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O tédio na poesia decadentista

portuguesa no final do século XIX:


o caso de António Nobre
C arlos C eia

Escreve-se para vencer o tédio, para


Resumo cobrir o tempo morto, para anular um
O tédio foi um tema preferido da bocejo ou para dizer simplesmente que
poesia decadentista europeia do final nada vale uma palavra escrita ou um
do século XIX. Os poetas de então, verso levado até ao fim. Em “Tédio”de
com destaque para os portugueses José Duro, contemporâneo de António
António Nobre e José Duro, enfas- Nobre, no início de Fel, diz-se: “Ando
tiaram-se na vida e na arte de fazer às vezes boçal e sinto-me incapaz /De
versos, não só por força da tuber-
encontrar uma rima ou produzir um
culose de que ambos sofriam, mas
também porque adoptaram o nada verso”. Essa atitude enfastiada perante
fazer, o aborrecer-se com tudo à sua a escrita é que me parece ter interesse
volta, a neurastenia e o maldizer da para a literatura, porque produz um
própria existência individual como género próprio, datado e devidamente
temas maiores da sua poesia. caracterizado, que é muito diferente
de um simples sentir-se aborrecido
Palavras-chave: tédio, decadentismo, por nada ter que fazer. Estou em crer
António Nobre.
que quem entre nós melhor definiu o
tédio da vida foi Fernando Pessoa. Na
única vez em que terá saído de Lisboa,
foi a Portalegre. Em 22 de agosto de

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Universidade Nova de Lisboa

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1907, escreveu uma carta em inglês a O tédio é um topos m oderno?
Armando Teixeira Rebelo, que António
Quadros traduziu:
Patricia M eyer Sparks esforçou-se
Portalegre é um lugar em que tudo por tentar demonstrar que o topos do
quanto um forasteiro pode fazer é can-
tédio é uma invenção literária moder-
sar-se de não fazer nada. [...]M al podes
imaginar o hiperaborrecimento, o ultra-
na. Assim sendo, não seria legítimo
estafanço-de-tudo, a absoluta sensação falarmos no tedium vitae como um
de o-que-há-de-fazer-um-tipo-num-sítio- topos clássico, isto é, que pertence a
destes, que reinam no meu espírito!1 um tempo antigo e que aífoi exem-
plificado de forma excepcional, o que
Aquilo a que Fernando Pessoa cha-
é normalmente seguido pela crítica
mou, no princípio do século XX, “o hipera-
literária latina. A expressão taedium
borrecimento, o ultra-estafanço-de-tudo”
vitae não é recorrente na literatura
é o sintoma de uma doença espiritual
latina. Como topos literário, ainda que
que caracterizou praticamente todos os
de forma pouco assumida, é possível
poetas e escritores decadentistas e ne-
testemunhar em Cícero, Tito Lívio,
felibatas do final do século XIX, onde se
Séneca, Quintiliano, Lucrécio e Horá-
incluem José Duro, M anuel Laranjeira
cio referências avulsas próximas como
e António Nobre, por exemplo.
abborere aliquo,aliquid abborrere e
Panorâmicas históricas sobre o tra-
abborreta escribendo.
tamento literário português do tédio
A literatura clássica não distingue
temos a Psicologia do tédio (1963), de
o aborrecimento da vida, do acto de
Cruz M alpique, e “Em torno da experi-
escrever, do acto de ler e do acto de
ência oitocentista do tédio”, em Tem as
aprender uma arte do que chamamos
Oitocentistas II(1978), de Joel Serrão.2
modernamente o “tédio da vida”. A
Ambas as fontes serviriam para con-
rigor, não me parece correcto falar-se
testar com rigor a tese de que o tédio
do taedium vitae como topos clássico,
é um topos nascido no século XVIII,
porque não o encontramos tratado de
associado ao ennuifrancês e ao spleen
forma sistemática ou programática
inglês. Se quisermos ir um pouco mais
nem em autores individuais em grupos
além da simples verificação da exis-
de autores gregos ou latinos. Acresce o
tência do topos antes da modernidade,
facto de muitas vezes aquilo que pre-
havemos de investigar: o argumento de
ocupa o escritor clássico não é tanto o
Patricia M eyer Sparks: o tédio é um to-
tédio da vida, mas o tédio ou fastio que
pos moderno, nascido no século XVIII;3
pode ser causado ao leitor ou ouvinte
o argumento de Cruz M alpique: o tédio
por pecado cometido no discurso. Con-
de António Nobre como um sentimento
tra a monotonia discursiva que provoca
“postiço” (sic);o argumento de Joel
o fastio no leitor ou ouvinte se insurge,
Serrão: o tédio é uma ilustração de um
por exemplo, Quintiliano4 e contra a
carácter tipicamente português.
prolixidade ou as divagações que pro-
vocam o mesmo sentimento encontra-

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mos avisos de Horácio a M ilton (“Time penetrantes reflexões sobre o tédio é
is our tedious song should here have a de D. Duarte, no Leal Conselheiro,
ending”, in Hym n on the M ourning of onde estabelece a distinção entre os
Christ’ s Nativity). sentimentos de nojo, pesar, desprazer,
A confusão também é facilitada “avorrecimento”e saudade. A canção X
pelas referências frequentes ao ócio, de Luís de Camões abre com uma ima-
com o qual se tende a misturar (in- gem sobre a monotonia da natureza:
correctamente), porque este era uma
forma de vida para muitos indivíduos Junto dum seco, fero, estéril monte,
na Roma antiga. A diferença entre o inútil e despido, calvo, informe,
tédio e o ócio é fácil de estabelecer: o da natureza em tudo aborrecido,
primeiro não é um acto de vontade, onde nem ave voa ou fera dorme,
ninguém se entedia porque quer, mas nem rio claro corre ou ferve fonte,
nem verde ramo faz doce ruído;
por uma fatalidade;o segundo é uma
escolha consciente de um modo de vida, Alexandre Herculano (em O m onge
é uma preferência pela desocupação. O de Cister e em O bobo, por exemplo)e
entediado acha-se sem nada para fazer Camilo Castelo Branco (em M aria da
e, mesmo procurando, não encontra fonte, por exemplo)referem-se ao tédio
uma saída desse estado;o indolente da vida, mas sempre de forma aciden-
opta precisamente por nada fazer e não tal. A história do tédio na literatura
estáinteressado em encontrar algo que portuguesa até à segunda metade do
o ocupe. A evolução semântica do termo século XIX é feita de simples alusões,
tédio, da época clássica romana até ao nunca se assumindo como topos domi-
século XIX, é de tal forma díspar que nante ou tema-identidade, condição ne-
será muito arriscado decidirmo-nos cessária para o tomarmos como marca
pela classicização deste topos. de escola ou convenção datada.
Aceitamos que, enquanto topos
literário na literatura portuguesa, o O tédio de António Nobre é um
tédio só adquira significado no século
XIX, a partir dos ultra-românticos em
sentim ento “postiço”?
especial. M as não faltam exemplos O tédio da vida comum não é da
soltos desde a Idade M édia até este conta da literatura;o tédio que resulta
momento da história literária para não de um estado patológico (uma neuro-
fazer do tédio literário uma invenção se ou uma neurastenia, por exemplo)
inglesa do século XVIII. O Cancionei- também tem pouco interesse literário
ro da Biblioteca Nacional guarda um (excepto se influenciar o acto da escrita
poema de Ayras M oniz D’ Asme que do indivíduo sofredor);o tédio que não
regista, talvez, a mais antiga ocorrên- tem uma expressão moral ou ética tam-
cia do termo na literatura portuguesa: bém não devia ser objecto de estudo
“E quen bem quiser trastornar /Per literário. O caso de António Nobre pode
tedeo [o]mund e ferir”. Uma das mais ser estudado pela via impressionista:

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por exemplo, sabemos que se declara a propósito da vida académica em
“neurasténico”. Em carta ao irmão Coimbra, o fastio dessa vida é um tema
Augusto Nobre, diz: literário não uma declaração médica.
“[O dr. Boelli]manda-me para Bex, E note-se ainda que a única referência
perto da fronteira italiana, que é uma ao tédio na obra posterior a Só é uma
altitude de 500 metros, estação de mera recordação de um sentimento
Verão, especialmente recomendada antigo, que o poeta diz ter perdido:
aos neurasténicos, que, como tu sabes,
Quanto eu te devo!Ódios, impiedade,
ou não queres saber, é o meu grande,
Indignações e raivas contra alguém,
enorme mal. Se tu me compreendesses e
soubesses quanto a minha cabeça me faz Loucuras de rapaz, tédios, vaidade,
sofrer (às vezes sinto-me vizinho da lou- Tudo isso perdi –e ainda bem!8
cura)não ligavas somenos importância O tédio na poesia de Nobre, con-
à influência moral na minha saúde.”5 centrado no livro Só, possui as mes-
Um crítico biografista que ignorasse mas características de outras poesias
o que a neurastenia significa em ter- decadentistas e tão “postiço” quanto
mos psicanalíticos (em 1896, António os sentimentos aíversejados, se for
Nobre não o podia saber, nem o próprio importante dar credibilidade àquilo
Dr. Boelli)iria certamente por aqui e que um poeta diz sentir. Acreditar
encontraria matéria para justificar nessa possibilidade é não acreditar na
os sentimentos decorrentes da neu- faculdade de fingimento de um poeta,
rastenia na obra poética de António o que sabemos ser pouco credível quer
Nobre. Não é de estranhar também que para Nobre quer para qualquer outro
muitas interpretações do Só tenham poeta. A questão não é saber se Nobre
ignorado que o livro foi publicado mui- diz a verdade sobre aquilo que deveras
to antes de a doença de Nobre se ter sente, mas antes saber o que se sente
declarado e o poeta ter consciência de no poem a e a dor que nós, leitores,
ser e estar tísico. Estou em crer que o aíapreendemos. Separando uma vez
tédio como topos literário nesta poesia mais a psicologia individual da herme-
não tem tal origem, embora lhe esteja nêutica literária, diremos que o tédio
indirectamente ligado. na poesia de Nobre é um estado que
Quando António Nobre confessa a não se procurou e em que fatalmente
seu irmão Augusto, durante as suas o poeta se acha: não ter nada para
longas e nómadas estadias no estran- fazer, não encontrar nada para fazer.
geiro, que a vida na Suíça era “duma O poema “A vida”(Só)é uma balada
tristeza infinita e aborrecimento mor- da degenerescência, onde é possível
tal”6 por força do seu estado de saúde compendiar a natureza do tédio:
débil e definhado, já a obra poética Olha em redor, poisa os teus olhos!O
estava construída. E quando o poeta que vês?
António Nobre confessa em “Carta a O Tédio, o Tédio, oh sobretudo o Tédio!
M anuel”;“Que tédio o meu, M anuel!”,7 O mês

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Em que estamos, igual ao mês passado psicologia do indivíduo. Define-a como
e ao que há-de Vir. 9 “neurose actual”, que provoca sentimen-
É importante não ajuizar essa tos de fadiga e dores dilatadas, mas que
atitude aprendida directamente em são o resultado, segundo o diagnóstico
Baudelaire como uma forma de ata- freudiano, de uma insatisfação sexual
raxia ou apatia estóica. Esta é uma recente. Lendo a correspondência de
forma de vida consciente e revestida Nobre, 1)concluímos com facilidade que
de um compromisso religioso que não a sua vida foi uma longa insatisfação
faz sentido em Nobre. O estóico com- sexual;lendo a sua obra poética, 2)não
prazia-se no tédio, a que chamava “im- hánada que ilustre uma intensa activi-
perturbabilidade”(ataraxia), não como dade sexual, como podemos ler nos de-
uma fatalidade angustiante, mas como cadentistas franceses, por exemplo, que
uma forma de conhecimento interior. é uma condição axiomática para que
O tédio de Nobre é de outra origem e se produza insatisfação e consequente
envolve uma forma de pessimismo que estado de neurastenia. Para o psicana-
não prevê qualquer possibilidade de lista, o neurasténico sofre igualmente
alcançar um bem superior. A expressão de 3)angústia e de 4)hipocondria.
da fatalidade do nada-ter-para-fazer A angústia dos poetas decadentis-
conheceu-a também Fernando Pessoa, tas como Nobre ou de escritores como
que foi mais longe do que Nobre na Fernando Pessoa/Bernardo Soares é
definição correcta do tédio degeneres- mais de origem ontológica do que psi-
cente. Em carta a Armando Côrtes-Ro- canalítica e sobre ela já me pronunciei
drigues, de 4-9-1916, desabafa: longamente;11 a hipocondria, por defini-
ção simples, é uma obsessão por estar
“Tenho passado estes últimos meses a doente sem o estar verdadeiramente.
passar estes últimos meses. M ais nada, e Ora, o neurasténico e tísico António No-
uma muralha de tédio com cacos de raiva
bre dispensa mais este diagnóstico, até
em cima. Agora estou numa fase melhor,
com episódicas antemanhãs de seu-eu-
porque, não é excessivo insistir, os ver-
verdadeiramente. Uma longa história sos do Sóforam escritos após a doença
de Depressão, com detalhes lentes-de- se ter declarado. Nenhum desses quatro
aumentar vindas do Exterior ... Enfim... argumentos pode servir de fundamento
Não me sobra o tempo para lhe relatar à presença do tédio como topos literário
porque gradações de mim-e-as-coisas se directamente relacionado com a doença
me infiltrou este mal-de-viver.”10 do homem António Nobre.
São muitas as semelhanças entre A neurastenia que esquadrinhamos
o tédio experimentado pelo autor de na poesia de António Nobre provocará
“M ales de Anto” e o experimentado versos entediados por razões morais e
pelo autor de Livro do desassossego, psicológicas, mas trata-se mais de um
ambos neurasténicos assumidos. programa de escrita do que uma forma
Freud é o primeiro a doutrinar so- de registo poético de uma qualquer
bre os efeitos da neurastenia sobre a idiossicrasia. Quando lemos versos

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como estes de Só: panorama português, desse programa
Vede!Quistos da Dor!Furo-os com uma é a de Bernardo Soares:
lança:
Tão dado como sou ao tédio, é curioso
Que nojo, olhai!são as gangrenas da
que nunca, até hoje, me lembrou de me-
Esperança!
ditar em que consiste. Estou hoje, deve-
-------------------------------------------- ras, nesse estado intermédio da alma
Lanceto mais ainda: as ilusões sombrias!
em que nem apetece a vida nem outra
Cancros do Tédio a supurar M elancolias! coisa. E emprego a súbita lembrança
Gangrenas verdes, outonais, cor de de que nunca pensei em o que fosse, em
folhagem! sonhar, ao longo de pensamentos meio
O pus do Ódio a escorrer nesta alma impressões, a análise, sempre um pouco
sem lavagem! factícia, do que ele seja.
Tristezas cor de chumbo!Spleen!Per-
didos sonos! Não o sei, realmente, se o tédio é somen-
Prantos, soluços, ais, (o M ar pelos Ou- te a correspondência desperta da sono-
tonos) lência do vadio, se é coisa, na verdade,
A febre do Oiro!O Amor calcado aos pés! mais nobre que esse entorpecimento.
Génio!Ânsia! Em mim, o tédio é frequente, mas, que
eu saiba, porque reparasse, não obedece
M edievalite!O Sonho!As saudades da
Infância!12 a regras de aparecimento. Posso passar
sem tédio um domingo inerte;posso
Parece-me ajuizado evitar as inter- sofrê-lo repentinamente, como uma nu-
pretações de psicologia clínica com o vem externa, em pleno trabalho atento.
objectivo de resolver um problema de Não consigo relacioná-lo com um estado
hermenêutica literária. O que qual- da saúde ou da falta dela;não alcanço
quer psicólogo nos diria sobre este caso conhecê-lo como produto de causas que
é que os “cancros do Tédio”provocam estejam na parte evidente de mim. [...]
extenuação emocional, por força de um
O tédio... Pensar sem que se pense, com
recalcamento intenso de sentimentos o cansaço de pensar;sentir sem que se
que o indivíduo resiste a exteriorizar. sinta, com a angústia de sentir;não
Esse diagnóstico só interessará se querer sem que se não queira, com a
pudermos ler o tédio como expressão náusea de não querer - tudo isto estáno
literária relacionada (mas não direc- tédio sem ser o tédio, nem é dele mais
tamente determinada por)com um es- que uma paráfrase ou uma translação.
tado patológico. É necessário advertir E, na sensação directa, como se de sobre
que interessarámuito mais o resultado o fosso do castelo da alma se erguesse
literário desse estado do que as espe- a ponte levadiça, nem restasse, entre
culações sobre o seu aparecimento e o castelo e as terras, mais que o poder
olhá-las sem as poder percorrer. Háum
desenlace. Por essa via será possível
isolamento de nós em nós mesmos, mas
estabelecer importantes comparações
um isolamento onde o que separa está
com outros casos de escritores que estagnado como nós, água suja cercando
tomaram o tédio como programa literá- o nosso desentendimento.
rio. A melhor descrição que conheço, no

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O tédio... Sofrer sem sofrimento, querer acédia, acídia, adinamia, amofinação,
sem vontade, pensar sem raciocínio... angústia, antojo, apatia, consumição,
É como a possessão por um demónio degenerescência, esgotamento, enfa-
negativo, um embruxamento por coisa do, ennui, inércia, náusea, mal-estar,
nenhuma. Dizem que os bruxos, ou os spleen etc. Deixando de parte as par-
pequenos magos, conseguem, fazendo
ticularidades psicopatológicas que
de nós imagens, e a elas infligindo
maus tratos, que esses maus tratos, por
nos levariam a distinguir com rigor
uma transferência astral, se reflictam cada um desses estados de tédio, pa-
em nós. O tédio surge-me, na sensa- rece-nos importante, do ponto de vista
ção transposta desta imagem, como literário, esclarecer a possibilidade de
o reflexo maligno de bruxedos de um uma verdadeira diferença entre tédio
demónio das fadas, exercidas, não sobre e ennui. O primeiro julga-se, então,
uma imagem minha, senão sobre a sua um termo aparecido na literatura do
sombra. E na sombra íntima de mim, século XVIII;o segundo é um conceito
no exterior do interior da minha alma, cultivado pelos poetas decadentistas
que se colam papéis ou se espetam alfi- da segunda metade do século XIX,
netes. Sou como o homem que vendeu que vulgarmente seria traduzido por
a sombra, ou, antes, como a sombra do
“tédio”ou “aborrecimento”.
homem que a vendeu. (...)
M as o sentimento de ennuiidenti-
O tédio... Quem tem Deuses nunca tem fica-se mais com cedência à futilidade
tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. da vida, o que podemos aprender com
A quem não tem crenças, até a dúvida o romance Ennui (1809), de M aria
é impossível, até o cepticismo não tem Edgeworth. Foi, contudo, Baudelaire
força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: quem transformou esse sentimento
a perda, pela alma, da sua capacidade numa espécie de m odus vivendina
de se iludir, a falta, no pensamento, da
poesia e na vida. O ennuirelaciona-se
escada inexistente por onde ele sobe
intimamente com o conceito poético
sólido à verdade.13 de spleen,14 que Baudelaire explorou
António Nobre não teve uma mito- em As flores do m al (1857)e O Sple-
logia, faltaram-lhe as crenças e não en de Paris - Pequenos poem as em
encontrou a sua própria alma. Como prosa (1868). A força totalizadora do
Bernardo Soares, entediava-se sem ennuiestá sintetizada nos versos do
que isso estivesse relacionado com o poema “Spleen” (lxxvi, em As flores
seu estado de saúde – simplesmen- do m al): ´”L’ennui, fruit de la morne
te faltava-lhe, nesses momentos, a incuriosité, /Prend les proportions de
percepção da sua própria imagem e l’ immortalité”. É a condição universal
sobrava-lhe o “querer sem vontade, [o] desse sentimento que levou Patricia
pensar sem raciocínio”. M eyer Spacks a considerar uma dife-
Como sabemos, o léxico deste topos rença essencial entre ennuie tédio:
pode incluir outros termos que lhe “Boredom was not (is not)the same as
estão próximos como aborrecimento, ennui, more closely related to acedia.

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Ennui implies a judgment of the uni- pertencem a esse sentido de ennui.
verse;boredom, a response to the im- Neste caso mais particular, compete-
mediate. Ennui belongs to those with nos destacar a nolição, a inércia, o nii-
a sense of sublime potential, those who lismo, o mal-estar-perante-a-morte, a
feel themselves superior to their envi- náusea e o fastio –o que pode constituir
ronment.”15.
uma boa síntese dos principais temas
A distinção torna-se difícil de apli- da poesia de António Nobre.
car a todos aqueles textos que são Se todos esses sentimentos podem
marcadamente decadentistas. Para ser um sinal de mal-estar perante a
mais, o conceito francês de ennuijátem vida ou perante a morte e se não exis-
uma história literária desde o século te um medidor eficaz das emoções, é
XII, quando significava tormento de arriscado decidir quem é que se sente
alma causado sobretudo por luto ou por maior do que a própria vida ou do que
uma desgraça terrível. O século XIX a própria morte para apenas dizer que
retoma antes o conceito de ennuique aquilo que deveras se sente é ennui
a literatura francesa do fim da Idade e não tédio. Ambos os sentimentos
M édia havia já de consagrar: o de um convergem na sensação de desistência
mal-estar causado pela lassidão e pela perante o progresso e a positividade do
inacção, sentido que se aproxima muito mundo, que apenas podem gerar uma
do conceito decadentista de tédio, que, impressão de abandono metafísico,
na minha opinião, é correctamente cujo prolongamento é tão necessário
decifrado por Gustavo Flaubert em ao poeta sentiente como à própria
termos que os escritores portugueses poesia.
da segunda metade do século XIX re-
petem na sua essência:
O tédio é um a ilustração de um
“Connaissez-vous l’ ennui? non pas cet
ennui commun, banal, qui provient de carácter tipicam ente português?
la fainéantise ou de Ia maladie, mais cet
ennui moderne qui ronge 1’ homme dans
A tese de Joel Serrão parece-me tão
les entrailles et, d’un être intelligent,
fait une ombre qui marche, un fantôme discutível como a interpretação de Jú-
qui pense.”16. lio Dantas a propósito da neurastenia
de D. Duarte:
É essa a chave para compreender- É na neurastenia de D. Duarte que nós
mos o tédio na poesia de António Nobre encontramos a causa e a explicação de
e outros entediados: o tédio que é o todos os desastres políticos do seu reina-
resultado de um “fantasma que pensa” do e da própria regência que se lhe se-
sem ser capaz de se pré-ocupar com guiu. Que foi Tânger, senão a consequ-
alguma actividade física ou intelectual ência social duma crise de neurastenia?
que o impele a agir. Todos os termos Que foi mais tarde Alfarrobeira, senão a
capazes de se incorporarem na retórica resultante póstuma dessa crise?17
da decadência ou do espírito decadente Como provar que a neurastenia foi

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uma doença nacional ao tempo de D. chorando, chorando inutilmente, sem
Duarte, com tão graves consequên- outra consolação do que essa, infantil,
cias? Será razoável argumentar que de sabermos que é inutilmente que
um poeta melancólico, por exemplo, é choramos.18
uma sinédoque de um país necessaria- Não partilho da ideia de sermos há
mente melancólico?Uma sensibilidade muito, por decreto poético, um país de
individual tem força suficiente para melancólicos, um povo triste que chora
traduzir um sentimento colectivo? de saudade, pessoas angustiadas e can-
Não creio que seja verosímil tentar sadas sem estarem cansadas, como quer
esse tipo de raciocínio. António Nobre Pessoa. No célebre artigo “O francesis-
utilizou o topos do tédio na sua poesia mo”, Eça de Queirós não deixou logo de
não certamente por se tratar de um se demarcar de tanto pessimismo:
estado de espírito “nacional”, ou como Eu, pelo menos, educado com M usset
provaríamos sociologicamente que ape- e Hugo, não ouso aproximar-se desses
nas os portugueses se distinguem por coribantes e dos seus livros. Jamais
se aborrecerem com tudo?Seremos os abri um desses livros amarelos, dentro
únicos entediados?Podemos até trazer dos quais passam estrofes com bulhas e
para a arguição da tese nacionalista gritos intoleráveis. Sei apenas que esses
do tédio e da tristeza o testemunho novos se chamam a si mesmos, com uma
respeitável de Fernando Pessoa, que, sublime sinceridade, “os decadentes”,
em memória de António Nobre, reco- “os incoerentes”, “os alucinados”.19
nheceu no seu exemplo uma extensão O facto de António Nobre se ter con-
semelhante do ser português: fessado “Pecador que o mundo arrasta,
De António Nobre partem todas as pala- /Pela azinhaga do tédio...”20 não tem
vras com sentido lusitano que de então mais significado do que aquele que ao
para cá têm sido pronunciadas. Têm poema diz respeito.
subido a um sentido mais alto e divino A tese de Joel Serrão é ainda mais
do que ele balbuciou. M as ele foi o pri- discutível quando situa o sentimento
meiro a pôr em europeu este sentimento de decadência nacional e o messianis-
português das almas e das coisas, que mo luso que lhe está associado como
tem pena de que umas não sejam cor- um “fenómeno religioso e cultural
pos, para lhes poder fazer festas, e de nortenho, especialmente portuense”.21
que outras não sejam gente, para poder
Celebrando aqui, no Porto, hoje, Antó-
falar com elas.
nio Nobre seria o mesmo que celebrar a
[...]Quando ele nasceu, nascemos to- tristeza de que, pretensamente, todos
dos nós. A tristeza que cada um de nós os portuenses padecem. A tristeza de
traz consigo, mesmo no sentido da sua
Nobre não é certamente uma invenção
alegria é ele ainda, e a vida dele, nunca
portuense nem sequer está directa-
perfeitamente real nem com certeza
vivida, é, afinal, a súmula da vida que mente relacionada com a conjuntura
vivemos – órfãos de pai e de mãe, per- política do país, pois é sabido que nos
didos de Deus, no meio da floresta, e anos a seguir ao estudo em Coimbra

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e até à sua morte, o poeta passou a strife
maior parte do tempo entediando-se W here mywhite soul first kissed the
um pouco por todo mundo, da Suíça mouth of sin.22
e da França aos Estados Unidos e ao
Significará isso que o reinado vito-
Brasil. Depois, haverá algum poeta
riano, um dos mais activos e prósperos
neste mundo que não tenha escrito
da história de Inglaterra, foi marcado
versos sobre a tristeza sem com isso
por um profundo tédio da vida?Dito de
traduzir um sentimento nacional?
outro modo, seguindo a lição de Ber-
Recordo que os cépticos gregos antigos
trand Russel para quem o tédio é “um
perseguiram, ao seu tempo e de acordo
problema vital para o moralista, por-
com uma convicção profunda, a mera
que pelo menos metade dos pecados da
inércia do pensamento e o refúgio no
humanidade são causados pelo receio
absentismo da vida. Sabendo que o
de cair nele”,23 não é possível respon-
cepticismo se estendeu durante todo o
sabilizar um povo pelos sentimentos
período helenístico-romano, será lícito
descritos por um poeta. O contrário é
concluir que todos os romanos e todos
igualmente absurdo.
os helenos eram cépticos?Sabendo que
O tédio na poesia de Nobre, como
Oscar W ilde escreveu uma das obras-
na de qualquer poeta decadentista e
primas da poesia decadentista do sécu-
neurasténico na escrita e/ou na vida,
lo XIX, o poema “Taedium Vitae”:
é, em suma, o resultado de uma inca-
To stab myyouth with desperate pacidade para a vida activa. E esse
knives, to wear é um motivo literário tão bom como
This paltryage’ s gaudylivery, qualquer outro. Porque se trata de
To let each base hand filch mytreas- um sentimento que o mais comum
ury, dos mortais pode experimentar, não
To mesh mysoul within a woman’ s devemos interpretar o tédio como uma
hair, patologia. Se, de um ponto de vista
And be mere Fortune’ s lackeyed
religioso, o tédio e a acédia são consi-
groom, - I swear
derados debilidades da alma que não
I love it not!these things are less to me
Than the thin foam that frets upon the soube resistir às tentações do mal e
sea, viver segundo a harmonia dinâmica da
Less than the thistledown of summer natureza, António Nobre pecou tanto
air como qualquer de nós perante o espec-
W hich hath no seed: better to stand táculo do mundo. Dizem os manuais do
aloof cristianismo que a paciência e o temor
Far from these slanderous fools who a Deus são as curas para o tédio, mas
mock mylife Nobre acreditou até ao fim que Deus
Knowing me not, better the lowliest o salvaria da desgraça da tísica, o que
roof lhe foi recusado, quando afinal o poeta
Fit for the meanest hind to sojourn in,
apenas pedia a libertação de si próprio,
Than to go back to that hoarse cave of
não recusando ser quem era, mas ape-

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nas querendo partilhar a fortuna dos 4
Institutio Oratoria, Livro V, 14, 30.
5
“Carta a Augusto Nobre”, nº153 (14-5-1896), in Cor-
que têm a felicidade de se fartarem da respondência, org. de Guilherme de Castilho, IN-CM ,
vida na eternidade que vive em nós Lisboa, 1982, p. 302.
próprios. 6
Correspondência, p.267.
7
Poesia Com pleta,Publicações Dom Quixote, Lisboa,
Abstract 8
2000, p. 215.
Id., p.385.
Tediousness was a favorite theme 9
Id., p. 278.
in the European decadent poetry at
10
Cartas de Fernando Pessoa a Arm ando Côrtes-Ro-
drigues, Introdução de Joel Serrão, Confluência, Lis-
the end of the 19th century. Poets boa, 1944 (3.ªed. Lisboa: Livros Horizonte, 1985).
then , like the Portuguese António 11
Ver o meu ensaio “A angústia em António Nobre”, in De
PunhoCerrado- Ensaios de Herm enêutica Dialéctica
Nobre and José Duro, got bored at life da Literatura Portuguesa Contem porânea, Cosmos,
and poetry making, not only because Lisboa, 1997.
of tuberculosis, but also because they “M ales de Anto”, in Poesia Com pleta, pp.350-351.
12

13
Publ. in “A Galera”, nº5-6. Coimbra: Fev. 1915. Livro
adopted “doing nothing” , “ getting do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fer-
bored at everything”, neurasthenia, nando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de
M aria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio
and defamation of one’ s own existence e Organização de Jacinto do Prado Coelho.)Ática,
as main themes of their poetry. Lisboa, 1982.
14
Ver a propósito o meu artigo “Nota sobre o conceito
literário de spleen”, Revista de Estudos Anglo-Portu-
Key-words: Tediousness;decadent po- gueses, nº6, 1997.
etry;António Nobre. 15
Ibid., p.12.
16
Correspondance, 87, 7-6-1844.

Notas 17
“A Neurastenia do rei D. Duarte”, in Outros Tem pos,
Lisboa, 3ªed., s.d. (1ªed., 1909), p.7.
1
Escritos Íntim os,Cartas e Páginas Autobiográficas,
18
“Para a memória de António Nobre”, in Obras em Prosa,
Introduções, organização e notas de António Quad- vol. 2, Círculo de Leitores, Lisboa, 1987.
ros, Publ. Europa América, M em M artins, 1986 (1ª 19
Notas Contem porâneas, Obras Com pletas de Eça de
publ. in Vida e Obra de Fernando Pessoa - História Queiroz, vol.XV, Círculo de Leitores, Lisboa, 1981,
de um a Geração, de João Gaspar Simões, Bertrand, p.166.
Lisboa, 1951). 20
“Ave-M aria”, Poesias Com pletas, p.77.
2
Existe ainda uma dissertação de licenciatura inédita 21
Joel Serrão arrisca mesmo: “Nessa frustração, portuen-
que também tratou o mesmo assunto de forma pan-
semente nacional, radicam, além do mais, as tristezas,
orâmica e parafrástica: «Contribuição para o Estudo
tristezas, tristezas de Nobre.”(op. cit., p.180).
do ‘
M otivo’do Tédio nas Obras Poéticas de Fernando
Pessoa (ortónimo)e de M ário de Sá-Carneiro», de
22
Collins Com plete W ork ofOscar W ilde, Centenary
M aria Paula Cannas M endes, Tese de licenciatura Edition, 1999. Texto disponível em http://www.every-
em Filologia Românica apresentada à Faculdade de poet.com/archive/poetry/Oscar_W ilde/oscar_wilde_tae-
Letras da Universidade de Lisboa, 1955. dium_vitae.htm .
3
Boredom : The Literary H istory ofa State ofM ind,
23
Life, 13-2-1970.
The University of Chicago Press, Chicago e Londres,
1996.

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