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Problemas
A filosofia é uma actividade de discussão de problemas. Se não percebermos ou se
perdermos de vista os problemas que estão a ser discutidos, nunca conseguiremos
compreender satisfatoriamente as matérias os autores estudados.
1.1.1. Exemplos de problemas filosóficos
A filosofia abrange muitos temas diferentes, como a arte, a política, a religião, a ciência, a
acção humana e a ética. Por isso, os problemas filosóficos são muito diversificados, mas
têm em comum o facto de não poderem ser resolvidos pelos métodos das ciências. Eis
alguns exemplos de problemas filosóficos:
• 0 que e agir livremente?
• Será que o bem e o mal dependem da sociedade?
• 0 que e o conhecimento?
• Será que Deus existe?
• Qual é o valor da arte?
• O que tem de especial as teorias científicas?
• O que é uma sociedade justa?
Nem todos os problemas filosóficos são imediatamente compreensíveis e mesmo estes
precisam de ser esclarecidos. Por exemplo, quando perguntamos o que é o conhecimento,
a que género de conhecimento nos estamos exactamente a referir? E quando perguntamos
se Deus existe, o que entendemos ao certo por Deus? Esclarecer os problemas a discutir é
uma parte importante da actividade filosófica.
Para identificar um problema, basta apontar a sua designação filosófica habitual. Formular
um problema, pelo contrário, exige que o apresentemos com clareza e rigor. A forma mais
natural de o fazer é através de uma pergunta, mas isso não é obrigatório.
Tomemos como exemplo o chamado «problema do mal». Quando se afirma «Este texto é
sobre o problema do mal», estamos a identificá-lo num texto. Para o formular, poderia apresentá-lo
de uma destas formas:
• Se o poder de Deus não tem limites e Ele é sumamente bom, por que razão existe tanto mal no
mundo?
• O problema do mal é a questão de saber se, num mundo em que há tanto mal,
pode existir um ser omnipotente e sumamente bom.
Situar este problema numa área ou disciplina filosófica é dizer que ele se inscreve na
filosofia da religião. O exame de 2006 incidirá em três disciplinas filosóficas principais: a
lógica, a epistemologia e a filosofia da ciência.
Mostrar a importância de um problema filosófico consiste em apresentar razões que o
tornem digno de atenção. Estas são duas formas de mostrar a importância do problema do
mal:
2. Teses
As teses são as respostas aos problemas. (Podemos também usar termos como «teorias» ou
«perspectiva» para nos referirmos às teses.) Uma das características da filosofia é a ausência
de respostas consentidas para os problemas discutidos. Por isso, o estudo de um problema
filosófico envolve a identificação de várias teses rivais que se apresentam como respostas.
Por exemplo, se estivermos a discutir a existência de Deus, importa reconhecer as seguintes
teses:
1. Deus existe.
2. Deus não existe.
3. Não sabemos se Deus existe.
As teses mais importantes costumam ser designadas por «ismos». (As teses A, B e C
correspondem, colectivamente, ao teísmo, ao ateísmo e ao agnosticismo.) Os «ismos» são
abreviaturas muito convenientes mas não devemos usá-los sem saber exactamente que
tese designam, ate porque termos como «objectivismo» ou «realismo» podem exprimir teses
muito diferentes. Numa resposta de exame, importa deixar claro o que se entende pelo «ismo»
que se esta a usar.
Deste modo, as frases que não são declarativas, como as perguntas e as ordens, não exprimem
proposições. Uma frase exprime uma proposição se, além de ser declarativa, fizer sentido
classificá-la como verdadeira ou falsa. As frases com valor de verdade são precisamente aquelas
que são verdadeiras ou falsas. Mesmo que não saibamos se são uma coisa ou outra. Perguntar
pelo valor de verdade de uma frase ou proposição que esta exprime é perguntar se ela é
verdadeira ou se é falsa.
Estas frases não exprimem proposições:
• Abre a porta!
• A porta está aberta?
• Não abras a porta.
Mas todas as seguintes exprimem proposições, já que faz sentido perguntar se são verdadeiras ou
falsas:
• A porta está aberta.
• A porta não esta aberta.
• Se a porta está aberta, então alguém a abriu.
1.2.4. Contra-exemplos
Na actividade filosófica discutem-se as teses propostas. Tentamos defender certas
teses e refutar outras, isto é, mostrar que são falsas. Quando se pretende refutar uma tese
que consiste numa proposição universal, uma forma de o fazer é apresentar contra-
exemplos.
1.2.5. Consistência
As proposições estão relacionadas entre si de várias formas. Uma das relações mais
importantes é a de consistência. O termo “coerência” também é usado para referir esta
relação.
• Um conjunto de proposições é consistente se, e apenas se, é possível que todas elas
sejam verdadeiras.
Se duas ou mais proposições são consistentes, isso significa apenas que são logicamente
compatíveis entre si. Por exemplo, as seguintes proposições são consistentes:
• Beethoven não compôs sinfonias.
• As obras musicais não são obras de arte.
• As sinfonias são obras musicais.
Sabemos que as duas primeiras proposições são falsas, mas não existe qualquer
incompatibilidade lógica entre as três proposições. É por isso que elas são consistentes
entre si. As seguintes proposições, pelo contrário, formam um conjunto inconsistente:
• As sinfonias de Beethoven não imitam a realidade.
• Todas as obras de arte imitam a realidade.
• As sinfonias de Beethoven são obras de arte.
Estas proposições são logicamente incompatíveis entre si. Nada precisamos de saber
sobre Beethoven, sinfonias ou obras de arte para concluir que é impossível que todas
estas proposições sejam verdadeiras. Pelo menos uma delas há-de ser falsa.
• Se um conjunto de proposições é inconsistente, então pelo menos uma delas é
falsa.
É por isto que temos de nos preocupar com a consistência. Quem defende teses
inconsistentes está de certeza enganado em algum aspecto, pois pelo menos uma dessas
teses é falsa. Mas importa não esquecer o seguinte:
• Se um conjunto de proposições é consistente, isso não garante que alguma das
proposições seja verdadeira.
Podemos ter conjuntos consistentes constituídos apenas por proposições falsas. Por isso, o simples
facto de alguém defender teses consistentes significa muito pouco, pois é possível que todos essas
teses sejam falsas.
Por exemplo, se a primeira definição da lista acima apresentada for correcta, então um objecto
ser uma imitação da realidade é uma condição necessária e suficiente para que esse objecto
seja uma obra de arte. Por outras palavras, se essa definição for correcta, então as seguintes
proposições universais são verdadeiras:
• Todas as obras de arte são imitações da realidade.
• Todas as imitações da realidade são obras de arte.
Como vimos, podemos recorrer a contra-exemplos para avaliar as afirmações deste género.
Portanto, se encontrarmos casos particulares de obras de arte que nao sejam imitações da
realidade, ou casos particulares de imitações da realidade que não sejam obras de arte,
teremos mostrado que a definição é errada.
A ideia de que as definições explícitas têm de indicar condições necessárias e suficientes
pode ser apresentada desta forma:
• Uma definição explícita é errada se for demasiado lata e/ou demasiado restrita.
Uma definição demasiado lata abrange mais do que devia abranger. Se existem imitações da
realidade que não são obras de arte, então a definição de «obra de arte» acima apresentada é
demasiado lata.
Uma definição demasiado restrita abrange menos do que devia abranger. Se existem obras de
arte que não são imitações da realidade, então a definição de «obra de arte» acima
apresentada é demasiado restrita.
Outra regra comum para avaliar definições explícitas é a seguinte:
• Uma definição explícita é errada se aquilo que se pretende definir surgir na expressão
definidora. As definições que se seguem são erradas porque não obedecem a esta regra:
• Um acto livre é aquele que realizamos livremente.
• O conhecimento são as coisas que conhecemos.
• As divindades são os seres divinos.
Estas definições são insatisfatórias porque não elucidam o significado daquilo que se pretende
definir. Se queremos saber o que é um acto livre, de nada nos serve que nos digam que é um
acto que realizamos livremente. As outras duas definições têm o mesmo defeito.
Outra regra é a seguinte:
• Uma definição explícita é errada se a expressão definidora for mais obscura do que aquilo
que se pretende definir. As definições que se seguem são erradas porque não obedecem a
esta regra:
• Um acto livre é uma manifestação imediata da transcendência.
• O conhecimento é a fusão última entre sujeito e objecto.
• As divindades são os fantasmas do inconsciente humano.
Se não é muito claro o que é um acto livre, e ainda menos claro o que é uma manifestação
imediata da transcendência. Por isso, a definição não elucida o significado daquilo que queremos
definir, pelo que, à semelhança das outras duas, é insatisfatória.
As competências a avaliar no exame que dizem respeito a conceitos filosóficos são as seguintes:
- Identificar conceitos;
- Clarificar conceitos;
- Relacionar conceitos;
- Aplicar conceitos.
Identificar um conceito é apenas reconhecê-lo numa certa frase ou num certo texto. Quando se
estuda um texto filosófico é importante saber identificar os conceitos principais.
Clarificar um conceito é elucidá-lo, dizendo o que significa o termo que usamos para o exprimir.
As definições explícitas são uma das formas mais comuns de proceder a essa elucidação, mas
também podemos recorrer a caracterizações. Uma caracterização de C não nos dá condições
necessárias e suficientes para que algo seja C, mas apresenta-nos algumas características
importantes daquilo que é C. Por exemplo, para clarificar o conceito de filosofia por meio de uma
caracterização, indicamos algumas das características importantes da actividade filosófica. Na
verdade, este capítulo contém uma caracterização da actividade filosófica, mas não oferece
qualquer definição explícita do conceito de filosofia.
Tal como as proposições, os conceitos mantêm diversas relações lógicas entre si. Por exemplo, o
conceito de ser vivo é mais geral do que o conceito de animal. Relacionar conceitos é mostrar
que se compreendem estas relações lógicas. É especialmente importante entender as relações de
oposição entre conceitos, pois um aspecto essencial da actividade filosófica é a introdução de
distinções entre conceitos opostos.
Aplicar conceitos é apenas saber usá-los. Se não sabemos usar um conceito, isso mostra que não
o compreendemos realmente. Por exemplo, se falarmos de «argumentos verdadeiros», estaremos
a aplicar mal o conceito de verdade, já que, como veremos, a verdade não é uma propriedade ou
característica de argumentos.
1.4. Argumentos
Os filósofos não se limitam a apresentar teses em resposta aos problemas colocados.
Propõem também argumentos para defender as teses em que acreditam, e uma parte
muito importante do estudo da Filosofia consiste na compreensão e na discussão ou
avaliação desses argumentos.
Um argumento pode ter apenas uma premissa, mas também pode ter muitas premissas. A
conclusão de um argumento é sempre apenas uma. Note-se que uma proposição pode
ser a conclusão de um certo argumento, mas surgir como premissa noutro argumento
diferente.
Podemos também designar os argumentos por (raciocínios ou por inferências), pois inferir
é extrair uma conclusão a partir de certas premissas e raciocinar é partir de certas
premissas para chegar a uma determinada conclusão.
Consideremos agora alguns argumentos muito simples que não são sólidos.
Todas as premissas destes argumentos são verdadeiras. Porém, nenhum deles é sólido
porque ambos são inválidos. No primeiro caso é evidente que as premissas não apoiam a
conclusão. Afinal as premissas são completamente desligadas da conclusão, pois nada dizem
sobre gatos ou plantas. No segundo a invalidade pode não ser tão evidente, mas torna-se òbvia
quando percebemos que a conclusão que se poderia extrair validamente seria a de que todas as
árvores são seres vivos, o que é muito diferente de afirmar que todos os seres vivos são
árvores.
Obviamente, um argumento pode ter ambos os defeitos: pode ter premissas falsas e ser
inválido.
Resumo do capítulo
Problemas
• A Filosofia é uma actividade de discussão de problemas. Sem compreender os
problemas a discutir, não se pode compreender as matérias estudadas.
• No que respeita aos problemas filosóficos, é preciso saber identificá-los, formula-
los, situá-los nas áreas da Filosofia, mostrar a sua importância e relacioná-los entre
si.
Teses
• As teses são as respostas aos problemas. É importante saber distinguir as diversas
teses alternativas que constituem respostas possíveis a um problema.
• As teses são proposições. As proposições são aquilo que é expresso por uma frase
declarativa com valor de verdade, isto é, por uma frase que é verdadeira ou falsa.
Duas frases exprimem a mesma proposição quando significam o mesmo. - Uma
frase pode exprimir proposições diferentes quando pode ter significados diferentes.
• As proposições condicionais tem a forma “Se P então Q”. A antecedente é “P” e
a consequente é “Q”.
Ø A antecedente e condição suficiente para a consequente.
Ø A consequente e condição necessária para a antecedente.
• As proposições bicondicionais tem a forma “P” se, e apenas se, “Q”.
Numa proposição deste género afirma-se que 'P' e condigao necessaria e suficiente para
'Q', ou seja, estabelece-se uma equivalencia entre 'P' e '”Q”.
• As proposições universais podem ser afirmativas ou negativas.
Ø A forma mais comum das primeiras e 'Todos os A sao B' e a forma mais
comum das segundas e “Nenhum A e B”.
Ø As proposições universais podem ser refutadas por contra-exemplos.
• As proposições podem ser consistentes ou inconsistentes entre si. - Se varias
proposições são consistentes entre si, então e possível que sejam todas verdadeiras. - Se
varias proposições são inconsistentes entre si, então pelo menos uma delas e falsa.
• No que respeita as teses filosóficos, e preciso saber identifica-las, formula-las,
compara-las e explicar a sua pertinência.
Conceitos
• Os conceitos são aquilo que os termos significam.
• As definições explícitas são uma das formas principais de clarificar conceitos. Uma
definição explícita satisfatória não e demasiado lata nem demasiado restrita. Numa
definição explícita aquilo que se pretende definir não pode ocorrer na expressão
definidora. - Numa definição explícita a expressão definidora não pode ser mais
obscura do que aquilo que se pretende definir.
• As caracterizações são outra forma importante de clarificar conceitos.
• No que respeita aos conceitos filosóficos, e preciso saber identifica-los, clarifica-los,
relaciona-los entre si e aplica-los.
Argumentos
• Um argumento é um conjunto de proposições em que uma delas (a conclusão) é a
tese defendida a partir das restantes (as premissas).
• Para avaliar um argumento e preciso:
- Determinar se as premissas são todas verdadeiras;
- Determinar se as premissas apoiam logicamente a conclusão.
• Um argumento valido e aquele em que as premissas apoiam logicamente a
conclusão.
• Um argumento sólido e valido e tem premissas verdadeiras. No que respeita aos
argumentos filosóficos, e preciso saber usa-los para defender e criticar teses, reconstitui-
los, avalia-los, confrontá-los e defender autonomamente posições teóricas com base neles.
Argumentação e lógica formal
Cerca de 90% dos doentes infectados com estreptococos recuperam um dia depois de
Ihes administarem penicilina.
Manana esta infectada com estreptococos.
Manana recebeu hoje uma injecção de penicilina.
Logo. Manana vai recuperar amanhã da infecção com estreptococos.
Estes argumentos não são dedutivamente válidos. Afinal, é possivel que as suas premissas
,
sejam verdadeiras e que, ainda assim, tenham uma conclusão falsa. Mesmo que todos os
animais com coragao analisados até hoje tenham rins, isso não exclui a possibilidade de
existirem algures animais com coração mas sem rins. E como 10% dos doentes infectados
não recuperam um dia apos a administração de penicilina. É possivel que Mariana se conte
entre eles.
Porém, se as premissas destes argumentos forem verdadeiras, é muito improvavel que as
respectivas conclusões sejam falsas. É por isso que estes argumentos são indutivamente
válidos
Quando estamos perante urn argumento indutivamente válido e aceitamos as suas
premissas, podemos rejeitar a sua conclusão sem cair numa inconsistência. Ainda assim,
parece não ser razoavel rejeitar a conclusão de um argumento indutivamente válido se
aceitamos as suas premissas, já que a verdade dessas premissas torna muito improvavel
a falsidade da conclusão.
Num argumento indutivamente válido existe uma relação de confirmação entre as
premissas e a conclusão. As premissas confirmam a conclusão com uma probabilidade
muito elevada. É deste modo que as premissas apoiam logicamente a conclusão.
Tipo E
Ø Nem uma única obra de arte e agradavel.
Ø Não ha obras de arte que sejam agradaveis. Transformação na forma canónica:
Ø Não existern obras de arte agradaveis. Nenhuma obra de arte é agradavel.
Ø Tudo aquilo que e uma obra de arte não é
agradavel.
Tipo I
Ø Existern animais carnivores.
Ø Há animais que são carnivoros. Transformação na forma canonica:
Ø Pelo menos um animal e carnivoro. Alguns animais são carnivoros.
Ø Certas coisas são animais e carnivoros.
Tipo O
Ø Existem filósofos gregos que não são geniais.
Ø Nem todos os filosofos gregos sao geniais. Transformação na forma canonica:
Ø Pelo menos um filosofo grego não é genial. Alguns filósofos gregos não são geniais.
Ø Há coisas que são filosofos gregos, mas que não
são geniais.
»
No silogismo 1, portanto, o termo maior é «animais , o termo menor e «cães» e o termo médio
»
e «mamjferos . E no silogismo 2 o termo major e «filósofos», o termo menor é
«portugueses» e o termo medio é «europeus».
As premissas de um silogismo são definidas em função do termo que nelas ocorre.
• A premissa maior de um silogismo é aquela em que aparece o termo maior.
• A premissa menor de um silogismo é aquela em que aparece o termo menor.
Para colocar um silogismo na sua forma padrao, é preciso apresentar as premissas pela
ordem correcta. A premissa maior deve estar sempre acima da premissa menor.
• Um silogismo é válido se, e apenas se, satisfaz todas as regras da validade silogistica.
As regras da validade silogistica distribuem-se por dois grupos: as regras para termos e as
regras para proposições. Existem três regras para termos e quatro regras para proposições.
Comecemos pelas primeiras.
Diz-se que um silogismo como este, apesar de parecer ter apenas três termos,
efectivamente inclui quatro. E que «bancos» tem um certo significado na premissa maior e
um significado diferente na premissa menor.
Esta regra exige, então, que os termos de um silogismo não sejam usados para exprimir
conceitos diferentes em cada uma das suas ocorrências. Se numa das premissas usamos a
palavra «bancos» num certo num certo sentido, então na outra premissa temos de usar
essa palavra no mesmo sentido. Isto nao acontece no argumento acima apresentado. Aliás,
podemos reformula-lo da seguinte maneira:
Com esta reformulação, torna-se inteiramente claro que não temos três termos, mas quatro:
«
«instituições financeiras», pecas de mobiliario», «bancos no sentido 1 da palavra» e «bancos
no sentido 2 da palavra».
A regra 3 é infringida duas vezes neste argumento. Como a conclusão é de tipo E, ambos os
termos estão distribuidos nela. Mas o termo «mamíferos» não está distribuido na premissa
menor, pois ai é sujeito,e é uma proposicao de tipo 0. Alem disso, o termo «seres vivos» nao
esta distribuido na premissa maior, ja que ai é predicado de uma proposição de tipo A.
Consideremos agora as regras para proposições.
4. Um silogismo não pode ter duas premissas particulares. Este silogismo e inválido
porque infringe a regra 4:
Alguns mamiferos são carnivoros. Alguns carnivoros são repteis. .•. Alguns repteis sao
mamiferos.
5. Urn silogismo nao pode ter duas premissas negativas. Este silogismo e inválido porque
infringe a regra 5:
Nenhum portugus eé espanhol. Alguns futebolistas não são espanhois. .•. Nenhum
futebolista e português.
Alguns cardiologistas são escritores. Todos os cardiologistas são medicos. .•. Nenhum
médico é escritor.
7. A conclusao tem de seguir a parte ou premissa mais fraca: se uma das premissas é
particular, a conclusao tambem tem de ser particular; se uma das premissas é
negativa, a conclusão tambem tem de ser negativa.
Nesta regra supõe-se, então, que as particulares sao mais «fracas» do que as universais e que as
negativas são mais «fracas» do que as afirmativas.
Este silogismo á inválido porque infringe a regra 7:
A regra 7 e infringida de duas formas neste argumento. Por um lado, a premissa maior e
particular mas a conclusão e universal. Por outro lado, a premissa menor é negativa mas a
conclusão é afirmativa.
Note-se que não existe qualquer convenção quanto a numeração das regras de validade
silogística. Dado que a numeração aqui adoptada é apenas uma entre muitas igualmente
aceitaveis, no exame nacional deve referir as regras pelo numero aqui indicado. Deve-se
”
responder, por exemplo, Este silogismo e inválido porque tem duas premissas particulares
:”
e nunca Este silogismo e invalido porque infringe a regra 4”.
Noções gerais
• Um argumento é dedutivamente valido se, e apenas se, é impossivel que tenha uma
conclusão falsa e premissas verdadeiras. Num argumento deste genero as premissas implicam a
conclusão.
• Estes termos podem estar ou não distribuidos. 0 termo sujeito está distribuido nas
proposições universas. O termo predicado está distribuido nas proposições negativas.
A validade de urn argumento formal depende unicamente da sua forma lógica. No capítulo
anterior ocupamo-nos de argumentos deste tipo. A validade de um argumento informal,
pelo contrário, não depende apenas cá sua forma lógica. Nesta secção vamos examinar
alguns géneros de argumentos informais.
Como estes exemplos tornam claro, os argumento por analogia tern geralmente esta estrutura:
dado que as coisas se assemelham significativamente (isto é, são analogas), e dado que uma
delas tem uma certa caracteristica ou propriedade, conclui-se que tambem a outra tem essa
mesma caracteristica ou propriedade. Os argumentos por analogia tambem não são
dedutivamente válidos. Aliás, as analogias sao classificadas frequentemente como uma
forma de indução, a par das generalizações e das previsões. A forga das analogias, tal
como a das generalizações é a das previsoes, não depende apenas da sua forma. Para
determinar em que medida as premissas de uma analogia confirmam a sua conclusão,
podemos recorrer a certos critérios. Um deles e o seguinte:
• Uma analogia não é válida se os objectos comparados não forem semelhantes nos aspectos
relevantes.
Com este critério, pode-se questionar o argumento 1, alegando que o universo não e
realmente como uma máquina, ja que existem diferenças significativas entre o universo e as
máquinas. Por exemplo, as máquinas desempenham uma função, mas não é óbvio que o
universo tenha uma função.
• Quanto maiores forem as semelhanças relevantes entre os objectos comparados nas
premissas, mais estas confirmam a conclusão.
A relevancia das semelhanças depende daquilo que esta em questão. Por exemplo, se
aquilo que está em questão é a eficacia de uma vacina nos seres humanos, as semelhanças
entre o nosso sistema imunitário e o de outros animais são relevantes. Em principio, quanto
maiores forem as semelhanças desse tipo entre os seres humanos e os animais de uma
certa espécie, maior será a probabilidade de uma vacina ser efiicaz nos seres humanos
caso se tenha revelado eficaz nesses animais.
3.1.3. Argumentos de autoridade
Comecemos por considerar dois argumentos de autoridade:
1. Platao e Descartes acreditavam na imortalidade da alma humana.
Logo, a alma humana e imortal.
2. As maiores organizações de defesa dos direitos dos animais afirmam que uma dieta
integralmente vegetariana é a mais saudavel.
Logo, uma dieta integralmente vegetariana é a mais saudavel.
A partir destes exemplos, torna-se fácil perceber o que caracteriza os argumentos deste
genero:
• Num argumento de autoridade conclui-se que uma determinada proposição é
verdadeira porque uma certa autoridade (um ou vários individuos, uma ou várias
organizações) defende que essa proposição é verdadeira.
Isto mostra que o argumento 1 é insatisfatorio. É verdade que Platão e Descartes foram
grandes filósofos que reflectiram profundamente sobre a imortalidade da alma humana. Por isso,
são uma autoridade competentente no que respeita a este assunto. Porem, muitos outros
filósofos igualmente reputados negaram que a alma humana seja imortal. Isto significa que
existem autoridades igualmente competentes que contradizem a opinião de Platão e de
Descartes sobre a imortalidade da alma, pelo que nao podemos tomar a sua opiniao como
uma justificagao satisfatória para acreditar que temos uma alma imortal.
Existe tambem uma condição de imparcialidade:
• A autoridade invocada tem de ser imparcial sobre o assunto em causa.
Isto mostra que o argumento 2 e insatisfatório. Se uma empresa tabaqueira declarasse que
o tabaco não faz mal a saúde, não levariamos a serio a sua posição, pois sabemos que
essa empresa não é imparcial, dado o seu interesse em vender tabaco. Do mesmo
modo, como as organizações de defesa dos animals estão interessadas em protegê-los
da exploração humana, não são uma autoridade fiável no que toca ao problema de saber
se e saudável come-los. Um argumento de autoridade mais satisfatório é o seguinte:
3. Os nutricionistas defendem que uma alimentação pobre em vegetais é pouco
saudavel. Logo, uma alimentação pobre em vegetais e pouco saudavel.
Assumindo que os nutricionistas são autoridades competentes e imparciais no que respeita
a nutrição, a premissa constitui efectivamente uma boa razão para aceitar a conclusão.
3.1.4. Entinemas
1.1. Ad hominem
Encontramos esta falácia no seguinte argumento:
Defendes que as touradas devem acabar porque não passas de um intelectual suburbano
desligado da vida rural. Mas as touradas não devem acabar.
Falácias ad hominem consistem em ataques pessoais. Para mostrar que uma certa
proposição e falsa ataca-se quem defende que ela é verdadeira. Em vez de se
apresentarem verdadeiras razões para aceitar a conclusão, tenta-se desacreditar a pessoa
que rejeita essa conclusão, descrevendo-a em termos desfavoráveis. Resumindo, ataca-se
a pessoa quando se devia refutar aquilo que ela defende.
2.2. Ad misericordiam
Comete-se esta falácia no seguinte argumento:
Se o meu trabalho receber uma classificação negativa, ficarei deprimido e serei repreendido.
Logo, o meu trabalho merece uma classificação positiva.
Numa falacia post hoc as premissas dizem-nos que um acontecimento A ocorreu depois de
um acontenento B, extraindo-se daí a conclusão de que existe uma relação causal entre A e
B, mais precisamente a conclusao de que B é a causa de a A.
Ora, as inferências deste género são inválidas, pois do simples facto de uma coisa ter
ocorrido depois de outra não se pode concluir que a segunda é causa da primeira. Pode ser
verdade que as causas são sempre anteriores aos efeitos, mas não basta que exista uma
relação de precedencia temporal entre dois acontecimentos para que exista uma relação
causal entre eles. O simples facto de ter chovido depois de as pessoas terem rezado para
que chovesse não significa que tenha chovido por causa das orações.
A designação completa desta falacia é post hoc ergo propter hoc (não é preciso
memorizar), o que quer dizer «depois disso, logo, por causa disso».
Este argumento visa provar a existencia de Deus a partir de três premissas. Porém, na
primeira premissa já está implicita a afirmação de que Deus existe - se a Biblia for
realmente a palavra de Deus, então Deus existe. Portanto, neste argumento pressupõe-se
numa das premissas a conclusão que se pretende estabelecer.É isso que faz deste
argumento uma petição de princípio. Comete-se esta falácia quando se pressupõe
indevidamente nas premissas aquilo que se quer provar com o argumento.
A petição de principio e conhecida tambem por «falacia da circularidade». Esta designação
deve-se ao facto de as petições de princípio conduzirem a um círculo lógico do qual não se
consegue sair. Para ilustrar esta circularidade, consideremos um diálogo imaginario que
dramatiza o argumento precedente:
- Por que pensas que Deus existe?
- Porque a Biblia é a palavra de Deus, e sendo assim é verdadeira, e na Biblia está escrito que Deus
existe.
- Mas por que pensas que a Biblia é a palavra de Deus?
- Porque Deus existe e é o seu autor.
- Mas por que pensas que Deus existe?
- Porque a Biblia é a palavra de Deus, e sendo assim e verdadeira, e na Biblia está escrito que Deus
existe. (Etc.)
Deparamo-nos aqui com um «circulo vicioso».
3 . 3 . 2 . M a n i p u l a p a o e persuasao
A retórica proporciona um conjunto de técnicas para persuadir as pessoas. Aquele que
domina essas técnicas possui assim um certo poder, o qual, em princípio, tanto pode ser
mal usado como bem usado. Na verdade, pode-se distinguir dois usos da retórica: a
manipulação e a persuasão racional. Para diferenciar estas duas formas de usar a retórica,
comecemos por observar que um auditório é sempre constituido por pessoas e que as
pessoas são racionais.
Ou seja, as pessoas tern a capacidade de raciocinar e por isso são sensiveis a argumentação.
Se perceberem que uma certa conclusão se segue de premissas que já aceitam, em principio
estarao dispostas a aceitá-la. Porém, as pessoas não são perfeitamente racionais. Muitas
vezesraciocinam mal, sobretudo quando se veêm perante raciocinios especialmente
enganadores - as falacias. Além disso, têm preconceitos de diversos géneros - por exemplo,
“preconceitos religiosos, sexistas ou racistas”. Em suma, um auditório é constituido por
pessoas que têm uma racionalidade limitada. Podemos esclarecer a diferença entre
manipulação e persuasão racional a partir desta ideia.
Os sofistas, entre os quais se destacaram Protágoras (c. 490 - c. 420 a. C.) e Górgias (c. 483 -
3 7 6 a C.), eram professores que ensinavam retórica (entre outras coisas) àqueles que podiam
pagar os seus serviços. Ao aprenderem retórica, os jovens ficavam em melhores condições
de manipular a opiniao publica e, consequentemente, de conseguir poder na sociedade
democrática.
O ensino dos sofistas foi fortemente criticado por Platão (c. 429 a. C. - 347 a. C.). Na
verdade, Platão opôs à retorica (ou, pelo menos, à retorica no seu use manipulador) a
actividade filosófica. Segundo Platão, ao passo que o sofista ensina a conquistar o poder
pela persuasão, apoiando-se nas opinioes populares, o filósofo procura o saber, visa
descobrir a verdade. Aristóteles criticou tambem muita da retorica da sua epoca mas
defendeu que esta pode ser bem usada.
Resumo do capitulo
Arguments informatics
Fallacies informatics
Discourse argumentative
• A retórica é a arte de persuadir através do discurso. O retor ou orador recorre as
técnicas da retórica para obter a adesão de um certo auditório as suas perspectivas.
• Segundo Aristóteles, a retórica é uma arte que não tem um objecto ou assunto
determinado. As suas técnicas permitem que se persuada um auditório a respeito de
qualquer assunto. Mas a retórica exerce-se num âmbito específico: o do discurso publico.
• Aristóteles distingue três meios de persuasão na retórica. A persuasão pode assentar:
- No carácter do orador (ethos);
- No estado emocional do auditório (pathos);
- Na própria argumentação (logos).
• A argumentação retórica difere significativamente da demonstração.
- As demonstrações são argumentos dedutivamente válidos cujas premissas são
verdades estabelecidas.
- Na argumentação retórica aceitam-se premissas meramente prováveis, desde que
pareçam verosímeis ao auditório. Além disso, a conclusão dos argumentos retóricos não
é deduzida explicitamente das premissas. De modo a facilitar a adesão do auditório,
recorre-se a exemplos isolados e concebern-se entinemas.
• Um auditório é constituído por pessoas cuja racionalidade é imperfeita ou
limitada. O orador deve conhecer as limitações do auditório que visa persuadir.
• A retórica pode ser usada para manipular as pessoas. Quando faz este uso da retórica, o
orador tenta tirar partido das fraquezas do auditório de modo a persuadi-lo de uma forma
enganadora.
• Mas a retórica pode também ser usada para facilitar a persuasão racional. Quando
faz este uso da retórica, o orador tenta suplantar as limitações do auditório,
argumentando com clareza e esforçando-se por persuadi-lo com base em razões, sem
manobras enganadoras.
• Nas democracias da Grécia Antiga as decisões politicas eram tomadas
publicamente. Por isso, era vantajoso dominar as técnicas da retórica. Os sofistas
ensinavam essas técnicas aos seus alunos, preparando-os para a vida política. Platão
criticou a retórica. Denunciou o seu use manipulador e opô-la a filosofia.
A filosofia tem em vista o conhecimento. Ao filósofo interessa saber a verdade, saber
como as coisas são. Por isso, na actividade filosófica a argumentação subordina-se a este
fim.
Análise do conhecimento
Conhecimento proposicional
«
Quando perguntam 0 que é o conhecimento?», os filósofos geralmente estão interessados em
esclarecer apenas a natureza do conhecimento proposicional. A perspectiva que vamos examinar
agora, apresentada por Platão no diálogo Teeteto, pode ser vista como uma definição ou
uma análise deste conceito de conhecimento. Note-se que no Teeteto, Platão não defende esta
definição. Ela é introduzida neste diálogo, mas acaba por ser colocada perante objecções, que ficam
por superar. Porém, dado que foi Platão quern apresentou a primeira vez a definição tradicional
de conhecimento, não deixa de ser apropriado designá-la por «platónica».
O ojectivo da análise tradicional é o de indicar as condições em que qualquer sujeito, que
podemos designar pela letra S, tem conhecimento cujo objecto é uma proposição P. Assim,
»
uma forma precisa de formular o problema «O que e o conhecimento? é a seguinte:
• Em que circunstâncias S sabe que p?
Queremos saber, portanto, em que condições se pode dizer que um sujeito tem conhecimento
“
proposicional. Por exemplo, se S for João e p for a proposição expressa pela frase Beethoven
compôs sonatas”, a frase dir-nos-á em que condições se pode dizer que João sabe que
Beethoven compôs sonatas. De acordo com a análise platónica, o conhecimento proposicional
envolve três condições fundamentais: uma condição de crença ou opinião (doxa); uma condição
de verdade (aletheia) e uma condição de justificação (logos). Desenvolvamos agora esta análise.
O conhecimento requer uma certa atitude do sujeito. Mais precisamente, se um sujeito tem
conhecimento proposicional, então acredita na proposição em questão. Isto leva-nos à seguinte
condição:
• Se S sabe que p, então S acredita que p .
Por exemplo, se Sara sabe que Saturno é um planeta, então acredita que Saturno é um
planeta. A crença é, portanto, uma condição necessária para o conhecimento. Mas nao é uma
condição suficiente: a crença não basta para o conhecimento; é preciso algo mais. Suponha-
se que Manuel acredita que Saturno á uma estrela. Poderemos dizer que ele sabe tal coisa? É
óbvio que não, já que é falso que Saturno seja uma estrela. Manuel pode julgar que sabe que
Saturno é uma estrela, mas está enganado a esse respeito. Ele sabe aquilo que julga saber.
Estes exemplos sugerem uma forma evidente de avançar na análise. Nem todas as crenças
constituem conhecimento; só as crenças verdadeiras podem resultar em conhecimento. Ou
seja, outra condição necessária para o conhecimento é a de que proposição em que se
acredita seja verdadeira. Chegamos a este resultado:
• Se S sabe que p, entao (1) S acredita que p e (2) é verdade que p.
Pelo que vimos até aqui, todo o conhecimento proposicional consiste em crenças ou opiniões
verdadeiras. Mas será que basta ter uma crença ou opinião verdadeira para possuir
conhecimento? Platão percebeu claramente que não, isto é, que nem todas as opiniões
verdadeiras constituem conhecimento. Imaginemos que Sara pergunta a Pedro que tipo de
astro é Saturno e que ele lhe responde que é um cometa. Porém, ela ouve mal a resposta
e fica a acreditar que Saturno é um planeta. Será que Sara sabe que Saturno é um
planeta? Ela tem aqui uma crença verdadeira, mas nao diríamos que sabe tal coisa, já que a sua
crença se deve apenas a um equívoco que, por mero acaso, a conduziu à verdade.
A questão que se coloca agora é a seguinte: o que tern de haver para que uma crença ou opinião
verdadeira constitua conhecimento? A resposta tradicional é a de que uma crença verdadeira só
constitui conhecimento caso se baseie numa justificaçao adequada. Por outras palavras, quando
acreditamos que uma proposiçao é verdadeira, só podemos dizer que sabemos que ela é verdadeira
se tivermos boas razões para acreditar nela. Ora, é precisamente isto que falta no caso de Sara, o
que nos leva a este avanço decisivo na análise:
• Se S sabe que p, entao (1) S acredita que p; (2) é verdade que p e (3) S tem uma
justificação para acreditar que p.
Isto significa que as condições 1, 2 e 3 são separadamente necessárias para o conhecimento
– se pelo menos uma delas não for satisfeita, não estaremos perante um exemplo de
conhecimento. De acordo com a análise platónica, as condições 1, 2 e 3 são também
conjuntamente suficientes para o conhecimento – se todas elas forem satisfeitas (isto é, se um
sujeito tem uma crença verdadeira justificada), então estamos seguramente perante um exemplo de
conhecimento. Resumindo, a análise tradicional que tem origem em Platão é a seguinte:
• S sabe que p se, e apenas se,
(1) S acredita que p;
(2) p é verdadeira;
(3) S tem uma justificação para acreditar que p.
Por exemplo, se uma pessoa sabe que Saturno é uma estrela, então tem a crença verdadeira
justificada de que Saturno é uma estrela, e se tem essa crença verdadeira justificada, então sabe
tal coisa.
4 . 2 . C o n h e c i m e n t o a posteriori e a priori
Antes de avançarmos para o segundo problema deste capítulo, temos de distinguir duas
espécies de conhecimento proposicional.
O conhecimento a posteriori (ou conhecimento empírico) é aquele que depende da
experiência, seja ela sensorial ou introspectiva. A experiência sensorial advém dos nossos
sentidos (visão, audição, tacto...), os quais nos colocam em contacto com o mundo exterior,
com aquilo que existe fora de nós. A experiencia introspectiva advem daquilo que encontramos
dentro de nos (emoçoes, desejos, dores...).
O nosso conhecimento a posteriori é constituído por crenças que só podemos justificar se
recorrermos a dados empíricos, isto é, a informaçao que nos é fornecida pelos sentidos ou pela
introspeção. O conhecimento facultado pelas Ciências da Natureza e pelas Ciências
Humanas e a posteriori e o mesmo se pode dizer de muito do conhecimento que obtemos
todos os dias. As seguintes afirmações ilustram o conhecimento a posteriori:
• Estão três cadeiras nesta sala.
• Ontem estive profundamente triste.
• O 25 de Abril pôs fim a guerra colonial.
• Nem todos os cisnes sao brancos.
• Doí-me imenso o braço.
• O universo está em expansão desde o Big Bang.
As proposições que estas frases podem exprimir são a posteriori, pois não podemos
saber se são verdadeiras sem recorrer a dados empíricos.
4.2.1. Empirismo
Os empiristas, entre os quais se inclui Hume, são cépticos quanto ao conhecimento a
priori. De um modo geral, não negam inteiramente a existência deste conhecimento, mas
pensam que ele se circunscreve à logica, à matemática e às verdades meramente
linguísticas. Os empiristas declaram que a lógica, a matemática e todas as afirmações que
são verdadeiras por definição nada nos dizem realmente sobre o mundo. Pensam,
portanto, que não existe conhecimento a priori dos factos do mundo, ou seja, que todo o
conhecimento factual é a posteriori ou empírico.
4.2.2. Racionalismo
Os racionalistas, entre os quais se inclui Descartes, geralmente não negam que exista
conhecimento a posteriori, mas pensam que, recorrendo unicamente à razão ou ao
pensamento, podemos obter conhecimento factual genuíno. Por exemplo, muitos
racionalistas pensam que podemos saber a priori que Deus existe ou que a mente é
distinta do corpo. Os racionalistas supõem frequentemente que o conhecimento a priori,
por oposição ao conhecimento empírico, assenta em justificações certas ou infalíveis.
Descartes tem o objectivo de mostrar que os cépticos estão enganados. Pensa que, se
seguirmos o método que nos propõe, poderemos mesmo ficar com um conhecimento
certo, isto é, infalivelmente justificado. A epistemologia de Descartes (ou cartesiana) é
desenvolvida em várias obras, sendo de destacar o Discurso do Método (1637) e as
Meditações sobre a Fiiosofia Primeira (1641).
Segundo Descartes, para obtermos a certeza temos de encontrar um fundamento
inteiramente para o conhecimento. Por outras palavras, temos de encontrar crenças ou
convicções que não possam ser colocadas em dúvida, a partir das quais seja possível
justificar infalivelmente outras crenças ou convicções. Como haveremos de encontrar esse
fundamento seguro? Recorrendo à dúvida, sugere Descartes. Comecemos por examinar
as nossas crenças, tentando determinar se podemos colocá-las em dúvida. Rejeitemos
todas as nossas crenças em que possamos imaginar a menor dúvida – talvez algumas delas
sejam verdadeiras, mas, como não resistem aos argumentos dos cépticos, não podem
servir de fundamento para o conhecimento, pelo que devemos tratá-Ias como se fossem
falsas. É nisto que consiste a dúvida metódica: vamos tentar colocar em dúvida as nossas
crenças, rejeitando provisoriamente todas aquelas que não sejam inteiramente indubitáveis.
Se descobrirmos que certas crenças resistem a todo e qualquer argumento céptico, poderemos
considerá-Ias certas ou indubitáveis e tomá-Ias como fundamento para o conhecimento. O
recurso à dúvida é assim um meio para chegar à certeza.
Descartes começa por apresentar argumentos cépticos para duvidarmos de todas as
nossas crenças se baseiam na experiência empírica. Um desses argumentos parte da
ideia de que os nossos sentidos sao completamente fiáveis:
Os nossos sentidos enganam-nos em algumas ocasiões. Como é imprudente confiar
naqueles que nos enganam nem que seja uma só vez, devemos rejeitar todas as nossas
crenças empíricas, pois é possível que estas sejam falsas.
Temos também o argumento do sonho:
Nunca podemos distinguir por sinais completamente seguros o sono da vigília. Assim, é
possível que estejamos a sonhar quando nos julgamos acordados e, portanto, talvez tudo
aquilo que pensamos estar a observar não passe de uma ilusão.
Estes argumentos sugerem que tudo aquilo que julgamos conhecer atraves dos sentidos é duvidoso
e que, portanto, as nossas crenças empíricas ou a posteriori não podem servir de fundamento
para um conhecimento certo. Mas podemos também colocar em dúvida crenças a priori, como
as que temos na área da matemática, que nos parecem completamente certas. Descartes
pensa, na verdade, que mesmo uma crença como a de que 5 + 7 = 12 não é indubitável.
Para mostrar que um céptico poderia colocar em questão as crenças deste género, Descartes
introduz o argumento do génio maligno, o qual também nos permite questionar todas as
crenças empíricas, tendo por isso um alcance mais vasto do que os argumentos anteriores.
O génio maligno é uma espécie de deus enganador – um ser extremamente poderoso e
malévolo que está empenhado em fazer-nos viver na ilusão. Sem que o soubessemos, este
ser poderia controlar os nossos pensamentos e fazer-nos cometer os erros de raciocínio
mais elementares. Ora, se existir um génio maligno, mesmo na matemática seremos
induzidos sistematicamente em erro, e tudo aquilo que julgamos existir à nossa volta não
passará de uma ilusão. (Estaremos tão iludidos como a maioria dos seres humanos do filme
Matrix.) Descartes não está a dizer-nos que existe um génio maligno – está apenas a
dizer-nos que não podemos excluir à partida a possibilidade de esse ser existir, e que, se
ele existir, quase tudo aquilo em que acreditamos será falso. Assim, quase tudo aquilo em
que acreditamos admite alguma dúvida.
4.3.2. O cogito
Ainda que quase nenhuma das nossas crenças seja indubitável, Descartes pensa que há
algo de que não podemos duvidar. Afinal, se estamos a colocar as nossas crenças em
dúvida, estamos a duvidar, e duvidar é uma forma de pensar. E, se estamos a pensar,
então existimos. Cada um de nós pode então afirmar com toda a segurança:
∎ Eu penso, logo existo.
Esta afirmação é conhecida por cogito. Para Descartes, o cogito constitui o fundamento
certo do conhecimento, pois nem mesmo um génio maligno poderia enganar-nos no que
respeita a nossa própria existência. Repare-se que o cogito nos assegura apenas da nossa
própria existência enquanto seres pensantes. A existência dos outros e a existência do
nosso corpo talvez sejam ilusões. À partida, cada um de nós pode ter apenas a certeza de
que é uma «substância» cuja natureza é o pensamento. O cogito proporciona um ponto de
partida seguro para o conhecimento. Mas como haveremos de avançar a partir do cogito?
Como poderemos chegar ao conhecimento do mundo exterior e saber que aquilo que
nos rodeia não é uma ilusão?
Descartes começa por sugerir uma explicação para a certeza que o cogito exibe. Estamos
absolutamente certos de que o eu penso, logo existo é uma verdade porque
compreendemos com toda a clareza e distinção que para pensar é preciso existir. Descartes
admite então a seguinte regra geral:
∎ É verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente.
Este é o critério das ideias claras e distintas. Se, como no caso cogito, temos uma percepção
intelectual completamente clara e distinta da ideia considerada, podemos ter a certeza de estar
perante uma ideia verdadeira.
Para esclarecer a relação que existe entre impressões e ideias, Hume propõe o princípio
da cópia:
∎ Todas as nossas ideias são cpias das nossas impressoões.
Por outras palavras, todas as nossas ideias têm uma origem empírica. Portanto, não
existem ideias inatas, ou seja, não existem ideias que o nosso entendimento ou intelecto
não tenha formado a partir da experiência. A experiência empírica fornece os materiais a
partir dos quais se geram todas as nossas ideias, mesmo as mais elaboradas e abstractas.
Uma das razões que Hume apresenta a favor do princípio da cópia é a seguinte: aqueles que
estão privados de certas impressões são incapazes de formar as ideias
correspondentes. Por exemplo, uma pessoa que seja cega de nascença não conseguirá
formar a ideia de azul, já que nunca teve qualquer impressão de azul.
O que dizer das ideias que não correspondem a qualquer impressão que tenhamos tido?
Por exemplo, podemos ter a ideia de cavalo azul, mas nunca ter observado um cavalo
azul. Hume sugere que os exemplos deste género na verdade apoiam o princípio da
cópia. Nunca tivemos uma impressão de um cavalo azul, mas já observámos cavalos e já
observámos objectos azuis, pelo que temos a ideia de cavalo e a ideia de azul. A partir
destas ideias, podemos formar a ideia mais complexa de cavalo azul. Assim, ainda que
todas as nossas ideias simples sejam cópias directas de impressões, o nosso pensamento
combina imaginativamente essas ideias de modo a formar ideias mais complexas, que no
seu todo muitas vezes não correspondem a nada que tenhamos observado ou sentido
alguma vez.
4.4.3. Causalidade
Como descobrimos as causas e os efeitos daquilo que observamos? A resposta de Hume é a
seguinte:
• O nosso conhecimento das relações causais baseia-se na experiência.
Por outras palavras, não podemos descobrir a priori, recorrendo unicamente ao pensamento,
que certos objectos ou acontecimentos causam outros objectos ou acontecimentos. Para
justificar esta perspectiva, Hume afirma que os objectos ou os acontecimentos entre os quais
se verifica uma relação causal sao completamente distintos. Assim, se não tivermos o auxílio da
experiência, nunca poderemos descobrir que efeito terá um certo objecto ou acontecimento,
nem que causa o produziu. Suponha-se que arremessamos uma pedra para um vidro. Se nao
tivermos qualquer conhecimento empírico acerca do vidro, seremos incapazes de prever que o
arremesso terá o efeito de o quebrar. Do mesmo modo, se não nos basearmos na experiência
passada, nao conseguiremos inferir que um monte de cinzas foi causado por uma fogueira. Na
verdade, se um ser humano chegasse a este mundo com uma grande capacidade de
raciocínio, mas sem qualquer experiência, não conseguiria fazer inferências causais – seria
totalmente incapaz de descobrir as causas e os efeitos daquilo que estivesse a observar.
O que estamos a dizer, então, quando afirmamos que existe uma relação causal
entre certos objectos cu acontecimentos? Hume dá-nos esta resposta:
• A causalidade consiste apenas numa conjunção constante entre géneros de
acontecimentos ou de objectos observáveis.
Consideremos uma relação causal entre dois acontecimentos ou objectos, A e B. Segundo Hume,
dizer que A causa B (ou que B é um efeito de A) corresponde a afirmar que os acontecimentos ou os
objectos do género de A estão constantemente conjugados corn os objectos ou acontecimentos
do genero de B. Por exemplo, se dissermos que o arremesso da pedra causou a quebra do
vidro, isto significa que aos arremessos suficientemente similares se seguem sempre quebras
similares. E a afirmação de que a fogueira causou as cinzas significa que aos objectos
suficientemente similares à fogueira se seguem sempre cinzas similares. Resumindo, as relações
causais consistern em meras regularidades observáveis. Em termos gerais, afirmar que A causa B
e dizer que sempre que ocorre ou existe algo do género de A a seguir ocorre ou existe algo do género
de B.
Contra a perspectiva de Hume, pode-se objectar que a causalidade não consiste em simples
regularidades empíricas, na mera conjunção repetida de dois géneros de acontecimentos ou de
objectos, pois aquilo que é essencial numa relação causal é a existencia de uma conexão
necessária entre causa e efeito. Por outras palavras, pode parecer-nos que a causalidade consiste
numa ligação entre dois objectos ou acontecimentos, mediante a qual um deles (a causa) tern um poder
que produz necessaria ou inevitavelmente o segundo (o efeito).
Em resposta a esta objecção, Hume procede a uma investigação da nossa ideia de conexão
necessária. Se esta é uma ideia genuina (isto é, se a expressão «conexão necessária»
significa alguma coisa), então, pelo princípio da copa, tem a sua origem nas nossas impressões.
A investigagao de Hume condu-lo primeiro a uma conclusão negativa:
• A ideia de conexão necessária não resulta dos nossos sentidos externos.
Observamos uma causa e a seguir observamos o seu efeito. Vemos assim que a causa e o
efeito estão conjugados, mas nunca vemos que estão conectados, isto é, nunca conseguimos
observar qualquer poder que faça a causa produzir necessariamente o efeito. Como surge,
então, a ideia de que existe uma ligação necessária entre os dois? A conclusão positiva de
Hume é a seguinte:
No que respeita a 1, importa observar que, segundo Hume, a crença na uniformidade da Natureza
subjaz todas as nossas inferências causais. Inferimos que as cinzas se seguirão à fogueira, ou
que o arremesso da pedra fará o vidro quebrar-se, porque acreditamos que a natureza é
uniforme, isto é, porque acreditamos que o seu curso não se vai alterar de um momento para o
outro e que as regularidades observadas no passado continuarão a verificar-se no futuro. Contudo,
Hume sugere que não temos qualquer justificação ou razão para acreditar na uniformidade da
Natureza. (Examinaremos o seu argumento a favor desta tese no próximo capítulo.) A nossa
crença na uniformidade da Natureza não é mais do que um fruto do hábito, de um certo “instinto”
que nos leva a esperar que a causas semelhantes se hão-de seguir efeitos semelhantes. Deste
modo, as nossas inferências causais parecem ser injustificadas, já que se baseiam numa crença
que não está justificada.
A crença na realidade do mundo exterior é a crença de que os objectos que nos rodeiam
são reais, isto é, existem independentemente das nossas percepções. Por exemplo, se
acreditamos que uma certa mesa que estamos a observar é real, então acreditamos que
esta continuará a existir quando já não estivermos a percepcioná-la – acreditamos que a
sua existência é independente da nossa mente. O realismo é a perspectiva segundo a
qual o mundo exterior é real, o que significa que muitos dos objectos que percepcionamos
têm esta existência independente.
Mas que relação existirá entre as nossas percepções e os objectos exteriores? Afinal, não
podemos confindir as primeiras com os segundos. Por exemplo, à medida que nos
afastamos de uma mesa as nossas percepções vão mudando, vemo-la cada vez mais
pequena, mas pensamos que a própria mesa permanece igual. Por isso, as nossas percepções
da mesa não são a própria mesa.
Hume sugere que o realista tem de encarar as percepções como representações dos
objectos exteriores. As nossas percepções da mesa representam a própria mesa, isto é,
são causadas por ela e assemelham-se a ela em alguns aspectos. (Para usar uma
imagem actual, podemos dizer que as percepções da mesa são uma espécie de fotografia
da mesa.) O realista aceita então a seguinte hipótese:
∎ As percepções dos sentidos são causadas por objectos exteriores que, embora sejam
O céptico moderado caracteriza-se por ter estas atitudes. Dado que está consciente das
limitações do entendimento humano, tem uma mente aberta ao mesmo tempo que rejeita
todas as pretensões ao conhecimento em questões demasiado distantes da experiência. «Se
nem sequer podemos apresentar uma razão satisfatória para acreditar, depois de mil experiências,
que uma pedra vai cair, ou que um fogo vai queimar», pergunta Hume, «como poderiamos nos dar
por satisfeitos quanto a qualquer decisão que viéssemos a tomar sobre a origem dos mundos e a
situação da Natureza, desde o início até ao fim da eternidade» (1748: 173)?
Resumo do capítulo
Estrutura do acto de conhecimento
• Tambem a existência de Deus é uma ideia clara e distinta. Deus existe porque:
- a ideia de um ser perfeito tem de ter sido causada por um ser perfeito;
• A teoria empirista de Hume parte de uma distinção entre dois tipos de percepções
ou conteúdos mentais: as impressões, que são as percepções mais vividas, e as ideias,
que sao as percepções mais ténues.
• De acordo com o princípio da cópia, todas as nossas ideias têm a sua origem em
impressões externas (dados dos sentidos) ou internas (sentimentos e desejos).
• Existem dois géneros de investigação: a investigação de relações de ideias e a
investigação de questões de facto.
• O conhecimento de relações de ideias é a priori e corresponde a proposições
que têm as seguintes características:
- são verdades necessárias (não podemos negá-las sem nos contradizermos);
- nada dizem sobre o que existe no mundo.
• O conhecimento de questões de facto é a posteriori e corresponds a proposições
que têm as seguintes caracteristicas:
- são verdades contingentes (podemos negá-Ias sem nos contradizermos);
- dizem respeito àquilo que existe no mundo.
• Raciocinar sobre relações de ideias é fazer demonstrações, as quais têm um carácter
dedutivo.
• Raciocinar sobre questões de facto é fazer inferências causais, as quais têm um
carácter indutivo.
• O nosso conhecimento das relações causais baseia-se na experiência.
• A causalidade consiste apenas na conjunção constante entre géneros de objectos
ou acontecimentos observáveis.
• Nunca observamos qualquer conexão necessária entre causa e efeito. A ideia de
conexão necessária tem origem num sentimento interno produzido pelo hábito.
• Todas as formas de cepticismo radical são indefensáveis:
- O cepticismo cartesiano é incurável. Se começarmos por desconfiar totalmente das
nossas faculdades, nunca conseguiremos estabelecer qualquer conclusão a partir do cogito.
- O cepticismo pirrónico é impraticável. Deixar de acreditar em tudo o que não
consigamos justificar, vivendo permanentemente na dúvida, é algo que está fora do
nosso alcance e que tornaria impossível a acção.
• Devemos adoptar um cepticismo mitigado. O cepticismo resulta das seguintes
conclusões:
- Somos incapazes de justificar a crença de que a Natureza é uniforme, a qual subjaz às
nossas inferências causais.
- Somos incapazes de justificar a crença de que o mundo exterior é real, pois não
conseguimos mostrar que as nossas percepções são causadas por objectos reais.
Estatuto do conhecimento científico
5.1. Conhecimento vulgar e conhecimento científico
O conhecimento vulgar corresponde ao senso comum. As fronteiras do senso comum são
muito indefinidas, pelo que nem sempre é facil dizer o que esta incluído neste género de
conhecimento. Seja como for, o senso comum abrange aquelas coisas que quase toda a gente
sabe, que nós vamos aprendendo desde muito cedo de uma forma quase inconsciente. As
seguintes proposições ilustram o conhecimento de senso comum:
• O metal derrete quando é aquecido.
• É mais seguro beber água depois de a termos fervido.
• O estrume fertiliza os solos.
• Os cães têm um faro apurado.
5.2.1. Verificabilidade
Uma proposição que pode ser verificada pela experiência é uma proposição que é
verificável. Elucidemos esta noção:
∎ A verificabilidade corresponde àquilo que admite uma comprovação conclusiva pela
experiência.
Por exemplo, a proposição «Existem corvos negros» é verificável, pois basta observar um
corvo negro para podermos concluir com toda a segurança que ela é verdadeira. Afinal,
de uma premissa como «Está aqui um corvo negro» pode-se deduzir validamente a
conclusão «Existem corvos negros».
Já a proposição «Todos os corvos são negros» não é verificável. Por muitos corvos negros
que já tenhamos observado, não podemos excluir a possibilidade de existirem algures
corvos de outra cor. Não podemos, portanto, deduzir que todos os corvos são negros a
partir da informação disponível. Por isso, a experiência não pode comprovar esta
proposição, pois esta poderá um dia revelar-se falsa. Muitas proposições universais têm
esta característica.
Contudo, admite-se geralmente que uma proposição como «Todos os corvos são
negros», apesar de não ser verificável, ainda assim parece ser confirmável. Elucidemos
também esta noção:
∎ A confirmabilidade corresponde àquilo que admite uma confirmação indutiva ou
5.2.2. Indutivismo
Existem muitas formas de indutivismo. A versão de indutivismo que vamos agora examinar
exprime a perspectiva comum ou popular do método científico, pelo que não representa
fielmente o pensamento de qualquer filósofo da ciência influente. Podemos resumir esta
perspectiva em três teses fundamentais:
1. A observação é o ponto de partida da investigação científica.
2. As teorias científicas são elaboradas mediante um processo de generalização indutiva.
3. Depois de a teoria ter sido elaborada, faz-se o seguinte:
a. tenta-se encontrar confirmações adicionais para a teoria;
b. usa-se a teoria na procura de generalizações indutivas mais vastas.
Elucidemos agora cada uma destas teses. Para esse efeito, tomemos como exemplo uma
teoria extraordinariamente simples, que se resume à seguinte lei científica:
• Toda a água sob pressão normal ferve a 100 °C.
A tese 1 exprime a ideia de que a observação precede a teoria. Antes de conceber
qualquer teoria, o cientista observa o mundo e regista uma grande quantidade de factos
observacionais. A sua observação deve ser totalmente pura ou isenta, isto é, o cientista
deve «observar as coisas como são», sem se deixar influenciar pelas teorias em que
acredita. O nosso investigador das propriedades da água começa, então, por aquecer
diversos recipientes com porções diferentes de água, e vai registando pacientemente a
temperatura a que cada uma dessas porções entrou em ebulição.
A tese 2 exprime a ideia de que a passagem da observação para a teoria se dá mediante
inferências indutivas. Os factos observacionais dizem respeito a casos particulares. Partindo
de premissas que descrevem esses factos, o cientista esforça-se por extrair conclusões
teóricas universais. Para o exemplo introduzido, a inferência indutiva é muito simples:
Cada uma das porções de água sob pressão normal que foram examinadas ferveu ao atingir
os 100 °C. Logo, toda a água sob pressão normal ferve a 100 °C.
Segundo o indutivismo, então, as proposições universais que captam leis da Natureza são
descobertas por indução. O cientista começa por observar o mundo e, quando dispõe de
informação suficiente, chega às teorias fazendo generalizações indutivas.
Depois de ter inferido que toda a água sob pressão normal ferve a 100 °C, o que faz o
nosso investigador? A tese 3 diz-nos que ele pode avançar de duas formas.
Em primeiro lugar, pode esforçar-se por encontrar mais casos particulares que confirmem
a sua teoria. Se, por exemplo, toda água que observou até ao momento foi fervida em
recipientes de barro, ele pode querer saber agora se a água também ferve a 100 °C
quando é aquecida noutros recipientes. Caso descubra que é esse o caso, a sua teoria
ficará confirmada num grau mais elevado, receberá apoio adicional da experiência.
Em segundo lugar, pode apoiar-se nos resultados alcançados para fazer novas
generalizações, esperarndo assim descobrir leis mais abrangentes e profundas. Suponha-
se que o cientista, também por indução descobre que a água ferve a temperaturas
diferentes quando está sob outras pressões. Reunindo todos os seus resultados, poderá vir
a descobrir uma lei mais abrangente e profunda que exiba a relação geral entre o ponto de
ebulição da água e a pressão existente.
Resumindo, o indutivista vê a ciência como um corpo de conhecimento solidamente assente
na observação. Todas as teorias científicas resultam de generalizações feitas a partir da
experiência e à medida que a ciência avança essas generalizações vão sendo cada vez
mais numerosas e abrangentes.
5.2.3. Criticas ao indutivismo
A versão de indutivismo que acabámos de considerar enfrenta objecções insuperáveis.
Podemos destacar duas dessas objecções:
1. Não existe observação pura.
2. As teorias científicas referem objectos que não são observáveis.
O indutivista diz-nos que a investigação científica assenta na observação pura, isto é, na
observação que conduzida será a influência de quaisquer teorias. Contudo, a observação pura
e impossivel. Sempre que registam aquilo que observam, os investigadores são influenciados
de diversas formas por teorias: têm certas expectativas teóricas, aceitam certos pressupostos
teóricos, confiam em certas teorias. Quanto mais a ciência avança, aliás, menos pura é a
observação. A observação científica envolve o recurso a muitos instrumentos, como
termómetros, telescópios e microscópios. Estes instrumentos são um fruto da própria inves-
tigação científica e, portanto, quem os utiliza esta a confiar nas teorias que os tornaram possiveis.
O indutivista diz-nos também que as teorias científicas são generalizações formadas a partir da
observação de casos particulares. Contudo, muitas teorias científicas referem objectos como
neutrinos e electrões, genes e moléculas de ADN. Estes objectos não são observaveis, ou pelo
menos não eram observaveis na altura em que foram concebidas as teorias que os referem.
Por isso, essas teorias não podem ter sido desenvolvidas mediante simples generalizações
indutivas baseadas na observação.
empírico.
Ou seja, quanto maiores são os riscos que uma teoria corre de ser refutada pela
observação, mais informativa ela é. Ora, é desejável que uma teoria científica nos dê
muita informação sobre o mundo da experiência. Por isso, é tambem desejável que uma
teoria seja falsificavel num grau elevado.
Resumindo, as teorias que não são falsificaveis nada dizem sobre o mundo que observamos
e, portanto, não são científicas, pois uma teoria científica tem de nos dar alguma informação
empírica. E as boas teorias científicas, além de serem falsificaveis, são-no num grau
elevado, pois isso significa que são ricas em conteudo empírico, que contêm informação
vasta e rigorosa sobre o mundo da experiência.
A tese 1 significa que o cientista não é alguém que começa por registar laboriosamente as
suas observações, tentando libertar-se de todas as suposições teóricas enquanto observa
o mundo. Popper insiste na impossibilidade da observação pura. Quando um investigador
observa o mundo, fá-lo de um modo selectivo, pois só lhe interessa observar aquilo que é
relevante para resolver os problemas que motivam a sua investigação. Assim, a
investigação científica parte de problemas. E aquilo que um cientista vê como um
problema depende frequentemente das teorias que ele já aceita ou que são aceites na sua
época.
Para ilustrar a perspectiva de Popper com um exemplo muito simples, imaginemos um
médico do passado. Ele quer saber como evitar que os marinheiros morram de escorbuto
nas suas longas viagens. O problema «Qual é a causa do escorbuto?» é, então, o ponto de
partida da sua investigação.
A tese 2 diz-nos que a concepgao de uma teoria científica, tal como a criação de uma obra
de arte, nãoo obedece a uma «lógica determinada». Uma teoria científica pode ter sido
inspirada por um sonho, por uma associação de ideias inesperada, pela descoberta de
um facto intrigante ou por outra coisa qualquer. As teorias surgem assim como meras
conjecturas, isto é, como hipóteses sugestivas. Popper defende que as boas teorias
científicas são conjecturas ousadas, pois tem um grau elevado de falsificabilidade, o que
significa que se expõem a um grande risco de serem refutadas.
Retomando o nosso exemplo, imaginemos que, depois de várias tentativas falhadas de
resolver o seu problema, o médico visita um paciente que sofre de escorbuto e, para sua
surpresa, constata que ele está melhor. Uns dias depois, recorda-se inesperadamente de
ter reparado que ele comia muita fruta, sobretudo canjas, e assim acaba por conceber esta
conjectura: o escorbuto é provocado por uma alimentação pobre em fruta e pode ser
evitado com a ingestao de laranjas.
Obviamente, não basta propor hipoteses ousadas para fazer avançar a ciência.
A tese 3 diz-nos que depois é preciso testar essas hipóteses, isto e, pô-las à prova para
ver se resistem às tentativas que fazemos para as refutar. Para testar uma hipótese ou
teoria, é preciso deduzir previsões empíricas a partir dela confrontá-las com a observação.
Se as previsões se revelarem incorrectas, a teoria será refutada e será preciso procurar
uma hipótese melhor para resolver o problema. E se as previsões forem correctas?
Nesse caso, diz Popper, tudo que podemos dizer é que, até ao momento, a teoria não foi
refutada, pelo que talvez seja verdadeira. Não podemos dizer que ela foi confirmada pela
experiência, já que, como vimos, Popper pensa que as hipóteses científicas não admitem
qualquer verificação ou confirmação empírica.
No caso do médico, ele poderia testar a sua conjectura começando por raciocinar desta
forma:
Suponha-se que o escorbuto é provocado por uma alimentação pobre em fruta e que
pode ser evitado com a ingestão de laranjas. Nesse caso, se a tripulação de um navio
comer laranjas com frequência, existirão muito menos casos de escorbuto do que o
normal.
Esta última afirmação é a previsão empírica deduzida a partir da conjectura.
Suponhamos que, para determinar se esta previsão é correcta, incluem-se laranjas na
dieta dos marinheiros de uma certa embarcação. Se os casos de escorbuto não diminuírem,
a previsão terá fracassado, o que significa que a conjectura é falsa. E se a previsão se
revelar correcta? Segundo Popper, isso não comprova nem confirma a conjectura do
médico, mas mantém-na credível. É razoável continuar a aceitá-la, pois talvez seja
verdadeira. Até ao momento, resistiu aos testes empíricos a que a sujeitamos.
Popper usa o termo, «corroboração» para se referir ao sucesso das teorias. Uma teoria
que superou todas as tentativas de refutação esta corroborada pela experiência. Isto
significa que ela teve um bom desempenho no passado, mas que nada podemos dizer
sobre o seu futuro.
Note-se que a corroboração da conjectura do médico não significa que a investigação
tenha chegado ao fim, pois a sua teoria suscita novos problemas, nomeadamente o de
saber por que motivo a ingestão de laranjas evita o escorbuto. Uma teoria cientifica é uma
resposta a certos problemas. Mas ela própria suscita novos problemas, geralmente mais
profundos, os quais requerem novas conjecturas e novas tentativas de refutação. A ciência
vai assim progredindo indefinidamente.
Embora nunca possamos estar certos de ter encontrado uma teoria verdadeira, a experiência
permite-nos descobrir que certas teorias são falsas. Rejeitando as teorias falsas, vamo-nos
aproximando cada vez mais de uma imagem objectivamente verdadeira do mundo.
Isto significa que, numa situação em que dois paradigmas se confrontam, não se pode compara-
los objectivamente de modo a concluir que um deles é superior ao outro. Os paradigmas não podem
ser escolhidos mediante uma comparação objectiva, realizada a partir de critérios completamente
neutros.
Kuhn pensa, portanto, que a objectividade cientifica é muito limitada. A ciência faz-se sempre à luz de um
certo paradigma e a mudança de paradigma que ocorre numa revolução científica é comparável a uma
conversão religiosa. Os cientistas aceitam ver o mundo de uma nova forma e fazer ciência de acordo
com novas regras, mas são incapazes de oferecer uma justificação completamente racional e objectiva para a
sua decisão.
A tese da incomensurabilidade dos paradigmas leva Kuhn a defender o seguinte:
∎ As mudanças de paradigma não envolvem uma aproximação à verdade.
Ou seja, como não podemos argumentar objectivamente a favor do novo paradigma, como não podemos
provar de uma forma objectiva que este é melhor do que o anterior, também não podemos dizer que o novo
paradigma está mais próximo da verdade, que nos dá uma imagem mais fiel ou mais correcta da realidade.
Por que pensa Kuhn que os paradigmas são incomensuráveis? Podemos distinguir duas razões
favoráveis a esta tese:
1. Os paradigmas são demasiado diferentes entre si para poderem ser comparados objectivamente.
2. Não existem critérios de escolha de teorias que nos permitam fazer uma comparação completamente
objectiva entre paradigmas.
Relativamente a 1, podemos dizer que, para Kuhn, os paradigmas diferem entre si como se fossem duas
obras de arte de épocas e estilos completamente diferentes. Cada paradigma tem os seus próprios
conceitos, os seus próprios problemas e os seus próprios procedimentos para observar o mundo. E
isto que torna impossível compará-los objectivamente.
Vejamos agora o que Kuhn tem a dizer a respeito de 2.
O alcance de uma teoria corresponde à sua abrangência. Por exemplo, uma teoria que
explique todos géneros de movimento tem um alcance mais vasto do que uma teoria que
explique apenas o movimento dos planetas. De acordo com o critério 4, se uma teoria é
mais abrangente do que a sua rival, isso constitui, a razão para a escolhermos.
Por fim, a fecundidade de uma teoria e a sua capacidade para conduzir a novas descobertas
científicas. Segundo o critério 5, se uma teoria é mais fecunda do que a sua rival, isso constitui uma
razão para a escolhermos.
• Uma proposição ou uma teoria a verificável se, e apenas se, for possivel
comprovada recorrendo à experiência.
• A comprovação empírica de uma proposição ou de uma teoria consiste em deduzir
a sua verdade a partir da experiência.
• Uma proposição ou uma teoria é confirmável se, e apenas se, for possível
confirmá-la (isto é, verificá-la parcialmente) recorrendo à experiência.
• A confirmação empírica de uma proposição ou de uma teoria consiste em
mostrar a partir da experiência, por indução, que provavelmente ela é verdadeira.
• Uma proposição ou uma teoria é falsificável se, e apenas se, é possível descobrir
que ela é falsa (isto é, refutá-la) através da experiência.
O problema da indução
• As inferências indutivas pressupõem o princípio da indução, segundo o qual a Natureza é
uniforme.
• O problema da indução é o problema de justificar este princípio. Para o fazer, é
preciso refutar o argumento céptico de Hume que visa mostrar que ele é injustificável.
• Segundo Hume, o princípio da indução não pode ser justificado a priori, pois não é
uma verdade necessária. E também não pode ser justificado a posteriori, pois qualquer
tentativa de o justificar desta forma consistiria num argumento indutivo, o que conduziria a uma
petição de princípio. Logo, o princípio da indução não pode ser justificado. Logo, as inferências
indutivas são injustificáveis.
• Popper aceita o argumento de Hume. Mas pensa que, como a ciência não precisa
de indução, este argumento não afecta a credibilidade do conhecimento científico. Deste
modo, o problema da indução fica «dissolvido».
O problema da demarcação
• Poper rejeita estes dois critérios, pois pensa que ambos excluem da ciência as leis que
os cientistas propõem nas suas teorias.
- Como têm um caracter universal, essas leis não podem ser comprovadas pela
experiência, já que poderão sempre surgir contra-exemplos.
- E as leis nem sequer podem ser confirmadas pela experiência. Como a indução é
sempre inválida, a experiência nunca confirma seja o que for.
• Para resolver o problema da demarcação, Popper sugere o criterio da falsificabilidade,
segundo o qual uma teoria é cientifica se, e apenas se, é falsificavel. Uma teoria cientifica é aquela
que está sempre sujeita à possibilidade de refutação pela experiência.
• 0 critério da falsificabilidade não exclui as leis, pois estas podem ser refutadas pela
experiência.
• É desejavel que as teorias cientificas sejam falsificaveis num grau elevado, pois isso
significa que são ricas em conteudo empirico, isto é, que nos dizem muito acerca do mundo que
observamos.
A objectividade da ciencia