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SENSIBILIDADE E ENTENDIMENTO
CAPÍTULO SEXTO
Eigenbedeutungen.
120
A palavra é formada em analogia a
Eigenname (nome próprio). (N. dos T)
Formworten. (N. dos T.)
INVESTIGAÇÕES LÓGICAS 107
Nao noS deixaremos
enganar, entretanto, por essas maneiras de falar que,
embora de algum modo corretas, podem ser todavia mal
delas, seria possivel até mesmo compreendidas. Por meio
querer fundamentar que, nesse caso, a significaçao
reside na percepção, o que não é
exato, como já constatamos. A palavra branco
visa, senm duvida, algo no
próprio papel branco e assim, no estado do preenchi
mento, esse visar se recobre com a
branco do objeto, Mas, não é suficiente
percepção parcial referente ao momento
que um mero recobrimento com esta per-
cepção parcial seja pressuposto. E costume dizer nesse caso
que o branco que
aparece è conhecido e nomeado como branco. Entretanto, na maneira habitual de
falar em
conhecimento, aquilo que é designado como objeto "conhecido" e, antes,
o E 6bvio que nesse conhecer há um outro ato
sujeito. que, embora inclua talvez
o primeiro, é todavia diferente dele. O
papel é conhecido como branco ou, melhor
ainda, como papel branco, quando dizemos,
expressando a percepção: papel bran-
co. A intenção da branco
palavra só se recobre parcialmente com o momento-cor
do objeto que aparece; há um excedente na significação, uma forma que não
encontra na propria apariçao nada que pudesse confirmá-la. Papel branco quer
dizer papel que é branco. E essa forma não se repetirá também, mesmo permane-
cendo escondida, no substantivo papel? Só as significações de caracteristicas uni-
ficadas no "conceito" de papel é que tëm na percepção o seu
termo; aqui tambem
o objeto inteiro é conhecido como papel, aqui também há uma forma comple-
mentar que contém o ser, embora não como forma única. Como é óbvio, a função
preenchedora da simples percepção não pode satisfazer tais formas.
Outrossim, é suf+cienteperguntar o que corresponde, do lado da percepção,
à diferença entre as duas expressões este papelbranco e estepapel é branco, dadas
como exemplo e obtidas a partir da mesma percepç o-ou seja, o que corres-
ponde à diferença entre a forma de enunciado atributiva e a predicativa- ou
ainda, o que, nessa percepção, a diferença em causa exprime propriamente, com
uma exatidão particular no caso da adequação: encontramos então a mesma difi
culdade. Em poucas palavras, é evidente que, nas significações enformadas, as
coisas não são tão simples como no caso da significaçao própriae da sua simples
relação de recobrimento com a percepção. Certamente, podemos dizer, de modo
compreensível e inequívoco para um ouvinte, vejo que este papel é branco; mas
essa maneira de falar não quer dizer necessariamente que a significação da propo-
sição pronunciada dë expressão a um mero ver. Pode ocorrer tambem que a essen
cia cognitiva do ver, na qual a objetidade que aparece se manifesta como dada ela
própria, esteja fundamentando certos atos que ligam, que são relacionantes ou que
enformam de alguma outra maneira; que sejam esses os atos aos quais se ajusta
a expressão, nas suas variadas formas, OS atos nos quais ela encontra o seu
preenchimento, relativamente a essas formas, enquanto se pertizeram com
fundamento numa percepção atual. Se juntarmos esses atos fundados, ou melhor,
estas formas de atos, àqueles que os fundamentam, compreendendo, sob o título
de atos fundados, os atos inteiros, gerados por meio daquela fundamentação for-
mal, poderemos dizer: uma vez suposta a possibilidade que acabamos de indicar,
fica restabelecido o paralelismo, nao entre as intenções de significação de expres-
108 HUSSERL
ção, muito menos aqui,onde a intenção dos pensamentos não se dirige de modo
algum à aparição intuitivamente dadae às suas propriedades ou relações intuiti-
vas, não podendo fazë-lo nem sequer num exemplo: a fígura, no sentido geom
trico, , como bem se sabe, um limite ideal que nunca pode ser mostrado intuitiva-
mente in concreto. Mas, apesar disso, a intuiçäo tem aqui também, como em todo
o domínio do geral, uma relação essencial com a expressão e com a sua significa
çao; por isso, essas duas formam uma vivência de conhecimento do geral, relacio-
nada com a intuiç o; não uma simples justaposição, mas uma unidade de coerên
cia palpável. Também aqui o conceito e a proposição se orientam pela intuiçao e
Após essas considerações provisórias nos terem dado a conhecer essa dificul-
dade, oferecendo-nos, ao mesmo tempo, uma idéia diretriz para a sua possível
superação, tentaremos levar a efeito a análise propriamente dita.
Nosso ponto de partida fora a constatação de que, no caso das expressões
enformadas, a idéia de um expressar que até certo ponto seja da espécie de uma
imagem é totalmente inútil para descrever a relação existente entre as significa-
ções que exprimem e as intuições expressas. Isso está correto, sem dúvida,e preci-
sa agora apenas de uma determinação mais precisa. Será bastante que reflitamos
seriamente sobre o que compete à percepção eo que compete ao significar, fican-
do atentos para o fato de que, em cada caso, só a certas partes do enunciado, que
algo na
podem ser indicadas de antemão na mera forma do juízo, corresponde
1 10 HUSSERL
intuição, não havendo nada nessa última que possa corresponder ás outras partes
do enunciado.
Examinemos melhor esta situação.
Os enunciados de percepção, na hipótese de uma expressão normal e comple-
ta, são locuções articuladas de variadas formas. Distinguimos facilmente certos
esquemas tais como, N éP (onde N pode figurar como uma assinalação do nome
próprio). um S é P, este S é P, todos os S são P, etc. Pela influencia restritiva da
negação, pela distinção entre predicados ou entre atributos absolutos e relativos,
pelas ligaçöes conjuntivas, disjuntivas, determinativas, etc., surgem múltiplas
combinações. Na diversidade desses esquemas exprimem-se diferenças de signifi
cação radicais. Aos diversos símbolos alfabéticos e palavras que ocorrem nesses
esquemas correspondem em parte membros, em parte formas de ligação, nas
significações dos enunciados atuais que pertencem a esses esquemas. Ora, éfácil
ver que as signif+cações que se preenchem na percepção sô podem encontrar-se
nos lugares dessas "formas de juízo" que são indicados por símbolos alfabéticos,
sendo vão e totalmente absurdo ir procurar diretamente na percepção aquilo que
poderia dar preenchimento às significações formais complementares. Sem dúvida,
os símbolos alfabéticos, em virtude da sua significação meramente funcional,
podem também assumir o valor de pensamentos complexos; enunciados cons
truídos de maneira muito complicada podem ser apreendidos justamente sob o
acima.
Acabamos de dizer que há uma extensão natural dessa diferença a estera
do
objetivante. Isso porque compreendemos os componentes
total do representar
formais das
preenchimento, que correspondem aos componentes materiais ou
intençoes de significação, também como componentes "materiais" ou respectiva
mente "formais"; fica assim claro o que deve ser considerado, na esfera dos atos
to, nenhuma de suas partes, nenhum momento a ele inerente, nenhuma qualidade
absolutamente nenhuma
ou intensidade, como tamb m nenhuma figura, nem
forma interna, nenhuma característica ° constitutiva, como quer que seja conce
como näo é uma
bida. Mas o ser também não é nada de aderente ao objeto, àssim
real externa e por isso
característica real interna, não é também uma caracteristica
de uma caracteristica
não é absolutamente nenhuma "caracteristica", no sentido
real. Pois o ser também não diz respeito às formas concretas de unidade que ligam
mais abrangentes, cores em f+guras coloridas, sons em harmo-
objetos em objetos
mais abrangentes (jardim, rua, mundo
nias, coisas em coisas ou ordens de coisas
fundamentam-se as
exterior fenomenal). Nessas formas concretas de unidade
características externas dos objetos, a direita e a esquerda, o alto e o baixo, o
naturalmente, nada
barulhento e o silencioso, etc., e entre elas naão se encontra,
que se assemelhe aóé.
Falamos até agora em objetos, em suas caracteristicas constitutivas. em sua
conexão concreta com outros objetos pela qual são produzidos objetos mais
121 Sobre o conceito kantiano de ser, cf. Heidegger, "A Tese de Kant Sobre o Ser", Abril, Os Pensadores,
XLV, pp. 433-452. (N. dos T.) A expressão, na verdade, é de Kant. O próprio Kant traduz Position por
122 der "absoluten Positionen
a "posição". O
termos pelo neologismo "posicionamento", de preferência
Setzung. Traduzimos esses dois
termo "posicionamento" além de recuperar
o sentido de ação de pör que o termo
*posição"parece ter perdido.
traduz, com
construir a expressão "ato posicionante" qual
e a
nos permite formar o termo *posicionante
dos T.)
precisão, setzender Akt, de Husserl. (N. característica. Em Husserl
123
Merkmal. A palavra significa signo. sinal ou marca distintiva, propriedade
caracteristica pela qual os objetos aos quais ela se prende podem
ela é usada no sentido de uma propricdade
ser reconhecidos. Cf. Investigação 1,
$ 2. (N. dos T.)
112 HUSSERL
124
Einsehen" (N. dos T.)
INVESTIGAÇÕES LÓGICAS 113
categoriais das significações, a não ser pela percepção ou pela intuição, naquele
sen tido mais restrito que, ao falarmos da "sensibilidade", tentamos indicar provi-
soriamente?- veremos que a resposta j áfoi claramente esboçada pelas analises
125
konformen Modifikationen, cf. nota 57 (N. dos T.)
INVESTIGAÇÕES LÓGICAS 15
Em primeiro lugar, a
presentificação de
qualquer exemplo enunciado de de
percepçao que mereça
confiança mostra indubitavelmente que também as formas
são efetivamente preenchidas, como supusemos de início, ou que
inteiras enformadas dessa ou significaçoes
daquela mancira são preenchidas c näo apenas, por
exemplo, os momentos "materiais*" da
significação; assim
o enunciado de percepção inteiro explica também que se
seja chamado de expressão da percepção, e, no
sentido transposto, de expressão daquilo que é intuicionado e
dado, ele próprio, na
percepçao. Mas se as formas categoriais de expressão, existentes ao lado dos
momentos materiais, não tëm seu termo na
percepção- enquanto compreendida
como mera percepção sensivel- ao falarmos em
expressão, será preciso que nos
apoiemos sobre um outro sentido de
percepção; será preciso, de qualquer
ra. que nos fundamentemos
manei
num ato preste
que o mesmo serviço aos elementos
categoriais de significação
prestado aos elementos materiais pela simples
que o
perpepção sensível. Dada a homogeneidade essencial da função de preenchimento
e de todas as relações ideais a ela conectadas por leis, é inevitável designar como
percepção cada ato preenchedor que se perfaça ao modo de uma confirmadora
apresentação da própria coisa, como(intuiçao todo e qualquer ato preenchedor, e
como objeto o seu correlatointencional. De fato, se nos perguntarem o que quere-
mos dizer quando afirmamos que as significações categorialmente enformadas se
preenchem e se confirmam na percepção, só poderemos responder: isto quer dizer
apenas que elas estão relacionadas com o próprio objeto na sua enformação cate-
gorial. O objeto não é meramente visado com essas formas categoriais, como no
caso da função meramente simbólica das significações, em vez disso ele próprioé
posto perante nossos olhos, justamente nestas formas; em outras palavras:ele não
é apenas pensado, ele é precisamente intuído ou respectivamente pércebido
Assim, tão logo nos propomos a analisar o que significa falar aqui em preenchi
mento, o que expressam as significações enformadas e, nelas, os elementos for-
mais, o que é a objetidade unitária ou produtora de unidade que lhes corresponde,
deparamo-nos inevitavelmente com "intuição", ou respectivamente "percepço" e
"objeto". Essas palavras, embora tenham inegavelmente um sentido mais amplo,
são indispensáveis. Como designariamos então o correlato da representação de
um sujeito não-sensível ou que contivesse formas não-sensíveis, se a palavra obje
to nos fosse proibida, e como poderíamos denominar o seu "ser dado" atual ou
ainda o seu aparecer como "dado", se nao dispusessemos da palavra percepção?
Assim convertem-se em "objetos", ja na linguagem usual, conjuntos, pluralidades
indeterminadas, totalidades, números, formas disjuntivas, predicados (o ser-justo),
estados de coisas, enquanto os atos, por meio dos quais eles aparecem como
dados, convertem-se em "percepções.
Visivelmente, a conexão entre os conceitos de percepção, um mais amplo e
um mais estrito, u m s u p r a - s e n s i v e l ( i s t o e, q u e s e e r i g e s o b r e 126 a sensibilidade
126 über. Veja os trechos de Husserl correspondentes as notas 129e 140 (N. dos T.)
116 HUSSERL
liares porque neles algo aparece
como "efetivo" e como "dado ele
Obviamente, este
aparecer efetivo
comoe como dado ele
próprio".
bem ser enganador) caracteriza-se próprio (que pode muito
sempre por meio da sua diferença para com os
atos que Ihe são essencialmente
aparentados e ë só por isso que se destaca com
toda a sua clareza; ou seja, por diferir da presentificação por imagem e do
pensar-nisso puramente significativo, os quais excluem, ambos, o estar-presente (o
aparecer, assim
por dizer,
in persona), embora sem excluir o ter-por-existente.
Quanto a esse último aspecto, a representaçaão
apreensiva, tanto a por imagem
como simbólica é possível de duas maneiras: de uma maneira posicional, a do
ter-por-existente, simbolicamente ou por meio de imagem, e de uma maneira não-
posicional, a do "mero" afigurar ou imaginar sem o ter-por-existente. Após as
análises da seção anterior, que devem ser interpretadas num sentido bastante
geral, não se faz necessário um exame mais detalhado dessas diferenças. Em todo
caso, é claro que tal como o conceito de percepção, o conceito de afiguração (nas
suas múltiplas particularidades) deve também ser estendido de uma maneira
correspondente. Não poderíamos falar em algo percebido, supra-sensível ou
categorialmente, se não existisse a possibilidade de também imaginá-lo do
mesmo modo" (portanto, não apenas sensivelmente). Por isso, teremos que distin-
guir, de um modo totalmente geral a intuição sensível da categorial ou, ainda,
mostrar a possibilidade de uma tal distinção.
De resto, o conceito ampliado de percepção permite, por sua vez, uma
compreensão mais restritae uma mais ampla. No sentido mais amplo, também os
estados de coisas gerais são ditos percebidos ("claramente vistos", "intuídos'" com
evidencia). No sentido mais restrito, a percepção se dirige apenas para o ser indi-
vidual, ou seja, para o ser temporal.
só
próximas considerações, levaremos em conta, inicialmente,
as
Nas nossas
individuais que lhes são
percepçoes individuais, e em seguida as intuições
coordenadas.
A distinção entre percepções ""sensíveis" e "supra-sensíveis" foi indicada
modo ainda
maneira superficial e caracterizada de
um
acima apenas de uma
em sentido interno e externo
muito grosseiro. A maneira antiquada de falar ter
a sua metafísica ingènuas, não nega
que, juntamente com a sua antropologia e
tido sua origem na vida cotidiana- pode servir provisoriamente para assinalar
a esfera da sensibilidade näão
foi
isso
O dominioque deveria ser excluído; mas com
de percepçao
efetivamente determinada e delimitada, e, assim, também o conceito
categorial carece ainda de fundamentação descritiva. A consolidaçao ea elucida
dela dependem por com
ção da diferença em causa é importante, tanto mais que e a
a forma categorial
pleto distinções to fundamentais como a distinção entre
matéria do conhecimento fundada na sensibilidade e, igualmente, a distinçao entre
em busca a
Trata-se portanto de ir
as
categorias e todos os_demais conceitos.
INVESTIGAÇÕES LÓGICAS 117
complementares, que não entram elas próprias na percepção, são também "dispo-
sicionalmente excitadas". As intenções referentes a estas representações certa-
mente tamb m concorrem
para a percepção e determinam seu caráter global.
Mas, como na aparição a coisa não está aí apenas como uma soma de inúmeras
determinações singulares que possam ser distinguidas por uma consideração pos-
terior isolada, e como essa última também não
pode fragmentar a coisa em partes
singulares, só podendo notar essas partes na coisa sempre acabada e unitária, o
ato de percepção é constantemente uma unidade
homognea que presenta o objeto
de maneira simples e imediata. A unidade da percepção não aurge,
vs
portanto, atra-
de atos sintéticos próprios, como no caso em que somente a forma da sintese,
por meio dos atos fundados, pudesse dar às intenções parciais a unidade da rela-
ção ao objeto. Aqui não se precisa da articulação, nem tampouco, portanto, da
ligação atual. A unidade de percepção se produz como unma unidade simples,
como uma fusão imediata das intenções parciais, sem intervenção de novas inten
çoes de atos.
Pode acontecer além disso que não nos contentemos com "um só olhar" e
que consideremos, antes, a coisa por todos os lados, num fluxo continuo de
percepçao, tocando-a, por assim dizer, com os sentidos. Mas cada percepção sin-
gular desse fluxo já é uma percepção dessa coisa; vendo este livro aqui, de cimna
ou de baixo, de dentro ou de fora, vejo sempreeste livro, E sempre uma mesma
coisa que vejo, mesma, decerto, não no sentido meramente físico, mas conforme o
próprio visar das percepções. Embora sobressaiam algumas determinações singu-
lares, que mudam a cada passo, nãoé por meiode um-ato abrangente, fundado em
percepções isoladas, que a própria coisa, enquanto unidade percebida, se constitui
essencialmente. e»vds uiBeps " Piaiex lE dc-vse
Entretanto, para sermos exatos, não deveriamos tratar esse assunto como se
um objeto sensível unitário pudesse ser apresentado num ato fundado (ou seja nas
percepções que transcorrem de modo continuo), sem ser necessário que ele se
apresente num ato de tal espécie. O processo continuo de percepção também se
revela, numa análise mais exata, como uma fusão de atos parciais num único ato,
e não como um ato propriamente dito, fundado em atos parciais.
Para mostrar isto, faremos a seguinte análise:
As percepções singulares do tluxo sao unidas continuamente. Por esta conti-
nuidade não se entende meramente o fato da vizinhança temporal; o fluxo de atos
singulares tem, antes, o caráter de uma unidade fenomenológica, na qual os atos
singulares são fusionados. Nesta unidade os diferentes atos não estão fundidos
apenas num todo fenomenológico qualquer, mas num único ato, mais precisa-
mente numa percepção. No decorrer continuo das percepções singulares, percebe
mos com efeito continuamente um mesmoe único objeto. Jáque a percepção con-
tínua é construída por percepçðes singulares, será que podemos dizer que ela é
uma percepção fundada nestas últimas? Naturalmente, ela é fundada no sentido
em que um todo éfundado por suas partes; mas não no sentido, aqui decisivo para
nós, segundo o qual o ato fundado deve produzir um novo caráter de ato, que
se
120 HUSSERL
nhamocaráter de
"partes" ou, respectivamente, de "todos". Os atos de
articula-
ção e, retrospectivamente, o ato simples, não são vividos
apenas como sucessivos;
antes, estão aí, a cada momento, unidades
abrangentes de atos, nas quais se cons-
tituem, como objetos novos, as relações entre as partes.
Fixaremos a nossa atenção primeiramente nas relações entre as partes e o
todo, e assim, restringindo-nos aos casos mais simples, nas relações A é (tem) a,
e a está em A. Indicar quais são os atos fundados, nos
quais estes estados de coi-
sas esquemáticos
constituem como dados, vem ao mesmo que elucidar as for
se
mas de enunciados categoriais que acabamos de usar (isto é, remetê-las à sua ori-
gem intuitiva, a seu preenchimento adequado). Entretanto, o que nos importa aqui
não são as qualidades de atos mas exclusivamente a constituição das formas de
apreensão; e, nessa medida, a nossa análise, se considerada como análise do juízo,
permanecerá incompleta.
Um ato perceptivo apreende A como um todo, de uma só vez e de um modo
simples. Um segundo ato de percepção se dirige ao a, å parte ou ao momento
dependente que pertence constitutivamente ao A. Entretanto, esses dois atos não
se perfazem apenas simultaneamente, ou um depois do outro, à maneira de vivên-
cias sem conexão", eles se ligam em vez disso, num único ato, cuja síntese é a
única a dar o A como contendo oa em si. Do mesmo modo, também no caso em
que a percepção relacionante tem uma "direção" inversa, o a pode ser dado, ele
Os seus componentes.
parcial
percepção global à percepçäo isolada, intenção unida-
a
Ao restringirmos a
se a
que se dirige para oa não é arrancada da aparição global do A, como
de desse último caísse em pedaços: é num ato próprio que o a se torna propria-
mente o objeto dapercepção. Mas, ao mesmo tempo, o perceber global, que conti-
nua atuando, (recobre-se em conformidade com aquelas intenções parciais
representante-apreendido relativo ao a fun-
implicadas, com o perceber isolado. O ele funciona
sempre idêntico; e, enquanto
CIona de duas maneiras, permanecendo das duas funçoes de
assim. O recobrimento se perfaz como a unidade peculiar
e
recobrem-se duas apreensões, cujo suporte
representação apreensiva, isto é, as
a
vez, assume agora
esse representante apreendido. Mas. essa unidade, por sua
não vale, nesta funçao, como
Tunçao de uma apresentação apreensiva de per si, ela
como objeto mas ajuda
esse vinculo vivido dos atos; ela própria não é constituída
e de tal modo que
a constituir um outro objeto; ela representa apreensivamente,
123
INVESTIGAÇÕES LÓGICAS
agora o A aparece como contendo'o a em si, ou na direção inversa, o a aparece
comoestando no A.
Dependendo do "ponto de vista da apreensão" ou ainda da "direção de tran
sição" que pode ser da parte para o todo ou vice-versa- e esses sao caracteres
fenomenológicos novos que trazem uma contribuição à matéria intencional global
do ato relacionante há duas possibilidades, traçadas a priori, de acordo com as
quais a mesma relação' pode vir a ser atualmente dada. A elas correspondem
dois "relacionamentos","28 a priori possíveis, a título de objetividades distintas
co-pertinentes segundo leis ideais, objetividades que sôo
se
mas necessariamente
só
podem constituir diretamente nos atos fundados da espécie indicada, isto é, que
elas
nos atos assim_construidos podem chegar a ser "percebidas", a ser "dadas,
proprias
Esta exposição se aplica obviamente a todas as particularizações da relaçao
entre um todo e suas partes. Todas essas relações são de natureza categorial, isto
é, ideal. Seria insensato inseri-las no todo simples e depois querer encontrá-las por
de qualquer articula-
meio de análise. Decerto, a parte está cravada no todo antes
com-preensão perceptiva
ção, e e nele que a com-preendemos conjuntamente n
é nada mais do que a
do todo; mas o fato de estar cravada no todo de saída'no
atos correspondentes articulados e
possibilidade ideal de trazer à percepção, nos
fundados, ela e o
seu ser-parte. das relações externas das quais se
A situação é obviamente análoga no caso
está à direita de B, A é maior, mais claro, mais
originam predicações, tais como A
sonoro que B, etc. A possibilidade
das relações externas surge onde quer que os
de per si apesar do seu fecha-
objetos sensíveis- as simples perceptibilidades,em unidades mais ou menos ínti-
-
em agrupamentos,
mento excludente, se juntem
no fundo, em objetos
mais abrangentes. Essas relações podem ser
mas, ou seja, e as outras partes
parte
entre uma
abrangidas no seu todo pelo esquema de relaçao
uma vez, os atosfundados são
aqueles nos quais se perfaz a apa-
de um todo. Mais
aqui relevantes, a aparição das relações exter
riçãoprimária dos estados de coisas complexo inteiro nem as
simples do
nem a percepçao
nas. Está bem claro que
a seus membros são, já em si, percepçðes das
percepçoes isoladas que pertencem
nesses complexos. Só quando um membro é selecio-
relaçoes porventura possíveis
fixos os outros membros, é considerado como membro prin-
nado e, mantendo-se
meio dos membros correlatos que obviamente também
que surge, por
cipal, é
o seu ser-determinad0 fenomenal que muda de acordo
devem receber destaque,
com as particularidades da especie de unidade em vigor. Também aqui a escolha
do membro principal
ou a direçao da apreensao relacionante determina em geral
fenomenologicamente diversas e caracterizadas de modo
as formas de relação
na percepçao nao articulada d0 agrupamento (tal
como
correlato, formas que,
nao sa0 incluidas verdadeiramente, mas apenas
aparece enquanto simples objeto),
ideais de perfazer os respectivos atos fundados.
como possibilidades
127 "dieselbe Relation" (N. dos T.)
128 "Verhältnisse". Em todo o restante do texto traduzimos Verhallnis por "relaçào". (N. dos T.)
124
HUSSERL
A genuína
implantação todo
dessas relações entre as
no
uma confusão de coisas fundamentalmente diferentes uma partes representaria
confusão das formas de
ligação sensíveis ou reais com as categorias e ideais. As ligações sensíveis são
momentos do objeto real, seus momentos efetivos nele
presentes, ainda que só
implicitamente dele destacáveis por meio de uma percepção abstrativa. Pelo
contrário, as formas de ligação categorial são formas correspondentes aos modos
dos atos-sínteses, ou seja, formas que se constituem
objetivamente nos atos sintéti-
cos, edificados sobre2° a sensibilidade.
Na construção das relações externas, a
forma sensível pode fornecer o fundamento para a
constituição de uma forma
categorial a ela correspondente; como por exemplo, quando apreendemos e even-
tualmente expressamos nas formas sinteticas A e contiguo a BeB contiguo
a A,
a contigüidade sensível dos conteúdos A e B, dada na intuição de um T abran-
gente. Mas, com a constituição dessas últimas formas, surgem novos objetos,
pertencentes à classe estado de coisas que só abrange "objetos de ordem supe-
rior". No todo sensível, as partes A e B são unidas pelo momento de
contigüidade
que as liga de maneira sensível. O destaque dessas partes e momentos, a constru-
ção das intuições de A, de Be de ser-contíguo, ainda não produz a representação
A é contúguo a B. Esta exige um ato novo que se apodere dessas
representações,
dando-lhes a forma e a ligação adequadas.
129
auf. cf. os trechos de Husserl correspondentes às notas 126 e 140. (N. dos T.)
130
Op. cit. cap. 4, $S 35 e 36, I12, 1, p. 466-476. (N. do A.)
INVESTIGAÇÕES LÓGICAS 125
O sentido da apreensão foi alterado, produzindo assim
cão
uma alteração de significa-
na expressao adequada. As coisas não se passam como se
apenas uma peça
intermediária tivesse sido inserida, entre as
representaçóes inalteradas, como um
vinculo que ligasse apenas exteriormente as representações umas às outras. A fun-
ção do pensamento sintético (a função intelectiva) afeta as representações, enfor-
ma-as de novo, embora, enquanto função
categorial, ela o faça de uma maneira
categorial; de tal modo, portanto, que o teor sensível do objeto que aparece
manece inalterado. O objeto aparece com novas determinações reais, ele está peraí
como este mesm0 objeto, de
maneira nova. A inclusão na conexão cate
mas uma
gorial faz com que ele venha a ter aí um determinado lugar e papel, o papel de um
membro de relação, em especial, o de um membro-sujeito ou membro-objeto; e
estas são diferenças que se manifestam fenomenologicamente.
Sem dúvida, as mudanças de significação nas expressões que as estampam
são mais facilmente notadas do que as modificações das próprias representações
diretas. Por exemplo, no círculo das simples intuições, a situação não étotalmente
clara, quando elas são comparadas dentro e fora de uma função relacional. Por
isso, não tratei delas na investigação anterior. As percepções isoladas da sensibili-
dade foram equiparadas13 aos atos que desempenham a função nominal. Assim
como na percepção simples é o objeto que nos faz frente diretamente, no ato
nominal nós nos deparamos com um estado de coisas ou com um objeto catego-
rialmente enformado. O objeto se constituiu paulatinamente, quando pronto tor-
nou-seentão membro de uma relação- conservando totalmente inalterado, pare
ce-nos, o seu sentido constitutivo. Entretanto, podemos dizer com segurança
que, no casoda percepção, escapa-nos antes de mais nada a alteração fenomeno-
ato relacionante, exatamente porque
lógica que ela própria sofre quando entra no
a nova forma é algo que inclui em si
todo o antigo sentido da apreensão, não lhe
A percepção continua
conferindo nada além daquele sentido novo de um "papel".
como o era antes, com a diferença "única"
a ser percepção, o objeto é dado assim
da função sintética não
de que agora ele é "posto em relação". Tais enformações
valem para nós como pertencentes à nossa
alteram o próprio objeto, e, por isso,
cima delas na reflexão
atividade meramente subjetiva; assim passamos por
do conhecimento.-Conseqüente-
fenomenológica dirigida para a elucidação
na funçao de sujeito e em qualquer função nominal,
mente, devemos dizer então:
tambem o mesmo e, quanto a seu funda-
o estado de coisas decerto permanece
em intuição originária
também pelo mesmo ato pelo
mento último, é constituído
função isolada; mas no ato de grau superior, em que
qual fora constituído na
forma nova
ele e constituido com uma
funciona como membro de uma relaçao,
caracteriza o Seu papel), que, no caso da expres-
(por assim dizer, com o traje que
torma nominal da expressão,- Aqui são neces
são adequada, se manifesta pela
sárias investigaçõesmais amplas para elucidaçao definitiva da situação que nos
limitamos a esboçar.
do A.)
P.ex., S 33, I12, 1, p. 459, supra. (N.
126 HUSSERL
S 50. Formas sensíveis na apreensão categorial
que não desempenham afunção nominal.
Até agora falamos apenas das enformações às quais são submetidos os mem-
bros das relações, como por exemplo, o todo e a parte. Mas, nas
relações externas,
vemos como formas sensíveis entram na unidade da relação (no seu predicado) e
como elas determinam de um modo sensivel a forma da relação, sem vir a ter
independência nominal. Por exemplo: A mais claro que B, A à direita de B, etc.
As fenomenológicas
diferenças
entre os casos em que
diferenças que éstão
no sentido da apreensão
a atenção é dada simplesmente à forma
de clareza,. por assim dizer, da qual se faz um objeto hominal, ao modo da expres-
são "esta relação de clareza lentre A eB] é mais faciBmente
notada do que aquela
outra, lentre Me N]" e os casos de uma espécie totalmente diferente, nos quais
a mesma forma de clareza é visada ao modo da expressão anterior "A é mais
claro que B, essas diferenças. digo. são inegáveis. Nos últimos casos.
tramos mais uma vez (uma forma categorial que indica uma função_peculiar no
encon
tododarelação. E a diferenças dessas formas, tais como aprendemos a conhecer
aqui e no parágrafo anterior, que se reduzem obviamente conceitos como os de
membro de relação, forma de relação, sujeito, objeto e outros, nem sempre clara-
mente estampados, e, em todo caso, não suficientemente elucidados até agora.
136
Cf. supra § 45, p. 116. (N. do A.)
INVESTIGAÇÕES LOGICAS 129