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English original here
“Nós não somos apenas mais revolucionários que vocês, estamos além de sua
revolução” – F. T. Marinetti
“Vocês tem que saber que o sangue não possui valor ou esplendor a não ser que
tenha sido liberado da prisão das artérias pelo ferro ou fogo” – F. T. Marinetti
Nos primeiros idas de julho de 1923, uma tempestade heróica e blasfema soprou
através da planície de Carso, descendo ao vale do rio Pó. Sua velocidade ousada
e energia eletrificada criaram uma atmosfera que transfixou aqueles que se
atropelavam em busca da segurança de pórticos, sentindo que essa tempestade
poria à prova tudo que sobreviveu a tais tempestades no passado. De fato, ao
tempo em que ela alcançou as construções repletas de bandeiras da Piazza San
Sepolcro em Milão a conflagração parecia rir da memória das estruturas que
desabavam em seu caminho. E naquela grande e auspiciosa piazza, Giuseppe
Prezzolini se afastou da janela, intencionado terminar o trabalho que sobrepujava
seus sentidos extenuados.
Isso, segundo Marinetti – o líder desse bando de desajustados, era uma razão pela
qual os futuristas afirmavam ser “místicos da ação”, vendo o Estado-Nação como
um bastião de conservadorismo, repressão, burocracia e clericalismo: mesmo com
governantes neoclássicos, pode-se dizer, o Estado é e sempre será o inimigo de
homens livres – homens de fora, no além, nas regiões fronteiriças do que é
permissível e “bom para o negócio”.
De fato ela o faria, e fez – se livrando tanto dos futuristas como dos ardito-
squadristi em diversos expurgos de racionalidade política – e se erigiu como a
apoteose da “hierarquia, tradição e autoridade”. Mas conforme a tempestade
soprou, e os motores giratórios intoxicados com sua própria velocidade e som
explodiram na segurança da calçada sob sua janela, Prezzolini se sentiu
desconfortável, como se algo violento, cruel e fora das constrições da justiça
estivesse se filtrando através das rachaduras em seu espaço santificado de
trabalho.
Imediatamente ele sabia qual era a fonte: Marinetti. Blasfemador! Louco! O tolo
que queria usar a violência para desestabilizar as forças subjetivas – e
subjetivadoras – da forma burguesa de vida! E para que fim? Bem, Prezzolini sabia
muito bem para que fim. Olhe para isso, ele gritou para sua alma enquanto
agarrava a página:
“Assim, que venham os alegres incendiários com dedos queimados! Aqui estão
eles! Aqui estão eles! Vão em frente! Incendeiem as prateleiras das bibliotecas!
Invertam o curso dos canais para inundar os museus!… Peguem suas picaretas,
machados e martelos, e derrubem, derrubem impiedosamente as cidades
veneráveis!… vocês levantam objeções? Parem! Parem! Nós as conhecemos. Nós
entendemos! A mente refinada nos diz que somos o ápice e continuação de
nossos ancestrais – talvez! Vamos supor que sejamos! Que diferença isso faz?
Nós não queremos ouvir!”
Graças a Deus, ele murmurou. Graças a Deus! Graças a Deus nós tivemos a
decência, a sensibilidade, e o dever de distanciar nossos gloriosos Partido e
Estado desses lunáticos. A perspectiva havia tornado Prezzolini sábio, pois ele
sabia que a revolução não tinha futuro. O futuro, como a história havia
demonstrado, está com o Estado. Dane-se se o fascismo tivesse que se tornar
uma contra-reforma que traísse as energias revolucionárias e o vitalismo crítico de
seus membros fundadores: o Estado e nada além do Estado, como disse Mussolini
– um “fato moral e espiritual!” Nós gerenciaremos adequadamente o domínio
social, ele pensou desafiadoramente. Nós traremos continuidade e regularidade a
tudo que está em fluxo. Nós tornaremos sedentário a tudo que flui livremente. Nós
tornaremos homogêneo tudo que é diferente. Nós traremos lei e ordem,
racionalidade e paz! Se as pessoas não estão à altura da tarefa, se eles se
exasperam à imposição da soberania de seus governantes e chefes, se eles
nutrem qualquer fidelidade pelos deveres e responsabilidades perante o Estado,
então…que eles saiam e vão brincar com Marinetti!
Ele não compreende? Nós somos o Estado, nós somos a lei, e nós somos a
ordem, santificados por Deus e por tratados internacionais! O que seus futuristas
desejam ser? Fora! Fora do Estado! Eles não sabem? Não há nada fora – nós
somos “o Logos, o rei-filósofo, a transcendência da Idéia, a interioridade do
conceito, a república de mentes, o tribunal da razão, os burocratas do
pensamento, o homem como legislador e sujeito,…a imagem interiorizada de uma
ordem mundial!” Quando você abandonar isso, caro Marinetti – querido “traidor
recalcitrante da Idéia”, para onde você vai?
À guerra, era a resposta de Marinetti. Apenas a guerra, ele dizia, pode criar as
condições e ordenações condutíveis à revolução. E quando se é um homem
sozinho – um homem em um bando, talvez – e você se encontra sem uma guerra,
bem, então o que? Você pode criar as condições e ordenações de sua própria
vida. Você “mata a luz do luar”, você “destrói tempo e espaço”, vivendo ao invés na
“eterna e onipresente velocidade” – a velocidade da coragem e da agressão, de
“palavras e pensamento-em-liberdade”, destruindo toda e qualquer prudência
estagnante, o “utilitarismo, a covardia oportunista” e o ressentimento reativo que
você costumava acreditar que justificavam seu élan vital. Você cria desordem –
você vive sem tradição, sem dogma, incessantemente inventando novas maneiras
de assombrar seus instintos burgueses, nutridos ao invés pela “nova sensibilidade”
que irá decompor tudo que você sabe sobre beleza, grandeza, religiosidade,
solenidade e cultivo.
Vida sem tradição! Prezzolini estava perplexo. Vida sem memória! Novamente ele
imaginava se Marinetti e esses futuristas compreendiam as implicações de suas
idéias. A memória, ele os lembraria, serve a um grande propósito, pois somente
ela cria uma pessoa capaz de pagar dívidas; e a dívida é a base da civilização –
pois de fato, como pode a civilização prosseguir sem que todos os tributos sociais,
corporais sejam necessariamente pagos? E exatamente o que os futuristas
pensam estar esquecendo? Qual é o propósito, digamos, de esquecer? Que
responsabilidades, deveres e dívidas, devem eles esquecer? Eles dirão que estão
esquecendo a preguiça, a lentidão e a sensibilidade feminina de modo a afirmar a
vida como aceleração. Como Bergson eles querem fazer do tempo uma duração
subjetiva e um amontoado de intensidades – uma velocidade carregando outras
velocidades –
“Nossa vida deve sempre ser uma velocidade carregando outras velocidades:
velocidade mental + velocidade do corpo + velocidade do veículo que leva o corpo
+ velocidade do elemento que carrega o veículo. Nós devemos deslocar o
pensamento de sua estrada mental e colocá-la em uma material. A velocidade
destrói as leis da gravidade, torna os valores do tempo e do espaço subjetivos…
Quilômetros e horas não são universalmente os mesmos; para o homem em
aceleração eles variam em extensão e duração… Ampliando a leveza. Vós haveis
triunfado sobre a lei que força os homens a rastejarem… A gasolina é divina… A
velocidade em uma linha reta é massiva, crua, impensada. A velocidade com e
após uma curva é velocidade que se tornou ágil, adquiriu consciência”.
Mas o que Boccioni pode estar querendo dizer com essa sugestão ridícula?
Estaria ele tentando oferecer uma base de re-diferenciação para o homem
indiferenciado? Mas já não avançamos e fomos além dessas noções pitorescas de
um retorno ao primitivismo? Exatamente então Prezzolini se alarmou com um
estrondo barulhento em meio ao estrépito da tempestade. Soava como o guincho
de pneus de borracha girando fora de controle, lançando máquina e vida ao ar
como uma flecha nomádica em fuga – au milieu, não fixada nem pelo arqueiro que
a disparou, nem pelo alvo contra o qual foi disparada – dançando na direção do
horizonte em um arco-íris flamejante de explosão e estilhaços de vidro e metal, as
partículas de cada qual em conjunção com a outra, bem como qualquer corpo
sobre o qual elas impactavam.
Para seu horror, a detonação foi seguida por um coro de vozes explicando a
tempestade para um par de jovens vagabundos, “A vida tem sempre razão”, dizia,
“Os paraísos artificiais com os quais vocês esperam assassiná-la são inúteis”. Ai
de qualquer homem que sai de casa em tempos como esse, ele pensou; melhor
morrer agora do que dar continuidade a esse risco. E com isso ele amaldiçoou
seus ouvidos por ter partilhado da imprudência desses homens tolos, cada vez
mais temeroso de que eles pudessem ligar sua querida e meiga alma ao que eles
haviam ouvido. Ele se encolheu ainda mais, e decidiu que uma bebida poderia
acalmar seus nervos.
E de qualquer maneira, ele percebeu conforme ele saboreava seu copo de leite
quente, não era Boccioni um futurista? De todas as pessoas ele deveria saber
melhor. E o que um “vácuo bárbaro” oferece que o Estado não oferece? Carlo
Carrà nos deu um senso do que o vácuo bárbaro busca ao se distanciar do
Estado: criação – compreender a vida em termos bastante removidos da forma
puramente representacional do pensamento burocrático racional que ele chamava
“ilustracionismo”. O ilustracionismo envolve um traçado dos potenciais da vida,
sempre governada por tradições, convenções, e o Ideal que a tudo vê.
Pintura fede, ele tinha que rir disso. Isso seria como legislar ou comandar
revolução. Ele estava chocado consigo mesmo, já que por um momento
horripilante ele se encontrou falando exatamente como eles! Mas sua incerteza
trouxe sua mente de volta para seu trabalho. Como esses bárbaros futuristas
planejavam criar alguma coisa, especialmente à luz da guerra de Marinetti contra a
gramática e a convenção linguística, ele pensava. “Palavras-em-liberdade”,
Marinetti dizia, solaparão e perturbarão os princípios codificadores da linguagem –
princípios que moldam a consciência e a interação funcional com a realidade. Ele
nos pede que abandonemos o uso do “Eu”, que antropomorfiza uma compreensão
particularmente burguesa do sujeito, propondo ao invés um “retorno ao molecular”
e uma compreensão das lascas e cacos de nossa subjetividade que portam as
chaves para nossos potenciais revolucionários.
Ele nos pede “destruir a sintaxe e espalhar substantivos aleatoriamente, tal como
eles nascem”, “abolir adjetivos e advérbios”, que forçam, e presumem, uma pausa
no fluxo da experiência, e criam uma “tediosa unidade de tom”, que só existe na
linguagem. Mais, ele sugere que verbos só sejam usados em sua forma infinitiva,
de modo a criar uma elasticidade de relações (em contraste a uma escravidão do
verbo movente e agente ao “Eu” parasitário) e “dar um senso da continuidade da
vida e da elasticidade da intuição”.
Nosso Pai no céu, gaguejou Prezzolini enquanto ele caminhava pela sala.
Subitamente a tempestade pareceu trovejar com muito mais fúria. Nosso Pai, ele
disse novamente, pelo menos se fossem coturnos em marcha o que eu ouço e não
o zunido dissonante de aviões de guerra e geradores de energia falhando. Sua
obra agora parecia ter a importância de uma Bula Papal. Esse arremessar o
passado ao mar para ampliar nossa agilidade em se esquivar de barricadas –
certamente essas barricadas, essas barreiras contra o caos são as chaves de
nossa vitória! – só podem levar à ruína. Mas destruir as próprias bases da ordem e
do pensar correto no presente é ainda mais egrégio. Homens desse tipo devem
ser liderados – para seu próprio bem e para o bem da Revolta. Sim! Eles devem
ser liderados ou eliminados.