Escola e Aprendizagem para o Trabalho num País da (Semi) Periferia Europeia
Stephen R. Stoer e Helena Costa Araújo
Introdução feminina? Onde se questionam direitos
humanos e escola democrática? Onde a Em Junho de 1992 dava à estampa coerência metodológica convive com Escola e Aprendizagem para o Trabalho técnicas de recolha de dados que vão da num País da (semi) periferia Europeia de «clássica» análise documental a histórias Stephen R. Stoer e Helena Costa Araújo. orais, genealogias e uso diários? Um livro estimulante (porqu)e Estas e outras questões dão um pouco desconcertante a vários níveis. Que mais se a ideia da riqueza e do desafio que esta obra pode dizer (ou escrever) de um livro que constitui. Situemos, para já, o seu contexto nos dá conta de um projecto de investigação editorial. levado a cabo no Minho e onde, a propósito da relação entre uma escola (C+S de Aprendizagem para alem da escola Viatodos) e as comunidades com que Em 1991 aparecia no mercado interage, se questiona a especificidade da livreiro uma nova colecção através da educação escolar em Portugal? Onde se Editora Escher: «A aprendizagem para além relaciona sistema mundial (capitalista) com da Escola». Raul Iturra, o seu responsável, a problemática das classes sociais (central elucida, num curto texto em cada livro, que na sociologia) com a da cultura (central na o seu propósito é «dar a conhecer o saber antropologia)? Onde se opta por uma que as pessoas retiram da sua experiência etnografia não antropológica? Onde se social para suplementar o que a escola não afirma a identidade – o ethos – daquela ensina: a didáctica cultural da transmissão escola (e cultura em que mergulha) num oral de ideias, que o saber letrado não sistema educativo tão centralizado (e de incorpora no ensino». sede urbana) como o português? Onde se Julgamos que tanto estas palavras fala da escola na sobrevivência e como o título da colecção são transformação dos camponeses-operários? suficientemente esclarecedores. De facto, os Onde se relaciona cultura masculina e sete volumes dados à estampa até ao momento 1 têm parcialmente em comum a (Vila Ruiva) e coordenado por Raul Iturra. abordagem de o que, e como se, aprende Deste trabalho de campo comum resulta a para além da escola, se não mesmo apesar construção de quatros objectivos teóricos dela. diferentes cuja articulação entre os dados O primeiro livro (Iturra, 1991a), um empíricos fornecidos e a reflexão conjunto de ensaios, corresponde ao proporcionada por cada autor nos permite espraiar do pensamento teórico do autor na adquirir uma perspectiva em que sobressai a perspectiva da afirmação de uma complementaridade da interacção entre antropologia da educação. Trata-se de um diversos aspectos da vida social da aldeia e pensamento radical, elaborado numa da escola ( e sua lógica social). linguagem não hermética, que se debruça A meio do Verão passado saiu ainda sobre a complexa relação entre o «saber uma obra de outro antropólogo, Ricardo letrado» (da escola) e a «mente cultural» Vieira (1992), que se debruça sobre as (rural). relações formais e não-formais entre a Os quatro volumes seguintes (Iturra, escola e as vivências extra-escolares de um 1991b; Porto, 1991; Raposo, 1991; Reis, grupo de crianças e jovens do concelho de 1991) têm como base um trabalho de Pombal, situada no norte do distrito de campo realizado numa aldeia da Beira Alta Leria. Curiosamente, o livro sobre o qual 1 Por ordem de aparecimento: nos debruçamos é o único, ate ao momento, da sua autoria de dois não- antropólogos. Iturra, Raul (1991), Fugirás à Escola para Trabalhar a Terra – Ensaios de Stephen Stoer e Helena Araújo provêm Antropologia Social sobre o Insucesso ambos da área da sociologia da educação. Escolar, Escher, Lisboa. Iturra, Raul (1991), A Construção Social do Curiosamente também, o seu estudo centra- Insucesso Escolar – Memória e Aprendizagem em Vila Ruiva, Escher, se nas relações entre uma escola (Escola Lisboa. C+S de Viatodos) e o mundo envolvente Porto, Nuno (1991), O Corpo, a Razão, o Coração – A Construção Social da (Minho rural), tendo como base a primeira, Sexualidade em Vila Ruiva, Escher, Lisboa. ao contrário do trabalho da equipa de Iturra, Raposo, Paulo (1991) Corpos Arados e cujo centro de estudo é a aldeia. Romarias: entre a Fé e a Razão em Vila Ruiva, Escher, Lisboa. Reis, Filipe (1991) Educação, Ensino e Crescimento: o Jogo Infantil e a Aprendizagem do Cálculo Económico Roteiro de um livro em Vila Ruiva, Escher, Lisboa. Stoer, Stephen R. e Araújo, Helena Costa O título do livro de Stephen Stoer e (1992) Escola e Aprendizagem para o Trabalho num País da (Semi)Periferia Helena Araújo – Escola e Aprendizagem Europeia, Escher, Lisboa. para o Trabalho num País da (Semi) Vieira, Ricardo (1992), Entre a Escola e o Lar, o Curriculum e os saberes de Infância, Periferia Europeia – é assumidamente Escher, Lisboa. «pedido emprestado» à já clássica obra de paul Willis Learning to Labour (1978). Só participada, e onde se utilizaram técnicas de que, como veremos, rompe com um certo recolha que incluíram genealogias, diários, determinismo e fatalismo sociológicos a entrevistas e observação directa» (pp. 22- que a obra de Willis não se consegue furtar. 23) visa cinco objectivos. Os autores começam por elucidar, 1 – «caracterizar as práticas sociais e logo na primeira página, que a «principal culturais presentes tanto na escola como na preocupação orientadora do nosso livro é: comunidade local (...) de forma a poder qual a especificidade da educação escolar tornara visíveis as diferenças e possíveis em Portugal?» (p.11) e que, para tal, tensões entre a cultura da escola a cultura «teremos logicamente de perguntar que camponesa; lugar, ou posição, ocupa Portugal no 2 – «investigar a relação sistema mundial?» (id.). percepcionada entre a educação e o O seu estudo «centra-se em torno de mercado de trabalho, tanto para rapazes três problemas, de natureza cultural, como para raparigas»; económica e política» (p. 21): 3 – «pesquisar a percepção que a 1 – qual o «choque potencial entre a juventude tem do seu futuro no mercado de expansão da escola urbana (escolarização trabalho (...)»; de massas) e a cultura rural»? (id.). 4 – «identificar experiências culturais 2 – qual a «relação percepcionada e materiais da juventude como elemento entre a escola e o mercado de trabalho que importante no processo de transição da se manifesta nas comunidades escolar e escola para o trabalho (...)», local»? (id.). 5 – «estimular a consciência local 3 – «será que a falta de sobre as finalidades e as capacidades da conhecimento, por parte dos professores, da escola e encorajar as entidades locais a realidade social, não só da escola, mas actuar como agência para o também da forma como a escola e o sistema desenvolvimento». educativo estão inseridos no contexto das O livro de Stoer e Araújo segue um relações nacionais e mundiais, é conciliável percurso no sentido macro-micro-macro. com a concretização efectiva dos Começando por se centrarem na pressupostos inerentes á escola categoria de semiperiferia europeia de democrática?» (id.). Wallerstein, os autores – seguindo de perto estas questões levam, na opinião dos um seu texto anterior, compreensivelmente autores, ao «estudo da autonomia relativa mais desenvolvido (Stoer e Araújo, 1191) – da educação como modo de regulação perfilham a opinião de Boaventura Sousa estatal» (p.229. Santos segundo a qual Portugal O seu trabalho, usando, durante três semiperiférico se caracteriza por «uma anos, «uma metodologia de investigação descoincidência articulada entre relações capitalistas de produção e relações de Banco Mundial «inadvertidamente pode reprodução social» (Santos in Stoer e consolidar o lugar de Portugal no sistema Araújo, 1992:14) e por um Estado assente mundial» (p.15). em tensões (p. 14). Apontam, assim, para A Introdução, simultaneamente «um conceito não-determinista sobre o explicação daquilo em que consistiu a Estado e as políticas estatais» (id.) ou, por investigação – objecto de estudo, fases, etc. outras palavras, para a sua autonomia – e mapa das questões teóricas que lhe relativa. serviram de bússola, desemboca num Segundo os autores, uma das primeiro capítulo - «Memória local num particularidades de Portugal semiperiférico espaço social em mudança – em que nos é é a mutação sofrida pelos camponeses com oferecida uma retrospectiva da vida da a sua transformação em camponeses com a aldeia ao longo de quatro gerações: bisavós, sua transformação em camponeses- avós, pais e jovens. De facto, através de operários, mutação para a qual assinalam a mais de uma dezena de quadros e gráficos «contribuição da escola e da extensão da com dados demográficos, educacionais e escolaridade obrigatória» (p.17). na económicos, ficamos na posse de uma sequência de trabalhos como os de sociografia da zona de Viatodos que é Madureira Pinto (1987) e Ramirez Boli complementada com relatos e análise das (1987) – estes dois, «autores que têm genealogias e histórias de vida dos jovens procurado repensar as questões do da Escola C+S de Viatodos e suas famílias. desenvolvimento da escola de massas As descrições parcelares (e utilizando uma perspectiva de sistema comentários ás mesmas) daquelas histórias mundial [e segundo os quais] possivelmente de vida constituem uma espécie de frescos a competitividade dos países sucessivos que nos fazem sentir como semiperiféricos é melhorada através da espectadores de um filme, colorido e escolaridade obrigatória, no sistema inter- animado, em que nos é permitido seguir o estatal» (p.18) - , Stoer e Araújo adoptam desenrolar da vida de toda uma zona e suas como uma das ideias centrais do seu livro a gentes ao longo de um século: «as histórias de que a escola de massas garante à biográficas (...) contribuem para perceber condição salarial dos grupos camponeses, que também aqueles espaços sociais, e grupos, esses significativos (agora enquanto aqueles e aquelas que ali habitaram e operário-camponeses) na zona em que se habitam, construíram histórias de vida desenvolve o seu trabalho. difíceis, de resistências duras, de escolhas Os autores alertam ainda para o facto inadiáveis. Mas também construídas através de que a formulação de políticas educativas de solidariedades afectivas, de experiências baseadas no apelo a organizações ricas e variadas, de sentidos vivos» (p.30). internacionais como a OCDE, a CEE ou o Os dados postos á nossa disposição da família camponesa revelam um carácter permitem confirmar o «carácter de ao mesmo tempo afectivo, hierárquico e semiruralidades» (p.35) da região e rígido» (p.49), com o poder a basear-se na perceber como «emigrar surge ao mundo estratificação etária – «o dos mais velhos camponês como uma forma de evitar perder sobre os mais novos» (p.49) – e no eixo – a terra e ser proletarizado» pois «a masculino/feminino. proletarização que aqui ocorreu (...) acabou Uma das características deste livro é por constituir-se apenas numa que á medida que os autores vão proletarização parcial, com os camponeses- apresentando «dados», vão também, a par e operários» (p.48). Os autores falam-nos passo, questionando/fundamentando os também dos papéis ocupados pela família e conceitos, os métodos e as técnicas pelos pela escola enquanto quadros de quais optaram. Assim é que se debruçaram socialização ao longo das quatro gerações: sobre as possibilidades oferecidas pelas «A escola quase não aparece referida nesta genealogias ao permitirem o estudo de memória popular, com referências ao modos de vida, formas de socialização e período 1870-1945 (...), a frequência da memória local das comunidades, e pelas escola primária só se torna uma realidade possibilidades oferecidas pela história oral na geração dos pais destes jovens, nos finais de fazer o registo da voz (que de voz e não da década de 1950. (...) A escola urbana a de escrita essencialmente se trata no invadir os campos é um processo contexto rural) dos ignorados, dos relativamente recente» (p. 50-51), «As marginalizados, dos esquecidos. A o pôr ao famílias aparecem como os centros de alunos a entrevistarem pais e avós sobre as aprendizagem de comportamentos e valores suas histórias vida, estão assumidamente, a aceites, e de aptidões ensinadas para o perfilhar a concepção de Steel e & Taylor mundo agrícola e artesanal» (p.51). para (1973) do aluno como jovem historiador. É Stoer e Araújo, a «imagem que fica a que , na óptica de Stoer e Araújo, para estes perdura sobre a s famílias camponesas, alunos, «conhecer as experiências dos seus através destes relatos, é a de uma rede antepassados, neste capítulo, funciona como fortemente tecida, no sentido em que o um recurso cultural acrescentado, trabalho dos seus membros é indispensável facilitando a valorização da sua cultura e para a sobrevivência da sua unidade permitindo aos jovens ganhar poder face á produtiva familiar a que, por sua vez, se cultura da escola» (p. 48). É também uma constitui em unidade básica de consumo, tentativa de que a investigação possa administrando e gerindo os bens comuns e também reverter a favor dos «investigados» tomando decisões sobre necessidades e e de que a cultura rural, «que não constitui gastos a fazer com cada um dos seus uma cultura oficial, não seja marginalizada membros» (pp. 48-49). As relações no seio no contexto da produção cultural nacional» diz respeito às actividade físicas, ao (p.65). desporto» (p.81), e de uma cultura feminina Seguidamente os autores confrontam- «mais discreta e menos visível» (id.), mais nos com o conceito de ethos, fazendo-nos identificável pelas actividades entrar no capítulo talvez mais polémico mas desenvolvidas na escola: ajudar na cozinha, porventura mais original de todo o livro. É tratar dos faisões da escola, preferência por que pode parecer contraditório, num passear e conversar com as amigas no sistema educativo tão fortemente recreio ou por jogos tradicionais em vez de centralizado como o português, falar de desporto, etc. identidade e especificidade culturais a Os autores debruçam-se de seguida propósito de uma escola. Contudo, na sobre os dois padrões de aprendizagem para escola em estudo, «há na verdade o trabalho: - o que «é fornecido pela escola numerosas alusões e referencias á e que aponta para o mercado do trabalho características especificas, a uma identidade oficial» (p.88) e se traduz em opções como particular, apontadas como permitindo hortofloricultura e textéis; distinguir esta escola de outras, e que se - «aquele que as famílias camponesas projecta na construção do espaço escolar. imprimem às suas crianças» (id.) Pode assim falar-se do ethos desta escola» Na senda do trabalho de Karin Wall (p. 27). (1987) sobre o Minho semi-rural, os autores Este ethos traduz-se essencialmente, identificam duas categorias de famílias. no aspecto relacional e expressivo, 1 – a família monoactiva, mais salientado por todos os membros das tradicional com uma divisão de papéis clara comunidades escolares e local «alunos, e rígida, onde a criança é obrigada a professores, Conselho Directivo, desempenhar trabalho agrícola, e as Associação de Pais, Associação cultural expectavas quanto ao seu futuro estão aí local, etc.» e que desemboca num conjunto encerradas; vivem em choque constante importante de actividades extra-curriculares com a escola urbana; bastante participadas. Para os autores, «o 2 – a família pluriactiva, com uma ethos da escola de Viatodos é resultado da maior flexibilidade de papéis e de rearticulação entre a cultura rural em autonomia de cada um dos seus membros, mudança e a cultura urbana (...)» (p.69). Ele «parece trabalhar em relativa harmonia» aparece, assim, como a forma pela qual a (p.87) com a escola, a qual é vista cultura (camponesa) se afirma, ou pelo positivamente devido ao seu papel menos resiste, à cultura (urbana) da escola. credencializador. Este facto não deve, porém, ocultar a A relação entre estes dois tipos de existência de uma cultura masculina « família e os padrões de aprendizagem particularmente visível sobretudo no que parece clara. Os actores apresentam uma serie de quadros através dos quais é mercado de trabalho oficial é de possível ver como os jovens ocupam o seu descontinuidade, e a relação escola- tempo fora da escola, ou seja de uma forma economia paralela é de continuidade. A muito diversa para cada uma das maior parte dos jovens só encontra trabalho actividades – domésticas, agrícolas, «clandestino» nas pequenas fabriquetas: «a desporto, religião – e com nítida distinção aprendizagem para o trabalho no Portugal sexual de tarefas. A quantidade de crianças semirural parece significar, sobretudo, que desenvolvem um número significativo aprender a sobreviver numa economia de horas de trabalho agrícola, permite-lhes clandestina ou a aprender a viver com a secunda as opiniões de Madureira Pinto frustração de um sonho nunca realizado» (1985) e Ferreira de Almeida (1986) (p.103). segundo as quais estas crianças, juntamente Na realização dos eu projecto é de coma as mulheres e os velhos constituem registar a opção de Stoer por uma um «exército agrícola de recurso» (Pinto in etnografia crítica, cuja preocupação Stoer e Araújo, 1992:93). Não conseguem fundamental «é fornecer um forma de poder deixar de chamar a atenção para o facto de aliar agência humana estrutura social» (id: que «encontramos, pois, nesta zona, 23). Em consonância com este conceito, crianças e adolescentes envolvidos em entendem cultura como uma pratica social, actividades de trabalho manual intensas que conceito que resulta da tensão entre cultura necessitam ser tomadas em consideração entendida como «um modo de vida, como por parte das instituições educativas e na aquilo que é inerente a práticas sociais formulação de políticas educativas, quando resultantes de um modo de produção e a escola nos sistemas democráticos afirma reprodução (a cultura camponesa; a cultura reger-se pelo princípio de igualdade de rural; a cultura semi-rural), e cultura oportunidades» (pp. 94-95). O quadro que [entendida] como uma actividade criativa, apresentam , mostrando que o trabalho como aquilo que implica que as próprias agrícola realizado pelos alunos varia desde estruturam sejam constantemente criadas e 8,5 horas numa turma a 188,5 horas noutra recriadas» (id:25). Recusam, assim, uma turma, não pode evitar a reflexão que a concepção acabada e determinista de «organização da escola, concretamente no cultura - «seria, de facto, um beco sem seu sistema de formação de turmas, aparece saída para a nossa análise se as culturas como muito evidente uma forma de estivessem presentes na escola, à partida, streaming» (p.95). como culturas completamente formadas A relação casa-escola é, para ao (determinadas)» (id: 26). autores, simultaneamente de continuidade e Stoer e Araújo não esquecem que «se descontinuidade (apresenta ambas as a cultura tem de ser compreendida tanto na facetas), enquanto que a relação escola- esfera produtiva como reprodutiva, necessita de se questionar a forma como o envolvida em actividades de produção género (tal como a etnia, a classe e a agrícola, domestica e também, em menor região) interfere na sua construção» escala, oficinal» (p.131), e por outro, que (p.113). Baseando-se em Mc Robbie são actividades de reprodução estrita do (1991) lembram, assim, que «pela sua agregado doméstico que consomem muitas situação estrutural de subordinação, a horas passadas em casa» (p.129), o que não cultura feminina não atraiu a atenção dos os entusiasma, preferindo claramente a estudos sobre culturas juvenis que tenderam escola, quanto mais não seja pelo convívio a focar as actividades que se desenrolam na com os seus pares que esta proporciona. rua, onde as raparigas estão menos Outro dado salientado é que há uma presentes, e no trabalho, onde são distintas divisão clara na ocupação dos tempos de as expectativas que sobre elas se exercem. lazer de acordo com o tipo de família e o A esfera da família e da vida doméstica género a que pertence. Nas famílias foram genericamente esquecidas» (p.114). monoactivas quase não há tempo para ver Não pretendendo apresentar a cultura televisão (uma das actividades mais juvenil – conceito por si também discutido comuns) e as raparigas desenvolvem a – de Viatodos, tentam, porém, «uma maior parte das suas horas de lazer dentro primeira abordagem do que significa ser de casa - «o café continua a ser um espaço jovem nas aldeias que a escola serve» sobretudo masculino» (p.135). Stoer e (p.111) na medida em que, sendo certo que Araújo falam, assim, da existência de a juventude é em larga medida criada como distintos padrões de vida. categoria social» (id.), também não é o O papel do controlo familiar, menos que «estes jovens estão envolvidos exercido «com alguma visibilidade» (p. em práticas e condições (institucionais e 138) – nomeadamente através da outras) diferentes dos membros mais velhos dependência económica - , é outro dos das suas famílias, com implicações para a aspectos abordados pelos autores que forma como actuam e para as visões do referem o papel da mãe, «dado a sua mundo que sustentam» (id.). centralidade no governo doméstico, como Depois da discussão do conceito de também a sua crescente presença no cultura e das razões da exclusão do estudo trabalho do campo minhoto, trabalhando no da cultura feminina pelas ciências sociais, dia-a-dia, em muitos casos sem a Stoer e Araújo apresentam, ao longo de contribuição do marido, ausente para a uma dúzia de páginas, a «voz – transcrições oficina, o estaleiro, a fábrica» (p.138). – das raparigas e dos rapazes de Viatodos A fraca «identidade específica» acerca do que fazem fora da escola. Pela (p.139) destes grupos de jovens, quando sua leitura torna-se claro que, por um lado, comparada com os das zonas urbanas, é uma «boa parte [destas e destes jovens] está posta em paralelo com outros dos seus traços caracterizadores, que é o facto de que ocorreram separadamente (p.147). A «a juventude de Viatodos sublinha que contradição entre o «processo (lógica de gosta de viver no campo» (id.). Quanto às acumulação) e o contexto (promoção de expectativas de sair da aldeia - «as férias igualdade de oportunidades) assume uma como conceito na cultura rural deve a sua dimensão e uma especificidade só emergência, em grande parte, à escola» explicáveis à luz da posição do país no (p.140) -, elas são consideravelmente mais sistema mundial» (p.152). notórias nos rapazes do que nas raparigas, A especificidade portuguesa resulta, «cuja mobilidade aparece como muito assim, na opinião dos autores, do condicionada e restrita à casa da família e cruzamento entre o processo e o contexto aos espaços mais directamente com ela nacionais. O primeiro leva à «hipótese de relacionados, com vidas mais estruturadas uma escola de massas menos baseada na do que os seus pares masculinos (...)» classe social do que a que se desenvolveu (p.143). nos países do centro europeu» (p.154); o A realidade comum a todos estes segundo revela a «subordinação da política jovens – famílias mono/pluriactivas, educativa às preocupações conjunturais das rapazes/raparigas – é o trabalho rural e políticas económicas e industriais» (id.), semirural, sendo através dele que se provocando a (quase) inexistência de afirmam como produtores de uma cultura alianças entre «agentes da esfera de em mudança (p.143). reprodução (professores) e agentes da Na parte final do seu livro, os autores esfera de produção (pais e trabalhadores)» lidam com questões em torno da (id.). problemática da escola democrática e dos Para Stoer e Araújo há que cumprir direitos humanos. Naturalmente não as promessas da modernidade (consolidação poderiam deixar de abordar a questão de da escola de massas com o que isso implica qual a relação entre o princípio da de interiorização de direitos humanos e igualdade de oportunidades educativas, sociais básicos) e da pós-modernidade assumido retoricamente pela escola de (crise da escola de massas que leva ao massas, e a cultura semirural de Viatodos. necessário confronto entre culturas): A questão é tão mais complexa quanto somente deste modo «será possível desfiar a Portugal vive em simultâneo a crise e a existência do fosso cultural entre a cultura consolidação da escola de massas: «A crise nacional» (p.156). da escola de massas em simultâneo com a sua consolidação, num país com uma Um olhar e algumas interrogações especificidade própria, tem o efeito de No final dos anos 70 Karabel e trazer, para o mesmo espaço e o mesmo Halsey (1977), ao fazerem o ponto da tempo, lutas sociais que em países do centro situação sobre a sociologia da educação, davam conta de que os anos 80 have little force». Não se trata, contudo, de necessitavam de estudos que um eclectismo estéril ou pomposo. A opção estabelecessem a ponte ente o macro e por uma etnografia crítica, fundamentada e micro-sociológico. Os anos 80 passaram e o coerente coma s técnicas de recolha de contexto português daquele ramo do saber adoptadas (nomeadamente aquelas menos não permitiu grandes «voos». usuais entre nós no campo da sociologia da Consideramos um dos aspectos mais educação, como são o caso das genealogias, interessantes da obra em análise diários e história oral), tornou possível precisamente o estabelecimento daquela aquela caminhada, De facto, a etnografia ponte, tanto mais que ainda não é uma crítica, ao ter como preocupação «fornecer situação corrente entre nós. uma forma de poder aliar agência humana Naturalmente que desbravar com estrutura social» (p.23), constituirá um caminhos ou percorrer sendas pouco excelente meio de estabelecer a ponte trilhadas é sempre ingrato. Construir pontes micro-macro. É também enquadrada nesta tem o seu quê de aventura. E desventura. opção metodológica que a utilização de A obra de Stephen Stoer e Helena técnicas como a história oral não corre o Araújo é de certa forma, circular. Começa perigo de produzir «dados» pelos conceitos de sistema mundial, descontextualizados. Claro que a escolha de semiperiferia europeia, Estado, sistema uma técnica destas, ao privilegiar dar voz educativo, Portugal (domínio macro), passa aos socialmente marginalizados e pela análise de uma comunidade, uma esquecidos, constitui uma opção tão teórica escola e uma cultura juvenil «concretas» quanto ideológica (tal como o seria domínio micro) e termina com questões qualquer opção). Só que esta escolha – ligadas aos direitos humanos e escola através da concepção do jovem historiador democrática numa comunidade, em – e, uma vez mais, coerente com um dos Portugal e no sistema mundial (domínio objectivos propostos: «estimular a macro). Se o percurso é basicamente este, consciência local sobre as finalidades e as ele não é, no entanto, linear. Várias vezes capacidades da escola, e encorajar as os autores o curto-circuitam. entidades locais a actuar como agências Este percurso é possível através de para o desenvolvimento» (id.). Os autores uma opção metodológica não dogmática. são muito claros ao firmarem que Os autores mostram-se de acordo com o «conhecer as experiências dos seus princípio de Martyn Hammersley e Paul antepassados neste capítulo funciona como Atkinson (1983: X) segundo o qual um recurso acrescentado, facilitando a «methods must be selected according to valorização da sua cultura e permitindo aos purposes; general claims about the jovens ganhar poder face à cultura da superiority of one technique over another escola» (p.48). Não é também por acaso que Stoer e Araújo definem a sua A dúvida que se coloca é que se, por investigação como sendo participada (p.22). um lado, «é através do ethos que é atribuído A coerência entre métodos e críticas valor ao que é normalmente desvalorizado estende-se ainda à das opções conceptuais. pela escola» (p. 80), e que «é cultura É o caso, por exemplo, do entendimento da camponesa que determina a cadência, o cultura como prática social, uma prática que ritmo, a identidade expressa da escola» permite aos seres humanos, em cada (id.), por outro, «é inegável que a cultura momento e contexto históricos, criarem e urbana, académica, literária, se impõe na re-criarem as estruturas nas quais estão sala de aula, sobretudo no momento da inseridos. A relação dialéctica indivíduo- avaliação dos alunos» (id.). Parece criar-se sociedade e indivíduo-estrutura perpassa um duplo espaço intra-escola, o da sala de por todo o trabalho. aula (cultura urbana) e o fora dela (cultura O capítulo sobre o ethos da escola, já rural), que testemunha uma relação de o dissemos, é tão interessante quanto incomunicação: «faz sentido, pois, falar de polémico. Debruça-se sobre a questão distância e mesmo de choque cultural que fulcral da relação entre culturas – a da ganha expressão na sala de aula, através da escola e a local – bem como da relação forma como os alunos comentam os entre cultura e classe social. Os autores professores e as matérias; na sensação afirmam que a escola de Viatodos consegue explicitada de pura incomunicabilidade ( criar uma certa identidade cultural que se estive atento, mas não percebi nada)» (p. manifesta através daquilo a chamam a sua 99)... ordem expressiva. É através do ambiente A sensação que fica é que a escola, acolhedor – testemunho por alunos e enquanto instituição transmissora/ professores e pais -, através das actividades reprodutora de uma cultura estranha à do extra-curriculares e através da introdução meio, tenta ser acolhedora e cativar os de disciplinas ligadas ao meio, como alunos ( e famílias) através de todo um hortofloricultura e têxteis, que se manifesta clima e um conjunto de actividades que, por o ethos. Segundo os autores, esta é a forma sua vez, acabam por ser estranhos ao que se encontrada pela cultura local (rural) para se passa nas actividades ligadas ao currículo afirmar perante a cultura (urbana) da escola. forma. A excelência académica não parece De algum modo é a forma encontrada pelos ser propriamente uma prioridade para indivíduos para resistirem, por muito ninguém . Stoer e Araújo várias vezes dão parcialmente que seja, à estrutura: «o ethos conta que a escola é encarada por alunos, da escola tem mais a ver com um espaço de professores e famílias sobretudo pela sua negociação através da cultura e menos a ver função de credenciação. O acesso à cultura com uma determinação de classe social» socialmente dominante por parte dos filhos (p.69). dos camponeses ou camponeses-operários parece, assim, nem chegar a ser uma lado, o livro constantemente intersecta a miragem, na media em que não haverá problemática das classes sociais (central na sequer expectativas nesse sentido. Coloca- sociologia) com a da cultura (central na se a questão de se a reprodução social e antropologia). cultura não continuará a ser a norma numa Os olhares parecem cruzar-se, as escola que os alunos (e professores e caminhadas convergir, o esbatimento entre comunidade) até gostam de frequentar fronteiras uma realidade cada vez mais (indicadores do tipo de taxa de repetência, tangível. Casamento de conveniência ou já global e por categoria social, poderiam se um outro tipo de interdisciplinaridade? aqui de alguma utilidade)...Aliás, os autores Unidade do social/ pluralidade das ciências falam na «tradução e subordinação deste sociais ou unidade do social/unidade ethos às determinações de classe social em (parcial) de algumas ciências sociais? Serão momentos cruciais da vida escolar (por o objecto e o método suficientes para exemplo, nos momentos de avaliação dos demarcação de territórios? Tenderá esta alunos)» (p.69). demarcação fazer progressivamente menos Outra das características deste livro é sentido? Este livro levanta algumas a que respeito à relação sociologia- questões epistemológicas interessantes. antropologia. Se a análise macro que é feita É um livro também interessante e – com a reflexão em torno de conceitos rico do ponto de vista teórico. Não adopta como sistema mundial, semiperiferia, explicitamente nenhuma teoria global, mas Estado, autonomia do sistema educativo, o questionamento que vai fazendo a par e etc. - se situa num campo mais tradicional passo, quer em termos de objectivos quer de da sociologia (o que até é reforçado pela conceitos usados, permite um mapear bibliografia a que se recorre), já os constante do terreno que vai sendo capítulos sobre a escola e a comunidade nos percorrido. O cruzamento das levam a perguntar se não poderiam ter sido problemáticas das classes e a da cultura escritos por um antropólogo. Isto é com a do género é um sinal daquela particularmente visível se nos situarmos no riqueza. ponto de vista metodológico: a opção por O livro levanta ainda questões que uma etnografia crítica e por técnicas de directa ou indirectamente se prendem com a recolha, como as histórias orais, as formação de professores. Stoer e Araújo genealogias ou o uso de diários. alertam para o facto de que «embora muitos Interessante a afirmação de que não houve a professores nesta escola posam reconhecer «pretensão de se ter escrito etnografia na a existência de diferentes culturas no espaço tradição antropológica» (p. 25). Poder-se-á escolar, existem dúvidas sobre o grau de falar de uma etnografia sociológica? Qual, conhecimento que detêm sobre as então, a diferença entre ambas? Por outro diferenças culturais presentes na sala de aula, conhecimento esse que também não sociológico será certamente acusada de parece ser foco de reflexão central» (p.98). pobreza ou falta de fundamentação teórica, Esta distinção que os autores estabelecem por uns, e falta de investigação empírica, entre reconhecimento e conhecimento das por outros. Nem sempre «a virtude está no diferenças culturais presentes na escola meio». Nem sempre há virtude... chama a atenção para a necessidade de uma Outra questão sugerida pelo livro é formação de professores qual p efeito de uma investigação com a sóciopsicopedagógica e não apenas natureza desta junto daqueles que (e, psicopedagógica, como ainda é corrente eventualmente, com quem) se investiga. ouvir-se. Claro que não basta reconhecer as Ficamos sem nada saber sobre isso, resta diferenças. Torna-se imprescindível saber o saber se por opção (os autores publicaram que fazer com elas. E parece-nos que, de recentemente outro livro com base no um modo geral, a formação de professores mesmo projecto 2 ,que ainda não (nas suas várias vertentes: inicial, contínua, conhecemos, e que poderá abordar este em serviço) ainda não se sabe como abordar assunto), ou se porque ainda é cedo para ter devidamente esta problemática. Aliás, «resultados». Pela leitura do livro ficamos julgamos importante a explicitação que ao na realidade sem saber qual a avaliação do autores fazem ao argumentarem que «às que foi feito até ao momento, o estatuto dos vezes o que está em causa não é uma diversos intervenientes no processo de questão do grau de conhecimento que os [os investigação participada, se esta já acabou, professores] detêm, mas mais como se continua com outras modalidades, etc. mobilizar esse conhecimento na forma de Mesmo ignorando se haverá «cenas dispositivos pedagógicos capazes de dos próximos capítulos», só por si a leitura enfraquecer as fronteiras entre a escola e a deste livro já é suficientemente estimulante. comunidade» (id, nota 16). Um livro que revela uma reflexão crítica De registar que os conceitos por constante e uma imaginação metodológica e vezes aparecem como pares de oposição: sociológica que um Wright Mills não sistema mundial/ cultura local, cultura desdenharia. masculina/ cultura feminina, família mono/ pluriactiva, padrão de aprendizagem da Referências escola/ padrão de aprendizagem da família, Almeida, João Ferreira (1986), Classes Sociais nos Campos, Instituto de rural/urbano, cultura/ classe social, Ciências Sociais, Lisboa reconhecimento/ conhecimento da Hammersley, Martin e Atkinson, Paul pluralidade de culturas. (1983), Ethnography; Principles in Um dos aspectos a referir ainda é que uma obra que tenta encontrar um certo 2 Genealogias, a capacidade de nos equilíbrio entre o macro e o micro- Surpreender, Ed. Afrontamento, Porto, 1993. Practice, Routledge, Londres e Nova Realidade Portuguesa – uma Iorque Abordagem Pluridisciplinar, Ed. Afrontamento, Porto Iturra, Raul (1991a), Fugirás à Escola Para Trabalhar a Terra – Ensaios de Stoer, Stephen R. e Araújo, Helena Costa Antropologia Social sobre o (1992), Escola e Aprendizagem para Insucesso Escolar, Escher, Lisboa o Trabalho num País da (Semi) Periferia Europeia, Escher, Lisboa Iturra, Raúl (1991b), A Construção Social do Insucesso Escolar – Memória e Vieira, Ricardo (1992), Entre a Escola e o Aprendizagem em Vila Ruiva, Lar, o Curriculum e os Saberes de Escher, Lisboa Infância, Escher, Lisboa
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