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Página de Rosto

Título do trabalho: Aos loucos, as gargalhadas; aos irresponsáveis, a


legalidade

Nome do autor: Leonardo Ferreira Pillon

A insanidade dos 400 dias de governo Bolsonaro


Quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020
http://www.justificando.com/2020/02/27/a-insanidade-dos-400-dias-de-governo-
bolsonaro/

400 dias de governo Bolsonaro que pareceram um retrocesso de 400 anos


como o da Inquisição. São descasos com a educação e a saúde públicas, são
projetos de leis que empobrecem o Brasil, são estímulos a condutas lesivas à
Natureza, são postagens e discursos nazistas em cargos de chefia que vão
desde racismo, xenofobia, classismo, mentiras, discriminações, ofensas com
uso de linguagem deplorável em entrevistas, censura de meios de
comunicação de oposição ao governo. Nossa reflexão busca sair do olho do
furacão um pouco, sem apontar o dedo ao outro como o maior problema, afinal
culpar somente o outro é a forma mais evasiva de lavar as mãos.

Pensamos que as declarações de Bolsonaro nada mais são do que o lado de


desumanidade, de sombra, de preconceitos e ódios que nós, enquanto seres
humanos, ainda não superamos. A sua posição de poder como Presidente
permite atrair a atenção e dessa atenção é que se retroalimenta seus
micropoderes, os micropoderes das relações interpessoais e mesmo das
relações mais introspectivas de cada ser individuado com seus próprios
pensamentos e vontades. As manifestações do espírito regurgitando discursos
de ódio são tão íntimas quanto públicas e cada postagem desse fascismo
global denuncia mesmo a nossa desumanidade, a nossa incapacidade de lidar
com o diferente, de transitar uma vida entre civilizações e povos com um
estatuto de igualdade preservado.
Quando Bolsonaro ou Trump destilam suas loucuras na internet, há milhares
de reações. Essas reações variam desde o aplauso de uma plateia que
finalmente vê o seu lado mais íntimo sendo livremente declarado aos quatro
ventos, justamente aquele lado que não podia mais ser dito e nem por isso
deixou de existir e crescer. Esse lado, a nosso ver, é o calcanhar de Aquiles
dos direitos humanos, a incapacidade dessa categoria de ter humanizado a
geopolítica entre Estados, as relações entre povos, as relações interpessoais e
a consciência da humanidade.

Há também aqueles que insistem em argumentar com a loucura, conferindo-lhe


uma presunção de razão, outorgando intrinsecamente um respeito ao
desrespeito, um raciocínio ao irracional, uma inteligência à ignorância. Essa é a
conclusão lógica subentendida com a argumentação pela razão frente à
loucura. Diante dessa insanidade, só mesmo podemos buscar impedir o louco
de causar danos, não há como oferecer o tratamento sanitário da loucura com
a razão. Com a loucura convive-se, rimos com ela, gargalhamos das suas
lógicas simplificadoras, mas não a isolamos, nem a condenamos como se
fosse capaz de raciocinar logicamente sobre o que está declarando. A loucura
não raciocina logicamente, apenas é a externação da relativa desordem.

Onde reina a desordem, o louco é capitão e quem não o segue, decapitado.


Pois o remédio é rir do louco que perderá sua autoridade, é melhorar a
comunicação com as diferenças reais na vida cotidiana entre o que é o nosso
projeto de sociedade e o que não é o projeto do louco, é falar menos a partir do
intelecto e a razão que se mostraram incapazes diante da sociedade em certos
períodos como o ocorrido com Sócrates ou Galileu nos ensinam. Falar com as
multidões é também fascinar e a razão per si não fascina, pode impressionar,
mas não fascina. O sentimento, a grandeza, os arquétipos da verdade
absoluta, do amor incondicional, da justiça implacável podem fascinar assim
como a destruição, a guerra, a luta contra o inimigo, a submissão do ser para
redenção qualquer que seja o seu custo humano, social, mental, familiar. O
poder do louco e, por extensão de quem o sustenta emprestando à farda ou ao
terno uma serventia declaradamente fascista, é a condução das multidões ao
êxtase pela destruição.
Manter a euforia coletiva é uma estratégia de dominação, domesticação, que
funcionaliza muito além de uma cortina de fumaça: o seu efeito é a hipnose
coletiva, imobiliza o gado e orienta a reação da plateia durante seu espetáculo
de horrores. Por gado, entendemos os 30% de apoio incondicional ao governo
insano; por plateia, a esquerda reagindo de acordo com o foco esperado a
cada declaração e medida sem nexo com a realidade. É um mecanismo
eficiente para “tornar palatáveis” as medidas reais colocando o insano e o real
no mesmo nível e mantido pelo fluxo de comunicação via manipulação de
massas através de publicidade baseada em dados sensíveis de perfis
pessoais.

Há profetas – tendo a profecia como alegoria de lideranças sobre multidões –


de diferentes posições sociais e matrizes (religiosas, acadêmicas, políticas,
jurídicas, etc) que não concordam com isso, mas enquanto a multidão estiver
em êxtase suas falas não terão muito a ganhar se enfrentar o poder posto,
colocando à prova a fidelidade da multidão convertida à outra liderança ainda
que esta liderança transitória esteja completamente em desordem mental.
Desordem mental afinal defender violência, perseguir a ciência, humilhar as
pessoas pobres, proferir declarações fora da realidade é a mais pura
expressão insanidade.

Um problema que persiste sem solução é: vencida essa etapa da loucura, virá
a seguir uma sobriedade com dois polos em disputa, um do judiciário e outro
dos militares, ambos poderes que estão em sustentação parcial e relativa
dessa loucura. Repito, parcial e relativa: se havia algo de podre no reino da
Dinamarca, é nesse podre que reside o problema, uma questão de não admitir
ratos exercendo um poder que não lhes pertence. Como tornar sua
responsabilidade [do podre] evidente por esse estado de coisas insano? Se ao
louco não podemos responsabilizar, apenas rir dele e impedir de causar danos,
outro deve ser o tratamento de quem ostenta a ordem mental em dia e está
compartilhando dessa destruição. Ao louco, as gargalhadas; aos com sanidade
mental, as responsabilidades do acerto de contas pela omissão, pelo abuso de
poder, pela não resistência às ordens manifestamente ilegais.
Essas responsabilidades não podem ser feitas como em Nuremberg, uma
fachada de julgamento ad hoc. Elas hão de se fazer existir num processo de
construção coletiva desde agora permanentemente cobradas,
minunciosamente depuradas, nominalmente apontadas e, como condição sine
qua non, através e com as multidões num novo êxtase conduzido pela justiça
implacável e pela verdade absoluta. Talvez essas sejam as maiores limitações
que enfrentamos: a de não desejar ambas. Foi com a relativização de ambas
que entregamos a democracia à insânia. Foi também mediante um processo
injusto, porém isso pouco importa quando multidões fazem linchamentos físicos
ou simbólicos, o êxtase destrutivo ignora seus efeitos colaterais. Se a vida imita
a arte e vice-versa, todo cuidado com o fascismo é pouco e o seu processo de
negação e esquecimento coletivo funcionaliza a sua repetição.

Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada
Toda forma de poder é uma forma de morrer por nada
Toda forma de conduta se transforma numa luta armada
Se tudo passa, talvez você passe por aqui
...
E o fascismo é fascinante deixa a gente ignorante e fascinada
É tão fácil ir adiante e se esquecer que a coisa toda tá errada
A história se repete mas a força deixa a história mal contada

Se tudo passa, talvez você passe por aqui


E me faça esquecer tudo que eu vi
(Toda forma de poder - Engenheiros do Hawaii, Álbum Longe demais das
Capitais, 1986)

Entre fazer esquecer e não omitir, Emicida se considera um sujeito de sorte em


AmarElo pela escolha do último programa: “tenho chorado demais, tenho
sangrado para cachorro, ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.
No entanto, esse rap ensina que nossas cicatrizes não possuem voz própria,
nem precisamos atribuir a elas a incumbência de narrar a história, qual é o
sentido de entregar o troféu para o nosso algoz?
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz
sabe o que resta de nóiz?
Alvos passeando por aí
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência
me resumir a sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu
fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem
é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso
algoz e fazer nóiz sumir
(AmarElo – Emicida, Álbum AmarElo, 2019)

Por ora, baixar o êxtase coletivo e destrutivo é não o alimentar: ao êxtase, a


calmaria, a terapia, a regeneração dos vínculos, a cura coletiva, a redução da
atividade, a meditação, pois a liberação da energia acumulada parece não ser
o melhor caminho dentro das condições reais de possibilidades que se
abririam; também ouvir e permitir falar as pessoas reais, as histórias narradas
por quem as vive desde a questão estruturante sobre o que de bom foi vivido
nos últimos 3 anos? E nos últimos 10? A reflexão sobre o que se almeja e não
ao que se está em submissão e constante dominação para conquista. Há
também de não fazer crescer a nossa atenção ao êxtase destrutivo, cada
atenção dedicada a isso o torna maior, o jornalismo tem uma técnica específica
para não estimular novas condutas lesivas ao narrar fatos negativos, tudo sem
deixar de tomar as providências legalmente cabíveis para viabilizar a
responsabilização dos não loucos desse governo.

A nossa capacidade de fazer responsáveis é que fará a diferença entre evoluir


o quadro social para o que ocorreu com o nazismo ou aprender com suas
lições como a do dever de todo funcionário público e membro de poder de
resistir às ordens manifestamente ilegais, do dever de anulação de atos ilegais,
do dever de proteção suficiente do direito à vida e à igualdade de tratamento
perante o Estado, do dever do Judiciário e do Legislativo de controlar os
abusos de poder do Executivo e fiscalizar para que sua atuação seja conforme
a lei e não à margem da lei e do efetivo respeito à soberania do povo ante os
abusos de vontade de loucos e irresponsáveis. Adaptando o célebre e Imortal
Machado de Assis: aos loucos, as gargalhadas; aos irresponsáveis, a
legalidade.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do


mal. Trad. José Rubens Siqueira. 14ªreimp. Companhia das Letras: São Paulo,
1999.

CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura.


Volume I, A sociedade em rede. 5ª Ed., São Paulo: Paz e Terra, 2001.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Org. Roberto Machado. 10ª Ed. Rio
de Janeiro, Edições Santo Graal, 1992.

_____. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de Frace (1978-


1979). Ed. Michel Senellart. Dir. François Ewald; Alessandro Fontana. Trad.
Eduardo Brandão. Ver. Claudia Berliner. São Paulo, Martins Fontes, 2008.

GOSWAMI, Amit; REED, Richard. E.; GOSWAMI, Maggie. O Universo


autoconsciente: como a consciência cria o mundo material. Trad. Ruy
Jungman, 2ª ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1998.

LEVI, Eliphas. O Livro dos Sábios – Capítulo I. s/d.

Privacidade hackeada. (Documentário). Netflix, 114 min, julho/2019.


REICH, Wilhelm. (s.d.). Psicologia de massas do fascismo. (M. G. M.
Macedo, trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1946).

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