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1.1.

Problemas
A filosofia é uma actividade de discussão de problemas. Se não percebermos ou se
perdermos de vista os problemas que estão a ser discutidos, nunca conseguiremos
compreender satisfatoriamente as matérias os autores estudados.
1.1.1. Exemplos de problemas filosóficos
A filosofia abrange muitos temas diferentes, como a arte, a política, a religião, a ciência, a
acção humana e a ética. Por isso, os problemas filosóficos são muito diversificados, mas
têm em comum o facto de não poderem ser resolvidos pelos métodos das ciências. Eis
alguns exemplos de problemas filosóficos:
• 0 que e agir livremente?
• Será que o bem e o mal dependem da sociedade?
• 0 que e o conhecimento?
• Será que Deus existe?
• Qual é o valor da arte?
• O que tem de especial as teorias científicas?
• O que é uma sociedade justa?
Nem todos os problemas filosóficos são imediatamente compreensíveis e mesmo estes
precisam de ser esclarecidos. Por exemplo, quando perguntamos o que é o conhecimento,
a que género de conhecimento nos estamos exactamente a referir? E quando perguntamos
se Deus existe, o que entendemos ao certo por Deus? Esclarecer os problemas a discutir é
uma parte importante da actividade filosófica.

1.1.2. Competências relativas a problemas


As competências a avaliar no exame que dizem respeito a problemas filosóficos são as
seguintes:
- Identificar problemas filosóficos num texto;
- Formular problemas filosóficos;
- Situar problemas filosóficos nas áreas da filosofia;
- Mostrar a importância de um problema filosófico;
- Relacionar problemas filosóficos entre si.

Para identificar um problema, basta apontar a sua designação filosófica habitual. Formular
um problema, pelo contrário, exige que o apresentemos com clareza e rigor. A forma mais
natural de o fazer é através de uma pergunta, mas isso não é obrigatório.
Tomemos como exemplo o chamado «problema do mal». Quando se afirma «Este texto é
sobre o problema do mal», estamos a identificá-lo num texto. Para o formular, poderia apresentá-lo
de uma destas formas:
• Se o poder de Deus não tem limites e Ele é sumamente bom, por que razão existe tanto mal no
mundo?
• O problema do mal é a questão de saber se, num mundo em que há tanto mal,
pode existir um ser omnipotente e sumamente bom.
Situar este problema numa área ou disciplina filosófica é dizer que ele se inscreve na
filosofia da religião. O exame de 2006 incidirá em três disciplinas filosóficas principais: a
lógica, a epistemologia e a filosofia da ciência.
Mostrar a importância de um problema filosófico consiste em apresentar razões que o
tornem digno de atenção. Estas são duas formas de mostrar a importância do problema do
mal:

• O problema do mal é importante porque, se não conseguirmos resolvê-lo, ficaremos


com boas razões para acreditar que Deus não existe.
• Isto leva-nos a pensar na origem do mal e a procurar razões que o justifiquem, o
problema do mal é importante.
Relacionar dois problemas filosóficos entre si e mostrar o modo ou forma como respondemos a
uma: em implicações para a resposta ao outro. Consideremos esta posição sobre o problema do
mal:
• Se for verdade que a liberdade (ou livre-arbítrio) dos seres humanos implica a possibilidade
de praticar mal, então muito do mal que existe no mundo é uma consequência inevitável da
nossa capacidade de agir livremente. Por isso, esse mal não é da responsabilidade de Deus.
É uma maneira de relacionar o problema do mal com o chamado «problema do livre-arbítrio».
Quando relacionam problemas, não basta dizer que estão relacionados. O desafio é mostrar
como estão interligados.

2. Teses
As teses são as respostas aos problemas. (Podemos também usar termos como «teorias» ou
«perspectiva» para nos referirmos às teses.) Uma das características da filosofia é a ausência
de respostas consentidas para os problemas discutidos. Por isso, o estudo de um problema
filosófico envolve a identificação de várias teses rivais que se apresentam como respostas.
Por exemplo, se estivermos a discutir a existência de Deus, importa reconhecer as seguintes
teses:
1. Deus existe.
2. Deus não existe.
3. Não sabemos se Deus existe.
As teses mais importantes costumam ser designadas por «ismos». (As teses A, B e C
correspondem, colectivamente, ao teísmo, ao ateísmo e ao agnosticismo.) Os «ismos» são
abreviaturas muito convenientes mas não devemos usá-los sem saber exactamente que
tese designam, ate porque termos como «objectivismo» ou «realismo» podem exprimir teses
muito diferentes. Numa resposta de exame, importa deixar claro o que se entende pelo «ismo»
que se esta a usar.

2.1. Frases e proposições


As teses são proposições ou conjuntos de proposições.
∎ Uma proposição é aquilo que é expresso por uma frase declarativa que tem valor de verdade.

Deste modo, as frases que não são declarativas, como as perguntas e as ordens, não exprimem
proposições. Uma frase exprime uma proposição se, além de ser declarativa, fizer sentido
classificá-la como verdadeira ou falsa. As frases com valor de verdade são precisamente aquelas
que são verdadeiras ou falsas. Mesmo que não saibamos se são uma coisa ou outra. Perguntar
pelo valor de verdade de uma frase ou proposição que esta exprime é perguntar se ela é
verdadeira ou se é falsa.
Estas frases não exprimem proposições:
• Abre a porta!
• A porta está aberta?
• Não abras a porta.
Mas todas as seguintes exprimem proposições, já que faz sentido perguntar se são verdadeiras ou
falsas:
• A porta está aberta.
• A porta não esta aberta.
• Se a porta está aberta, então alguém a abriu.

As frases são a expressão linguística das proposições. Para clarificar um pouco a


relação que existe entre frases e proposições, importa sublinhar o seguinte:
1. Se duas frases diferentes significam o mesmo, então exprimem a mesma proposição.
2. Se uma frase pode significar coisas diferentes (isto é, se for ambígua), então pode
exprimir proposições diferentes.
Por exemplo, as frases «Lisboa fica a sul do Porto» e «O Porto fica a norte de Lisboa» exprimem a
mesma proposição. E a frase, «Miguel viu Joana com os binóculos» pode exprimir proposições
diferentes, pois tanto (pode querer dizer que Miguel viu Joana através de binóculos como que
Miguel viu Joana a usar binóculos).

1.2.2. Proposições condicionais


Algumas teses filosóficas consistem em proposições condicionais. Estes são exemplos
de proposições deste género:
• Se está a chover, então o chão está molhado.
• Se os animais não têm deveres, então não têm direitos.
• Se tudo o que acontece tem uma causa, então não temos livre-arbítrio.
• Se a indução não tem fundamento, então a ciência é irracional.
Como estes exemplos deixam claro, todas as proposições condicionais podem ser
expressas por frase: como a forma “Se P então Q”. Note-se que no lugar de “P” e de “Q”
encontramos também proposições. Por exemplo, a primeira proposição condicional da
lista é constituída pelas proposições expressas pelas frases: «Está a chover» e «O chão está
molhado». E a segunda é constituída pelas proposições expressas pelas frases «Os animais não
têm deveres» e, «os animais não têm direitos».
As proposições que constituem uma proposição condicional têm nomes diferentes. Numa frase com
a forma se P então Q, a primeira proposição, “P”, é a antecedente, e a segunda proposição,
“Q”, é a consequente.
• Numa proposição condicional a antecedente é uma condição suficiente para a
consequente.
Tomemos como exemplo a primeira proposição da lista. Esta significa que estar a chover
é uma condição suficiente para o chão estar molhado. Ou seja, basta ser verdade que
está a chover para também ser verdade que o chão está molhado.
• Numa proposição condicional a consequente é uma condição necessária para a
antecedente.
A primeira proposição da lista significa, portanto, que o chão estar molhado é uma condição
necessária para estar a chover. Ou seja, é preciso que seja verdade que o chão esta
molhado para que também seja verdade que esta a chover. (Se o chão não estiver
molhado, então não está a chover.)
Resumindo, numa frase com a forma «se “P” então “Q”», “P” é condição suficiente para
“Q” e “Q” é condição necessária para “P”.
Consideremos agora as seguintes proposições condicionais:
• Se João vai à praia, então vê o mar.
• Se João vê o mar, então vai à praia.
Estas proposições são diferentes. A primeira diz-nos que João ir à praia é uma condição
suficiente para ele ver o mar. E a segunda significa antes que João ir à praia é uma
condição necessária para ele ver o mar. Se ambas as proposições forem verdadeiras, João
ir à praia é, então, uma condição necessária e suficiente para João ver o mar. Para exprimir
esta ideia numa única frase, podemos dizer o seguinte:
• João vai à praia se, e apenas se, ele vê o mar.
Esta proposição é uma bicondicional. As proposições deste género podem ser expressas
por frase com a forma “P se, e apenas se, Q”. As bicondicionais são, por assim dizer,
condicionais que funcionam nos d o s sentidos. Algumas das teses filosóficas que iremos
discutir são bicondicionais. (Note-se que as duas proposições relacionadas numa
bicondicional não são designadas por «antecedente» e «consequente».)

o Numa proposição bicondicional estabelece-se uma relação de equivalência entre


as duas proposições que a constituem: cada uma delas é uma condição necessária e
suficiente para a outra.
Consideremos mais um exemplo de bicondicional:
§ Margarida passa o ano se, e somente se, estuda todos os dias.
Isto significa que se Margarida passa o ano, então estuda todos os dias, e que se
Margarida estuda todos os dias, então passa o ano. Portanto, Margarida passar o ano é
equivalente a ela estudar todos os dias. Cada uma das coisas é condição necessária e
suficiente para a outra.

1.2.3. Proposições universais


Muitas teses filosóficas consistem em proposições universais. A forma mais comum das
proposições universais afirmativas é ‘todos os A são B'. E a forma mais comum das
proposições universais negativas ‘Nenhum A é B'.
Estas são proposições universais afirmativas:
§ Todos os mamíferos são animais.
§ Todo o conhecimento tem origem na experiência.
§ Qualquer obra de arte imita a realidade.
E estas são proposições universais negativas:
• Nenhum ganso tem penas.
• Nenhum objecto físico ultrapassa a velocidade da luz.
• Nenhuma ideia e inata.
Consideremos agora algumas proposiçoes que não são universais:
• Algumas aves não voam.
• Algumas ideias são inatas.
• Sócrates era filósofo.
• A capital portuguesa é uma cidade antiga.
As duas primeiras proposiçoes são particulares, pois dizem respeito a apenas algumas
coisas. E as duas últimas são singulares, já que dizem respeito a um único indivíduo ou
objecto determinado.
As proposiçoes universais, sejam elas afirmativas ou negativas, envolvem condicionais. Isto
torna-se claro quando constatamos, por exemplo, que «Todos os mamíferos são animais»
e «Nenhum mamífero tem penas» significam, respectivamente, o seguinte:
• Para qualquer objecto x, se x é um mamífero, então x é um animal.
• Para qualquer objecto x, se x é um mamífero, então x não tem penas.
A primeira afirmação significa, então, que ser um mamífero é condição suficiente para ser um
animal – ou, o que é o mesmo, que ser um animal é condição necessária para ser um mamífero.
E a segunda afirmação significa que ter a propriedade de ser um mamífero é condição suficiente
para ter a propriedade de não ter penas.
Este é um exemplo de uma proposição universal que envolve uma bicondicional:
• Todas as aves, e apenas elas, têm penas.
Fazer esta afirmação é o mesmo que dizer duas coisas: que todas as aves têm penas e
que tudo aquilo que tem penas é uma ave. Por outras palavras, ter a propriedade de ser
uma ave é uma condição necessária e suficiente para ter a propriedade de possuir penas.

1.2.4. Contra-exemplos
Na actividade filosófica discutem-se as teses propostas. Tentamos defender certas
teses e refutar outras, isto é, mostrar que são falsas. Quando se pretende refutar uma tese
que consiste numa proposição universal, uma forma de o fazer é apresentar contra-
exemplos.

• Um contra-exemplo é um caso particular que contraria uma proposição universal.


Para apresentar um contra-exemplo a uma proposição universal afirmativa com a forma:
«Todos os A são B» indica-se algo que é A, mas que não é B.
Suponha-se que queremos refutar a afirmação «Todas as obras de arte imitam a
realidade». Uma sinfonia ou uma pintura abstracta podem servir de contra-exemplos aesta
afirmação, já que estes objectos são obras de arte, mas aparentemente não imitam a
realidade.
Para apresentar um contra-exemplo a uma proposição universal negativa com a forma
'Nenhum A é B', indica-se algo que é A, mas que também é B. Suponha-se que
queremos refutar a afirmação 'Nenhuma obra de arte imita a realidade’. Urn retrato ou
um romance histórico podem servir de contra-exemplos a esta afirmação, pois estes
objectos são obras de arte, mas aparentemente imitam a realidade.

1.2.5. Consistência
As proposições estão relacionadas entre si de várias formas. Uma das relações mais
importantes é a de consistência. O termo “coerência” também é usado para referir esta
relação.
• Um conjunto de proposições é consistente se, e apenas se, é possível que todas elas
sejam verdadeiras.
Se duas ou mais proposições são consistentes, isso significa apenas que são logicamente
compatíveis entre si. Por exemplo, as seguintes proposições são consistentes:
• Beethoven não compôs sinfonias.
• As obras musicais não são obras de arte.
• As sinfonias são obras musicais.
Sabemos que as duas primeiras proposições são falsas, mas não existe qualquer
incompatibilidade lógica entre as três proposições. É por isso que elas são consistentes
entre si. As seguintes proposições, pelo contrário, formam um conjunto inconsistente:
• As sinfonias de Beethoven não imitam a realidade.
• Todas as obras de arte imitam a realidade.
• As sinfonias de Beethoven são obras de arte.
Estas proposições são logicamente incompatíveis entre si. Nada precisamos de saber
sobre Beethoven, sinfonias ou obras de arte para concluir que é impossível que todas
estas proposições sejam verdadeiras. Pelo menos uma delas há-de ser falsa.
• Se um conjunto de proposições é inconsistente, então pelo menos uma delas é
falsa.
É por isto que temos de nos preocupar com a consistência. Quem defende teses
inconsistentes está de certeza enganado em algum aspecto, pois pelo menos uma dessas
teses é falsa. Mas importa não esquecer o seguinte:
• Se um conjunto de proposições é consistente, isso não garante que alguma das
proposições seja verdadeira.
Podemos ter conjuntos consistentes constituídos apenas por proposições falsas. Por isso, o simples
facto de alguém defender teses consistentes significa muito pouco, pois é possível que todos essas
teses sejam falsas.

1.2.6. Competências relativas a teses


As competências a avaliar no exame que dizem respeito a teses filosóficas são as seguintes:
- Identificar teses em argumentos ou em textos argumentativos;
- Formular teses que constituam ou se integrem em teorias da tradição filosófica;
- Comparar teses distintas;
- Explicar a pertinência de uma tese.
Identificar uma tese e reconhecer a proposição que está a ser defendida num certo lugar.
Quando se
afirma «Neste texto o autor defende que a ética é relativa á sociedade», esta-se a identificar
a tese no texto
em questao. Quando queremos identificar uma tese num texto, portanto, temos de nos
perguntar: o que está o autor a tentar defender aqui? Note-se que num texto pode existir
mais do que uma tese principal.
Certas teses ou perspectivas teêm uma grande influencia no pensamento filosofico. No que
respeita aos
problemas a estudar, é preciso ser capaz de formular com clareza e rigor as teses mais
»
importantes sob discussao. Por exemplo, se o problema for o da «origem do conhecimento ,
é preciso saber não só reconhecer que o racionalismo e o empirismo são duas respostas
rivais para este problema, mas também saber explicar correctamente o que caracteriza cada
uma destas respostas.
Comparar teses distintas e mostrar como estas se relacionam logicamente entre si. Por
exemplo, afirmar que o racionalismo e o empirismo são inconsistentes entre si e dizer que
entre estas teses existe uma relação de incompatibilidade lógica. Existem outras relações
importantes alem das de consistência e de inconsistência. Por exemplo, uma tese pode ser
mais geral do que outra. Ou uma tese pode apoiar outra. Para ilustrar estas duas relações,
consideremos as seguintes teses:
A. Todo o conhecimento parte da observação.
B. Todo o conhecimento cientifico parte da observação.
A tese A é mais geral do que a B, pois diz respeito a todo o conhecimento e não apenas ao
cientifico. Além
disso, a tese A apoia a B. Isto significa que, se a tese A for verdadeira, então a B também é
verdadeira.
Explicar a pertinência de uma tese é mostrar, por exemplo, se esta resolve ou não o
problema que se propõe resolver, ou se levanta novos problemas.
1.3. Conceitos
As proposições são constituídas por conceitos. Por exemplo, a proposição expressa pela
frase «Os mamíferos são animais» inclui os conceitos de mamífero e de animal. E a
»
proposição expressa pela frase «O conhecimento cientifico e incerto inclui os conceitos de
conhecimento científico e de incerteza.

1.3.1. Termos e conceitos


Do mesmo modo que usamos frases para exprimir linguisticamente as proposições, usamos
termos
• Para exprimir os conceitos que possuímos.
• Os conceitos são o significado dos termos.
Assim, se dois termos significam o mesmo, então exprimem o mesmo conceito. Por
,
exemplo, os termos «vermelho» e «encarnado > exprimem um único conceito. Um termo
ambíguo pode significar coisas diferentes pelo que pode exprimir conceitos distintos. Por
exemplo, o termo «banco» tanto pode designar uma peça de mobiliário como uma instituição
financeira, exprimindo em cada caso um conceito diferente.
1.3.2. Definições
A clarificação de conceitos e uma parte importante da actividade filosófica. Alias, muitas
questões filosóficas, corno «O que e o conhecimento?», «O que e uma obra de arte?» ou
«O que e uma religião?», são problemas de clarificação de conceitos especialmente
importantes.
Para elucidar o significado de um termo, para captar o conceito que este exprime, recorre-se
a definições. Existem diversos géneros de definições, mas as mais comuns são como as
que se seguem:
• Uma obra de arte e uma imitação da realidade.
• Um solteiro é um homem que não é nem nunca foi casado.
• Uma pessoa e um ser racional, autónomo e consciente de si.
Nas definições deste tipo estamos a dizer que o termo a definir (como «obra de arte»)
significa o mesmo outra expressão linguística (como «imitação da realidade») explicitamente
apresentada. Estas são, por definições explicitas.

• Para definir explicitamente C de uma forma correcta, é preciso apresentar condições


necessárias e suficientes para que algo seja C.

Por exemplo, se a primeira definição da lista acima apresentada for correcta, então um objecto
ser uma imitação da realidade é uma condição necessária e suficiente para que esse objecto
seja uma obra de arte. Por outras palavras, se essa definição for correcta, então as seguintes
proposições universais são verdadeiras:
• Todas as obras de arte são imitações da realidade.
• Todas as imitações da realidade são obras de arte.

Como vimos, podemos recorrer a contra-exemplos para avaliar as afirmações deste género.
Portanto, se encontrarmos casos particulares de obras de arte que nao sejam imitações da
realidade, ou casos particulares de imitações da realidade que não sejam obras de arte,
teremos mostrado que a definição é errada.
A ideia de que as definições explícitas têm de indicar condições necessárias e suficientes
pode ser apresentada desta forma:

• Uma definição explícita é errada se for demasiado lata e/ou demasiado restrita.

Uma definição demasiado lata abrange mais do que devia abranger. Se existem imitações da
realidade que não são obras de arte, então a definição de «obra de arte» acima apresentada é
demasiado lata.
Uma definição demasiado restrita abrange menos do que devia abranger. Se existem obras de
arte que não são imitações da realidade, então a definição de «obra de arte» acima
apresentada é demasiado restrita.
Outra regra comum para avaliar definições explícitas é a seguinte:
• Uma definição explícita é errada se aquilo que se pretende definir surgir na expressão
definidora. As definições que se seguem são erradas porque não obedecem a esta regra:
• Um acto livre é aquele que realizamos livremente.
• O conhecimento são as coisas que conhecemos.
• As divindades são os seres divinos.

Estas definições são insatisfatórias porque não elucidam o significado daquilo que se pretende
definir. Se queremos saber o que é um acto livre, de nada nos serve que nos digam que é um
acto que realizamos livremente. As outras duas definições têm o mesmo defeito.
Outra regra é a seguinte:
• Uma definição explícita é errada se a expressão definidora for mais obscura do que aquilo
que se pretende definir. As definições que se seguem são erradas porque não obedecem a
esta regra:
• Um acto livre é uma manifestação imediata da transcendência.
• O conhecimento é a fusão última entre sujeito e objecto.
• As divindades são os fantasmas do inconsciente humano.

Se não é muito claro o que é um acto livre, e ainda menos claro o que é uma manifestação
imediata da transcendência. Por isso, a definição não elucida o significado daquilo que queremos
definir, pelo que, à semelhança das outras duas, é insatisfatória.

1.3.3. Competências relativas a conceitos

As competências a avaliar no exame que dizem respeito a conceitos filosóficos são as seguintes:
- Identificar conceitos;
- Clarificar conceitos;
- Relacionar conceitos;
- Aplicar conceitos.

Identificar um conceito é apenas reconhecê-lo numa certa frase ou num certo texto. Quando se
estuda um texto filosófico é importante saber identificar os conceitos principais.
Clarificar um conceito é elucidá-lo, dizendo o que significa o termo que usamos para o exprimir.
As definições explícitas são uma das formas mais comuns de proceder a essa elucidação, mas
também podemos recorrer a caracterizações. Uma caracterização de C não nos dá condições
necessárias e suficientes para que algo seja C, mas apresenta-nos algumas características
importantes daquilo que é C. Por exemplo, para clarificar o conceito de filosofia por meio de uma
caracterização, indicamos algumas das características importantes da actividade filosófica. Na
verdade, este capítulo contém uma caracterização da actividade filosófica, mas não oferece
qualquer definição explícita do conceito de filosofia.
Tal como as proposições, os conceitos mantêm diversas relações lógicas entre si. Por exemplo, o
conceito de ser vivo é mais geral do que o conceito de animal. Relacionar conceitos é mostrar
que se compreendem estas relações lógicas. É especialmente importante entender as relações de
oposição entre conceitos, pois um aspecto essencial da actividade filosófica é a introdução de
distinções entre conceitos opostos.
Aplicar conceitos é apenas saber usá-los. Se não sabemos usar um conceito, isso mostra que não
o compreendemos realmente. Por exemplo, se falarmos de «argumentos verdadeiros», estaremos
a aplicar mal o conceito de verdade, já que, como veremos, a verdade não é uma propriedade ou
característica de argumentos.

1.4. Argumentos
Os filósofos não se limitam a apresentar teses em resposta aos problemas colocados.
Propõem também argumentos para defender as teses em que acreditam, e uma parte
muito importante do estudo da Filosofia consiste na compreensão e na discussão ou
avaliação desses argumentos.

1.4.1. Premissas e conclusão


Argumentar a favor de uma tese é apresentar razões para a aceitarmos. Este é um
exemplo muito simples de um argumento:
• Os animais tem direitos porque são capazes de sofrer e um ser tem direitos se tiver
essa capacidade.
A tese defendida é a de que os animais têm direitos. Para justificar ou sustentar esta tese,
apresentam-se duas razoes: (1) Os animais tem a capacidade de sofrer e (2) Se um ser
tem a capacidade de sofrer, então tem direitos. Podemos, então, apresentar este
argumento de uma forma mais arrumada:
Se um ser tem a capacidade de sofrer, então tem direitos. Os animais têm a capacidade de
sofrer. Logo, os animais têm direitos.
A última proposição, a tese, é a conclusão do argumento. As duas primeiras proposições,
as razões que visam justificar ou sustentar a tese, são as premissas do argumento. A
ordem pela qual se apresenta as premissas de um argumento é irrelevante. A proposição
que constitui a conclusão surge no fim, precedida pelo termo “Logo”. Um argumento é um
conjunto de proposições em que uma delas (a conclusão) é a tese defendida a partir das
restantes (as premissas).

Um argumento pode ter apenas uma premissa, mas também pode ter muitas premissas. A
conclusão de um argumento é sempre apenas uma. Note-se que uma proposição pode
ser a conclusão de um certo argumento, mas surgir como premissa noutro argumento
diferente.
Podemos também designar os argumentos por (raciocínios ou por inferências), pois inferir
é extrair uma conclusão a partir de certas premissas e raciocinar é partir de certas
premissas para chegar a uma determinada conclusão.

1.4.2. Avaliar argumentos


Nem todos os argumentos são bons. Se nos propõem um argumento a favor de uma
tese, é preciso examiná-lo criticamente. Caso o argumento não seja bom (ou «sólido», para
usar o termo técnico), não justifica realmente a conclusão defendida.
• Um argumento é sólido apenas se (1) tiver premissas verdadeiras e (2) for valido.
Por outras palavras, ter apenas premissas verdadeiras e ser valido são duas condições
necessárias para que um argumento seja sólido ou bom. A validade de um argumento diz
respeito a relação lógica que existe entre as suas premissas e a sua conclusão. No
próximo capítulo examinaremos melhor este conceito importante e distinguiremos dois
géneros de validade. Por agora, basta reter a seguinte ideia:
• Um argumento é valido se, e apenas se, as premissas apoiam logicamente a
conclusão. Quando avaliamos um argumento temos, então, de colocar duas
questões muito diferentes:
1. Será que todas as premissas deste argumento são verdadeiras?
2. Será que as premissas deste argumento apoiam logicamente a sua
conclusão?
Se respondermos a pelo menos uma destas questões, teremos de concluir que o
argumento avaliado não é sólido.

Consideremos agora alguns argumentos muito simples que não são sólidos.

Todas as aves voam. Todos os seres vivos são animais.


Os pombos são aves. As árvores são seres vivos.
Os pombos voam. As árvores são animais.
Estes argumentos são válidos. As suas premissas apoiam logicamente a sua conclusão. Já que
em cada um deles, se as premissas fossem todas verdadeiras, a conclusão também seria
verdadeira. Contudo, a primeira premissa de cada um destes argumentos é falsa e por isso
nenhum deles é sólido.

Todos os mamíferos são animais. Todas as árvores são plantas.


As aves não são mamíferos. Todas as plantas são seres vivos.
Os gatos não são plantas. Todos os seres vivos são árvores.

Todas as premissas destes argumentos são verdadeiras. Porém, nenhum deles é sólido
porque ambos são inválidos. No primeiro caso é evidente que as premissas não apoiam a
conclusão. Afinal as premissas são completamente desligadas da conclusão, pois nada dizem
sobre gatos ou plantas. No segundo a invalidade pode não ser tão evidente, mas torna-se òbvia
quando percebemos que a conclusão que se poderia extrair validamente seria a de que todas as
árvores são seres vivos, o que é muito diferente de afirmar que todos os seres vivos são
árvores.
Obviamente, um argumento pode ter ambos os defeitos: pode ter premissas falsas e ser
inválido.

1.4.3. Competências relativas a argumentos


As competências a avaliar no exame que dizem respeito a argumentos são as seguintes:
- Defender uma tese através de argumentos;
- Criticar uma tese através de argumentos;
- Reconstituir argumentos;
- Avaliar argumentos;
- Confrontar argumentos;
- Justificar uma posição teórica, autonomamente e por meio de argumentos.
Defender uma tese através de argumentos não é mais do que apresentar razões para acreditar
que ela é verdadeira. Essas razões podem consistir apenas em exemplos que a suportem. E
criticar uma tese através de argumentos não é mais do que apresentar razoes para acreditar que
ela é falsa. Já que, pelo menos, não estamos em condições de saber se ela é verdadeira.
Os argumentos quase nunca são apresentados de uma forma completamente explícita e
estruturada. Reconstituir os argumentos avançados num texto filosófico é apresenta-los essa
forma, o que implica identificar a sua conclusão e cada uma das premissas que visam sustenta-
la. De um modo geral, expressões como «logo», «por isso», «portanto» ou «por esta razão»
indicam que a conclusão defendida surge imediatamente a seguir. E expressões como
«porque», «pois>> ou «já que» indicam que a conclusão surge imediatamente antes, estando
uma premissa logo a seguir. (Por exemplo, na frase «O aborto é errado porque o feto tem o
direito à vida>>, a conclusão é a de que o aborto é errado e a premissa é a de que o feto tem o
direito à vida.) É frequente que, num texto filosófico, algumas das premissas que o autor aceita
estejam apenas subentendidas. Quando se reconstitui um argumento, tenta-se explicitar
essas premissas.
Para avaliar um argumento, como vimos, é preciso determinar se ele tem premissas verdadeiras e
se é logicamente válido.
A actividade filosófica consiste numa discussão de ideias. Se alguém apresenta
argumentos a favor de uma determinada tese e outra pessoa discorda, essa pessoa pode
contra-argumentar. Ou seja, pode oferecer argumentos para rejeitarmos o argumento
original. Ao confrontar argumentos, apresentamos um argumento é uma forma de contra-
argumentar.
A ultima competência, a de justificar uma posição teórica, autonomamente e por meio de
argumentos, é de todas a mais exigente, pois envolve muitas das outras competência. O
estudo da Filosofia serve para desenvolver a capacidade de pensar por si mesmo.
Revela-se essa capacidade quando, perante um certo problema, se defende uma certa
tese sustentando-a com argumentos. É assim que se justifica uma posição teórica. Para
essa justificação ser autónoma, não precisamos de criar argumentos novos, mas temos
de dizer o que realmente pensamos sobre o problema, e para esse efeito não podemos
limitar-nos a repetir acriticamente aquilo que os filósofos estudados disseram sobre ele.

Resumo do capítulo

Problemas
• A Filosofia é uma actividade de discussão de problemas. Sem compreender os
problemas a discutir, não se pode compreender as matérias estudadas.
• No que respeita aos problemas filosóficos, é preciso saber identificá-los, formula-
los, situá-los nas áreas da Filosofia, mostrar a sua importância e relacioná-los entre
si.
Teses
• As teses são as respostas aos problemas. É importante saber distinguir as diversas
teses alternativas que constituem respostas possíveis a um problema.
• As teses são proposições. As proposições são aquilo que é expresso por uma frase
declarativa com valor de verdade, isto é, por uma frase que é verdadeira ou falsa.
Duas frases exprimem a mesma proposição quando significam o mesmo. - Uma
frase pode exprimir proposições diferentes quando pode ter significados diferentes.
• As proposições condicionais tem a forma “Se P então Q”. A antecedente é “P” e
a consequente é “Q”.
Ø A antecedente e condição suficiente para a consequente.
Ø A consequente e condição necessária para a antecedente.
• As proposições bicondicionais tem a forma “P” se, e apenas se, “Q”.
Numa proposição deste género afirma-se que 'P' e condigao necessaria e suficiente para
'Q', ou seja, estabelece-se uma equivalencia entre 'P' e '”Q”.
• As proposições universais podem ser afirmativas ou negativas.
Ø A forma mais comum das primeiras e 'Todos os A sao B' e a forma mais
comum das segundas e “Nenhum A e B”.
Ø As proposições universais podem ser refutadas por contra-exemplos.
• As proposições podem ser consistentes ou inconsistentes entre si. - Se varias
proposições são consistentes entre si, então e possível que sejam todas verdadeiras. - Se
varias proposições são inconsistentes entre si, então pelo menos uma delas e falsa.
• No que respeita as teses filosóficos, e preciso saber identifica-las, formula-las,
compara-las e explicar a sua pertinência.

Conceitos
• Os conceitos são aquilo que os termos significam.
• As definições explícitas são uma das formas principais de clarificar conceitos. Uma
definição explícita satisfatória não e demasiado lata nem demasiado restrita. Numa
definição explícita aquilo que se pretende definir não pode ocorrer na expressão
definidora. - Numa definição explícita a expressão definidora não pode ser mais
obscura do que aquilo que se pretende definir.
• As caracterizações são outra forma importante de clarificar conceitos.
• No que respeita aos conceitos filosóficos, e preciso saber identifica-los, clarifica-los,
relaciona-los entre si e aplica-los.

Argumentos
• Um argumento é um conjunto de proposições em que uma delas (a conclusão) é a
tese defendida a partir das restantes (as premissas).
• Para avaliar um argumento e preciso:
- Determinar se as premissas são todas verdadeiras;
- Determinar se as premissas apoiam logicamente a conclusão.
• Um argumento valido e aquele em que as premissas apoiam logicamente a
conclusão.
• Um argumento sólido e valido e tem premissas verdadeiras. No que respeita aos
argumentos filosóficos, e preciso saber usa-los para defender e criticar teses, reconstitui-
los, avalia-los, confrontá-los e defender autonomamente posições teóricas com base neles.
Argumentação e lógica formal

2.1. Noções gerais


Comecemos, então; por esclarecer os conceitos lógicos fundamentais indicados na página
anterior.

2.1.1. Dedução a indução


Como vimos, num argumento válido as premissas apoiam logicamente a conclusão. Mas
existem dois géneros de validade: a dedutiva e a indutiva.
• Um argumento dedutivamente válido é aquele em que é impossível que as
premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa.
• Um argumento indutivamente válido é aquele em que é muito improvavel, mas não
impossivel, que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa.
Consideremos dois exemplos de argumentos dedutivamente validos:
1. Se temos livre-arbítrio, somos responsaveis pelo que fazemos. Temos livre-arbitrio.
.. Somos responsáveis pelo que fazemos
Todas as acções são acontecimentos. Todos os acontecimentos são causados
..Todas as acções são causadas.
Estes argumentos são dedutivamente válidos porque neles a conclusão se segue
necessariamente das premissas. Por outras palavras, se as premissas forem verdadeiras,
então é absolutamente garantido que a conclusão tambem é verdadeira.
Um argumento dedutivamente válido pode ter premissas falsas e/ou conclusão falsa.
Aquilo que não pode ter é premissas verdadeiras e conclusão falsa.
Quando estamos perante um argumento dedutivamente válido e aceitamos as suas
premissas, não podemos, portanto, rejeitar a sua conclusão. Por exemplo, se aceitarmos que
todas as acções sao acontecimentos e que todos os acontecimentos sao causados, entao
temos de aceitar a conclusão de que todas as acções são causadas. Se rejeitassemos esta
conclusão estariamos a ser inconsistentes, a cometer urn erro de lógica.
Num argumento dedutivamente válido existe uma relação de implicação entre as
premissas e a conclusão. As premissas implicam a conclusão. Esta é a forma mais forte de
as premissas apoiarem logicamente a conclusão. Se as primeiras forem verdadeiras, não
existe qualquer hipotese de esta última ser falsa.
Consideremos agora dois exemplos de argumentos indutivamente validos:

3. Os caes tern coração e têm rins.


Os leões tern coração e têm rins.
Os cangurus têm coragao e têm rins. Os pombos têm coração e têm rins. (Etc.)
Logo. Todos os animais que têm coração tambem têm rins.

Cerca de 90% dos doentes infectados com estreptococos recuperam um dia depois de
Ihes administarem penicilina.
Manana esta infectada com estreptococos.
Manana recebeu hoje uma injecção de penicilina.
Logo. Manana vai recuperar amanhã da infecção com estreptococos.

Estes argumentos não são dedutivamente válidos. Afinal, é possivel que as suas premissas
,
sejam verdadeiras e que, ainda assim, tenham uma conclusão falsa. Mesmo que todos os
animais com coragao analisados até hoje tenham rins, isso não exclui a possibilidade de
existirem algures animais com coração mas sem rins. E como 10% dos doentes infectados
não recuperam um dia apos a administração de penicilina. É possivel que Mariana se conte
entre eles.
Porém, se as premissas destes argumentos forem verdadeiras, é muito improvavel que as
respectivas conclusões sejam falsas. É por isso que estes argumentos são indutivamente
válidos
Quando estamos perante urn argumento indutivamente válido e aceitamos as suas
premissas, podemos rejeitar a sua conclusão sem cair numa inconsistência. Ainda assim,
parece não ser razoavel rejeitar a conclusão de um argumento indutivamente válido se
aceitamos as suas premissas, já que a verdade dessas premissas torna muito improvavel
a falsidade da conclusão.
Num argumento indutivamente válido existe uma relação de confirmação entre as
premissas e a conclusão. As premissas confirmam a conclusão com uma probabilidade
muito elevada. É deste modo que as premissas apoiam logicamente a conclusão.

2.1.2. Forma e conteúdo


Comparemos agora urn dos argumentos dedutivamente válidos atrás apresentados com um novo
argumento:
1. Se temos livre-arbítrio, somos responsaveis pelo que fazemos. Temos livre-arbitrio.
.•. Somos responsaveis pelo que fazemos.

2. Se João bebeu, teve um acidente. Joao bebeu.


.•. Joao teve um acidente.

No que respeita ao conteúdo, estes argumentos em nada se assemelham, pois as


proposições que os constituem são acerca de assuntos completamente diferentes. Mas eles
têm exactamente a mesma forma lógica. A forma que partilham é a seguinte:
Se P, entao Q.
P.
,
.. Q
“ ”
No lugar de P , encontramos a frase «Temos livre-arbitrio» no argumento 1 e a frase «Joao
bebeu» no argumento 2. No lugar de «Q», encontramos a frase «somos responsaveis pelo
que fazemos» no argumento 1 e a frase «Joao teve um acidente» no argumento 2.
Façamos agora o mesmo género de comparação com o outro argumento dedutivamente
válido atras apresentado:
3. Todas as acções sao acontecimentos. Todos os acontecimentos sao causados.
.•. Todas as acções sao causadas.
4. Todos os alentejanos são portugueses. Todos os portugueses são europeus.
.•. Todos os alentejanos são europeus.
Uma vez mais, estamos perante argumentos que diferem totalmente no conteúdo, mas que
têm a mesmaa forma lógica. Essa forma e a seguinte:

Todos os A são B. Todos os B são C


.•. Todos os A são C.

Obteremos os argumentos 3 e 4 se substituirmos “A”, “B” e “C” pelos termos apropriados.


Por que razao é importante distinguir o conteúdo dos argumentos da sua forma lógica?
Porque a validade dedutiva depende da forma lógica. Ou seja, para determinar se um
argumento é dedutivamente válido,podemos ignorar o seu conteúdo e examinar apenas a
sua forma. Todos os argumentos atrás apresentados têm uma forma válida, mas outros tern
formas inválidas. Podemos agora dizer o seguinte:
• A forma lógica de um argumento é a sua estrutura relevante para a validade dedutiva.
A logica formal serve para distinguirmos a argumentação dedutivamente válida da inválida,
consistindo no estudo da forma lógica dos argumentos. Tanto a lógica aristotélica como a
lógica proposicional são teorias da lógica formal. Graças a estas teorias, podemos evitar
diversas falácias.
Uma falácia é um argumento enganador. Muitas falacias são argumentos inválidos que
podem parecer-nos válidos. Quando cometemos uma falácia, julgamos estar a raciocinar
correctamente, mas na verdade estamos a incorrer num erro de raciocinio. As falácias
formais são aquelas que resultam de uma confusao entre formas dedutivamente válidas e
formas dedutivamente inválidas.

2.1.3. Validade e verdade


Como vimos, a validade está relacionada com a verdade: um argumento válido e aquele
em que, se as premissas forem verdadeiras, então é certo ou pelo menos muito provável
que a conclusão é verdadeira.
É importante perceber que a validade e a invalidade sao propriedades dos
argumentos, e nao das proposições que os constituem. Um argumento pode ser válido ou
inválido, mas não faz sentido dizer que um argumento tem premissas válidas ou que tem uma
conclusão inválida. Só um argumento no seu todo é valido ou inválido.
é igualmente importante compreender que a verdade e a falsidade são propriedades das
proposições e não dos argumentos. Por isso, faz todo o sentido afirmar que um argumento
tem premissas verdadeiras ou que tem conclusão falsa, mas é absurdo dizer que um
argumento é verdadeiro ou que é falso.

2.2. Lógica aristotélica


A lógica aristotélica foi introduzida por Aristoteles (384-322 a. C.) e sistematizada na
Idade Média. A parte da lógica aristotélica que aqui nos interessa e a lógica silogistica,
que se ocupa apenas da validade dedutiva de um certo tipo de argumentos, os chamados
«silogismos».

2.2.1. As quatro formas lógicas: A, E, I e 0


Na lógica aristotélica reconhecem-se apenas proposições que tenham uma de quatro formas
lógicas:
1. Todos os A sao B.
2. Nenhum A e B.
3. Alguns A sao B.
4. Alguns A nao sao B.
Vejamos como estas formas são designadas na lógica aristotlica:
1. As proposições com a forma: «Todo os A sao B», são as de tipo A ou universais
afirmativas.
2. As proposigoes com a forma «Nenhum A e B» são as de tipo E ou universais
negativas.
3. As proposições com a forma «Alguns A sao B» são as de tipo I ou particulares
afirmativas.
4. As proposigoes com a forma «Alguns A nao sao B» são as de tipo 0 ou
particulares negativas.
As proposições destes tipos incluem sempre dois termos. O termo sujeito é aquele que
ocupa o lugar A. O termo predicado é aquele que ocupa o lugar de B.
A classificação das proposições realiza-se a partir de dois factores: a quantidade e a
qualidade. No que respeita a quantidade, temos proposições universais (as de tipo Ae E)
e particulares (de tipo I e O) . No que respeita a qualidade, temos proposigoes afirmativas
(as de tipo A e de tipo I) e proposições negativas (tipo E e de tipo 0).

Na resolucao dos exercicios de logica aristotélica é preciso apresentar as proposicoes


na sua forma canónica. Por exemplo, a frase «Há homens mortais» exprime uma
proposicao de tipo I, mas não esta na forma canonica. De modo a coloca-la na forma
canonica das proposições de tipo I («Alguns A sao B»), teriamos de a exprimir através da
frase «Alguns homens são mortais».
As tabelas que se seguem mostram algumas formas de exprimir proposições de tipo
A, E, I e 0, indicando a sua transformacao na forma canonica.
Tipo A
Ø Quaisquer portugueses sao europeus.
Ø Os portugueses sao europeus. Transformação na forma canonica:
Ø Tudo aquilo que é um portugues e tambem um Todos os portugueses sao europeus.
europeu.
Ø Só os europeus sao portugueses.

Tipo E
Ø Nem uma única obra de arte e agradavel.
Ø Não ha obras de arte que sejam agradaveis. Transformação na forma canónica:
Ø Não existern obras de arte agradaveis. Nenhuma obra de arte é agradavel.
Ø Tudo aquilo que e uma obra de arte não é
agradavel.

Tipo I
Ø Existern animais carnivores.
Ø Há animais que são carnivoros. Transformação na forma canonica:
Ø Pelo menos um animal e carnivoro. Alguns animais são carnivoros.
Ø Certas coisas são animais e carnivoros.

Tipo O
Ø Existem filósofos gregos que não são geniais.
Ø Nem todos os filosofos gregos sao geniais. Transformação na forma canonica:
Ø Pelo menos um filosofo grego não é genial. Alguns filósofos gregos não são geniais.
Ø Há coisas que são filosofos gregos, mas que não
são geniais.

2.2.2. Definição de silogismo


A lógica silogistica serve para determinar que silogismos têm uma forma que os torna
dedutivamente válidos.
Ø Um silogismo é um argumento com duas premissas em que tanto as
premissas como a conclusão são proposicoes de tipo A, E, I ou 0.
Ilustremos esta nocao com dois exemplos:
1.Todos os mamíferos são animais.
Todos os cães são mamiferos.
.•. Todos os ces são animais.

2. Alguns filósofos são europeus.


Todos os portugueses são europeus.
.•. Alguns portugueses são filósofos.

Os silogismos caracterizam-se ainda por terem três termos.


• O termo maior é o predicado da conclusão e ocorre uma única vez numa das
premissas.
• O termo menor é o sujeito da conclusão e ocorre uma unica vez numa das premissas.
• O termo médio ocorre em ambas as premissas, mas não na conclusao.

»
No silogismo 1, portanto, o termo maior é «animais , o termo menor e «cães» e o termo médio
»
e «mamjferos . E no silogismo 2 o termo major e «filósofos», o termo menor é
«portugueses» e o termo medio é «europeus».
As premissas de um silogismo são definidas em função do termo que nelas ocorre.
• A premissa maior de um silogismo é aquela em que aparece o termo maior.
• A premissa menor de um silogismo é aquela em que aparece o termo menor.
Para colocar um silogismo na sua forma padrao, é preciso apresentar as premissas pela
ordem correcta. A premissa maior deve estar sempre acima da premissa menor.

2.2.3. Distribuicao de termos


Os termos têm extensão. A extensão de um termo é o conjunto dos objectos que ele
refere. Por exemplo, a extensão do termo «cães» é o conjunto de todos os cães.
• Um termo esta distribuido se, e apenas se, ocorre em toda a sua extensao.
Quando um termo ocorre em toda a sua extensão, refere todos os objectos que constituem
a sua extensão. Por exemplo, consideremos esta afirmação:
Ø Todos os caes sao carnívoros.
Aqui o termo «cães» esta distribuido, ocorre em toda a sua extensão, pois estamos a
referir-nos a todos os cães. Mas nesta afirmação o termo «carnjvoros» não está distribuido,
não é referido em toda a sua extensão, já que não estamos a referir-nos a todos os
carnivoros. Generalizando, nas proposições de tipo A o sujeito esta distribuido, mas o
predicado não.
Para sabermos se, numa das proposições reconhecidas pela logica aristotélica, o termo
sujeito ou o termo predicado estao distribuidos, basta reter o seguinte:
Ø O termo sujeito está distribuido nas proposições universais.
Ø O termo predicado esta distribuido nas proposições negativas.
A seguinte tabela explicita as implicações destes dois princípios:
Tipos de proposicoes Exemplos
Termos distribuidos

(A) Universal afirmativa Sujeito Todas as rãs, são verdes.


(E) Universal negativa Ambos Nenhuma rã é verde.
(I) Particular afirmativa Nenhum Algumas ras são verdes.
(0) Particular negativa Predicado Algumas rãs não são verdes.

Como veremos agora, para determinar a validade de um silogismo é imprescindivel


saber em que circunstâncias um termo está distribuido.

2.2.4. Regras do silogismo valido


A validade de um silogismo depende da sua conformidade a um certo conjunto de regras.

• Um silogismo é válido se, e apenas se, satisfaz todas as regras da validade silogistica.
As regras da validade silogistica distribuem-se por dois grupos: as regras para termos e as
regras para proposições. Existem três regras para termos e quatro regras para proposições.
Comecemos pelas primeiras.

1. Um silogismo tem de ter exactamente trs termos.


O seguinte argumento é inválido porque infringe esta regra:

Todos os bancos sao peças de mobiliário.


Algumas instituições financeiras são bancos.
Algumas instituições financeiras são pecas de mobiliário.

Diz-se que um silogismo como este, apesar de parecer ter apenas três termos,
efectivamente inclui quatro. E que «bancos» tem um certo significado na premissa maior e
um significado diferente na premissa menor.
Esta regra exige, então, que os termos de um silogismo não sejam usados para exprimir
conceitos diferentes em cada uma das suas ocorrências. Se numa das premissas usamos a
palavra «bancos» num certo num certo sentido, então na outra premissa temos de usar
essa palavra no mesmo sentido. Isto nao acontece no argumento acima apresentado. Aliás,
podemos reformula-lo da seguinte maneira:

Todos os bancos no sentido 1 da palavra sao pecas de mobiliario.

Algumas instituições financeiras são bancos no sentido 2 da palavra.

Algumas instituições financeiras sao pecas de mobiliario.

Com esta reformulação, torna-se inteiramente claro que não temos três termos, mas quatro:
«
«instituições financeiras», pecas de mobiliario», «bancos no sentido 1 da palavra» e «bancos
no sentido 2 da palavra».

2 . O t e r m o médio tem de estar distribuido pelo menos uma vez.


Para aplicar esta regra é preciso identificar o termo medio e determinar, à luz da tabela
acima apresentada se ele está distribuido em alguma das premissas. Basta uma das
premissas ser de tipo E para que esta não seja infringida.
Este silogismo é invalido porque infringe a regra 2:

Todos os romances são obras literárias.

Todos os poemas sao obras literárias.

Todos os poemas são romances.


O termo médio «obras literarias», nunca esta distribuido, pois em ambas as premissas
é predicado numa proposicao de tipo A.

3. Se um termo está distribuido na conclusão, tem de estar distribuido também na


premissa em que ocorre.
Caso a conclusao seja de tipo I, nenhum termo esta distribuido nela e, portanto, a regra não
é infringida. Este silogismo é invalido porque infringe a regra 3:

Todos os carnivoros são seres vivos.

Alguns mamiferos não são carnivoros.

.•. Nenhum mamifero e um ser vivo.

A regra 3 é infringida duas vezes neste argumento. Como a conclusão é de tipo E, ambos os
termos estão distribuidos nela. Mas o termo «mamíferos» não está distribuido na premissa
menor, pois ai é sujeito,e é uma proposicao de tipo 0. Alem disso, o termo «seres vivos» nao
esta distribuido na premissa maior, ja que ai é predicado de uma proposição de tipo A.
Consideremos agora as regras para proposições.

4. Um silogismo não pode ter duas premissas particulares. Este silogismo e inválido
porque infringe a regra 4:

Alguns mamiferos são carnivoros. Alguns carnivoros são repteis. .•. Alguns repteis sao
mamiferos.

5. Urn silogismo nao pode ter duas premissas negativas. Este silogismo e inválido porque
infringe a regra 5:

Nenhum portugus eé espanhol. Alguns futebolistas não são espanhois. .•. Nenhum
futebolista e português.

6. Se ambas as premissas de um silogismo são afirmativas, a conclusão não pode


ser negativa.
Caso uma das premissas seja negativa, esta regra não é infringida. Este silogismo e inválido
porque infringe a regra 6:

Alguns cardiologistas são escritores. Todos os cardiologistas são medicos. .•. Nenhum
médico é escritor.

7. A conclusao tem de seguir a parte ou premissa mais fraca: se uma das premissas é
particular, a conclusao tambem tem de ser particular; se uma das premissas é
negativa, a conclusão tambem tem de ser negativa.
Nesta regra supõe-se, então, que as particulares sao mais «fracas» do que as universais e que as
negativas são mais «fracas» do que as afirmativas.
Este silogismo á inválido porque infringe a regra 7:

Alguns artistas são ignorantes em Matematica. Nenhum cientista é um ignorante em


Matematica. .•.Todos os cientistas são artistas.

A regra 7 e infringida de duas formas neste argumento. Por um lado, a premissa maior e
particular mas a conclusão e universal. Por outro lado, a premissa menor é negativa mas a
conclusão é afirmativa.
Note-se que não existe qualquer convenção quanto a numeração das regras de validade
silogística. Dado que a numeração aqui adoptada é apenas uma entre muitas igualmente
aceitaveis, no exame nacional deve referir as regras pelo numero aqui indicado. Deve-se

responder, por exemplo, Este silogismo e inválido porque tem duas premissas particulares
:”
e nunca Este silogismo e invalido porque infringe a regra 4”.

2.2.5. Falacias silogfsticas


Existem quatro falácias associadas ás regras de validade silogistica para termos.
A. Falacia dos quatro termos
Comete-se esta falacia quando na verdade se usam quatro termos num silogismo, o que
constitui uma infracção da regra 1.

B. Falacia do medio não distribuido


Comete-se esta infracçãao sempre que se infringe a regra 2, segundo a qual o termo
medio tem de estar distribuido pelo menos uma vez.

C. Falacia da ilicita menor


Comete-se esta falácia quando o termo menor esta distribuido na conclusão, mas não na
premissa, o que constitui uma infracção da regra 3.

D. Falacia da ilicita maior


Comete-se esta falacia quando o termo maior esta distribuido na conclusão, mas não
na premissa, o que constitui uma infracgao da regra 3.
Resumo do capitulo

Noções gerais

• Um argumento é dedutivamente valido se, e apenas se, é impossivel que tenha uma
conclusão falsa e premissas verdadeiras. Num argumento deste genero as premissas implicam a
conclusão.

• Um argumento é indutivamente válido se, e apenas se, é muito improvavel, mas


não impossivel, que tenha uma conclusão falsa e premissas verdadeiras. Num argumento
deste género as premissas confirmam a conclusão.

• A lógica formal determina a validade dedutiva dos argumentos unicamente a partir


do estudo da sua forma, ignorando o seu conteúdo.
• Uma falacia e um raciocinio enganador. Muitas falácias são argumento inválidos
que podem parecer validos.
• As premissas e a conclusao de um argumento podem ser verdadeiras ou falsas,
mas nao sao validas nem invalidas.
• Um argumento pode ser valido ou invalido, mas nao pode ser verdadeiro nem falso.
Logica aristotelica
• Na logica aristotelica reconhecem-se quatro tipos de proposigoes:
Tipo Descrição Exemplo na forma canonica
A Universais afirmativas Todos os Homens são mortais.
E Universais negativas Nenhum homem e mortal.
I Particulares afirmativas Alguns homens sao mortals.
0 Particulares negativas Alguns homens nao sao mortals.

• Nas proposigoes de tipo A, E, I e 0, o primeiro termo é o termo sujeito; o segundo


termo é o termo predicado.

• Estes termos podem estar ou não distribuidos. 0 termo sujeito está distribuido nas
proposições universas. O termo predicado está distribuido nas proposições negativas.

• Um silogismo é um argumento constituido por três termos e três proposições em


que ambas as premissas e a conclusaão sao proposições de tipo A, E, I ou 0.

- 0 termo maior de um silogismo é o predicado da conclusao e ocorre uma unica vez


numa das premissas (a premissa maior).
- 0 termo menor de um silogismo é o sujeito da conclusão e ocorre uma unica vez numa
das premissas (a premissa menor).
- 0 termo médio e aquele que ocorre em ambas as premissas.
• Um silogismo é valido se, e apenas se, satisfaz todas as regras de validade
silogistica, que se distribuem por regras para termos e regras para proposições.
Existem quatro falácias associadas a infracgao das regras para termos.

Regras de validade silogistica para termos


1. Um silogismo tem de ter exactamente três termos.
Infracção: falácia dos quatro termos.
2. O termo médio tem de estar distribuido pelo menos uma vez.
Infracção: falácia do médio não distribuido.
3. Se um termo esta distribuido na conclusão, tem de estar distribuido também na premissa em que
ocorre.
Infracção: falacia da ilicita menor; falacia da ilicita maior.

Regras de validade silogistica para proposições

4. Um silogismo não pode ter duas premissas particulares.


5. Um silogismo não pode ter duas premissas negativas.
6. Se ambas as premissas de um silogismo são afirmativas, a conclusão não pode ser
negativa.
7. A conclusão tem de seguir a parte mais fracas
- Se uma das premissas é particular, a conclusão tambem tem de ser particular;
- Se uma das premissas é negativa, a conclusão tambem tem de ser negativa.
Argumentacão, retórica e filosofia
3.1. Argumentos informais

A validade de urn argumento formal depende unicamente da sua forma lógica. No capítulo
anterior ocupamo-nos de argumentos deste tipo. A validade de um argumento informal,
pelo contrário, não depende apenas cá sua forma lógica. Nesta secção vamos examinar
alguns géneros de argumentos informais.

3.1.1. Indução: generalizações e previsões


Entre os argumentos indutivos, podemos distinguir as generalizações das previsões. (Em
2.1.1, aliás, foram ja apresentados exemplos destes argumentos: o argumento 3 é uma
generalização e o argumento 4 e uma previsão.)
• Uma generalização indutiva é um argumento corn uma conclusão geral extraida de casos
particulares.
• Uma previsão indutiva tambem parte de casos particulares, mas a conclusão inferida é
a de que algo ocorrera no futuro.
Para ilustrar esta diferença, consideremos dois argumentos muito simples:
1. Cada um dos cisnes observados até agora é branco.
Logo, todos os cisnes são brancos.
2. Cada um dos cisnes observados até agora é branco.
Logo, o próximo cisne que observarmos será branco.
A premissa partilhada por estes argumentos diz respeito aquilo que se observou em
diversos casos particulares, que constituem uma amostra. Em ambos os casos, a
conclusão ultrapassa a informação contida nas premissas. No argumento 1, a
generalização, conclui-se que todos os cisnes, e não só os que ja foram observados, são
brancos. No argumento 2, a previsão, conclui-se que o próximo cisne que será observado,
à semelhança dos que já foram observados, será branco.
Os argumentos deste género não são dedutivamente válidos, mas podem ser indutivamente
válidos. Se-lo-ão se as suas premissas, caso sejam verdadeiras, constituirem uma razão
para acreditarmos que é muito provavel que a conclusão seja verdadeira. Ora, como
podemos saber se uma generalizagção ou uma previsão é indutivamente válida? Não é
pela forma destes argumentos que conseguimos determinar em que medida as premissas
confirmam a conclusão. Mas existem dois critérios que são uteis para determinar tal
coisa. 0 primeiro deles é o seguinte:
• Quanto maior é a amostra referida na premissa ou premissas, mais estas confirmam a
conclusão.
Por exemplo, se tiverem sido observados mil cisnes, os argumentos 1 e 2 serão mais
fortes do que no caso de terem sido observados apenas cem cisnes. Porém, a dimensão
da amostra não é só o que conta. Interessa tambem atender ao seguinte critério:
• Quanto mais diversifcada é a amostra referida na premissa ou premissas, mais estas confirmam
a conclusão.
Por exemplo, caso se tenham observado cisnes em regiões muito diferentes, os
argumentos 1 e 2 serão mais fortes do que no caso de se terem observado cisnes apenas
numa região muito pequena. Na verdade mais do que ter uma amostra grande, importa ter
uma amostra suficientemente variada ou representativa.

3.1.2. Argumentos por analogia


As analogias são outro género importante de argumento informal.
Um argumento por analogia é uma inferencia baseada numa comparação.
Consideremos dois exemplos de argumentos deste género:

O universo é como uma máquina.


As maquinas são criadas por seres inteligentes.
Logo, o universo foi criado por um ser inteligente.

O sistema imunitário dos chimpanzés é muito semelhante ao dos seres humanos.


A vacina X resultou nos chimpanzés.
Logo, a vacina X há-de resultar nos seres humanos.

Como estes exemplos tornam claro, os argumento por analogia tern geralmente esta estrutura:
dado que as coisas se assemelham significativamente (isto é, são analogas), e dado que uma
delas tem uma certa caracteristica ou propriedade, conclui-se que tambem a outra tem essa
mesma caracteristica ou propriedade. Os argumentos por analogia tambem não são
dedutivamente válidos. Aliás, as analogias sao classificadas frequentemente como uma
forma de indução, a par das generalizações e das previsões. A forga das analogias, tal
como a das generalizações é a das previsoes, não depende apenas da sua forma. Para
determinar em que medida as premissas de uma analogia confirmam a sua conclusão,
podemos recorrer a certos critérios. Um deles e o seguinte:
• Uma analogia não é válida se os objectos comparados não forem semelhantes nos aspectos
relevantes.
Com este critério, pode-se questionar o argumento 1, alegando que o universo não e
realmente como uma máquina, ja que existem diferenças significativas entre o universo e as
máquinas. Por exemplo, as máquinas desempenham uma função, mas não é óbvio que o
universo tenha uma função.
• Quanto maiores forem as semelhanças relevantes entre os objectos comparados nas
premissas, mais estas confirmam a conclusão.
A relevancia das semelhanças depende daquilo que esta em questão. Por exemplo, se
aquilo que está em questão é a eficacia de uma vacina nos seres humanos, as semelhanças
entre o nosso sistema imunitário e o de outros animais são relevantes. Em principio, quanto
maiores forem as semelhanças desse tipo entre os seres humanos e os animais de uma
certa espécie, maior será a probabilidade de uma vacina ser efiicaz nos seres humanos
caso se tenha revelado eficaz nesses animais.
3.1.3. Argumentos de autoridade
Comecemos por considerar dois argumentos de autoridade:
1. Platao e Descartes acreditavam na imortalidade da alma humana.
Logo, a alma humana e imortal.
2. As maiores organizações de defesa dos direitos dos animais afirmam que uma dieta
integralmente vegetariana é a mais saudavel.
Logo, uma dieta integralmente vegetariana é a mais saudavel.
A partir destes exemplos, torna-se fácil perceber o que caracteriza os argumentos deste
genero:
• Num argumento de autoridade conclui-se que uma determinada proposição é
verdadeira porque uma certa autoridade (um ou vários individuos, uma ou várias
organizações) defende que essa proposição é verdadeira.

Os argumentos de autoridade não são dedutivamente válidos, mas as suas premissas


podem confirmar a sua conclusão, isto é, podem torná-la provavelmente verdadeira. Para
que isso aconteça, é preciso que a autoridade invocada satisfaça certas condigções. Uma
delas é uma condição de competência:

• A autoridade invocada tem de ser competente no que respeita ao assunto em


causa e não podem existir autoridades igualmente competentes que a contradigam.

Isto mostra que o argumento 1 é insatisfatorio. É verdade que Platão e Descartes foram
grandes filósofos que reflectiram profundamente sobre a imortalidade da alma humana. Por isso,
são uma autoridade competentente no que respeita a este assunto. Porem, muitos outros
filósofos igualmente reputados negaram que a alma humana seja imortal. Isto significa que
existem autoridades igualmente competentes que contradizem a opinião de Platão e de
Descartes sobre a imortalidade da alma, pelo que nao podemos tomar a sua opiniao como
uma justificagao satisfatória para acreditar que temos uma alma imortal.
Existe tambem uma condição de imparcialidade:
• A autoridade invocada tem de ser imparcial sobre o assunto em causa.
Isto mostra que o argumento 2 e insatisfatório. Se uma empresa tabaqueira declarasse que
o tabaco não faz mal a saúde, não levariamos a serio a sua posição, pois sabemos que
essa empresa não é imparcial, dado o seu interesse em vender tabaco. Do mesmo
modo, como as organizações de defesa dos animals estão interessadas em protegê-los
da exploração humana, não são uma autoridade fiável no que toca ao problema de saber
se e saudável come-los. Um argumento de autoridade mais satisfatório é o seguinte:
3. Os nutricionistas defendem que uma alimentação pobre em vegetais é pouco
saudavel. Logo, uma alimentação pobre em vegetais e pouco saudavel.
Assumindo que os nutricionistas são autoridades competentes e imparciais no que respeita
a nutrição, a premissa constitui efectivamente uma boa razão para aceitar a conclusão.
3.1.4. Entinemas

Quando argumentamos informalmente, muitas vezes não nos damos ao trabalho de


explicitar todas as premissas com as quais pretendemos defender uma certa conclusão. É
assim que surgem os entimemas.
• Um entimema é um argumento que é inválido se tomado a letra, mas que se torna
válido quando acrescentamos premissas aceites implicitamente.
Estes são dois exemplos de entimemas:
1. Se fosse possivel viajar no tempo, seria possivel ultrapassar a velocidade da luz. Logo,
não é possivel viajar no tempo.

2. Todas as pessoas têm o direito à vida.


Logo, os fetos humanos têm o direito à vida.

Para transformar estes entimemas em argumentos válidos, teriamos de acrescentar as


premissas em italico:
3. Se fosse possIvel viajar no tempo, seria possivel ultrapassar a velocidade da luz. Nao é
possivel ultrapassar a velocidade da luz.
.•. Nao e possivel viajar no tempo.

4. Todas as pessoas têm o direito a vida.


Os fetos humanos são pessoas.
.•. Os fetos humanos têm o direito à vida.

Os entimemas podem ser uteis, pois em muitos contextos é desnecessário apresentar


premissas óbvias, pelo que estas podem ficar implícitas. Por exemplo, os cientistas sabem
perfeitamente que não é possivel ultrapassar a velocidade da luz. Assim, se estivermos a
dirigir-nos a cientistas, não vale a pena apresentarmos explicitamente esta premissa.
Porém, os entimemas por vezes são enganadores. Se as premissas subentendidas forem
controversas deveriamos tê-las apresentado explicitamente. Oentimema 2 é enganador por
esta razão, já que a premissa subentendida, «Os fetos humanos sao pessoas», é muito discutivel.

3.2. Falácias informais


As falácias formais são argumentos que podem parecer dedutivamente válidos, mas que na
verdade têm uma forma dedutivamente inválida. Todas as restantes falácias são designadas por
«informais». Entre as inúmeras falácias informais, é preciso saber identificar e caracterizar as sete
que se seguem.

1.1. Ad hominem
Encontramos esta falácia no seguinte argumento:
Defendes que as touradas devem acabar porque não passas de um intelectual suburbano
desligado da vida rural. Mas as touradas não devem acabar.
Falácias ad hominem consistem em ataques pessoais. Para mostrar que uma certa
proposição e falsa ataca-se quem defende que ela é verdadeira. Em vez de se
apresentarem verdadeiras razões para aceitar a conclusão, tenta-se desacreditar a pessoa
que rejeita essa conclusão, descrevendo-a em termos desfavoráveis. Resumindo, ataca-se
a pessoa quando se devia refutar aquilo que ela defende.

2.2. Ad misericordiam
Comete-se esta falácia no seguinte argumento:

Se o meu trabalho receber uma classificação negativa, ficarei deprimido e serei repreendido.
Logo, o meu trabalho merece uma classificação positiva.

As falácias ad misericordiam consistem em apelos à piedade. Para levar uma pessoa a


aceitar uma certa conclusao, em vez de se lhe apresentarem razões para ela acreditar que
essa conclusão é verdadeira, tentam-se despertar os seus sentimentos de compaixão.

3.2.3. Post hoc


Comete-se esta falacia no seguinte argumento:
As pessoas rezaram para que chovesse. Depois choveu.
Logo, choveu porque as pessoas rezaram para que chovesse.

Numa falacia post hoc as premissas dizem-nos que um acontecimento A ocorreu depois de
um acontenento B, extraindo-se daí a conclusão de que existe uma relação causal entre A e
B, mais precisamente a conclusao de que B é a causa de a A.
Ora, as inferências deste género são inválidas, pois do simples facto de uma coisa ter
ocorrido depois de outra não se pode concluir que a segunda é causa da primeira. Pode ser
verdade que as causas são sempre anteriores aos efeitos, mas não basta que exista uma
relação de precedencia temporal entre dois acontecimentos para que exista uma relação
causal entre eles. O simples facto de ter chovido depois de as pessoas terem rezado para
que chovesse não significa que tenha chovido por causa das orações.
A designação completa desta falacia é post hoc ergo propter hoc (não é preciso
memorizar), o que quer dizer «depois disso, logo, por causa disso».

3.2.4. Apelo à ignorancia


Comete-se esta falácia no seguinte argumento:
Ninguem conseguiu provar que existe vida noutros planetas. Logo, não existe vida noutros
planetas.
Numa falacia de apelo a ignorancia afirma-se nas premissas que não se sabe que uma
certa proposição é verdadeira, concluindo-se dai que ela é falsa. Ou, então, declara-se
que não se sabe que uma certa proposição é falsa, concluindo-se dai que ela é verdadeira.
Ora, estas inferencias sao inválidas, pois do simples acto de não se conhecer o valor de
verdade de uma proposição não se segue que essa proposição seja falsa nem que seja
verdadeira.
3.2.5. Apelo a forca
Encontramos esta falácia no seguinte argumento:
Se não defendes que Manuel é o melhor candidato, serás expulso do partido. Logo, Manuel
é o melhor candidato.
É óbvio que a premissa é completamente irrelevante para a conclusão, pois a ameaça de
expulsão não constitui uma razão para pensar que Manuel é o melhor candidato. Quando
se comete a falácia do apelo a força, em vez de se persuadir com razões, tenta-se levar
alguem a aceitar uma certa conclusão atraves de ameaças.

3.2.6. Falso dilema


Encontramos esta falácia no seguinte argumento:
Ou acreditas em Deus ou és ateu. Não acreditas em Deus. Logo, és ateu.

Comete-se a falácia do falso dilema caso se apresentem duas hipoteses alternativas


como se estas esgotassem todas as possibilidades, quando na verdade existem mais do
que duas hipóteses. No exemplo apresentado, a falácia surge na primeira premissa. Esta
premissa sugere que existem apenas duas hipóteses: acreditar em Deus ou ser ateu.
Porém, isto é um falso dilema, já que existe mais uma possibilidade: ser agnóstico. (0
agnóstico duvida de que Deus existe e, por isso, não acredita que Deus existe nem
acredita, como o ateu, que Deus não existe.)

3.2.7. Petição de princípio


Comete-se esta falácia no seguinte argumento:
A Bíblia é a palavra de Deus.
Se a Biblia é a palavra de Deus, então é verdadeira. Na Biblia esta escrito que Deus existe.
Logo, Deus existe.

Este argumento visa provar a existencia de Deus a partir de três premissas. Porém, na
primeira premissa já está implicita a afirmação de que Deus existe - se a Biblia for
realmente a palavra de Deus, então Deus existe. Portanto, neste argumento pressupõe-se
numa das premissas a conclusão que se pretende estabelecer.É isso que faz deste
argumento uma petição de princípio. Comete-se esta falácia quando se pressupõe
indevidamente nas premissas aquilo que se quer provar com o argumento.
A petição de principio e conhecida tambem por «falacia da circularidade». Esta designação
deve-se ao facto de as petições de princípio conduzirem a um círculo lógico do qual não se
consegue sair. Para ilustrar esta circularidade, consideremos um diálogo imaginario que
dramatiza o argumento precedente:
- Por que pensas que Deus existe?
- Porque a Biblia é a palavra de Deus, e sendo assim é verdadeira, e na Biblia está escrito que Deus
existe.
- Mas por que pensas que a Biblia é a palavra de Deus?
- Porque Deus existe e é o seu autor.
- Mas por que pensas que Deus existe?
- Porque a Biblia é a palavra de Deus, e sendo assim e verdadeira, e na Biblia está escrito que Deus
existe. (Etc.)
Deparamo-nos aqui com um «circulo vicioso».

3.3. 0 Dominio do discurso argumentativo


Esta última secção do presente capitulo centra-se na Retórica, uma disciplina que manteve
uma relação complexa com a Filosofia ao longo da história.

3.3.1. A procura de adesão do auditório


« »
Um a definição aceitavel de retórica é a seguinte:
∎ A retorica é a arte de persuadir através do discurso.

A retórica é uma arte” no seguinte sentido: consiste num conjunto de técnicas para atingir
um certo objectivo. Do mesmo modo que quem e entendido na «arte» da medicina
domina técnicas que permitem curar, aqueles que percebem de retórica dominam
técnicas que permitem persuadir através do discurso. Persuadir através do discurso é
convencer alguem unicamente através do uso da palavra. A persuasão atravez da violencia
ou da sedução fisica, por exemplo, está fora do ambito da arte da retórica.
O retor ou orador é aquele que recorre ao discurso para persuadir alguem com tecnicas
retóricas. O auditorio é o conjunto de pessoas que o orador visa persuadir. O objectivo
do orador é obter a adesão doauditório. Por outras palavras, o orador pretende levar o
auditório a aceitar que uma determinada opinião é verdadeira ou pelo menos plausivel, ou
que uma determinada decisão é a mais racional, justa ou conveniente. A retórica
proporciona instrumentos para se obter a adesão do auditório a uma certa opinião ou
decisão.
A retórica surgiu na Grécia Antiga. A Retorica de Aristoteles é a obra mais influente sobre
esta arte. De acordo com Aristóteles, a retórica é a capacidade de discernir aquilo que é
persuasivo em cada caso considerado. Tal como um médico não consegue curar toda e
qualquer doença, um retor não é capaz de obter adesão de um auditorio a todas e
quaisquer perspectivas. Porém, o retor tem a capacidade de descobrir as maneiras mais
eficazes de persuadir.
As outras artes têm objectos especificos. Por exemplo, a medicina ocupa-se da saude e
da doenga. Mas a retórica, defende Aristoteles, é aplicavel a qualquer assunto. Apesar de
não ter um objecto determinado, a retórica exerce-se num âmbito muito definido: o âmbito
do discurso público. Assim, a retórica não tem lugar em dialogos privados. Aristoteles
distingue três espécies de discurso público: o discurso deliberativo, que decorre numa
assembleia, o discurso judicial, que decorre perante um tribunal, e o discurso epidiptico,
que se destina a louvar ou a censurar uma pessoa.
Aristoteles distingue tambem três meios de persuasão na retorica. A persuasão pode
assentar:
1. No caracter do orador (ethos);
2. No estado emocional do auditorio (pathos);
3. Na própria argumentação (logos).
No caso 1, obtem-se a persuasão quando o próprio discurso (e não, por exemplo, a aparencia
fisica) causa no auditório a impressao de que o orador é digno de confiança. Para inspirar
confianga, o orador deve sugerir inteligência pratica, um caracter virtuoso e boa vontade. No
caso 2, obtem-se a persuasão quando o proprio discurso suscita no auditório sentimentos que
o tornam receptivel à perspectiva do orador. No caso 3, obtem-se a persuasao por meio de
argumentos que levam o auditorio a acreditar que a perspectiva do orador é a correcta.

Vejamos como Aristoteles distingue a argumentação caracteristica da retorica da


demonstração.
As demonstrações são argumentos cientificos dedutivamente válidos. Numa demonstração as
premissas são verdades estabelecidas que não deixam lugar para qualquer duvida, e a conclusao
segue-se delas de uma forma «constringente». Ou seja, dado que as premissas são
inquestionavelmente verdadeiras e que o raciocinio é dedutivamente válido, não podemos deixar
de aceitar a conclusao, somos constrangidos a aceitá-la.
A argumentação retórica não consiste na apresentação de demonstrações. Por um lado, o
orador não tem de partir de premissas inquestionavelmente verdadeiras. As suas premissas
podem consistir apenas em opiniões aceites pelo auditório. Basta-Ihe que as premissas
sejam provaveis e pareçam verosimeis ao auditório. Por outro lado, o orador não deve estar
empenhado em mostrar escrupulosamente que a conclusão se segue validamente das
premissas, pois o auditório tem uma capacidade muito limitada de seguir raciocínios. Por
isso, o melhor é apresentar os argumentos de uma forma abreviada e sugestiva,
apoiando-se em exemplos isolados ou concebendo entimemas.

3 . 3 . 2 . M a n i p u l a p a o e persuasao
A retórica proporciona um conjunto de técnicas para persuadir as pessoas. Aquele que
domina essas técnicas possui assim um certo poder, o qual, em princípio, tanto pode ser
mal usado como bem usado. Na verdade, pode-se distinguir dois usos da retórica: a
manipulação e a persuasão racional. Para diferenciar estas duas formas de usar a retórica,
comecemos por observar que um auditório é sempre constituido por pessoas e que as
pessoas são racionais.
Ou seja, as pessoas tern a capacidade de raciocinar e por isso são sensiveis a argumentação.
Se perceberem que uma certa conclusão se segue de premissas que já aceitam, em principio
estarao dispostas a aceitá-la. Porém, as pessoas não são perfeitamente racionais. Muitas
vezesraciocinam mal, sobretudo quando se veêm perante raciocinios especialmente
enganadores - as falacias. Além disso, têm preconceitos de diversos géneros - por exemplo,
“preconceitos religiosos, sexistas ou racistas”. Em suma, um auditório é constituido por
pessoas que têm uma racionalidade limitada. Podemos esclarecer a diferença entre
manipulação e persuasão racional a partir desta ideia.

• A manipulação corresponde ao uso da retórica em que as limitações da


racionalidade do auditorio são vistas como uma oportunidade a explorar.
• A persuasão racional corresponde ao uso da retórica em que as limitações da
racionalidade do auditório são vistas como um obstáculo a ultrapassar.

Um orador informado conhece as caracteristicas e as limitações do auditório que pretende


persuadir. Se ele usar a retoórica para manipular o auditório, tentará tirar partido das suas
limitações. Nao hesitará em explorar os seus preconceitos e em recorrer a argumentos
que sabe serem falaciosos, desde que isso contribua para obter a adesão desejada.
Digamos que, quando faz um uso manipulador da retórica, o orador não respeita a
autonomia dos membros do auditório, nao procura levá-Ios a pensar melhor por si
próprios. Em vez disso, engana-os, trata-os como simples instrumentos ao serviço das
suas finalidades pessoais. A maior parte das pessoas reconhece que a manipulação é
um uso imoral da retórica. E deste uso, aliás, que resulta a ma reputação da retórica.
Porem, o orador pode usar as técnicas da retorica com a finalidade de facilitar uma
persuasão racional do auditório. Para persuadir geralmente não basta ter razão naquilo
que se defende, pois as limitações do auditorio podem impedir a compreensão dos
argumentos. É preciso saber defender as ideias de uma forma eficaz, apresentando os
argumentos pela melhor ordem e sem complicações desnecessarias. Na medida em que
permite que o orador comunique melhor a sua perspectiva, adaptando-se as
caracteristicas do auditório, a retórica pode ser colocada ao serviço da persuasão racional.
Quando se tem em vista a persuasão racional, naão se ilude as pessoas, não se
desrespeita a sua autonomia, ja que se tenta persuadi-las através de argumentos
claramente apresentados cuja solidez elas proprias podem avaliar.

3.3.3. Filosofia, retorica e democracia


A filosofia, a retórica e a democracia nasceram na Grécia Antiga. Dado que numa
democracia as decisões politicas sao tomadas publicamente, e não por um tirano, a
capacidade de influenciar a opinião pública eé muito valiosa nesta forma de governo.
Aqueles que souberem persuadir pelo uso da palavra terão mais facilidade em conseguir
poder numa democracia.

Os sofistas, entre os quais se destacaram Protágoras (c. 490 - c. 420 a. C.) e Górgias (c. 483 -
3 7 6 a C.), eram professores que ensinavam retórica (entre outras coisas) àqueles que podiam
pagar os seus serviços. Ao aprenderem retórica, os jovens ficavam em melhores condições
de manipular a opiniao publica e, consequentemente, de conseguir poder na sociedade
democrática.
O ensino dos sofistas foi fortemente criticado por Platão (c. 429 a. C. - 347 a. C.). Na
verdade, Platão opôs à retorica (ou, pelo menos, à retorica no seu use manipulador) a
actividade filosófica. Segundo Platão, ao passo que o sofista ensina a conquistar o poder
pela persuasão, apoiando-se nas opinioes populares, o filósofo procura o saber, visa
descobrir a verdade. Aristóteles criticou tambem muita da retorica da sua epoca mas
defendeu que esta pode ser bem usada.

3.3.4. Argumentacao, verdade e ser


Pode-se dizer que uma proposição é verdadeira se esta de acordo com aquilo que as
coisas são, se corresponde à realidade, é falsa se não está de acordo com aquilo que as
coisas são, se não corresponde a verdade.
A filosofia, tal como as ciências, é uma procura de conhecimento, e uma tentativa de
descobrir como as coisas sao realmente. A argumentação filosófica, portanto, tem em vista
a verdade. Os argumentos são vistos como instrumentos na procura da verdade, e não
como formas de manipular a opinião dos outros.
Na filosofia reconhece-se assim uma relação estreita entre a argumentação, a verdade e o
«ser» ou realidade. Conhecer a verdade é saber como as coisas são e na filosofia recorre-
se a argumentação para descobrir a verdade.

Resumo do capitulo

Arguments informatics

• As generalizações e as previsões são duas espécies de indução. Em ambos os


casos, parte-se de premissas que dizem respeito a casos particulares, os quais constituem uma
amostra. A partir dessa amostra, pode-se extrair uma conclusão geral, o que acontece nas
generalizações, ou inferir que algo ocorrera no futuro, o que acontece nas previsões.
• Quanto maior é a amostra, quanto maior é o número de casos particulares, melhor
será a indução. Quando mais diversificada é a amostra, também melhor será a indução.
• Os argumentos por analogia baseiam-se numa comparação. Afirma-se nas
premissas que duas coisas são análogas e que uma delas tem uma certa propriedade. Por
analogia, conclui-se que a outra também tem essa propriedade.
• Uma analogia não é valida se os objectos comparados não forem semelhantes
nos aspectos relevantes. E quanto maiores forem as semelhanças relevantes entre os
objectos comparados, melhor será o argumento.
• Nos argumentos de autoridade conclui-se que uma proposição é verdadeira
invocando uma autoridade que declara que essa proposição é verdadeira.
• Estes argumentos são satisfatórios apenas se:
- A autoridade invocada for competente;
- Não existirem autoridades igualmente competentes que a contradigam;
- A autoridade invocada for imparcial.
• Os entinemas são argumentos inválidos se tomados a letra, mas que se tornam
validos caso acrescentemos as premissas em falta.
- Os entinemas são úteis quando seria desnecessário explicitar todas as premissas;
- Os entinemas são enganadores quando as premissas suprimidas ou implícitas são controversas.

Fallacies informatics

• As falácias ad hominem consistem em ataques pessoais. Argumenta-se que uma


certa proposição é falsa descrevendo de uma forma depreciativa aquele que a defende.
• As falácias ad misericordiam consistem em apelos à piedade. Argumenta-se a
favor de uma certa proposição tentando despertar os sentimentos de compaixão
daqueles que se pretende persuadir.
• As falácias post hoc consistem em inferências causais precipitadas. Infere-se que A
e a causa de B a partir de premissas que dizem apenas que A se deu antes de B.
• Nas falácias de apelo a ignorância afirma-se que não se sabe se uma certa
proposição é verdadeira, inferindo-se dai que ela é falsa, ou então afirma-se que não se
sabe se uma certa proposição é falsa, inferindo-se dai que ela é verdadeira.
• Nas falácias de apelo a forca tenta-se levar alguém a aceitar uma certa conclusão
a partir de ameaças.
• Os falsos dilemas são argumentos em que se parte de uma disjunção enganadora.
Sugere-se que existem apenas duas hipóteses, quando na verdade essas duas
hipóteses não esgotam todas as possibilidades.
Nas petições de princípio pressupõe-se indevidamente nas premissas aquilo que se
pretende provar com o argumento. As petições de princípio geram circular idades lógicas,
pelo que também são conhecidas por falácias de circularidade.

Discourse argumentative
• A retórica é a arte de persuadir através do discurso. O retor ou orador recorre as
técnicas da retórica para obter a adesão de um certo auditório as suas perspectivas.
• Segundo Aristóteles, a retórica é uma arte que não tem um objecto ou assunto
determinado. As suas técnicas permitem que se persuada um auditório a respeito de
qualquer assunto. Mas a retórica exerce-se num âmbito específico: o do discurso publico.
• Aristóteles distingue três meios de persuasão na retórica. A persuasão pode assentar:
- No carácter do orador (ethos);
- No estado emocional do auditório (pathos);
- Na própria argumentação (logos).
• A argumentação retórica difere significativamente da demonstração.
- As demonstrações são argumentos dedutivamente válidos cujas premissas são
verdades estabelecidas.
- Na argumentação retórica aceitam-se premissas meramente prováveis, desde que
pareçam verosímeis ao auditório. Além disso, a conclusão dos argumentos retóricos não
é deduzida explicitamente das premissas. De modo a facilitar a adesão do auditório,
recorre-se a exemplos isolados e concebern-se entinemas.
• Um auditório é constituído por pessoas cuja racionalidade é imperfeita ou
limitada. O orador deve conhecer as limitações do auditório que visa persuadir.
• A retórica pode ser usada para manipular as pessoas. Quando faz este uso da retórica, o
orador tenta tirar partido das fraquezas do auditório de modo a persuadi-lo de uma forma
enganadora.
• Mas a retórica pode também ser usada para facilitar a persuasão racional. Quando
faz este uso da retórica, o orador tenta suplantar as limitações do auditório,
argumentando com clareza e esforçando-se por persuadi-lo com base em razões, sem
manobras enganadoras.
• Nas democracias da Grécia Antiga as decisões politicas eram tomadas
publicamente. Por isso, era vantajoso dominar as técnicas da retórica. Os sofistas
ensinavam essas técnicas aos seus alunos, preparando-os para a vida política. Platão
criticou a retórica. Denunciou o seu use manipulador e opô-la a filosofia.
A filosofia tem em vista o conhecimento. Ao filósofo interessa saber a verdade, saber
como as coisas são. Por isso, na actividade filosófica a argumentação subordina-se a este
fim.
Análise do conhecimento

4.1. Estrutura do acto de conhecer


A actividade «cognoscitiva» não é mais que a actividade de conhecer. Afirma-se que o acto
de conhecimento envolve um sujeito e um objecto: o primeiro é aquele que conhece; o
segundo é aquilo que e conhecido. Para respondermos à questão de saber o que é o
conhecimento, precisamos de explicar o que é isso um certo sujeito conhecer um
determinado objecto.

4.1.1. Géneros de conhecimento


Antes de introduzirmos a resposta tradicional para esta questão, temos de distinguir
vários tipos conhecimento. Comparemos estas afirmações:
A. João conhece as sonatas de Beethoven.
B. João sabe tocar as sonatas de Beethoven.
C. João sabe que Beethoven compôs sonatas.
Cada uma destas três afirmações diz-nos que um certo sujeito, João, tem um determinado
conhecimento das sonatas de Beethoven. Apesar de se assemelharem neste aspecto,
estas afirmações atribuem ao João géneros de conhecimento muito diferentes.
A afirmação A significa que João já ouviu as sonatas referidas, isto é, que já esteve em
contacto auditivo com esses objectos musicais. Diz-se, por isso, que uma afirmação
como A atribui um conhecimento p o r contacto a um certo sujeito. Costumamos usar o
verbo «conhecer» para nos referimos a este género conhecimento. Por exemplo, se
perguntarmos a uma pessoa se conhece Paris, estamos a perguntar-Ihe se já esteve na
cidade, se alguma vez esteve em contacto directo com esse local. E se alguém nos disser
conhece Eusébio, provavelmente estará a dizer-nos que chegou a estar na sua presença,
que viu e conversou com o jogador.
De um modo geral, tem-se conhecimento por contacto de um objecto (seja esse objecto
uma pessoa, um monumento, uma obra de arte ou qualquer outra coisa) quando se está ou se
esteve na presença de objecto da forma apropriada. O conhecimento por contacto
consiste, portanto, em ter uma experiência directa dos objectos.
A afirmação B atribui a João um certo conhecimento prático de Beethoven. Esta afirmação diz-
nos que o sujeito possui uma certa aptidão, que consiste em saber executar as sonatas do
compositor. O conhecimento prático consiste na posse de aptidões, de capacidades de
realizar determinadas tarefas. Saber nadar, saber multiplicar de cabeça ou saber apagar as
provas de um crime são exemplos de conhecimento prático. Apresenta-se por vezes este
género de conhecimento como um «saber fazer».
Por fim, a afirmação C atribui ao sujeito um certo conhecimento proposicional acerca de
Beethoven. Pode-se dizer que este género de conhecimento se caracteriza por ter uma
proposição como objecto. No caso da afirmação C, a proposição exprime-se pela frase

Beethoven compôs sonata”. Tal como em relação ao conhecimento prático, usa-se
geralmente o verbo «saber» para atribuir conhecimento proposicional a alguém, só que este
conhecimento consiste num «saber que» e não num «saber fazer». É de conhecimento
proposicional que se fala nas seguintes afirmações:
• Eu sei que Madrid é a capital de Espanha.
• Toda a gente sabe que ele perdeu as eleiçoes.
• Maria sabe que Miguel voltará a chegar atrasado.
• Eles sabem que 7 x 6 = 42.
Como e fácil constatar, em cada uma destas afirmações a expressão que se segue ao
«que» exprima certa proposição.
Note-se que nem sempre é assim tão evidente que estamos falar de conhecimento
proposicional. Consideremos a afirmação «Sara conhece a tabuada toda». Apesar de não
estarmos a usar aqui uma expressão do género «sabe que», esta afirmação significa que o
sujeito em causa tem um certo conhecimento proposicional, pois dizer que Sara conhece a
tabuada é o mesmo que fazer uma série de afirmações como «S sabe que 2 x 1 = 2», «Sara
sabe que 2 x 2 = 4», etc.

Conhecimento proposicional
«
Quando perguntam 0 que é o conhecimento?», os filósofos geralmente estão interessados em
esclarecer apenas a natureza do conhecimento proposicional. A perspectiva que vamos examinar
agora, apresentada por Platão no diálogo Teeteto, pode ser vista como uma definição ou
uma análise deste conceito de conhecimento. Note-se que no Teeteto, Platão não defende esta
definição. Ela é introduzida neste diálogo, mas acaba por ser colocada perante objecções, que ficam
por superar. Porém, dado que foi Platão quern apresentou a primeira vez a definição tradicional
de conhecimento, não deixa de ser apropriado designá-la por «platónica».
O ojectivo da análise tradicional é o de indicar as condições em que qualquer sujeito, que
podemos designar pela letra S, tem conhecimento cujo objecto é uma proposição P. Assim,
»
uma forma precisa de formular o problema «O que e o conhecimento? é a seguinte:
• Em que circunstâncias S sabe que p?
Queremos saber, portanto, em que condições se pode dizer que um sujeito tem conhecimento

proposicional. Por exemplo, se S for João e p for a proposição expressa pela frase Beethoven
compôs sonatas”, a frase dir-nos-á em que condições se pode dizer que João sabe que
Beethoven compôs sonatas. De acordo com a análise platónica, o conhecimento proposicional
envolve três condições fundamentais: uma condição de crença ou opinião (doxa); uma condição
de verdade (aletheia) e uma condição de justificação (logos). Desenvolvamos agora esta análise.
O conhecimento requer uma certa atitude do sujeito. Mais precisamente, se um sujeito tem
conhecimento proposicional, então acredita na proposição em questão. Isto leva-nos à seguinte
condição:
• Se S sabe que p, então S acredita que p .
Por exemplo, se Sara sabe que Saturno é um planeta, então acredita que Saturno é um
planeta. A crença é, portanto, uma condição necessária para o conhecimento. Mas nao é uma
condição suficiente: a crença não basta para o conhecimento; é preciso algo mais. Suponha-
se que Manuel acredita que Saturno á uma estrela. Poderemos dizer que ele sabe tal coisa? É
óbvio que não, já que é falso que Saturno seja uma estrela. Manuel pode julgar que sabe que
Saturno é uma estrela, mas está enganado a esse respeito. Ele sabe aquilo que julga saber.
Estes exemplos sugerem uma forma evidente de avançar na análise. Nem todas as crenças
constituem conhecimento; só as crenças verdadeiras podem resultar em conhecimento. Ou
seja, outra condição necessária para o conhecimento é a de que proposição em que se
acredita seja verdadeira. Chegamos a este resultado:
• Se S sabe que p, entao (1) S acredita que p e (2) é verdade que p.
Pelo que vimos até aqui, todo o conhecimento proposicional consiste em crenças ou opiniões
verdadeiras. Mas será que basta ter uma crença ou opinião verdadeira para possuir
conhecimento? Platão percebeu claramente que não, isto é, que nem todas as opiniões
verdadeiras constituem conhecimento. Imaginemos que Sara pergunta a Pedro que tipo de
astro é Saturno e que ele lhe responde que é um cometa. Porém, ela ouve mal a resposta
e fica a acreditar que Saturno é um planeta. Será que Sara sabe que Saturno é um
planeta? Ela tem aqui uma crença verdadeira, mas nao diríamos que sabe tal coisa, já que a sua
crença se deve apenas a um equívoco que, por mero acaso, a conduziu à verdade.
A questão que se coloca agora é a seguinte: o que tern de haver para que uma crença ou opinião
verdadeira constitua conhecimento? A resposta tradicional é a de que uma crença verdadeira só
constitui conhecimento caso se baseie numa justificaçao adequada. Por outras palavras, quando
acreditamos que uma proposiçao é verdadeira, só podemos dizer que sabemos que ela é verdadeira
se tivermos boas razões para acreditar nela. Ora, é precisamente isto que falta no caso de Sara, o
que nos leva a este avanço decisivo na análise:
• Se S sabe que p, entao (1) S acredita que p; (2) é verdade que p e (3) S tem uma
justificação para acreditar que p.
Isto significa que as condições 1, 2 e 3 são separadamente necessárias para o conhecimento
– se pelo menos uma delas não for satisfeita, não estaremos perante um exemplo de
conhecimento. De acordo com a análise platónica, as condições 1, 2 e 3 são também
conjuntamente suficientes para o conhecimento – se todas elas forem satisfeitas (isto é, se um
sujeito tem uma crença verdadeira justificada), então estamos seguramente perante um exemplo de
conhecimento. Resumindo, a análise tradicional que tem origem em Platão é a seguinte:
• S sabe que p se, e apenas se,
(1) S acredita que p;
(2) p é verdadeira;
(3) S tem uma justificação para acreditar que p.
Por exemplo, se uma pessoa sabe que Saturno é uma estrela, então tem a crença verdadeira
justificada de que Saturno é uma estrela, e se tem essa crença verdadeira justificada, então sabe
tal coisa.

4.1.3. Contra-exemplos à analise platónica


A análise platónica do conceito de conhecimento proposicional foi aceite durante muito tempo,
mas no século passado Edmund Gettier colocou-a em causa num breve artigo. Este autor
apresentou alguns corntra-exemplos a essa análise. Esses contra-exemplos visam mostrar que
nem toda a crença verdadeira justificada constitui conhecimento, isto é, que as condições
1, 2 e 3 não são conjuntamente suficientes para o conhecimento. Gettier pensa, portanto,
que é possivel ter uma crença verdadeira justificada, mas ainda assim não ter conhecimento.
Consideremos um dos contra-exemplos que ilustram esta possibilidade. Imaginemos que Miguel
tem boas razões para acreditar que quem vai conseguir um certo emprego não é ele, mas João, e
que viu há pouco que João tem dez moedas no bolso. Deste modo, Miguel tem uma crença
justificada na seguinte proposiçao:
A. João vai conseguir o emprego e João tem dez moedas no bolso.
Tomando A como premissa, Miguel deduz a seguinte conclusão:
B. 0 Homem que vai conseguir o emprego tem dez moedas no bolso.
Dado que Miguel acredita justificadamente em A e infere correctamente B a partir de A,
podemos dizer que tem também uma crença justificada em B. Mas imaginemos agora que
João acabará por conseguir o emprego e que, na verdade, é o proprio Miguel que ficará com
ele. (Isto significa que a proposiçao A é falsa.) E suponhamos também que Miguel, ainda que
não o saiba, tambem tem dez moedas no bolso.
Concentremo-nos na proposição B. Miguel acredita justificadamente nesta proposição e, afinal
B é uma proposição verdadeira. Portanto, Miguel tem uma crença verdadeira justificada em B.
Mas apesar de as três condições da análise platónica serem satisfeitas neste caso, a verdade é
que Miguel não sabe que o homem que vai conseguir o emprego tem dez moedas no
bolso. Afinal, aquilo que torna B verdadeira são os factos de ele (e não João) vir a
conseguir o emprego e de ele (e não João) ter dez moedas no bolso: Miguel ignora
completamente estes factos. É por mero acaso que Miguel acaba por ter uma crença verdadeira
justificada em B.

Os contra-exemplos de Gettier são um pouco complexos, mas existem contra-exemplos


muito simples à análise platónica do conceito de conhecimento, pelo que vale a pena introduzir
um deles. Imaginemos que Sofia tem fortes razões para acreditar que um certo relógio público é
extremamente fiável. Cada dia que ela passa pelo relógio e vê que este indica que são nove horas
da manhã. Sofia forma então a crença que são nove horas da manhã, e esta crença está
justificada pelos dados que revelam a fiabilidade do relógio. Contudo, sem que Sofia o saiba, o
relógio está parado há algum tempo, mas curiosamente parou quando eram nove horas. Nestas
circunstâncias, Sofia acredita justificadamente que são nove horas da manhã e a sua crença é
verdadeira, só que ela não sabe que são nove horas da manhã. Afinal, teve apenas sorte de
passar pelo relógio num momento em que este indicava a hora correcta.
Os contra-exemplos deste género colocam o chamado problema de Gettier. Se para existir
conhecimento não é suficiente que exista uma crença verdadeira justificada, o que mais será
necessário para garantir o conhecimento? A análise tradicional parece estar incompleta. É
preciso encontrar uma quarta condição que permita evitar estes e outros contra-exemplos.
4.1.4. Justificação infalível e falível
Na verdade, existe uma forma simples de evitar os contra-exemplos a análise tradicional.
Podemos alegar que uma crença só estará adequadamente justificada se estiver apoiada por
razões tão fortes que não exista a menor hipótese de ela ser falsa. Assim, diremos que a crença
de Miguel na proposição A não está justificada, pois ele não podia ter a certeza absoluta de que
João ia conseguir o emprego. E diremos que a crença de Sofia também não está justificada,
pois ela não podia ter a certeza absoluta de que o relógio estava certo.
Em suma, se estipularmos que é preciso uma crença estar infalivelmente justificada para que
a condição 3 da análise platónica seja satisfeita, podemos evitar o problema de Gettier.
Porém, esta forma de evitar os contra-exemplos costuma ser considerada insatisfatória,
porque se dissermos que qualquer crença justificada tem de excluir toda a possibilidade
de erro teremos de concluir que quase nenhuma das nossas crenças está justificada, o que
é muito implausível. Por exemplo, parece-nos que acreditamos justificadamente que Saturno é
um planeta, que a água é H2O ou que Fernando Pessoa escreveu 0 Livro do
Desassossego, mas não é completamente impossível que estas crenças sejam falsas.
Admitimos, então, que uma crença pode estar justificada e mesmo assim ser falsa, o que é o
mesmo que reconhecer que podemos ter crenças falivelmente justificadas. Ao reconhecermos
isto, claro, deixamos de poder evitar o problema de Gettier.

4 . 2 . C o n h e c i m e n t o a posteriori e a priori
Antes de avançarmos para o segundo problema deste capítulo, temos de distinguir duas
espécies de conhecimento proposicional.
O conhecimento a posteriori (ou conhecimento empírico) é aquele que depende da
experiência, seja ela sensorial ou introspectiva. A experiência sensorial advém dos nossos
sentidos (visão, audição, tacto...), os quais nos colocam em contacto com o mundo exterior,
com aquilo que existe fora de nós. A experiencia introspectiva advem daquilo que encontramos
dentro de nos (emoçoes, desejos, dores...).
O nosso conhecimento a posteriori é constituído por crenças que só podemos justificar se
recorrermos a dados empíricos, isto é, a informaçao que nos é fornecida pelos sentidos ou pela
introspeção. O conhecimento facultado pelas Ciências da Natureza e pelas Ciências
Humanas e a posteriori e o mesmo se pode dizer de muito do conhecimento que obtemos
todos os dias. As seguintes afirmações ilustram o conhecimento a posteriori:
• Estão três cadeiras nesta sala.
• Ontem estive profundamente triste.
• O 25 de Abril pôs fim a guerra colonial.
• Nem todos os cisnes sao brancos.
• Doí-me imenso o braço.
• O universo está em expansão desde o Big Bang.
As proposições que estas frases podem exprimir são a posteriori, pois não podemos
saber se são verdadeiras sem recorrer a dados empíricos.

O conhecimento a priori é aquele que não depende da experiência empírica. O nosso


conhecimento a priori é constituído por crenças que podemos justificar recorrendo
unicamente ao pensamento, sem nos basearmos em quaisquer dados empíricos. As
verdades da lógica e da matemática, bem como quaisquer afirmações que possamos saber
que são verdadeiras pensando apenas no seu significado, constituem conhecimento a
priori. As seguintes afirmações ilustram o conhecimento a priori:
• Os solteiros não são casados.
• Tudo aquilo que é branco tem cor.
• 523 x 2 = 1046
• a+b=b+a
• O Universo está em expansão ou o Universo não está em expansão.
Será que o conhecimento a priori se reduz ao conhecimento de verdades como estas?
Esta questão está na origem da divergência entre dois géneros de filósofos: os empiristas e os
racionalistas.

4.2.1. Empirismo
Os empiristas, entre os quais se inclui Hume, são cépticos quanto ao conhecimento a
priori. De um modo geral, não negam inteiramente a existência deste conhecimento, mas
pensam que ele se circunscreve à logica, à matemática e às verdades meramente
linguísticas. Os empiristas declaram que a lógica, a matemática e todas as afirmações que
são verdadeiras por definição nada nos dizem realmente sobre o mundo. Pensam,
portanto, que não existe conhecimento a priori dos factos do mundo, ou seja, que todo o
conhecimento factual é a posteriori ou empírico.

4.2.2. Racionalismo
Os racionalistas, entre os quais se inclui Descartes, geralmente não negam que exista
conhecimento a posteriori, mas pensam que, recorrendo unicamente à razão ou ao
pensamento, podemos obter conhecimento factual genuíno. Por exemplo, muitos
racionalistas pensam que podemos saber a priori que Deus existe ou que a mente é
distinta do corpo. Os racionalistas supõem frequentemente que o conhecimento a priori,
por oposição ao conhecimento empírico, assenta em justificações certas ou infalíveis.

4.3. Descartes contra o cepticismo


Consideremos agora o nosso segundo problema epistemológico:
• Será que sabemos o que julgamos saber?
Este é o problema da validade do conhecimento e o cepticismo consiste em dar-Ihe uma
resposta negativa. Os cépticos declaram que as nossas pretensões ao conhecimento não são
válidas, ou seja, que o conhecimento não passa de uma ilusão e que, portanto, nada sabemos
realmente. Note-se que os empiristas, ainda que sejam cépticos em relação ao
conhecimento a priori, não defendem esta posição radical. Note-se também que o termo
«validade» não designa aqui a força lógica dos argumentos.

4.3.1. A dúvida metódica

Descartes tem o objectivo de mostrar que os cépticos estão enganados. Pensa que, se
seguirmos o método que nos propõe, poderemos mesmo ficar com um conhecimento
certo, isto é, infalivelmente justificado. A epistemologia de Descartes (ou cartesiana) é
desenvolvida em várias obras, sendo de destacar o Discurso do Método (1637) e as
Meditações sobre a Fiiosofia Primeira (1641).
Segundo Descartes, para obtermos a certeza temos de encontrar um fundamento
inteiramente para o conhecimento. Por outras palavras, temos de encontrar crenças ou
convicções que não possam ser colocadas em dúvida, a partir das quais seja possível
justificar infalivelmente outras crenças ou convicções. Como haveremos de encontrar esse
fundamento seguro? Recorrendo à dúvida, sugere Descartes. Comecemos por examinar
as nossas crenças, tentando determinar se podemos colocá-las em dúvida. Rejeitemos
todas as nossas crenças em que possamos imaginar a menor dúvida – talvez algumas delas
sejam verdadeiras, mas, como não resistem aos argumentos dos cépticos, não podem
servir de fundamento para o conhecimento, pelo que devemos tratá-Ias como se fossem
falsas. É nisto que consiste a dúvida metódica: vamos tentar colocar em dúvida as nossas
crenças, rejeitando provisoriamente todas aquelas que não sejam inteiramente indubitáveis.
Se descobrirmos que certas crenças resistem a todo e qualquer argumento céptico, poderemos
considerá-Ias certas ou indubitáveis e tomá-Ias como fundamento para o conhecimento. O
recurso à dúvida é assim um meio para chegar à certeza.
Descartes começa por apresentar argumentos cépticos para duvidarmos de todas as
nossas crenças se baseiam na experiência empírica. Um desses argumentos parte da
ideia de que os nossos sentidos sao completamente fiáveis:
Os nossos sentidos enganam-nos em algumas ocasiões. Como é imprudente confiar
naqueles que nos enganam nem que seja uma só vez, devemos rejeitar todas as nossas
crenças empíricas, pois é possível que estas sejam falsas.
Temos também o argumento do sonho:
Nunca podemos distinguir por sinais completamente seguros o sono da vigília. Assim, é
possível que estejamos a sonhar quando nos julgamos acordados e, portanto, talvez tudo
aquilo que pensamos estar a observar não passe de uma ilusão.
Estes argumentos sugerem que tudo aquilo que julgamos conhecer atraves dos sentidos é duvidoso
e que, portanto, as nossas crenças empíricas ou a posteriori não podem servir de fundamento
para um conhecimento certo. Mas podemos também colocar em dúvida crenças a priori, como
as que temos na área da matemática, que nos parecem completamente certas. Descartes
pensa, na verdade, que mesmo uma crença como a de que 5 + 7 = 12 não é indubitável.
Para mostrar que um céptico poderia colocar em questão as crenças deste género, Descartes
introduz o argumento do génio maligno, o qual também nos permite questionar todas as
crenças empíricas, tendo por isso um alcance mais vasto do que os argumentos anteriores.
O génio maligno é uma espécie de deus enganador – um ser extremamente poderoso e
malévolo que está empenhado em fazer-nos viver na ilusão. Sem que o soubessemos, este
ser poderia controlar os nossos pensamentos e fazer-nos cometer os erros de raciocínio
mais elementares. Ora, se existir um génio maligno, mesmo na matemática seremos
induzidos sistematicamente em erro, e tudo aquilo que julgamos existir à nossa volta não
passará de uma ilusão. (Estaremos tão iludidos como a maioria dos seres humanos do filme
Matrix.) Descartes não está a dizer-nos que existe um génio maligno – está apenas a
dizer-nos que não podemos excluir à partida a possibilidade de esse ser existir, e que, se
ele existir, quase tudo aquilo em que acreditamos será falso. Assim, quase tudo aquilo em
que acreditamos admite alguma dúvida.

4.3.2. O cogito
Ainda que quase nenhuma das nossas crenças seja indubitável, Descartes pensa que há
algo de que não podemos duvidar. Afinal, se estamos a colocar as nossas crenças em
dúvida, estamos a duvidar, e duvidar é uma forma de pensar. E, se estamos a pensar,
então existimos. Cada um de nós pode então afirmar com toda a segurança:
∎ Eu penso, logo existo.

Esta afirmação é conhecida por cogito. Para Descartes, o cogito constitui o fundamento
certo do conhecimento, pois nem mesmo um génio maligno poderia enganar-nos no que
respeita a nossa própria existência. Repare-se que o cogito nos assegura apenas da nossa
própria existência enquanto seres pensantes. A existência dos outros e a existência do
nosso corpo talvez sejam ilusões. À partida, cada um de nós pode ter apenas a certeza de
que é uma «substância» cuja natureza é o pensamento. O cogito proporciona um ponto de
partida seguro para o conhecimento. Mas como haveremos de avançar a partir do cogito?
Como poderemos chegar ao conhecimento do mundo exterior e saber que aquilo que
nos rodeia não é uma ilusão?
Descartes começa por sugerir uma explicação para a certeza que o cogito exibe. Estamos
absolutamente certos de que o eu penso, logo existo é uma verdade porque
compreendemos com toda a clareza e distinção que para pensar é preciso existir. Descartes
admite então a seguinte regra geral:
∎ É verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente.
Este é o critério das ideias claras e distintas. Se, como no caso cogito, temos uma percepção
intelectual completamente clara e distinta da ideia considerada, podemos ter a certeza de estar
perante uma ideia verdadeira.

4.3.3. A existência de Deus


Descartes tenta mostrar depois que a existência de Deus é algo que conseguimos
conceber ou compreender com toda a clareza e distinção. Para esse efeito, apresenta
diversos argumentos a priori (isto é, sem premissas empíricas, baseadas na experiência) a
favor da existência de Deus.
Um desses argumentos diz-nos que a nossa ideia de um ser mais perfeito do que nós tem
a sua origem em Deus. Podemos resumi-lo desta forma:
Como duvido, sei que sou imperfeito. Mas tenho a ideia de um ser muito mais perfeito do
que eu. Ora, aquilo que é menos perfeito não pode criar aquilo que é mais perfeito. Por
isso, a minha ideia de um ser mais perfeito do que eu não pode ter sido criada por mim –
essa ideia tem de ter sido colocada em mim por um ser mais perfeito do que eu. Na
verdade, esse ser tem de possuir todas as perfeições concebíveis, ou seja, tem de ser
Deus.
Outro dos argumentos é uma versão do argumento ontológico. Este baseia-se na ideia
de que a existência é essencial à perfeição:
Quando examino a ideia de triângulo, compreendo que os seus três ângulos têm de ser
iguais a dois ângulos rectos. Do mesmo modo, quando examino a ideia de um ser perfeito
(ou seja, a ideia de Deus), compreendo que este tem de existir. Afinal, a propriedade de
existir é algo que um ser perfeito não pode deixar de ter: se não existir, não será perfeito,
pois faltar-lhe-á essa perfeição.
Estabelecida a existência de Deus, a hipótese do génio maligno pode ser afastada. Como
Deus não é malévolo, seguramente não pretende enganar-nos. Dado que as nossas
ideias provêm de Deus, declara Descartes, não podem deixar de ser verdadeiras na
medida em que forem claras e distintas.
A existência de Deus proporciona assim uma justificação para o critério das ideias claras
e distintas. Sabemos que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos clara e distintamente
porque as nossas faculdades de conhecimento foram criadas por Deus, que não é um ser
enganador. Assim, se usarmos bem as nossas faculdades, confiando apenas no que
compreendemos clara e distintamente, chegaremos de certeza à verdade e evitaremos o
erro. Podemos então estar seguros de que aquilo que nos rodeia não é uma ilusão: o
mundo exterior é real e nós podemos conhecê-lo. Resumindo, Deus valida as nossas
pretensões ao conhecimento, permitindo-nos afastar o cepticismo. Dado que Deus existe,
podemos ter realmente conhecimento, e não estar enganados a respeito daquilo que
julgamos saber.

4.3.4. O círculo cartesiano


Muitos dos críticos de Descartes rejeitam os seus argumentos a favor da existência de
Deus. No que respeita ao primeiro argumento, pode-se contestar, por exemplo, o princípio
segundo o qual aquilo que é menos perfeito não pode causar ou criar algo mais
perfeito. No que respeita ao argumento ontológico, pode-se replicar, por exemplo, que a
existência nem sequer é uma propriedade, pelo que não faz sentido afirmar que um ser
perfeito tenha necessariamente a propriedade de existir.
Mas a teoria de Descartes, além das críticas aos argumentos que visam provar que
Deus existe, está sujeita a uma crítica especialmente poderosa: a de que envolve uma
falácia de circularidade. Esta suposta falácia, que se tornou conhecida por círculo
cartesiano, resulta do facto de Descartes aceitar aparentemente estas duas afirmações:
Á Deus existe porque concebemos clara e distintamente a sua existência, e tudo
aquilo que concebemos clara e distintamente é verdadeiro.
Á Tudo aquilo que concebemos clara e distintamente é verdadeiro porque Deus existe.
Ou seja, Descartes tenta provar que Deus existe mostrando, através dos argumentos
acima indicados, que a sua existência é uma ideia clara e distinta. Mas o que nos garante
que as ideias claras e distintas sao verdadeiras? Como vimos, Descartes diz-nos que
podemos confiar nas ideias claras e distintas porque Deus é o seu autor. Gera-se assim
uma circularidade viciosa: tenta-se justificar a proposição de que Deus existe pressupondo
o critério das ideias claras e distintas, e depois tenta-se justificar este critério apelando à
existência de Deus.

4.4. 0 cepticismo mitigado de Hume


David Hume perseguiu o objectivo de desenvolver uma teoria da natureza humana, por
meio da qual pretendia explicar o funcionamento da nossa mente. A sua epistemologia
empirista, que é a parte fundamental dessa teoria, encontra-se essencialmente no Livro I
do Tratado da Natureza Humana (1739) e na Investigação sobre o Entendimento Humano
(1748).

4.1. Impressões e ideias


Hume fala de percepções para se referir aos conteúdos da nossa mente. De acordo com a
sua perspectiva, as impressões e as ideias são as duas únicas espécies de percepções.
Estas diferem de uma forma puramente qualitativa: as impressões sao mais vívidas e intensas
do que as ideias. As impressões abrangem as nossas sensações externas (visuais,
auditivas, tácteis, etc.), bem como os nossos sentimentos internos (emoções, desejos,
etc.). As ideias são as percepções que constituem o nosso pensamento. Por exemplo, se
estamos a ver um objecto azul, estamos a ter uma impressão de azul, ao passo que se
estivermos a imaginar ou a recordar um objecto azul, estamos a ter uma ideia de azul. A
ideia de azul é menos intensa e vívida do que a respective impressão. Do mesmo
modo, o sentimento de alegria é uma impressão, mas recordar esse sentimento, reflectir
sobre ele ou imaginar o que sente alguém que está alegre é ter uma ideia de alegria, a qual
nunca será tao vívida e intensa como a própria impressão.

Para esclarecer a relação que existe entre impressões e ideias, Hume propõe o princípio
da cópia:
∎ Todas as nossas ideias são cpias das nossas impressoões.

Por outras palavras, todas as nossas ideias têm uma origem empírica. Portanto, não
existem ideias inatas, ou seja, não existem ideias que o nosso entendimento ou intelecto
não tenha formado a partir da experiência. A experiência empírica fornece os materiais a
partir dos quais se geram todas as nossas ideias, mesmo as mais elaboradas e abstractas.
Uma das razões que Hume apresenta a favor do princípio da cópia é a seguinte: aqueles que
estão privados de certas impressões são incapazes de formar as ideias
correspondentes. Por exemplo, uma pessoa que seja cega de nascença não conseguirá
formar a ideia de azul, já que nunca teve qualquer impressão de azul.

O que dizer das ideias que não correspondem a qualquer impressão que tenhamos tido?
Por exemplo, podemos ter a ideia de cavalo azul, mas nunca ter observado um cavalo
azul. Hume sugere que os exemplos deste género na verdade apoiam o princípio da
cópia. Nunca tivemos uma impressão de um cavalo azul, mas já observámos cavalos e já
observámos objectos azuis, pelo que temos a ideia de cavalo e a ideia de azul. A partir
destas ideias, podemos formar a ideia mais complexa de cavalo azul. Assim, ainda que
todas as nossas ideias simples sejam cópias directas de impressões, o nosso pensamento
combina imaginativamente essas ideias de modo a formar ideias mais complexas, que no
seu todo muitas vezes não correspondem a nada que tenhamos observado ou sentido
alguma vez.

4.4.2. Relações de ideias e questões de facto


Hume diz-nos que as relações de ideias e as questões de facto são os dois tipos
fundamentais de objectos da investigação humana. Consideremos algumas das
proposições que Hume apresenta para esclarecer esta distinção:
• O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos.
• Três vezes cinco é igual à metade de trinta.
• O sol vai nascer amanhã.
• O calor e a luz são efeitos do fogo.
As duas primeiras proposições desta lista exprimem relações de ideias, ao passo que as duas
últimas exprimem questões de facto. O que as distingue? Hume explica a sua diferença essencial
nos seguintes termos:
• A negação de uma proposição que exprime uma relação de ideias implica uma
contradição.
• A negação de uma proposição que exprime uma questão de facto não implica
uma contradição.
Assim, se dissermos que três vezes cinco não é igual à metade de trinta, estaremos a contradizer-
nos, a afirmar algo que é logicamente impossível. Porém, se dissermos que o sol não vai
nascer amanhã, estaremos a afirmar algo que é logicamente possível, apesar de nos parecer
muitíssimo improvável. A ideia de o sol não nascer amanhã não envolve qualquer contradição, já
que conseguimos conceber perfeitamente essa situação.
Podemos dizer, então, que no domínio das relações de ideias conhecemos verdades
necessárias, enquanto no domínio das questões de facto conhecemos apenas verdades
contingentes. Por exemplo, é necessariamente verdadeiro que os triângulos têm três
lados, pois é impossível que esta proposição seja falsa. Mas é apenas contingentemente
verdadeiro que existem gatos negros. É verdade que existem gatos negros, mas podiam
nunca ter existido – a ideia de não existirem gatos negros é perfeitamente inteligível.
As proposições da Matemática constituem o melhor exemplo de verdades que captam
relações de ideias. Mas como conhecemos estas verdades? Conhecemo-las a priori.
Algumas delas são intuitivamente certas e descobrimos outras por meio de
demonstrações. O raciocínio pelo qual se fazem as demonstrações é dedutivo. Assim,
como partimos de premissas certas e raciocinamos dedutivamente a partir dessas
premissas, chegamos sempre a conclusões que também são garantidamente verdadeiras.
Contudo, esta certeza tem um “preço”: as proposições que exprimem relações de ideias
são certas mas apenas porque nada nos dizem sobre aquilo que existe no mundo. (Como
Hume observa, mesmo que não existisse na Natureza um único círculo ou triângulo, as
proposições da geometria não deixariam de ser verdadeiras.) Assim, temos aqui
conhecimento a priori, mas este conhecimento é de certo modo vazio: no âmbito das
relações de ideias nada ficamos a saber sobre o mundo; descobrimos apenas como
combinar coerentemente as nossas ideias.
Para Hume o conhecimento das questões de facto é completamente diferente. Todo este
conhecimento é a posteriori, ou seja, baseia-se naquilo que estamos a observar ou sentir,
bem como naquilo que nos recordamos de ter observado ou sentido. Além disso, as
proposições que exprimem questões de facto dizem respeito àquilo que existe efectivamente no
mundo. Mas será que estas proposições se circunscrevem ao que observamos ou sentimos?
Não, muitas vezes levam-nos além da nossa experiência. Por exemplo, encontramos um
relógio numa ilha deserta e inferimos algo que não observamos: que esteve alguém naquela
ilha. Vemos um amontoado de cinzas e inferimos que alguém fez uma fogueira, ainda que não
tenhamos presenciado esse acontecimento.
Que género de raciocínio subjaz a estas inferências? Hume salienta que não é o raciocínio
demonstrativo dedutivo. (Não podemos demonstrar que houve uma fogueira a partir da premissa
que descreve a observação das cinzas, pois é possível que essa premissa seja verdadeira e nao
tenha havido uma fogueira.) 0 raciocínio relativo às questoes de facto é muito diferente do
raciocínio demonstrativo dos matemáticos, pois tem um carácter indutivo e assenta na relação de
causa e efeito – a relação de causalidade. Observando o relógio ou as cinzas, inferimos que estes
são efeitos de certas causas que não observámos.

4.4.3. Causalidade
Como descobrimos as causas e os efeitos daquilo que observamos? A resposta de Hume é a
seguinte:
• O nosso conhecimento das relações causais baseia-se na experiência.
Por outras palavras, não podemos descobrir a priori, recorrendo unicamente ao pensamento,
que certos objectos ou acontecimentos causam outros objectos ou acontecimentos. Para
justificar esta perspectiva, Hume afirma que os objectos ou os acontecimentos entre os quais
se verifica uma relação causal sao completamente distintos. Assim, se não tivermos o auxílio da
experiência, nunca poderemos descobrir que efeito terá um certo objecto ou acontecimento,
nem que causa o produziu. Suponha-se que arremessamos uma pedra para um vidro. Se nao
tivermos qualquer conhecimento empírico acerca do vidro, seremos incapazes de prever que o
arremesso terá o efeito de o quebrar. Do mesmo modo, se não nos basearmos na experiência
passada, nao conseguiremos inferir que um monte de cinzas foi causado por uma fogueira. Na
verdade, se um ser humano chegasse a este mundo com uma grande capacidade de
raciocínio, mas sem qualquer experiência, não conseguiria fazer inferências causais – seria
totalmente incapaz de descobrir as causas e os efeitos daquilo que estivesse a observar.
O que estamos a dizer, então, quando afirmamos que existe uma relação causal
entre certos objectos cu acontecimentos? Hume dá-nos esta resposta:
• A causalidade consiste apenas numa conjunção constante entre géneros de
acontecimentos ou de objectos observáveis.
Consideremos uma relação causal entre dois acontecimentos ou objectos, A e B. Segundo Hume,
dizer que A causa B (ou que B é um efeito de A) corresponde a afirmar que os acontecimentos ou os
objectos do género de A estão constantemente conjugados corn os objectos ou acontecimentos
do genero de B. Por exemplo, se dissermos que o arremesso da pedra causou a quebra do
vidro, isto significa que aos arremessos suficientemente similares se seguem sempre quebras
similares. E a afirmação de que a fogueira causou as cinzas significa que aos objectos
suficientemente similares à fogueira se seguem sempre cinzas similares. Resumindo, as relações
causais consistern em meras regularidades observáveis. Em termos gerais, afirmar que A causa B
e dizer que sempre que ocorre ou existe algo do género de A a seguir ocorre ou existe algo do género
de B.
Contra a perspectiva de Hume, pode-se objectar que a causalidade não consiste em simples
regularidades empíricas, na mera conjunção repetida de dois géneros de acontecimentos ou de
objectos, pois aquilo que é essencial numa relação causal é a existencia de uma conexão
necessária entre causa e efeito. Por outras palavras, pode parecer-nos que a causalidade consiste
numa ligação entre dois objectos ou acontecimentos, mediante a qual um deles (a causa) tern um poder
que produz necessaria ou inevitavelmente o segundo (o efeito).
Em resposta a esta objecção, Hume procede a uma investigação da nossa ideia de conexão
necessária. Se esta é uma ideia genuina (isto é, se a expressão «conexão necessária»
significa alguma coisa), então, pelo princípio da copa, tem a sua origem nas nossas impressões.
A investigagao de Hume condu-lo primeiro a uma conclusão negativa:
• A ideia de conexão necessária não resulta dos nossos sentidos externos.
Observamos uma causa e a seguir observamos o seu efeito. Vemos assim que a causa e o
efeito estão conjugados, mas nunca vemos que estão conectados, isto é, nunca conseguimos
observar qualquer poder que faça a causa produzir necessariamente o efeito. Como surge,
então, a ideia de que existe uma ligação necessária entre os dois? A conclusão positiva de
Hume é a seguinte:

A ideia de conexão necessária resulta de um sentimento interno adquirido pelo hàbito.


Retomemos o exemplo da fogueira e da cinza. Em casos particulares, não conseguimos
observar qualquer conexão necessária entre estes dois objectos. Porém, se virmos
repetidamente fogueiras e a seguir amontoados de cinza, acontecerá o seguinte: sempre
que estivermos diante de uma fogueira, o hábito conduzir-nos-á á expectativa de observar
um amontoado de cinza depois desta se extinguir. A conexão entre os dois objectos é
então algo que sentimos na nossa mente e é este sentimento que produz a ideia de
conexão necessária. Deste modo, a conexão necessária entre causa e efeito não é exterior
à nossa mente, não existe nas próprias coisas; é antes algo que existe na nossa mente e
que a nossa mente projecta no mundo, criando a ilusão de que essa conexão se verifica
na realidade. Porém, fora de nós não encontramos mais do que regularidades ou
conjunções constantes entre objectos ou acontecimentos.

4.4.4. Criticas ao cepticismo radical


Hume apresenta-se como um defensor de um cepticismo mitigado ou moderado e
distingue a sua posição de duas formas de cepticismo radical: o cartesiano e o pirrónico.
O cepticismo cartesiano é radical e antecedente. É radical porque recomenda uma dúvida
universal, convidando-nos a questionar todas as nossas crenças e tambem a fiabilidade
das nossas faculdades mentais. E este cepticismo é antecedente porque surge como uma
preparação para a investigação, e não como um resultado da mesma. Como vimos,
Descartes não pretende ficar pelo cepticismo, já que o seu objectivo é suplantá-la
definitivamente. Recorre-se à dúvida para encontrar um primeiro princípio, que Descartes
acaba por identificar com o cogito, capaz de fundamentar todo o conhecimento.
A critica principal de Hume ao cepticismo cartesiano é a de que este e «incurável».
Mesmo que encontremos um primeiro princípio, não conseguiremos ir além dele se não
confiarmos nas nossas faculdades. Ora, como Descartes coloca em questão as nossas
faculdades, não pode consegui ir além do cogito. Sem confiar na sua faculdade de
raciocinar, será incapaz de suplantar o cepticismo, pois não poderá ter confiança em
qualquer raciocínio que lhe permita estabelecer alguma conclusão a partir do cogito. 0
céptico cartesiano está condenado a saber apenas que ele próprio existe e pouco mais.
O cepticismo pirrónico, emblematicamente defendido nas obras de Sexto Empirico (fl. C. 200
d. C.), é tambem radical, mas consequente. É consequente porque se apresenta como o
resultado da investigação, do exame das nossas faculdades e opiniões, e não como um
momento preliminar da investigação. 0 pirrónico é um ceptico na acepção mais pura do
termo, pois é alguem que apresenta argumentos com o objectivo de derrubar todas as nossas
pretensões ao conhecimento e de nos remeter a uma dúvida universal e permanente.
A crítica principal de Hume ao cepticismo pirrónico é a de que este e impraticavel. Por
muito bons que sejam os argumentos filosóficos que visam por em questão as nossas
pretensões ao conhecimento, na prática somos incapazes de levá-los a sério durante a
maior parte do tempo. Devido à nossa natureza, não conseguimos deixar de acreditar, por
exemplo, que o mundo exterior é real e uniforme. Certas crenças são tão fundamentais e
importantes para a acção que nem o pirrónico consegue colocá-las realmente em dúvida,
excepto nos raros momentos em que se entrega a reflexão filosófica. Ninguem consegue
viver como um céptico pirrónico, pelo que esta forma de cepticismo é destituída de sentido.

4.4.5. Duas conclusões cépticas de Hume


Hume é um céptico, pois acredita que a investigação filosófica abala profundamente muitas
das nossas pretensões ao conhecimento. Duas das suas conclusões cépticas mais
importantes são as seguintes:
1. A nossa crença na uniformidade da Natureza é racionalmente injustificada.
2. A nossa crença na realidade do mundo exterior é racionalmente injustificada.

No que respeita a 1, importa observar que, segundo Hume, a crença na uniformidade da Natureza
subjaz todas as nossas inferências causais. Inferimos que as cinzas se seguirão à fogueira, ou
que o arremesso da pedra fará o vidro quebrar-se, porque acreditamos que a natureza é
uniforme, isto é, porque acreditamos que o seu curso não se vai alterar de um momento para o
outro e que as regularidades observadas no passado continuarão a verificar-se no futuro. Contudo,
Hume sugere que não temos qualquer justificação ou razão para acreditar na uniformidade da
Natureza. (Examinaremos o seu argumento a favor desta tese no próximo capítulo.) A nossa
crença na uniformidade da Natureza não é mais do que um fruto do hábito, de um certo “instinto”
que nos leva a esperar que a causas semelhantes se hão-de seguir efeitos semelhantes. Deste
modo, as nossas inferências causais parecem ser injustificadas, já que se baseiam numa crença
que não está justificada.
A crença na realidade do mundo exterior é a crença de que os objectos que nos rodeiam
são reais, isto é, existem independentemente das nossas percepções. Por exemplo, se
acreditamos que uma certa mesa que estamos a observar é real, então acreditamos que
esta continuará a existir quando já não estivermos a percepcioná-la – acreditamos que a
sua existência é independente da nossa mente. O realismo é a perspectiva segundo a
qual o mundo exterior é real, o que significa que muitos dos objectos que percepcionamos
têm esta existência independente.
Mas que relação existirá entre as nossas percepções e os objectos exteriores? Afinal, não
podemos confindir as primeiras com os segundos. Por exemplo, à medida que nos
afastamos de uma mesa as nossas percepções vão mudando, vemo-la cada vez mais
pequena, mas pensamos que a própria mesa permanece igual. Por isso, as nossas percepções
da mesa não são a própria mesa.
Hume sugere que o realista tem de encarar as percepções como representações dos
objectos exteriores. As nossas percepções da mesa representam a própria mesa, isto é,
são causadas por ela e assemelham-se a ela em alguns aspectos. (Para usar uma
imagem actual, podemos dizer que as percepções da mesa são uma espécie de fotografia
da mesa.) O realista aceita então a seguinte hipótese:
∎ As percepções dos sentidos são causadas por objectos exteriores que, embora sejam

semelhantes a elas, existem independentemente da nossa mente.


A questão que agora se coloca é a de saber se temos razões para acreditar na hipótese
realista. Afinal, existem outras hipóteses: talvez as nossas percepções sejam causadas por um
génio maligno; talvez, à semelhança das alucinações e das imagens dos sonhos, sejam produzidas
involuntariamente pela nossa própria mente.
A conclusão céptica de Hume é a de que não podemos encontrar razões que apoiem a
hipótese realista e nos permitam afastar as hipóteses alternativas. Afinal, para descobrirmos
que as nossas percepções são causadas por objectos exteriores, teríamos de encontrar uma
conjunção constante entre objectos e percepções, pois, como vimos, para Hume a causalidade
corresponde apenas a uma conjunção constante. Porém, é impossível encontrar essa
conjunção entre percepções e objectos exteriores, pois só as percepções nos podem surgir
constantemente conjugadas. Logo, não temos razões para crer que as nossas percepções
são um efeito de objectos exteriores. Hume resume assim este argumento: «[n]ada jamais está
presente ao espírito senão as percepções, e ele não tem maneira de conseguir qualquer experiência
da conexão destas com os objectos. A hipótese dessa conexão não tem, portanto, qualquer
fundamento no raciocínio.» (1748: 164-5).

4.4.6. Cepticismo mitigado


Os resultados cépticos de Hume são muito fortes. Não podemos ter uma crença justificada
na uniformidade da Natureza nem na realidade do mundo exterior. Um céptico pirrónico
extrairia daqui a conclusão radical de que devemos deixar de acreditar que a Natureza é
uniforme e que o mundo exterior é real. Hume recusa-se a extrair esta conclusão e é por
isso que o seu cepticismo é mitigado ou moderado.
Segundo Hume, não podemos deixar de acreditar que a Natureza é uniforme e que o
mundo exterior é real. Estas crenças fazem parte da natureza humana e na vida quotidiana
nós não conseguimos pensar nem agir na sua ausência. Os argumentos cépticos são
impotentes para as destruir. Que importância têm então esses argumentos? Hume sugere
que estes têm uma certa importância prática. Como mostram que as nossas
capacidades de conhecimento são muito limitadas, levam-nos a adoptar as seguintes
atitudes:
1. Evitar o dogmatismo no pensamento e na tomada de decisões.
2. Evitar investigações demasiado especulativas.

O céptico moderado caracteriza-se por ter estas atitudes. Dado que está consciente das
limitações do entendimento humano, tem uma mente aberta ao mesmo tempo que rejeita
todas as pretensões ao conhecimento em questões demasiado distantes da experiência. «Se
nem sequer podemos apresentar uma razão satisfatória para acreditar, depois de mil experiências,
que uma pedra vai cair, ou que um fogo vai queimar», pergunta Hume, «como poderiamos nos dar
por satisfeitos quanto a qualquer decisão que viéssemos a tomar sobre a origem dos mundos e a
situação da Natureza, desde o início até ao fim da eternidade» (1748: 173)?

4.5. Comparação entre Descartes e Hume


Tomando como referência os problemas da origem e da validade do conhecimento,
concluamos este capítulo com uma breve comparação entre as teorias epistemológicas de
Descartes e de Hume.

4.5.1. A origem do conhecimento


Existe alguma fonte prioritária de conhecimento? Reconhecem-se habitualmente duas fontes
principais de conhecimento: a experiência e o pensamento. Tanto Descartes como Hume
admitem estas fontes de conhecimento, mas atribuem-Ihes uma prioridade diferente.É esta
divergência que nos leva a caracterizar o primeiro como um racionalista e o segundo como um
empirista.
Segundo Descartes, todo o conhecimento genuíno, infalivelmente justificado, encontra o seu
fundamento no pensamento ou na razão. É na intuição racional do cogito que encontramos a
primeira certeza, a partir da qual podemos inferir, de uma forma totalmente a priori, os alicerces
de tudo o que sabemos.
Hume, pelo contrário, encontra na experiência a fonte prioritária de conhecimento. Só a
experiência nos permite resolver questões de facto. Por si mesmo, o nosso pensamento
consegue apenas estabelecer relações de ideias, as quais nada nos dizem acerca do mundo
exterior. Todo o conhecimento dos factos que constituem o mundo é a posteriori.

4.5.2. A validade do conhecimento


Será que sabemos realmente aquilo que julgamos saber? Será que as nossas pretensões
ao conhecimento são válidas? Este, como vimos, é o problema da validade do conhecimento.
Descartes diria que, à partida, as nossas pretensões ao conhecimento não são válidas. Mas
validá-las é algo que está ao nosso alcance. Recorrendo à dúvida metódica, acabamos por
descobrir o cogito e depois por provar que Deus existe. A existência de Deus garante que as
nossas faculdades, devidamente utilizadas, proporcionam conhecimento.
Hume, pelo contrário, sugere que muitas das nossas pretensões ao conhecimento são
infundadas. Temos conhecimento das nossas proprias percepções, mas quando vamos além
do testemunho dos sentidos e da memória passamos a apoiar-nos em suposições que nao
conseguimos justificar, nomeadamente na suposição de que a natureza é uniforme, a qual
subjaz a todas as inferências causais, e na suposição de que o mundo exterior é real. Como
muitas das nossas crenças se apoiam nestas suposições e elas não estão justificadas,
podemos inferir que também essas crenças não estão justificadas e que, portanto, não
constituem conhecimento.

Resumo do capítulo
Estrutura do acto de conhecimento

• O conhecimento envolve uma relação entre sujeito e objecto. O primeiro é aquele


que conhece; o segundo é aquilo que é conhecido.
• Existem três géneros ou conceitos de conhecimento:
- o conhecimento por contacto, que consiste numa experiência directa dos objectos;
- o conhecimento prático («saber fazer»), que consiste em aptidões para realizar tarefas;
- o conhecimento proposicional («saber que»), que consiste em conhecer proposições,
em saber que estas são verdadeiras.
• A análise ou definição tradicional do conceito de conhecimento proposicional tem a
sua origem no diálogo Teeteto, de Platão.
• De acordo com esta análise, o conhecimento consiste em crenças verdadeiras
justificadas. Mais precisamente, um sujeito S sabe que uma proposição p é verdadeira se, e
apenas se:
- S acredita que p;
- p é verdadeira;
- S tem uma justificação para acreditar que p.
• Existem contra-exemplos a esta análise que sugerem que ter uma crença verdadeira
justificada não é suficiente para ter conhecimento.
• O problema de Gettier surge desses contra-exemplos. Este é o problema de
descobrir o que, além de ter uma crença verdadeira justificada, é necessário para ter
conhecimento.
• O problema de Gettier coloca-se apenas se admitirmos que a justificação pode ser
falível. Se exigirmos que a justificação seja infalível, os contra-exemplos deixarão de existir
e esse problema não se colocará. Porém, a aceitação desta exigência leva à conclusão
implausível de que qualquer crenga que tenha menor possibilidade de ser falsa nunca esta
justificada.
• O conhecimento a posteriori é aquele que depende da experiência. Consiste em
crenças verdadeiras que não podem ser justificadas sem dados empíricos.
• O conhecimento a priori é aquele que é independente da experiência. Consiste
em crenças verdadeiras que podem ser justificadas pelo pensamento puro, sem o recurso
a dados empíricos.
• Os empiristas defendem que todo o conhecimento dos factos do mundo é a
posteriori. Os racionalistas defendem que algum desse conhecimento é a priori.

A teoria explicativa do conhecimento de Descartes

• A teoria racionalista de Descartes baseia-se na dúvida metódica. De modo a


encontrar um fundamento absolutamente seguro para o conhecimento, devemos começar
por rejeitar todas as crenças que admitam a menor dúvida.
• Existem várias razões para pôr em dúvida muitas das nossas crenças:
- os sentidos não são completamente fiáveis;
- podemos estar a sonhar quando nos julgamos acordados;
- pode existir um génio maligno que esteja a enganar-nos sistematicamente.
• Mas algo sobrevive até à hipótese do génio maligno: o cogito, a crença de que eu
penso, logo existo.
Esta crença é uma certeza fundamental, pois compreendemos com toda a clareza e
distinçao que não podemos pensar sem existir.

• Tambem a existência de Deus é uma ideia clara e distinta. Deus existe porque:

- a ideia de um ser perfeito tem de ter sido causada por um ser perfeito;

- um ser perfeito não pode deixar de ter a perfeição de existir.


• Como Deus existe e não é um ser enganador, podemos estar certos de que, se
usarmos bem as nossas faculdades, confiando apenas naquilo que compreendemos com
clareza e distinção, obteremos conhecimento genuíno.

• O círculo cartesiano representa uma das objecções mais fortes à teoria de


Descartes. Afirmar que Deus existe porque concebemos a sua existência com clareza e
distinção, é dizer depois que podemos confiar naquilo que concebemos com clareza e
distinção porque Deus existe, parece constituir uma falácia de circularidade.

A teoria explicativa do conhecimento de Hume

• A teoria empirista de Hume parte de uma distinção entre dois tipos de percepções
ou conteúdos mentais: as impressões, que são as percepções mais vividas, e as ideias,
que sao as percepções mais ténues.
• De acordo com o princípio da cópia, todas as nossas ideias têm a sua origem em
impressões externas (dados dos sentidos) ou internas (sentimentos e desejos).
• Existem dois géneros de investigação: a investigação de relações de ideias e a
investigação de questões de facto.
• O conhecimento de relações de ideias é a priori e corresponde a proposições
que têm as seguintes características:
- são verdades necessárias (não podemos negá-las sem nos contradizermos);
- nada dizem sobre o que existe no mundo.
• O conhecimento de questões de facto é a posteriori e corresponds a proposições
que têm as seguintes caracteristicas:
- são verdades contingentes (podemos negá-Ias sem nos contradizermos);
- dizem respeito àquilo que existe no mundo.
• Raciocinar sobre relações de ideias é fazer demonstrações, as quais têm um carácter
dedutivo.
• Raciocinar sobre questões de facto é fazer inferências causais, as quais têm um
carácter indutivo.
• O nosso conhecimento das relações causais baseia-se na experiência.
• A causalidade consiste apenas na conjunção constante entre géneros de objectos
ou acontecimentos observáveis.
• Nunca observamos qualquer conexão necessária entre causa e efeito. A ideia de
conexão necessária tem origem num sentimento interno produzido pelo hábito.
• Todas as formas de cepticismo radical são indefensáveis:
- O cepticismo cartesiano é incurável. Se começarmos por desconfiar totalmente das
nossas faculdades, nunca conseguiremos estabelecer qualquer conclusão a partir do cogito.
- O cepticismo pirrónico é impraticável. Deixar de acreditar em tudo o que não
consigamos justificar, vivendo permanentemente na dúvida, é algo que está fora do
nosso alcance e que tornaria impossível a acção.
• Devemos adoptar um cepticismo mitigado. O cepticismo resulta das seguintes
conclusões:
- Somos incapazes de justificar a crença de que a Natureza é uniforme, a qual subjaz às
nossas inferências causais.
- Somos incapazes de justificar a crença de que o mundo exterior é real, pois não
conseguimos mostrar que as nossas percepções são causadas por objectos reais.
Estatuto do conhecimento científico
5.1. Conhecimento vulgar e conhecimento científico
O conhecimento vulgar corresponde ao senso comum. As fronteiras do senso comum são
muito indefinidas, pelo que nem sempre é facil dizer o que esta incluído neste género de
conhecimento. Seja como for, o senso comum abrange aquelas coisas que quase toda a gente
sabe, que nós vamos aprendendo desde muito cedo de uma forma quase inconsciente. As
seguintes proposições ilustram o conhecimento de senso comum:
• O metal derrete quando é aquecido.
• É mais seguro beber água depois de a termos fervido.
• O estrume fertiliza os solos.
• Os cães têm um faro apurado.

Podemos, então, caracterizar o senso comum da seguinte maneira:


• O conhecimento de senso comum inclui aquelas crenças amplamente
partilhadas cuja justificação decorre da experiência colectiva e acumulada dos seres
humanos.
O que distingue o senso comum da ciência? Uma diferença nítida é a seguinte: ao passo
que o conhecimento de senso comum e assistemático, pois consiste em informações
bastante dispersas e logicamente pouco estruturadas, o conhecimento científico é
sistemático, já que as diversas ciências consistem em corpos organizados de
conhecimento.
Mas esta diferença não basta para demarcar o senso comum da ciência. Afinal, nem
toda informação organizada, por muito sistemática que seja, proporciona conhecimento
científico. Para captar a diferença mais significativa entre estas duas formas de
conhecimento, Ernest Nagel faz a seguinte proposta:
• As ciências distinguem-se do senso comum porque têm em vista uma explicação dos
factos simultaneamente sistemática e controlável pela experiência.
Ao nível do senso comum, os factos ficam por explicar ou recebem explicações muito
superficiais. Ao nivel da ciência, pelo contrário, o objectivo é explicar tão profundamento
quanto possível os factos conhecidos. Por exemplo, o senso comum diz-nos que o
metal dilata quando é aquecido, mas só a ciência nos mostra por que motivo isto acontece.
O mesmo se pode dizer das restantes afirmações atrás apresentadas.
As explicações científicas partem de teorias. E essas teorias são sistemáticas e
controláveis pela experiência. O que significa isto?
As teorias científicas são sistemáticas de uma forma especial: visam unificar os fenómenos.
O mundo tal como o observamos parece ser muito caótico e irregular. Os cientistas
tentam encontrar uma ordem por detrás das aparências e para esse efeito avançam
hipóteses que visam captar as leis da Natureza. Quando são bem-sucedidos, conseguem
explicar fenómenos muito diversos e aparentemente díspares a partir de um número muito
reduzido de leis.
As teorias científicas são controláveis pela experiência porque não são meramente
especulativas. Os cientistas testam as teorias, confrontam-nas com a experiência e têm
uma disposição geral para as modificar caso estas não estejam de acordo com aquilo que
observamos no mundo.
Esta disposição para rever as teorias aceites em cada momento é uma parte essencial da
atitude crítica que acompanha a ciência. Como os cientistas tem esta atitude e, portanto,
não encaram as teorias da sua época como doutrinas inquestionáveis, o corpo de teorias
que constitui a ciência está constantemente a mudar. As mudanças mais drásticas, que
implicam a substituição de certas teorias importantes por outras muito diferentes,
constituem revoluções científicas.
Ao nível do senso comum não encontramos esta atitude. É por isso que o senso comum é
um corpo de crenças bastante estável, pouco sujeito a mudanças rápidas ou radicais. Ainda
assim, o senso comum não é completamente estático, e por vezes acaba por sofrer a
influência das descobertas científicas. Por exemplo, hoje é do senso comum que a Terra
não está no centro do Universo, que muitas doenças são causadas por organismos
invisíveis a olho nu ou até que a água é H2O. Mas todas estas crenças resultam da
investigação científica realizada há séculos.
Outra diferença importante entre o senso comum e a ciência reside na linguagem. Ao
passo que os termos do senso comum são frequentemente vagos e imprecisos, a
linguagem científica é rigorosa. O rigor na linguagem não é um capricho dos cientistas.
Na ausência desse rigor, não se consegue conceber teorias que unifiquem os fenómenos
e que possam ser controladas pela experiência.

5.2. A indução na ciência


Concentremo-nos agora no segundo problema. Será que as teorias científicas podem
ser verificadas pela experiência?

5.2.1. Verificabilidade
Uma proposição que pode ser verificada pela experiência é uma proposição que é
verificável. Elucidemos esta noção:
∎ A verificabilidade corresponde àquilo que admite uma comprovação conclusiva pela

experiência.
Por exemplo, a proposição «Existem corvos negros» é verificável, pois basta observar um
corvo negro para podermos concluir com toda a segurança que ela é verdadeira. Afinal,
de uma premissa como «Está aqui um corvo negro» pode-se deduzir validamente a
conclusão «Existem corvos negros».
Já a proposição «Todos os corvos são negros» não é verificável. Por muitos corvos negros
que já tenhamos observado, não podemos excluir a possibilidade de existirem algures
corvos de outra cor. Não podemos, portanto, deduzir que todos os corvos são negros a
partir da informação disponível. Por isso, a experiência não pode comprovar esta
proposição, pois esta poderá um dia revelar-se falsa. Muitas proposições universais têm
esta característica.
Contudo, admite-se geralmente que uma proposição como «Todos os corvos são
negros», apesar de não ser verificável, ainda assim parece ser confirmável. Elucidemos
também esta noção:
∎ A confirmabilidade corresponde àquilo que admite uma confirmação indutiva ou

probabílistica pela experiência.


A proposição «Todos os corvos são negros» parece ser confirmável porque, se tivermos
já observado muitos corvos negros e nenhum corvo de outra cor, concluimos que é
provável que todos eles sejam negros. Partindo da informação disponível, podemos inferir,
por indução, que todos os corvos são negros.
Resumindo, uma proposição é verificável se é possível estabelecer de uma vez por todas
que ela é verdadeira a partir da observação. E uma proposição é confirmável se é possível
mostrar, recorrendo à observação, que ela provavelmente é verdadeira. A confirmabilidade
é, então, uma variante mais modesta da verificabilidade, sendo por isso conhecida também
por «verificabilidade fraca».
Diferenciadas estas duas noções, podemos ver agora que se podem colocar duas questões
significativamente diferentes:
1. Será que as teorias científicas podem ser comprovadas (isto é, verificadas) pela
observação?
2. Será que as teorias científicas podem ser confirmadas (isto é, verificadas de uma forma
mais modesta) pela observação?

A resposta à questão 1 é negativa. As teorias científicas incluem proposições universais


que visam captar leis da Natureza – as leis científicas. E estas proposições, como a
afirmação de que todos os corvos são negros, não podem ser comprovadas pela
experiência. Por isso, as teorias científicas não admitem essa comprovação, ou seja, uma
verificação definitiva ou conclusiva. É por esta razão, aliás, que a ciência vai mudando:
como as teorias aceites em cada momento nunca estão comprovadas, é sempre
possível que venham a revelar-se falsas, o que acontece com bastante frequência.

A questão 2 é mais controversa. Como veremos, Popper responde-Ihe pela negativa. De


acordo com o seu falsificacionismo, a observação nunca pode dar qualquer apoio indutivo a
uma teoria científica. Segundo Popper, o raciocínio indutivo não desempenha qualquer
papel na Ciência. Os indutivistas, pelo contrário, respondem afirmativamente à questão 2.
Pensam, portanto, que as teorias científicas podem ser confirmadas, isto é, parcialmente
verificadas.

5.2.2. Indutivismo
Existem muitas formas de indutivismo. A versão de indutivismo que vamos agora examinar
exprime a perspectiva comum ou popular do método científico, pelo que não representa
fielmente o pensamento de qualquer filósofo da ciência influente. Podemos resumir esta
perspectiva em três teses fundamentais:
1. A observação é o ponto de partida da investigação científica.
2. As teorias científicas são elaboradas mediante um processo de generalização indutiva.
3. Depois de a teoria ter sido elaborada, faz-se o seguinte:
a. tenta-se encontrar confirmações adicionais para a teoria;
b. usa-se a teoria na procura de generalizações indutivas mais vastas.
Elucidemos agora cada uma destas teses. Para esse efeito, tomemos como exemplo uma
teoria extraordinariamente simples, que se resume à seguinte lei científica:
• Toda a água sob pressão normal ferve a 100 °C.
A tese 1 exprime a ideia de que a observação precede a teoria. Antes de conceber
qualquer teoria, o cientista observa o mundo e regista uma grande quantidade de factos
observacionais. A sua observação deve ser totalmente pura ou isenta, isto é, o cientista
deve «observar as coisas como são», sem se deixar influenciar pelas teorias em que
acredita. O nosso investigador das propriedades da água começa, então, por aquecer
diversos recipientes com porções diferentes de água, e vai registando pacientemente a
temperatura a que cada uma dessas porções entrou em ebulição.
A tese 2 exprime a ideia de que a passagem da observação para a teoria se dá mediante
inferências indutivas. Os factos observacionais dizem respeito a casos particulares. Partindo
de premissas que descrevem esses factos, o cientista esforça-se por extrair conclusões
teóricas universais. Para o exemplo introduzido, a inferência indutiva é muito simples:
Cada uma das porções de água sob pressão normal que foram examinadas ferveu ao atingir
os 100 °C. Logo, toda a água sob pressão normal ferve a 100 °C.
Segundo o indutivismo, então, as proposições universais que captam leis da Natureza são
descobertas por indução. O cientista começa por observar o mundo e, quando dispõe de
informação suficiente, chega às teorias fazendo generalizações indutivas.
Depois de ter inferido que toda a água sob pressão normal ferve a 100 °C, o que faz o
nosso investigador? A tese 3 diz-nos que ele pode avançar de duas formas.
Em primeiro lugar, pode esforçar-se por encontrar mais casos particulares que confirmem
a sua teoria. Se, por exemplo, toda água que observou até ao momento foi fervida em
recipientes de barro, ele pode querer saber agora se a água também ferve a 100 °C
quando é aquecida noutros recipientes. Caso descubra que é esse o caso, a sua teoria
ficará confirmada num grau mais elevado, receberá apoio adicional da experiência.
Em segundo lugar, pode apoiar-se nos resultados alcançados para fazer novas
generalizações, esperarndo assim descobrir leis mais abrangentes e profundas. Suponha-
se que o cientista, também por indução descobre que a água ferve a temperaturas
diferentes quando está sob outras pressões. Reunindo todos os seus resultados, poderá vir
a descobrir uma lei mais abrangente e profunda que exiba a relação geral entre o ponto de
ebulição da água e a pressão existente.
Resumindo, o indutivista vê a ciência como um corpo de conhecimento solidamente assente
na observação. Todas as teorias científicas resultam de generalizações feitas a partir da
experiência e à medida que a ciência avança essas generalizações vão sendo cada vez
mais numerosas e abrangentes.
5.2.3. Criticas ao indutivismo
A versão de indutivismo que acabámos de considerar enfrenta objecções insuperáveis.
Podemos destacar duas dessas objecções:
1. Não existe observação pura.
2. As teorias científicas referem objectos que não são observáveis.
O indutivista diz-nos que a investigação científica assenta na observação pura, isto é, na
observação que conduzida será a influência de quaisquer teorias. Contudo, a observação pura
e impossivel. Sempre que registam aquilo que observam, os investigadores são influenciados
de diversas formas por teorias: têm certas expectativas teóricas, aceitam certos pressupostos
teóricos, confiam em certas teorias. Quanto mais a ciência avança, aliás, menos pura é a
observação. A observação científica envolve o recurso a muitos instrumentos, como
termómetros, telescópios e microscópios. Estes instrumentos são um fruto da própria inves-
tigação científica e, portanto, quem os utiliza esta a confiar nas teorias que os tornaram possiveis.
O indutivista diz-nos também que as teorias científicas são generalizações formadas a partir da
observação de casos particulares. Contudo, muitas teorias científicas referem objectos como
neutrinos e electrões, genes e moléculas de ADN. Estes objectos não são observaveis, ou pelo
menos não eram observaveis na altura em que foram concebidas as teorias que os referem.
Por isso, essas teorias não podem ter sido desenvolvidas mediante simples generalizações
indutivas baseadas na observação.

5.2.4. O problema da induçao


As objecções apresentadas não refutam um dos aspectos do indutivismo: a simples ideia de que
as teorias cientificas podem ser confirmadas pela observação. Qualquer perspectiva que
atribua algum papel à indução na ciência inclui esta ideia, mas mesmo ela está sujeita a uma
critica muito forte que resulta de um argumento ceptico de Hume. Esse argumento pode ser
resumido nos seguintes termos:
1. As inferências indutivas baseiam-se no princípio da indução.
2. Este princípio não pode ser justificado a priori.
3. Este principio não pode ser justificado a posteriori.
4. Logo, nenhuma inferência indutiva é justificavel.
Examinemos agora cada uma das premissas deste argumento e vejamos como estas
conduzem a conclusão céptica.
Comecemos pela premissa 1. Como vimos no capítulo anterior, Hume defende que as inferências
causais pressupõem que a Natureza é uniforme, ou seja, que as regularidades já observadas na
Natureza continuarão a registar-se no futuro. Para usar uma expressão mais concisa do que
«princípio da uniformidade da Natureza», designemos este pressuposto por «princípio da
indução». Na verdade, este princípio não está subjacente apenas às inferências causais. Ele
subjaz a todas as inferencias indutivas, incluindo as que não captam qualquer relação de causa e
efeito, como aquela que resulta na conclusão de que todos os corvos são negros.
A premissa 1 é plausível. Se a Natureza não for uniforme, se ela for extraordinariamente irregular,
então a observação de alguns corvos negros não nos autoriza a inferir sequer que é
provável que todos tenham essa cor ou que o próximo corvo que observarmos tambem será
negro. As generalizações e as previsoes indutivas parecem realmente depender do
princípio da indução. Mas será que este princípio é justificavel? Poderemos encontrar
algum bom argumento a favor da perspectiva de que a Natureza é uniforme?
A premissa 2 diz-nos que é impossível justificar a priori o principio da indução. Ou seja,
recorrendo apenas ao pensamento, não conseguiremos encontrar qualquer razão para
acreditar que a Natureza é uniforme. Partindo da sua distinção entre relações de ideias e
questões de facto, Hume defende esta tese aproximadamente nos seguintes termos:
Todo o nosso conhecimento a priori diz respeito a verdades necessárias, as quais captam relações
de ideias. Mas o princípio da indução não é uma verdade necessária, pois a sua negação é
perfeitamente inteligível: a hipotese de a Natureza ser completamente caótica não envolve qualquer
contradição. Portanto, não podemos conhecer a priori - nem, consequentemente, justificar a priori
- o princípio da indução.

Resta, então, a possibilidade de justificar a posteriori o princípio da indução. Mas a


premissa 3 do argumento de Hume nega também esta possibilidade. Ao defender que não
é possivel justificar através da experiência que a Natureza é uniforme, Hume sustenta que
qualquer tentativa de justificação conduzira a uma petição de princípio.
Afinal, como podemos tentar justificar o princípio da indução recorrendo à experiência?
Podemos alegar que a Natureza é uniforme porque, pelo que observamos até hoje, de
um modo geral as regularidades observadas até uma certa altura continuaram a registar-
se posteriormente. Esta tentativa de justificação traduz-se no seguinte argumento:
A Natureza tem-se mostrado uniforme nas observações que fizemos até hoje. Logo, a
Natureza em geral é uniforme.
Ora, este argumento é ele próprio uma inferência indutiva, pois consiste numa
generalização realizada a partir da experiência. Mas se é uma inferência indutiva, então,
como qualquer inferência deste género, também pressupõe que a Natureza é uniforme.
Portanto, este argumento pressupõe aquilo que importa provar (o princípio da indução),
pelo que não passa de uma petição de princípio.
Podemos expôr este resultado de outra forma. Qualquer tentativa de justificação do
princípio da indução que se baseie na experiência consistira num argumento indutivo a favor
desse princípio. Contudo, justificar a indução recorrendo a uma inferência indutiva é algo
que não se pode fazer, pois a credibilidade da indução é precisamente aquilo que está em
questão.
Vejamos por fim como a conclusão céptica de Hume se segue das três premissas já
esclarecidas. Dado que não se pode justificar o princípio da indução nem a priori nem a
posteriori, é impossível justificá-lo. Pura e simplesmente não temos qualquer boa razão
para acreditar que a Natureza é uniforme. Dado que todas as inferências indutivas
pressupõem o princípio da indução, e dado que este é injustificável, tamém elas são
injustificáveis.
Assim, a observação de muitos corvos negros não nos dá a menor razão para acreditar sequer
que é provável que todos os sejam. Do mesmo modo, a observação de muitas porções de
água sob pressão normal que ferveram aos 100 °C não justifica a conclusão de que
provavelmente toda a água ferve a essa temperatura.
Qual é, então, o problema da indução? E o problema de encontrar uma refutação
satisfatoóia do argumento céptico de Hume e, consequentemente, de mostrar que
algumas das inferências indutivas que fazemos estão justificadas. Apesar de terem surgido
muitas propostas para resolver este problema filosófico, ele continua em aberto.

5.3. O falsificacionismo de Karl Popper


Analisemos agora a filosofia da ciência de Popper. Os temas mais importantes a
considerar são os seguintes:
• O seu critério de cientificidade
• A sua perspectiva do método científico
• A sua perspectiva do crescimento do conhecimento científico
• A sua “dissolução” do problema da indução

5.3.1. O problema da demarcação


O que tern de especial as teorias científicas? Como podemos distingui-las das teorias que
não são científicas? Este é o problema da demarcação e constitui o ponto de partida da
filosofia da ciência de Popper.
Para solucionar este problema, temos de encontrar um critério de cientificidade
adequado, isto é, precisamos de descobrir uma propriedade (ou um conjunto de
propriedades) que nos permita estabelecer uma fronteira entre a ciência empírica e as
demais áreas teóricas. Uma das razões para nos interessarmos por este problema é a de
que muitas teorias que por vezes sao apresentadas como ciência não passam, na vedade,
de pseudociência. A astrologia é um exemplo óbvio de pseudociência.

5.3.2. Dois critérios de cientificidade


Uma solução possível para o problema de demarcação é o critério da verificabilidade.
Este critério é o seguinte:
• Uma teoria é científica se, e apenas se, é verificável.
Por outras palavras, uma teoria científica é aquela que pode ser comprovada pela experiência.
Este critério é inadequado, não resolve satisfatoriamente o problema da demarcação.
Vimos já que as teorias científicas incluem leis, isto é, proposições universais que visam
captar regularidades naturais. E vimos também que estas proposições não são
verificáveis, não podem ser comprovadas pela experiência. Por isso, o critério da
verificabilidade implica que as teorias que incluem leis não são científicas, o que é
absurdo, já que um dos grandes objectivos da ciência é a descoberta das leis da Natureza.
Outra solução possível é o critério da confirmabilidade, que é o seguinte:
• Uma teoria é científica se, e apenas se, é confirmável.
Por outras palavras, uma teoria científica é aquela que pode ser confirmada (ou
parcialmente verificada) pela experiência.
Este critério é mais promissor. Afinal, parece-nos que as leis científicas podem ser
confirmadas pela experiência, ou seja, que pela observação podemos descobrir que
provavelmente certas leis são verdadeiras.
Contudo, Popper aceita a conclusão céptica de Hume a respeito da indução, e por isso
defende que as leis científicas não podem ser confirmadas. Como nenhuma inferência
indutiva é racionalmente aceitável ou justificável, a observação de casos particulares nunca
nos permite apoiar ou confirmar minimamente uma lei científica. Dado que, segundo Popper,
as leis científicas não são sequer confirmáveis, o critério da confirmabilidade fracassa pela
mesma razão que o anterior.
Resumindo, Popper rejeita tanto o critério da verificabilidade como o da confirmabilidade
enquanto respostas para o problema da demarcação. E rejeita-os porque pensa que
estes critérios têm a implicação absurda de que uma teoria científica não pode incluir
proposições universais que visem captar leis da Natureza.

5.3.3. O critério da falsificabilidade


Se aquilo que demarca as teorias científicas das não científicas não é a possibilidade de as
verificarmos ou confirmarmos empiricamente, que propriedade das teorias determinará a
sua cientificidade? A proposta de Popper é a de que essa propriedade é a
falsificabilidade. O seu critério de cientificidade é então o seguinte:
• Uma teoria é científica se, e apenas se, é falsificável.
Uma proposição ou uma teoria é falsificável se é possível mostrar que ela é falsa
recorrendo a observação. Assim, outra forma de formular o critério de Popper é a seguinte:
• Uma teoria é científica se, e apenas se, pode ser refutada (ou falsificada ou testada)
pela experiência.
Se Popper tem razão, as leis científicas nao podem ser verificadas nem sequer confirmadas.
Mas podem ser refutadas. Por isso, o seu critério tem a vantagem de não as excluir da
ciência.
É fácil perceber que as leis científicas, como muitas outras proposições universais, são
falsificáveis. A observação de muitos corvos negros não prova conclusivamente que a
hipótese de que todos os corvos são negros é verdadeira, mas basta observar um único
corvo de outra cor para refutar esta hipótese, para estabelecer a sua falsidade. Ou seja,
as leis científicas, como muitas outras proposições universais, estão sujeitas a contra-
exemplos.
Segundo Popper, então, aquilo que as teorias científicas têm de especial é o facto de
estarem sempre abertas à possibilidade de refutação. Uma teoria genuinamente científica é
aquela que pode ser testada pela experiência e que será refutada se os testes não lhe forem
favoráveis.

5.3.4. Graus de falsificabilidade


As teorias são falsificáveis ou refutáveis em graus diversos. Popper pensa que é bom que uma
teoria científica seja falsificável num grau elevado. Para compreender esta ideia, precisamos da
noção de conteúdo empírico:
∎ O conteúdo empírico de uma teoria (ou de uma proposição) é a informação que esta

nos dá sobre o mundo que observamos.


Consideremos agora a seguinte proposição:
• O cobre dilata quando é aquecido ou não dilata quando é aquecido.
Esta proposição não tem qualquer conteúdo empírico, ou seja, nada nos diz sobre o
mundo que observamos, o «mundo da experiência». E não é falsificável. Estas duas coisas
estão relacionadas: como a proposição nada diz sobre o mundo que observamos, não
existe qualquer observação ou experiência possível capaz de a refutar.
Consideremos agora duas proposições com conteúdo empírico:
• Todo o cobre dilata quando é aquecido.
• Todo o metal dilata quando é aquecido.
Além de terem conteúdo empírico, qualquer uma destas proposições é falsificável. Ambas
seriam refutadas se observassemos um pedago de cobre que não dilatasse ao ser aquecido.
Mas a segunda proposição tem mais conteúdo empírico, é mais informativa do que a primeira.
Por essa razão, tem um grau de falsificabilidade mais elevado, isto é, corre maiores riscos de
ser refutada pela experiência. Por exemplo, a observação de um pedago de ferro que não
dilatasse ao ser aquecido refutá-la-ia, mas não refutaria a primeira proposição.
Chegamos assim a seguinte conclusão:
∎ Quanto mais elevado é o grau de falsificabilidade de uma teoria, maior é o seu conteudo

empírico.
Ou seja, quanto maiores são os riscos que uma teoria corre de ser refutada pela
observação, mais informativa ela é. Ora, é desejável que uma teoria científica nos dê
muita informação sobre o mundo da experiência. Por isso, é tambem desejável que uma
teoria seja falsificavel num grau elevado.
Resumindo, as teorias que não são falsificaveis nada dizem sobre o mundo que observamos
e, portanto, não são científicas, pois uma teoria científica tem de nos dar alguma informação
empírica. E as boas teorias científicas, além de serem falsificaveis, são-no num grau
elevado, pois isso significa que são ricas em conteudo empírico, que contêm informação
vasta e rigorosa sobre o mundo da experiência.

5.3.5. O método das conjecturas e refutações


Popper não se limita a dizer o que tem de especial as teorias científicas. Alem de propor uma
solução para o problema da demarcação, sugere uma perspectiva falsificacionista do método
científico. Para tornar claro o contraste com o indutivismo, podemos resumir esta perspectiva
tambem em três teses fundamentais:
1. Os problemas são o ponto de partida da investigação científica.
2. As teorias são elaboradas mediante um processo de criação de conjecturas.
3. Depois de a teoria ter sido elaborada, importa fazer o seguinte:
a. Tentar refutá-la ou falsificá-la.
b. Identificar os problemas novos que ela cria.

A tese 1 significa que o cientista não é alguém que começa por registar laboriosamente as
suas observações, tentando libertar-se de todas as suposições teóricas enquanto observa
o mundo. Popper insiste na impossibilidade da observação pura. Quando um investigador
observa o mundo, fá-lo de um modo selectivo, pois só lhe interessa observar aquilo que é
relevante para resolver os problemas que motivam a sua investigação. Assim, a
investigação científica parte de problemas. E aquilo que um cientista vê como um
problema depende frequentemente das teorias que ele já aceita ou que são aceites na sua
época.
Para ilustrar a perspectiva de Popper com um exemplo muito simples, imaginemos um
médico do passado. Ele quer saber como evitar que os marinheiros morram de escorbuto
nas suas longas viagens. O problema «Qual é a causa do escorbuto?» é, então, o ponto de
partida da sua investigação.

De modo a tentar resolver o problema ou os problemas que lhe interessam, o cientista


propõe uma teoria.

A tese 2 diz-nos que a concepgao de uma teoria científica, tal como a criação de uma obra
de arte, nãoo obedece a uma «lógica determinada». Uma teoria científica pode ter sido
inspirada por um sonho, por uma associação de ideias inesperada, pela descoberta de
um facto intrigante ou por outra coisa qualquer. As teorias surgem assim como meras
conjecturas, isto é, como hipóteses sugestivas. Popper defende que as boas teorias
científicas são conjecturas ousadas, pois tem um grau elevado de falsificabilidade, o que
significa que se expõem a um grande risco de serem refutadas.
Retomando o nosso exemplo, imaginemos que, depois de várias tentativas falhadas de
resolver o seu problema, o médico visita um paciente que sofre de escorbuto e, para sua
surpresa, constata que ele está melhor. Uns dias depois, recorda-se inesperadamente de
ter reparado que ele comia muita fruta, sobretudo canjas, e assim acaba por conceber esta
conjectura: o escorbuto é provocado por uma alimentação pobre em fruta e pode ser
evitado com a ingestao de laranjas.
Obviamente, não basta propor hipoteses ousadas para fazer avançar a ciência.
A tese 3 diz-nos que depois é preciso testar essas hipóteses, isto e, pô-las à prova para
ver se resistem às tentativas que fazemos para as refutar. Para testar uma hipótese ou
teoria, é preciso deduzir previsões empíricas a partir dela confrontá-las com a observação.
Se as previsões se revelarem incorrectas, a teoria será refutada e será preciso procurar
uma hipótese melhor para resolver o problema. E se as previsões forem correctas?
Nesse caso, diz Popper, tudo que podemos dizer é que, até ao momento, a teoria não foi
refutada, pelo que talvez seja verdadeira. Não podemos dizer que ela foi confirmada pela
experiência, já que, como vimos, Popper pensa que as hipóteses científicas não admitem
qualquer verificação ou confirmação empírica.
No caso do médico, ele poderia testar a sua conjectura começando por raciocinar desta
forma:
Suponha-se que o escorbuto é provocado por uma alimentação pobre em fruta e que
pode ser evitado com a ingestão de laranjas. Nesse caso, se a tripulação de um navio
comer laranjas com frequência, existirão muito menos casos de escorbuto do que o
normal.
Esta última afirmação é a previsão empírica deduzida a partir da conjectura.
Suponhamos que, para determinar se esta previsão é correcta, incluem-se laranjas na
dieta dos marinheiros de uma certa embarcação. Se os casos de escorbuto não diminuírem,
a previsão terá fracassado, o que significa que a conjectura é falsa. E se a previsão se
revelar correcta? Segundo Popper, isso não comprova nem confirma a conjectura do
médico, mas mantém-na credível. É razoável continuar a aceitá-la, pois talvez seja
verdadeira. Até ao momento, resistiu aos testes empíricos a que a sujeitamos.
Popper usa o termo, «corroboração» para se referir ao sucesso das teorias. Uma teoria
que superou todas as tentativas de refutação esta corroborada pela experiência. Isto
significa que ela teve um bom desempenho no passado, mas que nada podemos dizer
sobre o seu futuro.
Note-se que a corroboração da conjectura do médico não significa que a investigação
tenha chegado ao fim, pois a sua teoria suscita novos problemas, nomeadamente o de
saber por que motivo a ingestão de laranjas evita o escorbuto. Uma teoria cientifica é uma
resposta a certos problemas. Mas ela própria suscita novos problemas, geralmente mais
profundos, os quais requerem novas conjecturas e novas tentativas de refutação. A ciência
vai assim progredindo indefinidamente.

5.3.6. O crescimento do conhecimento


Embora defenda que as teorias científicas são aquelas que podem ser falsificadas pela
experiência, Popper sustenta que o objectivo da ciência é encontrar teorias verdadeiras.
Não existe aqui qualquer contradição. Para encontrarmos teorias verdadeiras, temos de
eliminar gradualmente os erros e a melhor forma de fazer isso é submeter as teorias
disponíveis a testes que visem refutá-las.
Se não formos críticos em relação às teorias aceites em cada período, se não as
sujeitarmos a tentativas de refutação, não conseguiremos descobrir os erros que
provavelmente estas encerram. Consequentemente, não conseguiremos encontrar teorias
científicas melhores, que estejam mais próximas da verdade.
Esta é, então, a perspectiva de Popper sobre o crescimento ou progresso do conhecimento
científico:
∎ A ciência progride em direcção à verdade por tentativa e erro, ou seja, pela proposta de

teorias conjecturais e pela eliminação das teorias que são refutadas.

Embora nunca possamos estar certos de ter encontrado uma teoria verdadeira, a experiência
permite-nos descobrir que certas teorias são falsas. Rejeitando as teorias falsas, vamo-nos
aproximando cada vez mais de uma imagem objectivamente verdadeira do mundo.

5.3.7. A dissolução do problema da indução


Popper aceita o argumento céptico de Hume acerca da indução. Por isso, não pertence
solucionar o problema da indução tal como costuma ser entendido, ou seja, não tem o objectivo
de mostrar que as inferências indutivas afinal são justificáveis.
Assim, quando Popper diz ter solucionado o problema da indução, aquilo que quer dizer è que
dissolveu este problema, ou seja, que mostrou que a injustificabilidade da indução não constitui
um embaraço para a ciência. A posição de Popper sobre o problema da indução é a seguinte:
• A indução é injustificável, mas isso não põe em causa a credibilidade ou a
racionalidade da ciência, pois o raciocínio indutivo não desempenha qualquer papel na
investigação científica.
Por um lado, a indução não é necessária para conceber teorias científicas, pois estas são fruto
da criatividade intelectual. Por outro lado, a indução não é necessária para avaliar teorias
científicas. A avaliação de teorias cientificas consiste essencialmente em tentativas de refutação,
e para tentar refutar uma teoria basta recorrer ao raciocínio dedutivo, já que é por dedução que
se inferem as previsões empíricas que depois são confrontadas com a observação.

5.3.8. Criticas ao falsificacionismo


Concluamos esta secção com duas criticais importantes à filosofia da ciência de Popper.
A primeira crítica foi avançada por Kuhn, cuja filosofia da ciência examinaremos na
próxima secção, e pode ser resumida desta forma:
• O falsificacionismo destorce a natureza da actividade científica.
De acordo com esta critica, a maior parte da actividade científica não consiste em tentativas de
refutação das teorias aceites. De um modo geral, os cientistas desenvolvem a sua
investigação com o objectivo de confirmar ou de consolidar as teorias fundamentais da sua
área, e não as consideram refutadas logo que algumas das suas previsões empíricas
fracassam.
A segunda critica é a seguinte:
• O falsificacionismo torna irracional a nossa confiança nas teorias científicas.
Se as teorias científicas não estiverem confirmadas pela observação, não é racional confiar
nelas. Por exemplo, se não tivermos razões muito fortes para acreditar que as teorias físicas
actuais são verdadeiras. Não é racional presumir que as pontes, os aviões ou os
computadores que construímos em conformidade com elas comportar-se mais ou menos
como esperamos.
Ora, Popper diz-nos que as teorias científicas, mesmo quando foram testadas com sucesso, nunca
passam de meras conjecturas, já que nunca são minimamente confirmadas pela observação. Tudo o
que podemos dizer é que ainda não foram refutadas. Assim, nunca temos quaisquer razões para
acreditar que as teorias científicas são verdadeiras. Portanto, parece que confiar nelas em muito
do que fazemos todos os dias é irracional. Por exemplo, se tudo o que pudermos dizer acerca da
fiabilidade dos aviões é que eles foram construídos de acordo com teorias que ainda não foram
refutadas, dificilmente será razoável andar de avião.

5.4. Os paradigmas de Thomas Kuhn


Tomando como referencia a filosofia da ciência de Kuhn, avancemos para o terceiro problema
central deste capítulo: o problema de saber se a ciência é objectiva.
Aqueles que, como Popper, afirmam que a ciência é objectiva, querem dizer com isso que as
teorias cientificas podem descrever correctamente a realidade, e que à medida que o
conhecimento cientifico evolui vamos obtendo uma imagem cada vez mais fiel do mundo como ele
é realmente. Kuhn rejeita esta perspectiva.
5.4.1. O conceito de paradigma
O conceito central da filosofia da ciência de Kuhn é o de paradigmas. Para Kuhn a história
de uma disciplina: científica é uma sucessão de paradigmas. Por exemplo, a Física foi
dominada durante muitos séculos pelo paradigma aristotélico, este acabou por ser substituído
pelo paradigma newtoniano, até que no século XX também este deu lugar a um novo paradigma,
assente nas teorias de Einstein. Mas o que é, afinal, um paradigma?
∎ Um paradigma é toda uma forma de fazer ciência. Um paradigma centra-se numa

teoria que proporciona problemas e soluções exemplares a uma certa comunidade de


investigadores.
Para esclarecer este conceito, tomemos como exemplo o paradigma newtoniano. Este
paradigma centra-se na mecânica de Newton, uma teoria capaz de explicar o movimento a
partir de diversas leis. A teoria de Newton fundou um paradigma porque, por um lado, os
cientistas encontraram nela soluções exemplares para muitos problemas que os
intrigavam, e porque, por outro lado, encontraram nela meios definidos para desenvolver a
investigação.
Um paradigma regula todo o trabalho científico numa certa área de investigação. Por isso,
inclui diversas espécies de regras, como as seguintes:
• Regras para aplicar a teoria a realidade;
• Regras para usar instrumentos científicos;
• Regras para avaliar explicações científicas.
Ao trabalharem sob o paradigma newtoniano, os cientistas aceitavam, então, regras para
aplicar as leis de Newton a objectos como os corpos celestes, regras para usar
instrumentos como o telescópio e regras para conseguir boas explicações a partir das leis.
Um paradigma inclui também pressupostos metafísicos ou filosóficos. Sob o paradigma
newtoniano supunha-se, por exemplo, que tudo o que acontece no universo físico
decorre de leis naturais rigorosas, sem que exista lugar para o acaso. (Esta perspectiva
filosófica é conhecida por «determinismo».)

5.4.2. Da ciência normal à m u d a n ç a d e p a ra d ig m a


Vejamos agora como Kuhn descreve o processo histórico pelo qual se passa de um
paradigma para outro. Quando um paradigma surge, inicia-se um período de ciência
normal.
• A ciência normal consiste na actividade de «resolução de enigmas» conduzida sob
um paradigma.
Os enigmas (ou puzzles, para usar o termo de Kuhn) são os problemas especializados que
surgem com um novo paradigma. Num período de ciência normal, os cientistas não
estão interessados em refutar ou avaliar criticamente a teoria central do paradigma. O que
lhes interessa, pelo contrário, é aumentar a credibilidade dessa teoria, torná-la mais
precisa, aplicá-la a novos campos, e para este efeito esforçam-se por resolver as
questões minuciosas que esta deixou em aberto.
A actividade de resolução de enigmas nem sempre corre da melhor forma. Por vezes os
cientistas não conseguem ajustar a realidade ao paradigma, isto é, descobrem que os
pressupostos teóricos fundamentais do paradigma não estão de acordo com aquilo que
se observa na Natureza. Quando as tentativas de resolver um enigma fracassam, surge
uma anomalia.
As anomalias não são vistas pelos investigadores como refutações, como provas de que
os seus pressupostos teóricos fundamentais são falsos. Esses pressupostos continuam a
ser aceites e espera-se que um dia a anomalia seja resolvida.
Contudo, na história de um paradigma regista-se uma tendência para as anomalias se
acumularem. Descobrem-se cada vez mais fenómenos que não estão de acordo com o
paradigma, até que este acaba por entrar em crise. Durante uma época de crise, a
confiança no paradigma fica seriamente abalada e a investigação tranquila que caracteriza a
ciência normal dá lugar a um período de ciência extraordinária.
Acaba por surgir uma teoria alternativa que proporciona um novo paradigma, uma nova
forma de fazer ciência dentro da área disciplinar em questão. A comunidade científica fica
assim dividida: os partidários do velho paradigma opõem-se aos defensores do novo.
Opera-se uma revolução científica quando estes últimos triunfam, levando a maior parte
da comunidade científica a aceitar o novo paradigma. Inicia-se então outro período de
ciência normal.
5.4.3. A incomensurabilidade dos paradigmas
A tese mais controversa da filosofia da ciência de Kuhn é a seguinte:
∎ Os paradigmas são incomensuráveis.

Isto significa que, numa situação em que dois paradigmas se confrontam, não se pode compara-
los objectivamente de modo a concluir que um deles é superior ao outro. Os paradigmas não podem
ser escolhidos mediante uma comparação objectiva, realizada a partir de critérios completamente
neutros.
Kuhn pensa, portanto, que a objectividade cientifica é muito limitada. A ciência faz-se sempre à luz de um
certo paradigma e a mudança de paradigma que ocorre numa revolução científica é comparável a uma
conversão religiosa. Os cientistas aceitam ver o mundo de uma nova forma e fazer ciência de acordo
com novas regras, mas são incapazes de oferecer uma justificação completamente racional e objectiva para a
sua decisão.
A tese da incomensurabilidade dos paradigmas leva Kuhn a defender o seguinte:
∎ As mudanças de paradigma não envolvem uma aproximação à verdade.

Ou seja, como não podemos argumentar objectivamente a favor do novo paradigma, como não podemos
provar de uma forma objectiva que este é melhor do que o anterior, também não podemos dizer que o novo
paradigma está mais próximo da verdade, que nos dá uma imagem mais fiel ou mais correcta da realidade.
Por que pensa Kuhn que os paradigmas são incomensuráveis? Podemos distinguir duas razões
favoráveis a esta tese:
1. Os paradigmas são demasiado diferentes entre si para poderem ser comparados objectivamente.
2. Não existem critérios de escolha de teorias que nos permitam fazer uma comparação completamente
objectiva entre paradigmas.
Relativamente a 1, podemos dizer que, para Kuhn, os paradigmas diferem entre si como se fossem duas
obras de arte de épocas e estilos completamente diferentes. Cada paradigma tem os seus próprios
conceitos, os seus próprios problemas e os seus próprios procedimentos para observar o mundo. E
isto que torna impossível compará-los objectivamente.
Vejamos agora o que Kuhn tem a dizer a respeito de 2.

5.4.4. Critérios objectivos de escolha de teorias


Quando dois paradigmas estão em conflito, torna-se necessário escolher entre as teorias que cada um
deles propõe. Kuhn admite que existem diversos critérios objectivos para escolher entre teorias rivais.
Os critérios que destaca são os beguines:
1. Exactidão empírica; 2. Consistência; 3. Alcance; 4. Simplicidade; 5. Fecundidade.
Esclareçamos estes critérios, delineando o modo como cada um deles nos da uma razão para preferir-
mos uma certa teoria a uma teoria rival.
A exactidão empírica de uma teoria e a sua capacidade para fazer previsões correctas sobre aquilo que
observamos. Neste sentido, quanto mais exacta e uma teoria, maior e o seu acordo com aquilo que obser-
vamos. De acordo com o critério 1, se uma teoria esta em maior acordo com a observação do que a
sua rival, isso constitui uma razão para a escolhermos.
A consistência de uma teoria passa não só pela ausência de contradições internas, mas também pela sua
compatibilidade ou acordo com as outras teorias aceites na época. Segundo o critério 2, se uma teoria está
em maior acordo com as restantes teorias aceites do que a sua rival, isso constitui uma razão para a
escolhermos.
A simplicidade não consiste na facilidade de compreensão, mas na elegância lógica. Por exemplo, em
principio uma teoria que tenha apenas três leis fundamentais e mais simples ou mais elegante do que
uma teoria que apresente seis leis fundamentais. Segundo o critério 3, se uma teoria é mais simples do
que a sua rival, isso constitui uma razão para a escolhermos.

O alcance de uma teoria corresponde à sua abrangência. Por exemplo, uma teoria que
explique todos géneros de movimento tem um alcance mais vasto do que uma teoria que
explique apenas o movimento dos planetas. De acordo com o critério 4, se uma teoria é
mais abrangente do que a sua rival, isso constitui, a razão para a escolhermos.

Por fim, a fecundidade de uma teoria e a sua capacidade para conduzir a novas descobertas
científicas. Segundo o critério 5, se uma teoria é mais fecunda do que a sua rival, isso constitui uma
razão para a escolhermos.

5.4.5. A insuficiência dos critérios objectivos


Kuhn pensa que os critérios indicados são objectivos porque constituem a, base
partilhada» para a escolha de teorias. Qualquer cientista sensato valoriza a exactidão, a
consistência, o alcance, a simplicidade a fecundidade, e por isso procura teorias que tenham
estas propriedades no major grau possível.
Contudo, Kuhn acrescenta que estes critérios, apesar de serem objectivos, não são
suficientes para se fazer uma escolha inteiramente objectiva entre teorias rivais. Esta é a sua
tese:
• A escolha de teorias envolve também factores subjectivos importantes. Uma das
razões que Kuhn apresenta para justificar esta tese é a seguinte:
• Os critérios de escolha de teorias são vagos e, portanto, a sua aplicação é muito
subjectiva.
Dado que os critérios indicados são vagos, não é possível, por exemplo, determinar com
rigor o nível de simplicidade de uma teoria. Assim, um cientista poderá entender que a
teoria A é mais simples do que a teoria B, mas outro cientista poderá alegar que a teoria B
é mais simples do que a A. Assim, embora ambos valorizem a simplicidade, entendem de
forma diferente este critério, e por isso acabam por discordar na sua aplicação a casos
concretos. O mesmo se pode dizer dos restantes critérios.
Para salientar a subjectividade da escolha de teorias, Kuhn defende também o seguinte:
• Quando os critérios de escolha de teorias entram em conflito, a resolução do conflito é muito
subjectiva.
Dado que existem vários critérios, estes podem entrar em conflito quando os aplicamos a
casos concretos. Por exemplo, pode acontecer que a teoria A tenha uma maior
exactidão empírica do que a teoria B, mas que a teoria B seja mais simples do que a A.
Para resolver este conflito, um cientista poderá dizer que a exactidão é mais importante do
que a simplicidade e, portanto, concluir que a teoria A é a melhor. Porém, outro cientista
poderá valorizar mais a simplicidade do que a exactidão, o que o levará a escolher a teoria
B. Segundo Kuhn, não existe forma de determinar quem resolveu bem o conflito, pois cada
escolha depende do gosto pessoal do cientista.
Em suma, apesar de existirem critérios objectivos para escolher entre as teorias propostas
nos paradigmas rivais, as escolhas realizadas são em grande medida subjectivas, pois os
cientistas entendem esses critérios de forma diferente e não lhes dão sempre o mesmo
valor.

5.4.6. Criticas à teoria de Kuhn


As críticas a filosofia da ciência de Kuhn incidem sobretudo na tese da incomensurabilidade.
Se os paradigmas são diferentes ao ponto de ser impossível compará-los objectivamente,
então nunca podemos dizer que um novo paradigma está mais próximo da verdade que o
anterior. Mas esta perspectiva tem implicações muito implausíveis.
Por exemplo, na astronomia, o paradigma geocêntrico, que colocava a Terra no centro do
Universo, foi substituído pelo paradigma heliocêntrico introduzido por Copérnico (1473-
1543), no qual o Sol passou a ocupar o lugar central. Se estes paradigmas fossem
incomensuráveis, teríamos de dizer que a teoria de Copérnico não representou uma
aproximação à verdade. Mas isto parece absurdo, pois sabemos que a Terra de facto
não está no centro do Universo.
De um modo geral, a teoria de Kuhn parece ser incapaz de explicar o crescente sucesso
teórico e prático da ciência. Se a física actual, por exemplo, não está mais próxima da
verdade do que a física de Aristóteles, como explicar que os físicos façam hoje previsões
muito mais rigorosas? E como explicar que, aplicando as suas teorias, se consiga
desenvolver tecnologias que seriam impensáveis no tempo de Aristóteles?
Resumo do capitulo
Senso comum e ciência
• O conhecimento vulgar ou de senso comum abrange as crenças amplamente
partilhadas pelos seres humanos. A justificação dessas crenças resulta da experiência
colectiva e acumulada ao longo de muitas gerações.
• O senso comum e assistemático, isto é, não constitui um corpo organizado de
conhecimento.
• O conhecimento científico, além de ser sistemático, tem outras características
que o distinguem do senso comum:
- Proporciona explicações dos factos.
- Resulta de uma atitude crítica, pelo que está permanentemente sujeito a mudanças
radicais.
- Envolve uma linguagem rigorosa que torna possível uma avaliação cuidada das teorias.
• As explicações científicas ãao obtidas a partir de teorias que unificam os fenómenos e
que são controláveis pela experiência.

Verificabilidade, confirmabilidade e falsificabilidade

• Uma proposição ou uma teoria a verificável se, e apenas se, for possivel
comprovada recorrendo à experiência.
• A comprovação empírica de uma proposição ou de uma teoria consiste em deduzir
a sua verdade a partir da experiência.
• Uma proposição ou uma teoria é confirmável se, e apenas se, for possível
confirmá-la (isto é, verificá-la parcialmente) recorrendo à experiência.
• A confirmação empírica de uma proposição ou de uma teoria consiste em
mostrar a partir da experiência, por indução, que provavelmente ela é verdadeira.
• Uma proposição ou uma teoria é falsificável se, e apenas se, é possível descobrir
que ela é falsa (isto é, refutá-la) através da experiência.

O problema da indução
• As inferências indutivas pressupõem o princípio da indução, segundo o qual a Natureza é
uniforme.
• O problema da indução é o problema de justificar este princípio. Para o fazer, é
preciso refutar o argumento céptico de Hume que visa mostrar que ele é injustificável.
• Segundo Hume, o princípio da indução não pode ser justificado a priori, pois não é
uma verdade necessária. E também não pode ser justificado a posteriori, pois qualquer
tentativa de o justificar desta forma consistiria num argumento indutivo, o que conduziria a uma
petição de princípio. Logo, o princípio da indução não pode ser justificado. Logo, as inferências
indutivas são injustificáveis.
• Popper aceita o argumento de Hume. Mas pensa que, como a ciência não precisa
de indução, este argumento não afecta a credibilidade do conhecimento científico. Deste
modo, o problema da indução fica «dissolvido».

O problema da demarcação

• O problema da demarcação é o problema de encontrar um critério de


cientificidade. Um critério deste género diz-nos o que demarca ou distingue as teorias
científicas das outras teorias.
• De acordo com o critério da verificabilidade, uma teoria é científica se, e apenas se, é
verificável.
De acordo com o critério da confirmabilidade (ou verificabilidade parcial), uma teoria é
científica se, e apenas se, é confirmável.

• Poper rejeita estes dois critérios, pois pensa que ambos excluem da ciência as leis que
os cientistas propõem nas suas teorias.
- Como têm um caracter universal, essas leis não podem ser comprovadas pela
experiência, já que poderão sempre surgir contra-exemplos.
- E as leis nem sequer podem ser confirmadas pela experiência. Como a indução é
sempre inválida, a experiência nunca confirma seja o que for.
• Para resolver o problema da demarcação, Popper sugere o criterio da falsificabilidade,
segundo o qual uma teoria é cientifica se, e apenas se, é falsificavel. Uma teoria cientifica é aquela
que está sempre sujeita à possibilidade de refutação pela experiência.
• 0 critério da falsificabilidade não exclui as leis, pois estas podem ser refutadas pela
experiência.
• É desejavel que as teorias cientificas sejam falsificaveis num grau elevado, pois isso
significa que são ricas em conteudo empirico, isto é, que nos dizem muito acerca do mundo que
observamos.

O metodo cientifico: indutivismo


• O indutivista defende a visão popular do metodo científico:
- O ponto de partida da investigação científica é a observação isenta dos factos, realizada
sem quaisquer pressupostos teóricos.
- As teorias cientificas são obtidas por indução a partir das premissas que descrevem os
factos observados.
- Apresentada a teoria, o cientista procura depois encontrar confirmações adicionais e
toma-a como ponto de partida para generalizações indutivas mais vastas.
• Esta perspectiva do metodo científico enfrenta objecções fortes:
- A observação depende sempre de expectativas, de suposições e de interesses teóricos.
- Como certas leis referem objectos que não podem ser observados, é impossivel que
elas tenham sido descobertas mediante uma generalização indutiva baseada na observação.

O metodo cientifico: falsificacionismo


• Popper defende a visão falsificacionista do método científico, segundo a qual o
método da ciência é o das conjecturas e refutações.
- O ponto de partida da investigação científica é a colocação de problemas.
- O cientista propõe depois uma teoria para resolver os problemas que lhe interessam.
Essa teoria é uma conjectura concebida criativamente.
- De seguida, importa testar a teoria. Os testes sérios consistem em tentativas de
refutação e não na procura de confirmações.
- Para testar a teoria, deduzem-se delas certas previsões empiricas.
- Se algumas das previsões fracassarem, a teoria fica refutada e será necessário encontrar
uma conjectura melhor.
- Se as previsões se revelarem correctas, isso significa apenas que a teoria foi
corroborada. Uma teoria corroborada é aquela que sobreviveu aos testes, mas este
sucesso que teve no passado não nos permite inferir que é provavel que ela seja
verdadeira.
• Segundo Popper, a ciência evolui através da proposta de conjecturas ousadas e da
eliminação dos erros por tentativas de refutação. Esta evolução traduz-se numa gradual aproximação
à verdade.
• A teoria de Popper tambem enfrenta objecções:
- Parece não estar de acordo com a prática científica, pois os cientistas muitas vezes não
rejeitam as teorias que conduziram a previsões erradas.

- Parece tornar irracional a confiança em quaisquer teorias científicas. Afinal, se as teorias


científicas nunca são minimamente confirmadas pela experiência, então nunca deixam de
ser meras conjecturas, e por isso não temos razões para confiar nelas.

A objectividade da ciencia

• Quem, como Popper, acredita na objectividade da ciência, pensa que as teorias


científicas são descrições da realidade, ainda que imperfeitas, e que a medida que o
conhecimento científico avança vamo-nos aproximando da verdade, obtendo uma
imagem cada vez mais correcta da realidade. Kuhn rejeita esta perspectiva.
• Kuhn entende a história da ciência como uma sucessão de paradigmas.
- Um paradigma centra-se numa teoria que proporciona problemas e soluções
exemplares a uma comunidade de investigadores.
- Alem dessa teoria, um paradigma inclui pressupostos filosóficos e regras de diversos
géneros para desenvolver a actividade científica.
- Assim, a um paradigma corresponde toda uma forma de fazer ciência numa certa
área de investigação.
• A ciência normal é a actividade científica conduzida sob um paradigma. Nos
períodos de ciência normal os cientistas pretendem reforçar o paradigma e não refutá-lo.
Para esse efeito, dedicam-se à resolução de enigmas, isto é, a solucionar os problemas
especializados que se colocam dentro do paradigma.
• As anomalias são os enigmas que resistem Às tentativas de resolução. A acumulação
de anomalias gera uma crise. Surge um paradigma rival e a ciência normal dá lugar a ciência
extraordinária. Quando os investigadores mudam para o novo paradigma, dá-se uma revolução
científica.
• Kuhn defende que os paradigmas são incomensuráveis. Não podem ser
comparados objectivamente de modo a se determinar qual é o melhor ou qual está mais próximo
da verdade.
• A incomensurabilidade dos paradigmas é uma consequência de eles serem
radicalmente diferentes: cada paradigma tem os seus próprios conceitos, problemas e regras.
- Não existem critérios de escolha de teorias que permitam avaliar objectivamente
paradigmas rivais, pelo que essa avaliação envolve sempre factores subjectivos.
• Kuhn reconhece alguns critérios objectivos para escolher teorias, como a
exactidão empírica e a simplicidade, mas defende que estes não são suficientes para ditar
uma escolha objectiva.
- Por um lado, esses critérios são vagos, pelo que a sua aplicação e bastante subjective.
- Por outro lado, esses critérios podem entrar em conflito, e o modo como os conflitos
são resolvidos também é subjectivo, pois depende daquilo que cada cientista valoriza mais.
A tese da incomensurabilidade dos paradigmas parece ter consequências implausíveis, como a de
que o heliocentrismo não está mais próximo da verdade do que o geocentrismo. Além
disso, Kuhn parece ser incapaz de explicar satisfatoriamente o crescente sucesso teórico e prático
da ciência.

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