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O RUMOR NA HISTÓRIA

Reflexões sobre prováveis contribuições da Ciência da Literatura


de Barthes aos estudos historiográficos
Ana Luiza de Oliveira Duarte Ferreira

Recentemente, tenho percorrido obras de alguns pensadores tidos como as mais


determinantes para os ditos “estudos culturais” e questionado, em cada uma delas, como
seriam compreendidas as relações entre Literatura e História.
No presente artigo, pergunto: qual seria o entendimento de Roland Barthes? Para
respondê-lo, exploro a publicação O rumor da língua, lançada postumamente, na qual
são apresentados alguns textos escritos por Barthes do final da década de 1960 até início
da década de 1970. Questões explicitamente pertinentes ao historiador constam
sobretudo nas seguintes partes: a Parte I (Da ciência à Literatura), a Parte II (Da obra
ao texto, em que consta o texto fundamental A morte do autor), e a Parte IV (Da
História ao real).
Este ilustre pensador francês condenou tradicionais pilares da Academia de seu
país, tal como o marxismo e a psicanálise, dos quais chegara, no início de sua formação,
a ser “adepto”. Como afirma Leyla Perrone-Moisés, professora da Universidade de São
Paulo, “desconfiou de ambos, na medida em que os via como discursos totalitários,
sistemas fechados que explicam tudo e fecham a boca de qualquer opositor com armas
imbatíveis, previstas pelo próprio sistema. Toda objeção ao marxismo pode ser
interpretada (calada) com qualificativo de ‘argumento de classe’. E toda objeção à
psicanálise pode ser esmagada na qualidade de ‘resistência’ ao inconsciente” (p. XVIII-
XIX).
É comum se dizer também que seus trabalhos extrapolavam a crítica ao Outro e
incorporavam, cotidianamente, uma crítica ao Eu – a seus próprios pontos de vista.
Jonathan Culler, professor de Cornell University, grande entusiasta de toda produção de
Barthes, revela-se insatisfeito com este hábito por vezes inconseqüente do dito
pensador, e diz: “poderíamos aceitar essas renúncias com mais boa vontade se ele
estivesse mais disposto a reconhecer os lucros que obteve” (p. 106).
Busquemos perceber, então, até que ponto esta perspectiva super-crítica marca
os entendimentos de Barthes acerca da Literatura e da História, e como tais
entendimentos variaram, nos últimos anos de sua carreira, nos quais escreveu os artigos
referidos acima.
Barthes: a ciência, a literatura e a nova “ciência da literatura”
Em O rumor da língua Barthes discurte o conceito de “Ciência”, e pontua que
não pode aceitar como precisa uma definição que se baseie tão somente no conteúdo
explorado e nos métodos utilizados, porque estes fatores são, segundo ele,
essencialmente variáveis em todas as ciências institucionalizadas. Também não pode
concordar que seja científico todo texto que se baseie numa dita “moral”, num rigor,
num compromisso, pois é possível que todo tipo de saber se considere, efetivamente,
“justo”.
O que efetivamente diferencia Ciência e Literatura, por exemplo, aos olhos de
Barthes, é a linguagem de que goza cada uma delas. A primeira parte do princípio de
que a linguagem é tão somente um “instrumento” através do qual manifesta postulados,
informações, descobertas. Já, para a segunda, linguagem tem sido matéria-prima; e, por
isso mesmo, ao invés de intentar corroborar noções, no mais das vezes “persegue o
abalamento dos conceitos essenciais da nossa cultura, em cuja primeira linha, o real” (p.
5).
Contudo, não se pode dizer que a Literatura foi sempre assim: os realistas, por
exemplo, se negariam a explorar mais claramente os aspectos formais, e voltar-se-iam
para o “conteúdo” de seus enredos. Em Essais critique (1964) Barthes falou sobre
aqueles que teriam trabalhados mais conscientemente a “construção” literária: Flaubert
teria demonstrado “uma [certa] consciência artesanal do fazer literário”, Mallarmé
revelava um “desejo heróico” de caracterizar cada um de seus textos ao mesmo tempo
como literários e teóricos; e Proust, em suas narrativas, sempre entremeava os fatos com
referências ao processo da escrita. Mas em geral o exemplo privilegiado de uso da
linguagem ao qual Barthes recorre são os trabalhos dos surrealistas: “jogavam” com a
linguagem, exploravam os vários sentidos de uma mesma palavra, e dessacralizavam a
escrita literária, pela criação da “escrita automática” e dos “poemas coletivos”.
Segundo Barthes, a função do “estruturalismo” seria “estabelecer a ‘língua’ das
histórias contadas” (p. 6-7), quer dizer, seria analisar dizeres e modos de dizer. No dizer
de Culler, o estruturalismo, a partir tanto como a lingüística como com a semiótica,
cumpriria o seguinte procedimento (não necessariamente nesta exata ordem, é claro):
descrição do “sistema” no qual se inserem as “entidades significativas”; buscar perceber
quais são suas “regras de operação”; buscar “saber como o sentido é possível, a que
custo e por que meios” (p. 74). Quando em tratamento específico da Literatura, esta
corrente estaria, então, nos idos da década de 1960, delineando o que chamou
“Lingüística do Discurso”, “Semiologia da Literatura” ou ainda (o termo mais usado)
“Ciência da Literatura”.1

Relações entre forma e conteúdo: para se “escrever” a Ciência da


Literatura
Que fique claro, porém, desde já, que, para o autor de O rumor da língua, a
atenção a ser conferida ao escrever não deveria implicar qualquer desatenção com o
“conteúdo”. A “ciência da literatura” barthesiana não implica uma “estilística”. Na
realidade, nela, “forma” e “conteúdo” não aparecem como elementos opostos, nem ao
menos afastados; estão sempre e necessariamente intrincados. Barthes defende, aliás,
que o próprio rigor no tratamento dos conteúdos é o que mobiliza o interesse pelas
maneiras através das quais tais conteúdos são e podem ser enunciados.
Far-se-ia necessário, pois, para esta nova ciência, operar uma “subversão da
linguagem científica” (p. 8), prezando pela própria prática do escrever, não apenas
porque estilo e estética são indispensáveis, mas, sobretudo e fundamentalmente, porque
apenas quando atentos à construção textual que realizamos que podemos dar-nos conta
das questões mais importantes relativas à língua, ao dizer literários. “O trabalho da
escritura em que pensamos hoje não consiste nem em melhorar a comunicação, nem em
destruí-la, mas em filigraná-la” (p. 85). Por isso a metáfora é, para Barthes, uma
estrutura textual tão apreciável: ela tem ao mesmo tempo uma implicação estética, “uma
existência metodológica e uma força heurística” (p. 160).
Escrevera, em Essais critique: “O trabalho do literato é [ou deveria ser], num
certo sentido, catártico: ele expurga das coisas o sentido indevido que o homem
deposita incessantemente sobre elas.” (BARTHES, R. Essais critiques. P. 198-199.
apud. CULLER, J. As idéias de Barthes. P. 51.). Já em O rumor da língua,
acrescentou: o trabalho do cientista literário seria efetuar “uma descida profunda,
paciente e muitas vezes desviada, no labirinto do sentido” (p. 21).
Assim, Barthes inverte o “sentido” da escrita literária, atribuído a ela desde
Aristóteles, em A arte poética. Lembremos que o filósofo grego afirmava que a função
da poesia era “expressar o inexprimível”. Para o pensador francês, a função da poesia,
como de qualquer um dos outros gêneros literários (da poesia ao romance, do romance

1
Tais percepções remetem às de George Lukacs, quando aborda a noção de “ensaio” em suas obras
“Teoria do Romance” e “A alma e as formas”; noção que, aliás, analisei em um artigo ainda inédito.
ao teatro, do teatro à própria Ciência da Literária – na realidade, Barthes dedicou-se
bem pouco à poesia) seria problematizar o que há de mecânico da prática de escrita e da
leitura – “tornar o exprimível inexpresso” (Culler, p. 53).

Ciência da literatura: construção e imprecisão


Disse há pouco que, para o autor de O rumor da língua, o pai da “ciência da
literatura” é o estruturalismo. Apresentemos, então, dois postulados fundamentais
compartilhados por esse novo ramo do conhecimento e sua irmã, a lingüística, da qual
Barthes destaca o nome de Saussure: (1) a idéia de que “o homem não preexiste à
linguagem”; (2) de que há “duplicidade da linguagem”.
Estes dois postulados levam Barthes a conclusões definitivas. Por um lado, “o
sujeito constitui-se como imediatamente contemporâneo da escritura, efetuando-se e
afetando-se por ela”, diz (p. 23). Por outro lado, pode-se propor que também o leitor
constrói-se e constrói sentidos para o texto, no momento mesmo em que efetua a leitura.
Portanto, não é que constitua tarefa complexa determinar o sentido “verdadeiro” das
obras; é que este sentido, uno, simplesmente não existe.

Os escritores
Conforme Barthes, as tradicionais análises sobre literatura concentram-se na
figura do escritor: “A explicação da obra é sempre buscada do lado de quem a produziu,
como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal
a voz de uma só pessoa, o autor, a revelar a sua ‘confidência’” (p. 58). Ou então, como
Barthes pontuara em S/Z, “a subjetividade costuma ser imaginada como uma plenitude
com a qual Eu atrapalho a obra”. Entretanto, “o Eu que aborda o texto já é, ele mesmo,
uma pluralidade de outros textos, uma pluralidade de códigos infinitos ou, mais
precisamente, perdidos (cuja origem está perdida)”; “com efeito, essa plenitude forjada
é tão-somente o despertar de todos os códigos de que constituem” (p. BARTES, R. S/Z.
p. 10. Apud. CULLER, J. As idéias de Barthes. P. 76).
É por isso que Barthes prefere a noção de “escritor” à de “autor”. “Escritor”
implica ação, construção... “autor”, uma dada entidade supra-textual. O escritor não
produz os textos tão somente a partir de uma dada realidade, nem muito menos tão
somente a partir de subjetividades, de experiências suas, individuais. Ele retira do
cardápio comum de imagens, idéias, vivências dados que articula, elabora, organiza,
num texto.
E Barthes compreendia que até aquele momento, poesias e romances apenas
haviam sido explorados por uma Crítica Literária interessada mais especificamente na
história dos autores, na historia das escolas literárias, no simples relacionar de conceitos
e preceitos supostamente constantes nas obras com as supostas conjunturas em que
teriam sido compostos. Dizia: “Faz séculos que nos interessamos demasiadamente pelo
autor e nada pelo leitor; a maioria das teorias críticas procura explicar por que o autor
escreveu a sua obra, segundo que pulsões, que injunções, que limites. Esse privilégio
exorbitante concedido ao lugar de onde partiu a obra (pessoa ou História), essa censura
imposta ao lugar aonde ela vai e se dispersa (a leitura) determinam uma economia muito
particular (embora já antiga): o autor é considerado o proprietário eterno de sua obra, e
nós, seus leitores, simplesmente usufrutuários” (p. 27). E ainda: “O nascimento do leitor
deve pagar-se com a morte do autor” (p. 64).
Em publicações anteriores, como Michelet par lui méme (1954), Sur Racine
(1963) e Sade/Fourier/Loyola (1971), o próprio Barthes havia trabalhado como crítico
literário. No primeiro destes, como diz Culler, “deixa de lado as idéias [do referido
célebre historiador] em favor daquilo que chama ‘temática existencial’” (p. 42). Quer
dizer, não considera as “idéias em si” do auto-objeto de análise, mas as proposições
supostamente constantes em seus livros como manifestações de uma consciência, com
as quais nós, leitores, dialogamos. Pode-se depreender, daí, facilmente, que a maior
influência teórica neste livro de Barthes estivesse por conta da fenomenologia.
Na segunda publicação acima citada, quer dizer, em Sur Racine, a interpretação
de Barthes transforma-se. Bebendo da psicanálise, o deferido autor, afirma Culler,
buscaria, etc, etc, etc.
Já na terceira, inspirado mais claramente pelas análises lingüísticas, buscaria,
segundos Culler “produzir uma ‘gramática’ da obra de cada um dos autores através da
descoberta de seus elementos básicos” (p. 45). Pinçaria de inúmeros textos de Sade,
Fourier e Loyola alguns aspectos que considerava, particularmente, definitivos, os
contra-poria, os combinaria, até perceber alguma linearidade, e definir-lhes um sistema
de expressão, uma linguagem pessoal. Entretanto, é bom lembrar que Barthes não deixa
de destacar, em sua interpretação, as descontinuidades e heterogeneidades da escrita de
cada um dos pensadores selecionados. Nas palavras de Culler, o dito pensador, no dito
livro, apresentaria sobretudo “um programa que vê interesse na estranheza e não na
familiaridade” (p. 47).
Assim, de maneiras distintas Barthes intentava explorar os infinitos significados
de “textos clássicos” na escrita deles. Pode-se chegar, isto posto, a uma conclusão
preliminar: como bem afirma Culler, a crítica preocupa-se com expor o sentido das
obras, enquanto Barthes se preocuparia com analisar as condições dos sentidos.

Os leitores
O dito autor percebe, com o passar do tempo, assim, que talvez se possa propor
uma “ciência da escrita”, a qual definiria métodos através dos quais os autores
pudessem estruturar seus textos. Porém, para o pensador francês, é vã qualquer
tentativa, sob o paradigma científico que rege hoje as universidades, se definir uma
“ciência da leitura”. Uma “ciência da leitura” ou “semiologia da leitura”, sob seu ponto
de vista, só seria viável dentro de uma concepção de “ciência do inesgotamento”.
Dizia que toda obra é como uma cebola: “uma construção em camadas (níveis
ou sistemas), cujo corpo, no final das contas, não contém coração, núcleo, segredo,
princípio irredutível, nada além do infinito dos seus próprios invólucros – que não
envolvem senão a unidade de suas próprias superfícies” (BARTHES, R. Style and
Image, in Literary Style: a Symposium, editado por S. Chatman (Nova Iorque, Oxford
University Press, 1971), p. 10. Apud. CULLER, J. As idéias de Barthes. P. 77.)
Ao lermos, afirma, fazemos uso não apenas da “lógica da razão” (dedutiva) mas
de uma lógica que eu chamaria estritamente pessoal, e que Barthes classifica como
“associativa”. Cada leitura que efetuamos, relacionamos as passagens, figuras,
proposições, definições de conceitos lá constantes com outras passagens, figuras,
proposições, definições de conceitos que dizem respeito à nossa história individual. A
interpretação/ a assimilação de um texto, assim, não é nunca “precisa”, mas “lúdica”.
Quer dizer, então, que o leitor não simplesmente “decodifica, ele sobrecodifica; não
decifra (...) amontoa linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente atravessar por elas:
ela é essa travessia” (p. 41).
Barthes apresenta uma espécie de tipologia da leitura. Não é, evidentemente, um
panorama metodológico, do qual os “cientistas literários” devem necessariamente
dispor, na análise das possíveis leituras dos textos-objetos de análise. Constitui, na
realidade, uma interpretação muito pessoal dos modos possíveis de se ler; uma
interpretação tal, que remete à dantes definida noção barthesiana “confusa” e “lúdica”
de leitura.
Bom: haveria, para Barthes, três jeitos de se ler um livro, os quais não
necessariamente se excluem: (1) estabelecendo uma relação “fetichista”, tirando prazer
de uma ou outra palavra, uma ou outra imagem, uma ou outra definição apresentada; (2)
sob uma atmosfera ansiosa de “suspense”, percorrendo uma suposta linha seguida pela
trama ou pelo raciocínio do autor, do começo ao final da obra; (3) inspirado pelo desejo
de escrever.
No que diz respeito aos dois primeiros, considero, particularmente, que em geral
estão associados – pelo menos nas interpretações formais de ensaístas e críticos
literários, ou daqueles que Barthes poderia denominar “cientistas da leitura”. É costume
pinçarmos fragmentos que nos salta aos olhos, e, paralelamente (ou, às vezes,
posteriormente), buscamos um “sentido” de relação para eles. Quer dizer: partimos e
reagrupamos, re-construímos conforme nosso entendimento particular. O próprio
Barthes dizia: “espero o fragmento que me concerne e estabelece sentido para mim”
(BARTHES, Sollers écrivain. P. 58. apud. CULLER, J. As idéias de Barthes. P. 90).
Bom lembrar, aqui, então, que é Barthes o autor do best-seller Fragmentos de uma
discurso amoroso, no qual apresenta uma série de situações, impressões, termos,
“lugares-comuns” possivelmente comum a toda e qualquer experiência afetiva
contemporânea.
Quanto à terceira maneira de se ler um livro, o dito intelectual pontua: “Não é
que desejemos necessariamente escrever como o autor cuja leitura nos agrada; o que
desejamos é apenas o desejo que o escritor teve de escrever: desejamos o desejo que o
autor teve do leitor enquanto escrevia. (...) Nessa perspectiva a leitura é
verdadeiramente uma produção: não mais de imagens interiores, de projeções, de
fantasias, mas, literalmente, de trabalho” (p. 39-40).
Lembremos ainda que em texto de 1970 ele fala de uma outra forma de se tomar
uma obra: “levantando a cabeça enquanto lemos”, quer dizer, de, ora ou outra,
interrompermos a leitura para divagar sobre um ou outro ponto que nos instiga. Este ato
está relacionado igualmente com esse “trabalho”, esse “movimento” que uma boa
leitura operaria.

Uma certa unidade...


Mas lembremos que quando Barthes apresentara alguns princípios
compartilhados entre a dita “ciência da literatura” e a “antropologia lingüística”, falara
também de uma dada “unidade do campo lingüístico” (p. 15). Bom, isso pode ter
relações com o fato de que o referido autor francês entende que “toda leitura [por mais
“im-pertinente”] ocorre no interior de uma estrutura” (p. 33).
Essa unidade, em torno da qual giram as mais diversas possibilidades
interpretativas, e os mais diversos campos do saber interessados em interpretar, é o
Texto (com inicial maiúscula).
Barthes diferencia “Obra” e “Texto”. Para ele, a primeira corresponde à
metáfora que a denomina – construção, estrutura tridimensional. O mesmo é válido para
o segundo – tessitura, entremeados de fios, bidimensional. A obra é um “monumento”, é
“clássica”; o Texto é sempre original, é sempre vanguarda. Ela é “um fragmento de
substância” que “se vê”; ele é “um campo metodológico” que “se demonstra”. Obra é
uma noção que incorpora a de “significado”, pede respostas; Texto, a de “signo”,
apresenta questões. Uma é “objeto de consumo”; o outro, peça de um jogo, uma
partitura, “solicita do leitor uma colaboração prática” (p. 74). A primeira é explorada
pela “crítica literária”, o segundo, pela “ciência da literatura”.

A “ciência da literatura” e o prazer


Por fim, voltemo-nos à importância “afetiva” que Barthes confere à linguagem:
escrever e ler, afirma ele, produz prazer. Culler afirma que aqui também o dito
intelectual francês revelava dispor de e buscar ter um pensamento de “vanguarda”:
“falar sobre o prazer [no pós-1964] era algo que havia sido considerado irrelevante
pelos mais poderosos empreendimentos intelectuais da época” (p. 90).
No que diz respeito ao escrever, ele declarava em O rumor da língua: “o texto
está ligado ao gozo, isto é, ao prazer sem separação” (p. 75); isto é: o escritor o elabora
para dividir significados ou signos com outrem; o escritor só se sente saciado ao supor
que compartilhará com alguém sua euforia individual e subjetiva.
Em Le grain de la voix, de 1981, dirá: “Quem escreve é a mão e, portanto, o
corpo: seus impulsos, controles, ritmos, pensamentos, escorregadelas, complicações,
evasões – em suma, não a alma, mas o sujeito aliviado do seu desejo e do seu
inconsciente” (BARTHES, R. Le grain de la voix. p. 184; apud. CULLER, J. As idéias
de Barhtes. cap. 4. n. 1.).
Por outro lado, segundo este autor, o leitor é um amante platônico; que busca o
objeto desejado, sabendo não poder encontrá-lo. “Ao fechar-se para ler, ao fazer da
leitura um estado absolutamente separado, clandestino, no qual o mundo inteiro é
abolido, o leitor – o lente – identifica-se com dois outros sujeitos humanos – a bem
dizer bem próximos um do outro – cujo estado requer igualmente uma separação
violenta: o sujeito apaixonado e o sujeito místico” (p. 37).
Retomemos, por ora, um dos conceitos considerados “chave” no pensamento de
Barthes, acima anunciado: o corpo. Culler apresenta uma definição do próprio Barthes
para ele”: “é (...) meu sujeito histórico; (...) uma combinação extremamente complexa
de elementos biográficos, históricos, sociológicos, e neuróticos (educação, classe social,
configuração da infância, etc.)” (BARTHES, R. Le plaisir du texte. P. 98-99. Apud.
CULLER, J. As idéias de Barthes. P. 84.).
Conforme Culler, o “corpo” barthesiano corresponderia, destarte, a uma
tentativa crítica de, preservando a referida noção de “unidade” (de escrita, de leitura),
superar a noção de “mente” cartesiana (a qual remetia às de “sujeito”, “identidade”,
“pessoa”, e podia ser tomada como um “dado”). O “corpo” seria o elemento material de
uma escrita, de uma leitura absolutamente relativista, e fundaria o princípio fundamental
mobilizador das prática de escrever e ler: o prazer (porque “corpo”, diz Culler, é um
termo que designa instintivo, espontâneo, imprevisível, “mais profundo” e, quiçá, “mais
natural”) (p. 86).

A “ciência da literatura” e a política


Pensar a dita unidade, o Texto, além do mais, declara Barthes, implicaria um
posicionamento político, na medida em que o debate sobre ela “permitiria aclarar
processos de apropriação da língua e estudar a ‘propriedade’ dos meios de enunciação,
algo como O capital da ciência lingüística” (p. 87).
Porém, ao invés de, como o crítico literário costuma fazer, lutar para impor seu
ponto de vista, o cientista literário deveria dedicar-se, propõe Barthes, a difundir a
noção de que toda interpretação, todo sentido tende a ser aceitável.
Em O rumor da língua constrói, então, uma nova metáfora para designar com
maior precisão o que implicaria a visão do autor acerca do (vago, “uno” e prazeroso)
Texto. Como ele não é, segundo Barthes, propriamente um “conceito” (p. 104), quer
dizer, não, é, por essência, definível, o referido intelectual francês recorre a estratégia de
construir uma metáfora, e nos fala do “rumor”: “respiração emotiva de uma língua
desconhecida” (p. 88).
Barthes deseja esta “respiração”, plural mas uníssona; regular e contínua. Deseja
que ela se assemelhe ao barulho, ao ranger de uma máquina complexa em bom
funcionamento. “Basta falarem todos juntos para fazer rumorejar a língua”, pontua.
“O texto não é uma seqüência de palavras que veicula um único sentido
‘teológico’ (a mensagem de um Autor-Deus), mas um espaço multidimensional, no qual
uma variedade de escrituras, nenhuma delas original, se combina e se choca” (p.
BARTHES, R. Image, music, text. P. 146. Apud. CULLER, J. As idéias de Roland
Barthes. P. 13.).
Ora, isso seria possível? É possível, na sociedade contemporânea em que num
pronunciamento, por muitos, sobre um mesmo tema mais conforma as mais diversas
possibilidades de entendimento, que uma voz não se altere, que uma personalidade não
se inflame, que um interlocutor não tema e se cale? Por isso Barthes considera esse
“rumor” – essa “imensa trama sonora”, uma “utopia”.

Para além da literatura


Declarou, certa feita, que “o que sempre [lhe havia fascinado] na vida (...) [era] o
modo como as pessoas tornam seu mundo inteligível” (BARTHES, R. Lê grain de la
voix. P. 15. apud. CULLER, J. As idéias de Barthes. p. 18). Em 1957 publicou o livro
Mythologies (1957), no qual aparecem breves textos sobre diversos assuntos da vida
cotidiana, parisiense. Diz Culler: “Desvelando sentidos considerados verdadeiros em si
mesmos, intensificando-os de forma sarcástica ou especulando a respeito de suas
implicações, ele terminará por concluir com uma lacônica irada, afastando-nos do mito
ao mencionar algum interesse político ou econômico em jogo” (p. 36).
Como pontua Culler, isso não quer dizer que, na visão de Barthes, o mito seria
uma “ilusão”; de certo, um mito pode ter um sem-número de álibis (“visto certa roupa
por uma questão de conforto ou de durabilidade”) e tem efetivamente relações bem
estreitas com a cultura material. Porém, há sempre implícito nele, uma “má-fé”, um
ocultamento. E é justamente este aspecto aquele que Barthes considera, afirma Culler, o
mais repreensível no mito (p. 38)
Conforme Culler, em 1971 Barthes voltará ao tema no livro Image, Music, Text.
Aí então, o pensador francês declararia que não basta, como havia feito em
Mythologies, apenas “denunciar” o mito; faz-se mister “destruí-lo”.
Em outro texto, mais sintético, do mesmo ano, o qual foi publicado
postumamente na compilação O rumor da língua, Barthes pontua que todo mito (antigo
ou contemporâneo), conforme a definição de Durkheim, corresponderia a uma
“representação coletiva”; já conforme o ponto de vista marxista, corresponderia à
naturalização de um dado socialmente construído, um dado histórico. Pode-se dizer que
é mitológica toda “grande narrativa”, todo “discurso”, todo lugar comum do
pensamento e do entendimento de homens, mulheres e crianças. Conclui-se, portanto,
que a dantes referida “ciência da leitura” seria cabível não apenas para Textos verbais,
mas também para os não-verbais. “O mito está presente em todo lugar onde se façam
frases, onde se contem histórias” (p. 80).
Isso implicava que a aqui aludida “ciência da leitura” pudesse ser “utilizada” no
mundo extra-literário com a mesma funcionalidade pretendida para o universo literário:
não para analisar, interpretar, decifrar, chegar a um significado; e sim, propriamente,
para “desarticular”, “desmascarar”, “avaliar”, “fissurar a própria representação do
sentido” (p. 78).
O que Barthes notará nos anos seguintes é que a tentativa sistemática de
“desmistificar” muitas vezes, ao invés de “soterrar”, fortalece o mito; confere-lhe maior
importância e visibilidade.

A História sob o olhar da “ciência da leitura”


Em outros livros publicados durante sua vida Barthes já havia refletido sobre a
importância social do trabalho do historiador. Em Le degré zero de l’écriture (1953),
apresenta a História como um discurso mitológico, um saber não-natural, mas
percebidos por todos como naturais; e que deve ser estudado de maneira a nos fazer
conhecer um tanto mais sobre o presente. Mas em Essais critique (1964) destaca com
mais ênfase a importância de se analisar os “lugares-comuns” da historiografia; e pontua
que pesquisadores devem concentrar-se em perceber sobretudo as diferenças entre o
passado e o presente; aí então apresenta o entendimento de que são as diversidades e
descontinuidades que fazem grande e rica a história mundial.

Em Rumor da língua, baseado em Jacobson, Barthes propõe que o discurso da


História pode ser caracterizado por duas qualidades essenciais, ambas quase sempre
perpassadas pelo signo da objetividade. Em primeiro lugar, ele é testemonial. O
historiador afirma que esteve presente ao fato narrado; ou ao menos aponta alguns
nomes daqueles que o vivenciaram e o narraram; ou ao menos pontua, vagamente mas
sempre, que existe qualquer fonte que o testemunhou (o historiador diz: “conta-se”,
“ouvi dizer”, “pelo que é de nosso conhecimento”). Em qualquer destas possibilidades,
busca-se garantir o convencimento do leitor, por um juízo de autoridade ou de
consensualidade.
Em segundo lugar, para o dito autor francês, discurso da História é “ordenado”,
isto é, apresenta as informações sistematicamente, conforme uma lógica quase sempre
pouco “ousada”. Existem, aqui também, várias formas de fazê-lo, porém, há em
comum, entre todas elas, a “catálise” – o preenchimento de lacunas entre os fragmentos
de enunciação estudados; assim como a tentativa de ocultamento desta intervenção.
O discurso da história é, por isso, diz Barthes, um discurso de “colecionador” e
“assertivo”. Ele parte do princípio de que estuda os mais diversos fatos, puros, tal como
ocorreram.
Porém, como já havia argumentado Nietzsche, “Não existe fato em si. É sempre
preciso começar por introduzir um sentido para que haja um fato” (p. 176). Ou, para
utilizar palavras do próprio Barthes, “o fato nunca tem mais do que uma existência
lingüística” (p. 177). “O discurso histórico não acompanha o real, não faz mais do que
significa-lo, repetindo continuamente aconteceu” (p. 178).
Barthes percebe, porém, que naqueles meados da década de 1960 o discurso
histórico encontrava-se já significativamente transformado. O que parecia importar
eram não mais os dados, obtidos criticamente através de fontes seguras, mas os modos
de interpretá-los. A dita Écolle des Annalles, que encontrava-se, à época, em sua
terceira geração de estudiosos, como é sabido, fundara-se sobre todo um discruso crítico
no que diz respeito à dita “história factual”.
Entretanto, lembremos que tal alteração não fez da História um campo do saber
significativamente próximo à idéia de “ciência da leitura” definida por Barthes. Tanto
os historiadores ligados a esta “escola” como os historiadores atuais em geral percebem
as dificuldades de se alcançar uma “verdade história”; partem de princípios de que seus
textos não correspondem a uma “verdade absoluta”; compreendem-nos como discursos.
Só que raros desses mesmos historiadores concordam que uma “verdade histórica”,
passada, no final das contas, nem mesmo existiu.

Da ciência à sapientia: na transição do cientista literário ao ensaísta


Ao que tudo indica, o referido autor, quando propôs esta noção de “rumor da
língua”, já encontrava-se num momento de transição da visão crítica velada, para uma
visão crítica pública da sua própria concepção de “ciência da leitura”. De acordo com
Perrone-Moisés, “se considerarmos, para fins didáticos, quatro etapas na vida intelectual
de Barthes – o mitólogo, o novo-crítico, o semiólogo e o escritor –, diremos que os
ensaios reunidos em O rumor da língua pertencem às duas últimas faces ou fases” (p.
XII). Como propõe Culler, o “Barthes maduro (...) fugiu às teorias para cultivar a
própria individualidade” (p. 15); e, creio eu, para, destarte, incentivar tantos outros
jovens e velhos intelectuais franceses e de outras nacionalidades a fazerem o mesmo:
promovendo, através da leitura, um encontro consigo mesmos.
Como viemos acompanhando no decorrer deste texto, Barthes vai da definição
de uma nova especialidade científica à percepção de que, como pontua Perrone-Moisés,
“a linguagem literária excede sempre qualquer esquema descritivo, escapa sempre Às
malhas grosseiras de metalinguagem técnica”, de que. É verdade que, como lembra a
referida pesquisadora brasileira, Barthes não dispensa a noção de “regras” intrínseca a
pesquisa científica consagrada; porém, como aludi no início destas minhas
considerações, Barthes não considera que “rigor” seja característica exclusiva do saber
promovido pela ciência.
Culler compreende que “o estruturalismo não passou de um momento em sua
diversificada carreira”. Daí que muitos estudiosos de Barthes e da acadêmica ocidental
contemporânea, a despeito da aqui firmada importância do “estruturalismo” no
pensamento do intelectual francês aqui por mi focado, o classifiquem “pós-
estruturalista” (p. 74).

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