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raciocínio

CONCEITO/ JUIZO/ PENSAMENTO

O objectivo destas páginas é esclarecer as noções de conceito, juízo e raciocínio. Estas noções surgem
recorrentemente no ensino secundário. Todavia, graças à confusão da generalidade dos manuais disponíveis,
professores e estudantes sentem-se perdidos quando se trata de compreender claramente estas noções
centrais em filosofia. Na maior parte dos casos, usam-se os termos “conceito”, “juízo” e “raciocínio” sem se
saber muito bem o que querem realmente dizer; isto é particularmente óbvio quando se pede a professores
e estudantes para apresentarem exemplos claros de conceitos, juízos e raciocínios.

O que é um conceito?

O melhor que temos a fazer para determinar o que é um conceito é considerar as expressões linguísticas que
exprimem conceitos e contrastá-las com outras expressões linguísticas que não exprimem conceitos. Uma
vez esta diferença clarificada, estamos em condições de compreender o essencial acerca do que nos ocupa.
Se observarmos atentamente os recursos linguísticos que temos à nossa disposição quando pretendemos
referir-nos a qualquer segmento da realidade, encontramos termos que utilizamos para referir coisas
particulares, como indivíduos ou países, etc. Estes termos são, entre outros, os nomes e as descrições.
Concentremos a nossa atenção apenas nos nomes. Dado que os nomes referem indivíduos ou coisas
particulares (o nome “Lisboa” refere a cidade de Lisboa, o nome “Sócrates” refere Sócrates), dizemos que
são termos singulares. No entanto, não existem apenas termos singulares. Existem também termos gerais,
isto é, termos que se aplicam a uma diversidade (maior ou menor) de indivíduos. Vejamos do que se trata.
Na categoria dos termos gerais estão incluídos aqueles itens linguísticos que usamos para referir
as propriedades que as coisas ou objectos singulares possuem, bem como as relações em que certas coisas
se encontram. Estes itens linguísticos são os predicados.
Para verificarmos que função os nomes e os predicados desempenham, basta considerar um exemplo.
Quando dizemos “Fernando Pessoa é um poeta” estamos a construir uma frase declarativa que afirma,
acerca do indivíduo que o nome “Fernando Pessoa” refere, que esse indivíduo possui uma certa propriedade,
precisamente a propriedade de ser um poeta. Para isso, é necessário que o predicado “ser um poeta” exprima
de facto esta propriedade. Por outro lado, quando dizemos “Ana ama Pedro” estamos a afirmar que a Ana e
o Pedro se encontram numa certa relação, relação que pode ser expressa linguisticamente pelo predicado
“amar”. O mesmo acontece com a frase “Leiria fica entre Lisboa e o Porto”. Neste caso, o predicado
relacional é: “ficar entre”. Outro exemplo seria: a frase “2 é menor que 3” é composta por dois numerais (os
numerais são nomes de números, tal como “Lisboa” é o nome de Lisboa) e pela relação “ser menor que”.
Um predicado é portanto a contraparte linguística das propriedades e das relações, tal como os nomes
são contrapartes linguísticas dos objectos. Isto é: os predicados exprimem propriedades e os nomes referem
objectos.
Geralmente, exprimimos os predicados através do infinitivo. O predicado presente na frase “O João é
alto” é “ser alto”; o predicado presente na frase “Lisboa é bonita” é “ser belo”. Em filosofia e na lógica, porém,
temos uma maneira mais eficaz de falar de predicados. Como um predicado é basicamente uma expressão
que precisa de um termo singular (um nome, por exemplo), para formar uma frase, exprimimos os
predicados assinalando o lugar vazio onde teremos de introduzir um termo singular para formar uma frase.
Assim, dizemos que o predicado presente na frase “O João é alto” é “___ é alto”. Para não estarmos a usar
riscos, usamos letras (x, y, z, etc.) para indicar o sítio onde falta um termo singular. Assim, dizemos que o
predicado anterior é “x é alto”. Uma vantagem imediatamente visível desta maneira de falar dos predicados
é que nos permite exprimir melhor os predicados relacionais, como “ficar entre”. Na nossa nova maneira de
exprimir predicados, torna-se evidente que este é um predicado que precisa de 3 termos singulares: “x fica
entre y e z”. É importante não esquecer isto: “x é alto” não é uma frase — é um predicado. Um predicado não
é uma frase. É um elemento que pode ser usado para formar uma frase. Tal com um nome não é uma frase.
É um elemento que pode ser usado para formar uma frase. E o que é uma frase? Uma frase é uma unidade
linguística que podemos usar para fazer afirmações, perguntas, exprimir dúvidas, etc.
Vejamos agora a razão pela qual se diz que os predicados são termos gerais.
Se considerarmos o predicado “ser um poeta” (ou “x é um poeta”, na nossa nova maneira de falar) vemos
que é possível construir uma ampla variedade de frases declarativas verdadeiras onde este predicado
intervém. Um exemplo seria “Luís de Camões é um poeta”, ou ainda “Baudelaire é um poeta”. Tudo o que
fizemos foi construir frases onde intervém um só predicado, fazendo-o anteceder por diferentes nomes.
Quando o fazemos adequadamente, obtemos diferentes frases que resultam verdadeiras e outras que
resultam falsas. “António Guterres é um poeta” é um exemplo do segundo caso. Isto significa que a
propriedade de ser um poeta é partilhada por um certo conjunto de indivíduos, e não por outros. O mesmo
acontece com o predicado relacional “x é menor que y”.
Pensemos agora em várias frases verdadeiras diferentes que podemos formar com o mesmo predicado.
Pensemos, por exemplo, no predicado “é um poeta”. Com os nomes “Camões”, “Fernando Pessoa” e
“Baudelaire”, podemos formar frases verdadeiras. Esses nomes referem 3 pessoas. Essas 3 pessoas
constituem um conjunto: o conjunto de pessoas que são poetas. Claro que o conjunto de pessoas que são
poetas é muito maior do que este. O importante aqui é notar a seguinte diferença: as propriedades que
exprimimos com os predicados podem ser exemplificadas por vários objectos. No nosso caso, a propriedade
de ser um poeta é exemplificada por várias pessoas, como Camões, Fernando Pessoa e Baudelaire, entre
muitos outros.
Que os predicados, ao invés dos nomes, sejam termos gerais, é agora claro: a mesma propriedade pode
ser exemplificada por uma variedade de coisas ou indivíduos diferentes. Essas coisas ou indivíduos formam
um conjunto, o conjunto dos objectos que tornam verdadeira qualquer frase formada a partir da substituição
de x e y por nomes de pessoas ou objectos (ou outras expressões que refiram pessoas ou objectos).
Ao conjunto de indivíduos que exemplificam uma propriedade, chamamos a extensão do predicado (o
predicado pelo qual a propriedade é expressa). A extensão de um predicado ou relação é, pois, um conjunto
cujos elementos são as coisas às quais essa propriedade pode ser correctamente atribuída. Se fizermos
representar pelo símbolo “P” o predicado “é um poeta” e por “a” o indivíduo Fernando Pessoa, a frase
“Fernando Pessoa é um poeta” pode ser representada na linguagem da teoria matemática dos conjuntos
como “a ∈ P”. O mesmo acontece com a propriedade de “ser português e não ser português”: neste caso,
como não existe um só objecto que, em simultâneo, seja português e não português, esta estranha
propriedade não é exemplificada por objecto algum. Mas isto não significa que este predicado não possua
uma extensão. A sua extensão é o conjunto vazio, que representamos pelo símbolo “Ø”.
Vejamos agora um outro aspecto. Há um célebre exemplo de Quine, um dos grandes filósofos do século
XX, que nos permite enfrentar com perspicácia o nosso problema inicial: o de saber o que é um conceito.
Vejamos as expressões “criatura com rins” e “criatura com coração”. “Criatura com rins” e “criatura com
coração” exprimem diferentes propriedades. Porquê? Só porque são palavras diferentes? Claro que não;
afinal, os predicados “vermelho” e “encarnado” são palavras diferentes, mas exprimem sem dúvida a mesma
propriedade. Mas porquê? Porque são sinónimos: qualquer pessoa que domine a língua portuguesa sabe que
todos os objectos vermelhos são encarnados, pois “vermelho” quer dizer “encarnado”. Ninguém precisa de
fazer estudos científicos ou outros para saber que todos os objectos vermelhos são encarnados; é algo que
depende unicamente do significado dos predicados “vermelho” e “encarnado”. Mas será que todas as
criaturas com rins têm coração? Acontece que se sabe que sim. Mas para saber isto não basta dominar a
língua portuguesa; trata-se de uma descoberta da zoologia. É por isso que “criatura com rins” e “criatura
com coração” exprimem diferentes propriedades; apesar de terem a mesma extensão. Isto quer dizer que
apesar de ser verdade que todas as criaturas com rins têm coração, esta não é uma verdade analítica; ao
passo que é uma verdade analítica que todos os objectos vermelhos são encarnados.
Assim, os predicados “criatura com rins” e “criatura com coração” possuem exactamente a mesma
extensão. Sabemos, além disso, que sempre que dois conjuntos, A e B, possuem os mesmos elementos, são
o mesmo conjunto. Portanto, o exemplo de Quine mostra claramente que diferentes propriedades podem
determinar uma única extensão. Mas, mais importante ainda, mostra que possuir a mesma extensão não é
suficiente para que dois predicados P e Q exprimam a mesma propriedade.
Dois predicados podem aplicar-se ao mesmo conjunto de indivíduos e exprimir propriedades distintas. O
mesmo sucede com neste exemplo : os predicados “ser o autor de Os Maias” e “ser o autor de O Primo
Basílio” exprimem propriedades distintas. No entanto, a extensão em ambos os casos é uma só: Eça de
Queirós. Assim, dizer que os predicados ou termos gerais da linguagem têm uma extensão e que exprimem
propriedades não é, de modo algum, a mesma coisa. Para distinguir o conjunto de indivíduos a que um
predicado se aplica da propriedade expressa pelo predicado, utilizam-se, respectivamente, os
termos extensão e intensão. Todos predicados já mencionados possuem uma extensão e uma intensão.
A extensão é apenas o conjunto de indivíduos a que os predicados se aplicam. A extensão do predicado
“vermelho” são todos os objectos vermelhos. Mas o que são as intensões? A intensão é o modo como
agrupamos os objectos que pertencem à extensão do predicado. Agrupar os indivíduos que escreveram Os
Maias é diferente de agrupar os indivíduos que escreveram O Primo Basílio. Claro que no fim, em ambos os
casos agrupámos o mesmo indivíduo (Eça de Queirós). Mas o modo como o fizemos foi diferente. É claro
que podemos usar diferentes predicados para referir a mesma pessoa; foi precisamente isto que fizemos
quando nos referirmos a Eça de Queirós como sendo o autor de Os Maias e também como sendo o autor
de O Primo Basílio. Mas, embora a pessoa de quem estamos a falar seja a mesma, não é indiferente referi-la
através de uma ou outra destas propriedades. Na verdade, ao usar um ou outro predicado, estamos a referir
Eça de Queirós através de diferentes intensões ou conceitos. Os conceitos são, portanto, intensões.
Quando afirmamos que os conceitos são os instrumentos que utilizamos para representar a realidade, o
que estamos a dizer é que nos referimos ao segmento da realidade de que falamos num determinado
momento através das intensões dos predicados que intervêm nas frases que descrevem esse segmento da
realidade. O facto de o fazermos não é sequer misterioso. Quando afirmo que Fernando Pessoa é um poeta
português, estou a seleccionar entre a ampla diversidade de coisas que constituem a realidade, um pequeno
segmento e a concentrar-me nele. O mesmo acontece quando dizemos que a água é H2O ou que a velocidade
do som é de 332 metros por segundo.
No primeiro parágrafo afirmámos que a melhor maneira de esclarecer do que se está a falar quando
falamos em conceitos consiste em indicar que os termos gerais exprimem conceitos. Vimos que os predicados
se incluem nesta categoria e contrastámo-los com os nomes, que, ao contrário dos primeiros, são termos
singulares. Podemos ir agora mais longe e dizer que os nomes não possuem intensões e, portanto, que não
exprimem conceitos. Esta, no entanto, não é uma ideia que tenha prevalecido desde sempre entre os filósofos
da linguagem (Rudolf Carnap, em Meaning and Necessity, por exemplo, defendeu que os nomes possuem
intensões). Mas a ideia tem vindo a ser gradualmente abandonada, sendo escassas, hoje, as pessoas que a
defendem. Ao contrário do que por vezes se afirma (ou sugere) existe progresso em filosofia (e não apenas
em filosofia da linguagem). Este facto não deveria, aliás, espantar-nos: a filosofia é uma actividade cognitiva
e seria espantoso que, ao invés de todos os outros ramos do conhecimento, apenas os filósofos fossem
incapazes de realizar quaisquer progressos ao reflectirem criticamente sobre os seus próprios resultados.
Nos manuais portugueses da disciplina de introdução à filosofia para o ensino secundário encontramos
demasiadas vezes uma preferência injustificada pela ideia que os nomes possuem intensões, ainda que o
nome de Rudolf Carnap ou qualquer outro dos proponentes da teoria nunca apareça citado. Além disso, que
os nomes possuam intensões é uma ideia apresentada como evidente, passando por um facto teoricamente
estabelecido (o que é falso). Um manual correntemente utilizado afirma, por exemplo, que “Mário Soares” é
um conceito, por exemplo. Esta é uma afirmação que estamos agora em condições de compreender ser falsa.
Ela parte, aliás, de um erro óbvio: o de confundir termos linguísticos (neste caso um nome) com conceitos
(que são entidades abstractas). Segundo Carnap, que não cometeu este erro, a intensão do nome “Mário
Soares” seria o conceito individual MÁRIO SOARES, que seria uma propriedade que só Mário Soares teria;
por sua vez, ao usarmos o nome “Mário Soares” estaríamos a referir Mário Soares através desse conceito ou,
se quisermos, dessa propriedade. O que está doutrina afirma é que os nomes são propriedades disfarçadas,
e não que os nomes, tomados na sua simplicidade, exprimem conceitos; Carnap achava que os nomes
exprimiam conceitos porque os nomes só eram nomes enganadoramente — não eram verdadeiramente
nomes, mas termos gerais que, por acaso, só se aplicavam a um único indivíduo e que, por isso, tinham a
aparência de nomes. Em última análise, este tipo de doutrina resulta do facto de na altura não se conseguir
explicar como poderiam os nomes referir os objectos que referem, e porque havia a ilusão de que a relação
de aplicação (que ocorre entre predicados e objectos) era mais simples do que a relação de referência (que
ocorre entre nomes e objectos).
As intensões são dispositivos através dos quais captamos os objectos, isto é, modos particulares de nos
referirmos a certos objectos. Ora, é fácil verificar que não nos referimos a Mário Soares de nenhum modo
em particular quando usamos para esse efeito o seu nome. O mesmo não acontece se nos referirmos a Mário
Soares através, por exemplo, das seguintes descrições: (i) o fundador do Partido Socialista Português; (ii) a
pessoa que imediatamente precedeu Jorge Sampaio na função de presidente da República Portuguesa. Nos
dois últimos casos, a referência a Mário Soares é efectuada através de diferentes conceitos uma vez que (i) e
(ii) se referem a propriedades (distintas) que Mário Soares exemplifica. Mas, qual é a propriedade referida
por “Mário Soares” que justifique o conceito MÁRIO SOARES? Nenhuma, é evidente. A doutrina de Carnap
(semelhante à de Russell e Quine) consiste basicamente em introduzir um artificialismo para explicar a
relação de referência. Ora, um artificialismo técnico dificilmente pode ser encarado, no ensino da filosofia,
como uma noção de base que deva ser transmitida como um conteúdo filosófico consensual. Este é mais um
caso do atraso gritante e que urge corrigir no ensino da filosofia em Portugal.
O erro cometido por Rudolf Carnap (e acriticamente repetido nos manuais de introdução à filosofia
portugueses) tem, no entanto, uma explicação plausível. Tal como muitos outros filósofos da linguagem,
Carnap defendia que um nome refere o indivíduo que refere porque lhe está associada uma descrição cujos
predicados o referente do nome é o único indivíduo acerca do qual a descrição é verdadeira. Se pensarmos
na descrição “A pessoa que imediatamente precedeu Jorge Sampaio na função de presidente da República
Portuguesa”, verificamos que Mário Soares é o único indivíduo acerca do qual esta descrição é verdadeira.
São muitas as pessoas que associam esta descrição (ou equivalente) ao nome “Mário Soares”, facto que nos
poderia levar a pensar que os conceitos intervenientes na descrição constituem um dispositivo através do
qual o nome “Mário Soares” refere Mário Soares. Ainda que fosse assim, seriam às intensões dos predicados
intervenientes na descrição, e não ao nome “Mário Soares” enquanto tal, que caberia esse trabalho. Logo,
mesmo que uma ou mais descrições possam estar associadas a nomes, não são os nomes que realmente
possuem intensões, mas os predicados que ocorrem nas descrições relevantes.

O que é um juízo?

De modo a clarificar o que se entende pelo termo “juízo” é talvez conveniente desfazer um equívoco.
Comecemos por esclarecer o que se pretende quando se diz que alguém formulou um juízo acerca de
determinado assunto. Usado nesta acepção, um juízo significa geralmente que alguém emitiu sobre esse
assunto uma opinião. Esta opinião é comunicada oralmente ou por escrito através de uma frase declarativa.
Assim, a frase declarativa em questão exprime o juízo que alguém formulou. No entanto, uma frase
declarativa é apenas um certo conjunto de sons ou inscrições num suporte físico, por exemplo, num papel.
Se a frase pôde expressar a opinião ou juízo de alguém é porque há um certo conteúdo associado à frase.
Esse conteúdo poderia ter sido expresso por uma frase diferente da que foi utilizada, por exemplo, uma frase
sinónima pertencente a uma diferente linguagem natural. Um exemplo seriam as seguintes frases: (i) a neve
é branca; (ii) snow is white. Ambas exprimem o mesmo conteúdo e ambas permitem formular, no contexto
apropriado, o mesmo juízo. Dizemos que a frase que permite comunicar o juízo tem o mesmo conteúdo que
o juízo.
O conteúdo de uma frase declarativa, bem como do juízo que a frase permite comunicar, é geralmente
designado pelo termo “proposição”. Assim, a frase “A neve é branca” exprime a proposição que a neve é
branca. Mas, se ao falar em conteúdo de uma frase declarativa quero referir um significado linguístico,
quando falamos no conteúdo de um juízo queremos indicar um acto mental ao qual está associado um
significado (o pensamento de que a neve é branca, por exemplo). Assim, o termo “juízo” é geralmente
utilizado numa acepção psicológica, para referir o acto mental que nos conduz a formar (captar) uma certa
proposição. O mesmo sucede quando afirmamos: “Já captei (apanhei) a ideia”. Estamos a indicar que
compreendemos a proposição que a pessoa tem em mente, isto é, aquilo que a pessoa estava a tentar
comunicar.
Mas queremos ainda outra coisa fundamental. Queremos que o conteúdo do juízo que formulamos (a
nossa opinião) seja também verdadeiro ou falso. É por isso que formulamos juízos ao reflectir sobre a
realidade. Se o conteúdo dos nossos juízos não fosse verdadeiro nem falso não estaríamos a afirmar coisa
alguma sobre a realidade.
Por vezes, a noção de juízo é apresentada como um acto mental que consiste em estabelecer uma relação
entre conceitos. Esta é uma maneira insatisfatória de caracterizar um juízo. Porquê? Bem, porque, se esta
caracterização fosse correcta, a frase “Fernando Pessoa é um poeta” não exprimiria um juízo, consequência
que é obviamente inaceitável. Dado que “Fernando Pessoa” não exprime conceito algum, ao afirmarmos que
Fernando Pessoa é um poeta não estamos a estabelecer uma relação entre dois conceitos. A frase “Fernando
Pessoa é um poeta” inclui apenas um predicado.
Mas “Fernando Pessoa é um poeta” exprime um pensamento: que Fernando Pessoa é um poeta. E é óbvio
que quando penso ou afirmo que Fernando Pessoa é um poeta estou a formular um juízo.

O que é um raciocínio?

Uma maneira intuitiva de caracterizar um raciocínio consiste em dizer que se trata de um processo pelo qual
é possível alcançar uma conclusão. A conclusão a que chegamos, por sua vez, é para ser entendida como o
resultado da informação de que dispomos à partida. Um exemplo frequente seria o seguinte: se possuo a
informação que (1) todos os homens são mortais e (2) Sócrates é homem, estou em condições de concluir
que (3) Sócrates é mortal. Por razões de precisão e de economia, dizemos também que (1) e (2) são
as premissas do raciocínio e que (3) é a conclusão.
Além disso, as premissas do raciocínio permitem exibir as razões de que dispomos para afirmar a
conclusão. Se quisermos justificar por que razão defendemos que 4 é maior que 2, podemos fazê-lo da
seguinte maneira: sabendo que (1) 4 é maior que 3 e (2) 3 é maior que 2, concluiu-se que 4 é maior que 2.
Qualquer pessoa que aceite (1) e (2) como verdadeira, encontra-se na necessidade de aceitar como verdadeira
a afirmação inicial que pretendemos justificar. Quando raciocinamos estamos a determinar
que consequência se segue de um certo conjunto de razões dadas. E é claro que nem todos os raciocínios que
efectuamos têm a simplicidade aparente dos exemplos acima. Nem sempre estamos em condições de afirmar
exactamente que consequências se seguem da informação que possuímos acerca de um dado assunto. Pelo
menos, antes de efectuarmos o raciocínio. Um exemplo de raciocínio cuja conclusão não é tão óbvia como a
dos casos anteriores é o seguinte. Aceite-se que as afirmações da lista seguinte são verdadeiras acerca do
João: (1) Se ele estudar, obtém boas notas; (2) Se ele não estudar, diverte-se no colégio; (3) Se ele não receber
boas notas, não se diverte no colégio (2). Que conclusão podemos extrair acerca do comportamento escolar
do João? Interessar-se-á pelos estudos? Deixá-los-á para segundo plano?
Os exemplos que acabámos de referir não permitem ilustrar todos os géneros de raciocínios que estamos
em condições de efectuar. De facto, existem pelo menos dois géneros distintos: os raciocínios dedutivos e os
não-dedutivos. A nossa tarefa consiste em indicar brevemente as principais diferenças entre eles de modo a
não os confundirmos.
Comecemos com os raciocínios dedutivos. A melhor maneira de caracterizar os raciocínios dedutivos
consiste em dizer que se todas as suas premissas forem verdadeiras, é logicamente impossível que a
conclusão seja falsa. Isto, é claro, se a conclusão for, de facto, uma consequência lógica das premissas (é o
caso dos exemplos acima). É esta, precisamente, a razão pela qual a ideia de rigor aparece por vezes associada
à dedução. Se a informação de que partimos for verdadeira, quaisquer que sejam as consequências dela
resultantes, podemos estar seguros de que serão também verdadeiras. Isto não quer dizer que todas as
conclusões dos raciocínios dedutivos sejam verdadeiras. Podemos, por exemplo, partir de premissas falsas.
Quando isso acontece, há uma forte possibilidade de as consequências delas resultantes serem também
falsas.
Necessitamos, além disso, de seguir regras quando raciocinamos. A função das regras é precisamente
conduzirem-nos de premissas verdadeiras a conclusões verdadeiras. Um exemplo típico de raciocínios
dedutivos governados por regras são os silogismos (embora a maior parte dos raciocínios dedutivos que
efectuamos não sejam silogismos).
Um exemplo de silogismo é o seguinte:
Os mamíferos são seres vivos.
Por outro lado, as baleias são mamíferos.
Logo, as baleias são seres vivos.
Os silogismos são raciocínios constituídos por apenas duas premissas e uma conclusão. Além disso, são
compostos por três termos, um dos quais — o termo médio — surge repetido em ambas as premissas e está
ausente na conclusão. O termo médio, no exemplo acima, é “mamíferos”. Os restantes termos são “baleias”
e “seres vivos”.
Aristóteles, um filósofo grego, foi o primeiro a preocupar-se em determinar que regras nos conduziriam
de premissas verdadeiras a conclusões verdadeiras caso usássemos silogismos para raciocinar. Hoje, vinte
séculos depois, sabemos que as regras propostas por Aristóteles não são de facto as regras de que
dependem estes raciocínios. Como qualquer outra ciência, a lógica evoluiu. Isto não significa que, se
respeitarmos as regras aristotélicas do silogismo, sejamos conduzidos a conclusões falsas partindo de
premissas verdadeiras; significa que, ao seguirmos as regras de Aristóteles, estamos, por acaso, também a
seguir as regras de que os silogismos de facto dependem, ainda que não o saibamos. Uma comparação seria:
digamos que nos encontramos na situação de uma pessoa que desejando viajar até Lisboa, é bem-sucedida
ao respeitar as indicações que encontra num mapa bastante antigo e desactualizado.
Um exemplo de regra aristotélica é: se ambas as premissas forem afirmativas (isto é: não contiverem uma
negação como em “Alguns portugueses não gostam de teatro”) a conclusão deve ser também afirmativa. Se,
no exemplo acima, alguém concluísse “As baleias não são mamíferos” estaria a desrespeitar esta regra e seria
conduzido a uma conclusão falsa, embora partisse de premissas verdadeiras (algo que se quer evitar).
Em síntese, podemos dizer o seguinte: os raciocínios dedutivos são aqueles em que a verdade das
premissas é logicamente preservada na conclusão. Para que tal suceda é necessário raciocinar de acordo com
regras cuja função é garantir que não se chega a uma conclusão falsa partindo de premissas verdadeiras.
Apesar de estas regras estarem presentes, e serem respeitadas sempre que raciocinamos de forma correcta,
não é indispensável conhecê-las para que sejamos bem-sucedidos no dia-a-dia, ao raciocinar. (Tal como não
é necessário saber qual é a composição química da água para tomar banho.) No entanto, se as conhecermos
(e é isso que a lógica estuda) estaremos em condições de evitar erros lógicos e de os detectar nas outras
pessoas — estaremos em condições de justificar racionalmente os raciocínios que efectuamos. Embora não
seja necessário saber que a água é H2O quando se toma banho, é bom conhecer os efeitos nocivos do sal e
não beber água do mar se tivermos sede.
Vejamos agora os raciocínios não-dedutivos. Há vários tipos destes raciocínios; concentremo-nos nos
indutivos. Se quisermos justificar que todas as esmeraldas são verdes, como poderemos fazê-lo? Talvez o
fizéssemos recorrendo ao testemunho alheio, por exemplo, que encontrámos num livro essa afirmação ou
que um joalheiro o garantiu. Mas quais serão as razões em que se apoia o joalheiro ou o autor do livro?
Podemos conjecturar que estas pessoas diriam algo do género: acredito que todas as esmeraldas são
verdes porque todos os exemplares até hoje encontrados são verdes. O que acabo de expor consiste num
raciocínio tipicamente indutivo.
A informação disponível refere-se às esmeraldas que foram descobertas até hoje, e é esta informação que
usamos como premissa. Depois, concluímos algo que supomos verdadeiro acerca de todas as esmeraldas e,
portanto, também daquelas que serão descobertas no futuro. Se a conclusão for verdadeira, é claro que todas
as esmeraldas que encontraremos no futuro serão verdes. Mas será que podemos estar certos disso?
Um exemplo de raciocínio indutivo com premissas verdadeiras e conclusão falsa é o seguinte. A existência
de cisnes negros foi desconhecida na Europa até ao século XIX. Daí que, qualquer europeu que quisesse
justificar a afirmação de que todos os cisnes são brancos procederia exactamente como o nosso joalheiro.
Diria talvez o seguinte: acredito que todos os cisnes são brancos porque todos os cisnes até hoje encontrados
são brancos. Repara que se trata do mesmo tipo de raciocínio num e noutro caso. Se a conclusão acerca de
cisnes se revelou falsa, porquê supor que o mesmo não possa acontecer com a conclusão acerca de
esmeraldas? Tudo quanto podemos dizer é que são ambas falíveis. No entanto, num caso e noutro, as
premissas com que começámos eram verdadeiras. Logo, quando estamos perante raciocínios indutivos,
partir de premissas verdadeiras não é suficiente para garantir logicamente a verdade da conclusão. Daí
também o facto de as conclusões obtidas por indução serem logicamente falíveis.
Mas há ainda um outro aspecto interessante que merece ser notado. Que foi exactamente que aconteceu
quando passámos das premissas para a conclusão no primeiro e segundo casos? Bem, o que aconteceu
foi: generalizámos o resultado de um certo número de observações (todos os cisnes e esmeraldas que
observámos até hoje) de modo a incluir também todos os outros casos do mesmo tipo ainda não observados.
É este processo de generalização que está na base das sondagens que os jornais publicam. Para se efectuar
uma sondagem de opinião, por exemplo, são seleccionados um certo número de indivíduos com
características que se admite representativas da população em geral. Esses indivíduos constituem
a amostra cujo comportamento se vai observar. A população constitui o universo acerca do qual se pretende
obter informações, digamos, prever o seu comportamento numa eleição nacional. Daí que os resultados das
sondagens generalizem os dados obtidos na amostra tornam-nos extensíveis ao universo de referência. É
claro que o resultado de uma sondagem é apenas aproximado, podendo ser calculada a sua margem de erro.
Isto significa que a possibilidade de errar (como no caso dos cisnes) não pode ser afastada. Mas significa
também que o raciocínio indutivo pode ser extremamente preciso e de confiança; acontece apenas que, do
ponto de vista estritamente lógico, as suas conclusões podem ser falsas ainda que todas as suas premissas
sejam verdadeiras. E isto acontece por causa do carácter “aberto” dos raciocínios indutivos; a qualquer
momento podemos descobrir um facto que irá alterar completamente a conclusão a que entretanto
chegámos. Por exemplo, hoje em dia nenhum biólogo concluiria, ao ver que todos os cisnes europeus eram
brancos, que todos os cisnes do mundo inteiro seriam também brancos. Pois o conhecimento que hoje temos
de biologia e evolução natural diz-nos que as cores das penas das aves pode variar, dentro de uma espécie,
em função do meio ambiente. Em conclusão: a complexidade dos raciocínios indutivos é muito superior à
dos raciocínios dedutivos; consequentemente, é muito fácil errar. Todavia, quando os raciocínios indutivos
são correctamente feitos e baseados em informação fidedigna (isto é, quando partem de premissas
verdadeiras e usam todas as premissas relevantes), são extremamente fiáveis. Podemos prever com uma
precisão espantosa, por exemplo, em que posição estará Júpiter dentro de 5 dias; podemos prever com uma
precisão espantosa onde irá aterrar uma sonda enviada para Marte; etc.
O paralelismo a estabelecer entre as sondagens e os raciocínios indutivos é que ambos procedem por
generalização com base em amostras (no caso dos cisnes ou das esmeraldas a amostra é o número de cisnes
e de esmeraldas observados até um dado momento). E, embora no caso das sondagens, a generalização
efectuada obedeça a regras estritas, o facto de generalizarmos de acordo com essas regras não é
suficiente para garantir logicamente que a conclusão seja verdadeira se as premissas o forem.
Um raciocínio indutivo, como o que está na base das sondagens, não permite garantir logicamente a
verdade da conclusão com base no facto de as premissas serem verdadeiras. Além disso, não é monotónico:
uma nova informação (isto é, uma nova premissa) pode transformar um argumento que antes encarávamos
como bom num argumento que depois passamos a encarar como mau.
Em síntese, podemos dizer o seguinte. Num raciocínio dedutivo, a conclusão é uma consequência lógica
obtida das premissas pelo uso de regras que garantem a sua verdade (caso todas as premissas sejam
verdadeiras). Estas regras estão sempre presentes mesmo que não saibamos indicá-las explicitamente. Mas,
nos raciocínios indutivos, o mesmo não se verifica. Embora com premissas todas verdadeiras, a conclusão
de um raciocínio indutivo não é uma consequência lógica das premissas. As regras utilizadas numa
sondagem não são do mesmo tipo que as regras usadas nos raciocínios dedutivos e não podem garantir
logicamente a verdade da conclusão. Ainda que uma conclusão obtida por indução seja altamente provável,
não é de todo logicamente impossível que venha a revelar-se como falsa. Mas, num raciocínio dedutivo é
logicamente impossível que a conclusão seja falsa se todas as premissas forem verdadeiras, caso as regras
sejam seguidas.
Em contrapartida, há um bom número de manuais que apresenta a diferença entre indução e dedução da
seguinte maneira: os raciocínios dedutivos partem do universal para o particular enquanto os raciocínios
indutivos partem do particular para o universal. Esta caracterização é incorrecta. Para o verificar basta
considerar o silogismo acerca de baleias que usei como exemplo. Todas as proposições que nele intervêm
são universais. A primeira premissa fala de todas as baleias, e não apenas de algumas, enquanto a segunda
premissa fala de todos os seres vivos e não apenas de alguns. Há, obviamente, raciocínios dedutivos que não
partem de premissas universais para conclusões particulares: a conclusão aplica-se a todas as baleias e não
apenas de algumas. Mas há mais. Existem raciocínios dedutivos por generalização. Um caso simples é:
Sócrates é grego; logo, existem gregos. Neste caso, como em qualquer outro raciocínio dedutivo, se a
premissa for verdadeira, é impossível que a conclusão seja falsa. Depois, porque há uma regra que o garante
claramente, e não apenas em termos probabilísticos. Este exemplo mostra também que falar em raciocínios
que partem de premissas particulares para conclusões de carácter geral não permite, por si só, distinguir
deduções de induções, mesmo para casos simples. Apesar disso, a caracterização que apresentei é
insuficiente. Uma caracterização mais satisfatória destas diferenças exigiria, no entanto, recursos que o
contexto não justifica.
Por último, resta dizer que os termos “raciocínio”, “pensamento” e “argumento” podem ser encarados
como diferentes nomes para a mesma coisa: o processo que consiste em retirar consequências de afirmações
dadas. Quando compreendemos isto, verificamos que ser um pensador não é condição suficiente de
qualidade; é preciso que os pensamentos desse pensador sejam consequências razoáveis de premissas dadas
para que valha a pena estudá-los ou tê-los em consideração. E, em última análise, isto significa que estudar
unicamente as conclusões dos filósofos, ignorando os argumentos, os raciocínios, que eles usaram para
chegar a essas conclusões, é uma visão redutora da filosofia; é como ler só o desfecho de um romance ou o
fim de um filme, sem prestar atenção a tudo o resto que conduziu a esse desfecho.
Paulo Ruas

Notas

1. Comecei a escrever estas notas para a minha filha Diana Ruas, que actualmente frequenta o ensino
secundário. Em seguida, a primeira versão foi revista e cresceu, com os comentários de Desidério
Murcho.
2. Exemplo extraído de Kalish, D., Montague, R., Mar, G. (1980) Logic, Techniques of Formal
Reasoning, 2.ª ed., Harcourt Brace Jovanovich College Publishers, New York

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