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A (DES)CONEXÃO DA INTIMIDADE

Nestes tempos de ultra conexão virtual, o “lastro” de uma pessoa pode


ser mensurado pelos números de likes e acúmulos de seguidores nas redes
sociais. Numa espécie de narcisismo marcado pela ansiedade, algumas
pessoas são impulsionadas a uma ávida corrida rumo ao desejo de
reconhecimento e apreço.
Este tema foi brilhantemente exposto na série Black Mirror, episódio
Nosedive (2016), onde as pessoas eram avaliadas num aplicativo por suas
postagens e atitudes “perfeitas”. Aqueles com as melhores notas faziam parte
do crème de la crème da sociedade: além da admiração pública, tinham
destaque social e direitos exclusivos. Na busca de aceitação, todos agiam com
uma falsa cordialidade, pois o intuito não era reagir à vida e sim em melhorar
sua nota. A distopia de viver num mundo menos humano e excessivamente
virtual fez a protagonista experimentar uma dolorosa decadência devido seu
processo autodestrutivo na busca obsessiva de likes.

Black Mirror, Nosedive (2016)

Ao transpor das telas para nossa realidade e, ao olhar nossos próprios


hábitos, vimos que fomos seduzidos a uma existência cada vez mais
tecnológica, onde focamos excessivamente nos processos externos da vida.
Fomos tragados a um ritmo acelerado e incessante de trabalho, consumo,
obrigações e, aliado a isso, queremos expor nas redes o quanto somos felizes,
inteligentes, saudáveis e interessantes.
O estilo de vida atual parece nos impor um ritmo de fora para dentro.
Este “viver para fora” nos afasta de uma grande parte de nós, onde nos
desassociamos de quem somos e nos desconectamos do que verdadeiramente
gostamos. Visando ampla aceitação, criamos uma persona e nos esforçamos
para mantê-la em evidência.
Além disso, não nos damos conta de que estar excessivamente online
estimula o isolamento social, pois substituímos a interação de pessoas reais
por avatares, deixando o plano das relações interpessoais seriamente
comprometido.
A comunicação puramente online pode nos segregar do mundo e de nós
mesmos, pois a convivência entre avatares dificilmente permite intimidade
entre as pessoas reais por trás dos teclados.
Importante ressaltar que, neste contexto, intimidade não corresponde a
troca de nudes, conversas picantes ou sexo virtual.
Intimidade vem do latim intĭmus (inti -interior, o que é de dentro) 1. Numa
livre associação, para sentir intimidade precisamos de um estímulo, de um
afeto que nos toca “por dentro”.
Esta urgência em acumular seguidores e likes, em descobrir a lacração
certa para bombar nas redes, faz com que as relações fiquem artificiais,
rápidas e instantâneas. Esta insipidez deixou os vínculos inconsistentes,
fugazes e sem ressonância de alma.
Este fenômeno está acontecendo não apenas no coletivo mas
principalmente na relação “eu-comigo” pois, ao vivermos tão identificados a
persona, nos confundimos em nossa pessoalidade e não criamos intimidade
com quem somos. Esta automaquiagem desconfigura e confunde a percepção,
afetando o reconhecimento e a conexão de nossa própria intimidade.
Intimidade está entrelaçada ao sentimento, emoção, proximidade,
vínculo. E, se não conseguimos manter um elo de intimidade conosco, como
conseguiremos manter com o outro? A dificuldade do vínculo nos faz surfar na
superfície das relações, pois a ação é garantida sem o comprometimento da
emoção.
Os excessos de estímulos fazem com que tenhamos dificuldades em
nos introspectar e manter o silêncio interno necessário para nos ouvir e criar
intimidade conosco.
Esta descida ao nosso Hades particular é um convite para refletir sobre
a artificialidade, confrontar a sombra, ressignificar questões e a descobrir
processos inconscientes.
O gratificante é que, ao emergirmos deste Hades, teremos caminhado
um pouco mais nesta longa jornada rumo à Individuação.
Ao estarmos mais conectados aos nossos processos internos, nos
sentiremos menos ameaçados e fragilizados na presença do outro, abrindo a
possibilidade de baixar a guarda para estabelecer relações mais íntimas.
Intimidade é algo tão verdadeiro que não é possível fingir: se tem ou
não. Ela não se permite enganar, não permite falsidade.

1
Fonte: https://origemdapalavra.com.br/palavras/intimo/
A intimidade revela a nudez da alma.

Daniela Euzebio, pós graduada em Psicologia Organizacional e do


Trabalho pelo Mackenzie, pós graduada em Psicologia Junguiana, pós
graduanda em Arteterapia e analista em formação pelo IJEP.

(11) 99623-5529 daniela.euzebio@gmail.com


Atendimento: R. Domingos de Morais, 2781 - Vila Mariana, São Paulo
(ao lado do metrô Santa Cruz).

Fontes:
JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2016
(Obras completas de C.G.Jung, v. 7/2).
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2016
(Obras completas de C.G.Jung, v. 7/1).
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1986
(Obras completas de C.G.Jung, v. 8/2).
PALAVRA, A Origem da (2019) – Origem da palavra íntimo -
https://origemdapalavra.com.br/palavras/intimo/

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