levar adiante o que havia entre nós.

Ele estava tão magoado que a irmã era capaz de perceber a protuberância
que se formava em sua mandíbula.

− Kilian, eu não entendo. O que aconteceu para que ela tomasse


essa decisão?

− Eu a disse que não poderia realizar seu maior sonho. O de


formarmos uma família – explicou.

− Ah, meu irmão! − Karen levou as mãos até a boca, sem disfarçar
a surpresa. Lentamente, aproximou-se para consolá-lo. Kilian aceitou o abraço,
aconchegando-a em seu corpo, como costumavam fazer quando eram crianças.
Ele havia perdido a noção de quanto tempo se passara desde que se tocavam
assim. − Eu sinto muito! Sinto por você não poder ter filhos… sei que um dia
encontrará alguém que…
− Karen! – interrompeu-a, a voz carregada de choque. − Eu posso ter
filhos! Quero dizer… até onde eu sei.

− O-o quê? Então você… simplesmente mentiu?

− Karen, por Deus! É claro que não. Eu quis dizer que não é algo
que eu queira fazer. Não agora. – mais uma vez passou a mão sobre a barba,
virando-se para ela. − Ela foi até o meu quarto há algumas noites, para… você
sabe…

O Filho do Imperador 193


A princesa concordou com a cabeça, sentindo o sangue esquentar
suas bochechas.

− Então eu disse. Perguntei se ela tinha certeza sobre aquilo. Se era o


que ela queria porque, definitivamente, era o que eu queria. Mas reafirmei
que eu simplesmente não podia concordar, caso ela estivesse esperando
algo mais.

− Nossa! − Exclamou, estarrecida. – Kilian, coitada! Ela achou


que você estivesse apaixonado.
− Karen, eu nunca a enganei. Eu já havia dito tudo isso a ela antes
que viesse comigo, mas só agora Julia confessou que achava que me faria
mudar de ideia. Ela levou um tempo para pensar, mas decidiu assim. − A
expressão do rei era séria, incisiva. Desse modo, prosseguiu: − E além do
mais, eu devo estar apaixonado. Provavelmente estava, apesar de não ter
admitido para Ana Júlia. Não vê que estou sofrendo, minha irmã?

− Imagino que não mais do que ela – comentou para


imediatamente arrepender-se.
Kilian ponderou por um minuto, mas para sua surpresa, acabou
concordando.
− Você está certa. Provavelmente não. E não tão intensamente
que queira mudar a minha vida. Eu simplesmente… não posso. Mas
apreciava sua companhia. Muito. E sinto a falta dela.

− Você sente a falta dela, mas não tanto assim?

− Isso.

− E ela queria mais?

− Ela queria tudo. Tudo que eu não posso oferecer. Não seria
justo com nenhum de nós dois.
− Bom − a princesa refletiu. − Posso não ser a mais experiente
no assunto, mas parece que você realmente não a ama, meu irmão.
− Não. Ainda não é ela.

Karen o fitou, imaginando se ele sabia que precisaria de alguém


para herdar seu trono um dia e, parecendo adivinhar o que ela pensava,
Kilian apenas tentou tranquilizá-la.

− Não se preocupe, minha irmã, esse dia vai chegar. Você terá
uma cunhada e os sobrinhos que tanto deseja. Mas algo me diz que

194 Camila Antunes


não será agora. Eu só… Só preciso me concentrar em outra coisa até que esse
sentimento suma.

− Ah, meu irmão… você precisa abrir seu coração.

− Tudo tem seu tempo – contentou-se em dizer, deixando claro que


o assunto estava encerrado.
Karen sequer pôde argumentar contra isso. Na verdade, seu cenho
franziu-se ao som das palavras dele, de modo que ela passou o resto do caminho
especulando de onde Kilian as tirara.

Quando enfim se aproximavam do castelo Marisco, suas três torres


brancas, Leste, Oeste e Centro-Sul, ergueram-se imponentes, diante de seus
olhos. Pouco tempo se passou até que ela conseguisse enxergar o verde musgo
do remate da cúpula do edifício central. Finalmente estava em casa, passando
pelos portões e pelas colunas douradas que seguiam até a entrada principal, onde
os funcionários e guardas estavam à sua espera, bem como seu primo, Dumas, o
Duque de Ilhabela.

− Vejam se não é minha linda prima!

− Seu galanteador barato – brincalhona, ela se aproximou para


cumprimentá-lo. Teve que revirar os olhos quando ele sussurrou em seus
ouvidos que Lady Leila lhe mandara lembranças e que ela deveria chamá-la para
matar as saudades. Dumas era um esperançoso incurável.

Todos a receberam com presentes. A filha da cozinheira, uma mocinha


ruiva com os cabelos assanhados, entregou a ela uma linda escultura de barro
com uma cartinha de boas-vindas. Suas bochechas, Karen observou, estavam tão
coradas que pouco faltou para que atingissem o tom dos cabelos. O senhor Arão,
jardineiro do palácio estava acompanhado do filho. Eles a entregaram um buquê
e não passou despercebido à princesa que o jovem acompanhava a mocinha
ruiva com os olhos. Karen deleitou-se com a ideia de um romance surgindo
dentro dos muros do castelo, mas no segundo seguinte lembrou-se de Sales e o
deleite desapareceu. Uma melancolia tomou conta de seu peito e tudo que ela
sentiu vontade de fazer foi recolher-se para o quarto.
O Filho do Imperador 195
Quando solicitou isso ao irmão, ele consentiu imediatamente. Em
sua expressão, porém, havia um traço engraçado. Contudo, a princesa
estava desanimada demais para ponderar a esse respeito, de modo que
apenas lhe deu um beijo breve no rosto e dirigiu-se para o quarto.

Karen subiu as escadas com delicadeza, e deu-se conta que sentia


como se um ano inteiro tivesse se passado, enquanto esteve fora durante
apenas pouco mais de dois meses. Quanta coisa aconteceu em sua vida
nesse tempo. Ela tocou em sua própria pele, estranhando até mesmo o fato
de ter passado algum tempo ao ar livre e não estar encharcada de suor. O ar
também parecia mais leve, menos puro e menos úmido. O coração,
entretanto, pesava mais a cada passo que dava.

Ou algo estava acontecendo de errado, ou os sentidos da princesa


apresentavam algum defeito. As flores do castelo Marisco eram tulipas.
Sempre foram tulipas. Mas agora, no corredor de seu quarto, à medida em
que se aproximava de sua porta, Karen sentia o aroma de rosas.

Prestes a achar que estava a ponto de perder o juízo, ela girou a


maçaneta, abrindo a porta do quarto. Seu interior, cujo ambiente costumava
ser claro, desta vez estava obscuro, devido à presença incomum de uma
quantidade exorbitante de lenços sobrepostos em uma janela. Chamas de
inúmeras velas sutilmente dançavam pelo lugar e pétalas incontáveis de
rosas demarcavam o caminho que ela devia seguir até sua escrivaninha.

Ali havia um pequeno aparelho fechado. Um computador, ao qual


antes ela só tinha acesso à base de muita insistência, e ainda assim apenas
no escritório do irmão.

Em cima dele, um post-it havia sido pregado.

LIGUE-ME

Imaginando quem havia aprontado tudo aquilo, a moça apressou-se


em seguir as instruções. Levou o dedo ao botão de ini-

196 Camila Antunes


cialização e esperou a imagem se materializar diante de seus olhos. Um coração
pulsante pedia para ser aberto. Assim que ela levou o dedo a tela, pressionando-
a, o rosto de Sales a fez soltar um grito. Um misto de empolgação e surpresa.

O sorriso escancarado estava aberto do outro lado.

− O que… o que significa tudo isso?

− Nosso primeiro jantar à luz de velas, não é óbvio? – fez uma pau-
sa para encarar o pulso. – Vossa Alteza Real está um pouco adiantada.
− Você é mesmo cheio de surpresas, não é? E onde está o
jantar? Virando-se para os lados, vasculhou o quarto com os olhos,

mas não via nada.

− Ao meu sinal alguns criados entrarão com sua refeição, Alteza.


Mas não estamos com pressa, estamos?
Ela meneou a cabeça, segurando um sorriso travesso. O coração saltitava
dentro dela, em incríveis acrobacias, fazendo-a pensar como era possível que ele
a fizesse se sentir desta forma, quando estava a uma tão longa distância. A
expressão de Sales de repente ficou séria.

− Agora que estamos fazendo seu irmão e meu pai gastarem uma
pequena fortuna com essa chamada, vamos aproveitar isso ao máximo.

− Não acredito que Kilian tenha realmente concordado com isso.

− Nem eu – afirmou, fazendo ela soltar uma gargalhada. − Mas esse


aparelho é seu. É através dele que vamos sobreviver a esse ano inteiro.

− Ah, Sales. Eu sobreviveria só por saber que você está aí. – Sua
mão se estendeu até quase tocar a tela, e ele fez o mesmo, fechando os olhos
pelo breve instante em que fingia tocá-la.

− Eu também, meu amor. Eu também. Mas assim é de fato muito melhor.


Se você ao menos soubesse… − o Delfim conteve-se quando percebeu que a voz
se embargava. – Se fizesse alguma ideia do que estou sentindo agora. É como se
alguém tivesse tirado um membro do meu corpo e o levado para longe de mim,
abrindo uma ferida insuportável, que não para de arder. A única coisa, meu amor,
que me consola, é saber que um dia você será minha para sempre. E isso, ah, isso
me faria esperar o tempo que fosse necessário.

O Filho do Imperador 197


A essa altura, ela não mais se continha. Seus olhos derramavam toda
a saudade que já sentia dele. Um sentimento de desespero começava a
consumi-la. O desejo de tocá-lo, sentir sua pele e cheiro.

− Eu não… meu Deus… não sei se consigo.

− Consegue, sim. Todas as coisas cooperam para o seu bem,

lembra?

Karen fez que sim.

− Escute, querida. Serão apenas três anos. Nós teremos um ao


outro aqui em nossos quartos. Teremos um ao outro enquanto
compartilhamos nosso segredo sagrado. Além de todos os verões.

− Parece certo.

− É, parece.

Os dois trocaram mais palavras de consolo, e um fortalecia o outro.


Os criados a serviram a refeição, assim como os dele, do outro lado. E
tiveram seu primeiro jantar romântico desta forma. Ao fim da noite,
chegado mais um momento de despedida, Sales pediu para que orassem
juntos. Os dois o fizeram, de olhos fechados e ao fim da oração nenhuma
angústia mais havia. Em vez disso, uma paz perfeita e a certeza de que tudo
terminaria bem.
Epílogo

Karen
Império de Lima, província de Ravin, 1.000. N.M.

Há três anos Sales e eu assumimos o compromisso de nos unirmos em


matrimônio e desde então temos nos falado através da internet e nos visto apenas
aos verões – salvo uma ou outra surpresa que ele acabou me fazendo no
caminho.
Agora estou de volta a Lima, nas vésperas do meu casamento,
preparando-me para selar, diante das pessoas, o nosso compromisso. Olho-me no
espelho, e deslizo os dedos por minha pele clara, percebendo a mudança nos
meus traços. Já não sou apenas uma garotinha: meu rosto, meus sentimentos, e
até minha fé mudaram.
Eu nasci como uma princesa, fui criada pelos melhores pais possíveis e,
depois, pelo melhor irmão. Esperava ter uma vida tranquila, abastada, mas
jamais pelo que viria: jamais esperei apaixonar-me por Sales de Ravin, o futuro
homem mais poderoso do mundo. Jamais esperei que por trás de toda aquela
brutalidade houvesse uma pessoa sensível. Que por trás de toda responsabilidade
da coroa que ele carregará, houvesse um coração servente.

Com o polegar, seguro uma lágrima que estava prestes a escapar, quando
o imperador surge na porta, despertando-me de meus pensamentos.

− Existe alguma regra que impeça um sogro orgulhoso de cumprimentar a


futura nora no dia de seu casamento?

O Filho do Imperador 199


Eu avanço para abraçá-lo, e tudo que sinto é que amo esse homem
como a meu próprio pai. Quando me afasto, percebo que há algo que ele
carrega. Um livro branco.

− Guardei isso para você – anuncia, passando para as minhas


mãos o objeto.

Noto que sobre a capa de couro, está escrito em letras douradas,


garrafais: BÍBLIA DA NOIVA. A essa altura sei que Dom Fernão é um
amante das sagradas escrituras, embora ainda em segredo. Não consigo
evitar que escape pela boca o pensamento que me acomete:

− Vossa Majestade, eu nunca consegui entender por que o


senhor daria essa missão a Sales, quando poderia assumi-la.

– Eu nunca fui assim tão corajoso. – Algo em minha expressão


entrega minha incapacidade de entender o que aquelas palavras significam,
já que ele sente a necessidade de explicar: – Sabe, querida, quando conheci
as palavras desse livro, eu já era um homem feito, cheio de aborrecimentos.
Não possuía ninguém, além de Bráulio, para me aconselhar. Meu filho,
entretanto, tinha um coração jovem, puro. E eu já via nele o potencial para
se tornar um imperador justo. Um que seguisse o livro publicamente e com
sabedoria. Por isso deleguei a Bráulio a tarefa de instruí-lo e contei com sua
curiosidade e o agir de Deus para guiá-lo.

– Parece que o plano correu perfeitamente bem.

– Parece que sim.

Dom Fernão já prepara-se para se despedir, quando eu volto a


chamá-lo, fazendo-o abrir um aconchegante sorriso paternal.

– Meu sogro, posso perguntar mais uma coisa?

– Claro, criança.

– Como Vossa Majestade sabia que isto… – contenho-me e estendo


as mãos na frente dos olhos, encarando meu anel. – Como sabia que isto
aconteceria?
– Ah, minha querida. Acredite quando eu digo: não havia meio de
que algum filho meu não amasse a filha de Zélia.

⚜⚜⚜

200 Camila Antunes


− Você está linda – Kilian sussurra quando entra em meu quarto.
Ele toca meu queixo com sua mão esquerda, cujo anelar exibe uma enorme
aliança. Kilian está feliz e orgulhoso, mas no fundo de seus olhos detecto um
resquício de amargura. Eu o abraço com força, apertando-o contra meu corpo.
Quero que entenda que sentirei sua falta também.

− Por favor, sei que a partir de hoje você não deverá obediência a
mim, mas… não passe mais de quatro meses longe de seu velho irmão.

− Sua Majestade não foi tão generoso com meu noivo.


Indignado, Kilian apoia as mãos nos quadris.

− Se dar a ele o meu bem mais precioso não é ser generoso, eu


realmente não sei o que poderia ser!

Sorrio para ele.

− Você sempre será meu rei e Vera Cruz o meu país. E, além disso,
meu irmão, eu já não sou tudo o que tem, não é mesmo?

Kilian leva a mão direita até o anel em seu dedo e, reflexivo, gira-o
devagar. Há uma curva singela em seus lábios e um intenso brilho em seus olhos.

− Não, não tudo.

E assim, meu rei me toma pelo braço, levando-me até a antiga capela. Ele
não entendeu bem por que não nos casaríamos no suntuoso salão de festas do
castelo, e menos ainda porque o Lorde Comandante celebraria nossa cerimônia.
Mas eu prometi a mim mesma ter fé que havia de chegar o dia em que meu
irmão entenderia.

Quando as portas se abrem, rostos conhecidos encaram-me maravilhados.


Noto primeiro o de Ingrid, que me ajudara com toda essa produção, ainda que
tenha se casado e deixado de ser minha dama. Sempre seríamos amigas. Roque e
Perla carregam os dois filhos que tiveram, um por ano, começando por aquele
em que se casaram. Fico feliz que as coisas tenham ficado amigáveis entre nós e,
tenho que admitir, mais ainda pelo fato de o palácio em que instituíram
residência estar localizado no baronato do pai da moça, a léguas daqui.
O Filho do Imperador 201
Minha cunhada está de pé, próxima da porta, ao lado de Olga, e me
estende um buquê de tulipas – minhas flores – para que eu entre na igreja.
Aceito com gratidão, repousando os olhos em meu imponente sogro que, eu
posso notar, tem os seus marejados. Oscar cutuca meu noivo, que está de
costas, olhando para Bráulio, quando uma melodia irrompe do piano.

Ele vira-se para mim, e meu coração salta assim que nossos olhares
se encontram. Um sorriso instantâneo – quase fácil − se eleva em seu rosto,
ao mesmo tempo em que deixa serpentear uma lágrima.

A cada passo que dou, minha mente divaga sobre como chegamos a
este momento e o que aquele homem de olhos caramelados, ao qual eu
estava prestes a me entregar para sempre, representava. Foi ele quem gerou
em mim os mais extremos sentimentos: quem causou minha maior
decepção, a pessoa que mais me investiu ciúmes, quem me ensinou a
sagrada sabedoria e me fez conhecer o mais puro amor entre um homem e
uma mulher. É para ele que coloco este véu sobre meu rosto. É para ele que
me despirei deste vestido. Somente para ele, e sempre será.

⚜⚜⚜

Sales

− Ela está atrasada – resmungo tentando conter o embrulho que sinto


na boca do estômago. Isto é ridículo, certo? Quero dizer, um estômago
masculino se revirar. Mas não posso ser culpado por isso, visto que mal
preguei os olhos esta noite. Foi impossível manter o controle na véspera do
dia que eu mais esperei, durante os últimos três anos. Aliás, devo dizer,
nesses anos este dia era tudo em que eu pensava. Diversas vezes fantasiei
sobre este momento, repassando em minha cabeça como seria isto que estou
vivendo agora. Como Karen entraria por aquela porta. Justo eu, que nunca
quis me casar.

202 Camila Antunes


Que mesmo sabendo que Deus fizera Eva como companhia insuperável para
Adão, nunca achei que encontraria alguém que me entenderia. Não alguém a
quem eu realmente amasse. Muito menos alguém que meu pai tivesse escolhido
por política.

Nada disso importa agora. Não quando sei que minha noiva está prestes a
entrar por aquela porta.

− Fique calmo, Vossa Alteza. Ela virá – a voz sarcástica de Bráulio


irrompe em meus ouvidos distraídos, tomando minha atenção para ele. Viro-me
para o meu velho amigo.

− Eu deveria me sentir envergonhado por considerar esses minutos


incontáveis séculos, quando Jacó considerou os catorze anos aos quais esperou
por Raquel como poucos dias pelo tanto que a amava?

Em vez de me responder, entretanto, Bráulio eleva os olhos através de


mim, ao mesmo tempo em que Oscar toca em meu ombro. Eu me viro e, quando
a vejo, meu corpo simplesmente se desmonta. Eu sou líquido, fluido, sou capaz
de me desfazer ao menor dos toques quando vejo minha noiva andar em minha
direção.

Toda aquela coisa de aperto no estômago não é nada perto do que sinto
exatamente agora. Estou anestesiado de amor pela mulher que ela se tornou. O
rei a entrega a mim e eu tomo sua mão, sentindo as mesmas emoções do
primeiro toque.

Bráulio celebra a cerimônia enquanto nossos olhares, presos, não se


largam nem por um segundo.

Karen faz seus votos. Eu faço os meus. E, mais do que nunca, estou
absolutamente certo de que escolhi as melhores palavras para encerrá-los:

Como um lírio entre os espinhos, assim é minha amada

entre as outras mulheres. 6


6 Cantares de Salomão 2:2 (Bíblia Sagrada)
Agradecimentos

Em primeiro lugar e sempre, antes e acima de todos, ao Criador do


Universo, ao Carpinteiro e ao meu perfeito Inspirador. Pois todos Eles são o
mesmo.

À minha mãe, por ser minha fã número um. Ao meu pai, por ser o
melhor inventor de histórias. À Milena, minha soul sister. E ao meu marido
Caio, que todo mundo ama quase tanto quanto eu, por todas as vezes em
que deveria ter sentidos ciúmes da atenção que Sales recebia após um dia
intenso de trabalho, e por só ter reclamado em algumas delas.

À minha outra irmã, que não é de sangue, mas de alma e me ensinou


sobre cavalos para criar Tiara e Castanho, Ariana.

À minha grande amiga Gerlane, que há poucos meses teve um


encontro mais do que especial com o “Carpinteiro”. Ela descreveu os
sentimentos desse momento para mim, e ainda me permitiu colocá-lo em
palavras escritas para dividi-lo com Karen. Que o Filho de Deus sempre
reine em seu coração, amiga.

Àquela que leu tudo antes de todos, opinou e me ajudou, Ester

– que tem a idade e a maturidade da nossa protagonista − se Karen vivesse


no presente século, provavelmente eu diria que ela anda por aí disfarçada de
Ester.

Aos meus amigos-leitores, mais lindos do mundo, que acompanham


tudo desde o começo, para, no caso desse livro se eternizar, eles
eternizarem junto: Príscila, Livia, Davi, Fernanda Araújo, Débora Marinho,
Elizangela, Marluce, Keryn, Janaína, Socorro, Elenice, Camila Wad, Aline,
Anne, Maria Eduarda, Sara, Dani, Kleyse, Jaqueline, Lavínia e Adrielle.
Obrigada a todos vocês, pelo carinho, incentivo e constante empolgação.
Por não desistirem da história e por não permitirem que eu desistisse.
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Table of Contents
Prólogo
O vestido branco
O sorriso fácil
O anfitrião malquisto
O efeito das flores
O livro secreto
O perfume doce
A chave dourada
A epifania
Visita ao estábulo
A clareira
O sentimento sublime
O destino infausto
Uma nova hóspede
Uma linha tênue entre o amor e o perigo
O dia depois do beijo
Uma descoberta amarga
O passado encoberto
O mal-entendido
O festival de verão
O novo começo
O novo acordo
De volta ao lar
Epílogo
Agradecimentos

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