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[-] Sumário # 9

EDITORIAL 5

ENTREVISTA

CRISE MUNDIAL E LIMITES DO CAPITAL 9


Com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle

ARTIGOS

ENTRE RUÍNA E DESESPERO 24


Negação e constituição do sujeito em Robert Kurz e Slavoj Žižek
Cláudio R. Duarte e Raphael F. Alvarenga

O EXÉRCITO NAS RUAS 60


Da Operação Rio à ocupação do Complexo do Alemão.
Notas para uma reconstituição da exceção urbana
Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho

CIDADE OLÍMPICA 75
Sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência
na cidade do Rio de Janeiro
Marcos Barreira

A TODO VAPOR RUMO À CATÁSTROFE? 109


O capital e a dinâmica do aquecimento global
Daniel Cunha

AS SUTILEZAS METAFÍSICAS DO 134


NEGACIONISMO CLIMÁTICO
Como a esquerda tradicional adere à ideologia negacionista
Daniel Cunha

LUKÁCS – A ONTOLOGIA DA MISÉRIA 155


E A MISÉRIA DA ONTOLOGIA
Cláudio R. Duarte
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

O DINHEIRO DO ESPÍRITO E O DEUS DAS MERCADORIAS 187


A abstracção real segundo Sohn-Rethel
Nuno Miguel Cardoso Machado

TESES SOBRE A COMUNA DE PARIS 225


Guy Debord, Attila Kotànyi e Raoul Vaneigem

CRÍTICA SOCIAL OU NIILISMO? 230


O “trabalho do negativo”: de Hegel e Leopardi até o presente
Anselm Jappe

TERÃO OS SITUACIONISTAS SIDO A ÚLTIMA VANGUARDA? 247


Anselm Jappe

EXTRATOS DE POLLOCK 261


ou, Pintura e trabalho abstrato
Cláudio R. Duarte

TÍMIDA SIM, MAS UM TANTINHO DESRECALCADA 288


Ainda um exercício em torno da matéria de Naves e de Guignard
Eraldo Santos

RODRIGO NAVES E AS DIFICULDADES DA FORMAÇÃO 298


Naves, Guignard, Machado e a crítica das formas modernas
Cláudio R. Duarte

ADESÃO E DESBUNDE 319


Os êxtases sórdidos de um Brecht às avessas
Raphael F. Alvarenga e Natasha B. Palmeira

IDEOLOGIA, COMUNICAÇÃO E VISUALIDADE 336


O sistema artístico detectado
Marcelo Mari

OS DEVOTOS DO SANTO ANÔNIMO 342


Sobre “as visitas que hoje estamos”
Cláudio R. Duarte
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

TRÊS FRAGMENTOS 351


“a hora certa”, “a lição” e “com espírito”
Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira

EXPEDIENTE 366
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

Editorial
Caros leitores,

Chegamos à nona edição de nossa revista, de longe a mais volumosa que já


lançamos. Infelizmente, porém, começamos com a nota triste do falecimento de Robert
Kurz, em julho de 2012. A sua importância para nossos editores e colaboradores pode
ser constatada pelas inúmeras referências e citações contidas tanto nesta edição quanto
nas anteriores, isto quando a obra de Kurz não é o próprio tema discutido. Para nós, a
sua obra retoma com força a crítica da economia política de Marx, centrando-a na crise
do valor/cisão de gêneros e na possibilidade da desnaturalização e da superação das
formas sociais modernas. E isso, que não é pouco, exatamente quando vivemos uma
crise do pensamento crítico, atacado pela superficialidade sociológica e culturalista –
uma crise que é também, contudo, uma espécie de crise do campo das forças em luta. A
nota positiva da edição é a expressiva colaboração de Marcos Barreira, com dois textos e
duas traduções publicados, além dos textos enviados por companheiros e novos
colaboradores (Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, Natasha B. Palmeira, Nuno
Machado, Eraldo Santos e Marcelo Mari).

Esta edição da revista vem com a marca do seu tempo, como mostra a capa de
Felipe Drago, utilizando fotografia de Y. Karahalis: a crise do capital e seus
desdobramentos – econômicos, teóricos, urbanísticos, ideológicos, ecológicos e
estéticos. Abrimos a revista com uma entrevista com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle, do
Grupo Krisis, publicada na revista alemã Telepolis. A entrevista foca a crise do
capitalismo e sua perspectiva histórica. Para isto, os autores buscam os fundamentos
marxianos da crítica da economia política e da teoria da crise.

“Entre ruína e desespero”, de Cláudio R. Duarte e Raphael F. Alvarenga, aborda o


tratamento dado ao conceito de sujeito em Slavoj Žižek e em Robert Kurz. Sem visar a
uma síntese entre as duas posições, radicalmente opostas, os autores procuram jogar
um contra o outro a fim de revelar as unilateralidades e os passos em falso no campo da
constituição da luta para uma negação concreta da sociedade das mercadorias.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

Os dois textos seguintes, de Marcos Barreira – “O Exército nas ruas” (este em co-
autoria com Maurílio Lima Botelho) e “Cidade Olímpica” – buscam conceituar a
violência urbana na cidade do Rio de Janeiro no quadro de nossa modernização
retardatária e do movimento do capitalismo global. Episódios como a repressão à greve
da CSN fornecem chaves para a compreensão das atuais “Unidades de Polícia
Pacificadora” no contexto da preparação da cidade para as Olimpíadas.

A seguir, Daniel Cunha, em “A todo vapor rumo à catástrofe?”, mostra que as


emissões de carbono aumentaram significativamente nos últimos anos, intensificando
as chances de um aquecimento global catastrófico. O autor analisa as causas do
fenômeno com base na dinâmica do capitalismo, desde a Revolução Industrial. Na
sequência, em “As sutilezas metafísicas do negacionismo climático”, faz a crítica de uma
tese de doutorado da USP que busca negar a teoria do aquecimento global a partir de
uma posição esquerdista.

“O Dinheiro do Espírito e o Deus das Mercadorias”, de Nuno Machado, enfoca o


tema da abstração real em Alfred Sohn-Rethel. O autor revisa os conceitos do pensador
e os confronta com as posições da crítica do valor, especialmente dos grupos Krisis e
Exit! e de Moishe Postone.

Em “Lukács – a Ontologia da miséria e a miséria da Ontologia”, Cláudio R.


Duarte apresenta uma crítica imanente à Ontologia do ser social do último Lukács,
recém publicada no Brasil, mostrando que a sua pedra angular é nada mais – e nada
menos – do que a miséria do valor e do trabalho, como bases da esfera separada da
economia moderna, o fundamento “ontológico” em ruína avançada no capitalismo
especulativo global.

Em seguida, uma participação especialíssima: o texto pouco conhecido, redigido


em 1962 por Guy Debord, Attila Kotànyi e Raoul Vaneigem, das “Teses sobre a Comuna
de Paris”, aqui em tradução de Raphael F. Alvarenga. Elas vêm a calhar num momento
em que aquele episódio determinante do movimento operário clássico não figura mais
nos currículos de História na França – o que nos faz pensar que se a situação de conflito
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social sistêmico engrossar, coisas reacionárias desse tipo podem ocorrer nessa e noutras
partes.

Na sequência e até o final da revista, temos um feixe de textos em torno da arte


moderna e contemporânea. Primeiramente, vão publicados dois textos de Anselm Jappe
traduzidos por Marcos Barreira. Em “Crítica social ou niilismo?”, Jappe percorre a
história do pensamento radical e da negação e inverte a acusação habitual,
argumentando que niilista, na verdade, é a sociedade moderna. Em “Terão os
situacionistas sido a última vanguarda?”, o autor coloca em perspectiva a ascensão e
declínio das vanguardas artísticas, a fim de determiná-las historicamente.

“Extratos de Pollock, ou, pintura e trabalho abstrato”, de Cláudio R. Duarte, trata


da mediação do trabalho abstrato contida na action painting de Jackson Pollock, como
o seu ponto cego central. O pintor tanto sofre como expõe o trabalho abstrato como um
ritual vazio absurdo. Ao mesmo tempo, faz ver o sentido da posição da negação,
enquanto expressão e posição do sujeito, na dialética objetivada de sua forma.

Eraldo Santos, em seu texto “Tímida sim, mas um tantinho desrecalcada”, discute
um texto do grande crítico Rodrigo Naves sobre o pintor Alberto da Veiga Guignard. Na
esteira de Naves, suas análises buscam conceituar a forma da pintura de Guignard, que
contém em si a dialética da inserção da sociedade brasileira no capitalismo global, e que
apontava para um projeto diferente de modernidade artística.

O próximo ensaio – “Rodrigo Naves e as dificuldades da formação”, de Cláudio R.


Duarte, retoma e amplia um pouco mais essa mesma problemática bem apresentada por
Eraldo. Ele enfoca a potência crítica de Rodrigo Naves e de seu mapeamento do estado
atual das artes plásticas no país e no mundo totalmente mercantilizado. Num segundo
tempo, busca criar, por meio das categorias de Naves, os termos de uma comparação
entre Guignard e Machado de Assis, tomando-os como duas respostas críticas ao Brasil
e a esse mundo que então ainda se formava. O termo mediador da comparação é a
imposição de uma modernização conservadora, que se dificulta o nosso regime de forma
não impede de o país “se formar” negativamente por meio da forma-mercadoria,
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dificultando ou impossibilitando ilusões de meras reformas de superfície.

Comentário crítico de uma adaptação regressiva de uma peça de Bertolt Brecht, o


texto seguinte, “Adesão e desbunde”, de Raphael F. Alvarenga e Natasha B. Palmeira,
discute a banalização e os abusos das teorias do dramaturgo alemão em montagens
atuais, nas quais a falta de dialética, a incapacidade de historicizar e a preocupação em
oferecer ao espectador vivências extraordinárias obnubilam o fato que em obras de arte
dignas do nome os meios formais não são mero fruto do acaso.

Marcelo Mari, em “Ideologia, comunicação e visualidade – o sistema artístico


detectado”, trata da história da crítica de arte moderna e pós-moderna, a partir dos
desdobramentos inscritos na mudança de concepção e de organização das instituições
artísticas (museus, bienais, mostras etc.) no Brasil e no mundo. O texto aponta que o fim
da arte é apenas o início de sua mercantilização e institucionalização integrais.

“Os devotos do Santo Anônimo” é uma resenha do romance de estreia de Antonio


Geraldo Figueiredo Ferreira, intitulado as visitas que hoje estamos, lançado em 2012. O
romance tem uma densidade literária singular, pois consegue, numa espécie de tour de
force, unificar em vários registros as duas formas sociais do fetichismo (o religioso e o
monetário-capitalista) do mundo “caipira” brasileiro, hoje em estado de petição de
miséria, por isso mesmo, petição de uma vida além da miséria.

A revista termina com a publicação de três fragmentos selecionados desse


romance de Antonio Geraldo: “a hora certa”, “a lição” e “com espírito”. Agradecemos
muito a sua colaboração para a resenha e a publicação destes textos.

A revista continua aberta às contribuições – principalmente quando alimentam


as dissonâncias, geradoras dos autênticos debates. Assim o esperamos. Até o próximo
número!

Janeiro de 2013

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Crise mundial e limites do capital


Entrevista com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle

>>Richard Jellen: Como Marx nos ajuda a entender a crise atual melhor do que
outros teóricos?

Ernst Lohoff: Para responder isso, primeiro temos que atentar para o debate sobre a
crise atual, que se caracteriza por uma enorme discrepância. De um lado, está bem
estabelecido que esta crise é de “proporções históricas”, e a cada duas semanas tem-se
uma nova reunião que termina com os mais importantes chefes de Estado anunciando
que acabaram de salvar a economia global da destruição. Por outro lado, as explicações
que são oferecidas para esse desenvolvimento dramático são extremamente
insuficientes. O discurso oficial em torno da crise está sendo conduzido no nível do
encanador amador, que conserta um cano aqui e outro acolá enquanto o porão é
inundado. Todo tipo de manobra técnico-financeira está sendo discutida, mas ninguém
sabe o que resultará delas, porque não existe uma boa análise teórica do processo de
crise em curso.

Enquanto isso, os representantes mais reflexivos da teoria econômica estão admitindo


abertamente a falência de sua disciplina. O professor de Harvard e ex-economista-chefe
do FMI, por exemplo, disse recentemente ao jornal de negócios Handelsblatt que os
modelos econômicos altamente elegantes que dominaram a academia por décadas
foram, na prática, “muito, muito mal-sucedidos. Quando o grande choque chegou, eles
se revelaram inúteis”.

>>RJ: O que causou esse total fracasso?

EL: Pensamos que isso remete às próprias questões que eles fazem de início. A questão
fundamental da nossa era de crise é na verdade bastante óbvia: por que uma sociedade
com produtividade material absolutamente explosiva, que pode produzir riqueza
material infinitamente, tem de concluir que está aparentemente “vivendo além de suas
possibilidades”? Podemos encontrar a resposta a esta questão em Marx – desde que
façamos uma leitura crítica e não alinhada aos modelos interpretativos do marxismo
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tradicional ou do assim chamado renascimento de Marx que estamos vivenciando agora.

O Capital de Marx não começa contrastando capital e trabalho, mas antes com a “forma
elementar” da sociedade capitalista: a mercadoria. Marx mostra que a contradição
básica que explica a tendência do capitalismo à crise em geral e à crise atual em
particular está imbricada na própria mercadoria. Trata-se da contradição entre duas
formas de riqueza: riqueza material, tal como gerada na produção de bens de uso, e
riqueza abstrata, que é categorialmente representada como valor e reificada na forma do
dinheiro.

Sob as condições da produção moderna de mercadorias, ou seja, em uma sociedade


capitalista, a riqueza material somente é produzida na medida em que ela também possa
ser representada como valor, ou seja, na medida em que contribui para a valorização do
capital. Portanto, a produção de bens é sempre um meio para um fim externo: o fim em
si mesmo de transformar dinheiro em mais dinheiro. Sempre que esse fim não pode ser
atingido porque a valorização do capital foi interrompida, a riqueza material também
pára de ser produzida. Bens são até mesmo destruídos porque não podem ser vendidos,
apesar do fato de que necessidades deixam de ser atendidas, em grande escala. Pessoas
têm de viver em barracas enquanto suas casas estão vazias, por exemplo, simplesmente
porque não podem mais pagar o seu financiamento.

>>RJ: O que caracteriza as crises econômicas na sociedade burguesa em comparação


com outros tempos?

Norbert Trenkle: Basicamente, podemos dizer que as crises no capitalismo não


surgem da escassez, mas da abundância, e em meio à abundância. Essa é uma
insanidade básica que a economia não pode explicar, porque ela naturaliza a produção
de riqueza abstrata: ela apresenta a produção de mercadorias como um tipo de forma
inata da economia humana. Por esta razão, ela não presta nenhuma atenção às
contradições internas entre a produção de riqueza material e abstrata, e ela é cega às
causas mais profundas da crise em curso.

>>RJ: Que tipo de crise econômica é esta que vivemos hoje?

EL: Marx faz uma distinção entre crises gerais e crises específicas, dizendo que “em
crises do mercado mundial, todas as contradições da produção burguesa emergem

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coletivamente; em crises específicas (específicas em seu conteúdo e extensão) as


emergências são mais esporádicas, isoladas e unilaterais”1. Nenhuma crise na história
do capitalismo mereceu tanto ser chamada de crise geral quanto a que se tornou visível
desde 2008. Ela consiste em todo um sistema de crises parciais, que disparam umas às
outras, se sobrepõe e se acumulam mutuamente.

Acima de tudo, duas camadas principais devem ser analisadas separadamente.


Primeiro, há uma crise estrutural de produção de valor real. Ela vem ocorrendo sob a
superfície desde os anos 70, nunca foi superada, e na verdade não pode ser superada,
porque ela se deve ao fato de que a produtividade desde então é alta demais para manter
o processo de valorização do capital funcionando. O capital tem que se reproduzir,
porque do contrário deixa de ser capital, e para isso uma força de trabalho sempre
crescente tem de ser utilizada para produzir mercadorias. Mas, ao mesmo tempo, a
competição acarreta uma incessante corrida pela produtividade, que em seu núcleo leva
à substituição permanente do trabalho por capital imobilizado. Essa é a contradição
interna fundamental no modo de produção capitalista, que ao final tem de se voltar
contra o próprio modo de produção. Especificamente, se a produtividade é tão alta que
grandes massas de força de trabalho se tornam supérfluas, isto coloca em perigo a
própria base da valorização do capital. É precisamente isto o que está no núcleo da crise
estrutural de fundamentos na qual o sistema capitalista global se encontra desde o fim
do boom do pós-guerra.

>>RJ: Qual é o outro componente essencial da crise?

NT: A crise que acabamos de descrever foi abafada por décadas pelo inchaço dos
mercados financeiros. No nível da sociedade como um todo, a acumulação de capital
voltou ao seu curso depois das crises dos anos 70, e a economia global voltou a crescer.
Porém, esse crescimento não se baseava mais na produção real de valor através da
exploração da força de trabalho, mas através do crescimento explosivo de capital na
indústria financeira. Como a indústria financeira colocou cada vez mais títulos de
propriedade em circulação (dívidas, ações, derivativos), ela conseguiu colocar em
prática o truque de transformar valor futuro, isto é, valor que ainda não foi produzido e

1 MARX, Karl. Theories of surplus value, Part II. Prometheus Books, 2000, p. 725.
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talvez nunca seja produzido, em riqueza abstrata.

Mas essa reprodução do capital através da antecipação de valor, que há muito atingiu
proporções astronômicas, entrou ela própria em crise. Ainda que o crescimento
contínuo dos títulos de propriedade, sem os quais o capitalismo não pode mais
sobreviver, esteja operando da mesma forma de sempre e esteja mesmo em aceleração,
isto ocorre apenas porque agora a tarefa está sendo executada por governos, e acima de
tudo por bancos centrais. Os estados aumentam as suas dívidas e os bancos centrais
garantem o excesso de crédito dos bancos privados a juro zero, enquanto
simultaneamente compram títulos do governo que ninguém mais comprará. De fato,
estamos lentamente atingindo os limites desse processo, e a crise do euro é um exemplo
disso.

>>RJ: Como o papel dos bancos centrais mudou no curso da crise financeira?

EL: Acima de tudo, o termo “capital fictício” denota o capital fictício formado por atores
do setor privado; créditos de bancos comerciais junto aos seus tomadores de
empréstimo; e ações e títulos em posse de companhias de seguro, fundos de
investimento ou investidores privados. Mas à medida que as moedas perderam o lastro
do padrão-ouro, há outro ator que se tornou importante na criação de capital financeiro
na indústria financeira: o banco central. A política monetária não é nada sem a
influência dos zeladores da moeda sobre a extensão pela qual o capital-dinheiro fictício
é criado. Isto pode acontecer indiretamente, por exemplo, ao definir o depósito
compulsório que os bancos comerciais são obrigados a reter.

Mas há algo que é muito mais importante. Os próprios bancos centrais estão entrando
nos mercados financeiros e de capitais como participantes do mercado, e acumulando
capital fictício. A assim chamada “criação de dinheiro” consiste em bancos centrais
garantindo o crédito a bancos comerciais, o que significa comprar promessas de
pagamento. Quando os bancos centrais reduzem a taxa de juros sobre esse crédito, ele
abastece a criação de capital fictício. Aumentar a taxa prime tem o efeito inverso. Essa
política de juros foi essencial para superar as crises anteriores na era do capital fictício.
Com ela foi possível até mesmo detonar a acumulação privada de capital fictício durante
a séria crise da nova economia na virada do milênio, com a drástica redução da taxa

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prime.

A bolha imobiliária, que também reascendeu a enfraquecida economia real, foi


alimentada por crédito barato. Mas a crise atual parece diferente. Para evitar o colapso
do sistema financeiro, os bancos centrais têm que adquirir cada vez mais ativos tóxicos e
garantir crédito em grande escala onde ninguém mais iria fazê-lo, além de manter uma
política de juro zero que fornecerá a matéria-prima para novas bolhas. Durante a fase de
crise aguda no outono de 2008 [primavera no Brasil], isso se limitou a substituir o
mercado interbancário paralisado. Normalmente os bancos internacionais emprestam
uns aos outros o dinheiro que não estão usando em um piscar de olhos, mas eles tinham
tão pouca confiança uns nos outros após a quebra do Lehman Brothers que aquela
forma de liquidez secou, e os bancos privados receberam crédito apenas dos bancos
centrais.

O que é ainda mais sério do que esse resgate de curto prazo é o fato de que, enquanto
isso, os bancos centrais têm de comprar títulos do governo em grande escala para evitar
que o mercado desses valores mobiliários entre em colapso, começando uma reação em
cadeia de insolvências governamentais. Mas a crise bancária ainda está latente, e os
bancos centrais estão assumindo esse risco, assim como estão fornecendo crédito de
longo prazo a bancos comerciais em apuros, que obviamente seria perdido em caso de
quebra.

Seja no Fed nos Estados Unidos ou nos bancos centrais europeus, isto está
transformando todos os bancos centrais em bancos podres. Eles estão injetando capital-
dinheiro loucamente no sistema bancário, enquanto a qualidade de suas reservas de
moeda está se deteriorando rapidamente, porque elas são cada vez mais compostas por
ativos tóxicos inegociáveis. De fato, os resgates de emergência dos últimos quatro anos
podem ter evitado o colapso do sistema financeiro, mas eles apenas adiaram a
necessidade de desvalorização e, ao mesmo tempo, a socializaram.

>>RJ: Qual a probabilidade de haver inflação?

NT: A estabilidade monetária é ameaçada de dois lados: de uma parte, os bancos


centrais estão injetando mais e mais capital-dinheiro no sistema bancário. Enquanto os
bancos e seus clientes reutilizarem esse capital-dinheiro como capital, ou seja, enquanto

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comprarem títulos de propriedade ou o investirem produtivamente, não há


consequências sérias para a estabilidade monetária. Isto muda, porém, quando ele flui
para mercados de bens, sendo tratado apenas como dinheiro extra contra as
mercadorias que estão sendo comercializadas. Quando isto ocorre em grande escala,
porque há escassez de investimentos de capital, o inchaço na superestrutura financeira
será traduzido em desvalorização da moeda, o que significa inflação. Ao mesmo tempo,
como já indicamos, mais cedo ou mais tarde isso levará a uma desvalorização aberta das
reservas monetárias. Assim, uma oferta superestendida de dinheiro se encontrará com
uma demanda reduzida.

Nesse contexto, a questão não é se haverá inflação, mas quando ela começará e que
caminho tomará. Até aqui, a inflação, ao menos aqui na Alemanha, se limitou a metais
preciosos e terrenos, que funcionam como investimentos seguros no mundo dos bens
materiais. No dia a dia isso já é visível na forma de aluguéis crescentes. Mas dificilmente
isto parará aí.

De certa forma, isto implica um retorno ao estado da economia global de antes da real
decolagem do capital fictício. Nos anos 70, os países capitalistas centrais foram
caracterizados por um fenômeno que os economistas chamaram de “estagflação”: o
crescimento fraco foi acompanhado por uma inflação anual de cerca de 10%. Mas as
coisas ficaram muito maiores em comparação com aquele período. O crescimento fraco
pode levar a uma recessão aberta, e a inflação à hiperinflação. Adiar a crise tem um
preço.

>>RJ: O que causou a crise atual?

NT: Quando olhamos para as causas, temos que distinguir entre as duas camadas da
crise. A crise de base da valorização do valor é, como já dito, o resultado da aceleração
do desenvolvimento da produtividade, que torna o trabalho cada vez mais supérfluo. A
terceira revolução industrial tem um papel crítico nisso. Enquanto também houve fortes
impulsos para a racionalização em fases anteriores do desenvolvimento capitalista, por
exemplo, nos anos 20 e 30, quando os métodos de produção fordista foram
introduzidos, novos setores da produção industrial de massa estavam sendo explorados
concomitantemente, e eles exigiam trabalho adicional em massa. A expansão da

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produção de mercadorias a novos campos compensava os efeitos da racionalização, de


forma que em última instância mais trabalho era utilizado do que anteriormente.

Mas na terceira revolução industrial, esse mecanismo compensatório não está mais
funcionando, porque a reestruturação do processo de produção baseada na tecnologia
da informação implica transferir a força produtiva de uma sociedade para o nível do
conhecimento, ou, mais precisamente, para a aplicação do conhecimento na produção.
Os fundamentos da valorização do capital, em consequência, são colocados em xeque,
porque isso leva ao deslocamento absoluto da força de trabalho em todos os setores da
produção de valor, o que não pode mais ser compensado pelo desenvolvimento de novos
setores.

>>RJ: Então o que é capital fictício, e qual o seu papel na crise atual?

EL: O capital fictício é essencial para o entendimento da segunda camada da crise.


Trata-se de um conceito que Marx introduziu para distingui-lo de capital produtivo. Ele
mostrou que o capital, em seu curso de desenvolvimento, não apenas transforma a
produção de batatas, aço, têxteis, etc. em produção de mercadorias, mas que o próprio
capital-dinheiro também se torna uma mercadoria comercializável.

O que acontece nesse processo é espantoso. O capital inicial subitamente ganha uma
existência dupla, como resultado de sua venda. Por um lado, o capital inicial é agora
possuído por um tomador de empréstimo ou companhia emissora de ações, mas ao
mesmo tempo o emprestador ou acionista possui um espelho do capital inicial, ou um
título de propriedade (título de dívida, ação, etc.), que representa um crédito pecuniário.
Essa duplicação não é uma mera ficção, como o termo “capital fictício” parece sugerir.
Ela não existe apenas na cabeça das pessoas. Ela adquire uma existência social objetiva
na forma de valores mobiliários, enquanto o título de crédito parecer resgatável. Este é
um crédito para um valor futuro e representa a riqueza capitalista, exatamente da
mesma forma que o valor, que é extraído da força de trabalho pelo capital produtivo.

No tempo de Marx, esse tipo de aumento de capital através da capitalização antecipada


de valor futuro era marginal, a ponto de ser irrelevante para o desenvolvimento de longo
prazo da acumulação de capital, mas ao longo dos últimos trinta anos, ela se tornou uma
fonte real de riqueza capitalista. Para manter a produção capitalista apesar do fato de

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que o trabalho se torna cada vez mais supérfluo, devido aos ganhos de produtividade,
porções cada vez maiores de valor futuro, fictício, foram injetadas no presente. Como
resultado, a crise estrutural da valorização foi adiada, por enquanto.

>>RJ: E qual é o cerne da questão?

EL: Infelizmente, um sistema baseado na antecipação de produção de valor futuro só


pode funcionar como um esquema de pirâmide, e como tal ele é pressionado de dois
lados: de uma parte, quanto mais tempo essa forma insana de capitalismo continua
reprocessando a si mesma, mais rápido os ativos tóxicos de um futuro capitalista que já
foi consumido serão empilhados até o céu. As dívidas do passado não podem
desaparecer sem consequências. Ou elas são refinanciadas, ou o capital social será
destruído pela nulificação do capital fictício.

Por outro lado, a maré crescente dos títulos de propriedade só pode encontrar mercado
se de alguma forma parecer plausível que a promessa de pagamento e a perspectiva de
lucros de parte dos tomadores de empréstimo e de outros vendedores de títulos de
propriedade possam ser cumpridas. Quando isso não pode mais ser garantido, a bolha
estoura e parece haver uma “crise financeira”, quando na realidade a única coisa que
fracassou é o mecanismo que tornou possível que a crise estrutural da valorização fosse
adiada por décadas. Se você entende issso, você sabe que a crise atual é muito mais
dramática do que geralmente se percebe. Trata-se de uma crise sistêmica no sentido
mais estrito do termo: uma crise que genuinamente coloca em questão o sistema
capitalista de produção de riqueza.

>>RJ: Quais serão as consequências das políticas de austeridade que estão sendo
executadas pelas classes política e financeira como solução para a crise?

NT: Duas coisas têm de ser mantidas separadas quando falamos sobre medidas de
austeridade. Austeridade no sentido de estabelecer metas oficiais, especificamente como
um caminho para o equilíbrio orçamentário, é uma Fada Morgana. Assim, novas dívidas
têm de ser geradas, porque os estados ficaram sem escolha, a não ser injetar
continuamente muitos bilhões no sistema bancário e financeiro para adiar o seu colapso
o mais que puderem. Eles fazem isso porque haverá consequências catastróficas caso
não o façam. Mas esses bilhões não podem vir da criação de valor real. Eles só podem

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sair da repetida antecipação de valor futuro.

Então os estados têm de fazer tudo o que está ao seu alcance para assegurar a sua
credibilidade, e para fazê-lo como se o seu interesse fosse o de equilibrar os seus
orçamentos no longo prazo. E é exatamente isto o que eles estão demonstrando, através
de políticas brutais de austeridade em relação a toda esfera social que seja considerada
puro estorvo da perspectiva do capital fictício: sistemas de bem-estar social, serviços
públicos, educação, etc. A versão oficial desse relato se revela bastante bem nas
distinções que eles fazem entre setores que são “sistemicamente relevantes” e
“sistemicamente irrelevantes”. Não é necessário explicar que as consequências para a
maior parte da população e para a produção de riqueza material são devastadoras. Basta
olhar para a Grécia e a Espanha, onde o que está sendo executado é exatamente o que
mais cedo ou mais tarde ameaçará os países que ainda não foram tão seriamente
afetados pelas consequências da crise.

>>RJ: Por que eles estão optando por essa política de empobrecimento?

NT: Eles não estão fazendo isso, por exemplo, para criar uma sociedade “sustentável”,
ou para evitar deixar dívidas excessivas para “nossos filhos”, como coloca o jargão
político hipócrita, pateticamente falso. Eles o fazem apenas para continuar a
acumulação de capital fictício. O preço disso continua aumentando, entretanto, porque
não se trata mais de uma questão de manter funcionando a máquina de produção de
riqueza abstrata sugando valor futuro, mesmo quando a máquina é paralisada pela alta
produtividade. Acima de tudo, ao contrário, o que deve ser evitado é o colapso das
montanhas de promessas de pagamento irresgatáveis. Por isso, a maior parte do capital
fictício recém criado flui diretamente de volta para o setor financeiro, e cada vez menos
entra em circulação na economia real.

Como consequência, fica claro que a política de austeridade está atingindo um ponto
onde ela está se tornando contraprodutiva mesmo para o objetivo estreito de acumular
capital fictício. Onde ela é levada ao extremo, como agora na Grécia e na Espanha, ela
está conduzindo diretamente à depressão econômica – e isto também afeta o sistema
bancário e financeiro. Lentamente, isto está ficando claro até mesmo entre os linha-dura
da austeridade alemã e europeia. Por isto, e, é claro, por causa dos protestos de massa,

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novos programas de crescimento e estímulo estão sendo discutidos, mas resta saber se
esses programas serão executados a tempo, antes do começo da derrocada. Espera-se
que eles percebam que podem pelo menos desacelerar a corrida para o
empobrecimento.

É claro que mesmo no melhor dos casos isto serviria apenas para ganhar tempo, porque
esses programas são subsidiados pelo mesmo capital fictício. Isto implica, então, que os
seus apoiadores, como o presidente francês Hollande, não estão de maneira nenhuma
desafiando a austeridade em si. Eles apenas querem dar-lhe uma forma ligeiramente
diferente. Eles também estão perseguindo a ilusão de um orçamento equilibrado, e em
último caso estão dispostos a demandar que a população faça todo o sacrifício possível
por essa ficção. A partir dessa perspectiva, podemos esperar uma alta carga de
crueldade de uma possível coalizão verde-vermelha na Alemanha no próximo ano.

>>RJ: Em seu novo livro2, vocês dizem que “Mais cedo ou mais tarde deve chegar o
ponto no qual o nível das forças produtivas não é mais compatível com a forma
capitalista da riqueza”. Mas não há sempre tendências que compensam a crise
enquanto ela se desenvolve, ou depois?

EL: A teoria marxiana da crise une dois elementos. Por um lado, Marx sustenta a teoria
de que o capital vai em direção a um limite histórico insuperável, devido ao
desenvolvimento das forças produtivas. Por outro lado, ele também examinou o curso
das crises periódicas, que repetidamente interrompem a progressão da acumulação de
capital. Em sua teoria da crise, ambos os elementos estão unidos, pois o problema
básico do capitalismo, a subordinação da produção de riqueza material ao objetivo sem
sentido da valorização do valor, sempre surge durante essas crises periódicas.

Ainda mais do que em outras esferas da sociedade, a discussão na esquerda é dominada


por uma forte tendência a subestimar a crise atual. Consequentemente, o problema das
crises periódicas é visto de forma isolada, e a possibilidade de um limite histórico é
simplesmente ignorada. O resultado é uma maneira budista de entender as crises,
segundo a qual as crises são apenas “crises autocorretivas”. Elas vêm e vão eternamente,

2 LOHOFF, Ermst. & TRENKLE, Nobert. Die große Entwertung: Warum Spekulation und
Staatsverschuldung nicht die Ursache der Krise sind [A grande desvalorização: por que a especulação e
o endividamento estatal não são as causas da crise]. Münster: Unrast-Verlag, 2010.
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e em última instância apenas fortalecem o capital. Isto também surge em Marx – onde
ele tem algo completamente diferente a dizer sobre as crises periódicas. “As crises são
sempre apenas soluções momentâneas e forçosas para as contradições existentes. Elas
são erupções violentas, que por um tempo restauram o equilíbrio perturbado”3. Para ele,
o essencial é a constante intensificação e acumulação de novas contradições.

O nosso argumento no livro toma diretamente a ideia marxiana de um limite histórico, e


o localiza na terceira revolução industrial. O fato de que a destruição de capital em
tempos de crise restaura a lucratividade do capital remanescente, e portanto pode
tornar-se o ponto de partida para um impulso renovado de acumulação, não é uma
resposta ao problema do limite histórico, mas estritamente para as crises periódicas. Ele
assume que um novo impulso sustentado de valorização de capital pode começar depois
que a supercapacidade for corrigida. Mas isso é exatamente o que é fundamentalmente
descartado sob as condições da terceira revolução industrial.

>>RJ: Vocês afirmam que as respectivas vitórias do keynesianismo e do


neoliberalismo correspondem a diferentes fases da dinâmica da valorização
econômica no capitalismo. Vocês podem explicar isso?

NT: O relativo sucesso do keynesianismo durante o boom do pós-guerra estava ligado a


condições estruturais específicas que estavam fora do seu controle, o que significa que
ele não as criou, e não poderia criá-las. As políticas de regulação e de redistribuição
eram inteiramente funcionais, à medida que o emprego industrial massivo se expandiu e
atuou como o motor de um boom autossustentado de valorização de capital. A expansão
de sistemas de bem-estar social e o aumento real dos salários não apenas contribuíram
para a pacificação social, mas também estabilizaram a escalada econômica, porque
fortaleceram o consumo de massa. A expansão da infraestrutura pública teve
importância no mínimo equivalente. Sem isso, a industrialização total e a
mercantilização de tudo na sociedade não poderiam funcionar. Não se poderia dirigir
automóveis sem uma densa rede de estradas, a eletrificação das casas exigia o
fornecimento de energia, e um sistema educacional amplo e de boa qualidade se fazia
necessário para educar uma força de trabalho qualificada.

3 MARX, Karl. Capital. New York: International Publishers, 1967, vol. III, p. 249.
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Então, o Estado exerceu um papel central, e isto alimentou a ideia de que ele também
estava na posição de manter o desenvolvimento econômico, guiá-lo, e estabilizá-lo no
longo prazo. Mas quando o boom fordista do pós-guerra chegou ao fim, isto se mostrou
uma ilusão, porque, à medida que a valorização do capital foi paralisada, quando cada
vez mais trabalhadores foram demitidos devido ao rápido aumento da produtividade,
não foram apenas as fontes financeiras que secaram. Ainda mais sério foi o fato de que
ele não conseguiria iniciar um novo surto sustentado de valorização de capital, apesar
do massivo estímulo dos financiamentos e pacotes de crescimento.

Da nossa perspectiva, não há nada de notável nisso, porque, se o Estado pode intervir
nos mecanismos de mercado até certo ponto, ele não tem acesso ao processo
fundamental que é determinado pela contradição interna do capitalismo. Para colocar
de outra forma, o keynesianismo tornou-se inútil frente à racionalização geral que se
seguiu à terceira revolução industrial, que em última instância erodiu os fundamentos
da valorização do capital. Toda tentativa de tirar a economia real da estagflação
fracassou miseravelmente.

Esta foi a razão mais profunda da vitória do neoliberalismo. Se tampouco tinha um


plano para ressuscitar a valorização do capital, ele estabeleceu as bases para que a
dinâmica econômica se transferisse para a “indústria financeira”, e consequentemente
para adiar a crise pelas três décadas seguintes. Os fatores críticos aqui foram, de um
lado, a liberalização consistente dos mercados financeiros e, de outro, o aumento da
dívida pública do governo Reagan, que de certa forma serviu como financiamento inicial
para a acumulação de capital fictício em enorme escala. A destruição de estruturas
fordistas através da desestruturação de sindicatos, etc. fez o resto, porque ao mesmo
tempo a privatização do setor público abriu novos campos para o investimento
financeiro, por exemplo a privatização de sistemas de previdência.

>>RJ: Qual o papel da revolução da tecnologia da informação nisso tudo?

NT: Da mesma maneira que o keynesianismo apoiou a expansão da produção industrial


em massa, o neoliberalismo se tornou o padrinho da “indústria financeira”. É uma
ironia da história que, como resultado, isto simultaneamente tenha ajudado no
desabrochar da terceira revolução industrial. Por si mesma, ela teria se sufocado em sua

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própria produtividade. Mas a acumulação de capital fictício criou o cenário necessário


para a ampla instalação da tecnologia da informação. Tornou-se possível suplantar
temporariamente os poderosos efeitos da racionalização, que levaram a um massivo
deslocamento do trabalho vivo de setores do núcleo da valorização, tomando valor
futuro. O resultado, porém, é a progressiva erosão da produção de valor que só agora
começa a ser perceptível em toda a sua extensão, na crise do capital fictício.

>>RJ: Em seu livro, vocês comparam a economia a uma “escola de arte que prescreve
a borracha como a única ferramenta para a confecção de retratos”. O que isso
significa?

EL: Isto nos leva de volta à questão do início da entrevista. A economia, não importa a
escola, não pode entender a crise, porque ela oblitera a distinção básica entre as duas
formas de riqueza: riqueza material e riqueza abstrata. Os capítulos iniciais dos livros de
teoria econômica sempre dizem que o objetivo da economia é a satisfação das
necessidades e a ótima provisão de bens para as pessoas, e que somente a economia de
mercado sob condições avançadas de divisão do trabalho pode atingir esse objetivo.

Então, o funcionamento da economia de mercado é descrito de acordo com o princípio


da troca simples de mercadorias, da mesma maneira que o mercado na praça central de
uma vila idealizada, onde sapatos são trocados por porcos e ovos por novelos de lã. Isto
sistematicamente exclui o que é totalmente óbvio, ou seja, que sob as condições
capitalistas, produz-se apenas o que transformará dinheiro em mais dinheiro, e que o
objetivo da produção é a reprodução de riqueza abstrata, e a mercadoria é simplesmente
um meio para manter esse sistema autorreferente em operação. Para colocar em outros
termos: a economia usa a borracha logo no nível de suas premissas básicas, e apaga o
que é específico sobre o modo capitalista de produção. Não surpreende, portanto, que
seja incapaz de reconhecer as causas da crise.

>>RJ: Vocês consideram a crítica personificada dos especuladores e banqueiros como


mecanismos antissemitas e racistas. Por quê? A crítica dirigida a banqueiros desde
2008 não foi construída sobre chavões antissemitas, ao contrário dos anos 20, quando
caricaturas eram ilustradas com imagens antissemitas. Ou algo me escapa?

Para começar, nos distanciamos fundamentalmente de toda crítica personificada, que

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atualmente está fora de controle de todas as formas possíveis. A crise do capital fictício é
também uma crise do euro. E como ela vem sendo considerada? Ela é causada pelos
“gregos preguiçosos”, que teriam desperdiçado o nosso dinheiro “suado”. Essa
personificação não apenas ignora de maneira insana o fato de que uma sociedade foi
empobrecida em meio à abundância, simplesmente porque toda riqueza tem de passar
pelo buraco de agulha da produção de mercadorias. O que é pior é que a raiva em
relação a essa situação miserável é projetada sobre sujeitos coletivos específicos,
construídos, de forma que agora se abriu uma temporada de caça.

Colocar a culpa em banqueiros e especuladores em si mesmo é “apenas” mais uma


forma dessa personificação. Mas nisso há algo mais que ressoa, que muitas vezes
permanece inconsciente. Essa personificação particular é em grande medida congruente
com um modelo básico de antissemitismo, que constrói uma oposição entre capital
“produtivo” e capital “acumulador de dinheiro” – e o último é identificado com os
judeus. Podemos ver novamente esse modelo hoje na ideia generalizada de que a
economia real foi destruída por alguns especuladores gananciosos, e de que o
importante é que lhes sejam impostos limites.

Isso não significa que todos os que atacam banqueiros e especuladores sejam
antissemitas. O que isto significa é que esse modelo projetivo de processar a crise é
totalmente compatível com a mania antissemita. Não é coincidência, portanto, que a
linguagem metafórica deslize repetidamente nessa direção, por exemplo no notório
termo “gafanhoto”, que o político social-democrata alemão Franz Müntefering
popularizou, colocando-se como um crítico do capitalismo. A frase “eles nos atacam
como gafanhotos” vem do filme de propaganda nazista Jud Süß, e não é necessário
explicar que os gafanhotos eram animais gananciosos. Outras imagens também são
recorrentes, como a popular representação do capital financeiro como um polvo com o
mundo em seus tentáculos. Ela também aparece de forma quase idêntica na propaganda
antissemita dos nazistas. Temos que ser muito cuidadosos com isso. Ainda há um tabu
na Alemanha contra adentrar a agitação antissemita aberta, mas a tendência é que isto
se torne perceptível, e isto é muito perigoso.

>>RJ: Que tipo de práxis política e social emerge, concretamente, de seu modelo

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teórico?

NT: Bem, antes de qualquer coisa uma rejeição enfática e fundamental da política de
austeridade. É completamente insano afirmar que vivemos além de nossas
possibilidades e que temos que apertar os cintos, frente aos níveis de produtividade
altíssimos. O contrário é verdadeiro. Se fizéssemos uso integral das possibilidades das
forças produtivas modernas, toda pessoa do mundo poderia ter uma boa vida, e teria de
gastar apenas uma fração de seu tempo de vida produzindo bens materiais.

A única razão pela qual isso não ocorre é porque a empresa capitalista, obviamente,
obedece a sua compulsão para criar riqueza abstrata, porque ela adere à lógica de que a
riqueza material só é reconhecida quando representa “valor”. E isso não é simplesmente
algum tipo de oportunidade perdida ou uma possibilidade que passou despercebida. A
aderência à lógica da produção de valor no estado atual da produtividade é
simplesmente catastrófica, porque leva à exclusão de um enorme número de pessoas
“supérfluas”, que são sacrificadas no altar do imperativo sistêmico de manter o fluxo de
capital fictício do futuro para o presente.

Mas se nos livrarmos da ideia aparentemente óbvia de que os bens materiais só podem
ser produzidos como mercadorias, então se abrem perspectivas totalmente novas.
Especificamente, poderíamos perguntar como e em que forma o potencial existente
poderia ser usado de maneira racional em favor da riqueza geral, sem ter de pensar
sobre viabilidade financeira, viabilidade de mercado ou lucratividade. Ao contrário,
teríamos que reivindicar a perspectiva da riqueza material e das necessidades concretas.
Isso já acontece nas práticas dos movimentos sociais, por exemplo quando ações de
despejo são evitadas porque as pessoas não vêem por quê alguém teria de viver na rua
ou em uma barraca simplesmente porque não pode mais pagar a sua prestação ou
aluguel, ou quando as pessoas simplesmente dizem não à privatização de instituições
públicas na esfera social e cultural. São passos iniciais que apontam na direção correta.
Quando eles estão ligados a uma crítica radical da forma abstrata da riqueza, abrem-se
perspectivas totalmente novas de emancipação social.

[Publicado originalmente em Telepolis, em três partes, em 1o, 2 e 6 de agosto de 2012. Traduzido por
Daniel Cunha a partir da versão inglesa traduzida por Joe Keady (www.krisis.org). O original alemão foi
consultado como referência. Títulos originais: “Alle Zentralbanken sind dabei, sich in Bad Banks zu
verwandeln” (parte 1); “Die Wirtschaftskrise und das fiktive Kapital” (parte 2) e “Der Neoliberalismus
wurde zum Paten der Finanzindustrie” (parte 3).]
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Entre ruína e desespero


Negação e constituição do sujeito em
Robert Kurz e Slavoj Žižek

Cláudio R. Duarte
Raphael F. Alvarenga

Andrea Sarti – É tanto o ganho quando um só


que seja levanta e diz NÃO!

Bertolt Brecht, Vida de Galileu (1939)

Todo protesto tem a sua fecundidade. O que é


estéril é querer reduzir o homem ao seu protesto.

Albert Camus, última entrevista (1959)

Parece não haver dúvida que o conceito de sujeito é o mais controverso da crítica
social contemporânea, dita pós-metafísica. O problema começa pela determinação
precisa dos termos e do referente em debate. Afirmado e negado na teoria e na prática,
arriscamo-nos a uma discussão entre surdos se não apontarmos, a cada passo, o sentido
histórico da coisa mesma e de seus termos. Sobre esse ponto, em dois críticos do
capitalismo avançado, temos posições diametralmente opostas: a afirmação
incondicional do sujeito, no filósofo esloveno Slavoj Žižek, e a negação incondicional da
forma-sujeito, no teórico alemão Robert Kurz, infelizmente falecido julho passado. Sem
buscar uma falsa harmonização, talvez seja possível jogar um contra o outro a fim de
revelar as unilateralidades e os passos em falso no campo da ideologia contemporânea.
Voltando um pouco aos termos históricos da discussão, digamos então que no
Marx da maturidade o conceito de sujeito não figura no primeiro plano, como
fundamento a priori, mas é sempre pressuposto em cada ato dos agentes sociais (por
isso mesmo são “suportes” das relações burguesas), referindo-se à esfera social da
consciência, das necessidades e paixões, dos valores éticos e estéticos etc., em cada
indivíduo moderno. Para Marx, sem dúvida, este se põe somente a partir do século
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XVIII, com a constituição interna dos pressupostos do modo de produção capitalista


(propriedade privada dos meios de produção e produção mercantilizada). Mas, inversão
suprema, o sujeito efetivo predominante era o próprio Capital como totalidade cega e
negativa em movimento, o “sujeito automático” da valorização do valor. A crítica
materialista pergunta-se não mais pelo sujeito burguês isolado e sua consciência, mas
pela práxis social e as formas estruturais que a condicionam. Já em Marx, portanto,
temos a crítica do sujeito moderno, este como parte da “ideologia alemã” e das
“robinsonadas” da economia política clássica. No entanto, Marx não eliminava
simplesmente o conceito. Porque também o proletariado era um “sujeito-sujeitado” a
ser negado/conservado/elevado (aufgehoben), isto é, pressuposto na práxis
revolucionária da classe que suprimiria dialeticamente a dominação capitalista e a si
mesma como classe. O que equivalia a uma posição do “homem” como indivíduo
livremente associado a outros indivíduos, para além da “pré-história da sociedade
humana”. Como tal, esse sujeito pressuposto (e que não tinha nada de um a priori
transcendental) era pouco problemático para Marx, pois, vivendo sob condições
opressivas e miseráveis evidentes, ele parecia muito pouco sujeito à ideologia liberal da
propriedade, da igualdade e da liberdade. O entrave principal era a construção da práxis
comunista e menos a consciência ou o indivíduo que, além de ter de lutar para
sobreviver (luta econômica), parecia propenso à luta pela emancipação social (luta
política). Apesar de tudo, Marx em certos momentos pagou seu tributo ao otimismo do
sujeito do Esclarecimento e à ilusão da História e do progresso irrefreável.
É a partir de Lukács que a questão do sujeito retorna ao primeiro plano como
problema, sob o contexto de noções opostas como reificação e consciência de classe
revolucionária – a “consciência imputável” ao proletariado através da práxis organizada
pelo Partido leninista. A reificação, como falsa consciência e experiência degradada do
trabalho capitalista, seria finalmente dissolvida pelo movimento social organizado. A
reificação radical não eliminava a “alma” proletária, que parecia resistente e mesmo
“ontologicamente” revolucionária, ao modo do Espírito hegeliano, quando despertada
pelo Partido e dirigida pelo Estado socialista. É claro que Lukács falava no calor da hora
da Revolução Russa. Já nos anos 1930 e 40, Adorno e Horkheimer não alimentavam
mais tal esperança no proletariado e muito menos no Partido como representante do
sujeito revolucionário. Ainda se tratava de revelar o não-idêntico no mundo, mas não
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era fácil “encontrá-lo” na práxis histórica, sistema soviético incluso, ou na racionalidade


do indivíduo moderno, que se revela como parte de um sistema de total ofuscamento,
virando membro da massa de trabalho reproduzida pela indústria cultural ou, no limite,
conduzida ao delírio antissemita e a Auschwitz. Daí a busca do sujeito potencial –
suprimido, conservado e elevado como momento – na esfera da teoria crítica da
sociedade e da obra de arte radical, como refúgios de experiência do não-idêntico e de
contato com o possível “reino da liberdade” – bloqueado pela produção fetichista,
reforçada pela política e pela cultura administrada, do sistema social repressivo.
Esta a atualidade, a nosso ver, da crítica marxiana e frankfurtiana, e que Kurz, em
certo sentido, acompanha de perto: o sujeito por certo tem parte com a ideologia
iluminista, é um suporte/apêndice da maquinaria social, mas também, na realidade,
algo muito menos que isso quando se degrada a puro objeto, no limite ficando aquém do
contrato social e toda lógica de reconhecimento como sujeito burguês no interior da
sociedade civil, como massa “supérflua” e “sem valor”, administrada pelo “estado de
exceção” mundial. Kurz, então, busca negar em bloco a forma-sujeito como parte
integral e sem resto da lógica do valor. A tarefa de Žižek, por outro lado, é tematizar,
com o auxílio do retorno a Hegel e à psicanálise lacaniana, um sujeito do inconsciente e
da pulsão, que Marx e Kurz, talvez Adorno, pouco ou nada compreenderam, um sujeito
supostamente além da coordenadas simbólicas e imaginárias da realidade atual, embora
ele se preocupe relativamente pouco com as questões objetivas da economia política e
da práxis social efetiva.
Os dois autores avançam como ninguém pontos teóricos fundamentais a partir de
Hegel, Marx, Freud, Adorno e Lacan. Nossa questão fundamental, como dito, é um
confronto dialético entre os dois lados: o que parece faltar de “sujeito” a Kurz, falta de
“objeto” a Žižek. De um lado, o diagnóstico da ruína, que parece levar a nada, a não ser
por uma ruptura prática que pressupõe ainda alguma forma de “sujeito”, mas que
infelizmente é reprimido como conceito, não dá as caras e não ousa dizer o seu nome; do
outro lado, certo desespero, que parece redundar nas mesmas ruínas, mas com o perigo
mortal de estetizá-las.

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I.

Desde a publicação de O sublime objeto da ideologia (1989), seu primeiro livro


traduzido em inglês, Slavoj Žižek vem se destacando na cena intelectual europeia e
mundial, dentro e fora da academia. Juntamente com o amigo francês Alain Badiou, faz
parte de uma ala da esquerda que, mesmo após o colapso do bloco soviético, “não teme
dizer seu nome”. Obviamente, não se deve apenas a este feito, que no mundo de hoje se
tornou uma audácia, nem simplesmente ao misto de gênio e louco que parece encarnar
de bom grado, a ascensão meteórica do filósofo universitário de Ljubljana a pop star
internacional, condição que parece assumir, aí nem sempre de bom grado, com as
contradições que ela implica. Além de não perder de vista uma visão radical de
transformação social num momento em que por toda parte se celebrava a “globalização
neoliberal” como “fim da história”, sua obra prolífica – nada menos que 75 livros
publicados, com traduções em várias línguas, compondo um mosaico impressionante do
universo intelectual, cultural e político contemporâneo – se caracteriza de modo geral
por um vaivém vertiginoso entre o exercício de sofisticada especulação filosófica e um
sem número de exemplificações provenientes no mais das vezes do universo cultural
pop, pelos curto-circuitos eletrizantes entre este e a alta cultura, pelas passagens
incessantes de uma coisa na outra, do pensamento altamente abstrato à mais reles
empiria hollywoodiana e vice-versa, tudo sempre apimentado com provocadoras piadas
politicamente incorretas, excêntricas anedotas pessoais e associações nada evidentes,
muito embora instigantes, entre fenômenos os mais díspares – como a que estabelece
uma relação entre a previsão do tempo e o racismo, ou entre produtos pós-modernos
desprovidos de substância, como o café sem cafeína, a cerveja sem álcool ou o sorvete
sem gordura, e o sonho de intelectuais de esquerda de terem uma revolução sem
derramamento de sangue, ou ainda a que parte de uma análise minuciosa da forma e do
funcionamento de vasos sanitários europeus a fim de distinguir diferenças essenciais
nos comportamentos ideológicos cotidianos alemão, francês e anglo-saxão e por aí
desmentir as declarações de que viveríamos num mundo pós-ideológico. Acresce que a
experiência do socialismo real e a posição periférica de seu país em relação à Europa
ocidental parecem ter fornecido a seu pensamento um gume crítico que o distingue de
seus pares europeus do Ocidente, boa parte dos quais, mesmo à esquerda, segue ainda
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hoje iludida pelo breve intervalo de bonança keynesiana do pós-Guerra e seu desejado
retorno. Unindo com bastante liberdade e inteligência um bom conhecimento da
tradição hegeliano-marxista a uma formação sólida em psicanálise lacaniana, Žižek traz
à tona coisas que pareciam ter saído de cena ou ficado fora de moda desde os anos 70, a
começar pela complicada e polêmica relação entre teoria social e psicologia, crítica da
economia política e crítica da economia libidinal, com o quê põe de volta no centro do
debate duas questões correlatas e da mais fundamental importância: a questão do
sujeito – concebido, na esteira do idealismo alemão e da teoria da pulsão (de morte)
lacaniana, como potência negativa e disruptiva –, questão completamente desacreditada
após mais de três décadas de inculcação pós-estruturalista, e a questão da superação do
capitalismo, a qual, inclusive à esquerda, havia faz tempo, junto com o próprio conceito
de “capitalismo”, desaparecido do horizonte mental pós-moderno.
Não obstante o valor e a originalidade de sua obra, que não são pequenos, obra
cujo interesse consiste ademais, entre outras coisas, em ter escapado, pelo menos à
primeira vista, à falsa alternativa representada pelo pensamento ideológico francês pós-
68 e a enfastiosa teoria crítica alemã pós-virada linguística, podemos nos perguntar se o
pensamento de Žižek, sob não poucos aspectos, notadamente no que concerne à difícil
relação entre teoria social crítica e psicanálise, não teria ainda assim, no fim das contas,
traços regressivos em relação ao que faziam de melhor os velhos frankfurtianos, Adorno
e Marcuse em particular, e isso a despeito do fato de seu entendimento de Hegel e da
psicanálise ser manifestamente superior ao daqueles pensadores. Apesar de seu orgulho
em filiar suas ideias à filosofia hegeliana, às vezes fica a impressão de que,
paradoxalmente, falta dialética a seu pensamento. No que segue, tentaremos expor
algumas contradições em que, justamente por não ser dado a elas um tratamento
propriamente materialista, parecem reincidir algumas de suas ideias.
Até onde vemos – mas é difícil afirmar com segurança, uma vez que,
conscientemente ou não, sobre certas questões, o próprio autor parece mudar de
posição com frequência, às vezes de um livro a outro (em princípio, nada contra, porque
de certo modo dá mostras de um pensamento antidogmático) –, Žižek tende a
estabelecer, na esteira de Lacan no Seminário 16 (proferido não por acaso em 1968-69),
uma homologia entre mais-valia e mais-gozar, ou seja, entre o excedente de valor
extraído na exploração de força abstrata de trabalho, a “causa” que põe em movimento o
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processo de produção capitalista, e o objeto a, o “valor” buscado pelo sujeito em todas as


suas atividades e relações, aquilo que excede todo ato de simbolização, por isso mesmo
causa do desejo. Na mesma linha de raciocínio, enxerga uma homologia entre a
ideologia ou o fetiche da mercadoria e a fantasia (que estrutura o excesso de prazer) do
sujeito, tal como parece identificar sem mais o sujeito “barrado” ($) de Lacan, marcado
pelo traço unário do significante no campo do Outro (A), com o proletário, descrito por
Marx nos Grundrisse como sujeito vazio de substância (uma vez que sacrifica ao
mercado o cerne substancial de seu ser, isto é, a sua força de trabalho). Ora, com
identificações e nivelamentos desta espécie – que saltam sem qualquer mediação do
histórico ao transhistórico ou do desejo inconsciente à esfera puramente instrumental
da economia capitalista –, nivelamentos nada evidentes, tanto a psicanálise quanto a
crítica da economia política acabam perdendo em determinação e rigor.
Numa palavra, é como se a produção capitalista fosse determinada pela dinâmica
do desejo dos sujeitos, sendo estes “proletários” sujeitados a uma suposta maquinaria
capitalista de gozo (“manipulada” por sabe-se lá qual mestre soberano). Questionar isso
não significa dizer que não haja alguma possível homologia – e esta posição parece ser
o caso para Žižek – entre a forma de funcionamento fetichista do mecanismo social
(estruturado como produção ilimitada de valor excedente) e determinada forma de
sujeito (capturado por vínculos sociais que rompem incessantemente todo tipo de limite
à exploração e à dominação, transformando-o em suporte/apêndice/objeto dessa
máquina). Mas de modo algum seu motor pode ser o desejo e seu fim o gozo. Não se
pode negar também, por exemplo, que as relações capitalistas, dissolvendo no ar tudo o
que era sólido e estável, profanando tudo o que até então era tido por sagrado, tenham
tornado possível a emergência do indivíduo burguês isolado – isto é, relativamente
autônomo em relação às formas tradicionais, ou orgânico-substanciais, de vida –, o qual
é fundamento material do sujeito transcendental da Filosofia. O perigo reside em
hipostasiar uma situação ou relação dada do indivíduo nos tempos modernos (burguês,
proletário etc.), vale dizer, a de suporte/apêndice da maquinaria capitalista (ao que
parece, com um bizarro sinal positivo, aliás), quando o que interessa discutir é, ao
contrário, os tipos de sujeito coletivo que poderiam se formar a partir de indivíduos
(livremente associados) que rompem com a forma burguesa abstrata e isolada.
É salvo engano justamente a dificuldade de pensar a formação do sujeito na
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história, na experiência da práxis e no contexto real dos movimentos, que leva Žižek, na
busca por uma “saída” num mundo de expectativas rebaixadas, à apologia abstrata de
certa forma de violência política, a qual, na esteira de Benjamin, chama de “redentora”
ou “divina”, em contraposição à violência mítica de tipo fascista. Razão pela qual,
digamos resumidamente, em contexto de pós-política como o que atravessamos, não vê
como solução senão opor o excesso do “divino” terror de tipo jacobino à lógica excessiva
do capital, que, enquanto puro movimento alienado objetivo, de fato devasta tudo que
encontra no caminho da autovalorização ilimitada. De modo que, poderíamos nos
perguntar, se é verdade que em alguns textos seus critica duramente, e muito a
propósito, os autores pós-estruturalistas, notando neles uma defesa regressiva de
formas perversas do sujeito, será que sua rejeição abstrata (negação indeterminada) do
humanismo liberal-democrático (pós-)moderno – ou por outra, da tolerância
multiculturalista defendida pelos arautos da différance tanto quanto também, embora
de maneira distinta, pela nova visão moral de mundo dos professores alemães – não o
levaria a acatar formas de anti-humanismo não muito diversas daquelas que
encontramos no pensamento de Bataille, Foucault, Deleuze e companhia? Será que não
daria vazão, em suma, a certo entusiasmo por experiências-limite, certa paixão do real
manifestada na transgressão violenta, ou na violência transgressora? Experiências que,
ademais, desintegram o Eu – ou o próprio sujeito? – no fluxo desvairado da pulsão de
morte, no imperativo do gozo e no vínculo social perverso do capitalismo atual? Como
distinguir os dois processos criticamente? E em que medida eles se entrelaçam e se
justificam ideologicamente um ao outro?
Assim, Žižek nota, de maneira perspicaz até, uma diferença qualitativa existindo
entre os milhões de assassinatos propagados pelos regimes comunistas na URSS e na
China e o Holocausto levado a cabo pelo regime nazista – o fato de que no primeiro caso
a matança teria sido parte de estratégia racional ligada às urgências da situação
histórica enquanto que no segundo teria ao contrário sido oriunda de um excesso
irracional meticulosamente planejado a despeito das necessidades objetivas. Ora, não é
que tal diferença não exista – o provaria ademais, num outro exemplo dado pelo autor, a
repulsa que sentimos diante de uma suástica pichada num muro, símbolo da morte e da
violência mítica, e que presumidamente não sentiríamos espontaneamente diante de um
tag da foice e o martelo, símbolo que guardaria, malgré tout, a promessa de uma
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humanidade emancipada –, mas a impressão que fica é que, embora não o diga com
todas as letras, os “crimes de lógica” – para usar uma expressão de Camus – de Stalin e
Mao (também os de Pol Pot?) sairiam algo justificados. Claro que quando colocado
contra a parede Žižek diz que não é nada disso, que os crimes hediondos de Stalin, de
Mao e do Khmer Vermelho dão mostras ao contrário, não menos que os de Hitler, de
sua manifesta impotência em transformar radicalmente a ordem das coisas. Em todo
caso, diga-se de passagem, nem sinal aí da crítica do trabalho abstrato e da matriz
fetichista que comanda os dois regimes, como objetaria Kurz.
Decerto, a necessidade de desmistificar a violência parece até justificada se
lembrarmos da aversão quase visceral de um Adorno por toda e qualquer forma de
manifestação dela, e que levava por vezes o grande crítico dialético a desconsiderar
diferenças de níveis e contextos, como fica claro em sua correspondência com Marcuse
no fim dos anos 1960. Em determinadas situações – mas é preciso analisar caso a caso –
talvez se possa dizer que a violência, enquanto expressão simbólica da rebeldia social,
contenha um potencial emancipador, como por exemplo quando grevistas ou
manifestantes antiglobalização ocupam o espaço público ou privado à força. Verdade
também que tampouco é possível, sem ser ingênuo, acreditar numa transformação
qualitativa da sociedade sem que se faça necessário, em certos momentos, o emprego de
“contraviolência”, ou seja, a imposição de um ponto de vista. Não se trata assim de
pregar a não-violência, que no fundo resultaria em aceitar o status quo, isto é, a
violência institucionalizada da sociedade de classes. O que é a nosso ver problemático,
no fundo, é certa glorificação da contraviolência, emprestando-lhe o adjetivo ambíguo
de “divina”. Não queremos com isso questionar o direito que têm, por exemplo, os
zapatistas de Chiapas de defenderem seu território “libertado”. O problema reside antes
na fetichização dos meios violentos, quando a real questão é como criticar o humanismo
sem cair em seu contrário. Em termos mais rentes ao chão: negar o humanismo do “é
conversando que a gente se entende”, não implica em aderir ao anti-humanismo do “só
a porrada resolve”. Tomadas abstratamente, as duas posições são falsas. Nesse ponto,
nunca é demais relembrar Marcuse, que muito lucidamente sabia que, mesmo que se
sustente – como na perspectiva marxista clássica – que o homem só possa ser posto por
meios revolucionários violentos, isso implica uma negação determinada, vale dizer, uma
violência afetada de não-violência, que não rife os seus fins humanos, e que portanto
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tenha como limitar-se a si própria. Ou seja, em perspectiva marxista, os fins (o homem


sujeito de seu próprio movimento social, a sociedade reconciliada em suma), muito
embora não estejam postos, são sempre pressupostos.
Aqui também, ou de novo, falta dialética à posição de Žižek, que joga fora o bebê
com a água do banho. Não estranha que nos últimos tempos ele tenha tentado reabilitar
Heidegger, insistindo na necessidade de uma política para além da ética, que suspenda
esta, vale dizer, uma política anti-humanista. O que não deixa de ser estranho, já que,
bom hegeliano que é, Žižek obviamente não ignora que pares de oposições conceituais
tais que humano/inumano, determinação/indeterminação etc., não se resolvem no nível
do entendimento raciocinante, nos limites do qual permanecem necessariamente
antinômicos. O filósofo denuncia por exemplo muito claramente o teor ideológico da
tolerância multiculturalista, que acaba por abrir espaço para o intolerável. Por isso
pleiteia a favor de certa forma de intolerância – que chama de “leninista” – com relação
a assuntos que não deveriam ser objeto de uma discussão democrática, como a
necessidade de se debater abertamente, sem preconceitos, a prática da tortura na
interrogação de suspeitos de planejar atos terroristas, ou a questão de saber quantas
pessoas realmente morreram em Auschwitz, se há ou não bons aspectos da escravidão,
se deve-se ou não revogar direitos sociais trabalhistas, e assim por diante (não custa
lembrar, de passagem, que filósofos do calibre de Foucault e Derrida chegaram a
defender que o sexo consensual com crianças não deveria ser proibido por lei). Žižek
também colocou muito bem em evidência a codependência de liberalismo e
fundamentalismo, ou de democracia (na sua forma atual) e terrorismo. Mas então, para
além do espírito de provocação que é uma de suas marcas – na parede de seu
apartamento, tem fixada uma foto de Stalin, segundo ele próprio para espantar os tipos
liberais que eventualmente venham visitá-lo –, para além do simples intuito de chocar
numa época em que nada mais choca, por que levantar a lebre de uma violência “divina”
ou de um terror “de esquerda”, ou mesmo de uma “repetição de Lenin”?
O filósofo tem aliás certa dificuldade em dizer do que se trata concretamente
quando questionado a respeito. Suas respostas são em geral um pouco confusas. Diz,
por exemplo, que uma verdadeira explosão de violência divina seria algo como uma
versão revolucionária do “só um deus pode nos salvar” de Heidegger, que o saque de
supermercados pela população pobre no Rio de Janeiro é o exemplo perfeito de
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violência divina em ato, que Gandhi teria sido mais violento que Hitler, que o Führer
não foi suficientemente violento por não ter realmente minado as coordenadas do
sistema ao qual pretendia escapar, que a queima de carros nos subúrbios franceses seria
comparável à violência nazista, vale dizer, não passaria de impotente e desesperado
acting out, nada que ver com um passage à l’acte autêntico, e assim por diante.
Querendo ou não, há aí um nivelamento de uma série de acontecimentos bem distintos.
Respondendo a algumas críticas, Žižek dirá que finalmente o tipo de violência que prega
é aquela em que nenhum sangue precisa ser derramado. Se é assim, então por que
diabos chamar de “terror”, ainda por cima “divino”, o que no mais das vezes não passa
de desobediência civil ou resistência não-violenta, como mostra o exemplo predileto do
autor, o do boicote indiano aos produtos britânicos? De novo, para além da pura
provocação, é difícil enxergar o interesse de se ressuscitar tais noções, que mais
confundem do que ajudam a esclarecer os fenômenos que pretendem interpretar, além
de abrirem espaço tanto para a incompreensão à esquerda quanto para críticas das mais
toscas da parte da direita, que toma mesmo tudo ao pé da letra – para muita gente na
mídia dominante, Žižek é com efeito visto como defensor do terrorismo, sans phrase,
por isso mesmo, segundo um jornal sensacionalista, “the most dangerous philosopher in
the West”, juízo que soa um tanto ridículo, mais ainda quando estampado na capa de
um livro seu.
O mesmo se aplica ao “comunismo”, o qual, ao contrário de Brecht ou Debord,
não é pensado pelo autor como movimento prático de negação, mas como uma “ideia” –
por certo corajosa, visto os tempos que correm – que defende junto com Badiou e sob a
égide da qual teríamos que viver para não soçobrarmos no abismo de uma catástrofe de
dimensões telúricas; uma “hipótese”, enfim, necessária para sustentar uma resistência
radical às instituições vigentes. Ninguém dirá que é fácil pensar essa passagem da ideia
à práxis comunista. Contudo, como notou Paulo Arantes num debate recente, é difícil
entender a razão de tamanha algazarra se no fim das contas por “comunismo” Žižek
entende simplesmente a preservação daquilo que é (ou que deveria ser) comum a
todos, do ar que respiramos ao patrimônio genético da humanidade passando pelos
recursos naturais e energéticos e os produtos socialmente produzidos pelo trabalho e a
inteligência humanos, em suma, a riqueza social violentamente acaparada pelo capital
que cobra pelo seu acesso, cada vez mais restrito aos happy few. Assim concebido, o
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“comunismo” pregado por ele não seria muito diferente do anticapitalismo ético e
ecológico dos Fóruns Sociais Mundiais, ou mesmo da economia dos bens comuns –
talvez comandada por um Estado “revolucionário” –, sem prejuízo de um apoio discreto
às vezes a Chávez e a Morales – o que nada têm de radical ou de verdadeiramente anti-
mainstream... Onde fica o radicalismo então? Vê-se por aí uma discrepância no
pensamento žižekiano entre a vontade de ser radical e o conteúdo (finalmente
conservador) do seu discurso político. Assim, não é de admirar que, apesar de toda a
discussão sobre o fetichismo da mercadoria, ele penda o ataque para a democracia e a
política, num misto de politicismo e althusserianismo (como se economia e política
fossem “instâncias” separadas). Por aí se justifica, segundo ele, o retorno a Lenin, uma
vez que, como costuma dizer, mesmo sendo a economia o campo onde tudo será
decidido, a intervenção deverá ser propriamente política (estatal), não econômica. Por
onde se adivinha o Estado ditatorial “proletário” e um mercado regulado politicamente
– não se sabe ao certo se concebido como transição ou como ponto final do capital.
Além do espírito de provocação, Žižek guarda ainda da atitude modernista o
salutar entusiasmo por ideias novas, ousadas, que desafiem o senso comum, que
choquem a ponto de desestabilizar certezas etc., ideias que, como a de comunismo,
pressupõem – eis o ponto – um novo sujeito, que se forma num processo de Verdade
instaurado por determinados acontecimentos. A fidelidade dos sujeitos a tais
acontecimentos, dirá Žižek na esteira de Badiou – mesmo que os dois discordem sobre o
caráter de acontecimento de alguns eventos históricos, como a Revolução Cultural
chinesa –, determinaria um tipo de militância semelhante ao que teria existido nas
primeiras comunidades cristãs, a experiência de uma verdade universal, porque corta
em diagonal todo o espectro social (“nem gregos nem judeus...”), uma verdade além
disso performática, que muda o sujeito que com ela tem contato. É uma visão, digamos,
“generosa”, e que seduz a seu modo, ainda que aqui também as coisas se compliquem.
Embora Žižek tenha o mérito de sacudir a poeira de velhas noções e de recolocar na
ordem do dia a conceituação marxista, ele acaba por esvaziar tais noções, a ponto de
torná-las irrelevantes, para dizer o mínimo. O proletário, por exemplo, concebido como
sujeito que emerge quando todo conteúdo substancial é perdido, que emerge como a
forma mesma da perda, ou da falta, se confunde tour à tour com o sujeito cartesiano, o
“cidadão do mundo” kantiano, o tipo blasé do filme noir, o androide com memórias
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implantadas da ficção científica, o “sublime” histérico, o homo sacer ou Muselmann dos


campos de morte, o morador de favela, a vítima de Alzheimer, o autista, o paciente com
depressão... Apesar da pretensão declarada de radicalizar o conceito marxista de
proletariado, o que sobra, no fim das contas, é uma noção um tanto “descafeinada” do
pobre coitado (pois que tratada mais ao nível da metáfora simbólica que da sociedade
real), que não somente não surte o efeito disruptivo almejado, como pelo contrário
acaba se alinhando ao mais vago discurso pós-moderno sobre o etéreo.
Deixando de lado o fato de nivelar experiências um tanto distintas, podemos nos
perguntar: que importa, finalmente, que o sofrimento do sujeito decorra de uma
situação de indeterminação e desestruturação identitária devido à perda do solo
substancialmente enraizado (em termos contemporâneos: desemprego, precarização do
trabalho, desintegração da família, dos valores tradicionais etc.), ou da própria
determinação, isto é, ligado à obrigação de portar sobre as costas o fardo de uma
identidade dada ou um papel imposto socialmente (digamos, do indivíduo moral,
responsável por seus atos, trabalhador, pai de família, heterossexual...)? Por que
privilegiar assim, como fundamento da crítica social, um tipo particular de sofrimento
sobre outros? Embora entendamos o argumento, convenhamos, não é fácil enxergar,
sem mediações, sinais de uma crítica emancipatória em sujeitos à primeira vista
incapazes de uma relação de comprometimento – e de identificação, vale dizer – ética,
afetiva, emocional ou erótica com o que quer que seja, incapazes de subjetivizar a
própria experiência traumática, ou mesmo de perceber o próprio sofrimento, de narrar a
própria dor. A impressão é de que a única dor que conta, no caso, a mais verdadeira e
autêntica, seria a que não se inscreve em qualquer rede de significantes previamente
dada ou socialmente partilhada, por isso mesmo promissora de uma ordem
radicalmente diferente, nos termos do autor, uma comunidade de excêntricos ou
anormais (freaks). Parece haver aí, salvo engano, em Žižek, bem como em alguns de
seus seguidores, uma sobre-valorização indeterminada de vivências de indeterminação
(experiências do limite?), para não dizer uma fetichização do estado de indeterminação.
Velada ou explícita, uma das referências para esse modo de “fundar” a teoria
crítica da sociedade e do sujeito é o pensamento de Adorno. Mas o frankfurtiano sabia
muito bem que o poder capitalista não somente prescinde da ação mediadora do eu, da
individualidade forte e autônoma dos tempos do liberalismo clássico, capaz de formular
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e sustentar projetos próprios, como parece pressupor, ao contrário, sujeitos cujos


pensamentos, sonhos, gestos e ações reflitam, à maneira de autômatos, as tendências
objetivas. Acresce que a estrutura pulsional, desde a origem socializada e cada vez mais
administrada a partir do alto, não é uma espécie de “bom selvagem” no sujeito, antes ao
contrário, tende a se tornar também a heteronomia social inscrita no seu inconsciente;
daí, pois, a necessidade da crítica do sujeito, da economia libidinal regressiva, da
repetição compulsiva e destrutiva (como Adorno vê em Stravinski, por exemplo) etc.
Assim, num contexto em que a desumanização e a heteronomia são a um tempo
condição e consequência do ingresso no mundo atroz do trabalho, como defender,
isolada e abstratamente, ou seja, sem referência a um movimento anticapitalista real, os
“direitos do inumano”, a “potência política” contida naquilo que não aparece sob a
forma atual do homem, ou uma noção improvável/impossível de “subjetividade sem
sujeito”, ou de pulsão “acéfala” (termo lacaniano que vem sintomaticamente de Bataille)
como “pura potência disruptiva”, surgindo para além da forma do Eu, explodindo toda
determinação identitária, além do mais “a serviço” de uma “Causa” ou “Verdade
transcendente, anônima e impessoal”? O excesso de sujeito aqui não se inverteria numa
falta total de sujeito – reduzido a um ego disciplinar de militante soldadesco, isto é, não
ocorreria uma inversão do sujeito em “objeto do gozo do Outro”, como o próprio autor
apontou na lógica do totalitarismo nazista e stalinista, em seus primeiros livros? Como
distinguir esse sujeito revolucionário “acéfalo” da sujeição “perversa” ou “psicótica” do
totalitarismo?
Aqui também a experiência periférica brasileira pode nos servir de contraponto,
porque basta andar pelas ruas do centro de uma cidade como São Paulo para ver que o
buraco é mais embaixo: proletariado formal e informal gigantesco, luta de morte por
falta de luta de classes organizada etc. Para além das tosqueiras tropicalistas, impossível
não ver que o mundo do não-sujeito burguês brasileiro não é melhor – para dizer o
mínimo – do que o do sujeito formado, ou pelo menos de sua sombra contratual
(ideológica, por certo, mas não falsa). Com o que se coloca a questão da superação do
sujeito burguês através da supressão do trabalho produtor de mercadorias – e não a
criação decisionista ex nihilo de um novo homem espartano, paradoxalmente anti-
humanista, sob o modelo regressivo do “cristão paulino” ou do “proletário” da Causa
Verdadeira, ecoando ainda traços espúrios do desejo perverso em Sade, da razão pura
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prática de Kant etc. Aqui talvez o problema maior do filósofo esloveno: o endosso
integral do legado lacaniano e de vários despojos da ideologia alemã e francesa em geral.
Voltando ao ponto principal, Žižek insiste no fato de que não existe dominação
que não seja sustentada por algum tipo de gozo fantasmático. Razão pela qual procura
estabelecer uma homologia entre o final da análise, ou seja, o momento em que o
paciente internaliza a falta (do Outro), e o momento de eclosão de uma revolução. Salvo
engano, esta seria pensada como uma versão coletiva da “travessia da fantasia”
lacaniana, quando o proletariado, enquanto representante da “parte dos sem parte”
(Rancière), assumiria livremente o seu próprio ser negativo. Tal “destituição subjetiva”
coletiva seria algo diferente do que em geral se entende por subjetivação de classe, isto
é, diferente da assunção heroica pelo proletariado do seu próprio destino, fornecendo
um sentido novo e algo trágico à contingência insignificante deste último. Acontece que
não dá para pensar a passagem da classe em si à classe para si em termos tão
dicotômicos. Ou melhor, na práxis os dois tempos têm de entrar, ser postos na coisa, o
que implica tanto o reconhecimento coletivo, ainda em jargão lacaniano, da “não-
existência do grande Outro” – ou seja, o despojamento dos modos dominantes de
subjetivação, a destruição do núcleo fantasmático sustentando a realidade social, das
camadas ilusórias que condicionam ideologicamente o cotidiano – quanto algum grau
de simbolização do movimento coletivo, algo que dê um sentido positivo à
transformação social. O próprio Žižek já defrontou diversas vezes o problema, e bom
filósofo que é raramente fornece uma resposta pronta, repetindo ao contrário, quase à
exaustão, livro após livro, a mesma pergunta de diferentes formas: o que acontece no dia
seguinte, após o fim da análise, após o carnaval revolucionário, quando o entusiasmo
sublime da sublevação se esgota? Aqui entra em cena a questão da negação
determinada, da passagem da negatividade externa à negatividade “absoluta”, que em
Hegel é o momento da posição do objeto perdido/negado enquanto objeto simbolizado
– o que Žižek denomina reestruturação de todo o campo simbólico, das relações entre a
Lei pública e seu complemento obsceno etc.
Levando essas questões a outro patamar dialético, Ruy Fausto colocou bem em
evidência a existência de uma inércia própria à estrutura de “suporte” – estrutura que é
condição para que a classe se torne classe em luta, primeiramente luta econômica, por
“reconhecimento”, em seguida luta política propriamente dita –, inércia que só se
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quebra por uma ruptura com o agente enquanto suporte. Ora, tal ruptura implica a
consciência (ou subjetivação) negativa de classe, que obviamente tem a ver com a
necessidade de uma transformação radical e que não pode se dar apenas como crítica da
ideologia e da política. Nesse ponto cabe recordar uma pergunta que costumava fazer
Marcuse: por que a luta pela derrubada da ordem social vigente seria uma necessidade
vital para quem possui ou pode esperar por emprego, casa própria, automóvel etc.?
Pergunta que nos lembra a importância de pensarmos o processo de mediação real,
uma vez que o movimento de superação precisa cuidar da formação da subjetividade
(educação, teatro, nova sociabilidade etc.), descartando a ideia militaresca do “serviço” a
uma Verdade axiomática, sem mencionar um monte de outras coisas, vários níveis a
considerar: a crítica radical da dinâmica do capital e de formações sociais determinadas,
o pensamento “político” sobre táticas e estratégias de luta e, principalmente, a questão
da transição para uma produção não-mercantil e não-estatal.
Ora, Žižek não distingue nem tematiza bem esses níveis e processos, condição
para pensá-los de maneira conjunta e dialética. Talvez seja pedir muito. Por certo, suas
leituras de Marx trazem à tona coisas que muito marxista de renome não entende ou
não consegue ver, como o fato de o capital não ser efetivamente substância-sujeito do
processo histórico – o “sujeito automático”, que põe por si mesmo os próprios
pressupostos, seria antes uma metáfora, ou uma “fantasia objetiva” sustentando o
funcionamento social, e que não se reduz nem à maneira com que os sujeitos (digamos,
os trabalhadores) experimentam o capitalismo, nem à coisa como realmente é, ou seja,
os diferentes níveis de exploração do trabalho, a ilusão de um mercado totalmente
autorregulado etc. O que constrange em Žižek é que ele não dá continuidade ao
argumento (não chega a desenvolver a questão de que em Marx o real sujeito
pressuposto é mesmo o proletariado, ainda que posto como pressuposto negativo),
muda completamente de assunto poucas páginas depois e acaba caindo em contradições
esquisitas, como criticar a estratégia de “mudar o mundo sem tomar o poder” (John
Holloway) ao mesmo tempo em que sustenta que a real transformação será levada a
cabo pelas populações deixadas por conta do planeta-favela, que se encontram
atualmente fora do âmbito do Estado e das leis, e acaba por investir, mais uma vez na
esteira de Badiou, contra a “ilusão democrática”, sustentando que a aceitação dos
mecanismos democráticos como moldura fundamental do processo político burguês é o
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grande empecilho para a transformação radical das relações capitalistas. Talvez, mas
somente se a suspensão da democracia for pensada, não de modo geral, mas como
momento estratégico de um processo superador real, no qual formas de decisão não-
democráticas podem segundo o caso até ter lugar. Do contrário meios e fins são
confundidos, põe-se a antidemocracia quando a democracia deveria ser pressuposta, ou
inteiramente posta lá onde ela nunca entrou (a esfera da produção) etc. Falta portanto
uma crítica da ideia da ditadura do proletariado, que parece-nos semelhante demais à
do marxismo-leninismo tradicional. O mesmo vale para o elogio žižekiano da histeria
em geral, de novo tendo como referência um sujeito pensado de forma isolada. Mas
como defender, abstratamente e sem qualquer mediação, uma dimensão emancipatória
do sujeito histérico? Em momentos mais lúcidos, Žižek chegou a comparar o histérico
com a “bela alma” hegeliana, cuja atitude consiste em deplorar os malevolentes trâmites
do mundo enquanto participa ativa em sua reprodução. Também não se pode esquecer
de Lacan, que notou que fora o histérico o vetor de Maio de 68: volúvel, ele contesta,
mas quer um mestre, coisa que o mercado está cheio para oferecer, com produtos que
funcionam como seus substitutos.
Aqui nosso ponto: no fundo, não se trata de defender qualquer noção de sujeito
isolado, seja ele normal ou patológico; importam os grupos e os valores racionais que
conseguem sustentar, isto sim, e erigir para si na prática. A crítica dialética do sujeito no
fim das contas é menos uma questão de consciência ou desejo do que de prática efetiva,
para além do mercado, do trabalho e do Estado capitalistas; uma questão por
conseguinte mais de movimento real do que simplesmente de consciência ou
subjetividade isoladas. Para dar um exemplo consagrado, lembremos de Baudelaire, de
toda evidência um doente dos nervos, o que não o impediu de lutar do lado certo nas
barricadas parisienses de 1848. E o que o levava a isso? Uma questão de consciência,
sem dúvida, igualmente de desejo, mas sobretudo do movimento que se formou em
certo contexto de crise da reprodução social. Não se pode deixar de frisar essa relação
entre crise objetiva e crise das ideologias e de todas as coordenadas jurídicas (o que
nosso autor às vezes despreza), conforme o esquema de Marx, para além de todo
decisionismo. Importa sublinhar, nesse sentido, aquilo que encontramos por exemplo
num romance como A peste, de Camus, ou em muitas das peças de Brecht, a saber: a
discussão do sujeito social como pergunta não pelo indivíduo isolado, seja ele saudável
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ou neurótico a um nível patológico, mas a questão de como se forma um sujeito coletivo


crítico e mesmo revolucionário em certo contexto, em ruptura com o individualismo e o
utilitarismo burgueses – sem que deixe de ser “indivíduo” (ou seja, sem que recaia,
como queriam Bataille e companhia, nalguma forma dionisíaca regressiva de
indissociação arcaica) ou de valorizar o que é realmente “útil” (isto é, “valores de uso”
não-capitalistas), diria ainda Brecht –, um sujeito que, mesmo sendo suporte do capital
e do Estado, está disposto a enfrentar o sistema, a pôr em risco inclusive a própria vida.
O pior, o que desconcerta mais em Žižek, é que ele parece saber disso tudo e em
seus melhores momentos soube articular a questão no ponto que interessa. Tarrying
with the Negative (1993), por exemplo, possivelmente o melhor de todos os livros que
escreveu, começa descrevendo o momento em que as massas tomam as ruas de
Bucareste, e sublinha a experiência coletiva do caráter aberto de uma situação histórica
em devir, momento em que o buraco na substância social simbólica se torna visível.
Note-se contudo que mesmo aí o exemplo acaba por trair o filósofo, trazendo à tona a
dificuldade maior de tal concepção: como se sabe, ao instaurar um vazio de projeto, o
protesto abriu apenas o caminho para a normalidade capitalista da pilhagem de sempre.
Num livro mais recente, Em defesa das causas perdidas (2008), o autor cita os
protestos na Grécia como exemplo da passagem da negação abstrata à negação
determinada, mas aí já revestindo com o caráter de violência “divina” – contrapartida
necessária da violência “mítica” sustentando o poder do Estado – o grau-zero de
violência usada pela população na desestabilização momentânea da ordem pública e na
destruição simbólica da propriedade privada e estatal. De novo, nenhuma discussão da
formação social, dos mercados, da concorrência internacional etc. Exemplo entre outros
de que, embora sublinhe cá e lá que a estrutura do universo mercantil capitalista
constitui uma espécie de matriz geradora da totalidade das relações sociais e políticas, e
apesar de criticar com toda razão o “politicismo” dos colegas franceses – o fato de
Badiou, Rancière e Balibar serem mais jacobinos que propriamente marxistas,
partilhando com seus supostos oponentes, os culturalistas anglo-saxões em seu foco nas
“lutas pelo reconhecimento”, a redução da produção capitalista a uma esfera empírico-
normativa particular constitutiva do espaço social –, falta ainda a Žižek uma crítica
muito mais elaborada e radical da economia política capitalista e de suas categorias
fundamentais. Num outro livro recente, Vivendo no fim dos tempos (2010), parece
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retomar os trilhos e seguir nessa direção, com todo um capítulo dedicado a Hegel, a
Marx, à teoria do valor-trabalho e à questão da renda no capitalismo contemporâneo.
Dito isso, fica a dúvida se tais discussões seriam mais do que capítulos breves e,
no final, de pouca importância na estrutura do monumental edifício teórico-filosófico
que construiu nas últimas três décadas para abarcar os grandes problemas do tempo.
Numa resenha desabusada de seu último grande livro, o colossal Less than Nothing
(2012), com mais de mil páginas sobre “Hegel e a sombra do materialismo dialético”,
um crítico chegou a sugerir que o autor esloveno, por meio de seu discursar compulsivo
sobre tout et n’importe quoi, terminaria por reproduzir, em sua prática teórica e em sua
escrita, justamente a dinâmica desvairada e completamente desprovida de sentido – e,
poderíamos acrescentar por nossa parte, de sujeito, como apontado acima – que ele
mesmo critica. Ao quê Žižek respondeu, não de todo sem razão, que esse tipo superficial
e pseudo-marxista de analogia seria uma triste indicação do baixo nível do debate
intelectual encontrado atualmente na mídia. Ainda assim, poderíamos nos perguntar se,
ao fim e ao cabo, o turbilhão teórico que não cessa de crescer, que parece querer
capturar em seu âmbito a totalidade do real, não deixando de pé nada que cruze seu
caminho, não acaba por minar também as bases daquilo que o filósofo produziu de
melhor. É como se numa espécie de hybris, o sujeito žižekiano perdesse o passo da
reflexão e da síntese dialética e grudasse impulsivamente na matéria amorfa, deslizando
na “jaca” em direção à “merda divina”. Do mesmo modo, a impressão que fica é que
todo o agito, todas as polêmicas – no fundo estéreis, por falta de mediações reais, como
diria Kurz – e as frequentes exaltações a uma política violenta, uma política do real, no
fim das contas, ofuscam o que haveria de mais forte em seu pensamento, vale dizer, os
capítulos sobre o idealismo alemão, sobre Hegel e sobre Lacan, as episódicas discussões
críticas sobre economia política e o desmonte extraordinário dos modos cotidianos do
funcionamento ideológico na época atual.

II.

É um dos méritos evidentes de Robert Kurz ter retomado, na contracorrente do


tempo, as bases da crítica da economia política de Marx de uma maneira ampliada,
radical e polêmica, como todo pensamento crítico. Não precisamos nos fixar no elogio às
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suas contribuições maiores, que são muitas e incontornáveis. Entre elas, ressaltemos de
forma sumária:

- a crítica alargada às categorias fundamentais da sociedade produtora de


mercadorias, para além das figuras empíricas e superficiais, o que o leva à
discussão dos pressupostos sombrios da forma-valor, tais como a forma do
sujeito e da razão burguesa (da Aufklärung: Iluminismo ou Esclarecimento), as
formas da política, da democracia, da nação e do Estado, além da crítica da cisão
de gêneros, em que o “sujeito do valor” é prototipicamente o sujeito masculino,
branco e ocidental (iluminista); sujeito que aparece como modelo da
produtividade, do poder e da legitimidade social, subordinando e excluindo todo
o diferente (mulheres, negros, judeus, ciganos, entre outros) e engendrando uma
concepção de história como progresso civilizatório a partir desse modelo;

- a retomada da teoria do colapso do sistema, uma verdadeira façanha nos


tempos que correm, reinterpretada a partir dos avanços da 3ª Revolução
Industrial, que implica nada menos que a crise do valor e do trabalho abstrato,
base fundamental para análises precisas e clarividentes sobre os movimentos do
capital fictício e especulativo e do endividamento estrutural do Estado no mundo
todo a partir dos anos 80, e que vão sugerindo o que o autor denomina o “limite
absoluto” da modernização capitalista, ao mesmo tempo em que esse Estado
revela o seu núcleo violento como administrador da crise e do caos social
enquanto um estado de exceção permanente;

- a não menos sagaz releitura crítica do “socialismo real” e da “industrialização


endividada” da periferia capitalista enquanto formas de “modernização
retardatária”, cujo endividamento e colapso prenunciam a derrocada do sistema
mundial produtor de mercadorias como um todo.

Em todos esses pontos, a crítica de Marx se atualiza, se amplia e retorna ao centro


da crítica social digna desse nome, que busca a quebra da fachada social e de sua base
material. Assim, a releitura de Marx e da economia política de seu tempo o conduz
necessariamente à crítica de todos os pressupostos históricos do sistema social

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moderno, para além das lutas pela distribuição da riqueza e do direito, que se dão afinal
no nível da circulação, da aparência ideológica, ou pelo menos dos conflitos mais
superficiais na sociedade burguesa –, mas aqui vale sublinhar, em um momento
histórico de radical refluxo das lutas de classes.
Sabemos como Kurz daí deriva uma distinção entre um Marx da modernização e
da luta de classes reformista (o movimento dos trabalhadores como simples “lutas por
reconhecimento” dentro da ordem capitalista) e um Marx da crítica do fetichismo das
formas burguesas fundamentais. Não que não haja de fato uma diferença de tempos e
níveis na crítica de Marx, mas o problema aqui passa a ser como pensar uma luta
anticapitalista sem luta de classes e sem uma concepção dialética da constituição de
algum tipo de sujeito coletivo para a práxis emancipatória, para além dessas formas
alienadas. É precisamente nesse ponto que a crítica radical de Kurz estanca e se torna
crítica indeterminada, negação abstrata, recusa de mediação (apesar de invocá-la
formalmente o tempo todo), e que encontramos as suas aporias teóricas e práticas, às
vezes até mesmo complicações com os próprios termos em/do debate, enfim, temos algo
de impensado, ideológico e contra-histórico nessa teoria que se quer totalmente
histórica e (quase, muitas vezes quase) onisciente.
Nos últimos anos diríamos até que as formulações de Kurz se tornaram mais do
que polêmicas: elas se tornaram agressivas, grosseiras e algo desesperadas. Uma crítica
que se exaspera justamente perante um mundo burguês que empilha ruínas sem cessar,
embora não dissolva nenhuma de suas estruturas fundamentais. Sem dúvida, a
negatividade infinita pretendida pela teoria de Kurz e de seu grupo nasce no pântano
histórico dos anos 1970 e 80, do Welfare State à hegemonia das teorias keynesianas e
neoliberais e das filosofias democráticas do consenso, nas figuras de um Habermas ou
de um Honneth. Daqui sai a sua ligação com Debord e a Teoria Crítica mais radical de
Adorno e Horkheimer. Mas como a vontade de ruptura total passa a ser o seu telos mais
íntimo, ela busca não mais uma “dialética do Esclarecimento”, como Marx ou os
frankfurtianos ainda pretendiam, mas a destruição do Esclarecimento tout court. Em
Adorno e Horkheimer, a “autodestruição do Esclarecimento” era uma tendência objetiva
– não por excesso de racionalidade, mas por sua falta –, a que impõe o bloqueio da
reflexão e da superação social dos fins fetichizados. O contexto social esclarecido
determina-se como “vida danificada”, “vida falsa”, “vida que não vive”, mas em que algo
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ainda pulsa negativamente, desde o impulso corporal, a expressão da dor e do


sofrimento social dos indivíduos até o nível da arte e da teoria críticas. A imanência, sem
se referir a uma essência humana dada, jamais é estéril.
Em Kurz, ao contrário, parece que todos se tornaram meros concorrentes e
“zumbis do trabalho abstrato”, puros “seres ganhadores de dinheiro”. Difícil torna-se
distinguir forças produtivas e relações capitalistas, ou interesses diferentes e práticas
históricas antagônicas dentro da totalidade existente. Dessa maneira, praticamente não
há caminho possível de mediação entre o presente (encarcerado na lógica do valor) e o
futuro (para além do valor), já que o processo histórico de lutas a partir dos meios e das
formas existentes (política, democracia etc.) a priori não leva a nada diferente do que
está posto. Não que seja errado identificar a mesmice sob a máscara do novo, as
ideologias do movimento, a democracia burguesa como meio de legitimação do capital
etc. O equívoco é absolutizar essa interpretação crítica que esteriliza totalmente a
dialética imanente da modernidade, interpretação que, aliás, não se concebe mais como
uma interpretação, mas como a única crítica válida. Seu gesto mais característico torna-
se então, a partir dos anos 2000, apontar as ruínas da modernidade para destruí-las e
enterrá-las, numa antimodernidade resoluta, distinta da crítica romântica e irracional
do Esclarecimento ou do pós-modernismo infame.
Eis uma posição difícil de sustentar, senão insustentável – ao menos a partir de
argumentos racionais e rigorosos e não apenas pela força de sofismas, dogmatismo ou
simples destempero. O próprio Kurz, contudo, relativiza essas posições rígidas e
rispidamente articuladas quando reconhece, por exemplo, lacunas e potenciais técnicos
e de sentido (negativamente expressos) no interior da história pregressa ou da sociedade
atual. Mas o palavrório da necessidade de ruptura (uma espécie de “jargão da
inautencidade” da vida cotidiana) tende a prevalecer sobre a argumentação rigorosa e
consciente. Resta saber, porém, se por trás de tais lacunas e potenciais reconhecidos não
vigora tacitamente a força crítica do conceito-chave que estamos analisando – o de
subjetividade, que, no sentido corrente (digamos de Hegel a Žižek), significa
precisamente o movimento negativo que se produz a partir da experiência do real, como
poder de diferenciação, reflexão e conservação de si em relação ao mundo instituído,
capaz de criticar radicalmente a objetividade socialmente petrificada.
É nesse sentido que se ajuda a recriar uma espécie paradoxal de nova “ideologia
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alemã” – como a anterior, fundada subjetivamente numa paixão da totalidade –, mas


carregando dessa vez as tintas na destruição do sujeito e de todo o passado (a “pré-
história humana” de Marx). No fundo, ela se põe como uma ideologia da ruptura e da
descontinuidade imaginárias, que termina cristalizando analiticamente, sem querer,
continuidades e antinomias. Estranhamente, assim, a vontade de distinção e ruptura em
Kurz se converte no seu contrário e onde deveria haver diferença já não há mais
diferença alguma, nem transições ou possibilidades de ruptura no interior do existente.
A crítica exasperada converte a diferença buscada em cisão entre teoria e práxis – cisão
que ele mesmo aponta como o pecado mortal do Esclarecimento. Poderíamos perguntar
se tal gesto antifilosófico e anti-Aufklärung de Kurz (mas ainda Aufklärer no sentido
analítico referido: a redução das qualidades e do complexo em termos mais simples e
abstratos), enquanto negação abstrata, não regrediria para aquém de Hegel, Marx e
Adorno, que realizaram, com boas razões e não simplesmente por cegueira ideológica, a
crítica imanente da sociedade capitalista e do Esclarecimento, não a sua “Tabula Rasa”.
Este último o nome de um dos ensaios mais problemáticos de Kurz, em que tenta
justificar uma ruptura ontológica com o mundo moderno ocidental – algo buscado por
Marx e Adorno em suas ontologias negativas –, mas desta vez, em Kurz, para além de
toda Aufhebung dialética, por vezes sustentando paradoxos sem sentido, a ponto de ele
mesmo, ao longo do texto, ter de desmentir e minar (ou pelo menos “relativizar”) o
cavalo de batalha imaginário que tenta construir para espantar as objeções de um
companheiro de grupo (Anselm Jappe). (Embora, digamos francamente: as objeções
“românticas” de Jappe não são de todo defensáveis e Kurz leva a razão em alguns
pontos). Para o Kurz “filósofo” dos últimos tempos, “cinzenta é a vida” – já que quase
tudo se identifica à forma-mercadoria – enquanto a teoria crítica do valor e da cisão de
gêneros se converte numa espécie de oásis “verde”, germinando nalgum jardim
suspenso alemão – a teoria quase como um ato falho, como substituto de uma luta
social que não vem à tona. Não que Gramsci, Bloch, Foucault, Negri etc. não mereçam
as críticas duras e precisas de Kurz. Mas vale apontar como, de um lado, então, resta a
verdade do metaplano teórico-crítico alcançado apenas pelo grupo Exit!, e de outro,
corre a práxis infernal do valor e seus ideólogos, em que tudo se identifica, se confunde
e se ontologiza: a política se confunde com o Estado; a luta de classes nada mais é que
reformismo (ou mera “interpretação do mundo” e impotente “tratamento da
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contradição”); o proletariado se realiza como “sujeito”, plenamente posto e reconhecido,


no amor abjeto à concorrência e ao trabalho; a atividade (ou o fazer prático) se
misturam ao ativismo do valor masculino-patriarcal; o “sujeito” particular ou em geral é
igual ao indivíduo burguês abstrato (assassino e “canibal” à la Hannibal Lecter!) etc. É
então de se desconfiar se no fundo de todo esse “caráter destrutivo”, que quer se colocar
para além da dialética imanente do mundo moderno, não há apenas o crítico radical da
concorrência mas a continuação da fúria da concorrência por outros meios, sublimados,
e por trás disso tudo o impulso Aufklärer – subjetivo – mais puro, unilateral,
inconsciente de si. Com efeito, Adorno e Horkheimer caracterizavam no livro clássico de
1947 muito precisamente a cegueira do Esclarecimento pela operação de destruição dos
ídolos, mas também das “diferenças e qualidades”, fazendo a razão decair na negação
nua e crua, que fragmenta e destrói o complexo, dissolvendo-o em coisas, em
positividades imóveis, superficiais e facilmente descritíveis. Sob o nome de razão
instrumental ou razão subjetiva, porém, subjazia o poder analítico do sujeito como um
momento necessário do processo de emancipação em relação ao mito, embora não
suficiente para uma “síntese social” emancipatória. A crítica adorniana se dirige,
portanto, à forma histórica do sujeito iluminista (desde a constituição de seus
pressupostos na história arcaica), que se põe e se reifica sob a forma do sujeito burguês
idêntico, e não ao sujeito em geral.
Nesse sentido, o último Kurz parece repetir curiosamente, por trilhas diversas, a
crítica abstrata do pós-estruturalismo, quando em sua reflexão exasperada tende a
perder a relação com o movimento do real, substituindo-o pelo objeto-simulacro da
teoria, aqui porém elevada a um plano estrutural de totalidade “metateórico”. Um objeto
em grande parte construído por um tour de force retórico, que só impressiona os
ingênuos e os que nunca aprenderam a pensar por conta própria. Nada contra o poder
da análise – principalmente quando se vive num mundo em que o mesmo e o outro
tendem a se confundir sobre a base da equivalência geral da forma do valor. Kurz, que
respeita a análise, amiúde termina por não respeitar o analisado, forçando-o a se
encaixar nas categorias reais da valorização do valor. Nesse sentido, como dito, as
categorias como que se absolutizam e andam por si mesmas.
Esse o ponto crucial que Adorno criticou em sua Dialética negativa: uma
ontologia negativa tem de buscar a não-identidade num mundo que, de facto, tende à
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falsa identidade, ou melhor, à identificação forçada, por meio da racionalidade do


capital e da sociedade administrada. O pensamento tem então de voltar-se ao
particular, ao concretamente mediado, lançando-o contra a lógica do conceito, da
totalidade, da subsunção, enfim, da compulsiva representação do real que pretende não
deixar restos, apesar de ter que munir-se do conceito o tempo todo, pois o mundo
racionalizado objetivamente funciona por meio dele. Ao mesmo tempo, o universal, ao
menos pressuposto, deve continuar a confrontar criticamente a falsa imediaticidade ou
a má particularidade. Nem o particular nem o universal são a verdade em si, apenas a
sua dialética negativa. Kurz sabe de tudo isso. Mas é precisamente nesse momento que
vemos a diferença entre as análises concretas de Adorno, na sociologia ou na crítica
estética (sobretudo nos ensaios sobre música e literatura), e as análises radicais de Kurz,
as quais atingem realmente os seus melhores momentos só quando se voltam a
complexos sociais particulares e concretos, principalmente nos ensaios sobre conjuntura
ou na história crítica da economia política (O colapso da modernização, “A ascensão do
dinheiro aos céus”, “A substância do capital”, além do Schwarzbuch Kapitalismus, o
Weltordnungskrieg, entre alguns outros).
O paradoxo é quase sempre evidente. A polêmica contra o caráter iluminista,
levada ao extremo (a ideia de algo anti-iluminista demonstra já o seu caráter abstrato),
torna-se eliminação de tensões e contradições: progresso, sujeito, iluminismo, razão
ocidental, luta de classes são puro “lixo”. Mas quando é obrigado a pensar o que tais
conceitos significam de fato, em sua particularidade objetiva, para além das formulações
abstratas, limitadas e ideológicas que ganharam na filosofia do Iluminismo ou nas
teorias de modernização, ele retrocede em seus genéricos juízos sem juízo. O paradoxo é
que sua formação crítica, sensível às mediações e aos detalhes, na verdade é parte do
Esclarecimento e não do mito e do obscurantismo.
Tomemos novamente o caso mais exemplar, o conceito de “sujeito”. Ele se refere
a “algo que é mais do que é” (para falar com Adorno), como uma potência negativa
inscrita no ser social fetichizado, uma espécie de “nada” objetivo, que é negatividade
histórica e diferenciação, que apontam precisamente para aquilo que não se deixa
reduzir ao dado, ao objetivo, nem à própria consciência do indivíduo. Kurz, aliás,
praticamente desconhece um sujeito do inconsciente, ou o reduz, à maneira do
materialismo vulgar, à “pulsão de morte da concorrência”. Querer eliminá-lo do
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pensamento ou da existência é como querer abstrair, deformar e destruir a própria


realidade histórica. E não é ela, a expressão da subjetividade, que é menos tolerada no
seio das formas objetivadas do capitalismo? A maquinaria social almeja funcionar sem
qualquer desvio subjetivo. Por outro lado, certamente, não há teoria, arte ou psicanálise
possíveis sem tal conceito, que reúne em si a pulsão, o desejo, a fantasia, além da esfera
da vontade, da emoção, da consciência e dos atos. A ideia de sujeito, segundo Hegel e
Marx, nasce conjuntamente com a constituição plena do indivíduo no mundo moderno
(o que não fica plenamente posto, contudo, já que são sujeitos sujeitados). O conceito de
indivíduo, porém, Kurz considera positivo e válido historicamente para várias
formações sociais, de diferentes modos. Assim, portanto, é claro que Kurz não deixa de
se referir precisamente desse modo, utilizando a ideia de indivíduo, à esfera do que
chamamos subjetividade, precisamente na esteira de Adorno, como aquele algo que não
se deixa absorver pelo sistema fetichista. O paradoxo armado, então, é este: de tudo
nada deve restar – embora na verdade sempre resta algo irredutível, que não se
consegue abandonar, tal como ideias, potenciais ou pressupostos criados pela
modernidade, surgidos precisamente na história de constituição do conceito de
Iluminismo (no sentido adorniano). Referimo-nos não só às noções de indivíduo e
gênero humano, mas também às noções de análise, crítica, conceito, ciência, liberdade
ou emancipação. Noções que de algum modo retornam positivamente em seu discurso,
vale dizer, retornam como noções possibilitadas pelo avanço histórico das forças
produtivas, pela produção social mediada pela ciência e a técnica modernas, em suma,
pela formação cultural do sujeito/indivíduo abstrato, sim, livre das amarras
tradicionais, no seio da sociedade capitalista. Na ruína desse mundo, pois, o caminho da
dúvida e do desespero teria de levar à negação determinada e à superação prática.
Tratar-se-ia então de estabelecer critérios sociais de seleção do que presta e não presta
no mundo surgido com o Iluminismo, e não simplesmente de destruí-lo. Com efeito, o
Iluminismo não é somente um processo negativo e destrutivo que “tudo demole”, como
sustenta Kurz. Como bem sabe e admite, as forças produtivas só se tornam plenamente
destrutivas em certo contexto, crises da acumulação etc.
Estranho e familiar a um só tempo, esse retorno do “indivíduo” vale quase como
um retorno do recalcado. Os termos que são denegados (“sujeito”, “Iluminismo”, “luta
de classes”, “dialética” e “crítica imanente”) retornam com outras vestes ao discurso, ou
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seja, com palavras mais neutras ou menos carregadas (“indivíduo” ou “homem”, “razão
sensível”, “luta emancipatória” ou “formas embrionárias”, “seleção” em vez de Tabula
Rasa etc.), sem produzir de fato a pretendida ruptura radical, já que no fundo ela deve
ser feita na práxis, não simplesmente ao nível do discurso teórico. Vê-se por aí que
muitas vezes Kurz não está combatendo senão “palavras”, visando quase sempre ao que
se encaixa sem restos nas “categorias” do Valor, e não exatamente as suas realidades
histórico-objetivas precisas, que são muitas vezes contraditórias, e que, no detalhe de
seu conteúdo, não se deixam pensar univocamente sob estas mesmas categorias. O
conteúdo reserva um surplus inesperado de sentido, que não cabe na categoria e vice-
versa – conteúdos que, às vezes ainda, podem ser pensados como irredutíveis mesmo
que expressos por modelos teóricos distintos da crítica radical do valor, às vezes ainda
por termos comuns, limpos de referência teórica, mesmo na fala ordinária, ou então, é
claro, pela linguagem artística musical, literária, plástica, teatral, não plenamente
conceitual. Falta aqui a nosso ver, então, por incrível que pareça, uma consciência mais
sutil do funcionamento da linguagem social, da questão da arbitrariedade do
significante, da produção e da interpretação do sentido (jamais dado ou evidente), uma
visão mais generosa e compreensiva dos atos de fala de cada interlocutor. Daí a
sensação de rigidez e dogmatismo de um sujeito monológico do estilo kurziano final,
erigindo-se a aura do absoluto rigor conceitual, crítico e moral, como se fora do conceito
X a linguagem apenas fosse aparência e reificação.
O que pulsa nesse corpo teórico, porém, é uma paixão pela totalidade e pela
identidade. O que significa uma vontade de reduzir o real à transparência do conceito, o
qual ganha peso ontológico (negativo, é verdade) por sobre os fenômenos ônticos, o
peso de um conceito que tende a subsumir a prática sem resto, e representá-la sem
ambivalências, claros-escuros, tensões internas corrosivas – sem contradições enfim –,
dessa vez eliminando a diferença ou a lacuna entre teoria e práxis, essência e fenômeno,
conceito e real, sujeito e objeto. O que ele conhece do “objeto” passa a ser aquilo que ele
projeta quase paranoicamente sobre ele. Nesse horror à contradição dialética, não há
mais lugar para o virtual, o indeterminado, o não-idêntico, operando apenas com
noções postas e repostas (nunca pressupostas) na práxis – isto é, com categorias no
fundo positivas. A elas se contrapõe, de forma antinômica, uma práxis teórica pura,
digamos até quase-kantiana. Daí não só a rigidez, mas a aridez ou a falta de colorido de
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seus últimos textos teórico-filosóficos.


Ocorre, porém, que as “formas embrionárias” anticapitalistas pensadas por Kurz,
em “Antieconomia e antipolítica” (ainda um de seus ensaios mais estimulantes mas que
teve de ser denegado, talvez por lembrar demais as necessidades da luta de classes
efetiva, da qual ele não quer nada saber), só podem surgir concretamente na imanência
capitalista, muito embora lutem para implodi-la, para levar positivamente para fora
dela. Imanentes e não-imanentes, assim, já parcialmente externas ao sistema, tal como
Marx pensava o conceito negativo de proletariado. Trata-se de uma negação
determinada e uma negação da negação (Kurz usa aqui os termos de Hegel), que põe os
pressupostos negados, para além do sistema repressivo, o qual logicamente tem de
conter possibilidades recalcadas. Como pensá-lo como pura “Tabula Rasa”?
O estranho em Kurz é que tudo está em movimento e ruína, mas nada se move ou
se constitui, salvo o Capital. Caberia perguntar assim se não haveria, além da cegueira
diante do próprio pensamento, uma cegueira diante de sua própria posição social dentro
dos marcos da luta de classes histórica. Nunca parece haver na práxis dos movimentos
sociais senão “pseudo-atividade” ou recaída na “falsa imediaticidade”. A práxis nunca
está em processo, em direção a outra coisa que a si própria (a quase-tautologia da
valorização do valor), nunca parece passagem para novas contradições, nunca é
mediada em si com algum nível de teoria e crítica, mais ou menos justificável segundo o
seus contextos históricos – e que não poderiam ser subsumidos a torto e a direito sob a
rubrica genérica de “tratamento da contradição” e mesmo de “modernização
retardatária” (como se a modernização não contivesse algum momento de emancipação
em relação ao mito, às estruturas sociais arcaicas etc.). Ou seja, a modernização
retardatária e o tratamento da contradição são processos eles mesmos históricos e
contraditórios, significam coisas variadas conforme os contextos nacionais e de classe, o
que sempre é preciso detalhar em estudos concretos. Obviamente isso não se confunde
com o marxismo humanista e historicista, ao modo de Lukács, de Gramsci e do
operaísmo, que dissolvem a estrutura fetichista na “práxis humana” e na “teoria
revolucionária” do movimento.
O equilíbrio, a mesmice, contudo, sempre foi segundo Marx e Adorno o cerne da
ideologia da troca liberal. Assim, Kurz oscila numa metafísica esquisita e paradoxal: o
sujeito não existe, a não ser como sujeito automático (“dominação sem sujeito”), isto é,
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como relação objetivada e fetichizada; ao mesmo tempo só ele, o “sujeito”, existe e está
plenamente posto como sujeito burguês idêntico e petrificado, às vezes inclusive
fundando o sistema social (“O eu abstrato da modernidade cria a forma de violência das
relações de valor e cisão historicamente extremas e totalitárias...”, lê-se em Ontologia
negativa) – algo estranho à dialética de Marx e Adorno, que vê esse eu abstrato como
algo fundado e impotente. Este ainda o preço de trazer a crítica do sujeito e do
Iluminismo ao primeiro plano das essências, como se se tratasse de uma realidade dada,
um fundamento plenamente posto, e não um elemento pressuposto, negado, em
constituição. Daí não parecer haver, para o último Kurz, nenhum nível possível de
experiência e aprendizado negativos nas lutas realmente existentes, muito menos
constituição da luta e luta por constituição de classe, entre os seus óbvios altos e baixos
históricos, que poderiam pôr em xeque esse sujeito burguês coisificado. No jargão dos
epígonos, tudo cai subsumido na “imanência” do capital onipotente, que tudo fagocita
em si, ao mesmo tempo em que todos aparecem sempre apenas como plenos sujeitos
burgueses da circulação simples.
Parece contrafactual, será estranho reconhecer isto, mas: as classes, em Kurz (e
não em Adorno, como ele sempre diz), se tornam pura aparência ou “sujeitos
metafísicos”, enquanto o sujeito burguês abstrato e isolado da circulação se torna a
essência que põe em movimento o sistema. É nesse sentido que a redução conceitual de
todos os agentes efetivos a simples “sujeitos-mercadoria” ou indivíduos “mônadas-
dinheiro” empobrece as suas análises, pois os faz regredir a níveis menos complexos da
determinação social efetiva, a saber, ao nível da aparência da circulação simples! As
determinações mais simples e iniciais adotadas por Kurz, supostamente mais essenciais,
ao contrário, subsumem todos ao mesmo campo idêntico, precisamente aos níveis
elementares, mais pobres e abstratos, da exposição dialética de Marx. O que em Marx e
Adorno era efeito da estrutura fetichista ou da ideologia, em Kurz torna-se essência. Tal
essência (Wesen), na verdade, é inessência, ou tal fundamento (Grund) vai ao abismo
(Abgrund) e é fundamento negado/suprassumido do todo, de modo que a real essência
monstruosa (Unwesen) do modo de produção, para Marx, não se dá simplesmente como
trabalho abstrato que põe valor, mas como automovimento antagônico do capital em
relação ao trabalho, que põe mais-valia e não simplesmente “valor”, põe o trabalhador
como apêndice e não apenas como suporte. Por trás do Grund, há um Hintergrund
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obsceno, constituído pela exploração e a dominação do trabalho e seus agentes (basta


ver os longos desenvolvimentos dessa lógica nos Grundrisse), o que tem obviamente
implicações para a experiência formativa da consciência social crítica e a luta de
classes. Para Kurz, em contrapartida, os sujeitos monetários com ou sem dinheiro
seriam puras mônadas isoladas. Nesse sentido, ele reforça a ideologia liberal mais
surrada, que deveria ser justamente atacada. Não é de se estranhar que como classe,
para ele, então, só exista talvez a classe média (mais ou menos decadente). É óbvio que
Marx não para aí pelo justo motivo de derrubar a fachada da circulação simples – e por
isso devemos passar ao Capital como sujeito, que emprega obviamente não-capitalistas,
e assim a todo o resto, até a acumulação primitiva, que é a gênese fundamental não
simplesmente do “sujeito do valor” ou do burguês proprietário individual etc., mas antes
da massa de trabalhadores expropriados, que é obrigada a vender sua pele no mercado,
sempre em vias de perder a sua individualidade, liberdade, igualdade etc. pressupostas.
De passagem, lembremos que, por mais abstrata e irrealística que seja a literatura de um
Beckett ou um Kafka, eles ainda buscam preservar as diferenças reais de posição e ponto
de vista entre personagens decaídas (Hamm e Clov, K. e o Castelo ou o Tribunal etc.),
que sobressaltam de sua máscara fetichista, quebrando a aparência de conformidade, a
fachada de liberdade e felicidade burguesas (as ilusões da concorrência e do prestígio
social, como ainda operavam fortemente em Balzac). Na mais pura submissão e
indistinção entre o castelo e a aldeia, K. discerne e diverge, Clov esboça uma fuga
paralítica do abrigo, e assim por diante.
É óbvio que nem todas as lutas sociais se equivalem, que há lutas puramente
reformistas, defensivas, ilusórias, impotentes, irrisórias, ou mesmo reacionárias de um
ponto de vista crítico e emancipatório. Mas uma teoria crítica não pode julgar de fora,
moralmente, a práxis existente (como sabe bem Kurz). Antes, ela deveria pôr a
diferença de nível entre o teórico-crítico e o prático, o ideal e a realidade, sem forçar a
identidade dos dois momentos. E nesse ponto, vale lembrar, Kurz contribui e leva
adiante o legado marxiano e adorniano. O procedimento de Marx e Adorno, porém,
guarda uma diferença: o tempo do conceito/crítica não se iguala ao tempo da práxis,
mas nem por isso a práxis pode saltar os passos necessários da constituição paciente
da luta pela superação histórica – a não ser é claro que se trate da tutela e da
introdução externa da teoria crítica no movimento, ao modo leninista, coisa absurda
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que o nosso crítico rejeita enfaticamente, embora no fundo, inconscientemente, a


pressuponha. Posta a diferença entre teoria e práxis, deve-se ver em que sentido há algo
na práxis existente que não cabe na teoria e a excede, e vice-versa.
De modo que não deveria haver nada de errado num “duplo” Marx, na visão
crítica de uma sociedade dividida, alienada, que separa objetivamente o que é real e o
que é possível. E o possível subjaz no real e a aparência na essência. Em outras palavras,
para Marx não há como levar a cabo a crítica do fetichismo sem a luta contra os agentes
de classe que encarnam e “dirigem” historicamente o Capital. O sujeito automático não
é um fantasma “sem endereço” ou “conta bancária”, como sagazmente disse Paulo
Arantes certa vez. Ele se realiza e aparece como antagonismo de classes, países,
indivíduos concorrentes etc. Tal como seria ingênuo pensar que uma práxis possa
atualizar uma teoria crítica imediatamente, aqui agora, também seria ingênuo pensar
que uma práxis digna do nome, como ensaio de libertação, não contém algum nível de
consciência teórica e crítica relativamente válida. A avaliação kurziana do maio de 68 e
das greves parisienses de meados dos anos 90 (“Os últimos combates”), por exemplo,
sinaliza para nós corretamente o que há de necessariamente duplo e alienado nas
práticas insurgentes, vivendo dois tempos (um teórico, outro prático), mas não chega a
conceber propriamente como isso também é parte de uma imposição objetiva,
historicamente necessária. Trata-se de movimentos históricos que fracassaram na
práxis, no confronto objetivo com a polícia e com as manobras políticas do Estado, e
não simplesmente na teoria (como se Debord, Lefebvre ou Marcuse não tivessem
qualquer relação com tais acontecimentos), ou pelo menos não por causa de uma pura
indigência teórico-crítica.
Se for assim, no entanto, eis o passo decisivo para relativizar o fosso entre a
macroteoria “radical” e a práxis existente (sempre “fetichista”) e para evitar converter a
teoria em horror à aparência, ao histórico, ao nível “impuro” dessa práxis limitada,
enfim, em aversão à luta de classes empírica, que nunca parece alcançar ou sequer
nomear a essência do sistema, apenas divisada e criticada pela crítica categorial. Só
assim evitaríamos que a crítica radical fosse cultuada e quase elevada pelos epígonos ao
nível do falo simbólico, servindo para julgar e depreciar imaginariamente aqueles que
não a possuem, castrados que são, como se a totalidade coubesse de fato na revista dos
teóricos-críticos do valor e da cisão. Se o “valor é o homem” (Roswitha Scholz), muito
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bem, aqui, o homem parece ser o grupo Exit!. A posição mais confortável, nesse caso,
passa a ser o encastelamento teórico, o sonho obsessivo por excelência de poder-saber e
nada faltar em si, claro que arquivando o desejo e a ação de ruptura na cabeça, ou no
“bolso”, como diz Lacan. Por isso mesmo pode-se recusar a falta, a própria subjetividade
da interpretação e do saber críticos, e reivindicar para si uma totalidade onipotente. Em
Marx, Debord ou Žižek, isso se dá de modo diferente. A contradição objetiva do sistema
expressa-se em relações sociais antagônicas, o que também significa: relações com
sentido a ser disputado socialmente, vale dizer, com significado diferente segundo os
“sujeitos” de classe, os quais estão sempre também sujeitos ao movimento, que faz
abalar e vacilar suas posições reificadas, impelindo-os assim ao movimento social. Aqui,
portanto, a força e o interesse do conceito de subjetividade – a partir de Marx
(consciência de classe revolucionária etc.) e de Freud (realidade psíquica, fantasia, lei
simbólica, desejos e pulsões, gozo, passagem ao ato etc.). Parece evidente que qualquer
mobilização crítica contra o sistema tenha de catalisar o mal-estar e o sofrimento. Mas
estes muitas vezes se confundem, na fantasia dos sujeitos, com o seu próprio gozo; por
outro lado, em certo contexto de crise as certezas narcísicas do ego-prazer se
despedaçam, o que invoca a pulsão e o movimento de ruptura. Não há, portanto, uma
realidade unívoca, evidente, para a crítica. Jogar fora o conceito de sujeito significa,
assim, destruir a possibilidade de compreensão de processos histórico-sociais
complexos e contraditórios.
Mas, paradoxalmente, não deixa de haver também uma espécie de “duplo Kurz”,
que sabe do que fala: também ele é obrigado a pensar a mediação de teoria em práxis de
supressão do capital como um movimento histórico concreto, e não como
autodestruição sistêmica; enfim, um movimento que necessita do tempo, do espaço, da
paciência da mediação e da apropriação, do momento da negação do negativo
(“demolição do que tudo demole”) e da reconstrução de relações sociais não fetichistas
(a partir do possível, que havia sido negado). Em suma, é a negação dialética
(Aufhebung) que retorna sob outro nome (Überwindung: ultrapassar, saltar, vencer),
como poder social seletivo de “indivíduos” anticapitalistas (os quais, curiosamente,
teriam todas as características do sujeito moderno: independência, criticidade,
capacidade de distância e de projeto como um “mestre de obras” e não como uma
“abelha” etc.).
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Para concluir, vejamos de perto sua análise da dialética do Capital em seus níveis
articulados. Realmente, o “sujeito automático”, a unidade do movimento da relação-
capital, não é uma aparência; mas por certo também as classes, o Estado e as lutas de
classes não são meras aparências – ao menos não para a exposição de Marx, em O
Capital, pois subsumem e classificam estruturalmente agentes sociais. Imaginar que a
abolição do Capital, como totalidade, possa ser realizada sem luta contra os “sujeitos”
funcionais empíricos que o “dirigem” e o defendem (burguesia e Estado) é um sonho
quixotesco. Aqui também, porém, Kurz faz retornar o recalcado, subentendendo a luta
antipolítica como uma espécie de “metapolítica” antiestatal e de “economia”
antimercado, que não pode simplesmente pular e saltar tais mediações como se fossem
simples aparências (a este respeito, cf. Daniel Cunha, “Penúltimos combates”, em Sinal
de Menos, nº 1). O Estado e a burguesia não agem apenas como sujeitos monádicos,
mas como forças sociais complexas, politicamente, nacionalmente, mundialmente,
como grupos e instituições sociais normativos (inclusive orquestrados consensualmente
pelo “diálogo democrático” habermasiano). É óbvio, mas o óbvio não é tão óbvio nos
círculos alemães às vezes: as classes são realidades complexas, também elas “sínteses de
múltiplas determinações” (Marx), jamais aparências sem substância e sem peso
objetivo. Estrutura e ação social, em Marx, só podem ser determinações reflexivas: a
estrutura fetichista do valor realiza-se como ação histórica efetiva, não é uma estrutura
totalmente “objetiva”, “metafísica”, “a priori”. Por isso é que Moishe Postone, por
exemplo, fala em “dominação quase-objetiva”, deixando muito mais claro que tal
estrutura é uma relação pressuposta, que precisa ser reposta e atualizada mediante lutas
sociais. E agora o ponto-chave, talvez: a ação é sempre ação estruturada pela totalidade
do valor-capital, por certo: mas há algo na ação, enquanto ação de sujeitos pressupostos
justamente, que não é estruturado previamente. Eis um traço típico da sociedade
moderna, que não tem nada de uma essência natural ou humana. O mundo moderno,
firmando o que Hegel chamou “princípio de subjetividade”, produz uma dinâmica social
ímpar. O que significa dizer que o “sujeito do valor”, na forma do suporte de relações
mercantis não se reduz à substância social do valor e do trabalho (como ocorria em
parte nas formações sociais pré-modernas, porém essencialmente constituídas por
fetiches mítico-religiosos). Aqui, então, vem à tona o fundo da questão de classe
kurziana. A posição esfumada ou apagada das classes, principalmente numa Alemanha
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do bem-estar social, vencedora na concorrência mundial no pós-guerra, poderia talvez


explicar essa cegueira para as estruturas objetivas/subjetivas dos antagonismos de
classe, e que tendem a ressurgir plenamente apenas no momento de crise ontológica,
que é também crise de identidades e de identificações ideológicas; crise como momento
de decisão e de definição dos verdadeiros contornos dos interesses e das lutas sociais.
Sim, é verdade que o proletário ou o capitalista são o “valor encarnado” e que
trabalho e capital são formas distintas do valor. Mas há uma subjetividade irredutível no
trabalhador abstrato que faz a diferença entre o proletariado que o encarna (mesmo
sendo hoje cada vez mais “supérfluo”) e o mero escravo ou o servo de gleba: a condição
de “sujeito” livre, móvel, abstraído de contextos dados, de relações naturais e
tradicionais. Certamente, enquanto suporte do capital ele não é um “sujeito” livre,
humano, como pretende a ideologia liberal ou o humanismo marxista. E é por isso
mesmo, por sofrer a alienação e a desumanização como algo negativo, que ele pode se
voltar (e tem de se voltar, nas lutas futuras) contra a sua própria condição de mero
trabalhador abstrato e alienado, comandado pelo Capital; sem determinismo objetivista
de classe, é claro, mas ao que se saiba, Marx, Debord ou Kurz, como críticos, nunca
tiveram uma vida assegurada de “capitalista”, ao contrário; e por isso mesmo, é só do
lado da experiência da proletarização e da subordinação ao capital, em sentido lato, a
ser rediscutido, que poderá vir (ou há mais chances de surgir) a crítica radical.
A realização de si como sujeito só adviria como superação de sua posição de
indivíduo burguês isolado, como formação coletiva de um grupo-sujeito ou de um
sujeito-coletivo autônomo, e não como seu reconhecimento como trabalhador/cidadão
individual no mundo capitalista ou “socialista”. (Nesse sentido, o conceito de sujeito
parece diferenciado e até mais crítico que o de indivíduo). Nada disso tem
necessariamente a ver com partido leninista, sindicatos burocratizados etc. Só uma
sociedade que realizasse o sujeito suprimiria o sujeito até aqui existente – esta forma do
sujeito, não o sujeito ou a subjetividade em geral, historicamente constituída e
culturalmente irreversível. Nesse sentido, não há nenhuma “forma-sujeito” em geral a
ser destruída pela crítica radical, apenas um sujeito potencial a se formar individual e
socialmente, suprimindo sua forma individualística e patriarcal limitada, contra a cega
objetividade dominante. O sonho de suprimir o sujeito em geral parece também às vezes
com o pesadelo de uma sociedade totalmente administrada e unificada, orgânica e
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comunitária no sentido mais reacionário, em que não há mais divergência e pluralidade.


Uma sociedade que, no limite, eliminaria, num delírio coletivo digno de Pol Pot, a
diferença entre atividades e espaços sociais, entre o público e o privado, talvez a própria
sexuação e assim as diferenças entre o mesmo e o outro de forma geral, como às vezes
aparece de relance em algumas frases de Kurz e do grupo.
A título de combate ao sociologismo e ao historicismo, Kurz tende assim a um
déficit sociológico e a um esquematismo histórico, não obstante as suas análises
históricas e sociológicas serem bem superiores às de muitos marxistas limitados. É o
social e o histórico recalcados que retornam fortemente nos ensaios de Roswitha Scholz,
por exemplo, nos caminhos da análise da cisão, da ideologia, dos valores patriarcais e da
divisão do trabalho entre os sexos, muito mais evidentes sociologicamente do que a
divisão de classes (ou de “raças”) no capitalismo avançado europeu. Resta saber por que
a esfera feminina, cindida pela divisão do trabalho e as normas patriarcais, entra como
elemento fundamental na dinâmica da valorização capitalista, mas não a... cisão das
classes sociais. Será porque ela hoje parece inexistente na Europa? Novamente, é o
ponto de vista das sociedades centrais, ou da classe média intelectual alemã, que salvo
engano determina campos de visão e de cegueira. Esta última é muito maior do que se
imagina inicialmente no grupo. A dissolução das mediações e das diferenciações
internas sob a hegemonia universal abstrata da forma-valor torna-se um cacoete
coletivo do grupo, a ponto de a “teoria da cisão” vir como um salva-vidas para
minimamente diferenciar o que parece não ter nenhuma diferença na lógica sistêmica
(no caso, os atributos reificados de gênero). Por isso mesmo, segundo nos narram
Scholz e Kurz, eles tiveram de impô-la aos demais membros do velho grupo, que
gostariam de ver aí somente “contradições secundárias” ou aparências fenomênicas. De
fato, a essência capitalista tem de aparecer – o que significa que a cisão de gêneros,
como aparição da essência, é um momento ou uma parte fundamental daquela essência.
E por que o mesmo não vale para as várias formas de luta de classes como formas de
aparição do fundamento da autovalorização do capital? Em suma, a contradição sempre
tem de aparecer de algum modo concreto, constituindo campos sociais e políticos (não
só econômicos) antagônicos mais ou menos visíveis.
Assim ainda, da mesma maneira, será legítimo assemelhar, senão identificar, os
regimes democrático-liberais, o nazi-fascismo e o sistema soviético, como feito tantas
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vezes? Certamente, há um nível de homologia ou de identidade, constituído pela forma-


valor e pela dinâmica de acumulação de capital nesses três regimes. Mas parar a análise
aí (lembrando que n’O Colapso da Modernização a distinção está lá, mas convive com a
lógica brutal da subsunção), nesse nível de abstração, é destruir o que é concreto e não-
idêntico (as configurações sociais da economia, da política, das lutas de classes etc.).
Finalmente, a tese do “limite absoluto” já atingido pelo capital é em grande parte
defensável – contra aqueles que querem simplesmente afirmar a saúde de um
capitalismo tecnologicamente turbinado –, contanto que se perceba mais uma vez que
isso também é mediado social e politicamente por “sujeitos” de classe. E também que a
teoria não detém a totalidade – o real escapa sempre em alguma medida à conceituação
– e por isso não pode virar uma profecia (como algumas vezes Kurz tentou fazer,
dizendo que tudo seria decidido nas próximas décadas). Não há fim do sistema à vista a
não ser como o resultado histórico de uma luta social de superação prática e consciente
do capital. É bem fácil, na verdade, subestimar a capacidade de sobrevida ou reprodução
de um sistema que há décadas vem esgotando as suas bases (isto é, a exploração do
trabalho abstrato e da natureza) e aumentando exponencialmente os seus custos
improdutivos, recaindo em crises sistêmicas cada vez mais profundas. No entanto, o
Estado e a burguesia, aparentemente fracionados e impotentes diante da crise global,
não largariam nunca o osso sem luta conjunta, certamente armada até os dentes, contra
o campo dos inimigos do capital e do trabalho, um campo hoje imensamente
pulverizado em faixas de renda, interesses e modos de vida díspares etc., e sem
unificação à vista. O problema se torna hipostasiar essa pulverização e essa ruína. A luta
real não seria justamente, em certo sentido, traçar esse limite absoluto faltante na
práxis, que gera a indistinção dos antagonismos enquanto rebaixa os sujeitos potenciais
a instrumentos de um Estado e de um gozo administrados? De fato, os “sujeitos do
valor” talvez amem as suas celas enquanto não houver nada melhor a ser amado. Já o
desejo que constitui a verdade do sujeito, como lê a psicanálise, só surge na escala
invertida do gozo, que é então gozo barrado, tal como a práxis de ruptura efetiva só
surge no momento em que o desejo se concretiza como ação organizada. A ideia de
formas embrionárias é um dos melhores enfoques sobre esse ponto, realimentando o
debate com a tradição do conselhismo, do anarquismo e do comunismo utópico. Dizer
mais que isso e desqualificar todo ensaio de libertação mais ou menos frágil ou potente,
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do alto do castelo teórico, não seria apostar na “pureza” teórica e na “impotência”? Não
que a tendência à barbárie não exista, bem pelo contrário. Mas não se trata no fundo do
velho gozo de intelectual alemão contemplativo, como sugeriu um dia Marx?

(Agosto/Dezembro de 2012)

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O Exército nas ruas: da Operação Rio


à ocupação do Complexo do Alemão
Notas para uma reconstituição da exceção urbana

Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho

Em novembro de 2010, o mundo acompanhou as imagens do início da maior


ação militar em favelas que a cidade do Rio de Janeiro já viveu. E, além disso, a mais
duradoura. Mais de um ano depois dos eventos da Vila Cruzeiro, as tropas do Exército
permanecem no conjunto de favelas do Complexo do Alemão, uma área que, de acordo
com os dados do Censo das Favelas (2008/2009), abrange mais de 90 mil habitantes. 1 A
ocupação permanente é, até o momento, o acontecimento mais importante da chamada
“guerra contra o tráfico de drogas” desencadeada pelo governo do estado em parceria
com as Forças Armadas. No entanto, a população sabe muito pouco sobre essa guerra –
a despeito do ineditismo e das grandes proporções da operação – e poucos se
interessam em saber algo mais: o que importa é que a “batalha do bem contra o mal”
está sendo travada.
Antes de descrevermos alguns aspectos das incursões militares no Complexo do
Alemão, convém retornar um pouco no tempo. Um antecedente que bem poderia figurar
como o “ensaio geral” do processo de militarização da segurança, a “Operação Rio”,
realizada em meados da década de 1990, merece ser reconstituída, pois nela já
encontramos muitos dos ingredientes da “batalha” travada atualmente nas ruas e
favelas da cidade do Rio. Se retornarmos ainda mais, deparamos com outras
intervenções militares para conter a onda de reivindicações sindicais que se seguiu ao
fracasso dos planos de estabilização econômica, a exemplo da ocorrida na greve da CSN
em 1988, ano em que, com a promulgação da Constituição, consolidou-se nossa

1 O censo é realizado pelo Escritório de Gerenciamento de Projetos do Governo do Estado do Rio de


Janeiro. Se considerarmos também o Complexo da Penha, que inclui a Vila Cruzeiro, os números sobem,
conforme o cálculo operacional dos comandantes militares, para mais de 200 mil habitantes vivendo
nas maiores favelas da região.
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“transição democrática” militarmente tutelada. Naquele ano, 1.300 soldados do Exército


e policiais invadiram a usina de Volta Redonda (a 127 km da capital fluminense) e
abriram fogo contra uma multidão de trabalhadores, matando três metalúrgicos. O
episódio pode ser interpretado como uma expressão extemporânea do regime militar,
quando o Exército é acionado em nome da “segurança nacional”, e novamente revela o
trato violento com os movimentos sociais e a reivindicação por direitos civis. Em que
pesem as mudanças institucionais posteriores, o aparato militar não deixará de
comparecer em momentos considerados cruciais, mas, a partir daí, em uma conjuntura
distinta, alegadamente para a garantia da “segurança pública”.
Em 1992, houve um novo emprego das forças militares, agora na cidade do Rio
de Janeiro: ao invés da repressão ao movimento sindical, o patrulhamento das ruas era
para garantir a segurança de um importante encontro internacional, a ECO-92. Na
ocasião, “o centro da cidade e suas áreas ‘nobres’, ocupadas militarmente pelo Exército,
[viveram] dias de calma e tranqüilidade com os miseráveis compulsoriamente
deslocados, naquelas semanas, para as periferias ou ‘abrigos provisórios’” (Coimbra,
2001: 142)2.
Com a Operação Rio, lançada em outubro de 1994, a utilização das Forças
Armadas no “combate à criminalidade” atingiu um novo patamar. Por meio de
denúncias contra a instituição policial e da desmoralização do poder executivo estadual,
o ambiente para a intervenção militar foi criado pela imprensa, que enaltecia os
“momentos de paz” obtidos durante a ECO-923. Produziu-se, além disso, a ideia de que
a política de segurança estadual teria permanecido, por conveniência eleitoral,
indiferente ao processo de estruturação do tráfico de drogas nas favelas. A manchete de
um grande jornal resume o caso: “tráfico põe o Rio em situação de emergência”. 4 E a
conclusão era óbvia: com uma polícia inoperante e um governo permissivo, restava ao
Exército a missão de combater a escalada do novo inimigo da segurança pública, o
“crime organizado”. Foi a partir desse quadro que se consolidou, na cidade do Rio, um

2 Cecília Coimbra, Operação Rio: o mito das classes perigosas. Rio de Janeiro, Oficina do Autor, 2001, p.
142.
3 Durante a preparação da Operação-Rio, que ocorreu no período da sucessão presidencial, cogitou-se,

com assentimento do prefeito César Maia, a intervenção do Exército nas favelas cariocas em um regime
de “estado de defesa” baseado na suspensão de garantias constitucionais.
4 O Estado de São Paulo, 07 de agosto de 1994.

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consenso conservador em torno não mais da antiga ideia de subversão política, mas da
“violência urbana”, uma categoria, como diz Loïc Wacquant, “sob a qual cada um pode
colocar o que lhe convier” (2001: 67).5
A estratégia para a construção do consenso dependia da desvinculação entre o
debate sobre a segurança pública e o problema da crise do modelo econômico, o que
transformava a pobreza em alvo policial. Ao mesmo tempo, a acumulação de força das
quadrilhas do tráfico, sempre alimentadas pela corrupção policial, tornava-se a
justificativa ideal para a manutenção dos moradores das favelas em uma situação de
exclusão, fora do regime jurídico legal e submetidos a uma forte discriminação. No Rio
de Janeiro, o que se convencionou chamar de “crime organizado” refere-se apenas a um
mercado varejista de drogas que, mesmo contando com algum nível de organização,
opera de modo essencialmente fragmentado e rudimentar. Mas o crime organizado é
funcional para a manutenção de um eficiente controle social. Nesse aspecto, a histeria
produzida pelos meios de comunicações é inversamente proporcional ao torpor em
relação ao crime que se organiza por dentro da polícia e que alimenta as conexões do
tráfico de drogas e de armamentos.6
Na cidade do Rio e em alguns municípios vizinhos, a violência atingiu patamares
bastante elevados no final dos anos 1970, o que coincidiu com o fim do nosso ciclo
incompleto de modernização e o início de uma dinâmica de exclusão social, cujo traço
mais visível foi o processo de favelização em larga escala. E as grandes periferias
cresceram desassistidas, tornando-se territórios sob a influência de grupos armados. Os
números da violência continuaram subindo, sem grandes saltos, nos anos seguintes. Já
em 1981, uma reportagem de capa da revista Veja anunciava a “Guerra civil no Rio”:
dois mil mortos na Baixada Fluminense e um recorde do “comércio clandestino de

5O depoimento, em livro recente, de um importante agente da repressão política do Regime Militar atesta
que esse tema foi introduzido no meio universitário pelos órgãos de segurança oficiais durante o
“Primeiro congresso brasileiro sobre violência urbana e suas implicações”, realizado na cidade do Rio de
Janeiro, em 1980, e em cujos bastidores desenvolvia-se a articulação clandestina da chamada “Operação
Condor”. Cf. Netto, Marcelo e Medeiros, Rogério. Memórias de uma guerra suja. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2012. [N. E.: ver também a entrevista de L. Wacquant na Sinal de Menos #3].
6Praticamente nada dessa estrutura mafiosa nos é dado a saber. Do mesmo modo, nunca se sabe com

exatidão quais as relações entre os representantes do Estado e o “crime organizado” – e os meios de


informação profissionais se encarregam de manter as coisas assim; sabemos apenas que as instituições
democráticas tornam-se cada vez mais repressivas para combatê-lo. Em todo caso, as populações
“devem saber o suficiente” para se convencer de que, em relação a esse inimigo, “tudo mais deve lhes
parecer aceitável ou, no mínimo, mais racional e mais democrático” (Debord, 1992:40).
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armas”.7 Na seqüência, como se buscasse as raízes estruturais da violência, a matéria


seguinte concluía que a causa de tudo é demográfica: dramaticamente, constatava um
especialista, “a redução da fecundidade é demasiado lenta para corrigir, por si só, os
desníveis que afligem os defensores do planejamento familiar”. 8
No início dos anos 1980, verifica-se uma mudança da relação entre o poder público e
a favela. Isso porque, entre as camadas médias da sociedade e os formadores de opinião,
até esta época ainda predominava a ideia da remoção da pobreza. Quando Leonel
Brizola foi eleito governador, em 1982, o problema da segurança passou a ser pensado
de maneira integrada a uma política de ampliação dos direitos, com ênfase na
construção de escolas públicas e em obras de infraestrutura nas favelas, que passaram a
ser vistas como uma parte da cidade e não como um aglomerado de pobreza a ser
deslocado para as periferias. Sem se deixar guiar pelas campanhas movidas pela
imprensa, que exigiam do Estado uma atitude de confronto que ignorava direitos
elementares das populações de baixa renda, o governo de Brizola tentou fazer do
respeito aos “direitos humanos” uma premissa das políticas de segurança pública, o que
provocou resistência no interior da corporação policial. A perspectiva includente contida
em tais posições produziu forte rejeição nas camadas médias, que associavam o discurso
em favor da universalização dos direitos à expansão do crime violento: “nessas
condições, a simples menção aos direitos de presos e criminosos e/ou a oposição
explícita ao ‘vigilantismo’ – tradicional conduta brutal das forças policiais diante de
suspeitos de origem popular –, peças importantes do discurso e da atuação brizolista, se
apresentavam como uma afronta para significativos setores da opinião pública”
(Machado da Silva, et alli, 2005: 9). Desde então, o Rio passou a ser visto nacionalmente
como um “caso exemplar” de violência urbana, o que resultou em uma drástica
mudança de rumo na política de segurança. Foi assim que, de 1986 até a derradeira
derrota eleitoral do trabalhismo, no final da década seguinte, estiveram em disputa, em
um movimento pendular, a proposta criada pelos partidários de Brizola, que haviam
cooptado numerosas associações comunitárias surgidas no final dos anos 1970, e as

7 “O Rio ferido a bala”, Veja, 7 de janeiro de 1981, pp. 14-22.


8 “O provo aprova: 71 % dos brasileiros querem famílias menores”, Veja, 7 de janeiro de 1981, pp. 23-26.
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promessas de “acabar com a violência” através dos métodos tradicionais de repressão. 9


A partir de 1994, “a chamada guerra no Rio está oficialmente deflagrada”. 10 O
Exército é o “último recurso” para “restabelecer a ordem” – lia-se nos jornais, depois da
pressão para que o governo estadual aceitasse uma intervenção não declarada.
Gradualmente, as tropas ocuparam vários locais da cidade e deram início à “pacificação”
de “zonas conflagradas”. O objetivo declarado era asfixiar economicamente os pontos de
venda de drogas por meio do bloqueio de suas vias de acesso. Seguiu-se a invasão de
“favelas estratégicas”, todas situadas em bairros considerados “nobres”, nos quais a
sensação de segurança artificialmente produzida foi usada como mercadoria política. A
Operação Rio foi apenas um experimento, mas todo o repertório midiático atual já podia
ser encontrado na cobertura da época, quase como parte integrante da operação, pois se
tratava de construir a atmosfera adequada e as justificativas mais imediatas para o cerco
e ocupação dos morros, no que foi chamado de “o dia D para a ação”, “a chance do
carioca reassumir o Rio”.
A Operação Rio limitou sua ação a incursões violentas nos territórios de pobreza.
Ocorreu com a brutalidade habitual e, por conseguinte, foi logo cingida de denúncias.
Em sua segunda fase, já no início de 1995, por um convênio entre o Exército e o governo
estadual recém-eleito, firmou-se um novo acordo segundo o qual o Exército participaria
apenas da Operação Rubi, patrulhando as grandes vias e as “rotas de fuga”. Somente em
casos especiais as Forças Armadas seriam convocadas a atuar em incursões nos morros
e, segundo os termos do acordo, nos demais “locais suspeitos”. A mudança estratégica
ocorreu em função das denúncias de ineficiência da etapa anterior da operação e,
sobretudo, por causa das constantes violações dos direitos humanos, que não raro
envolviam práticas de tortura e prisões clandestinas. Os casos mais comuns de “maus

9 Moreira Franco, que governou o estado do Rio de Janeiro entre 1987-91, se elegeu com a promessa
demagógica de acabar com a violência em 6 meses. Inutilmente. Foi sucedido por Brizola (e Nilo Batista,
seu vice), que continuou a denunciar, em guerra aberta com as principais empresas de mídia, a
conivência das autoridades com as execuções de jovens nas favelas e periferias. A eleição de Marcello
Alencar, um quadro egresso do brizolismo e com uma trajetória marcada pela defesa de presos políticos
durante a ditadura militar, inverteu novamente a perspectiva do tratamento da segurança. Marcello
Alencar cedeu às pressões da “opinião pública” e adotou medidas extremamente violentas contra a
população pobre do Rio: durante o seu governo, iniciado em 1995, registrou-se um aumento
significativo dos homicídios cometidos por policiais, uma prática estimulada pela “premiação por
bravura”. O ciclo se fecha com o governo de Anthony Garotinho, último governador vinculado ao
trabalhismo, mas que já coloca em questão a atitude de Brizola, considerada por seu secretário de
segurança, Luiz Eduardo Soares, um “absenteísmo de esquerda”.
10 Jornal do Brasil, 01 de novembro de 1994.

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tratos” infligidos a moradores das favelas ocupadas eram – conforme os exemplos


citados nos Inquéritos Policais-Militares (IPMs) – algumas das antigas especialidades
dos agentes de segurança, ou seja, “choque elétrico e afogamento”, além de práticas que,
até onde se sabe, eram menos usuais do que são hoje, como o furto de objetos em
residências11. Depois da Operação Rio, os números da violência prosseguiram sem
grandes alterações e às Forças Armadas coube apenas uma discreta saída de cena para
evitar desgaste diante da “opinião pública”. Ao protagonizarem essa violenta encenação
de segurança, as forças militares deixaram um legado: de acordo com os registros de
ocorrência da Polícia Civil, o Rio registrou um crescimento atípico de mais de 20% do
número de homicídios dolosos entre novembro e dezembro de 1994.12
O aumento da violência não foi o único resultado das operações do Exército.
Temos dois elementos novos a respeito da participação das Forças Armadas no quadro
da segurança pública do Rio depois de 1995. Os primeiros são as operações com
objetivos limitados: no período compreendido entre 1995 e 2004 houve várias ações do
Exército, mas nenhuma se revestiu do viés ideológico da Operação Rio. O que estava em
questão em tais ações eram problemas pontuais.
Em junho de 1999, as Forças Armadas contribuíram para a segurança da Cimeira
do Rio, encontro dos governos da América Latina e União Européia. Em novembro de
2002, o Exército foi convocado novamente pelo governo estadual, dessa vez para
“garantir a segurança” da Região Metropolitana durante as eleições daquele ano. Estava
mais em questão a falência do aparato policial do que a ideologia da segurança militar,
desvalorizada após o fracasso verificado na década anterior – entretanto, é a própria
polícia que começa a sofrer, a partir daí, um célere processo de militarização, tanto no
que diz respeito às formas de ação quanto aos equipamentos utilizados.13

11Cecília Coimbra, Operação Rio, cit., p. 231.


12 “[...]
vários dos objetivos da Operação Rio I fracassaram: as favelas não foram desarmadas, o tráfico de
drogas continuou em vigor, o índice de criminalidade permaneceu alto e as favelas não foram
incorporadas ao resto da cidade no sentido de seus habitantes poderem usufruir do direito de cidadania”
(Zaverucha, 2000: 196). É significativo que as operações de ocupação da Vila Cruzeiro e da Rocinha, ao
longo de 2011, tenham sido denominadas pelas Forças Armadas Operação Rio III e IV, respectivamente,
o que não foi divulgado pela imprensa, dado o fracasso das operações da década de 1990.
13De certo modo, o que ocorre é uma “remilitarização” das polícias, pois a segurança pública civil era

responsabilidade das forças militares durante a ditadura (sobre isso, ver Clóvis Brigagão, A
militarização da sociedade, Rio de Janeiro, Zahar, 1985). Algumas medidas tomadas durante a década
de 1980, principalmente no governo Brizola, tentaram desmilitarizar a polícia, mas houve uma
reviravolta nas décadas posteriores.
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Em junho de 2002, a sede da prefeitura municipal foi alvejada por mais de


duzentos tiros e as ameaças à segurança continuaram até culminar, em 24 de fevereiro
de 2003, no que a imprensa carioca denominou “segunda-feira sem lei”, uma série de
ataques atribuídos a traficantes. Durante cinco dias o pânico tomou conta da cidade, o
comércio permaneceu fechado e vários veículos foram incendiados em diferentes
bairros. Em resposta, o governo estadual desencadeou a “Operação Guanabara”, que
novamente recorreu ao Exército para ocupar “áreas críticas” e suprir a falta de efetivos
policiais. Em novembro de 2004, as tropas voltaram às ruas para uma missão de
policiamento provisório, durante a Cúpula do Grupo do Rio, que recebeu chefes de
Estado de toda a América Latina. Ao contrário de 1992, a ação amparou-se em
tentativas de respaldo legal; um decreto presidencial, de 2001, conferia poder de polícia
às Forças Armadas e outro, de 2004, descaracterizava a intervenção federal nos
governos estaduais. Mas os fundamentos jurídicos dessas operações eram frágeis, pois
entravam em conflito com princípios constitucionais que não previam o uso de forças
militares na segurança pública civil.
O segundo elemento que devemos considerar é um efeito inesperado dessa
sequência de operações que, a julgar pelos eventos subsequentes, parece ter resultado
no envolvimento das quadrilhas responsáveis pelo tráfico de armas e drogas com
efetivos das Forças Armadas. São numerosos os casos de desvio de material bélico nos
quartéis com a participação direta ou indireta de militares. 14 O padrão mais comum do
desvio, que não exclui ações externas à instituição militar, é a cooptação de soldados
pelas quadrilhas que operam a venda de drogas nas favelas próximas aos batalhões. São
igualmente numerosos os relatos de casos envolvendo militares ou ex-militares que
oferecem “serviço” de treinamento às quadrilhas em troca de uma remuneração muito

14 O jornal O Globo noticiou: “Em 2009, o Exército recuperou um fuzil que havia sido roubado no 26º
Batalhão de Infantaria Paraquedista, unidade considerada de elite, durante uma operação nos morros
da Pedreira e da Lagartixa, em Costa Barros, no subúrbio do Rio. Na época, todos os cerca de 700
homens lotados no batalhão, localizado na Vila Militar, ficaram presos até que a arma reaparecesse e
fossem identificados os responsáveis pelo roubo”. Cf. “Desvio de armas em quartéis é um desafio para as
Forças Armadas”, 12 de dezembro de 2010. Outra reportagem do mesmo jornal, essa de 29 de junho de
2011, relata que “Pelo menos dois mil projéteis de armamento de grosso calibre desapareceram no
último dia 22, véspera do feriado de Corpus Christi, do Batalhão Escola de Comunicações, na Avenida
Duque de Caxias, na Vila Militar. Alguns soldados da unidade estão, desde a semana passada,
aquartelados por causa do furto do material”.
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superior ao soldo militar.15 Somente entre 2004 e 2008 ocorreram mais de cem casos de
desvios de armamentos dos quartéis do Rio, o que corresponde a algo em torno de 50%
dos casos registrados no Brasil. Em mais um caso rotineiro, em meados de 2004, fuzis
roubados em um quartel do Exército foram encontrados na favela de Antares, em Santa
Cruz, bairro da zona oeste do Rio. O resultado final da operação foi um novo escândalo,
noticiado pela imprensa como uma negociação dos comandantes militares com os
chefes locais do “tráfico”. Pouco depois, outro desvio de armas, no quartel de São
Cristóvão, bairro da área central, teve como consequência uma grande operação cujo
desfecho foi mais uma vez envolvido em denúncias de negociação com as lideranças do
tráfico.
O ápice de todo esse processo, no entanto, só ocorreu em 14 de junho de 2008, 16
quando a imagem do Exército se vinculou de modo inapagável à lógica da violência:
uma ação com onze militares resultou na prisão irregular de três moradores do morro
da Providência (então dominada por uma facção do tráfico) que, em seguida, foram
levados pelos militares até o morro vizinho (dominado por uma facção rival) e
executados pelos traficantes locais. Com a repercussão nacional do episódio, evidenciou-
se como a instituição militar, a exemplo de outras instituições estatais, havia se deixado
permear pela lógica da faccionalização que divide a maior parte das favelas cariocas.
Constatou-se, além disso, que a presença militar na Providência para a fiscalização de
obras de um projeto federal era completamente ilegal.
Outro caso de grandes proporções já havia ocorrido dois anos antes, durante uma
série de ocupações de favelas (treze ao todo) próximas à área central do Rio – incluindo
o próprio morro da Providência. Mais uma vez, os militares saíram às ruas para

15 De acordo com o jornal O Globo, de 03/02/2002, “Ex-militares do Exército treinam traficantes no Rio:
cursos dados por cabos e soldados da reserva custam até R$ 8 mil por mês”. Igualmente, o Jornal do
Brasil noticiou, em 04/04/2002, que “Em uniformes camuflados, armados de fuzis, metralhadoras e
granadas, 32 ex-militares, oriundos da Brigada Paraquedista do Exército estariam cruzando as ruas do
Rio em missões táticas encomendadas por facções criminosas, em guerra por pontos de venda de
drogas. Apelidado de “bonde verde”, o grupo não guardaria fidelidade a qualquer facção, atuando
sempre como mercenário”.
16 Considere-se que, ainda em 27 de junho de 2007, nos “preparativos” da cidade do Rio para a realização

dos jogos Pan-Americanos, uma operação no Complexo do Alemão conhecida como “Chacina do Pan”,
envolvendo policiais militares e a nova “Força Nacional de Segurança”, resultou em 19 pessoas mortas e
62 feridos por armas de fogo. Criada em 2004, a Força Nacional de Segurança é outra expressão da
mlitarização policial. Como tropa federal subordinada ao Ministério da Justiça, operando através de
“convênios” com governos estaduais para intervir em conflitos urbanos, a FNS é também, para muitos
juristas, um exemplo flagrante de inconstitucionalidade.
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recuperar armas roubadas. E, mais uma vez, as operações não possuíam respaldo
jurídico, pois nenhuma medida necessária para a utilização das Forças Armadas na
chamada “garantia da lei e da ordem” foi tomada pelo governo. A Providência
permaneceu dez dias sob intervenção do Exército e, como de costume, os procedimentos
legais mais elementares foram ignorados: nenhum mandado de busca e apreensão para
vasculhar casas e estabelecimentos comerciais, agressões e danos materiais,
cerceamento do trabalho da imprensa etc. Surgiram até denúncias de simulações de
conflitos armados. Outros relatos de moradores, descritos em “A Guerra da Providência”
– estudo que analisa a referida ocupação do Exército, em março de 2006 17 –, apontam
ações ainda mais violentas e arbitrárias que as usualmente praticadas pela Polícia
Militar. Uma moradora da Mangueira, favela ocupada na mesma época, relata: “Hoje, o
morro da Mangueira parou. Fomos impedidos de sair de casa, ir ao trabalho, estudar, ir
e vir. Ficamos sob a mira de um tanque de guerra direcionado para nossas cabeças”18.
Para os autores do estudo, “todos os relatos e as evidências confirmam que as forças
militares entraram na favela da Providência atirando a esmo, aparentemente com o fim
de intimidar os criminosos ou, talvez, a própria população civil. Para ocultar esse fato, a
versão oficial se referiu sempre a troca de tiros com o narcotráfico” 19. E adiante: “os
moradores afirmam peremptoriamente que não houve confronto pois os
narcotraficantes fugiram no primeiro momento. As autoridades se inclinam a
corroborar essa versão a partir das marcas de tiros e cápsulas recolhidas” 20. Das cinco
vítimas da operação, uma delas letal, nenhuma foi formalmente acusada e nenhuma
prisão foi efetuada. No mesmo relatório, “há menção a casos de perda de postos de
trabalho em função da ausência obrigada pelo toque de recolher”.21
Tal como a ação de 2006, a megaoperação de 2010, na Vila Cruzeiro, próxima ao
complexo de favelas do Alemão, não estava prevista por nenhum plano de segurança.
Foi uma situação ocasional, motivada pela obrigação de responder aos ataques do
“crime organizado” ocorridos em toda a cidade nos dias anteriores, mas, sobretudo,

17 José Trajano Sento-Sé et al., “A guerra da Providência: uma análise da ocupação pelo Exército da favela
da Providência no Rio de Janeiro em março de 2006”, Laboratório de Análise da Violência,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em:
<http://www.lav.uerj.br/docs/ rel/2006/guerra_provid_rio_2006.pdf>.
18 Ibidem, p. 11
19 Ibidem, p. 23.
20 Idem.
21 Ibidem, p. 24.

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derivava de uma redistribuição territorial das atividades do tráfico que já vinha


ocorrendo desde o início da implementação das Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs) em áreas estratégicas da cidade e do avanço das áreas sob o controle de grupos
milicianos. Entre 2009 e 2010, o número de integrantes da facção que controlava a
venda de drogas local triplicou nos complexos do Alemão e da Penha. Muitos chefes e
gerentes do tráfico em pequenas favelas da cidade concentraram-se ali, juntamente com
seus “soldados”, depois de terem perdido o controle de seus pontos de venda. A Vila
Cruzeiro e suas adjacências haviam se tornado bastiões da principal facção criminosa do
tráfico. Essa concentração imprevista das atividades de distribuição de drogas e
armamentos para outras favelas tornou inevitável a chamada operação de “retomada”
da região. Por isso mesmo, não estava prevista a instalação de UPPs nas favelas que
compõem os Complexos do Alemão e da Penha. Para realizar uma grande intervenção
nesse complexo seria necessário mobilizar um contingente igual ou maior ao que atuava
nas favelas onde já funcionavam as UPPs. Desse modo, recorreu-se ao Exército,
novamente em uma situação jurídica nebulosa, isto é, à margem da lei, não apenas para
o suporte da operação de “pacificação”, mas igualmente para empreender uma ocupação
capaz de realizar de modo duradouro a administração repressiva desse grande território
para o qual a Polícia Militar não dispunha de efetivo suficiente.
A intervenção militar permanente no Complexo do Alemão é o resultado de um
tipo de política de segurança preocupada com a ocupação de áreas estratégicas com alto
potencial de valorização e com o deslocamento dos conflitos armados para as regiões
periféricas com menor visibilidade. O que se assistiu pela televisão em novembro de
2010 foi a repetição, em escala ampliada e, por assim dizer, mais espetacular, dos
mesmos procedimentos verificados na “guerra da Providência”. Durante a “retomada”
da Vila Cruzeiro, foram abundantes os arrombamentos de residências e saques
praticados por policiais, além do desvio de armas e dinheiro apreendido e suspeitas de
acordos de fuga.22
Se durante a operação as condutas ilegais foram a regra, especialmente no caso
da Polícia Militar, as situações de abuso de autoridade e violência contra moradores
praticadas pelas Forças Armadas se multiplicaram ao longo de 2011. O Complexo do

22 Em janeiro de 2011, 30 militares do Exército e 23 policias militares foram afastados por atos ilícitos
praticados, diante das câmeras de TV, na operação de novembro.
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Alemão vive atualmente uma situação não declarada de estado de sítio. Para
caracterizá-la basta lembrar que a prática dos “mandados de busca coletivos” continua
vigorando e com ela as ações “em cumprimento da lei e da ordem” que englobam – e
criminalizam – favelas inteiras.23 É certo que o Brasil não construiu um Estado de
direito inteiramente desenvolvido e, como lembra Wacquant, “as duas décadas de
ditadura militar continuam a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado
como sobre as mentalidades coletivas”.24 Por isso, acumulam-se as situações em que a
alegação do estado de “necessidade” legitima atos ilícitos praticados por agentes de
segurança do Estado. A rigor, a inexistência da regra plena muitas vezes torna supérflua
a “exceção” entendida como suspensão provisória dos direitos. Os moradores, que
sofriam com a violência que sempre caracterizou o tráfico e as invasões policiais, que
incluem ações sistemáticas de extermínio, continuam privados de direitos básicos:
prisões abusivas por “desacato” e imposição de restrições são comuns, mas agora sob o
comando arbitrário do Exército. O fenecimento das garantias individuais consolida-se,
neste laboratório de controle social, com o toque de recolher anunciado pelos alto
falantes em ações militares de rotina: “o Exército está realizando um mandado judicial
em cumprimento da lei. Fechem suas portas e janelas e aguardem orientação. Quando
solicitado, abra a porta e aja de maneira educada. Obedeçam todas as instruções.
Qualquer ação contrária será considerada como ato hostil e receberá a resposta
necessária”.25
Na ocasião da “retomada” do Complexo do Alemão, os meios de informação trataram
de infundir na população o sentimento de impotência capaz de produzir o estado de
espírito adequado às intervenções discricionárias e ao projeto de ocupação prolongada
de favelas, pois quanto maior a sensação de insegurança, maior a chance de o aparelho
estatal impor seu controle sem contestação. Aqui, os clichês habituais da

23 A Operação Rio I também utilizou os “mandados genéricos de busca e apreensão”, mas, naquele
momento, talvez em virtude da lembrança da Constituinte, a imprensa denunciou os abusos: “No final
de 1994, o Brasil ressuscitou as lettres de cachet, que permitiram aos oficiais da polícia francesa, no
século XVIII, prender, em nome do rei, quem bem entendessem” (Jorge Zaverucha, Frágil democracia,
cit., p. 185). A comparação ressalta o caráter totalmente ilegal da prática: todo mandado deve ser
despachado contra alguém em particular, pois não se trata de uma “carta-branca”.
24 Loïc Wacquant, As prisões da miséria, cit., p. 10.
25 “O Complexo do Alemão em Estado de Sítio”, Veja, 26 de outubro de 2010.

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cobertura jornalística, referidos à “guerra civil no Rio”, reduziram-se a isto: “a maior


parte dessa escória conseguiu escapulir, porque, naquele momento, não havia efetivo
suficiente (...) mas eles não perdem por esperar”. 26 Apenas as mídias alternativas com
inserção nas favelas relatavam casos em que policiais atuavam como saqueadores
durante a operação, praticando a chamada “garimpagem”. Pouco a pouco, começou a
aparecer também no interior do monopólio empresarial da mídia a descrição dos fatos
inicialmente omitidos, como o roubo de bens de moradores durante as revistas em suas
casas. Muitos acreditam que tal omissão era indispensável para produzir a adesão da
população à operação militar. Mas seria errôneo condicionar a possibilidade das ações
repressivas à ignorância do público em relação aos abusos cometidos pelas autoridades.
Fartamente conhecidos, tais abusos foram tolerados e até mesmo exigidos, durante a
operação da Vila Cruzeiro, por uma parcela significativa da população. Afinal, quem
consentiu com práticas de tortura e execução sumária nas telas do cinema, agora clama
sem qualquer acanhamento por ações reais de extermínio nas favelas. 27 Esse quadro nos
coloca diante de uma situação original: quando os índices de criminalidade violenta
explodiram na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o país vivia o fim do “milagre
econômico” que ajudou a legitimar a repressão política, e o início das lutas pelas
“liberdades democráticas” e pelos “direitos sociais”, todos consagrados, como letra
morta, na Constituição de 1988. Desde então, o fato dos setores militares conservadores
terem perdido a capacidade de atuar como poder tutelar em momentos de crise política
contrasta com a ampliação da presença das tropas nas ruas. Com o esgotamento do
nosso ciclo de desenvolvimento, o que restou não foi uma sociedade com pretensões de
inclusão e participação popular, mas uma democracia feita para minorias com poder de
consumo, o que exige o controle de uma população cuja perspectiva de absorção pelo
sistema produtivo é cada vez menor. No contexto da Operação Rio I, já era possível
observar que “a incapacidade do Estado de exercer o controle, ainda que mínimo, da

26 Veja, 1o dez. 2010, p. 137.


27 A violência tem se generalizado nas diferentes camadas da sociedade: o uniforme preto e a “faca na
caveira” não são símbolos que proliferam apenas no universo de alguma subcultura juvenil e
“extremista”, como a cruz gamada ou as runas da SS na Alemanha unificada, e sim os produtos da
cultura de massa voltados para o público em geral e exibidos até mesmo na programação matinal da TV.
Na cobertura jornalística, a estetização dos “homens de preto” que figuraram nas capas de jornais e
revistas servia unicamente para garantir a legitimidade de uma missão auto-atribuida pelos policiais:
“entrar na favela e deixar corpos no chão”.
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situação social (...) encontra no recurso da utilização das Forças Armadas no combate ao
narcotráfico dos morros cariocas, sua definitiva e cabal demonstração”28 Dessa forma, o
aumento dos gastos ligados ao aparato policial-militar, que fortalecem a dimensão
punitiva do Estado, torna-se uma compensação negativa para a ausência de políticas
econômicas e sociais inclusivas.
Mais de 30 anos separam a intervenção militar na greve da CSN e a ocupação do
Complexo do Alemão. Embora as confusas interseções entre as esferas civil e militar
sejam comuns aos dois momentos, o horizonte histórico é diferente: em 1988, tratava-se
da repressão às organizações político-sindicais que lutavam, no contexto do processo de
democratização, por melhores condições de trabalho e pela universalização dos direitos.
A funcionalidade econômica desses trabalhadores despertava o desejo de
reconhecimento jurídico e de integração social, até então negada pela exceção
construída militarmente. No entanto, tais expectativas não se concretizaram e os
aspectos democráticos do sistema jurídico e político começaram a dar sinais de
esgotamento, antes de se consolidarem. Em 2010, o recurso à ocupação militar criou
mais uma situação de violência externa ao ordenamento jurídico, que incide sobre os
habitantes das favelas que deixaram de ser funcionais ao patamar econômico atingido
pelo “espetáculo do crescimento”.29 Para a maior parte deles, que permanece, a despeito
das miragens econômicas da última década, muito distante de algum tipo de integração,
a pobreza segue como o problema fundamental. 30 E o avanço do processo de favelização
na cidade do Rio é o desmentido mais flagrante da retórica política sobre o crescimento
econômico. Assim, as políticas públicas são reduzidas a um gerenciamento de
emergências e o contingente populacional “sobrante” torna-se um simples problema

28 Oliveira, Francisco de. Quem tem medo da governabilidade? Novos Estudos. São Paulo: Cebrap, n.o 41,
março de 1995.
29 Se a Ditadura constituiu um período de exceção que aboliu, em nome da defesa da ordem, uma série de

direitos individuais e coletivos, o período da transição democrática tratou de manter intacta a estrutura
social. Daí a situação paradoxal: na nova ordem democrática, os segmentos marginalizados da
população continuam à mercê do mesmo poder punitivo que atingiu os dissidentes políticos e as
organizações sindicais. Só que agora, para manter a base da pirâmide social em seu lugar, não se faz
necessário o recurso à suspensão das liberdades.
30 Especialmente entre os jovens é elevado o número dos que permanecem sem escolaridade básica e sem

acesso ao mercado de trabalho. “Para jovens de favelas com UPP, a pobreza é o maior inimigo”, diz uma
reportagem, a partir dos dados colhidos pelo Ibope. Para 24 % dos 700 jovens moradores de favelas
ocupadas a pobreza aparece como o problema principal, na frente da violência e do desemprego. A
mesma pesquisa constatou que 26% dos entrevistados não estudam nem trabalham. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/rio/para-jovens-de-favelas-com-upp-pobreza-o-maior-inimigo-3298717
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demográfico. O próprio governador do estado do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, deixaria


isso claro, em outubro de 2007, com um discurso que reciclava velhas fantasias
malthusianas sob um verniz “progressista” e defendia o aborto como método para se
reduzir a “fábrica de marginais” nas favelas cariocas.31
Essa escalada de intervenções militares na segurança pública, na vida civil
urbana, demonstra, juntamente com a adesão de amplos segmentos da população à
violência, um estreitamento do horizonte de sociabilidade: a camada marginalizada
dessa população passa a ser controlada violentamente pelo uso da logística militar mais
avançada e, no limite, pode ser considerada eliminável.
As intervenções do Exército são a expressão mais clara da militarização social em
curso, que se prolonga no controle policial de parte do espaço urbano carioca e no
controle “informal” paramilitar. O processo de militarização, transitando entre o oficial
e o ilegal, é um laboratório de controle social que substitui as pretensões universalistas
da mediação jurídico-política, ela mesma ambivalente, pela legitimação do trato armado
com a parte “indesejável” da sociedade civil.

**

Bibliografia

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rel/2006/guerra_provid_rio_2006.pdf. Acesso em 15 de janeiro de 2012.

31 “Sou favorável ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Sou cristão, católico, mas
que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito
aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas,
Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é
uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. Não tem oferta da rede pública para que essas
meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só”. (“Cabral defende aborto contra
violência no Rio de Janeiro”, G1, 24 de outubro de 2007).
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Cidade Olímpica
Sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência
na cidade do Rio de Janeiro

Marcos Barreira

Nos últimos anos, sucessivas gestões municipais e estaduais têm se esforçado


para recuperar a imagem do Rio de Janeiro e superar a condição de cidade
desorganizada, violenta e empobrecida com a qual seus moradores convivem há pelo
menos duas décadas. A cidade já foi considerada por admiradores ingênuos ou
interessados um “paraíso tropical”, mas deixou de ser conhecida, no país e no mundo,
apenas pelas belas paisagens e pela autoatribuída “cordialidade”, ao ganhar os
noticiários em razão dos recorrentes episódios de violência. É a favela que concentra
todas as atenções quando o assunto é criminalidade. De forma geral, a imagem de
cidade violenta foi incorporada pela assim chamada “opinião pública” ao longo dos anos
1980, menos pelo aumento do número de crimes violentos, que já havia atingido
patamares bastante elevados desde o final da década anterior, do que por uma
percepção de “desgoverno” causada pelos crescentes conflitos armados envolvendo
quadrilhas de traficantes de drogas e policiais nos morros vizinhos às áreas mais
valorizadas da cidade.
Esse quadro possui uma história que não se coaduna com os diferentes
estereótipos acerca da favela e do crime. Em termos gerais, os fundamentos da
conjuntura atual remontam ao processo descontrolado e precário de urbanização
periférica, que, por sua vez, tem raízes em uma estrutura fundiária concentradora,
origem de nossa “questão urbana”. Na primeira metade do século XX, o
desenvolvimento da cidade do Rio foi comandado por uma atividade industrial
incipiente e pelo crescimento das funções político-administrativas reunidas em seu
território. Formou-se, assim, um conjunto de trabalhadores ligados às estruturas
produtivas e “terciárias”, com participação expressiva dos serviços públicos, ao lado de
outra grande massa, precarizada e informal, que ocupou aos poucos os espaços

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marginalizados da cidade. A modernização econômica local produziu uma estrutura


sócio-espacial fortemente segregada: por um lado, as classes populares deslocavam-se
em direção ao “subúrbio” carioca seguindo o traçado das linhas férreas, e, por outro,
ocupavam os morros das áreas mais próximas às ofertas de emprego, notadamente em
serviços subalternos que atendiam as demandas das camadas mais abastadas. O
processo de favelização, intensificado nos anos 1940 e 1950, gerou como resposta do
poder público, nas décadas seguintes, as políticas simultâneas de remoção e construção
de conjuntos habitacionais nas periferias, de modo que parte das áreas consideradas
“nobres” ficou resguardada da deterioração patrimonial. A tônica dessas políticas, que
promoveram o deslocamento forçado da população de baixa renda para locais sem
infraestrutura, distantes do centro e das ofertas de trabalho, foi o caráter “higienizador”
com o qual se pretendia varrer da paisagem a pobreza.1
Foi no final da década de 1970 que o Rio começou a sentir diretamente os efeitos
da crise que atingiu todo o país, encerrando o período modernizador das estruturas
econômicas e sociais. A partir de então, o padrão seguido foi um crescimento urbano
sem taxas correspondentes de aumento da oferta de emprego em um contexto de
esvaziamento econômico. O esgotamento da alternativa desenvolvimentista resultou em
outro surto de favelização. Na conjuntura “pós-milagre” de estagnação e endividamento
do Estado, a ausência de recursos conferiu legitimidade aos modestos programas de
melhorias das áreas marginalizadas.2 Na cidade do Rio, outra dinâmica que ocorreu em
paralelo ao reconhecimento, ao menos parcial, do direito das populações pobres de
ocupar áreas não regulares, foi o espalhamento da violência antes restrita aos espaços
da favela e das regiões periféricas. No início dos anos 1980, os crimes violentos
começaram a transbordar para o conjunto da cidade, disseminando-se com a expansão
do consumo de drogas. A entrada do Rio na rota do tráfico internacional de cocaína, o

1 Na década de 1960, no antigo Estado da Guanabara, era comum a prática dos incêndios criminosos em
favelas, entre outros métodos violentos, para promover a “limpeza” da cidade. Na mesma época, a
imprensa carioca denunciou a existência de uma operação “mata-mendigos”, durante o governo de
Carlos Lacerda, realizada pela “Seção de Repressão à mendicância”. É importante notar que a existência
da favela nunca foi um problema para o poder público quando eram localizadas fora das áreas nobres.
As grandes remoções ocorridas na cidade tiveram lugar nas favelas da Catacumba, Pasmado e Praia do
Pinto, na zona sul, e na Favela do Esqueleto, em Vila Isabel.
2 No primeiro governo Leonel Brizola, entre 1983-6, foi criado o programa “Cada Família um Lote”, que

pretendia promover a regularização fundiária em áreas favelizadas. Foi a primeira política com esse
caráter no Estado do Rio de Janeiro. No entanto, menos de 10% de um total previsto de 400 mil lotes
foram entregues.
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desemprego em larga escala e a ausência de alternativas para o problema das moradias


precárias convergiram para a construção das representações negativas do senso comum
a respeito da cidade. Tornou-se lugar-comum a ideia de que o Rio havia se tornado uma
cidade empobrecida e violenta. Não que os conflitos entre bandos armados e a
recorrente violência policial fossem desconhecidos, pois ambos faziam parte da vida
cotidiana das favelas, tradicionalmente abandonadas pelo Estado. Do mesmo modo,
muito antes da disseminação do tráfico de drogas, a Baixada Fluminense já havia
superado a marca de 2 mil homicídios em apenas um ano. A região era uma espécie de
“quintal” – e dormitório – ocupado pela população pobre que buscava os meios de
sobrevivência na capital. Tal como as numerosas favelas, ela não pertencia à cidade
“oficial” e o que lá ocorria não tinha muita repercussão entre os habitantes da capital.
Para os formadores da “opinião pública”, isto é, as principais empresas de mídia e o
establishment político e empresarial, a violência só se tornava visível na medida em que
os espaços mais abastados da classe média carioca eram, por assim dizer, “invadidos”.
Somente aí se constituiu a imagem de cidade violenta. Há muito tempo, porém, a
atuação do “Esquadrão da Morte”, formado por policiais com emblemas de caveiras, e
cujas origens datam dos anos 1950, já repercutia internacionalmente por causa de sua
brutalidade. Os grupos de extermínio atuaram de maneira regular nas periferias quase
como uma “instituição” no auge da repressão do Regime Militar, impondo um controle
violento à população local. Durante a crise, na virada para os anos 1980, o quadro social
e econômico da cidade do Rio era de abandono das populações periféricas e proliferação
da insegurança na capital. A ausência de crescimento econômico e a escassez crônica de
investimentos sociais, acompanhada de um déficit habitacional cada vez maior,
encontrou uma limitada compensação na pujança do novo mercado varejista de drogas,
que absorveu parte da população pobre “sobrante”, invariavelmente masculina e negra. 3
A consolidação das quadrilhas de traficantes nas favelas do Rio coincide, portanto, com

3 Essa população se renovou de modo constante, conforme a lógica de extermínio do “material humano”
envolvido nos conflitos entre quadrilhas rivais. No entanto, parte significativa do morticínio
contabilizado na cidade do Rio deve-se a execuções policiais transformadas pelas estatísticas oficiais em
“autos de resistência”, quando a polícia mata um opositor em legitima defesa. Essa prática teve
continuidade nas décadas seguintes. Entre os anos de 2000 e 2008, foram mais de 9 mil óbitos
registrados como “autos de resistência”. Em muitos casos, foram facilmente identificadas por laudos
técnicos as características de mortes por execução.
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o ápice de um processo de esvaziamento econômico que se originou, ainda nos anos


1960, em virtude da transferência da capital federal, com a perda de prestígio político e
de arrecadação. O fim do Estado da Guanabara, em 1975, tornou a nova capital do
Estado do Rio de Janeiro ainda mais carente de receitas. No início da década de 1980,
começou a repercutir na imprensa local e nacional uma imagem de “desordem” causada
pela onda de greves, saques a supermercados e proliferação de trabalhadores
ambulantes e “informais” de todo tipo. Em 1988, o então prefeito Saturnino Braga
anunciou a falência das contas públicas, adicionando à insegurança o efeito da
decadência econômica. A atividade turística na cidade sofreu uma queda durante esse
período, em decorrência direta da percepção do aumento da violência: entre 1988 e
1991, o número de estrangeiros que visitaram a cidade foi bruscamente reduzido – isso
num contexto de expansão internacional do turismo – caindo, conforme dados da
Embratur, de 800 mil para apenas 400 mil. Finalmente, as cenas do “arrastão” captadas
pelas câmeras de televisão – na realidade, uma briga de “galeras” freqüentadoras de
bailes funk – em uma praia da zona sul, em 1992, selaram a imagem negativa da cidade.
A partir daí, foi criada uma onda de pânico que agravou a mania de
criminalização da população social e economicamente marginalizada, que teve nas
chacinas de Vigário Geral e da Candelária, ambas em 1993, a sua face mais visível.
Ocorreu então uma mudança de orientação no tratamento da segurança pública, cujos
resultados práticos iam da proibição dos bailes funk – que, a essa altura, constituía o
principal lazer dos jovens de baixa renda – à reabilitação despudorada dos métodos
repressivos da ditadura militar, incluindo a legitimação política das ações oficiosas do
aparato policial. Tratava-se novamente de “ocupar as favelas para pôr fim à violência”. O
desdobramento dessa nova orientação da política de segurança é conhecido: a
“gratificação faroeste”, criada para recompensar os policiais que cometessem o maior
número de “assassinatos em nome da lei”4 – enquanto a estrutura criminosa
permanecia intacta –, como fonte de receita alternativa para muitos integrantes do
aparato de segurança.
Ao mesmo tempo em que os métodos repressivos eram legitimados, a corrupção
da instituição policial se transformava no alvo midiático principal. A cobertura da
imprensa da época colocou os holofotes sobre a ligação das polícias com o jogo do bicho

4 Verani, Sérgio. Assassinatos em nome da Lei, Rio de Janeiro: Ed. Aldebarã, 1996.
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e outras modalidades de crime e contravenção. O diagnóstico não era brando: a


instituição policial estava completamente “arruinada”.5 Ato contínuo, vieram à tona,
aclamados pelos mesmos formadores de opinião, os planos alternativos de intervenção
militar na esfera da segurança pública. A primeira experiência com esse tipo de
intervenção foi realizada pouco depois, durante a Conferência das Nações Unidas sobre
o Meio-Ambiente (ECO-92), seguida, em 1994, pela “Operação Rio” do Exército, após
um debate sobre a necessidade de o governo adotar posições mais “enérgicas” para
superar os problemas que em geral eram classificados como uma mistura de
inoperância política e corrupção policial. Em duas grandes operações, o exército ocupou
as vias de acesso de várias favelas e ajudou a criar uma sensação de segurança para
alguns segmentos da população. Obviamente, tais operações não produziram efeitos em
termos de inibição do tráfico de drogas e de armamentos pesados, mas consagraram um
tipo de ação que deu inicio ao contexto atual de militarização do espaço urbano.

A reestruturação urbana

Na primeira metade dos anos 1990, a desqualificação da “cidade maravilhosa”


consolidou-se finalmente no imaginário social do carioca e do restante dos brasileiros.
Como se viu, não era somente um caso de escassez de recursos ou perda de atratividade
para atividades econômicas. Na versão ideológica dominante sobre a crise, tratava-se,
além disso, de um problema de autoestima dos habitantes de uma metrópole que trocou
a condição de centralidade político-cultural pelos estigmas, reforçados diariamente, da
violência crônica e da decadência.
As políticas urbanas orientadas pelos ideais de renovação e de “superação” da
imagem negativa não tardaram. O começo foi aparentemente modesto, com a
recuperação de partes emblemáticas da paisagem local: do embelezamento da orla da
zona sul (Rio-Orla) às preocupações ecológicas e estéticas com limpeza, iluminação e
despoluição de praias turísticas. Eram medidas voltadas apenas para a valorização dos
cartões-postais da cidade, sem qualquer preocupação com os antigos problemas

5 “Não se tinha notícia de uma instituição que se houvesse corrompido de maneira tão avassaladora como
a Polícia Civil do Rio de Janeiro”. Na Polícia Militar, prossegue a reportagem, podemos encontrar
“batalhões inteiros comandados pelas propinas”. Uma polícia arruinada. Veja, 13 de abril de 1994, pp.
16-7.
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estruturais de déficit habitacional ou com a falência dos sistemas públicos de


reprodução social, sem contar a crescente falta de empregos. Por isso, tais intervenções,
que pretendiam “virar a página” e encerrar um triste capítulo da história da cidade,
dependiam, para sua realização, do incremento das políticas pragmáticas de
urbanização do período anterior.6 Esse tipo de “recuperação da paisagem” foi concebido,
antes de tudo, para servir ao consumo das camadas médias e ao setor turístico, mesmo
que as tensões geradas no contexto de desigualdade que caracteriza nossa metrópole
representem fatores de repulsa para esse tipo de atividade.7 A continuidade das políticas
pragmáticas ficou por conta do programa Favela-Bairro, que, no entanto, foi
apresentado pela administração municipal como uma intervenção pioneira e inovadora.
É evidente que esse modo de lidar com a questão da moradia podia ser considerado um
desdobramento das políticas habitacionais dos anos 1980, pois ele não se dava mais em
termos de remoções ou de programas habitacionais. Os verdadeiros pontos de inflexão,
em termos de políticas públicas, situavam-se em outro lugar, isto é, no novo
enquadramento das questões que envolviam a violência e a pobreza, tal como a
tendência à militarização da segurança e o abandono dos projetos abrangentes de
escolarização integral. Estes foram pensados, ainda no campo ideológico do
“desenvolvimentismo”, como base para um modelo econômico inclusivo, do qual os
governos da época começavam a se desobrigar para concentrar suas ações na
administração repressiva da crise econômica e social.
A ênfase na idéia de recuperação da cidade após um período relativamente longo
de deterioração ocorreu em uma conjuntura marcada por mudanças de paradigma. No
plano internacional, o início dos anos 1990 caracterizou-se por uma maior integração
econômica dos mercados, que trouxe com ela a “agenda” da economia de serviços, o
desenvolvimento vertiginoso das comunicações e a incorporação das atividades
culturais ao consumo. No que diz respeito à economia brasileira, tratava-se, de acordo
com os diagnósticos da época, de resolver o problema da inadequação da estrutura

6 Cf. Maurílio Lima Botelho, Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos
pobres. Edição do autor, não publicado.
7 Não obstante, as desigualdades em si mesmas não representam empecilho ao turismo. À medida que

várias favelas eram reconhecidas pelo poder público, iniciou-se também um processo de estetização das
paisagens de pobreza, que passaram a ser vistas como parte dos atrativos “exóticos” da cidade. Na favela
da Rocinha, pioneira na modalidade “favela tour”, essa atividade existe pelo menos desde meados dos
anos 1990.
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econômica do país à realidade da economia internacional. No plano político, uma


transição de grandes dimensões teve como pano de fundo o enfraquecimento dos
modelos de planejamento associados ao passado. Consolidou-se, então, um arranjo
original entre burocracia estatal e gestão empresarial, que vem sendo chamado de
“parceria público-privada”. Tornou-se cada vez maior o peso das estratégias de mercado
na condução da política e na administração do espaço urbano, o que só acompanha a
tendência geral à mercantilização da reprodução social. Nas últimas décadas, o Estado
vem perdendo funções diretamente reguladoras para se concentrar no estímulo às
iniciativas empresarias. Ao invés de demandas públicas, negócios lucrativos. Na gestão
de grandes cidades a situação é idêntica, pois ao adotarem posturas “empreendedoras”,
as administrações locais perdem a capacidade de controlar fluxos financeiros e passam a
atuar, muito limitadamente, como “facilitadores” e “coordenadores” de ações privadas.
Uma nova problemática urbana surge a partir do conjunto de mudanças aqui indicado:
o período de consolidação da globalização econômica corresponde a um tipo de
“empresariamento urbano” que, entre outros aspectos, assume a forma de competição
entre cidades, na qual cada uma delas pretende se tornar mais atrativa aos
investimentos internacionalizados de eventuais “parceiros privados”. 8
Esse quadro de “estratégias globais” de mercado adotadas mundo afora por
muitas das grandes cidades foi acompanhado por transformações técnico-científicas que
consolidaram alterações importantes nas suas estruturas produtivas. Algumas se
desindustrializaram e, com maior ou menor êxito, voltaram-se para a economia dos
serviços e do turismo. O Rio de Janeiro, no entanto, apresenta peculiaridades que não se
encaixam no padrão da cidade desindustrializada que busca um lugar na rota dos fluxos
globais com base no setor terciário avançado. Em primeiro lugar, no Rio, os novos
empreendimentos são mais uma tentativa de resgate de uma “vocação” perdida do que o
sucedâneo a instalações industriais corroídas pelas mudanças econômicas e tecnológicas
dos anos 1970. Além disso, o amplo setor de serviços firmado há décadas na cidade
conta apenas com um pequeno segmento “avançado”, enquanto todo o resto pertence a

8 DavidHarvey analisou as modificações da lógica da governança urbana no que ele classifica como a fase
“tardia” do capitalismo. Para Harvey, a principal conseqüência da disputa interurbana é a necessidade
de cada cidade se apresentar, sob pena de perder a concorrência, como um território viável em termos
de custos, incentivos e adequação às exigências dos “novos mercados”. Ver David Harvey, “Do
administrativismo ao empreendedorismo: a transformação da governança urbana no capitalismo
tardio”, in:__. A produção capitalista do espaço. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2006.
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uma enraizada cultura de sobrevivência na informalidade e na precarização das


relações. Por isso mesmo, as intervenções urbanas levadas a cabo a partir da nova
conjuntura global foram conjugadas ao tema da “ordem urbana”, resgatado como
primeiro passo para a modernização da cidade. Aqui, bem entendido, “modernizar”
significa uma adaptação forçada das condições de reprodução social à dinâmica
econômica internacional. A administração do prefeito César Maia, na primeira metade
dos anos 1990, perseguiu esse modelo e adotou um “Plano Estratégico” com visão
empreendedora para orientar as políticas urbanas no novo cenário. Assim, ganhou força
a ideia de uma cidade voltada para as últimas tendências do mercado global, isto é, para
novas formas de gestão do patrimônio (“parcerias” com o setor privado, sistemas de
metas e utilização de recursos públicos no circuito financeiro) e para uma ampla
renovação dos setores de serviços e informação. O objetivo declarado era posicionar a
cidade em um patamar internacional. Barcelona, cidade catalã que havia sofrido com a
crise iniciada nas décadas anteriores, tornou-se o grande exemplo de renovação. Esta
cidade, diziam os ideólogos do urbanismo competitivo, foi capaz de encontrar um
caminho auspicioso, transformando a condição momentânea de sede dos Jogos
Olímpicos de 1992 em uma “oportunidade” para os negócios. Levando-se em conta
apenas a rentabilidade do capital imobiliário e a florescente economia do turismo, ela
foi um sucesso – ainda que muito breve. Com base nesse exemplo, especialistas da
cidade catalã assessoraram a prefeitura do Rio na elaboração do seu próprio plano e, já
em 1993, organizou-se o seminário “Rio-Barcelona: estratégias urbanas”. Em seguida, o
“modelo Barcelona” ganhou corpo no projeto olímpico “Rio-2004”.
Essa nova orientação foi idealizada para intervir de acordo com a situação de
urgência dos problemas urbanos. O plano de ação partia de um modelo que, além do
mais, parecia capaz de resgatar a imagem positiva da cidade. No entanto, não estava
isento de contradições. Em meio à viragem “modernizadora”, César Maia lançou mão de
uma retórica ambivalente voltada para a “sociedade de carteira assinada”, que se fez
acompanhar de campanhas contra os excessos da economia informal e das
“alternativas” usadas pelas populações de baixa renda (ver, por exemplo, a criação de
uma Guarda Municipal). Na perspectiva conservadora dos administradores da cidade,
as estratégias de sobrevivência e a criminalidade misturavam-se em um quadro de
desordem urbana que deveria ser controlado. O aspecto contraditório dessa política
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

tornou-se visível pelo fato de o governo, por um lado, insistir em “impor a ordem”, e,
por outro, adotar de forma discriminatória a flexibilização das legislações para
contemplar interesses corporativos e promover a adaptação da cidade aos “novos
tempos”. As intervenções orientadas pelo espírito empreendedor possuem enorme
maleabilidade e presteza quando o que está em questão são os negócios de grandes
empresas, mas caracterizam-se pela indiferença em relação aos despossuídos que
dependem de pequenas atividades autônomas. Por isso, o “sucesso” apenas é relativo:
tais intervenções produzem uma série de situações favoráveis para os segmentos
integrados e “rentáveis” da população, mas encontram-se muito distantes dos
programas sociais abrangentes. No caso do Rio, a ambivalência dessa dinâmica consiste
em desregulamentar tudo que cria obstáculo ao lucro dos grupos privados e dificultar as
estratégias de sobrevivência dos pobres, formalizando a precarização da miséria. Daí
uma nova ambiguidade, pois a formalização desejada não significa somente impor
regulamentos e outros empecilhos às atividades informais. Com ela, tais “alternativas”,
antes identificadas pelos poderes públicos como problemas, passam a ser reconhecidas
– de modo tácito ou não – como antídotos contra a incapacidade de absorção da
economia formal, isto é, tornam-se uma compensação para o fato de que a “sociedade de
carteira assinada” não pode abranger o conjunto da população. Na época em que esse
urbanismo com tendência financeiro-corporativa ganhava força no plano local, o
presidente recém-eleito, F. H. Cardoso, cujo governo se esforçava para colocar o Brasil
nesse mesmo rumo de abertura aos mercados mediante a precarização da regulação
social, foi obrigado a reconhecer – em uma palestra no exterior (!) – que o processo de
globalização simplesmente não funcionava para todos e o desemprego e a exclusão
social só tendiam a aumentar com a integração das economias nacionais periféricas no
espaço funcional do mercado mundial.
O “Plano Estratégico”, no entanto, não era sensível a esse tipo de preocupação.
Passando da observação dos sintomas de decadência à terapêutica, adotou justamente
os princípios do lucro e da competitividade (a fim de explorar “as vantagens da cidade”)
e as formas “inovadoras” de administração e execução. Mesmo as intervenções pontuais
em áreas carentes passaram a ser encaradas como estímulo ao “empreendedorismo
popular”. É claro que o novo princípio de intervenção não poderia deixar de fazer a
crítica das antigas visões totalizantes – tais como aquelas que, por má-consciência
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sociológica ou simples desfaçatez, ainda conseguiam identificar problemas de natureza


estrutural. Da parte do Estado, cumpria simplesmente reconhecer a falência das visões
“gerais” e “abstratas” derivadas dos métodos tradicionais de planejamento urbano e
concentrar as ações, sem rupturas drásticas, em objetivos imediatos ou de menor escala.
Tais ações passaram a visar em especial as áreas com alto potencial de valorização e os
lugares importantes para a estruturação da “identidade” da cidade.
A vocação do Rio, de acordo com os autores do “Plano Estratégico”, é a “cultura e
a alegria de viver”. Para realizá-la seria necessário dar à cidade um aspecto acolhedor e
cosmopolita. Juntamente com a “visão estratégica”, cresceu em importância o city
marketing, cuja função é fazer com que a imagem da cidade seja remodelada
cenograficamente e promovida no exterior, além de criar, entre os seus habitantes, um
estado de espírito compatível com as expectativas de mercado. Portanto, a ideia de
renovação urbana traz consigo o ideal estetizador e pressupõe um conjunto de
operações para produzir efeitos simbólicos que contribuem para a afluência de
consumidores e investimentos. Essa busca de visibilidade repleta de idealizações
condicionadas pelo ethos dos agentes econômicos de vanguarda dos novos mercados
corresponde ao reforço do papel dos grandes centros urbanos na economia mundial.
Afinadas com a tendência que confere às grandes cidades um papel de centralidade
financeira, comercial e cultural, as últimas administrações municipais têm se esforçado
para mostrar o Rio como a “marca registrada do Brasil”, lugar de beleza, criatividade e
alegria, no qual a paz finalmente tornou-se um “sonho possível”, praticamente
alcançado. A essa altura, estamos muito distantes das visões nuviosas do passado. A
“cidade empreendedora” só existe em função das imagens com as quais ela deve se
confundir. Um olhar retrospectivo mostra que o programa Rio-Cidade, desenvolvido ao
longo dos anos 1990, já ensaiava uma síntese entre a orientação pragmática,
supostamente pós-ideológica, e a estetização do espaço urbano. Pretendia-se, dentro do
espírito do “Plano Estratégico”, transformar o modo como a cidade é percebida pelos
seus habitantes a partir da remodelação visual de lugares específicos. Esse programa
continua vivo na tentativa de recuperação de áreas que sofreram com o abandono ou a
desvalorização desde o início da crise. O projeto “Porto Maravilha”, criado pela
prefeitura do Rio em 2009, é ilustrativo: como parte integrante do empreendimento
olímpico, ele segue o modelo internacional consagrado, que se baseia na reestruturação
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homogeneizadora de áreas centrais degradadas – ainda tomando Barcelona como o


exemplo, pois foi ela a cidade que capitalizou melhor as mudanças urbanísticas, e
converteu-as em “marca registrada”. De acordo com tal modelo, as áreas centrais devem
ser investidas de novas funções, após um longo período em que foram preteridas pelas
áreas de expansão urbana. Assim, a zona portuária do Rio deverá se tornar a nova porta
de entrada da cidade e um centro de atividades culturais. Em última análise, o que está
em jogo na substituição dos galpões e ferros-velhos industriais por grandes museus,
ateliês, espaços de consumo, edifícios comerciais e modernos sistemas de transportes é
a capacidade da refuncionalização de modificar o modo como os lugares são
representados coletivamente, tendo em vista os fins da valorização imobiliária. Os
bairros que compõem a nova área ocupada pela vanguarda cultural, essa “tropa de
choque da elitização”, como diz Neil Smith9, sofrerão profundas modificações e se
transformarão em núcleos turísticos culturais com maior adensamento e com moradias
de padrão mais elevado que o atual. Como palco das maiores intervenções, a zona
portuária está prestes a se tornar a mais recente vitrine de um modelo empreendedor
que embeleza lugares degradados, expulsa a população de baixa renda e entrega os
serviços básicos à administração privada em regimes de concessão.
A estratégia de utilização dos grandes eventos esportivos para a “reversão da
crise” possui uma lógica bem peculiar. Se, por um lado, ela aposta nos eventos para
aumentar a visibilidade da cidade no exterior e mudar a representação negativa
dominante, por outro, como observa Harvey, faz com que “a venda da cidade” dependa
de uma “imagem urbana atraente”.10 A nova imagem é tanto uma condição quanto o
resultado a ser alcançado. Por trás da argumentação circular está o fato de que os
megaeventos aceleram a aplicação de capitais, aumentam o preço dos imóveis e
permitem “flexibilizar”, em regime de urgência, e em benefício dos agentes privados de
sempre, obstáculos regulatórios no âmbito da legislação urbanística. O que resta, para
além da apropriação privada, é a ideia de “legado”, principal argumento do discurso dos
defensores do “novo urbanismo”. De modo geral, essa palavra se traduz em vantagens
para agentes econômicos específicos, como a indústria do turismo, ou resulta na
valorização de áreas centrais ou de expansão urbana. No caso dos anéis viários e

9 Neil Smith, “Nuevo globalismo, nuevo urbanismo”. In: Doc. Anàl. Geogr. 38, 2001. pp. 15-32.
10 “Do administrativismo ao empreendedorismo”, cit.
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corredores expressos em fase de construção no Rio, o efeito é uma reconfiguração dos


padrões de circulação que leva em conta, antes de tudo, as demandas da especulação
imobiliária por novas frentes de expansão e a logística dos próprios eventos. E já não
cabe ao Estado estabelecer as prioridades e marcos legais, mas apenas disponibilizar
recursos para a criação dos contextos de “conveniência comercial” ditados pelo
mercado; de fato, as cidades que pretendem se tornar sede desse tipo de evento
precisam se submeter não só à dinâmica anônima da concorrência, que segue como
ultima ratio das políticas urbanas, mas também às condições impostas pelas entidades
responsáveis. Nos Jogos Olímpicos, o principal instrumento de organização é o COI
(Comitê Olímpico Internacional), uma entidade não-governamental cujas atividades
dependem não apenas da publicidade ou da exclusividade sobre a marca comercial e os
direitos de difusão de imagens, mas igualmente de contratos com parceiros privados,
mediados pelo Estado, ou seja, com base em dinheiro público. Apesar disso, quem
impõe as condições para a viabilização das obras é o próprio COI, cuja relação com os
governos se dá, em vários aspectos, sob um regime legal de exceção. No caso da Copa do
Mundo de Futebol, é a Federação Internacional de Futebol (FIFA) que dita as normas
para a realização dos eventos. O conjunto de regras vai desde a acomodação do público
– criando exigências para excluir uma série de estádios prontos e forçando a construção,
extremamente rentável para os atores privados envolvidos, de “arenas” hiper-modernas
– até a proibição de venda de determinadas marcas no entorno dos estádios. O mais
significativo, contudo, é a imposição de isenção fiscal para a entidade e empresas
parceiras, a suspensão de direitos do consumidor e a liberação de vistos de entrada no
país para qualquer um que demonstre vínculos com o evento (por exemplo, ter
comprado ingresso para um jogo da Copa). A Lei Geral da Copa torna o país-sede um
verdadeiro paraíso fiscal momentâneo. Ocorre assim um grande acordo autoritário de
gestão entre agentes políticos e todo o conjunto de organizadores, patrocinadores,
empreiteiros e empresas prestadoras de serviços para transformar a cidade em um
lucrativo “canteiro de obras”.
No Rio, mas também em cidades que vivenciam de forma menos intensa esse tipo
de reestruturação, o abandono de prioridades por parte dos governos, nos seus vários
níveis, não deixa de ser sentido pela população, mas esse tipo de incongruência tende a
perder visibilidade quando ignorada pelo otimismo político oficial e pela insensibilidade
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interessada das empresas de mídia. Mais do que isso, o projeto olímpico, apresentado
como uma espécie de “sonho coletivo”, dissemina-se a ponto de produzir uma imagem
positiva unificadora. Trata-se de uma fórmula eficaz para a criação de consensos em
torno dessa pretensa vocação da cidade.
Quanto aos meios de realização, vende-se a ideia de que é mais “racional”, ou
seja, mais lucrativo, priorizar obras que drenem grandes quantidades de recursos do
Estado do que utilizar os mesmos recursos na ampliação e manutenção de serviços
básicos indispensáveis a uma população que não pode pagar planos de saúde ou escolas
privadas e que continua sem acesso à infraestrutura urbana. Outra parte dos recursos é
gasta diretamente ou sob a forma de isenção de impostos, tendo como base a lógica da
especulação, especialmente na construção civil e nos serviços ligados ao consumo
turístico. Uma vez apropriados pelas empresas, tais “investimentos” retornam, se tanto,
como meros “efeitos colaterais” para uma população que continua amoldada à condição
de prestadora de serviços baratos, sem qualquer perspectiva de inclusão real nos
processos econômicos. Finalmente, com o definhamento dos sistemas de saúde e
educação, consolida-se uma inversão de objetivos nas políticas de governo, que
abandonam tanto os princípios inclusivos quanto os “meios de consumo coletivo”,
típicos do momento ascendente da modernização econômica, e começam a girar em
torno da competitividade e do consumo individual. A cidade precisa então correr contra
o tempo, e contra as cidades “rivais”, para se adequar, sem segurança jurídica, às
exigências e custos elevados dos padrões internacionais. Nesse contexto, qualquer tipo
de oposição à racionalidade econômica subjacente aos jogos, que é mimetizada por
sujeitos igualmente submetidos, em sua vida diária, à dinâmica da concorrência
generalizada, ganha ares de campanha “contra a cidade”.11
No entanto, resta um problema capaz de atrapalhar este sonho artificialmente
induzido, e que ultrapassa as questões de logística e infraestrutura: a “violência urbana”.
Nenhuma exploração comercial de eventos ou da imagem da cidade seria possível sem

11Pode-sediscordar de algum detalhe ou denunciar algum “desvio”, mas o conjunto do projeto de


renovação urbana por meio do empreendedorismo e do projeto olímpico conta com aprovação quase
unânime. Essa imagem positiva contrasta com a situação de outras cidades, nas quais surgiram
movimentos de protesto contra os jogos, todos ignorados pelos nossos meios de comunicação de grande
audiência. Em Chicago e Tóquio, concorrentes diretas do Rio, a rejeição às candidaturas chegava aos
50%. Somente em Madri, devido ao “efeito Barcelona”, havia altos índices de aprovação. Em Chicago,
por outro lado, o movimento “No Games” lembrava exemplos de cidades financeiramente arruinadas
por causa dos jogos. Atenas, sede das Olimpíadas em 2004, nos oferece o exemplo mais recente.
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garantias do governo local quanto à “manutenção da ordem”. No caso do Rio, a


“segurança” aparece como o principal problema assinalado pelo COI, que exige dos
governos uma solução imediata para que a realização dos eventos ocorra sem prejuízo à
marca olímpica.

A reestruturação da lógica criminal

A presença de grupos armados com domínio sobre o território, incluindo favelas


próximas ou no interior de áreas valorizadas da cidade, é um pesadelo permanente para
o conjunto da população carioca e revela uma dimensão estrutural da ordem instituída.
Mas é também um problema que demanda ações de urgência para quem pretende ao
mesmo tempo criar uma ambiência favorável aos negócios e mascarar os efeitos da crise
econômica e social. Sem uma articulação entre a reestruturação urbana e a iniciativa de
diminuição seletiva da letalidade dos conflitos, qualquer tentativa de conferir à cidade
do Rio uma imagem positiva e potencialmente lucrativa seria muito pouco factível. O
primeiro passo dessa articulação é a “pacificação” das favelas. Por isso, com o avanço do
projeto olímpico, a retórica belicista do primeiro ano do atual governo estadual saiu de
cena. Era necessário mudar a estratégia de segurança, no sentido da retomada do
controle de determinadas áreas para mostrar ao mundo que a autoridade estatal se faz
presente em toda a cidade. O objetivo do programa das Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs), iniciado em dezembro de 2008, assim como as intervenções militares
anteriores, é diminuir o sentimento geral de insegurança. Em um primeiro momento,
“pacificar” a cidade significa apenas acabar com a visibilidade da violência do tráfico de
drogas e eliminar os conflitos armados em áreas de alta renda que concentram atrativos
para os consumidores vindos de fora. A política de “pacificação” ganhou impulso
quando, em outubro de 2009, apenas duas semanas após o festejado anúncio da vitória
do Rio como sede das Olimpíadas, imagens de um helicóptero da Polícia Militar
derrubado durante um conflito correram o mundo, indicando que a cidade estava longe
de vencer a chamada “guerra contra o tráfico”. Desde então, um dos objetivos
declarados da política de segurança estadual é estabelecer um “cinturão de segurança”
para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
Existem unidades “pacificadoras” em quase todas as regiões do município – mas
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elas estão muito desigualmente distribuídas. Além disso, dados do Núcleo de Estudos
das Violências (Nupevi) mostram que as UPPs estão presentes em menos de 3% das
favelas da cidade, enquanto as milícias e o tráfico dividem entre si a maior parte delas
(respectivamente, 41,5 e 56%). Levando em conta as populações residentes, o percentual
correspondente às áreas que contam com unidades de policiamento permanente se
eleva de modo considerável, mais ainda assim continua pouco abrangente se
considerarmos a amplitude da favelização. Repetindo o padrão recente de intervenção
urbanística, as operações de “pacificação” não seguem uma visão totalizadora:
restringem-se a pontos estratégicos, ligados de maneira direta ou indireta aos locais
economicamente mais valorizados ou à funcionalidade dos grandes eventos.
Essencialmente, as UPPs promovem uma ocupação territorial que secundariza a
tradicional lógica policial e midiática dos enfrentamentos armados. Por esse motivo, as
ocupações atuais têm seguido um padrão diferenciado que resulta em poucas mortes e
prisões. Foi assim que, ao longo dos dois últimos anos, algumas “fortalezas” do tráfico
foram desmanteladas e os integrantes das facções criminosas, que se digladiavam pelos
pontos de venda e confrontavam o aparato policial, foram obrigados a se deslocar para
outros lugares. Muitas abordagens consideram o avanço da “pacificação” parte de uma
política de segurança pública convencional, dotada de uma lógica própria, tal como as
políticas de governos anteriores. No entanto, uma análise da distribuição espacial das
intervenções “pacificadoras” torna visível a natureza instrumental dessa concepção de
enfrentamento da criminalidade violenta e sua estreita relação com o plano de
segurança para os megaeventos catalisadores do novo urbanismo. Esse novo tipo de
intervenção não se limita, é claro, a uma ação temporária. Ele se articula à expansão do
sistema de vigilância estatal sobre as “comunidades” com base no policiamento
permanente e nos programas sociais de administração da pobreza, além de estimular
processos de valorização imobiliária nas áreas abrangidas pelas UPPs. Em um primeiro
momento, de forma apenas experimental, as ocupações se limitaram às pequenas
favelas da zona sul. Em seguida, as UPPs chegaram à Cidade de Deus, considerada
estratégica por dar acesso à Barra da Tijuca, bairro que lidera o ranking dos altos
investimentos imobiliários. Em janeiro de 2010, algumas dessas experiências pioneiras,
nos morros Santa Marta e Cantagalo, receberam “visitas” de representantes do COI. Em
abril do mesmo ano, a UPP chegou ao Centro e, pouco depois, começaram as ocupações
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na Tijuca e no entorno do estádio do Maracanã. Em 20 de junho de 2011, o jornal O


Globo estampou na primeira página: “Com Mangueira ocupada, só falta Maré para a
Copa”. A ocupação da favela da Mangueira, diz o jornal, “fecha o cinturão em torno do
Maracanã”. O próximo desafio, acrescenta a reportagem, é o complexo de favelas da
Maré, caminho obrigatório para quem desembarca no aeroporto internacional. Do
mesmo modo, a cobertura da imprensa internacional não deixou de identificar as ações
espetaculares que mobilizaram grandes contingentes da polícia e das Forças Armadas
como um momento da “preparação” da cidade para receber turistas e investimentos.
As favelas da Rocinha e do Vidigal, alvos mais recentes da “pacificação”,
consolidaram a ocupação das favelas das áreas privilegiadas da cidade. Duas exceções
confirmam a regra, pois não se encaixam no critério que prioriza as áreas de
concentração dos eventos e atrativos turísticos: a favela do Batan, em Realengo, e o
Complexo do Alemão. A primeira constitui não apenas um caso particular em função da
sua localização, mas também pelo fato de ser a única favela “pacificada” anteriormente
dominada por milicianos. O Complexo do Alemão, por sua vez, foi ocupado pelo
Exército e não por unidades pacificadoras. Nos dois exemplos, foram fatores
imprevistos que forçaram a ação do Estado.12
O que é, afinal, o processo de “pacificação”? Dada sua distribuição espacial e a
sua relação com outros processos, ele tem se revelado, para além da simples contenção
dos conflitos, um meio de consolidar a concepção de cidade que administradores
públicos e “promotores de vendas” desenvolveram ao longo das duas últimas décadas;
mas a “pacificação” é, sobretudo, um elemento decisivo na esperada mudança da
imagem da cidade. Desse modo, ela se associa à criação dos cenários atrativos
requeridos pelo urbanismo competitivo. Outro aspecto da “pacificação” é o seu caráter
economicamente superior em relação à lógica do conflito aberto, que produziu uma
infrutífera guerra entre a polícia e os gerenciadores do comércio de drogas. Nas
experiências passadas, as incursões violentas do aparato policial não resultaram em
nada além de estímulo à corrupção policial, hoje endêmica, e aceitação tácita da
eliminação de parcelas da juventude pobre como política de Estado – o Brasil, diga-se

12 Sobre
a ocupação do conjunto de favelas do Complexo do Alemão, ver Marcos Barreira e Maurílio Lima
Botelho, “O Exército nas ruas: da Operação Rio à Ocupação no Complexo do Alemão. Notas para uma
reconstituição da exceção urbana”, nesta edição da Sinal de Menos.
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de passagem, sempre foi alvo das campanhas internacionais de direitos humanos, o que
contribuiu para a formação de uma imagem negativa do país no exterior. Além disso, ao
restringir a ação do Estado nas favelas à truculência da repressão policial, as contínuas
políticas de segurança não conseguiram evitar que áreas “nobres” se convertessem em
territórios de conflito. As operações “pacificadoras”, ao contrário, seguem uma nova
lógica de coexistência, pelo menos no que diz respeito aos espaços economicamente
privilegiados e à legitimação das políticas de Estado.
Por outro lado, o processo de “pacificação” parece ter um pressuposto que não
depende desse tipo de ação estatal. O relativo sucesso alcançado, em âmbitos locais,
com a implementação das UPPs talvez possa ser considerado o resultado de uma
importante reestruturação das formas de operação do crime. 13 Alguns fatores parecem
contribuir diretamente para isso: primeiro, os custos cada vez maiores com armamentos
pesados exigidos pela guerra entre facções ou pela concorrência com grupos milicianos;
em segundo lugar, a concorrência de novas drogas sintéticas que chegam aos
consumidores de alta renda sem passar pelas favelas; e por último, as altas quantias
pagas aos policiais, o popular “arrego”, que consomem parte significativa dos lucros
obtidos com a venda das drogas. Todos esses elementos teriam diminuído a viabilidade
econômica do comércio varejista de drogas e, em última análise, minado o poder dos
operadores. Corroborando essa análise, um estudo voltado para o padrão de renda dos
empregados do tráfico detectou, em meados da década anterior, uma forte queda nos
rendimentos da rede criminosa.14 É óbvio que, com as UPPs, a situação se agrava e a
guerra por territórios periféricos se intensifica.
A crise torna os “comandos” da droga mais fragmentados, irracionais e
autodestrutivos. Eles deixam de representar uma alternativa econômica, mesmo
perigosa e ilegal, e tendem a se tornar núcleos de pura violência. Os diferentes
“comandos” funcionam antes como pobres sucedâneos de identidades coletivas para
indivíduos considerados supérfluos pela concorrência econômica. Para o jovem soldado
do tráfico, a facção já não é um meio de vida ou uma opção racional, mas algo muito

13 Essa a hipótese de Luiz Eduardo Soares; para ele, “o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma
realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua
incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico”.
Cf. A crise no Rio e o pastiche midiático. Disponível em: http://luizeduardosoares.blogspot.com/
14 Cf. Caminhadas de crianças, adolescentes e jovens na rede do tráfico de drogas no varejo do Rio de

Janeiro, 2004-2006. Coordenação de Jailson de Souza e Silva. Rio de Janeiro, novembro de 2006.
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mais imediato e relativo ao seu status dentro da favela.15 Quando o sentimento de


pertencimento comunitário se transfere para a facção, os vínculos com os locais de
origem são eliminados. Essa nova condição de pertencimento, que envolve a
demonização das facções rivais, se torna mais importante que a própria segurança do
“soldado” do tráfico. Nem mesmo os chefes locais possuem esperança de sucesso
duradouro. Não por acaso, surgem nas formas de expressão dos jovens das favelas
analogias com o “homem bomba” dos noticiários internacionais, e o mesmo vazio de
perspectivas se faz presente nas letras do funk proibido: “quantos amigos eu vi ir morar
com Deus no céu, sem tempo de se despedir, mas fazendo o seu papel”. As finalidades
econômicas são relegadas em nome de uma fidelidade ao grupo impregnada de chavões
religiosos: “O dono do ouro e da prata é Jesus, e ninguém leva nada da terra, o salário
do pecado é a morte, morrer como homem é o prêmio da guerra”. Do outro lado dessa
relação, o dos consumidores das drogas ilícitas, verifica-se uma mudança igualmente
reveladora, à medida que a crise avança: a expansão do uso do crack, droga barata e
destrutiva, cuja venda não gerava lucros comparáveis aos da cocaína, criou um mercado
recente, voltado não para os consumidores de alta renda, mas primordialmente para
moradores das próprias favelas.
O Rio continua a ser (com ou sem “pacificação”) uma cidade profundamente
marcada pelo “apartheid social”. Os números, sempre atenuados, indicam que um alto
percentual da população sobrevive em situações degradantes, sem emprego e condições
mínimas de moradia e infraestrutura. O vasto território de pobreza presente na cidade
foi dividido em áreas de influência de facções e os conflitos, com altos índices de
mortalidade para essa parcela da população, há muito se tornaram parte da vida diária.
As UPPs não se integram a um plano de políticas abrangentes com respostas para essa

15 Entre os fatores atrativos representados pelo tráfico conta menos a “escolha voluntária” por um tipo de
ascensão social do que a escassez de opções com a qual se deparam as crianças e menores nas favelas. O
apelo da estrutura organizacional do tráfico sobre elas é, portanto, um produto da ausência de
alternativas econômicas racionais, alimentada por sistemas de lealdades e por uma subcultura de
facções “que promove e glorifica abertamente os traficantes (...) vistos como heróis poderosos que
desafiam a polícia tão temida e que se recusam a sofrer a pobreza comum aos demais residentes das
favelas”. As “dificuldades” da adesão à violência armada organizada caracterizadas pelos altos índices de
letalidade e encarceramento são parcialmente compensadas, no imaginário desses jovens, pela
possibilidade de “tornar-se importante”, ter acesso imediato aos bens de consumo e até mesmo o fato de
compartilhar momentaneamente com o seu grupo um “estilo de vida agitado” Cf. Crianças combatentes
em violência armada organizada: um estudo de crianças e adolescentes envolvidos nas disputas
territoriais das facções de drogas no Rio de Janeiro. Luke Dowdney ISER/Viva Rio, 2002. pp. 102-4.

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situação. O alcance dos projetos sociais vinculados a elas é limitado, quase fantasioso se
levadas em consideração as verdadeiras dimensões das carências sociais. Além disso, o
tipo de intervenção realizado para a consolidação das unidades permanentes de
policiamento não funciona – e não pode funcionar – como modelo para o conjunto da
cidade: há mais de mil favelas espalhadas pela capital fluminense, sem contar as que se
estendem para além dos limites municipais, em cidades conurbadas, para as quais seria
necessário um contingente policial cuja manutenção atingiria custos incompatíveis com
os orçamentos estatais. Também não se pode imaginar um Estado capaz de controlar de
maneira formal e eficaz a ocupação do espaço urbano por um aparato policial dilatado,
que muito rapidamente reforçaria sua capacidade de operar por conta própria. 16
Em todo caso, a questão da abrangência dessa política continua em aberto. De
acordo com a Coordenadoria de Polícia Pacificadora, criada em janeiro de 2011, teremos
mais 22 UPPs até 2014 (num total de 40), e 160 favelas serão ocupadas por um
contingente de 13 mil policiais militares até 2016. O modelo de segurança das UPPs
revelou-se eficiente quando o que estava em jogo era a diminuição do poder das
quadrilhas armadas, possivelmente já fragilizadas pela “concorrência”. A quebra do
poder territorial do tráfico e a retirada de seus agentes do campo de visão faz com que,
na perspectiva do poder público, o principal resultado das UPPs seja a diminuição
imediata da margem de “descontrole social” em áreas consideradas estratégicas. 17 Mas
daí advém outra consequência que parece fazer parte de um objetivo não declarado: a
“pacificação” força, pelo menos inicialmente, a migração do tráfico para áreas

16 A hipertrofia do aparelho repressivo já começa a ser patente. No processo de “pacificação”, o poder


policial-militar recebe novas atribuições. Agora, é a Polícia Militar que se responsabiliza pelo acesso da
população aos serviços do Estado. A instituição policial deixa de se afirmar como uma garantidora das
condições gerais de segurança e assume a função de agente ou veículo da “cidadania”. Se no passado as
áreas carentes da cidade eram abandonadas pelo Estado, que intervinha apenas via aparato policial,
agora é através desse mesmo aparato que o Estado tenta se fazer presente em suas outras funções. Essa
mediação significa, é claro, uma ampliação da área de atuação dos serviços públicos, mas indica
igualmente uma mudança na natureza dessa intervenção, que se torna indissociável da vigilância e da
coerção permanentes. Por outro lado, fica cada vez mais difícil controlar o “aparato de segurança”. A
diminuição da influência política na indicação dos comandantes de batalhões da Polícia Militar,
percebida com frequência como um fato positivo, já dá indícios da escassa capacidade de controle
efetivo que os governos têm sobre a corporação.
17 No dizer de um sociólogo, “é como se as autoridades reconhecessem que pretendem apenas deslocar as

atividades criminais”. Em seguida: “não quero assumir uma atitude cínica, mas creio que mesmo o mero
afastamento do crime violento para regiões menos visíveis socialmente e mais longe da grande mídia
pode ser um fator positivo para o ambiente e favorecer uma discussão mais serena sobre as políticas de
manutenção da ordem pública...”. Cf. http://www.comunidadesegura.org/MATERIA-upps-pacificacao-
ou-controle-autoritario. Acesso em 15 de janeiro de 2012.
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periféricas, na zona norte e municípios vizinhos, pertencentes à Baixada Fluminense,


que têm pouco a ver com o “ambiente” criado na cidade, salvo talvez no que diz respeito
ao fornecimento de mão-de-obra barata.
Com falatório em torno da “pacificação”, o discurso dominante reduz o crime à
sua dimensão mais visível e espetacular, o conflito aberto, enquanto a favela permanece
estigmatizada como território de violência em potencial, que demanda controle
permanente. A compreensão das relações que transformam o território da pobreza em
ponto de chegada de uma rede que passa pelo tráfico internacional, pela lavagem de
dinheiro e pela corrupção policial dá lugar, na retórica legitimadora da “pacificação”, à
celebração das expectativas em torno das “novas oportunidades” de negócios. A venda
de drogas ilegais, por sua vez, se estilhaça, mas não desaparece, mesmo em favelas
ocupadas por unidades policiais, nas quais, sob formas renovadas, continua a funcionar
como meio de corrupção.
A recente modificação das estruturas criminosas tem outro aspecto, ainda mais
controvertido: a formação das milícias. Estas só começaram a entrar no debate público-
midiático e tornaram-se alvo de investigação, após a onda de violência e “ataques”
ocorridos na cidade do Rio no final de 2006. Tratava-se mais uma vez da violência do
tráfico, mas dessa vez as quadrilhas reagiam não às operações de rotina da polícia, mas
à ação de grupos armados que passaram a atuar expulsando-as de seus locais de
operação. Em março de 2008, um desses grupos apareceu pela primeira vez, com
grande destaque, após o episódio do seqüestro seguido de tortura e ameaças sofridas
por jornalistas que investigavam a favela do Batam. Em 2007, as milícias controlavam
mais de noventa áreas, em sua maioria favelas. Números recentes indicam que esse
controle se estende hoje a mais de trezentas áreas, incluindo bairros inteiros, todas elas
distribuídas entre as zonas oeste e norte da cidade.
O controle das milícias é uma mistura de ocupação territorial pela força das
armas e exploração econômica de qualquer tipo de atividade capaz gerar lucro imediato.
A lógica da operação é muito mais sofisticada do que a das facções do tráfico:
monopolização de “serviços” ilegais ou informais (gás, transporte alternativo, ligações
clandestinas de TV a cabo, etc.), taxas sobre a segurança e a venda de terrenos e imóveis.
Em alguns casos, pontos de venda de drogas e casas de jogos funcionam de forma
velada. Além disso, as milícias articulam-se politicamente e usam a influência sobre o
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território para produzir “currais eleitorais”. Seus chefes cultivam relações com partidos
tradicionais, financiam campanhas e constroem uma rede de poder clientelista com
influência sobre os serviços de saúde, escolas e delegacias.
Depois do episódio de 2008, o governo estadual reconheceu publicamente o
perigo representado pelas milícias. A idéia de um “poder paralelo”, como amiúde são
definidas as milícias, indica a perda do monopólio estatal da violência. Mas, ao contrário
do tráfico, que estabeleceu conexões e contou, desde o início de suas operações, com a
cumplicidade do aparato policial, a relação das milícias com o Estado é mais intrincada
e nunca externa ou “paralela”. O tratamento dado a esse problema pela imprensa e por
líderes políticos tradicionais ao longo dos últimos anos é bastante revelador. Quando as
primeiras informações sobre os grupos paramilitares começaram a circular, o então
prefeito César Maia declarou tratar-se de “um problema menor” em relação ao tráfico.
Mais de uma vez, lideranças políticas de partidos governistas se referiram publicamente
às milícias de modo eufemístico, como um tipo de “autodefesa comunitária” contra o
poder arbitrário das facções criminosas. Do mesmo modo, até 2008 a cobertura
jornalística destacava que a atuação dos policiais militares envolvidos em tais grupos
situava-se “na contramão da violência produzida em áreas pobres controladas por
traficantes”.18 Enquanto isso, os líderes milicianos apoderavam-se de associações de
bairro e eram eleitos como representantes políticos. As milícias cresceram e
organizaram-se a partir do crime praticado por agentes do Estado. Armaram-se e
continuam a se financiar com a ajuda de apreensões policiais desviadas (armas, drogas e
dinheiro).19
Concebida de forma instrumental, como parte integrante das medidas
necessárias à realização dos eventos que terão lugar na cidade, a “pacificação” é,
igualmente, um momento da efetivação de uma forma de gestão do espaço com
tendências segregadoras que pode ser caracterizada como um “urbanismo de minorias”.
As UPPs abarcam uma área que se coaduna com a ação miliciana em outras partes
empobrecidas da cidade e empurra um segmento do tráfico armado para locais ainda
mais periféricos. Isso significa que o poder público praticamente não levou sua política

18 “Milícias de PMs expulsam tráfico”. O Globo, 21/03/05.


19 Na operação mais espetacular, no complexo de favelas do Alemão, em fins de 2010, mesmo com a
presença maciça dos veículos de mídia, a regra foi, mais uma vez, o desvio de dinheiro e armas
apreendidas por policiais.
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pacificadora para esses locais. Se a concepção de visibilidade da segurança trazida pelas


UPPs transfere e modifica as formas de operação do tráfico, ela tem na atividade das
milícias um tipo de ocupação “complementar” do território (o próprio modelo de
ocupação permanente foi iniciado pelas milícias). Em termos espaciais, a ampla área de
controle das milícias “encontra-se” com os bairros onde há a presença de UPPs (uma
faixa da zona norte localizada nas proximidades do Estádio Olímpico). É possível que as
ações oficiais do Estado continuem a se expandir, alcançando outros pontos
importantes da cidade, mas, na conjuntura atual, nada indica que elas avançarão sobre
os principais territórios das milícias a ponto de enfraquecê-las.
A coexistência de milícias e UPPs parece ocorrer de forma explícita, quando
relações de interesse se conjugam às articulações polítco-eleitorais. É o caso da Cidade
de Deus, um dos primeiros locais a receber uma unidade pacificadora e a única favela
dominada pelo tráfico em uma área com forte atuação das milícias. Seguindo a mesma
lógica, é possível apontar outros aspectos dessa articulação: “Em Vigário Geral a polícia
sempre atuou matando membros de uma facção criminosa e, assim, favorecendo a
invasão da facção rival de Parada de Lucas. Há quatro anos, o mesmo processo se deu.
Unificadas, as duas favelas se pacificaram pela ausência de disputas. Posteriormente, o
líder da facção hegemônica foi assassinado pela Milícia. Hoje, a Milícia aluga as duas
favelas para a facção criminosa hegemônica”.20 Outro caso recente, amplamente
noticiado, dá indícios da relação entre a estrutura do Estado e as redes mafiosas: um
coronel responsável pelo batalhão da Polícia Militar de São Gonçalo, na Região
Metropolitana, foi acusado, ao mesmo tempo, de participação em um esquema de
“espólio de guerra” pelo qual as armas apreendidas eram revendidas e de ser o
mandante do assassinato de uma juíza responsável pela prisão de policiais que atuavam
em grupos milicianos.
As milícias representam mais a fragmentação do poder político tradicional do que
a pretensão de substituí-lo. Isso significa que elas se impõem pela força onde o Estado
atua de modo apenas marginal. O que explica seu êxito é o fato de que a militarização do
espaço urbano é também informal: as milícias são constituídas, em sua maioria, de

20Alves, José Cláudio. “Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime”, Disponível em:
http://www2.cartacapital.com.br/blog/sociedade/violencia-no-rio-a-farsa-e-a-geopolitica-do-crime.
Acesso em 15 de janeiro de 2012.
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policiais, agentes penitenciários e outros funcionários do Estado que lançam mão dessa
condição para se associar em “bandos” e obter renda de modo delituoso. Eles agem nas
brechas do poder público, obrigando os governos a negociarem suas formas de operação
com as lideranças dos batalhões e delegacias policiais. Com a relativa autonomização
obtida por meio desse tipo de negociação, as redes mafiosas tendem a transformar a
“segurança” em um negócio privado a serviço de esquemas locais de poder. A
proliferação de tais bandos em favelas e periferias da cidade não obedece a uma
estratégia, ainda que não exclua associações de interesses; eles ocupam de modo quase
automático os espaços de desagregação social criados pela ausência de ações contínuas
do Estado. Em muitos momentos o tráfico cumpriu papel semelhante em termos de
controle sobre territórios. No entanto, as milícias têm mais facilidade de sair das
margens sociais e organizar-se de forma difusa, pois atuam por meio do Estado. A
disseminação de formas privadas e ilegais de prestação de serviços, inclusive a
“segurança”, indica – mais do que a existência de uma estrutura ilegal paralela – a
identidade cada vez maior entre um Estado que se desobriga dos fins universalistas e a
“pilhagem social”.21 Quando a absorção produtiva da força de trabalho dá sinais de
esgotamento, também as regras gerais ameaçam falhar, revelando o núcleo de violência
da instituição estatal que se esconde por trás dos princípios de representação. O que
Franz Schandl formula a respeito do recente contexto de desagregação da periferia
europeia não deixa de ser uma situação típica de outros lugares: “liberado da relação
idealmente simbiótica com a sociedade, mas como antes dotado de direitos soberanos e
dos correspondentes instrumentos para fazê-los implementar, foi fácil para parte do
aparato estatal converter-se à pilhagem da sociedade” (2001: 150). Não estamos diante
de um simples desvio da norma legal. Em tempos de crise e agudização da ruptura do
tecido social, o que se avizinha é a privatização violenta do imposto e da prestação de
serviços: “se o pagamento de propina ainda evoca certo ar de arbítrio e liberalidade, o
pagamento de proteção está sempre vinculado a uma coerção factual. Se no caso das
propinas a situação ainda é dominada pelos compradores (de serviços, mercadorias,
opções de investimentos), isso não é mais o que se verifica no caso do pagamento de
proteção. Aqui cabe ao vendedor, que pode ser também um chantagista como outro

21 Cf. Franz Schandl, “Pilhagem social: Mosaico de uma desintegração feito com pedras desordenadas”
Sinal de Menos #1, 2009. (Original em: Krisis 24, 2001).
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qualquer, estipular os termos”. Desse modo, continua Schandl, “no lugar do monopólio
fiscal temos polos fiscais, no lugar do monopólio da violência, polos de violência” (2001:
154).
Na Baixada Fluminense e em alguns bairros da zona oeste, os bandos armados,
originados a partir dos grupos de extermínio dos anos 1970-80, operam diretamente.
Em alguns casos, formam grupos políticos convencionais.22 No município do Rio de
Janeiro, especialmente nos bairros com forte presença de classes médias, o aparato
policial tornou-se um acintoso mediador da “economia do crime” e da informalidade.
Essa relação é antiga. Esquadrinhar o território à procura de fontes de lucro por meio de
extorsões, propinas e associação com atividades ilegais é há muito a principal ocupação
do aparato de “segurança” estatal. Especula-se que mesmo a localização das delegacias
tenha relação direta com atividades ilegais.23 Ao contrário dos grupos de extermínio, as
milícias não estão “a serviço” de interesses econômicos: expulsando as facções do tráfico
ou restringindo sua atuação, elas se escusam da função mediadora e buscam o controle
direto das atividades ilegais e do próprio território. Como agem de maneira mais
discreta que o tráfico, sem ostentação de armas, conseguem manter um controle
eficiente sobre favelas e bairros periféricos, nos quais nada que entre em conflito com os
interesses mafiosos consegue se desenvolver.
Na recente ocupação da favela da Rocinha, no fim de 2011, a euforia inicial em
torno da “guerra contra o tráfico” deu lugar a muitas dúvidas, em razão da quantidade
de denúncias contra policiais, mas igualmente pela assistência precária dada às favelas
ocupadas e, sobretudo, pela repercussão negativa dos crimes ligados às milícias.
Durante a operação da Rocinha, houve uma tentativa de resposta por parte do governo,
que, ao contrário das ações anteriores, efetuou mais prisões e apreensões e inibiu
saques, proibindo que policiais subissem o morro com malas ou mochilas. Era o
reconhecimento implícito de que, desde o início da “pacificação”, o crime parece apenas
ter mudado de forma e de lugar.

22 Em seu livro Dos Barões ao Extermínio. Uma história da violência na Baixada Fluminense (APPH-
Clio, 2003), José Cláudio Alves descreve como se deu a ascensão de políticos ligados aos grupos de
extermínio na região da Baixada Fluminense.
23 “Num estudo recente, a Secretaria de Segurança descobriu que a lógica centenária da divisão de

delegacias era determinada pela divisão dos territórios dos bicheiros. Isso porque os delegados tratavam
de estabelecer por meios próprios sua área de influência para garantir o domínio da corrupção num
determinado espaço. Com o tempo, a ligação com o jogo do bicho abriu caminho para o tráfico de
drogas...”. Veja, 29 de março de 2000.
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Na ocasião, o secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame,


falou dos “êxitos” da política atual e, de modo mais enfático do que no passado, garantiu
que o combate às milícias “continuaria a ser” uma prioridade do governo. Parece um
daqueles casos em que “o fracasso sobe à cabeça”, já que, ao longo dos últimos anos, as
milícias não pararam de crescer (sem jamais figurar entre os alvos das políticas de
segurança). De acordo com o relatório de uma CPI instalada em 2008 na Assembleia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), mais da metade do território hoje
ocupado por grupos milicianos não estava sob o domínio das facções do tráfico. Nessas
áreas, foi a estrutura de segurança do Estado que garantiu, por omissão ou
cumplicidade, a ampliação das atividades ilegais. Por outro lado, as restrições impostas
ao comércio varejista de drogas em algumas favelas tendem a fazer com que essa
economia se reorganize, livrando as áreas consideradas estratégicas dos efeitos
colaterais mais visíveis do tráfico. Essa é uma política adequada à criação da imagem de
uma cidade pacificada: atacar a organização das facções criminosas, empurrando-as,
enfraquecidas, para as periferias, ajuda a produzir uma sensação de segurança nos
bairros de onde elas foram expulsas e disseminar, entre as classes médias, a ideia de que
houve “resultados concretos”. Um desses resultados, porém, é a intensificação das
disputas por território em bairros pobres que passam a servir de abrigo para os
integrantes do tráfico. Nesse sentido, a retomada territorial e simbólica de favelas pode
contribuir para a criação de um “novo ambiente” para os negócios e para um tímido
reformismo social, mas os conflitos armados e o poder informal das milícias continuam
fortes, na sombra da “pacificação”.

A imagem da cidade competitiva


A consolidação de um novo modelo urbano se dá em função da acomodação da
cidade e das políticas públicas às forças do mercado. Outra condição desse modelo
competitivo voltado para consumidores é, como foi dito, a mudança de percepção da
violência. Visto que nada indica uma diminuição global e continuada dos índices de
criminalidade violenta, o que está em questão é o modo como a estratégia de marketing
para a segurança pública se amplifica nos discursos sem réplica dos meios de
comunicação até se tornar consensual, pintando com cores róseas o quadro atual da
“pacificação” para que a cidade possa alcançar os índices de competitividade
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almejados.24
Como vimos, um dos objetivos perseguidos pelos últimos governos tem sido a
construção da imagem do Rio como uma cidade novamente “atraente”, sem conflitos e
conectada aos padrões internacionais de consumo. Além disso, a cidade deveria integrar
da forma mais harmoniosa possível as populações marginalizadas. Entretanto, o
conjunto de transformações sócioespaciais em curso não indica a existência de projetos
de inclusão para as maiorias empobrecidas. Ao contrário, o “efeito olímpico” se traduz
em um tipo de crescimento concentrador de riqueza. Em vez de políticas abrangentes,
que podem ser apenas simuladas, como mostra o maior programa habitacional do
governo federal, há as operações de salvamento dos “parceiros privados” e o
fortalecimento das tendências especulativas e segregadoras do novo padrão urbanístico.
A modificação permanente do espaço em função do lucro contribui para a
adaptação da cidade e do espírito de seus habitantes ao movimento sempre idêntico da
valorização econômica, criando todo um modo de vida condicionado pela necessidade
de mudanças incessantes. No início da década de 1980, Henri Lefebvre observou que os
processos de homogeneização e de fragmentação atuam simultaneamente na
conformação da vida cotidiana moderna. Esses processos contraditórios derivam da
racionalidade burocrática que ajudou a construir as metrópoles atuais e das
equivalências e estratificações ligadas ao “mundo da mercadoria”. 25 A modalidade de
intervenção estatal que se verifica em todo o mundo está voltada para a construção de
relações atomizadas, concentradas na fruição de bens e serviços que se impõe
maciçamente através dos mecanismos de “consumo dirigido”. Nas grandes cidades do
capitalismo globalizado, políticas que impõe um ambiente econômico homogêneo e
eliminam direitos, espaços de convivência e alternativas de sobrevivência são a regra, e

24 Para citarmos apenas um exemplo, um estudo do Ipea (Daniel Cerqueira, “Mortes violentas não
esclarecidas e impunidade no Rio de Janeiro”, Textos para Discussão Ipea, n. 1697, jan 2012) aponta
distorções nas estatísticas de homicídios do Rio de Janeiro relativas ao ano de 2009. De acordo com a
pesquisa, que emprega termos como “omissão” e “escamoteamento”, a redução do número de
homicídios anunciada pelo governo estadual como uma conquista de sua política de segurança coincide
com o aumento dos óbitos de causa indeterminada.
25 Critique de la vie quotidienne III: De la modernité au modernisme (Pour une métaphilosophie du

quotidien). 1981, L’Arche Editeur. Paris. Note-se que, desde os anos 60, em sua sociologia crítica,
Lefebvre nos fala dos segmentos privilegiados da moderna sociedade de consumo como os novos
“olímpicos”. O termo refere-se ao modo como as elites se colocam acima das contradições do cotidiano
vivido pela maioria dos habitantes “comuns”.
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as formas escalonadas de acesso aos serviços e bens de consumo criam hierarquias e


separações.
Esse padrão de intervenção estatal orientado pela mercantilização é facilmente
reconhecível. No Rio ele segue uma receita pronta, o “modelo Barcelona”, que continuou
a orientar as políticas municipais mesmo após a derrota do projeto “Rio-2004”, e
adquire características próprias durante a sua realização. Na preparação para os Jogos
Olímpicos, o novo urbanismo revela da maneira mais cristalina seu caráter autoritário e
socialmente injusto. Uma reportagem do Globo diz que “o Rio correu atrás e o sonho de
sediar as olimpíadas se tornou realidade. Agora, falta arrumar a casa”.26 Explica, em
seguida, no que consiste essa arrumação: gastos desmedidos, na casa das dezenas de
bilhões de reais, para a realização de melhoria nos transportes, segurança e hospedagem
dos futuros consumidores da “Cidade Olímpica”. Os benefícios previstos não abarcam o
conjunto da cidade, embora os custos sejam socializados. As grandes obras ligadas ao
“sonho coletivo” recém-alcançado negligenciam demandas urgentes. É assim que os
problemas gerais de circulação são reduzidos à necessidade imediata de integração dos
núcleos do projeto olímpico e que a segurança é entendida como venda de imagens de
ordem e tranquilidade. O cronograma olímpico exige do poder público não apenas uma
postura permissiva, mas um verdadeiro engajamento na elaboração de mecanismos de
exceção, como obras sem licitação que atropelam legislações ambientais e burlam a
regulação jurídica da ocupação da cidade. O espaço urbano também se submete a leis de
exceção para que contratos e eventos sejam viabilizados e orçamentos modificados,
seguindo as determinações do obscuro “Comitê Olímpico Internacional” ou da Fifa, que,
informalmente, têm poder para definir e orientar gastos públicos.
O impacto das obras sobre a população é enorme. A lógica do gasto público a
favor da apropriação privada, que é, em síntese, a base das famigeradas “parcerias”,
resultou em uma concentração de investimentos em poucas áreas de valorização
imobiliária, limitadas à Barra da Tijuca, ao entorno do estádio do Maracanã, porções do
Centro e da zona sul e a região de Deodoro, na periferia carioca. A parte dos recursos
não destinada às áreas privilegiadas da cidade é usada na construção de grandes vias
expressas para conectá-las. Destacam-se, nesse contexto, os processos arbitrários de
desapropriação, com preços muito abaixo dos de mercado, sobretudo quando há

26 O Globo, 30 de outubro de 2009.


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grandes obras viárias envolvidas - e cujos traçados cortam invariavelmente os bairros


mais carentes da cidade. O recrudescimento de remoções e despejos irregulares de
pequenas favelas (a prefeitura do Rio anunciou a remoção de 119 delas até 2016) revela
uma clara intervenção segregadora. Em algumas áreas, em especial no centro da cidade,
a população residente de baixa renda é obrigada a se deslocar por pressão da elevação
de preços de aluguéis e serviços, dando lugar a novas moradias de classe média.
Entre projetos anunciados e obras em andamento na cidade do Rio, não faltam
exemplos de ações discricionárias do poder público. Misturadas a interesses privados,
essas ações criam um grande número de situações de exceção: na Favela do Metrô,
próxima ao estádio do Maracanã, muitas família da “comunidade” instalada no local há
mais de trinta anos foram desapropriadas para dar lugar a um grande estacionamento;
no centro da cidade, a remoção de dezenas de famílias, prevista já para o carnaval de
2012, deve garantir a ampliação do Sambódromo. A obra, financiada pelos
patrocinadores do Carnaval carioca, tem como pretexto a utilização do espaço nos jogos,
em 2016; em Campinho, a construção de um “mergulhão” para ligar a Barra da Tijuca
ao Aeroporto Internacional provocou uma série de despejos irregulares e
reassentamentos ilegais, sem infraestrutura e a muitos quilômetros de distância dos
locais de origem. Apenas para essa obra preveem-se 3.500 desapropriações. Em outras
áreas, o objetivo das intervenções urbanas é unicamente retirar os pobres das paisagens
turísticas e dos terrenos que interessam ao setor privado – os argumentos “técnicos” e
as legislações ambientais, que nunca são levados em consideração quando se trata de
grandes empreendimentos, servem de pretexto para garantir os lucros da incorporação
imobiliária. Não por acaso, os planos de remoção de favelas se concentram em áreas
com alto potencial de valorização, como no exemplo da “Vila Autódromo”, na Lagoa da
Barra da Tijuca. No Recreio dos Bandeirantes, pequenas favelas como Vila Harmonia e
Restinga foram removidas para a construção da Transoeste, apesar de denúncias de
violações sistemáticas da Lei Orgânica. São apenas alguns exemplos, escolhidos quase
aleatoriamente.
O padrão dessas intervenções é idêntico em todas as obras: gastos públicos
exorbitantes e expectativas de lucro privadas. O consenso midiático em torno do ideal
da “Cidade Olímpica” faz com que grande parte da população não diretamente afetada
veja com simpatia um projeto que, em sua essência, é produtor de desigualdades. Mas a
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decepção parece inevitável. Os Jogos Pan-Americanos de 2007 são um exemplo patente:


ao contrário do que foi anunciado, os eventos não legaram nada à cidade e, mesmo os
equipamentos esportivos, que deveriam servir também para as Olimpíadas, foram
declarados insuficientes pelo COI e novos gastos devem ser feitos. Em outras palavras, a
herança positiva de eventos espasmódicos é tão fugaz quanto as formas atuais da
riqueza financeirizada. Terminado um ciclo de capitalização, o abandono ou o desmonte
são inevitáveis. Do ponto de vista econômico, os resultados podem ser desastrosos para
a cidade.27 Os gastos para a preparação dos jogos de 2007 foram tão mal dimensionados
que ultrapassaram em quase 10 vezes os números previstos: de 400 milhões de reais
para quase 4 bilhões, um dispêndio que durante dois anos comprometeu o orçamento
municipal.28 O que restou como “legado” foram a ampliação do endividamento público,
a modificação irregular das legislações urbanas e o deslocamento forçado de populações
de baixa renda.
A produção incessante de espaços segregados contrasta com as imagens de
integração social fartamente oferecidas pelos discursos publicitários. A concepção de
cidade competitiva e “global”, longe de atingir os objetivos propalados, dá novo fôlego às
tendências negativas já existentes, como as disparidades entre as áreas economicamente
centrais e as periferias abandonadas. Naturalmente, a Barra da Tijuca é o principal
laboratório dessa nova urbanidade carioca: ponto de junção dos empreendimentos
ligados aos eventos esportivos e ao entretenimento, ela é o lugar da expansão
descontrolada e do autoisolamento das elites. Ali, os condomínios com segurança
privada, os espaços de consumo fechados e as vias de circulação hostis aos pedestres
constituem um símbolo da perda de qualidade dos espaços públicos e da afirmação de
uma cidade aberta apenas aos consumidores. A proliferação de “espaços diferenciados”
de habitação e serviços é uma das muitas contradições que afloram na cidade,
aumentando a separação entre as classes médias e os que permanecem alijados do modo
de vida baseado no consumo conspícuo. Por outro lado, os aspectos harmoniosos de
uma vida urbana mantida tanto quando possível à distância são simulados

27 Veja-se, por exemplo, como na disputa com o Rio para acolher a imprensa durante a Copa de 2014 o
Governo de SP, derrotado, economizou algo em torno de 100 milhões de reais. “Nos bastidores, SP
festeja derrota para RJ por centro de mídia”. Folha online, 28/05/2011.
28 Apenas dois anos antes dos jogos, o governo federal havia decretado o “estado de calamidade pública”

nos hospitais municipais, promovendo uma intervenção para atenuar a crise da saúde no Rio.
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esteticamente em arquiteturas de fantasia, segundo os padrões de consumo da “cultura


globalizada”.
Enquanto as camadas de alta renda se protegem e constroem cenários
apropriados ao seu “estilo”, a violência se expande na maior parte das periferias da
cidade. Em tais lugares, onde a deterioração das condições de vida é incessante, a massa
de indivíduos supérfluos – ou, no jargão econômico, de “inempregáveis” – continua a
crescer. A informalidade e a precariedade ainda são a condição estrutural da força de
trabalho nas periferias urbanas. De toda essa massa de pessoas comuns, só uma parcela
minoritária está em condições de participar da esfera “rentável” da economia de serviços
ditada pelo ritmo alucinado do mundo corporativo. Como apontam alguns estudos, até
mesmo a mobilidade das populações periféricas é restringida pela formação de
alternativas precárias de sobrevivência desconectadas do centro, pelo avanço da
economia informal e de baixa qualificação nas periferias ou simplesmente pelo aumento
da população “desocupada”.29
Os efeitos mais visíveis da nova configuração urbana produzida pela cidade
competitiva são encontrados nas favelas cariocas. O alvo da reestruturação urbana não
são os “subúrbios” e os municípios que formam o cinturão de pobreza em torno da
cidade do Rio de Janeiro (e que possuem os maiores índices de criminalidade), mas as
favelas localizadas nas proximidades das áreas mais “nobres” da cidade. Os moradores
das favelas ocupadas pela polícia “pacificadora” não esperam nenhuma mudança em
termos de infraestrutura, mas já sofrem um processo de “regulamentação” das
condições de vida que, somada ao “efeito olímpico”, que atinge o conjunto da cidade,
também produz resultados de natureza segregadora. 30 A valorização imobiliária nesses
locais gera ganhos patrimoniais e comerciais para uma minoria, mas expulsa os mais
pobres por causa do aumento vertiginoso dos alugueis e de cobranças por serviços que
inviabilizam a manutenção de muitas moradias. O segmento mais desassistido da

29 Luciana Corrêa Lago, “Desigualdade e segregação na metrópole. O Rio de Janeiro em tempo de crise”.
Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2000.
30 A valorização imobiliária que as UPPs levam para as favelas “pacificadas” propicia a uma “pequena-

burguesia” local benefícios análogos aos que ocorrem para as classes médias dos bairros vizinhos. Para
além da diminuição dos conflitos e da letalidade, esta parece ser uma importante base de apoio
ideológico das políticas atuais nas favelas. Com a insegurança geral, desaparece a capacidade de
organização coletiva autônoma que chegou a se desenvolver em décadas anteriores. Mesmo nas favelas,
se verifica aquela predominância das soluções individuais e das ideologias “ilusórias e problemáticas” de
classe média hegemonizadas pela lógica do capital, as quais Lefebvre aludia em sua crítica da vida
cotidiana (Lefebvre, 1981: 156).
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população, em vez de se beneficiar de políticas públicas, é governado pelo “darwinismo


social” da lógica empresarial.
A política de “pacificação” age como um elemento de produção do deslocamento
da pobreza. E a justificativa para a produção de novas desigualdades são os princípios
igualitários do direito: “quem vive em favela é um cidadão especial, que não precisa se
submeter à Constituição e não tem os mesmos deveres dos outros brasileiros”, diz um
economista, como se as carências sofridas pela população fossem “direitos inacessíveis
aos demais brasileiros” – ou pelo menos essa seria a ideia que se deve combater para
fazer com que as regras da “cidade formal” se consolidem.31 Ao mesmo tempo em que o
poder público flexibiliza regras para atender seus “parceiros privados” e procura
esconder o controle informal das milícias que se alastram pela cidade, os moradores que
vivem sob a ocupação das UPPs são sujeitados a pressões econômicas baseadas no
princípio da regulamentação garantido por um sistema de vigilância permanente. Nesse
quadro, é sintomático que as ideias sobre segurança comunitária tenham dado lugar ao
controle das populações e ao modelo belicista da ocupação militar. Dessa vez, não
estamos mais diante de um ideal buscado em Barcelona ou algum outro modelo
aparentemente bem-sucedido, mas da imitação, pouco alardeada, do padrão de
intervenção em favelas adotado pela cidade de Medellín, conhecido local de operação
dos cartéis da droga que, durante um breve período, no início do século XXI, tornou-se
um lugar de peregrinação dos especialistas em segurança pública. O governador Sérgio
Cabral chegou a afirmar, referindo-se à diminuição dos homicídios na cidade: “se em
Medellín é possível fazer, por que nós não faremos no Rio?”. No entanto, o que se vê na
cidade colombiana é que após uma redução imediata das mortes violentas, mais
motivada pelo arranjo interno do narcotráfico do que pela ofensiva policial contra os
cartéis, Medellín voltou a registrar altos índices de mortalidade, especialmente entre os
moradores jovens das favelas. Além disso, a operação Orión, realizada em outubro de
2002 na Comuna 13 de Medellín, revelou a articulação das forças do governo com os
blocos paramilitares como parte do plano nacional de “pacificação”, implantado desde
meados da década de 1990. Na última década, como resultado dessa estratégia, a
influência dos grupos insurgentes diminuiu nas periferias das grandes cidades à medida
que os grupos paramilitares, também ligados ao tráfico de drogas, ampliavam sua

31 “Por um Rio sem Favelas”. Veja, 21 de abril de 2010.


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atuação e reduziam o número de violações aos direitos humanos atribuídos ao Estado.


Hoje, do ponto de vista da segurança, o que resta da “retomada” dos morros e dos
projetos de integração em Medellín é a presença dos herdeiros diretos dos bandos de
“autodefesa” que lograram estabelecer uma forte aliança entre o crime organizado e o
establishment, além do conflito permanente, aberto ou latente, entre a população e as
forças policiais.32
Nas favelas e periferias do Rio, temos não só o saldo da mediação autoritária dos
conflitos (abuso de autoridade policial e violação de direitos elementares), como o início
de uma relação semelhante entre o poder oficial e a nossa variante mafiosa do
paramilitarismo em formação. Em 2006, em plena campanha eleitoral, o atual prefeito
do Rio, Eduardo Paes, cuja trajetória é indissociável da administração que desenvolveu
o primeiro “Plano Estratégico”, classificou a atuação de grupos milicianos em Rio das
Pedras, no bairro de Jacarepaguá, como um exemplo de “retomada da soberania” do
Estado. Em sua administração, houve denúncias de que a prefeitura, ao estabelecer
convênios com associações que, na realidade, constituem “braços sociais” das milícias,
teria criado condições favoráveis à ampliação das fontes de financiamento desses
grupos. Por outro lado, uma CPI concluída em 2008 resultou na prisão de vários
milicianos e gerou uma mudança da “opinião pública” em relação a esse tipo de
atividade criminosa. É difícil imaginar qual será o desfecho desse processo. Atualmente,
o que se verifica é uma dissociação entre o discurso político oficial e as quadrilhas
mafiosas. No entanto, com o aumento dos confrontos em áreas empobrecidas da cidade,
não é implausível que, mutatis mutandis, o modelo colombiano de subcontratação de
grupos paramilitares, cuja fachada institucional foi prontamente elogiada por
autoridades locais, apareça como uma opção “razoável”, seguindo a lógica da conversão
do informal em política oficial, sem que o aparato policial tenha a dispendiosa
necessidade de impor sua presença ostensiva no conjunto do território. Em um cenário
como esse, competiria ao Estado “legalizar e regular” os grupos informais de “segurança
privada”, inaugurando uma forma original de resolução dos confrontos pela via do
clientelismo armado infiltrado na estrutura institucional. Nada muito distante da
realidade, como se observa no caso das cooperativas do transporte dito “alternativo” ou
nos preparativos para os Jogos Pan-Americanos, quando ficou evidente que a ação ilegal

32 Forrest Hylton, “Medellín: a paz dos pacificadores”, Margem Esquerda, n. 11, 2008.
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dos policiais era bastante funcional ao projeto da prefeitura.33 A configuração atual


dessa estrutura mafiosa de poder existe há mais de uma década e é obra do tipo de
cidade que a ideologia do empreendedorismo urbano idealizou. Num contexto como
esse, a ênfase no discurso sobre a segurança soa como pretexto para a administração
repressiva dos focos de instabilidade social, enquanto a cidade se torna mais “segura”
apenas para os grandes investimentos privados.
A gestão militarizada do espaço urbano, o avanço do controle territorial das
milícias e a elevação dos custos de vida reforçam a idéia do caráter aparentemente
insolúvel dos problemas das favelas e periferias cariocas. Na conformação da nova
urbanidade, a cidade é redesenhada de acordo com seus polos de lucratividade.
Programas de reurbanização e habitação orientados pelas demandas dos usuários nem
sequer são cogitados. O resultado é a produção em larga escala de novas desigualdades.
Tudo isso sugere um quadro de fragmentação que se sobrepõe aos dramas da nossa
velha questão urbana, mais vivos do que nunca. No entanto, para o marketing urbano,
empenhado na produção de uma imagem de unificação feliz, conta apenas a máxima
panglossiana de que “tudo vai da melhor forma”.
Uma reportagem recente do Globo afirma que “o mapa das comunidades cariocas
ganhou um novo desenho”: órgãos da prefeitura concluíram que 44 comunidades
deixaram de ser favelas, entre elas Santa Marta, Vidigal e Borel, “porque já contam com
serviços básicos idênticos aos desfrutados por moradores do asfalto”. 34 A Cidade de
Deus, famosa até no exterior, não é considerada favela por ser originalmente um
conjunto habitacional, edificado na década de 1960 como parte de uma política de
remoção. Poderia ser classificada, dizem os especialistas, como um bairro “planejado” e
“assistido”; mais uma vez, a situação real, a despeito de sua gravidade, torna-se aceitável
para a “opinião pública” e para os organismos internacionais por meio de técnicas de
manipulação da informação. Ainda assim, o último Censo do IBGE sobre “aglomerados
subnormais” revela que, no Rio de Janeiro, o número de pessoas que residem em favelas

33 Como relata a Folha, em 2007: “grupos de policiais e ex-policiais controlam favelas vizinhas a praças
esportivas e não permitem crimes nas imediações”. “Milícias expulsam tráfico e dominam arredores do
PAN”, Folha de São Paulo, 22/01/2007. Na mesma matéria, podemos ler que “a presença das milícias
em favelas se intensificou no ano passado, quando o esquema de segurança do Pan-Americano já estava
todo elaborado”.
34 “Cidade do Rio ganha 44 ex-favelas”. O Globo, Rio. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/cidade-

do-rio-ganha-44-ex-favelas-2764079. Acesso em 15 de janeiro de 2012.


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e loteamentos irregulares chega a 22% da população. Um estudo baseado em critérios


mais realistas apontaria uma situação ainda mais crítica. E não há sinal de que um novo
ciclo de crescimento seja capaz de absorver os bolsões de pobreza, interrompendo assim
a desintegração social que, em última análise, propicia a atuação de diferentes bandos
armados ou a legitimação idealizada da barbarização policial. Aqui, assim como em
outros lugares, para escamotear os efeitos da crise social, resta ao poder público a
manipulação das estatísticas e a modificação dos critérios de classificação da pobreza,
além das “barreiras acústicas” nas favelas, da contenção das camadas populares e outros
recursos bem ajeitados às estratégias de mercado. Trata-se, naturalmente, de uma
conclusão pessimista. Mas, como diria Jacques Ellul, tal postura é tão realista quanto a
de um médico que, depois de examinar o paciente, diagnostica um câncer. Cabe-nos,
portanto, depositar menos expectativas na capacidade do poder político-administrativo
de mudar essa situação e identificar os vetores da “luta contra a autoridade que se
espalha em todos os setores da sociedade”.35

35 Jacques Ellul, in: Civilizações: Entrevistas do Le Monde. São Paulo: Ática, 1989.
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A todo vapor rumo à catástrofe?


O capital e a dinâmica do aquecimento global

Daniel Cunha

Fumaça descendo das chaminés, formando uma neblina negra, com flocos de fuligem
grandes como os maiores flocos de neve – de luto, poderíamos imaginar, pela morte do
sol.1

Esta é uma descrição da Londres vitoriana por Charles Dickens, numa obra de
1853. O preto fúnebre da neblina provém da queima do carvão, o primeiro combustível
da máquina capitalista então incipiente. O efeito criado na cidade pelas emanações
também foi registrado por Monet (figura 1). Aqui procuraremos mostrar como a
dinâmica do capitalismo implica um eterno retorno às condições do início da Revolução
Industrial, em completa contradição com os requisitos ecológico-materiais do século
XXI. Se a história se repete como farsa, esta farsa pode ser o fim da história. Também
tentaremos pincelar alguns caminhos de saída.

Fig. 1: Claude Monet, Le Parlement, Effet du brouillard, óleo sobre tela (1903).

1 Tradução minha do original: “Smoke lowering down from chimney-pots, making a soft black drizzle,
with flakes of soot in it as big as full-grown snow-flakes – gone into mourning, one might imagine, for
the death of the sun”. DICKENS, C. (1853/2001) Bleak house, London: Wordsworth Classics, p. 3.
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***
Marx caracterizou a forma das relações sociais determinada pela valorização do
capital como um sujeito automático. Nesse mundo fetichizado, tudo tende a ser
determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário como fim em si mesmo. A
produção social não é objeto de discussão consciente entre os envolvidos, mas mediada
pela mercadoria, este objeto trivial, mas rico em sutilezas metafísicas. A forma-
mercadoria contém em seu conceito as determinações fundamentais da catástrofe
ecológica: a abstração do conteúdo (da matéria) e o impulso à expansão infinita2. Disso
decorre um metabolismo social fraturado em relação à natureza3, expresso na lógica
férrea do empreendimento capitalista: maximização dos lucros, não importa como.
Para a sua expansão, o capital necessita de dois tipos de energia: a energia do
trabalho humano (que cria valor) e a energia termodinâmica, física. Na Inglaterra de
Dickens, a acumulação se dava à base da mais-valia absoluta – jornadas de trabalho
estendidas e baixos salários – e da energia barata e abundante fornecida pelo carvão. No
entanto, o determinante não foi o preço do carvão em si, mas o fato de que o carvão, ao
substituir a energia hidráulica confinada às vizinhanças de quedas d’água, permitiu ao
capital deslocar-se para os centros urbanos, onde havia grande oferta de mão-de-obra
barata (exército industrial de reserva)4. Pode-se dizer que o crescimento explosivo do
capitalismo nascente não seria possível sem esta fonte energética. O carvão, além de
permitir que o capital fosse ao encontro da força de trabalho barata e disciplinada, é um
combustível fóssil, que contém milhões de anos de energia solar acumulada em sua
estrutura química, e materializou a “cultura universal da combustão”.5
De fato, a evolução do capitalismo pode ser representada pela evolução das
emissões de carbono fóssil. No gráfico da figura 1, que apresenta as emissões de carbono
oriundas de combustíveis fósseis, é possível visualizar o crescimento exponencial das
forças produtivas capitalistas, começando pela Revolução Industrial movida a carvão,
passando pela estagnação dos anos 20 e a crise de 29; o boom do pós-guerra e a

2 Cf. CUNHA, D. (2012), “O Antropoceno como alienação”, Sinal de Menos 8: 29-50. Disponível em
www.sinaldemenos.org (acessado em dezembro/2012).
3 Sobre a teoria da fissura do metabolismo com a natureza em Marx, ver FOSTER, J. B. (2000/2005) A

ecologia de Marx: materialismo e natureza, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.


4 Cf. MALM, A. (2012) “China as chimney of the world: the fossil fuel hypothesis”, Organization &

Environment 25(2): 146-177.


5 A expressão é de Robert Kurz. Ver KURZ, R. (2004), O combustível da máquina mundial, disponível em

http://obeco.planetaclix.pt/rkurz167.htm (acesso em dezembro 2012).


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ascensão da indústria automobilística, alimentada à base de petróleo; a crise do petróleo


dos anos 70; a crise da valorização no século XXI. A chave para esta última é a
intensificação das emissões por queima de carvão, como discutiremos mais adiante.
Constata-se também o absoluto fracasso do Protocolo de Kyoto: após a sua entrada em
vigor em 2005, as emissões se intensificaram.

Fig. 2: evolução histórica das emissões de carbono fóssil6

A “externalidade” gerada pelo uso maciço de combustíveis fósseis é a emissão de


carbono para a atmosfera e o consequente aquecimento global. De fato, o texto fundante
da termodinâmica moderna de Carnot, de 1824, diz que
A força motriz do calor é independente dos agentes que se utiliza para realizá-la; a sua
quantidade é fixada unicamente pelas temperaturas dos corpos entre os quais se efetua
em última instância o transporte de calor.7

6 Fonte dos dados: CDIAC, http://cdiac.ornl.gov/ftp/ndp030/global.1751_2009.ems e GCP,


http://dx.doi.org/10.3334/CDIAC/GCP_V2012 (acessados em dezembro/2012).
7 CARNOT, S. (1824) Réflexions sur la puissance motrice du feu et sur les machines propres a développer

cette puissance, Paris: Bachelier. Disponível em http://www.bibnum.education.fr/files/42-carnot-texte-


f.pdf (acesso em dezembro/2012).
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Tendo a termodinâmica se desenvolvido a partir dos esforços para o aumento da


eficiência das máquinas a vapor movidas a carvão do capitalismo, não surpreende que
tenha feito abstração de todos os efeitos não relacionados à lucratividade das fábricas.
Porém, se aplicada ao sistema terrestre, a mesma termodinâmica é a ciência que nos
informa sobre a temperatura global. Foi o que fez Fourier, ironicamente no mesmo
ano8. Mas o capital tratou de garantir que a sua aplicação efetiva até hoje se limite ao
aumento de eficiência de máquinas a vapor, motores e processos industriais.

***

O ciclo do carbono no planeta é dinâmico, com fluxos entre os diferentes


compartimentos do sistema terrestre 9. O carbono se movimenta através de processos
como fotossíntese, respiração animal e bacteriana, vulcanismo, intemperismo de rochas,
absorção e dessorção dos oceanos. Apesar de o clima da Terra já ter passado por grandes
variações, de eras glaciais a períodos totalmente livres de gelo, o planeta apresenta uma
relativa estabilidade de temperaturas. Especificamente, a temperatura sempre se
manteve dentro de um intervalo capaz de manter água líquida, o que é fundamental
para a manutenção de condições ambientais propícias à vida. Isto ocorre porque a
história natural do sistema climático terrestre conduziu à emergência de uma espécie de
“termostato”, um sistema cibernético de retroação negativa que tende a estabilizar a
temperatura. Isto decorre do acoplamento dinâmico da concentração de carbono
atmosférico, das emissões vulcânicas e do intemperismo de silicatos (rochas).

8 Cf. Raymond Pierrehumbert em ARCHER, D. & PIERREHUMBERT, R. (orgs.) (2011) The warming
papers: the scientific foundation for the climate change forecast, Oxford: Wiley-Blackwell, p. 7. O texto
mais conhecido e difundido de Fourier sobre o tema é de 1827: FOURIER, J. B-. F. (1827) “Mémoire sur
les températures du globe terrestre et des espaces planétaires”, Mémoires de l’Académie Royale des
Sciences 7: 569-604. Disponível em http://www.academie-
sciences.fr/activite/archive/dossiers/Fourier/Fourier_pdf/Mem1827_p569_604.pdf (acesso em
dezembro/2012). Os primeiros que apontaram claramente as emissões de carbono fóssil como
potencialmente perigosas, no entanto, foram Bolin e Eriksson, mais de um século mais tarde, a partir da
consideração mais aprofundada do ciclo do carbono: BOLIN, B. & ERIKSSON, E. (1958) “Distribution of
matter in the sea and atmosphere: changes in the carbon dioxide content of the atmosphere and sea due
to fossil fuel combustion”, In: ARCHER, D. & PIERREHUMBER, R. The warming papers, op. cit., p.
285-297.
9 Para uma excelente introdução ao ciclo do carbono, ver ARCHER, D. (2010) The global carbon cycle
Princeton: Princeton University Press. Para uma boa ilustração esquemática, ver o relatório do IPCC:
http://www.ipcc.ch/publications_and_data/ar4/wg1/en/ch7s7-3.html (acessado em dezembro/2012).
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As emissões vulcânicas emitem carbono contido na crosta terrestre para a


atmosfera (assim como a extração e combustão de combustíveis fósseis). Ao longo das
eras geológicas, na ausência de outros processos, isto levaria à acumulação de carbono
na atmosfera a níveis muito superiores aos que se observam. Processos como
fotossíntese e absorção dos oceanos podem desacelerar este processo, mas não contê-lo.
O intemperismo de rochas (reação de Urey) possui uma propriedade diferente. Neste
processo, o dióxido de carbono, a água e o silicato reagem, de forma que o carbono
atmosférico se fixa na forma de carbonato (sólido), que acabará sendo drenado através
dos cursos d’água até o oceano. O que diferencia o intemperismo é que ele apresenta
uma propriedade de regulação homeostática: a taxa de intemperismo aumenta com o
aumento da temperatura. Tem-se assim, por exemplo, que o aumento de concentração
de carbono atmosférico devido a grandes erupções vulcânicas irá causar um aumento na
temperatura média terrestre; este aumento de temperatura média, por sua vez, irá
aumentar a taxa de reação de intemperismo, aumentando a remoção de carbono
atmosférico, impedindo assim um aquecimento excessivo. O processo também ocorre
no sentido inverso: quando variações na órbita terrestre ocasionam uma era glacial, a
taxa de intemperismo é significativamente reduzida, de forma que o carbono emitido
pelos vulcões começa a acumular-se na atmosfera, com subsequente elevação da
temperatura. O processo segue até que a taxa de intemperismo aumente novamente,
tendendo novamente a manter a temperatura dentro de um intervalo limitado.
Ocorre que o sistema cibernético de controle da temperatura terrestre atua na
escala de tempo de centenas de milhares de anos 10. Para o tempo geológico da Terra
trata-se de um piscar de olhos, mas é muito na escala do tempo humano, se
considerarmos, por exemplo, que as primeiras civilizações surgiram há dez mil anos.
Para avaliar se este sistema homeostático natural pode amortecer o efeito das emissões
antropogênicas, pode-se fazer comparações simples com os fluxos naturais. As emissões
vulcânicas de carbono são da ordem de 0,1 gigatoneladas por ano11; como se vê na figura

10 Cf. ARCHER, D (2010) The global carbon cycle, op. cit. James Lovelock e outros sustentam que seres
vivos (bactérias) também participam do processo de regulação, intensificando a reatividade do carbono
no solo. Isto não mudaria o entendimento da dinâmica do processo, já que ela está ancorada em dados
paleoclimáticos. Ver LOVELOCK, J. E. (1982) “The regulation of carbon dioxide and climate: Gaia or
geochemistry”, Planetary Space Science 30 (8): 795-802. Disponível em www.jameslovelock.org
(acessado em novembro/2012).
11 Cf. PIERREHUMBERT, R. T. (2010), Principles of planetary science, Cambridge: Cambridge University

Press, p. 58
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2, as emissões antropogênicas atuais são de 9,5 gigatoneladas por ano, ou seja, um fluxo
quase cem vezes maior. Ou, isto corresponde a quase 10% do maior fluxo natural do
ciclo do carbono, a fixação líquida de carbono global por fotossíntese. Tudo indica que
as emissões antropogênicas de carbono excedem em muito a capacidade de regulação
natural da temperatura. O resultado desta massiva emissão antropogênica de carbono é
o contínuo aumento da concentração de carbono atmosférico, como pode ser visto na
curva de Keeling (figura 3).

Fig. 3: evolução histórica do teor de carbono atmosférico (média anual) 12

Outra forma de avaliar-se a possível resposta do sistema climático à perturbação


humana é a comparação com dados paleoclimáticos. O caso mais emblemático é o
Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno (PETM, na sigla em inglês), o maior evento de
aquecimento global natural conhecido, ocorrido há cerca de 55 milhões de anos.
Pesquisas recentes indicam que neste período houve um aquecimento de 5o C devido a
emissões de carbono ocasionadas pelo deslocamento de placas tectônicas. O resultado
foi a extinção em massa de algumas espécies marinhas, e a adaptação dos mamíferos,
que ficaram menores para dissipar melhor o calor. A taxa de adição de carbono neste

12 Fonte dos dados: NOAA, ftp://ftp.cmdl.noaa.gov/ccg/co2/trends/co2_annmean_mlo.txt (acesso em


dezembro/2012).
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período variou entre 0,3 e 1,7 gigatoneladas de carbono por ano.13 No ano de 2011, como
já destacado, as emissões de carbono fóssil atingiram 9,5 gigatoneladas, uma taxa mais
de cinco vezes maior do que a taxa máxima do PETM. De fato, se compararmos as
emissões acumuladas do PETM com as emissões de carbono fóssil desde a Revolução
Industrial, vê-se que as emissões antropogênicas apresentam um comportamento mais
explosivo (ver figura 4). Além disso, a quantidade total de carbono emitido no PETM
equivale às reservas de combustíveis fósseis atuais.14

Fig. 4: emissões acumuladas desde a revolução industrial, comparadas a uma hipotética


emissão simultânea equivalente à do PETM15

Mais importante do que a quantidade de gases estufa lançados na atmosfera, é a


sua taxa de emissão. Os seres vivos e ecossistemas têm muito mais chance de se
adaptarem a mudanças climáticas caso disponham de um tempo maior para isso. A
emissão explosiva de carbono não apenas não pode ser acompanhada pelos mecanismos
estabilizadores do sistema climático, como pode disparar retroações positivas lentas.
Estes processos, após disparados, tendem a catalisar a si mesmos, fugindo de qualquer
controle viável da ação humana, pois passam a ser determinados por sua dinâmica

13 Cf. CUI, Y.; CUMP, L. R.; RIDGWELL, A. J.; CHARLES, A. J.; JUNIUM, C. K.; DIFENDORF, A. F.;
FREEMAN, K. H.; URBAN, N. M. e HARDING, I. C. (2011) “Slow release of fossil carbon during the
Paleocene-Eocene Thermal Maximum”, Nature Geoscience 4 (July 2011): 481-485. Para uma exposição
em linguagem mais popular, ver KUMP, L. R. (2011) “The last great global warming”, Scientific
American July 2011: 56-61.
14 Cf. CUI ET AL (2011), op. cit.
15 Neste gráfico, considerou-se que as emissões do início do PETM mantiveram uma taxa constante de 0,3

GTon C/ano, cf. figura 4 (a) em CUI et al (2011), op. cit. Dados das emissões antropogênicas: CDIAC,
http://cdiac.ornl.gov/ftp/ndp030/global.1751_2009.ems (acessado em dezembro/2012).
115
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interna. É o caso típico do derretimento das calotas polares: a diminuição do albedo da


superfície provoca uma intensificação do aumento de temperatura, e consequente
aceleração do derretimento.16 Além disso, os tempos do sistema climático são
desvinculados dos tempos das instituições humanas: devido à dinâmica de troca de
calor e massa da atmosfera com o oceano, o aumento da temperatura média global é
irreversível na escola de um milênio, mesmo com que as emissões sejam
interrompidas.17 No caso limite, tem-se a “síndrome de Vênus”, na qual o aquecimento
global irreversível leva à completa evaporação dos oceanos, tornando planeta
completamente inóspito18.

***
A resposta do capital ao problema do aquecimento global foi o Protocolo de
Kyoto, que entrou em vigor em 2005. O seu absoluto fracasso é facilmente constatado
em um gráfico histórico de emissões (figura 2). Não se poderia esperar algo diferente de
uma bolsa de valores criada para “flexibilizar” as reduções de emissões de carbono. O
Protocolo de Kyoto representou a acumulação primitiva da atmosfera, a mercantilização
do carbono, a privatização de um bem comum. Suas metas de redução para os países
ricos são ridiculamente baixas (cerca de 5% em relação às emissões em 1990), caso
contrário representariam custo excessivo para o capital (razão de qualquer forma
alegada pelos EUA para não aderir ao Protocolo), e para o clima, são inócuas. O
protocolo oferece um mecanismo liberalizante que permite que os grandes poluidores
continuem emitindo carbono caso isto lhes seja conveniente, bastando para isso
comprar “créditos” gerados pelos offsets de outros emissores. De outra parte, o chamado

16 Modelos de tipo Budyko-Sellers, que preveem transições bruscas entre estados glaciais e livres de gelo,
baseiam-se neste efeito. Ver BUDYKO, M. I. (1969) “The effect of solar radiation variations on the
climate of the Earth”, Tellus 21: 5, p. 611-619; SELLERS, W. D. (1969) “A global climatic model based on
the energy balance of the Earth-atmosphere system”, Journal of Applied Meteorology 8, June 1969, p.
392-400.
17 Cf. SOLOMON, S.; PLATTNER, G. K.; KNUTTI, R. e FRIEDLIENGSTEIN, P (2009), “Irreversible

climate change due to carbon dioxide emissions”, Proceedings of the National Academy of Sciences, 106
(6), p. 1704-1709.
18 A maior parte dos cientistas atualmente não considera esta hipótese. Porém, James Hansen afirma que

a “Síndrome de Vênus” seria inevitável caso todas as reservas de combustíveis fósseis não-convencionais
sejam queimadas. Cf. HANSEN, James (2009) Storms of my grandchildren, New York: Bloomsbury,
cap. 10.
116
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“mecanismo de desenvolvimento limpo” (MDL) fornece outro mecanismo para que os


poluidores continuem emitindo carbono, desde que remunerem projetos de “redução”
de emissões em países pobres. Estes projetos MDL, muitas vezes acabam por auxiliar o
aumento das emissões, seja por financiar projetos de aumento de eficiência – o que, no
sistema capitalista, acarretará em reinvestimento, ou seja, aumento de escala de
produção – seja porque o projeto é comparado com uma situação imaginária que não
existiria sem o tal mecanismo, mas assim acaba viabilizando projetos que emitem
carbono.19 Kyoto é inútil com relação àquilo que seria fundamental, ou seja, a gradativa
eliminação do uso de combustíveis fósseis. Não se pode negar, no entanto, que ele se
presta muito bem a fraudes20, assim como serve de parque de diversões para o capital
fictício. Apesar do aumento das emissões, o valor de mercado do carbono atingiu o
recorde de 176 bilhões de dólares em 2011, estimulado por “volumes de transações
secundárias”. Conforme o Banco Mundial, “uma quantidade expressiva das transições é
motivada primariamente por hedging, ajuste de portfolios, realização de lucros e
arbitragem”21 – vocabulário típico de especuladores de mercados financeiros, que se
aplica bem à situação concreta.
Mesmo os países que atingiram as suas (modestas) metas de redução de emissões
o fizeram de forma ilusória. Basta que se analise os dados das emissões dos últimos
anos. Na figura 5, destaca-se o fato de que a partir do ano de 2002, as emissões
provenientes da queima de carvão voltaram a ser maiores do que as emissões oriundas
da queima de petróleo, com uma forte inflexão na curva de emissões de carvão. Em
tempos de aquecimento global, trata-se de uma tremenda irracionalidade, já que o
carvão emite mais carbono por unidade de energia produzida do que o gás e o

19 Por exemplo, um projeto de uma usina termelétrica cujo baseline seria o de utilizar carvão, mas use gás
natural, que emite menos carbono (mas emite!), receberá “créditos de carbono”.
20 É conhecido o caso da Rhodia (inclusive no Brasil), que lucra bilhões com o recebimento de créditos

pelo abatimento de óxido nitroso, um potente gás estufa e subproduto da produção de ácido adípico.
Ocorre que a empresa lucra 35 vezes mais com os créditos de carbono do que com a produção em si, e a
instalação de um filtro simples custaria muito menos do que os valores dos créditos. Cf. GILBERTSON,
T. & REYES (2009), O. Carbon trading: how it works and why it fails, Uppsala: Dag Hammarskjold
Foundation, p. 56. Disponível em http://www.carbontradewatch.org/publications/carbon-trading-how-
it-works-and-why-it-fails.html (acesso em dezembro/2012).
21 REUTERS (2012) Global carbon market value hits record $176 billion,
http://www.reuters.com/article/2012/05/30/ozatp-world-bank-carbon-idAFJOE84T04R20120530
(acessado em dezembro/2012).
117
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petróleo22. A figura 6 ilustra o comércio internacional de carbono (dados até 2008). Este
dado é obtido quando se faz o inventário de emissões de carbono baseados no consumo,
e não no território, como se faz tradicionalmente. Houve uma grande exportação de
emissões de carbono dos países do Anexo B do Protocolo de Kyoto (os países ricos e do
antigo bloco socialista, que em sua maioria têm metas de redução de emissões) para os
demais países. Entre os importadores de emissões, destaca-se a China23. A figura 7
mostra a evolução da matriz energética chinesa, com uma forte inflexão no consumo de
carvão. Por fim, a figura 8 mostra a evolução do preço do petróleo. O início de todos os
movimentos aqui destacados coincidem em 2002, o ano em que a China ingressou na
Organização Mundial do Comércio.

Fig. 5: emissões globais da combustão de carvão e de petróleo

22 O carvão emite entre 95-103 kg CO2/MMBtu, enquanto o gás convencional emite entre 54,7-52,9 kg
CO2/MMBtu e os derivados de petróleo convencionais emitem no intervalo de 59,6-102,1 kg
CO2/MMBtu. Cf. US ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION,
http://www.eia.gov/oiaf/1605/coefficients.html (acessado em dezembro/2012).
23 Os maiores fluxos líquidos globais de carbono embutido saem da China em direção aos Estados Unidos,

à Europa e ao Japão. Cf. DAVIS S. J. & CALDEIRA K. (2009) “Consumption-based accounting of CO2
emissions”, Proceedings of the National Academy of Sciences Early Edition.
Disponível em http://www.pnas.org/content/early/2010/02/23/0906974107.full.pdf (acessado em
dezembro/2012).
118
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

Fig. 6: fluxos de carbono embutidos no comércio internacional24

Fig. 7: evolução da matriz energética chinesa 25

24 Entende-se aqui por “países ricos” aqueles inclusos no Anexo B do Protocolo de Kyoto, que incluem a
Europa Ocidental, os Estados Unidos, o Japão e países do antigo bloco soviético do Leste Europeu, e
“países pobres” aqueles que não constam no Anexo B e não possuem metas de emissão. Fonte: conjunto
de dados do artigo PETERS, G. P.; MINX, J. C.; WEBER, C. L. & EDENHOFFER, O. (2011) “Growth in
emission transfers via international trade from 1990 to 2008, Proceedings of the National Academy of
Sciences, Early Edition, http://www.pnas.org/content/early/2011/04/19/1006388108.full.pdf . Os
dados podem ser acessados diretamente em
http://www.pnas.org/content/suppl/2011/04/20/1006388108.DCSupplemental/sd01.xls (acessados
em dezembro/2012). Por conveniência gráfica, o sinal de uma das curvas aqui foi invertido.
25 Fonte dos dados: BP Statistical Review of World Energy June 2012,
http://www.bp.com/statisticalreview (acessado em dezembro/2012).
119
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Fig. 8: evolução do preço do petróleo26

O que estes dados implicam é que a “alocação eficiente dos recursos” capitalista
induziu o massivo deslocamento da produção para a China, a fim de refestelar-se com a
mão-de-obra barata (mais-valia absoluta) e energia barata – e suja, o carvão27. Na crise
da valorização disparada pela revolução microeletrônica nos países do centro, este foi
um dos resultados do sujeito automático capitalista: justamente na era do alerta
climático global, o capital tomou o movimento que resulta em emitir mais carbono28,
porque era o que melhor correspondia ao seu movimento cego de expansão infinita.
Assim, à extração de mais-valia absoluta na mão-de-obra correspondeu a exploração
absoluta da natureza: após muito tempo, a intensidade de carbono29 aumentou, como
mostra a figura 9. Este movimento pode ser generalizado: tão logo a China deixe de ser
um paraíso de mais-valia absoluta, o capital se moverá para outra localidade, levando a
sua tecnologia fóssil consigo – Índia, Indonésia e Vietnam parecem ser os próximos

26 Fonte dos dados: EIA, http://www.eia.gov/ (acessado em dezembro/2012).


27 Os dados de “exportação de emissões” do gráfico na verdade são subestimados, já que contabilizam
apenas os custos diretos para a produção das mercadorias. Emissões decorrentes de obras
infraestruturais, de peso significativo, não estão incluídas. Ver MINX, J.C; BAIOCCHI, G.; PETER, G.
P.; WEBER, C. L.; GUAN, D. & HUBACECK, K. (2011) “A ‘carbonizing dragon’: China’s fast growing
CO2 emissions revisited”, Environmentala Science & Technology 45: 9144-9153.
28 Além da fuga para a mais-valia absoluta e rapinação absoluta da natureza, o capital também encontrou

refúgio no mercado financeiro (capital fictício), para o qual Kyoto atua como linha auxiliar. Sobre capital
fictício e crise financeira, ver a entrevista com N. Trenkle e E. Lohoff nesta edição da Sinal de Menos.
29 Entendida aqui como emissões de carbono por unidade de energia produzida.

120
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

candidatos.30 De forma que, dada a continuidade do sistema capitalista, a explosão de


emissões da China deve ser apenas o primeiro de muitos ciclos – ao menos até a
ocorrência de uma catástrofe climática. Dickens e Monet retrataram o futuro.

Fig. 9: evolução das emissões globais absolutas e relativas à energia produzida 31

***
As corporações que extraem combustíveis fósseis estão entre as mais lucrativas
do mundo. O lucro anual da Exxon Mobil chegou a mais de 40 bilhões de dólares em
2011. Porém, o ponto crucial não está no lucro propriamente dito destas corporações,
mas na bolha do carbono. O fato é que as reservas de combustíveis registradas pelas
companhias ultrapassam em cinco vezes o que é considerado seguro para a estabilidade
climática, considerando a estabilização do carbono atmosférico em 450 ppm. E grande
parte destas companhias tem ações listadas em bolsa, com precificação destas

30 Esta generalização teórica é demonstrada por Andreas Malm. Trata-se, de fato, de uma curva de
Kuznets invertida. O que a teoria de Kuznets postula é que, após um período inicial de prevalência de
miséria e aumento da poluição, o desenvolvimento do capital geraria aumento de renda e de eficiência
de uso dos recursos (no caso específico, menores emissões carbono por unidade de energia produzida).
A sua grande limitação é que ela se limita às fronteiras nacionais. Malm mostra que o capital se
movimenta de forma a buscar as regiões de menor renda (mais extração de mais-valia), que são as de
menor eficiência (mais emissões de carbono): “O capital que se movimenta globalmente relocalizará
fábricas para onde a força de trabalho seja barata e disciplinada – onde se espera a maior taxa de mais-
valia – através de novos ciclos de consumo massivo de energia fóssil”. Ver MALM, A. (2012) “China as
chimney of the world: the fossil capital hypothesis”, op. cit.
31 Fonte dos dados: BP Statistical Review of World Energy June 2012, op. cit.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

reservas.32 Ou seja, estamos diante de uma encruzilhada entre uma crise climática e
uma grande crise de desvalorização das corporações dos combustíveis fósseis, capaz de
apequenar a crise da bolha imobiliária de 2008. Não há saída imanente no capitalismo.
Isto explica as ferrenhas (e caras) campanhas negacionistas: as corporações dos
combustíveis fósseis estão alavancadas pela extração futura. Como diz Naomi Klein:
os deniers não decidiram que a mudança climática é uma conspiração de esquerda ao
descobrir algum conluio socialista. Eles chegaram a essa conclusão considerando
seriamente o que seria necessário para reduzir as emissões globais tão drástica e
rapidamente quanto a ciência exige (...). Eles não estão errados33.

Diante do tamanho do possível prejuízo corporativo, vale tudo: admite-se até


flertar com o obscurantismo científico, ou assumi-lo por completo. Mas nenhuma
camada de ideologia pode esconder o fato de que o capital é uma forma de relações
sociais que se torna cada vez mais incompatível com a manutenção dos ciclos de matéria
e energia do planeta condizentes com o desenvolvimento humano e das outras formas
de vida da Terra.

***
A Agência Internacional para a Energia (IEA) traçou três projeções de cenários
para as futuras emissões de carbono34: um com a manutenção das políticas atuais, outro
com a implementação de políticas já planejadas e um terceiro projetando como as
emissões deveriam ser reduzidas para que se mantenha o teor de carbono atmosférico
abaixo do limite de 450 ppm. Na figura 10 (a seguir), mostramos graficamente as três
projeções, juntamente com a proposta de James Hansen para a estabilização em 350
ppm.
As projeções da IEA, tanto com base nas “políticas atuais” como nas “novas
políticas” mostram que tendência do capital é aquela que leva diretamente à catástrofe
ecológica: aumento contínuo das emissões de carbono, em franca contradição com o
conhecimento científico atual do sistema climático terrestre, no que se refere a um
planeta apropriado ao progresso humano. A própria agência reconhece que as “emissões

32 Cf. CARBON TRACKER INITIATIVE (2011) Unburnable carbon – Are the world’s financial markets
carrying a carbon bubble? , disponível em www.carbontracker.org (acessado em dezembro/2012).
33 KLEIN, N. (2011) “Capitalism vs. the climate” , The nation, November 28th 2011, disponível em

http://www.thenation.com/article/164497/capitalism-vs-climate (acessado em novembro/2012).


34 INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (2012) World Energy Outlook 2012, Paris: IEA.

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no cenário ‘novas políticas’ correspondem a um aquecimento global médio de longo


prazo de 3,6 0C”, muito além do que é considerado seguro pelos cientistas do clima.

Fig. 10: histórico e projeções futuras de emissões de carbono fóssil35.

Já o cenário de estabilização em 450 ppm baseia-se em proposta atualmente já


discutível36, pois muitos cientistas já consideram este teor de carbono atmosférico como
inseguro. De qualquer forma, a proposta baseia-se principalmente em ganhos de
eficiência energética (economia de combustível). Ora, como já deveria ser claro no
século XXI, no mundo capitalista os ganhos de eficiência resultam em aumento lucros e,
em seguida, aumento da escala da produção, seja no mesmo empreendimento, seja com

35 A proposta de James Hansen consiste na redução das emissões de carbono à taxa de 6% ao ano a partir
de 2013, e pressupõe o concomitante sequestro de 100 GTon de carbono através de melhores práticas de
tratamento do solo e reflorestamento. O atraso até 2020 acarretaria uma taxa de 15% ao ano. As
projeções da IEA foram interpoladas linearmente para a construção do gráfico. Os cenários estão
descritos em INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (2012) World energy outlook 2012, op. cit. e
HANSEN, J. ET AL (2012) Scientific case for avoiding dangerous climate change to protect young
people and nature. Disponível em http://pubs.giss.nasa.gov/abs/ha08510t.html (acesso em
dezembro/2012).
36 MEINSHAUSEN, M.; MEINSHAUSEN, N.; HARE, W.; RAPER, S. C. B.; FRIELER, K.; KNUTTI, R.;

FRAME, D. J. & ALLEN, R. (2009) “Greenhouse-gas emission targets for limiting global warming to
2oC”, Nature 458 (April 2009): 1158-1163.
123
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a mediação do mercado financeiro, tendendo assim a anular a economia de combustível


(e de emissões) anterior. Isto já foi demonstrado desde o tempo da Inglaterra vitoriana
por Stanley Jevons, que mostrou que o consumo de carvão aumentava à medida que as
máquinas a vapor se tornavam mais eficientes (ver figura 11).

Fig. 11: evolução do consumo de carvão e da eficiência de máquinas a vapor na Inglaterra37.

A própria IEA reconhece que o cenário 450 não é “uma projeção baseada nas
tendências do passado, ele deliberadamente seleciona um caminho energético
plausível”. Mais: afirma que, caso não se mude os rumos até 2017, todas as emissões
admissíveis estarão já contidas (locked-in) na infraestrutura energética construída até
então38. Como bons tecnocratas, eles se recusam a enunciar que isto não se realizará se
depender apenas das forças do mercado, mas apenas com ação (anti)política. O que se
vê na realidade é que fortes investimentos estão sendo feitos para uma caçada aos

37 Eficiência aqui é medida como o número de libras de água que pode ser elevado à altura de um pé
utilizando um bushel (84 libras) de carvão. Os dados são de JEVONS, S. (1865) The coal question: an
inquiry concerning the progress of the nation, and the probable exhaustion of our coal mines, capítulos
VII e XII. http://www.econlib.org/library/YPDBooks/Jevons/jvnCQ7.html (acessado em
dezembro/2012).
38 IEA (2012) World energy outlook 2012, op. cit., p. 25 e 34.

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combustíveis fósseis não-convencionais, nos locais mais improváveis e de difícil acesso.


O próprio Brasil está buscando petróleo em águas profundas (pré-sal). Nos Estados
Unidos, o processo conhecido como fracking está aumentando significativamente as
reservas de gás natural (gás de xisto ou folhelho)39, causando uma forte oferta e baixa
nos preços, processo que deve se estender ao óleo, sem esquecer o petróleo em águas
profundas no Golfo do México. O Canadá busca a sua areia betuminosa, e o Iraque
promete ser a bola da vez. O gás de xisto e o óleo de areia betuminosa emitem muito
mais carbono do que os combustíveis convencionais.
De tudo isso, fica demonstrado que o capital, em seu movimento de
autovalorização, é cego para a possibilidade iminente de uma emergência climática. O
tempo abstrato capitalista que proletariza os trabalhadores também contradiz os tempos
do ciclo do carbono, e fissura o metabolismo social com a natureza. Parece que nos
encaminhamos a passos largos para o uso da bala de prata do aquecimento global, a
“geoengenharia”, que consiste na manipulação tecnológica intencional do clima, como
por exemplo o lançamento de material particulado na estratosfera para refletir a
radiação solar, ou o lançamento de ferro nos oceanos para causar o crescimento de algas
que absorvem carbono – técnicas que têm consequências em muitos aspectos
imprevisíveis e incorporam muitos riscos. Recentemente, um experimento em
desacordo com os regulamentos internacionais foi iniciado no Canadá por uma empresa
privada, com despejo de 100 toneladas de sulfato de ferro no oceano, supostamente para
tentar auferir lucros com créditos de carbono.40 A geoengenharia é uma tentação forte
para o capital, pois estudos indicam que algumas técnicas seriam muito baratas 41 –
ainda que tenha sido demonstrado que o sistema climático submetido à geoengenharia

39 O gás natural convencional emite menos carbono do que o carvão e o petróleo, como destacado na nota
22. O fracking, porém, produz emissões fugitivas de metano, de forma que suas emissões são
comparáveis às do carvão. Cf. HOWARTH, R W.; SANTORO R. & INGRAFFEA, A. (2011) “Methane and
the greenhouse-gas footprint of natural gas from shale formations”, Climatic Change Letters 106 (4):
679-690.
40 Ver LUKACS, M. (2012) “World’s biggest geoengineering experiment ‘violates’ UN rules”, The

Guardian, 15 October 2012. Disponível em


http://www.guardian.co.uk/environment/2012/oct/15/pacific-iron-fertilisation-geoengineering
(acessado em dezembro/2012).
41 BARRETT, S. (2007) “The incredible economics of geoengineering”, Environmental and Resource

Economics 39 (1): 45-54.


125
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

ficaria vulnerável a falhas tecnológicas, podendo sofrer alterações bruscas


catastróficas42.

***

Contradizendo de maneira absoluta os cenários tradicionais propostos pela IEA e


outros semelhantes43, o modelo de “transição solar” proposto por David e Peter
Schwartzman44 aponta a perfeita viabilidade de transição da infraestratura fóssil para
um solar (fotovoltaica e eólica). Sabe-se que a energia solar disponível excede em muito
as necessidades humanas atuais e futuras45. O modelo se baseia em pressupostos
simples: dada a potência energética fóssil existente, o retorno energético por energia
investida (EROI) das energias renováveis46, uma fração da potência fóssil aplicada no
desenvolvimento da potência renovável (fFF), uma fração da potência renovável
reaplicada na sua expansão (f), e a vida útil da infraestrutura renovável (L), tem-se o
tempo necessário para que R, a razão entre a potência fóssil e a potência renovável seja
igual à unidade, ou seja, para que a base renovável possa substituir completamente a
base fóssil. A figura 12 (a seguir) mostra que para valores realistas dos parâmetros do
modelo, e mesmo utilizando apenas 1% da potência energética fóssil disponível, uma
transição solar é perfeitamente viável, podendo ser atingida em menos de 40 anos.
Nestas simulações, a energia fóssil é abandonada após vinte anos, após inicialmente

42 BROVKIN, V.; PETOUKHOV, V.; CLAUSSEN, M.; BAUER, E.; ARCHER, D. & JAEGER, C. (2009)
“Geoengineering climate by stratospheric sulfur injections: Earth system vulnerability to technological
failure”, Climate Change 92: 243-259.
43 Para uma crítica do modelo de William Nordhaus, que usa a taxa de juros para descontar os danos

futuros do aquecimento global, ver meu texto CUNHA, D. (2012) “O Antropoceno como alienação”, op.
cit.
44 SCHWARTZMAN, P. D. & SCHWARTZMAN, D. W. (2011) A solar transition is possible, London:

IPRD. Disponível em www.solarutopia.org (acessado em dezembro/2012).


45 Descontando a radiação solar e o vento incidente sobre os oceanos e montanhas, áreas de pouco vento e

áreas protegidas, a energia disponível seria cerca de 35 vezes maior do que a projeção de demanda
energética para 2.030. Mas a capacidade exigida seria menor em relação às fontes fósseis devido à maior
eficiência das fontes renováveis. Cf. JACOBSON, M. Z. & DELUCCHI, M. A. “A path to sustainable
energy by 2030”, Scientific American, Nov 2009: 58-65.
46 Ou seja, quantas unidades de energia são produzidas por unidade de energia utilizada na construção da

infraestrutura renovável.
126
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“parasitar” a infraestrutura fóssil. 47

Fig. 12: Transição solar, utilizando modelo de Schwartzman & Schwartzman

O que este modelo de transição solar demonstra é que, afora um temporário


gargalo de disponibilidade de alguns metais48, não existe nenhum
impedimento técnico ou material para uma transição solar: a tecnologia já existe, já tem
eficiência suficiente e é capaz de fornecer toda a energia que o mundo necessita. Ou seja,
trata-se de um modelo baseado no valor de uso, nas propriedades concretas, sensíveis –
o que se quer é energia, não transformar dinheiro em mais dinheiro (“onde está o estudo
de viabilidade financeira?”, perguntará o fetichista). O que impede a transição
tecnológica socialmente desejável e ecologicamente necessária é tão somente a camisa

47 Evidentemente, o crescimento exponencial da infraestrutura solar (curvas preta, laranja e azul na figura
12) pode e deve ser interrompido quando as necessidades sociais estiverem satisfeitas. O modelo se
dedica a demonstrar a viabilidade de uma transição solar “abundante”, ou seja, que pode fornecer tanta
ou mais energia do que uma base energética fóssil. As curvas vermelha e verde representam transições
solares inviáveis, pois após o abandono da energia fóssil apresentam decaimento ou mantém-se com
capacidade baixa.
48 Cf. SCHWARTZMAN & SCHARTZMAN (2011), op. cit. e JACOBSON, M. Z. & DELUCCHI, M. A. “A

path to sustainable energy by 2030”, op. cit.


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de força do capital. Portanto, estas curvas de transição solar são referências utópico-
materiais, que só podem se realizar com um movimento social que force a mudança do
rumo da história. Não seria nada fácil dispor socialmente sobre o uso do petróleo,
mesmo que seja de uma pequena fração de 1% – o capital certamente resistirá.
***
Em muitos países “em desenvolvimento” de forma geral, e em particular no caso
do Brasil, a maior parte das emissões de carbono provém de mudanças de uso do solo
(desmatamento), e não da combustão de combustíveis fósseis.49 Além disso, boa parte
da matriz energética nacional é composta de energia hidráulica e biocombustíveis, que,
em sentido estrito, são formas de energia solares (o sol é a fonte energética que sustenta
o ciclo hidrológico e a fotossíntese). Seria um erro, porém, considerar que a transição
solar – considerada aqui como transição para uma infraestrutura fotovoltaica e eólica –
é supérflua nestes países, por vários motivos. Os dados indicam que as emissões por
desmatamento apresentam uma tendência decrescente, enquanto as emissões por
queima de combustíveis fósseis aumentam50. As recentes políticas do governo de
incentivo à venda de automóveis e subsídio ao preço da gasolina devem intensificar esta
tendência.51 Ainda, há a perspectiva de exploração de combustíveis fósseis não-
convencionais – além do óleo de águas profundas (pré-sal), já se anuncia a exploração
de gás de xisto (fracking)52. Ainda que não pareça provável que o Brasil se assemelhe à
China em termos de emissões, há pressões para o aumento de emissões fósseis que
podem nos levar à mesma direção que já tomaram China e Índia, por exemplo.
De outra parte, o potencial de energia hidráulica no Brasil, apesar de segundo os
dados oficiais ainda ser cerca de 70% inexplorado 53, já se encontra saturado, a não ser

49 Cf. MINISTERIO DA CIENCIA E TECNOLOGIA (2010) Inventário brasileiro de emissões antrópicas


por fontes e remoções por sumidouros de gases de efeito estufa não controlados pelo Protocolo de
Montreal, Parte 2, p. 141. Disponível em http://www.mct.gov.br/upd_blob/0214/214061.pdf (acesso em
dezembro/2012).
50 Cf. INPE http://inpe-em.ccst.inpe.br/ e MINISTERIO DA CIENCIA E TECNOLOGIA (2010), op. cit.
51 Projeta-se que a frota de veículos automotores irá dobrar de 2009 a 2020, devido principalmente ao

aumento de veículos leves (automóveis). Cf. MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA & EMPRESA DE
PESQUISA ENERGÉTICA (2011) Plano decenal de expansão de energia 2020, p. 24-25.
52 Ver IPT, “Gás de folhelho: estudo de pré-viabilidade busca analisar potencialidade e impacto do insumo

no estado de São Paulo”, http://www.ipt.br/centros_tecnologicos/CETAE/noticias/616-


gas_de_folhelho.htm (acessado em dezembro/2012); ZERO HORA, “Estado tem potencial de gás de
xisto”, http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/economia/noticia/2013/01/estado-tem-potencial-em-gas-de-
xisto-4009559.html (acessado em janeiro/2013).
53 Cf. MINISTERIO DE MINAS E ENERGIA (2007) Matriz energética nacional 2030, Brasília: EPE, p.

23-28.
128
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que se faça completa abstração das suas “externalidades”. A maior parte do potencial
inexplorado se encontra na região amazônica.54 Portanto, apenas tecnocratas fanáticos
do “desenvolvimento” a qualquer preço podem pensar seriamente na utilização do
potencial remanescente – mas segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia, Belo
Monte é apenas o começo de uma série de hidrelétricas planejadas para a região da
floresta amazônica.55 Soma-se a isso o fato de que, apesar de serem “menos sujas” do
que termelétricas a carvão, as barragens também emitem gases estufa, devido à
decomposição dos resíduos de biomassa, inclusive metano (gás estufa mais potente do
que o dióxido de carbono), pela decomposição anaeróbia no fundo da barragem.56 Este
efeito é intensificado justamente em áreas de floresta tropical, onde há grande
densidade de biomassa. A barragem de Tucuruí emitiu mais gases estufa do que as
emissões de combustíveis fósseis da cidade de São Paulo57. O caso dos biocombustíveis
também é problemático, pois, com o seu cultivo intensivo, utiliza emissões fósseis
embutidas em fertilizantes e pesticidas sintéticos, transporte, etc. A utilização de área
agrícola em época de crise de produção de alimentos e expansão da fronteira agrícola na
floresta tropical é igualmente questionável, podendo intensificar o desmatamento58 –
sem esquecer o infame trabalho escravo nos canaviais. De forma que, mantidas as
tendências atuais de demanda e produção energética no país, estaremos diante da
alternativa de mais barragens na Amazônia ou termelétricas movidas a combustível
fóssil ou mais área agrícola destinada a “alimentar” automóveis .
Há uma distinção qualitativa das emissões de carbono fóssil: são emissões que
extraem carbono confinado na crosta terrestre para a atmosfera, enquanto o uma
floresta desmatada pode voltar a armazenar carbono com a sua regeneração em uma

54 Cf. MINISTERIO DE MINAS E ENERGIA (2007), op. cit., p. 23-28.


55 Das 25 novas barragens previstas para 2016-2020, 8 situam-se na região norte; no entanto, são as de
maior capacidade de geração, perfazendo 15.498 MW de um total de 18.185 MW (85%). Destaca-se a
UHE de São Luís do Tapajós, com 6.133 MW. Cf. MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA & EMPRESA
DE PESQUISA ENERGÉTICA (2011) Plano decenal de expansão de energia 2020, p. 64.
56 O quanto as hidrelétricas são “menos sujas” do que as termelétricas é tema de longo debate científico

entre Philip Fearnside e Luiz Penguelli Rosa, que não analisaremos aqui.
57 Cf. FEARNSIDE, P. M. (2002) “Greenhouse gas emissions from a hydroelectric reservoir (Brazil’s

Tucuruí dam) and the energy policy implications”, Water, Air and Soil Pollution 133: 69-96.
58 Estudo sobre a substituição da gasolina por biodiesel nos EUA indicou que caso seja computado o efeito

da mudança de uso da terra (conversão de florestas e campos em áreas de cultivo), as emissões de gases
estufa do biodiesel seriam maiores. Cf. SEARCHINGER, T.; HEIMLICH, R.; HOUGHTON, R. A.;
DONG, F; ELOBEID, A.; FABIOSA, J.; TOKGOZ, S.; HAYES, D. & YU, T-H. (2008) “Use of U. S.
croplands for biofuels increases greenhouse gases through emissions from land-use change”, Science
319: 1238-1240.
129
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escala de tempo muito mais rápida do que a necessária para que os compartimentos
ambientais globais (oceanos, crosta terrestre via intemperismo) absorvam o carbono
fóssil lançado à atmosfera. A preservação da floresta amazônica, de toda forma,
prescinde da ocorrência do aquecimento global, justificando-se independentemente dele
pela preservação da biodiversidade, regulação climática, direitos de povos indígenas,
questões éticas, estéticas, etc. Não custa lembrar que a atmosfera funciona como um
“tanque de mistura rápida”, ou seja, a concentração de carbono atmosférico é para todos
os efeitos práticos homogênea globalmente, de forma que o enfrentamento do
aquecimento global é inclusive geofisicamente uma questão globalizada,
independentemente da origem territorial das emissões – a questão deve ser enfrentada
transnacionalmente, mesmo quando se enfrenta questões locais, porque os efeitos da
mudança climática tampouco reconhecerão fronteiras nacionais. De fato, uma das
possíveis consequências do aquecimento global é a conversão da floresta amazônica em
savana, já que parece haver estados alternativos entre ecossistemas de tipo floresta
tropical e savana em função da variação da pluviosidade.59

***

Neste ponto deve estar claro que é um equívoco afirmar que o capitalismo é
“materialista”, como faz a ideologia ecologista vulgar. O capital, em sua expansão cega,
desconsidera completamente os ciclos materiais do planeta. Seu desenvolvimento
irracional é capaz de levar ao aumento das emissões de carbono em plena emergência
climática global – algo semelhante a usar um lança-chamas em um incêndio a fim de
“otimizar a alocação dos recursos”. Das mazelas materiais que estão a caminho –
inundação de cidades costeiras, extinção em massa de espécies, aumento da frequência
de ondas de calor e tempestades, migrações em massa, colapso da agricultura,
proliferação de epidemias – o capital faz total abstração. O que se tem, na verdade, é um
sistema fetichista, no qual as decisões sociais fogem ao controle dos envolvidos. Como
diz Moishe Postone:
O sonho implicado pela forma capital é o da total ausência de limites, uma fantasia de
liberdade como a completa liberação da matéria, da natureza. Este “sonho do capital”

59 Cf. HIROTA, M.; HOLMGREN, M.; VAN NES, E.; SCHEFFER, M. (2011) “Global resilience of tropical
forest and savanna to critical transitions”, Science 334: 232-235.
130
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está se tornando o pesadelo daquilo que ele se esforça por libertar-se: o planeta e seus
habitantes.60

Antes, trata-se de niilismo, já que quando do seu desenvolvimento pleno, a


valorização do valor passa ser cada vez mais destrutiva, aniquiladora do mundo 61. É
preciso apontar para a direção contrária: o materialismo radical, que exige tomar as
coisas pela raiz para reconfigurar o modo de produção social e, portanto, o metabolismo
social com a natureza. Debord, talvez subestimando a capacidade do capitalismo de
mistificar as massas, dizia que
a simples verdade das “nocividades” e dos riscos atuais é suficiente para constituir um
imenso fator de revolta, uma exigência materialista dos explorados, tão vital quanto foi
no século XIX a luta dos proletários pela possibilidade de comer62.

Da mesma forma, não se pode dizer que o capitalismo é antropocêntrico. Pelo


contrário, trata-se de realizar o antropocentrismo, já que no capitalismo o sujeito é
sujeitado pelas coerções do capital. O antropocentrismo, de fato, só pode ser efetivo com
a superação (Aufhebung) do capital. Tratar-se-ia, porém, de um antropocentrismo não-
instrumental63, que reconhece a natureza como sujeito: “paz é um estado de
diferenciação sem subjugação, em que o diferente é compartilhado” 64. Žižek, por sua
vez, clama pelo “egoísmo esclarecido” para lembrar que não se trata de mirar
capitalistas individuais, mas o sistema do qual os capitalistas são apenas
personificações:

Não deveríamos dizer que o capitalismo é sustentado pela ganância egoísta dos
capitalistas individuais, pois o seu egoísmo é subordinado ao esforço do próprio capital
para reproduzir-se; o que precisamos é de mais, não menos, egoísmo esclarecido (...) São
as nossas preocupações ecológicas que estão ancoradas em um sentido utilitário de
sobrevivência65.

60 POSTONE, M. (1993/2003) Time, Labor, and Social Domination: a reinterpretation of Marx’s critical
theory, Cambridge: Cambridge University Press, p. 383.
61 Cf. JAPPE, A. “Crítica social ou niilismo? O ‘trabalho do negativo’: de Hegel e Leopardi até o presente”,

nesta edição da Sinal de Menos.


62 DEBORD, G. (1971/2009) “O planeta enfermo”, Sinal de Menos n. 2: 151-159, disponível em

www.sinaldemenos.org (acessado em novembro/2012).


63 Tomo emprestada a expressão “antropocentrismo não-instrumental” de BIRO, A. (2011) Ecological

crisis and the culture industry thesis, In: BIRO, A. (org.), Critical ecologies: the Frankfurt School and
contemporary environmental crises, Toronto: University of Toronto Press
64 ADORNO, T. W. (1969/2003) “Sobre sujeto y objeto”, In: Adorno, T. W. Consignas, Madrid:

Amorrortu, p. 145.
65 ZIZEK, S. (2010) Living in the End Times, New York: Verso, 2010, p. 334-335.

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Materialismo radical, antropocentrismo não-instrumental e egoísmo


esclarecido socialmente partilhados, é disso que se trata para agir efetivamente sobre a
grave questão que se apresenta no horizonte da humanidade66, e cuja raiz está na
metafísica real do sistema sem sujeito que é o capitalismo. Por sua dinâmica peculiar, o
problema do aquecimento global se revela intergeracional. Mas uma “ética do futuro”
pressupõe um sujeito emancipado: o movimento de superação do capital que rompe o
tempo fetichizado67 e permite que a reflexão e a ação coletivas sobre o futuro se libertem
do jugo do capital que rende juros.68

***
Se a técnica avançada está configurada pelo capital, esta forma de relações sociais
que é historicamente determinada, isto implica que ela não é unidimensional; a técnica
é dialética e pode ser reconfigurada e ressignificada. De fato, “a função mais crítica da
tecnologia moderna deve ser a de manter as portas da revolução abertas para sempre” 69
– é no poder da técnica desenvolvida a partir da queima de combustíveis fósseis que
está contido o potencial de um “comunismo solar”. Quais seriam, então, as tarefas
técnico-sociais de combate ao aquecimento global decorrentes do materialismo radical?
É fácil enunciá-las: a já mencionada transição solar; manutenção do carvão e da maior
parte do petróleo e do gás natural embaixo da terra; agroecologia, o que inclui a

66 E que já começou a surtir os seus efeitos. Em 2012, o gelo no Ártico reduziu-se à menor área já
registrada. Recentemente publicou-se artigo científico mostrando que os eventos de temperaturas
extremas (ondas de calor) já se tornaram estatisticamente mais frequentes. Cf. HANSEN, J.; SATO, M.;
RUEDY, R. (2012) “Perception of climate change”, Proceedings of the National Academy of Sciences
109 (37): 14726-14727, E2415-E2423. Disponível em http://pubs.giss.nasa.gov/abs/ha00610m.html
(acessado em novembro/2012).
67 Lembrando Benjamin: “A consciência de destruir o contínuo da história é própria das classes

revolucionárias (...) Na Revolução de Julho aconteceu ainda um incidente em que esta consciência
ganhou expressão. Chegada a noite do primeiro dia de luta, aconteceu que, em vários locais de Paris,
várias pessoas, independentemente umas das outras e ao mesmo tempo, começaram a disparar contra
os relógios das torres”. BENJAMIN, W. “Sobre o conceito da história”. In: BENJAMIN, W. (2010) O
anjo da história: obras escolhidas de Walter Benjamin, Lisboa: Assírio e Alvim.
68 Para uma crítica da utilização da taxa de juros como fator determinante em cenários climatológico-

econômicos do aquecimento global, ver CUNHA, D. (2012), “O Antropoceno como alienação” op. cit.
69 BOOKCHIN, M. (1965) “Towards a liberatory technology”, In: M. Bookchin, Post-scarcity anarchism,

Edinburgh: AK Press, p. 77-78.


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interrupção do desmatamento e o reflorestamento; reconfiguração das cidades e seus


sistemas de transporte, com ênfase no transporte público elétrico solarizado e na
bicicleta; abolição da obsolescência programada; abolição dos ritmos frenéticos;abolição
da produção de bugigangas; abolição do complexo industrial-militar; abolição da
máquina de publicidade da indústria cultural; apropriação e redefinição do uso da
tecnologia avançada (automação, etc.). Isto é apenas o óbvio para quem pensa a questão
segundo os requisitos da sobrevivência material e da “boa vida”. Mas implementá-lo em
larga escala – e não apenas em pequenos nichos ou como “lavagem verde” – é o
impensável para o Capital. Como descrito por Dickens e Monet (figura 13), trata-se de
uma luta – entre a luz e o luto.

Fig. 13: Claude Monet, Le Parlement, Troué de soleil dans le brouillard, óleo sobre tela (1904)

(Dezembro/2012 - Janeiro/2013)

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As sutilezas metafísicas do
negacionismo climático
Como a esquerda tradicional adere à ideologia negacionista

Daniel Cunha

O negacionismo climático – o questionamento da validade da teoria do


aquecimento global – está geralmente associado a ideologias ultraconservadoras nos
Estados Unidos e à defesa dos interesses corporativos das companhias petrolíferas. No
Brasil, no entanto, a novidade é que surgem formas de negacionimo climático que
criticam a teoria do aquecimento global utilizando os conceitos da teoria crítica, nos
casos mais refinados, ou do nacionalismo terceiro-mundista, nos casos mais rústicos.1
Aqui faremos a crítica da tese de doutorado de Daniela Onça, que pretende usar a
sofisticação da teoria crítica para demonstrar a invalidade da teoria do aquecimento
global, que seria, segundo ela, uma ideologia de legitimação do capitalismo tardio.2 Não
pretendemos fazer uma crítica detalhada desta obra – falta-nos espaço aqui, e há muitas
outras obras que fazem a crítica científica detalhada dos argumentos negacionistas em
publicações especializadas e populares – mas expor as falhas nas grandes linhas de seu
argumento. Não abordaremos aqui a questão do financiamento de muitos destes
“céticos” por corporações petrolíferas e a desonestidade intelectual de muitos dos
negacionistas, que já estão documentados na literatura 3 (e não estamos afirmando que
se trata disto do caso de Onça). Tampouco consideramos que a ciência climática atual

1Seus textos são reunidos na página www.fakeclimate.com (acesso em novembro/2012).


2 ONÇA, D. (2011), “Quando o sol brilha, eles fogem para a sombra...”: a ideologia do aquecimento
global. Tese de doutorado, FFLCH/USP, São Paulo. Disponível em
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8135/tde-01062011-104754/pt-br.php (acesso em
dezembro/2012). A partir daqui as referências a esta obra serão identificadas no corpo do texto como
“Onça”, seguido pelo número da página, como em (Onça 150).
3 Sobre isto, ver FOUCART, S. (2010) Le populisme climatique: Claude Allègre et Cie, enquête sur les

ennemis de la science, Paris: Denoël e ORESKES, N. & CONWAY, E. (2010) Merchants of doubt, New
York: Bloomsbury. Sobre o climate gate, uma as maiores mistificações de massa já produziadas pela
indústria cultural, ver o livro de um dos cientistas envolvidos: MANN, M. E. (2012) The hockey stick and
the climate wars: dispatches from the frontlines, New York: Columbia University Press.
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seja à prova decríticas (o que seria anticientífico) ou que os processos políticos


relacionados não envolvam distorções ou ideologizações. O objetivo aqui é fazer uma
crítica imanente da tese de Onça.
Evidentemente, estamos de acordo com os pressupostos da teoria crítica e do
materialismo utilizados por Onça, e consideramos desnecessário discutir isto aqui.
Assim, compartilhamos com Onça a crítica à chamada “ecologia profunda” e suas
variantes mais ou menos místicas – teoria de “Gaia”, etc. – que consideram que a
natureza é um organismo vivo mais ou menos consciente, tendendo teleologicamente a
um equilíbrio ou harmonia idealizados – o que no limite é uma forma de animismo.
Este é o terreno comum no qual se travará a crítica aqui desenvolvida.
A volumosa tese de Onça discorre por mais de quinhentas páginas ao longo de
três eixos de argumentação principais: 1) que a natureza está em constante
transformação, que não existe um estado de equilíbrio “harmonioso” natural imutável e
que, portanto, não há razão para temermos ou nos contrapormos a estas mudanças; 2)
que a teoria do aquecimento global é científica e empíricamente falsa; e 3) que o
aquecimento global antropogênico é uma ideologia de legitimação do capitalismo tardio.
Desenvolveremos aqui a crítica de cada um destes eixos.

Natureza, mudanças e limiares


Para identificar as raízes histórico-sociais da crença na imutabilidade da
natureza, diz Onça que

ao longo de toda a história do ocidente, verificamos que um dos temas dominantes em


filosofia da natureza é a crença de que o universo, o sistema solar e a Terra são perfeitos
demais para terem acontecido por mero acaso (...) Tanto a tradição greco-romana quanto
a judaico-cristã imaginam uma ordem na natureza ditada pela divindade e encontram
prova disso na notável adequação da Terra como habitat de suas espécies (Onça 49).

Após discorrer sobre o desenvolvimento histórico da teologia, filosofia e ciência


ocidentais, conclui Onça:
as ideias sobre a perfeição da natureza e a interferência humana sobre ela (...) nunca
desapareceram por completo da nossa ciência, deixando no ar um resquício de um ideal
de que a natureza imperturbada funciona perfeitamente. (...) A hipótese do aquecimento
global é um caso emblemático da persistência desses pressupostos metafísicos ilusórios
sobre a estabilidade e a perfeição da natureza na ciência moderna. (Onça 66-7)

Não há o que discordar quanto ao fato de que o clima da Terra, na escala de


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tempo geológica, apresentou grandes mudanças. Basta pensarmos nas eras glaciais
disparadas pelos ciclos de Milankovitch ou na extinção dos dinossauros, provavelmente
causada pela queda de um meteoro que causou mudanças no sistema climático. É
cientificamente muito bem estabelecido em ecologia, porém, que a homeostase 4 é
propriedade real de ecossistemas, em todas as escalas. Se efetivamente não se pode
esperar resiliência5 infinita de ecossistemas dinâmicos, parece ser adequado descrever a
história do sistema terrestre e seus subsistemas como a sucessão de diferentes estados
homeostáticos, com transições mais ou menos catastróficas. O salto metafísico de Onça
pode ser constatado na seguinte afirmação:
Muitos eventos interpretados hoje como catástrofes climáticas são completamente
naturais e comuns, e não há justificativa para fixarmos uma determinada configuração
climática como “normal” ou “preferível”. (Onça 358, grifo nosso).

Aqui, Onça faz total abstração de que as civilizações humanas nasceram e se


desenvolveram sob condições climáticas muito específicas, no período de dez mil anos
conhecido como Holoceno (ver figura 1 a seguir):
Durante o Holoceno, as mudanças ambientais ocorreram naturalmente, e a capacidade
regulatória do planeta manteve as condições que permitiram o desenvolvimento
humano. Temperaturas estabilizadas, disponibilidade de água doce e ciclos
biogeoquímicos, todos permaneceram dentro de limites relativamente estreitos6.

Particularmente, estas condições específicas possibilitaram a estabilização dos


níveis dos mares. Sabe-se que as primeiras civilizações floresceram em estuários férteis
– Egito, Mesopotâmia, etc. – o que não seria viável sem esta estabilidade. Até hoje, a
maior parte da população mundial vive em áreas costeiras. É verdade que hoje temos
recursos técnicos para enfrentar situações adversas – vide os megadiques da Holanda –,
mas essas técnicas são muito custosas e têm limites.

4 “Homeostase” é a propriedade de ecossistemas de regular o seu ambiente, através de mecanismos de


regulação que emergem da relação entre os seus componentes, mantendo um estado de equilíbrio
dinâmico.
5 “Resiliência” é a propriedade de ecossistemas de recuperar o seu estado homeostático original após
sofrer um distúrbio.
6 ROCKSTROM ET AL. (2009), “A safe operating space for humanity”, Nature 461, September 2009, p.
472-475.
136
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Temperatura antártica (Vostok)

T (anomalia C)
Holoceno

o
Última era do gelo

Concentração de CO2
CO2 (ppm)

Nível do mar
Nível do mar (m)

Tempo (milhares de anos antes de 1750)

Figura 1: anomalia de temperatura, CO2 atmosférico e nível do mar nos 400 mil
anos anteriores à Revolução Industrial (1750)7

A análise de Onça também ignora a dinâmica não-linear do sistema climático.


Em sistemas dinâmicos não-lineares a ultrapassagem de certos limiares pode ser causa
da brusca passagem do sistema do seu estado original para um estado alternativo
bastante diferente.8 O sistema climático também pode estar sujeito a mudanças

7 Define-se como “anomalia de temperatura” o desvio da temperatura média global em relação àquela do
período de 1951 a 1980. Adaptado da página de Makiko Sato e James Hansen:
http://www.columbia.edu/~mhs119/ (acesso em novembro/2012).
8 Este tipo de comportamento, que pode apresentar multiplicidade de estados estacionários e histerese –

ou seja, a propriedade de ecossistemas de apresentar dois diferentes estados possíveis para as mesmas
variáveis de estado, sendo o estado efetivo determinado pela sua história anterior –, já foi demonstrado
em modelos e experimentalmente em ecossistemas como lagos rasos temperados. Os lagos rasos
temperados mudam subitamente de estado (de límpido para turvo ou eutrofizado e vice-versa) com a
variação da concentração de nutrientes. Há registro científico da manipulação intencional
(biomanipulação) para forçar a transição do estado turvo para o estado límpido. Também a evolução das
espécies parece seguir este comportamento dinâmico, como proposto por Niles Eldredge e Stephen Jay
Gould em sua teoria do “equilíbrio pontuado”, baseando-se no fato de que a evolução das espécies,
conforme os registros fósseis, parece ser caracterizado por longos períodos de estabilidade (homeostase)
pontuados por súbitas explosões evolutivas. Sobre mudanças catastróficas em ecossistemas, ver
SCHEFFER, M.; CARPENTER, S.; FOLEY, J. A.; FOLKE, C. & WALKER, B. (2001) “Catastrophic shifts
in ecosystems”, Nature 413: 591-596. Sobre o caso específico dos lagos rasos temperados (modelo
clássico de multiplicidade de estados estacionários) ver SCHEFFER, M.; HOSPER, S. H.; MEIJER, M-
L.; MOSS, B. & JEPPESEN, E. (1993) “Alternative equilibria in shallow lakes”, Tree 8 (8): 275-279.
Sobre biomanipulação em lagos rasos, ver MEIJER, M-L.; DE BOOIS, I.; SCHEFFER, M.; PORTIELJE,
R. & HOSPER, R. (1999) “Biomanipulation in shallow lakes in the Netherlands: an evaluation of 18 case
studies”, Hydrobiologia 408/409: 13-30. Sobre equilíbrio pontuado, ver ELDREDGE, N.; GOULD, S. J
(1972). “Punctuated equilibria: an alternative to phyletic gradualism”, In: Schopf, T. J. M. (ed.), Models
in Paleobiology. San Francisco: Freeman, Cooper and Company, pp. 82-115.
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catastróficas, e há registros paleoclimáticos de mudanças súbitas (ao longo de décadas)


na escala regional9. O melhor exemplo deste comportamento não-linear pode ser
buscado em dados paleoclimáticos, nas transições entre períodos glaciais e interglaciais.
Este fenômeno natural é causado primeiramente por pequenas variações na órbita
terrestre (ciclos de Milankovitch). A partir disto, retroalimentações 10 positivas no
sistema climático podem levá-lo a ultrapassar um certo limiar, no qual há a passagem de
um estado glacial para um interglacial. Os dados sugerem que os estados intermediários
não são estáveis, e o sistema climático tendeu a permanecer em um destes dois estados,
com transições entre eles. É isto o que prevêem os modelos de tipo Budyko-Sellers,
baseados no balanço energético da Terra e na mudança do albedo de sua superfície, que
muda a sua refletividade: quando a frente de gelo polar atinge determinada latitude, a
dinâmica interna do sistema é disparada e torna-se irreversível, e o planeta entra em
uma era glacial; o processo também ocorre no sentido inverso11, disparado pela lenta
acumulação de carbono atmosférico proveniente das erupções vulcânicas, combinada
com a redução do intemperismo das rochas em condições glaciais, que remove carbono
da atmosfera.
No caso do aquecimento global antropogênico, existe a possibilidade de um
aquecimento global irreversível (runaway climate change), no qual o aquecimento
global, devido ao incremento dos gases estufa, potencializado pelas retroações positivas,
acarreta a completa evaporação dos oceanos. Isto também é conhecido como “síndrome
de Vênus”, já que são estas as condições naquele planeta. No caso do sistema climático

9 A modelagem e previsão destas mudanças catastróficas é sujeita a grandes incertezas devido ao elevado
grau de não-linearidade, mas vários potenciais limiares (tipping points) são estudados, inclusive em
dados paleoclimáticos. Para uma boa revisão sobre a possibilidade de mudanças climáticas bruscas, ver
ALLEY, R. B.; MAROTZKE, J.; NORDHAUS, W. D.; OVERPECK, J. T.; PETEET, D. M.; PIELKE JR., R.
A.; PIERREHUMBERT, R. T.; RHINES, P. B.; STOCKER, T. F.; TALLEY, L. D. & WALLACE, J. M
(2003) “Abrupt climate change”, Science 299: 2005-2010.
10 “Retroação” ou “retroalimenção” (feedback) no sistema climático é o fenômeno que é disparado pelo

aquecimento global que incrementa o aumento da temperatura global (retroação positiva) ou o


amortece (retroalimentação negativa). Um exemplo de retroação positiva é o derretimento das calotas
polares, que substituem superfície clara por superfície escura (que absorve mais calor) e assim catalisa o
aquecimento. Uma retroação negativa é a “bomba de solubilidade”, ou seja, o fato de que mais carbono é
solubilizado nos oceanos à medida que sua concentração na atmosfera aumenta (princípio de Le
Chatelier; este processo, no entanto, causa a acidificação dos oceanos, com outros problemas derivados).
11 Ver BUDYKO, M. I. (1969) “The effect of solar radiation variations on the climate of the Earth”, Tellus

21: 5, p. 611-619; SELLERS, W. D. (1969) “A global climatic model based on the energy balance of the
Earth-atmosphere system”, Journal of Applied Meteorology 8, June 1969, p. 392-400. Para uma
explanação didática, ver a página Snowballearth: http://snowballearth.org/ (acesso em
novembro/2012).
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terrestre, a maior parte dos cientistas, ao menos por ora, descarta esta hipótese 12.
Entretanto, cientistas mais pessimistas, como James Hansen, consideram que a
combustão de todas as reservas de carvão e petróleo não-convencional ocasionaria uma
“síndrome de Vênus” na Terra.13 Evidentemente, um planeta sob estas condições é
absolutamente inóspito a qualquer forma de civilização humana, ou mesmo às formas
de vida que conhecemos.
Além disso, a dinâmica dos fluxos de matéria e energia do planeta implica que a
escala de tempo e o progresso temporal das mudanças climáticas sejam muito distintas
daquelas a que estão acostumadas as instituições humanas. O aquecimento global
provocado pela emissão antropogênica de carbono à atmosfera é irreversível na escala
de tempo de pelo menos mil anos, mesmo que se interrompa completamente a emissão
de gases estufa para a atmosfera.14 Esse comportamento dinâmico do sistema climático
se deve a fenômenos físicos que têm os seus próprios tempos: o dióxido de carbono
tende a ser absorvido pelos oceanos, reduzindo assim a tendência de aquecimento, mas
isto é compensado pela diminuição da taxa de troca térmica com o oceano, de forma que
os efeitos se cancelam, mantendo a temperatura constante.15 Esta “inércia” do oceano,
favorecida pela sua enorme massa, implica que parte do aquecimento devido às
emissões passadas ainda está “armazenada no tubo”, vindo a realizar-se nas próximas
décadas. Devido a este comportamento dinâmico peculiar, é importante desde já
controlar os teores de carbono na atmosfera e suas emissões. Com base em dados
paleoclimáticos, já foi proposto um limite de segurança de 350 ppm de CO2
atmosférico, valor este que já foi ultrapassado.16

12 Cfe. IPCC, Thirty-first session of the IPCC: Bali 26-29 October 2009, disponível em
http://www.ipcc.ch/meetings/session31/inf3.pdf (acesso em novembro/2012).
13 HANSEN, James (2009) Storms of my grandchildren, New York: Bloomsbury, cap. 10.
14 Cf. SOLOMON, S.; PLATTNER, G. K.; KNUTTI, R. e FRIEDLIENGSTEIN, P (2009), “Irreversible

climate change due to carbon dioxide emissions”, Proceedings of the National Academy of Sciences, 106
(6), p. 1704-1709.
15 Devido ao fato de que a dinâmica de ambos os processos – absorção de dióxido de carbono e de calor

pelos oceanos – são limitados pelo mesmo processo físico, a mistura das águas oceânicas profundas.
16 A cessação das emissões pode fazer este valor recuar, se ocorrer antes que se atinja um limiar ou ponto

de não-retorno. Cf. HANSEN ET AL (2008) “Target atmospheric CO2: where should humanity aim?”,
Open Atmospheric Science Journal 2: 217-231. Outros consideram que 350 ppm é um valor
especulativo. Cf. NATIONAL RESEARCH COUNCIL (2011), Climate Stabilization Targets: emissions,
concentrations and impacts over decades to millenia, Washington: The National Academies Press, p.
230. A nosso ver, Hansen et al. não procuraram estabelecer um valor exato para um nível perigoso de
CO2 atmosférico, mas, a partir dos dados disponíveis, indicar um valor de precaução a ser considerado
nas decisões políticas, o que é obviamente necessário. Os próprios afirmam: “Sugerimos um objetivo
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Adiciona-se a isto o fato de que nunca houve um aumento tão brusco da


concentração de carbono atmosférico quanto após a Revolução Industrial. A taxa de
aumento do teor de carbono atmosférico dos últimos anos tem sido de cerca de 2
ppm/ano. O acúmulo natural de carbono na atmosfera, quando temporariamente
ocorre, pode chegar a 0,00001 ppm/ano.17 No maior evento atípico de aquecimento
global natural conhecido – provavelmente disparado pelo movimento das placas
tectônicas, amplificado por retroalimentações –, o máximo térmico do paleoceno-
eoceno (PETM) ocorrido há 55 milhões de anos, a quantidade de carbono emitido para a
atmosfera coincidentemente corresponde ao volume das reservas de combustíveis
fósseis atuais. Porém, as emissões se alongaram por cerca de 20 mil anos, e não na
escala de décadas, como é a tendência no capitalismo do século XXI. No PETM houve
extinção de algumas formas de vida marinha e adaptação das demais 18. Mas as
consequências de uma adição de carbono muito mais súbita são provavelmente
catastróficas. Além da velocidade da mudança climática ser crucial para a adaptação dos
seres vivos e ecossistemas19 (incluindo a agricultura), o aquecimento rápido deve anular
o efeito das retroações negativas lentas que tendem a amortecer o seu efeito em escalas
de tempo maiores, como o intemperismo das rochas que reduz o carbono atmosférico na
escala de milhões de anos – mas é desprezível na escala de décadas ou séculos, como é o
caso atual.
Portanto, ao afirmar que não existe “configuração climática preferível” no
planeta, sem analisar as condições materiais concretas que possibilitam a vida humana e
o desenvolvimento da civilização, e ao não levar em consideração a dinâmica peculiar
dos processos do sistema climático, Onça recai na mais pura metafísica, como se o
homem não dependesse, para o seu metabolismo com a natureza, de um “espaço de

inicial de reduzir o CO2 atmosférico para 350 ppm, com o alvo a ser ajustado à medida que o
entendimento científico e as evidências empíricas dos efeitos climáticos se acumularem”.
17 Cf. HANSEN ET AL (2008), op. cit.
18 Cf. CUI, Y. ET AL (2011) “Slow realease of fossil carbon during the Paleocene-Eocene Thermal

Maximum”, Nature Geoscience 4 July 2011: 481-485. Para uma exposição em linguagem mais popular,
ver KUMP, L. R. (2011) “The last great global warming”, Scientific American, July 2011, p. 57-61.
19 Com o aquecimento global, as espécies animais e vegetais precisam migrar em direção aos pólos ou

maiores altitudes, devido ao deslocamento das zonas climáticas. Isto pode ser causa de extinção de
espécies e colapso de ecossistemas, por exemplo, quando há barreiras para a migração (naturais, como
oceanos, ou artificiais, como cidades), ou quando a mudança é brusca demais. Adaptações evolutivas
também demandam tempo.
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operação seguro”20 das condições ambientais globais, e como se a sociedade pudesse


dispor dos tempos e ritmos para as necessárias mudanças sociais, econômicas e
tecnológicas como em qualquer outro tipo de decisão social. Fora daquela faixa de
condições materiais, as condições de desenvolvimento e mesmo de existência humanas
podem ser colocadas em xeque; para que se possa mantê-las dentro de um intervalo
seguro, é preciso agir a tempo.

O negacionismo como ideologia e fundamentalismo

Em sua cruzada contra a teoria do aquecimento global, Onça expõe uma grande
coleção de argumentos e contra-teorias disponíveis na literatura. Uma das fraquezas de
sua tese é que os argumentos mais diversos, por vezes mutuamente excludentes – por
exemplo, teorias alternativas para explicar o aquecimento global e teorias que negam a
ocorrência do aquecimento – são apresentados lado a lado, sem que seja feito um
balanço crítico. Aqui não buscaremos rebater detalhadamente cada um dos argumentos,
cuja refutação está disponível na literatura científica e de divulgação científica 21, mas
escolheremos o mais emblemático. Trata-se da teoria da retroação negativa causada
pelas nuvens levada a cabo por Richard Lindzen, o mais conceituado dos cientistas que
discordam da teoria do aquecimento global22.
Os cientistas climáticos sérios aceitam certos fatos básicos sobre o aquecimento
global: que a concentração de carbono na atmosfera está aumentando continuamente,
como mostrado pela curva de Keeling (ver figura 2); que este carbono atmosférico causa
efeito estufa, devido às propriedades de gases como dióxido de carbono, metano e vapor
d’água, que tornam a atmosfera mais opaca à radiação infravermelha (calor); que há

20 ROCKSTROM ET AL., “A safe operating space for humanity”, op. cit.


21 Ver, por exemplo, FOUCART, S. (2010), op. cit., e o blog Real Climate, mantido por cientistas do clima
– www.realclimate.org (acessado em novembro/2012).
22 Lindzen é professor de meteorologia no MIT e possui em seu currículo algumas contribuições

relevantes para a ciência climática. Além disso, o estilo do seu texto é elegante e atraente, remetendo a
um estilo de ciência mais “romântica” e menos matematizada, o que não é muito comum em publicações
altamente técnicas como são os artigos científicos sobre climatologia. Nos últimos tempos, porém,
Lindzen parece estar se especializando em argumentos e exposições falaciosas. Ver por exemplo a forma
falaciosa como apresentou dados de outro grupo de cientistas – “Misrepresentation from Lindzen”:
http://www.realclimate.org/index.php/archives/2012/03/misrepresentation-from-lindzen/ – ou como
selecionou dados de forma conveniente para “provar” suas teorias – “Lindzen and Choi unravelled”:
http://www.realclimate.org/index.php/archives/2010/01/lindzen-and-choi-unraveled/ (acessados em
dezembro/2012).
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uma medida de sensibilidade climática ao carbono, geralmente considerada como o


aumento da temperatura média da superfície terrestre resultante de uma duplicação
instantânea da concentração de carbono na atmosfera 23; e que o sistema climático
apresenta retroalimentações (feedbacks) positivas e negativas, que amplificam e/ou
amortecem esta sensibilidade climática.

Fig. 2: evolução histórica do teor de carbono atmosférico (média anual) 24

A retroalimentação global do sistema climático é o resultado da composição de


vários processos individuais que podem ser positivos ou negativos. Uma
retroalimentação global positiva implica que o aquecimento dispara processos que,
globalmente, tendem a amplificar o aquecimento, enquanto que uma
retroalimentaçãoglobal negativa significa que o aquecimento dispara processos que
tendem a amortecê-lo. Os modelos climáticos atualmente utilizados possuem
retroalimentação global positiva, devido à contribuição de processos como o aumento da
concentração de vapor d’água na atmosfera25.

23 Ou seja, incluindo apenas as retroalimentações rápidas. O estudo clássico de Jules Charney de 1979
determinou este valor como 3oC +/- 1,5. De lá para cá este valor se manteve basicamente inalterado para
a imensa maioria dos cientistas climáticos, variando apenas o nível de incerteza. Para se ter uma ideia
do que isto significa, a grande maioria dos cientistas climáticos considera que um aumento da
temperatura média global maior do que 2 oC é perigoso, e que um aumento de 6 oC é absolutamente
catastrófico. Ver o estudo de Charney: AD HOC STUDY GROUP ON CARBON DIOXIDE AND
CLIMATE(1979) Carbon dioxide and climate: a scientific assessment, Washington: National Academy
of Sciences. Disponível em www.nap.edu (acessado em novembro/2012).
24 Fonte dos dados: NOAA, ftp://ftp.cmdl.noaa.gov/ccg/co2/trends/co2_annmean_mlo.txt (acesso em

dezembro/2012).
25 Com o aumento da temperatura média, mais água evapora, e o ar passa a ter maior capacidade de

“armazenar” vapor d’água (aumento da concentração de saturação).


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Negacionistas climáticos inteligentes como Lindzen percebem que a possibilidade


de refutação da teoria do aquecimento global está em descrever retroalimentações
negativas ignoradas pelos modelos climáticos. Uma retroalimentação negativa global
com magnitude suficiente funcionaria como um “amortecedor” do efeito do aumento da
concentração de carbono na atmosfera.
O que Lindzen procurou mostrar ao longo dos últimos vinte anos é que o vapor
d’água, sabidamente um poderoso gás estufa e que, portanto, é considerado como uma
retroalimentação positiva nos modelos climáticos, na verdade comporta-se de forma a
regular a temperatura terrestre – ou seja, que o vapor d’água funciona como uma
retroalimentação negativa: “As notáveis propriedades termodinâmicas da água quase
com certeza levam à sua atuação como o termostato da natureza”26 (grifo nosso).
Lindzen propôs então um mecanismo para este “termostato da natureza”: segundo ele,
ainda que o aquecimento aumente o teor de vapor d’água próximo à superfície, ele
também estaria associado a uma maior convecção em nuvens de tipo cumulus, o que
acarretaria a diminuição da umidade na alta troposfera, já que o ar esfria quando sobe e
o vapor d’água condensa e precipita. Porém, o próprio Lindzen reconheceu que esta
teoria tinha problemas.27 Mais tarde, elaborou outra elegante teoria, baseada em
imagens de satélite que mostram a distribuição horizontal das nuvens em altas altitudes.
Tais imagens mostram que há uma distribuição espacial heterogênea da umidade na
alta atmosfera, com transições bruscas entre zonas de alta e baixa umidade. Como o
vapor d’água é um potente gás estufa, as regiões de alta umidade tendem a intensificar o
efeito estufa, aprisionando o calor, enquanto as áreas de baixa umidade tendem a
permitir o resfriamento terrestre. A teoria de Lindzen é que a cobertura espacial de
nuvens cirrus na alta atmosfera, normalizada em relação à cobertura de nuvens
cumulus inferiores, se conforma de forma a compensar a elevação da temperatura da
superfície dos mares. À medida que a superfície do oceano se aquecesse, as nuvens se
configurariam de tal forma a deixar mais espaços sem umidade (e vice-versa), exercendo

26 LINDZEN, R. S. (1990) “Some coolness concerning global warming”, Journal of the American
Meteorological Society 71 (3), p. 288-299. Disponível em http://www-
eaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012).
27 O mecanismo apresentava um “problema significativo”, já que os perfis de umidade observados

empiricamente eram diferentes dos propostos no modelo. Ver LINDZEN, R. S. (1993) “On the scientific
basis for global warming scenarios”, Environmental Pollution 83: 125-134. Disponível em http://www-
eaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012).
143
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uma retroalimentação negativa que compensaria o efeito do aumento de concentração


do carbono atmosférico:

a região nebulosa-úmida parece agir como uma íris adaptativa de infravermelho, que
abre e fecha as regiões livres de nuvens altas, que permitem o resfriamento de forma
mais efetiva, de maneira a resistir a mudanças na temperatura superficial tropical28
(grifo nosso)

Esta teoria é conhecida como “efeito íris”.29 Trata-se sem dúvida de uma teoria
científica extremamente elegante, que atesta a inteligência incomum de seu autor. De
fato, pode-se dizer que esta teoria é elegante demais. Afinal, por que a Terra como tal
seria dotada de um mecanismo – um termostato, ou de uma íris – para amortecer um
efeito inédito na história natural, a emissão massiva e repentina de carbono oriundo da
combustão de combustíveis fósseis? Começa aqui a assomar a face mística de Lindzen:
seus modelos de termostato terrestre implicam um planeta que funciona como um
organismo vivo consciente, que regula sua própria temperatura e, assim, permite que
mudemos a composição da atmosfera ao nosso bel-prazer sem causar distúrbios no
sistema climático.
É pertinente aqui fazer uma análise comparativa com a clássica teoria de Gaia
elaborada por James Lovelock e Linn Margulis. Segundo a teoria, a biosfera atua de
forma a moldar o ambiente, tornando-o favorável à vida. De fato, como mostram os
autores da teoria, a composição da atmosfera terrestre seria completamente diferente se
não fosse a presença dos organismos vivos30 – os ciclos biogeoquímicos têm ativa
contribuição da biosfera –, de forma que não apenas o ambiente influencia os
organismos vivos, mas também os organismos vivos influenciam o ambiente. Para
Lovelock, isto implica a homeostase ativa, ou seja, o controle das condições ambientais

28 LINDZEN, R. S.; CHOU, M.-D. e HOU, A. Y. “Does the Earth have an adaptive infrared iris?” Bulletin of
the American Meteorological Society 82 (3), p. 417-432. Disponível em http://www-
eaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012).
29 Impressiona a falta de rigor com que as teorias de Lindzen são analisadas por Onça. A teoria do

termostato das nuvens cumulus e do “efeito íris” são diferentes, mas são apresentadas por Onça como se
fossem a mesma coisa (Onça 276-277). Como já destacado, o próprio Lindzen reconheceu que havia
problemas com a sua teoria do termostato baseada na convecção das nuvens cumulus. Ver LINDZEN
(1993), op. cit.
30 Não haveria, por exemplo, a presença constante simultânea de substâncias reduzidas como metano e

oxidantes fortes como oxigênio; a forma preponderante do nitrogênio seria o nitrato dissolvido, etc., ou
seja, a atmosfera terrestre não está em equilíbrio termodinâmico, podendo ser mantida neste estado
apenas pela ação dos organismos vivos. Cf. LOVELOCK, J. E. & MARGULIS, L. (1974) “Atmospheric
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planetárias pelos seres vivos. Para ilustrar o seu conceito, Lovelock e Watson
elaboraram um modelo matemático, o “mundo das margaridas” (daisyworld)31. Neste
mundo simplificado, plano e sem atmosfera, os seres vivos se resumiriam a margaridas
pretas e brancas, que teriam uma temperatura ótima de crescimento idêntica32.
As margaridas brancas refletem mais radiação solar do que as pretas, que a
absorvem mais. Assim, as margaridas brancas tendem a resfriar o planeta, enquanto as
pretas tendem a esquentá-lo. Mostra-se então que quando ocorre variação da radiação
solar há uma subsequente mudança na proporção de margaridas pretas e brancas – pois
as pretas estão mais adaptadas à radiação solar menor, já que absorvem mais energia,
enquanto as brancas à radiação solar mais intensa, já que a refletem mais – de forma
que a temperatura deste mundo imaginário é mantida constante, como se fosse
equipado de um termostato. Esta seria uma ilustração da maneira pela qual os
organismos vivos tendem a controlar as condições ambientais do seu ambiente, sem
violar os princípios darwinianos.33
No sistema climático real, sabe-se que, na escala de tempo de centenas de
milhares de anos, o aumento da temperatura provoca o aumento da taxa de
intemperismo de silicatos da crosta terrestre, o que remove carbono da atmosfera,
funcionando como retroação negativa34. Lovelock propôs para a sua Gaia que as
bactérias intensificariam esse processo, já que a sua atividade influi na concentração de
dióxido de carbono no solo35. A proposição de uma retroação negativa para controlar a
temperatura do planeta não é novidade, portanto. Ocorre que a teoria da retroação
negativa de Lindzen é uma combinação extremada da retroação geológica com a Gaia de
Lovelock: se em Gaia, na sua melhor versão, a homeostase emerge como resultado da

homeostasis by and for the biosphere: the Gaia hypotehsis”, Tellus XXVI: 1-2. Disponível em
http://www.jameslovelock.org/page34.html (acessado em novembro/2012).
31 LOVELOCK, J. E. e WATSON, A. J. (1983) “Biological homeostasis of the global environment: the

parable of Daisyworld”, Tellus 35B: 284-289. Disponível em http://www.jameslovelock.org/ (acessado


em novembo/2012).
32 Ou seja, a velocidade de crescimento máxima se dá a uma temperatura específica, e decresce à medida

que a temperatura se afasta deste valor, para mais ou para menos, até eventualmente tender a zero.
33 Outros autores, entretanto, mostram que nem toda seleção natural é homeostática, ou seja, ao contrário

do “mundo das margaridas”, elas podem instabilizar o ecossistema.


34 Ver WALKER, J. C. G.; HAYS, P. B e KASTING, J. F. (1981) “A negative feedback mechanism for the

long term stabilization of Earth`s surface temperature”, Journal of Geophysical Research 86 (10): 9776-
9782.
35 LOVELOCK, J. E. (1982) “The regulation of carbon dioxide and climate: Gaia or geochemistry”,

Planetary Space Science 30 (8): 795-802. Disponível em www.jameslovelock.org (acessado em


novembro/2012).
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interação cega dos seres vivos36 (de forma análoga ao equilíbrio de preços como
resultado da “mão invisível” do mercado), e pode ser perturbada pela ação de forças
suficientemente fortes 37 , em Lindzen é o próprio planeta inorgânico que se autorregula,
não na escala de tempo geológica (como no intemperismo de rochas), mas como uma
retroalimentação rápida, capaz de compensar a súbita emissão antropogênica de
carbono. Estamos próximos aqui de uma espécie de animismo, de um “mundo das
margaridas” sem as margaridas, com resiliência tendendo ao infinito.
Porém, homeostase e resiliência são propriedades emergentes, que resultam da
interação entre os diferentes componentes de um ecossistema em sua evolução natural.
Imaginar uma regulação homeostática para processos significativos de magnitude
desconhecida na história natural de um sistema dinâmico, que mantenha este sistema
no mesmo estado de equilíbrio, sem mudanças de estado ou estados transientes, é
apostar na metafísica.38 É isto que faz a teoria do “efeito íris” de Lindzen: aposta na
existência de um sistema de regulação natural para a súbita adição de grande
quantidade de carbono na atmosfera a uma taxa inédita na história planetária – ou seja,
um sistema com resiliência metafísica, que não se caracteriza como uma propriedade
emergente de um sistema natural, mas como a mais pura teleologia. Um entendimento
materialista da resiliência, porém, implica necessariamente a possibilidade de que o
estado homeostático de um sistema possa ser rompido.
Pode-se argumentar, porém, que o “termostato” e o “efeito íris” são apenas
metáforas, e que não há nenhum sentido metafísico nas expressões utilizadas por
Lindzen, assim como se usa o termo para o caso da retroação negativa do intemperismo
de rochas combinado com as emissões de carbono das erupções vulcânicas. No entanto,
o próprio Lindzen descreve o controle da temperatura atmosférica como “uma ideia de

36 Versões “fortes” da teoria de Gaia afirmam que os seres vivos controlam a Terra de forma ativa,
inclusive no sentido a “otimizar” o ambiente, de forma que o planeta como um todo poderia ser
considerado um ser vivo. Aqui Gaia definitivamente deixa de ser uma metáfora eventualmente útil e
adentra o terreno do misticismo.
37 Como é o caso do aquecimento global antropogênico ou mesmo o “mundo das margaridas”, onde a

ultrapassagem de limiares máximos e mínimos de radiação resulta na morte de ambas as variedades de


flores. Ver LOVELOCK, J. E & WATSON, A. J. (1983), op. cit.
38 De fato, Odum e Barrett propõe que o termo “homeostase” seja utilizado apenas até a escala do

indivíduo, onde há um setpoint geneticamente definido – como, por exemplo, na regulação da


temperatura corporal dos mamíferos. Para escalas maiores, eles propõe o termo “homeorrese”, para
indicar que se trata de um equilíbrio muito mais contingente e instável. Cf. ODUM, E. P. & BARRETT,
G. W. (2004) Fundamentals of ecology, 5th edition, Thomson Brooks/Cole.
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natureza teológica ou filosófica”39. E é o próprio Lindzen que afirma: “O efeito estufa é


tão poderoso que a Terra sabiamente encontra maneiras mais eficientes de resfriar a
sua superfície”40 (grifo nosso). Vejamos agora o que diz Lindzen em testemunho no
parlamento britânico:

Temos trabalhado nisso [a retroalimentação negativa causada pela distribuição espacial


das nuvens] desde então, e isto se parece muito com uma retroalimentação negativa que
seria forte o suficiente para amortecer todas as retroalimentações positivas no modelo. É
uma área de pesquisa, mas é politicamente incorreto nestes dias falar do mundo, ou da
Terra, como sendo de alguma forma projetada [engineered]. Se algum de vocês tem
formação em engenharia (...), você nunca constrói nada com retroalimentações
positivas, a não ser que queira amplificar algo. Você constrói tudo de forma que as
retroalimentações o mantenham em equilíbrio.41 (grifos nossos)

Lindzen está aqui claramente utilizando o argumento do design inteligente, ou seja, está
afirmando que a Terra deve ser dotada de um mecanismo de retroalimentação negativa
que regula a temperatura do planeta, mesmo para fenômenos de dimensões inéditas na
história natural, porque foi projetada, e o projeto não poderia ser defeituoso, não
poderia estar sujeito a distúrbios previsíveis a um projetista onisciente, que um projeto
deveria prever estes distúrbios de antemão e precaver-se contra eles: a Terra é sábia.
Um argumento que mergulha nas águas turvas do criacionismo e do misticismo. De
fato, tal argumento é, mais do que politicamente, cientificamente equivocado. Ele atenta
contra aquilo que Jacques Monod chamou de “postulado da objetividade”:

A pedra angular do método científico é o postulado da objetividade da Natureza. Isto é, a


recusa sistemática em considerar como capaz de conduzir a um conhecimento
“verdadeiro” toda interpretação dos fenômenos dada em termos de causas finais, ou
melhor, de “projeto”.42

Esta postura não-científica ou anti-científica é escancarada sem pudores por Roy


Spencer, outro negacionista climático que defende ardorosamente a hipótese da

39 Cf. KERR, R. A. (1989) “Greenhouse skeptic out in the cold”, Science 246, December 1989, p. 1118.
40 LINDZEN, R. S. (1990) “A skeptic speaks out”, EPA Journal 16, p. 45-47. Kerr (1989), op. cit., p. 119,
relata: “Em outra de suas asserções filosóficas, Lindzen acredita que as retroalimentações negativas (...)
dominam todas as retroalimentações de aquecimento, ou positivas. Em escalas de tempo de poucos
séculos ou menos, ele diz, até mesmo a mais forte perturbação, de qualquer origem, não iria levar o
sistema climático relativamente insensível a um estado distintamente mais quente”.
41 Disponível em
http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200506/ldselect/ldeconaf/12/5012508.htm (acessado em
novembro/2012).
42 MONOD, J. (1971/1989), O acaso e a necessidade, 4a. ed., Petrópolis: Vozes, p. 32.

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retroalimentação negativa do vapor d’água43. Ele firmou uma declaração evangélica


sobre o aquecimento global. Alguns termos da declaração:

Acreditamos que a Terra e os seus ecossistemas – criados pelo projeto inteligente e


infinito poder de Deus e sustentados pela Sua divina providência – são robustos,
resilientes, autorreguladores e autocorretivos, admiravelmente adequados ao
desenvolvimento humano, e demonstram a Sua glória. O sistema climático da Terra não
é exceção. (...) Negamos que a Terra e seus ecossistemas sejam produtos frágeis e
instáveis do acaso, e particularmente que o sistema climático da Terra seja vulnerável a
alteração perigosa por causa de minúsculas alterações na química atmosférica [sic].44

E eis aqui, expresso sem pudores, o paradigma ideológico de Lindzen, Spencer e


outros obstinados caçadores de retroalimentações negativas no sistema climático
terrestre. Ao que parece, Onça, que dedicou tantas páginas em sua tese para
(corretamente) criticar a noção mística de uma natureza em equilíbrio eterno e
idealizado, não foi suficientemente crítica para perceber que o paradigma subjacente ao
negacionismo climático de suas referências é um tosco fundamentalismo criacionista.
Tanto Lindzen quanto Spencer são referências-chave para Onça, e são sistematicamente
citados, nunca com viés crítico, mas para apoiar o seu argumento. Quando ironiza
vertentes místicas da ecologia – “A natureza, em prefeito equilíbrio na ausência de
intervenções humanas, possui um termostato maravilhosamente regulado para os
propósitos humanos, basta não interferirmos. A atmosfera imperturbada regula a
temperatura ideal do planeta, especificamente designada para manter o conforto
térmico dos seres humanos. Afinal de contas, foi para os seres humanos que este planeta
foi criado...” (Onça 68) – a autora não percebe que está sendo mais mística do que os
místicos, já que o modelo que utiliza como referência prevê que mesmo a atmosfera
perturbada regula a temperatura do planeta. É irônico que ela tenha gasto várias
páginas em sua tese para criticar o uso de modelos climáticos 45, e acaba por utilizar

43 Spencer e Lindzen citam-se mutuamente em seus artigos sobre aquecimento global.


44 CORNWALL ALLIANCE (s. d.), An evangelical declaration on global warming, Disponível em
http://www.cornwallalliance.org/articles/read/an-evangelical-declaration-on-global-warming/
(acessado em novembro/2012).
45 Onça critica o uso irrefletido de modelos, como se eles não tivessem limitações e pudessem substituir o

mundo real, o que é um truísmo. De fato, modelos matemáticos não são perfeitos e não descrevem todos
os possíveis processos envolvidos no sistema estudado, e isso nem é desejável. Diz-se no meio que a
modelagem é a arte da simplificação, de modo que a identificação dos processos-chave de um sistema
permitem compreender a dinâmica do todo, desprezando-se os processos que apenas tornariam as
simulações mais lentas, custosas e de difícil compreensão. De qualquer forma, todo modelo deve sempre
ser utilizado criticamente, e validado com dados empíricos. Os modelos climáticos apresentam
148
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

como referência um modelo altamente idealizado e especulativo, crivado de teleologia,


que foi várias vezes refutado empírica e metodologicamente.46
A declaração evangélica não se preocupa em disfarçar os motivos mais mundanos
de suas preocupações teológicas. Na mesma declaração, lê-se:

Negamos que combustíveis alternativos e renováveis possam, com tecnologia presente


ou de curto prazo, substituir os combustíveis fósseis e nucleares, seja na sua totalidade
ou de parte significativa, para fornecer a energia abundante e barata necessária para
sustentar economias prósperas ou superar a pobreza.

Faltou apenas afirmar que o petróleo foi uma dádiva divina predestinada ao
desenvolvimento do capitalismo – e ao enriquecimento dos capitalistas. De fato, os
argumentos de Onça analisados até aqui poderiam ser tiros vindos da direita – e de fato
o são: autores como Richard Lindzen e Luc Ferry 47, usados por Onça, são referências
conservadoras cativas. Ao final, o que se tem é uma apologia da flexibilização das
relações com a natureza – tal qual a flexibilização dos direitos trabalhistas – para que a
acumulação de capital fique desimpedida. Como argumenta Naomi Klein:

os deniers não decidiram que a mudança climática é uma conspiração de esquerda ao


descobrir algum conluio socialista. Eles chegaram a essa conclusão considerando
seriamente o que seria necessário para reduzir as emissões globais tão drástica e
rapidamente quanto a ciência exige (...). Eles não estão errados.48

Mas Onça faz um enxerto em sua teoria para torcê-la em direção à esquerda,
como veremos agora.

imperfeições (como a magnitude do efeito dos aerossóis e o comportamento das nuvens), mas estão em
constante aperfeiçoamento; tampouco são as únicas ferramentas para a análise da mudança climática, já
que também se pode extrair informações do clima passado (dados paleoclimáticos). O que se estranha é
que modelos são utilizados em praticamente todos os processos produtivos e econômicos da atualidade,
e Onça parece querer dispensá-los justamente no caso onde eles são mais necessários, tanto pela
gravidade e dinâmica peculiar da questão, onde se fazem necessários projeções e cenários, quanto pelo
fato de que não se pode conduzir experimentos controlados com o planeta.
46 Dessler, por exemplo, partindo do mesmo tipo de dados que Lindzen, chega ao resultado de que a

retroalimentação das nuvens é provavelmente positiva, com uma pequena probabilidade de que seja
negativa, mas com magnitude baixa, não suficiente para amortecer o efeito das emissões
antropogênicas. Ver DESSLER, A. E. (2010) “A determination of the cloud feedback from climate
variations over the past decade”, Science 330, December 2010, 1523-1527.
47 Ferry faz uma crítica da “ecologia profunda” do ponto de vista liberal, com as graves limitações

subjacentes, mostrando as tendências regressivas, em alguns casos tendentes ao fascismo, de algumas


ideologias ecologistas. Ver FERRY, L. (1992/2002) Le nouvel ordre ecologique: l’arbre, l’animal e
l’homme, Paris: LGF.
48 KLEIN, N. (2011) “Capitalism vs. the climate” , The nation, November 28th 2011, disponível em

http://www.thenation.com/article/164497/capitalism-vs-climate (acessado em novembro/2012).


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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

Quando o marxismo tradicional se une à direita


Qual seria a razão da teoria do aquecimento global ser de tal forma difundida e
aceita socialmente, já que, segundo Onça, ela é científica e filosoficamente falsa?
Sobretudo, ela teria função ideológica para justificar um novo ciclo de acumulação:

A Climatologia aparece hoje como uma importante força produtiva do capitalismo tardio.
Com a hipótese do aquecimento global, atual mãe de todos os medos ambientais, ela se
posiciona na linha de frente do desenvolvimento de novas tecnologias e do controle dos
interesses sociais, atuando em prol do saneamento de empresas por parte do Estado e
assim, consolidando-o em seu papel de grande gerenciador da economia. (Onça 411)

Assim,

O IPCC é o órgão responsável por compilar a pesquisa climática produzida de acordo


com os interesses de governos e empresas e idealizar as estratégias de mitigação da
mudança climática, sempre atreladas ao desenvolvimento de novas tecnologias e fontes
de energia e aos mecanismos de desenvolvimento limpo, tão interessantes a governos e
empresas nos dias atuais. (Onça 409)

Isto estaria inserido no contexto mais geral do Estado intervencionista:

O Estado capitalista moderno interfere diretamente na economia, manipula as crises,


protege os produtos nacionais através do controle das importações e das exportações,
incentiva e dinamiza a economia com investimentos em infra-estrutura e saneamento de
empresas. Da mesma forma, o Estado interfere no mercado da força de trabalho,
combate o desemprego, reforça as políticas sociais de saúde e educação e procura
controlar a mão-de-obra excedente. Ou seja, o Estado capitalista moderno se converte no
Welfare State, o Estado de Bem-Estar que desativa a luta de classes e minimiza os
conflitos entre operários e industriais em nome do bem-estar coletivo. (Onça 404).

Primeiramente, é preciso observar que a ciência da mudança climática se desenvolve


desde o século XIX. Fourier descreveu primeiramente a física do chamado “efeito
estufa” em 1824 e 1827; Tyndall descreveu suas pesquisas sobre os gases traço que
aprisionam calor na atmosfera em 1861; Arrhenius investigou o efeito do aumento da
concentração de dióxido de carbono na atmosfera em 1896; Callendar, Revelle & Suess e
Bolin & Eriksson voltaram a investigar a questão em 1938, 1957 e 1958,
respectivamente; e Keeling começou a medir a concentração de carbono atmosférico em

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Mauna Loa em 1958.49 Teriam todos estes cientistas previsto as necessidades do


capitalismo do século XXI, e formulado suas teorias com o fim de satisfazê-las? Parece
ridículo considerá-lo. Onça, em todo caso, sempre pode alegar que a compilação do
IPCC é ideológica.
De qualquer forma, a autora permanece presa ao paradigma do primado da
política de Friedrich Pollock.50 A verdade histórica deste paradigma estava ligado ao
período do capitalismo fordista nos países do centro, quando, de fato, o Estado assumiu
a função explícita de garantidor do bem-estar social e indutor do desenvolvimento
econômico, onde o pólo político até certo ponto se sobrepôs ao pólo econômico na
estrutura polar dualista do sistema social moderno. Porém,

49 Fourier foi o primeiro a tentar determinar a temperatura da superfície terrestre a partir de um modelo
físico (balanço energético), e nisso considerou o efeito da atmosfera (o chamado “efeito estufa”).
Arrhenius chegou a um valor supreendentemente preciso para a época da sensibilidade climática à
duplicação da concentração de carbono atmosférico, mas não considerou as emissões de carbono de seu
tempo perigosas para o clima, pois considerou que elas aumentariam linearmente (tivesse Arrhenius
conhecido Marx, talvez fizesse uma projeção exponencial). Callendar chegou a conclusão semelhante à
de Arrhenius, também assumindo progressão linear das emissões, mas já admite a influência humana
no clima por emissões de carbono (ainda que pudesse ser positiva): “Poucos entre os que estão
familiarizados com as trocas de calor naturais da atmosfera que contribuem para forjar o clima e o
tempo estariam preparados para admitir que as atividades humanas poderiam ter influência sobre
fenômenos de tão grande escala. (...) Espero mostrar que esta influência não apenas é possível, mas que
está realmente acontecendo no presente”. Revelle & Suess descartaram a possibilidade de aquecimento
global antropogênico devido à suposição de uma absorção de carbono pelos oceanos muito mais rápida
do que o que ocorre na realidade, mas admitem: “Nas próximas décadas a taxa de combustão de
combustíveis fósseis continuará a crescer, se as exigências de combustível e energia de nossa civilização
industrial global continuarem a crescer exponencialmente (...) Portanto, a humanidade está agora
levando a cabo um experimento geofísico em grande escala, de um tipo que não poderia ter ocorrido no
passado e nem ser reproduzido no futuro”. Finalmente, Bolin & Eriksson, levando em consideração
química do “tampão” do oceano, que desacelera a absorção de carbono atmosférico, e a aceleração das
emissões de carbono, concluíram que as emissões poderiam ser perigosas: “As implicações em relação
ao equilíbrio radiativo da Terra (...) podem ser consideráveis”. Ver FOURIER, J.-B. J. (1827) “On the
temperatures of the terrestrial sphere and interplanetary space”, Mémoires de l’Académie Royale des
Sciences 7: 569-604; TYNDALL, J. (1861) “On the absorption and radiation of heat by gases and
vapours, and on the physical connexion of radiation, absorption, and conduction”, Philosophical
Magazine 4 (22): 169-194, 273-285; ARRHENIUS, S. (1896) “On the influence of carbonic acid in the
air upon the temperature of the ground”, The London, Edinburg and Dublin Philosophical Magazine
and Journal of Science 5th Series, Vol. 41, no. 251; CALLENDAR, G. S. (1938) “The artificial production
of carbon dioxide and its influence on climate”, Quarterly Journal of the Royal Meteorological Society
64: 223-240; REVELLE, R. & SUESS, H. E. (1957) “Carbon dioxide exchange between atmosphere and
ocean and the question of an increase of atmospheric CO2 during the past decades”, Tellus 9: 18-27;
BOLIN, B. & ERIKSSON, E. (1958) “Changes in the carbon dioxide content of the atmosphere and sea
due to fossil fuel combustion”, In: The Atmosphere and the sea in motion: scientific contributions to the
Rossby Memorial Volume (ed. B. Bolin), New York: Rockfeller Institute Press, p. 130-142; KEELING, C.
D. (1960) “The concentration and isotopic abundances of carbon dioxide in the atmosphere” Tellus XII
(2): 200-203.
50 Pollock é citado explicitamente como referência de sua análise (Onça 400-ss.).

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embora os dois pólos do ‘campo’ não possam existir somente para si e pressuponham
sempre o pólo contrário, eles não são hierarquicamente iguais. Muito pelo contrário, há
um sobrepeso estrutural do pólo econômico, que, por um lado, pode parecer superado
(aufgehoben) temporariamente em benefício do pólo estatal-político, mas que, por outro
lado, sempre se restabelece novamente. (...) A evidência desse predomínio do mercado
pode ser demonstrada com base num fato fundamental: o Estado não possui nenhum
meio primário de regulação, mas depende do meio do mercado, isto é, do dinheiro.
Entretanto, o meio ‘poder’ atribuído ao Estado e, teoricamente, na maioria das vezes,
identificado com o dinheiro não possui nenhum grau hierárquico primário, apenas um
grau secundário, pois todas as medidas do Estado precisam ser financiadas 51.

A Terceira Revolução Industrial, portanto, esfacelou a estabilidade do welfare


state: o capitalismo baseado em exércitos de trabalho fordista se desfez com a
microeletrônica e a automação. A utilização de conceitos pollockianos do capitalismo de
welfare state para teorizar o capitalismo de crise do século XXI constitui flagrante
incompreensão da dinâmica do sistema. No capitalismo pós-fordista, o primado da
política desfaz-se no ar:

pela primeira vez na História, a velocidade de racionalização eliminadora de trabalho


supera a expansão dos mercados. A produtividade aumenta com rapidez cada vez maior,
ao passo que a expansão do modo de produção, considerada na sua totalidade, chegou ao
fim. Por isso, a esperança por um novo surto de acumulação é bastante ingênua. (...)
Quanto mais fraca se tornar a acumulação real, tanto menos o crédito estatal será
financiável, e, quanto menos o Estado puder ser financiado, tanto maiores se tornarão as
suas tarefas em virtude da crise estrutural da acumulação. É nesse círculo vicioso que a
própria modernidade produtora de mercadorias se aprisionou (...) Com efeito, só existe,
a rigor, um único “regime de regulação” e “acumulacão”, que é simultaneamente o
primeiro e o último, a saber, o modelo fordista52.

Assim, no capitalismo de crise, o Estado do welfare state foi há muito substituído


abertamente pelo Estado policial do regime de exceção permanente, administrador de
crises53. Mas o anacronismo histórico de ancorar a teoria do aquecimento global como
suposta ideologia estatal para uma nova fase de acumulação capitalista pressupõe o
velho primado da política, o Estado como ente independente de suas próprias fontes de
financiamento. Pois se sabe que a quase totalidade do financiamento do Estado provém
de estruturas e corporações carbono-intensivas. O Estado como indutor

51 KURZ, R. (1997) “A falta de autonomia do Estado e os limites da política”, In: KURZ, R. Os últimos
combates, Petrópolis: Vozes, p. 91-115.
52 Ibid., p. 113-114.
53 Ver DUARTE, C. R. (2012) “O capitalismo como estado de exceção permanente”, Sinal de Menos 8: 51-

71. Disponível em www.sinaldemenos.org (acessado em novembro/2012).


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desenvolvimento de tecnologias de baixo carbono, portanto, pressupõe uma concepção


metafísica do Estado como deus ex-machina, que nega a sua própria base de
sustentação.
O marxismo tradicional de corte pollockiano de Onça também transparece em
sua crítica exclusiva do modo de distribuição capitalista, relegando ao esquecimento o
modo de produção54: “a pobreza e a miséria não são provocadas pelo aquecimento
global, mas sim pela concentração de renda” (Onça 448); “Como este capitalismo e este
Estado tão alinhados podem hoje, com este nível de riqueza e de tecnologia à disposição,
justificar a continuidade e o agravamento da miséria global? É simples: negando que ele
seja o resultado da concentração de renda, da ação de uns poucos conglomerados
industriais, da falta de vontade política, e escolhendo a dedo um novo culpado paratudo:
o aquecimento global” (Onça 449). De fato, o aquecimento global não é o responsável
por todas misérias do mundo, e pode ser utilizado ideologicamente em favor do capital,
como argumenta Onça55. Mas não se pode confundir uma possível instrumentalização
da teoria do aquecimento global pela direita com a validade científica da própria
teoria56.
Ao apontar como causa daquelas misérias a mera desigualdade de distribuição da
riqueza, e não a própria forma assumida pela riqueza – como valor abstrato que se
sobrepõe ao valor de uso sensível, social e ecológico, como forma-mercadoria –, forma
da riqueza esta que tem como consequência lógica a contínua produção social de
proletarizados, precarizados e não-rentáveis, de um lado, e de poluição e tecnologias

54 Para uma crítica do marxismo tradicional, ver POSTONE, M. (1993/2003) Time, Labor, and Social
Domination: a reinterpretation of Marx’s critical theory, Cambridge: Cambridge University Press;
KURZ, R. (1991/2004) O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da
economia mundial, São Paulo: Paz e Terra.
55 “A ciência climática constitui hoje uma mitologia” (Onça 427); “a Climatologia trabalha pela

continuidade e agravamento da apropriação privada da riqueza socialmente gerada e das tradicionais


estruturas de dominação social, eximindo o Estado da responsabilidade de suas ações” (Onça 411);
“Esta é a função da ideologia do aquecimento global: a perpetuação da exclusão social travestida de
comprometimento com as gerações futuras” (Onça 462).
56 De outra parte, o movimento pela “justiça climática” é ignorado. Ele parte da constatação de que a

maior parte das emissões de carbono foi originada nos países ricos, mas, segundo as projeções
científicas, os mais prejudicados pelo aquecimento global seriam os países pobres – incluindo o Brasil,
que teria áreas costeiras inundadas e poderia perder a floresta amazônica. Exige-se, portanto,
compensação. Sobre o movimento por “justiça climática”, ver KLEIN, N. (2009) Climate rage,
disponível em http://www.naomiklein.org/articles/2009/11/climate-rage (acessado em
novembro/2012). Uma das iniciativas mais notórias neste sentido é a do Equador, que demanda ser
compensado pelos países ricos para que não explore o petróleo de Yasuní, onde há um floresta tropical,
evitando as emissões de carbono e a destruição da floresta. Ver http://www.sosyasuni.org/ (acessado
em novembro/2012).
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destrutivas, de outro, Onça permanece em um nível deficitário de crítica do capitalismo.


Ao assumir acriticamente os pressupostos da modernização capitalista implícitos na
esquerda tradicional, Onça se vê obrigada a negar os seus limites ecológicos, da mesma
forma que a direita conservadora. Se os limites ecológicos do planeta denunciam a
destrutividade da valorização do valor e a necessidade de superação das categorias
fundamentais do capitalismo (mercadoria, valor, trabalho abstrato), então estes limites
é que não devem existir, pois nada pode se contrapor à metafísica do “progresso” e do
“desenvolvimento” compartilhada pela esquerda tradicional e pela direita. Ambas se
unem quando seus pressupostos comuns são ameaçados 57. Naomi Klein propõe inverter
a lógica dos deniers conservadores:

se você perguntar aos membros do Instituto Heartland, a mudança climática faz com que
algum tipo de revolução esquerdista seja inevitável, e é precisamente por isso que eles
estão tão determinados a negar a sua realidade. Talvez devêssemos prestar mais atenção
às suas teorias – eles podem ter entendido algo que a esquerda ainda não captou 58.

Porém, isso não pode se tratar de uma mera distribuição de renda – que, mantida
a sociabilização capitalista, talvez decretasse definitivamente a catástrofe ecológica
global – mas de mudar a forma da riqueza e de sua materialização técnica
correspondente (a transição solar). Como a esquerda tradicional ontologiza o valor e o
trabalho abstrato, não surpreende que rejeite ideologicamente tudo aquilo que os
ameace, como o aquecimento global.

(Setembro/2012-Janeiro/2013)

57 Esta identidade categorial de esquerda e direita também pode se manifestar como o outro lado da
moeda da teoria de Onça, ou seja, quando se reconhece a crise ecológica e se propõe, a partir de ponto de
vista de esquerda, um novo ciclo de acumulação baseado em tecnologias ecológicas – um New Deal
verde. Ver SCHWARTZMAN, D. (2011) “Green New Deal: an ecosocialist perspective”, Capitalism,
nature, socialism 22 (3): 49-56.
58 KLEIN, N. (2011), op. cit.

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Lukács
A Ontologia da miséria / A miséria da Ontologia
LUKÁCS, György, Para uma ontologia do ser social, vol. 1. São Paulo: Boitempo,
2012. (Apresentação de José Paulo Netto, tradução do alemão por Mario Duayer e Nélio
Schneider, acrescida da tradução de Carlos Nelson Coutinho, baseada na edição
italiana).

Cláudio R. Duarte

“O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no


sentido de processo dominado pelo trabalho como unidade que o
governa. (...) O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a
riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em
comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por
meio da própria grande indústria. (...)
O tempo de trabalho como medida da riqueza põe a própria
riqueza como sendo fundada sobre a pobreza e o tempo
disponível como tempo existente apenas na e por meio da
oposição ao tempo de trabalho excedente, ou significa pôr todo o
tempo do indivíduo como tempo de trabalho, e daí a degradação
do indivíduo a mero trabalhador, subsunção ao trabalho.”
(Karl Marx, Grundrisse 1857-1858).

A proeza das duas fundações do marxismo

Eis um lançamento há muito aguardado e que vai fazer Escola. A maior proeza de
Lukács foi fundar “filosoficamente” o marxismo duas vezes: com História e Consciência
de Classe (HCC), no início dos anos 1920, e com a Ontologia do Ser Social (OSS), escrita
ao longo dos anos 1960, em que busca renovar e salvar todos os esforços empreendidos
ao longo da vida. Hoje ele tem a felicidade de ser reconhecido como o filósofo marxista
mais importante. Tratando-se de princípios e fundamentos, ainda mais em terras “sem
fundo” e “sem caráter” como esta, eis um livro fervorosamente aguardado por boa parte
da esquerda marxista brasileira, principalmente universitária, completamente
desorientada na neblina das desestruturações do assim chamado “mundo do trabalho”.

Primeira fundação: os dublês do Weltgeist do Capital


Na primeira fundação, como se sabe, Lukács deslizava pela via de um super-
hegelianismo que transformava o proletariado, ou melhor, o Partido leninista, em um

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

dublê do Espírito do Mundo. O motor da substância mundial capitalista era o


trabalhador abstrato, de onde emergiria a “consciência de classe” do proletariado
enquanto sujeito – a ser representada pela vanguarda partidária, que deveria introduzi-
la de fora na consciência operária coisificada. Luxemburguistas, conselhistas e demais
“esquerdistas infantis” postos de escanteio, restava dar a cobertura ideológica a toda
centralização bolchevista, embora, na base, na melhor parte do livro, era dito que a
crítica do proletariado só se constituiria em confronto com a negatividade do trabalho e
do cotidiano burguês. O salto dialético pressupunha a irredutibilidade desse sujeito à
coisificação mercantil, vale dizer, uma experiência crítica da alienação – para além de
suas personificações de classe –, um potencial pouco ou nada idealizado (segundo Marx,
Hegel só reconheceu o “lado positivo do trabalho”).
A forma-mercadoria era então o “protótipo de todas as formas de objetividade e
de todas suas formas correspondentes de subjetividade” (HCC) – a estrutura coisificada
que punha o todo em movimento, e por isso a estrutura a ser superada, embora mais
como um ato teórico da consciência, que a dissolveria em “processo”, do que como uma
dissolução do próprio processo capitalista negativo e autonomizado em si. Processo, no
entanto, que se reproduzia em germe na divisão entre Partido e Massas. Como se o
processo-sujeito não fosse a relação de produção fetichista, o Capital e as formas
concretas da divisão do trabalho alienado etc., mas idêntica à práxis do Proletariado
como tal (empírico/representado como “sujeito-objeto idêntico” da história), que
deveria realizar-se conscientemente como Totalidade. Assim, no decorrer do livro, o
proletariado deve um tanto paradoxalmente se afirmar e desaparecer como totalidade.

O ponto de vista crítico do proletariado como mercadoria


Lukács era desse modo parcialmente fiel a Marx (e não ao modelo positivo e
antropológico de trabalho de Hegel, como retornará com força mais tarde na OSS): as
“necessidades radicais” para além do capital só poderiam surgir da experiência da
miséria do trabalho burguês, que deveria então suprimir esta “ontologia” da economia
política na prática. Daí por que não se tratava de fazer do “materialismo histórico” e do
“primado da economia” uma filosofia perene ou universal, mas uma teoria crítica,
historicamente específica e determinada, voltada à superação de seu objeto e de si
mesma. Daí também o questionamento crítico de praticamente todos os termos:
156
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

“Nas sociedades pré-capitalistas (...) a vida econômica não se apresentava como o


seu próprio fim, não estava ainda fechada sobre si própria, não era senhora de si
própria, não tinha ainda essa imanência que atingiu na sociedade capitalista. (...)
Segue-se que o materialismo histórico não pode ser aplicado de modo idêntico às
formações pré-capitalistas e às da evolução capitalista. (...) Suas categorias são
verdades no interior de uma determinada ordem de produção. Nessa qualidade, e
somente nessa qualidade, assumem um valor absoluto [ontológico], o que não
exclui, no entanto, o aparecimento de sociedades em que, dada a essência da
estrutura social, serão válidas outras categorias, outros conjuntos de verdades”
(Lukács, HCC).

Assim, a economia poderia ser superada pelo controle direto do metabolismo


social-natural pelos indivíduos livremente associados (é claro: como não-proletários e
não-trabalhadores). A “realização” do proletariado coincidiria menos com sua afirmação
do que com a sua própria supressão (enquanto objeto/sujeito da época burguesa). Nesse
sentido, o sujeito-objeto idêntico é uma construção mística, mas esconde um processo
concreto de formação crítica: assim, “o conselho operário é a superação econômica e
política da reificação capitalista. (...) O proletariado se realiza somente ao negar a si
mesmo” (HCC). O proletariado é a única classe em-si cujo para-si é ser contra-si.
Subentendia-se que os conselhos eram potencialmente a esfera de um processo de
formação dessa consciência negativa, para além da “dura escola do trabalho”
(Marx/Engels), que poderia romper (através da prática dialógica, como fica
pressuposto) o isolamento, a hierarquia e a educação reificadora do trabalho moderno.
Todavia, esse raciocínio é suplantado e substituído pela urgência imediata da
organização do Partido de massas e pelo postulado dogmático da unidade entre teoria e
práxis, com o que ambas se rebaixam ao ativismo e à ideologia do Partido leninista. Daí
então que a reificação e a cisão interna das camadas do proletariado já “não pode ser
eliminada por meio de discussões” e das organizações e ações “espontâneas das massas”
(HCC), mas somente pela disciplina férrea do Partido.
A questão crucial é que, no nível abstrato e ativista em que corre o argumento, e
com os fortes indícios históricos de que o Proletariado e os Partidos Comunistas (na
Europa, no Leste e no resto do mundo) não podiam ser idealizados e espiritualizados à
maneira hegeliana, em suma, na falta de mediações materiais concretas dessa
autossupressão, o proletariado-objeto “suprimia-se” somente na teoria e como intenção
ética-política, o que parecia já valer pela realidade. Portanto, ele se perdia nos livros,
enquanto tendia a se afirmar na práxis alienada das relações de produção capitalistas
157
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

ou “socialistas” e na moral orgulhosa do trabalho industrial.

HCC como prolegômeno resistente à OSS


Sem dúvida não estamos muito distantes da base histórica da teorização da OSS.
Mas, no fim das contas, HCC reduzia criticamente a capacidade formativa do trabalho
(o concreto, o realmente existente como abstração real, moldado pela forma-valor),
depositando a sua fé nas cabeças iluminadas dos “revolucionários profissionais”. Ele
ainda não podia conceber como o Estado bolchevista (e mais tarde stalinista) se
realizaria como uma nova máscara da dominação do Capital, embora já pudesse a intuir
na divisão burocrática do trabalho partidário, que mumificaria “ontologicamente” o
valor como valor e o proletariado como proletariado, em vez de suprimi-los, num
sistema de “acumulação de valor” e de “modernização retardatária” (cf. Kurz).
A OSS limpa esse meio de campo histórico, negativo e totalmente contraditório,
injetando o vocabulário das certezas ontológicas e antropológicas como princípios
primeiros do processo, em que o proletariado trabalhador, confirmado na práxis, torna-
se o suporte ativo (não mais contemplativo) e o representante do “gênero humano” (e
não mais do Capital). HCC era mais crítico na medida em que resistia a ideologizar a
reificação. Nesse sentido, à vista do último Lukács, HCC errava quase tudo,
principalmente quando subestimava o processo teleológico do trabalho e
superdimensionava o movimento da classe e a consciência negativa formada pelos
conselhos operários, lá onde haveria processos e categorias mais que objetivos,
ontológicos. Por isso, se apagarmos a história e a consciência (negativa) de classe do
título, daremos lugar à ontologia do trabalho – e do trabalho que põe valor como
veremos –, antes só latente, a elevando à consciência do gênero humano. Em HCC,
muito mais claramente, os conceitos históricos de personificação do valor e do capital,
bem como o de pré-história do homem, tinham uma função crítica que tendia a superar
o subjetivismo e o humanismo (“o homem é e não é”, dizia o autor em HCC, numa frase
que o suprime como sujeito efetivo, tornando-o só um pressuposto: o “proletariado é
um mero objeto do processo econômico e apenas potencialmente e de modo latente
constitui um sujeito co-determinante”). Já na OSS, o humanismo e o subjetivismo do
jovem Marx são assumidos de forma ingênua e cabal, transformando milagrosamente o
suporte da valorização em seu sujeito, como parecia corresponder ao nível “profundo”
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do sistema soviético. De fato, o sublime objeto da ideologia lukácsiana resistia na práxis


do Leste, supostamente pós-capital: aqui o processo de trabalho proletário, com o
aguilhão dos métodos tayloristas e stakhanovistas da “emulação socialista”, foi
realizado ao extremo e dirigido por uma espécie de sujeito-objeto idêntico ou
substancial – em parte falso, mas em parte realíssimo, representado pela sanguinária
“ditadura do proletariado” do Estado stalinista.

No Grande Hotel Grund Occidental


No “Grande Hotel Grund Occidental”, vizinho ao “Grande Hotel Abgrund”
adorniano (cf. Lukács no posfácio à Teoria do Romance), tudo é bem mais belo e
confortável. Nada do “abismo, do nada, da absurdidade” de seu vizinho. O conforto e as
atividades de trabalho e diversão têm muito mais “fundamentos” para existir.
Sem ironia, note-se que, até a Ontologia, Lukács continua acreditando que o
socialismo real criou, “em substância”, “novos tipos humanos” e uma “nova sociedade
progressiva” (como dirá no capítulo da “Alienação” da OSS, a sair em 2013), baseada
nos princípios do marxismo-leninismo (crescimento das forças produtivas, divisão do
trabalho, acumulação socialista etc.). De fato, um sistema planejado de acumulação de
trabalho, paralelo ao capitalismo monopolista. Como se a finalidade do trabalho no
Leste fosse realmente a do seu modelo originário de práxis, a “humanização do homem”.
O problema, para Lukács, torna-se a “manipulação brutal” do stalinismo sobre essa base
ontológica em grande parte positiva: um problema de falta de imperativo ético
humanista, por um lado, de política econômica racional e de certo tino dialético, por
outro.

A boa fé no valor eterno


Na OSS, a boa fé – ou antes, a sublimação ideológica – vai ser então depositada
tanto no céu da ética e da política como em baixo, na “base”: na racionalidade formativa
do “trabalho humano”, ou seja, do “modelo originário” do trabalho em geral construído
pela filosofia, como se ele fosse em si e para si uma espécie de transição “objetiva” para
o reino da liberdade, enquanto a economia é assumida como uma objetividade exterior
que impõe as suas “rígidas leis imanentes” – uma esfera ontológica que só pode ser bem
ou mal governada ético-politicamente, mas não exatamente superada (no sentido de
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uma Aufhebung do reino da necessidade), pois esta será sempre o “momento


predominante” em “última instância”. Na verdade, como veremos, esse momento
material predominante oscila bastante, de trecho para trecho, sem rigor conceitual: o
valor, o trabalho, a economia, a produção, a práxis, as relações sociais, o ser social em
geral, o objeto etc. Mas por leis imanentes da economia é claro que a OSS entende tudo
o que devém a partir da lei do valor-trabalho. Passa-se a afirmar, assim, a “centralidade
ontológica” do valor como um produto histórico “eterno” do trabalho em geral:

“Essa centralidade da categoria do valor é um fato ontológico (...) o ponto focal das mais
importantes tendências de toda realidade social (...) o caráter médio do trabalho surge de
modo espontâneo, objetivo, desde os graus mais primitivos de sua socialidade. (...) Antes
de mais nada, aparece no valor, enquanto categoria social, a base elementar do ser social:
o trabalho” (Lukács, OSS, Cap. IV, “Os princípios ontológicos fundamentais de Marx”).

Eis a espantosa pedra angular da OSS e da prometida Ética. Pode-se concluir assim que
para o velho Lukács, o mundo burguês, regido pela lei do valor-trabalho, existe desde
sempre.
O equívoco sobre a profundidade e a extensão histórica da lei do valor não é
banal. O próprio Marx teve de tatear a questão durante anos, mas nos Grundrisse
conclui que “a determinação do valor pelo puro tempo de trabalho só se dá sobre a base
da produção de capital, ou seja, da separação das duas classes” e que o capital é o
“último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor”.
Portanto, pode-se seguramente dizer que há mercadorias e dinheiro (portanto preços e
valor de troca) no pré-capitalismo, mas isso não pode significar que o valor, ou melhor,
a forma-valor e sua substância criada pelo trabalho abstrato estão postas como
fundamento em sociedades que bloqueavam a mercantilização integral da vida
(trabalho assalariado, acumulação de capital, concorrência, em suma, a economia como
um domínio alienado). Nada disso, para nosso ontólogo: “implicitamente, [a lei do
valor] já está presente quando o homem realiza ainda apenas trabalho útil, quando seus
produtos não se tornam ainda mercadorias; e resta em vigor — de novo implicitamente
– após ter cessado a compra-venda de mercadorias” (OSS). Este “implicitamente”
gostaria de dizer: a lei do valor não está posta, não tem papel fundante, está apenas
pressuposta ou é só uma determinação teórica (pois a produção sempre pode ser

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medida pelo tempo), não efetivada na produção social. O que teria de valer também
para o próprio conceito de trabalho: ele se põe como mediação social central apenas
como trabalho abstrato produtor de valor, ou seja, apenas no capitalismo, quando as
relações sociais diretas e mais ou menos abertas são substituídas pela relação coisificada
dos agentes, através da troca de mercadorias, dentre elas a força de trabalho (Cf. Moishe
Postone, Time, Labor and Social Domination). A “economia” e o “trabalho” (a
conversão dos homens particulares em “trabalho”), assim, são abstrações reais
históricas e não trans-históricas. Mas o velho Lukács não pode tirar tal conclusão, pois
isso impediria a construção de todo o seu sistema erigido a partir de noções primeiras e
gerais. Ora, se tal pedra angular desmorona na teoria e na práxis histórica, então, é toda
a obra lukácsiana da maturidade que também desmorona.

Reconciliação forçada
Em todo caso, a boa fé nessa base econômica é completamente forçada – o cerne
da “reconciliação forçada” já apontada por Adorno –, pois fica coagida a aceitar a
violência cega da lei do valor, como um eterno “ser” em “automovimento”, como
reconhece Lukács, e que só pode implicar na violência do Estado, ambos como garantias
ideológicas da justiça, da liberdade e da identidade ao final do processo. A operação
ideológica, aqui, lança mão do recurso marxiano de olhar o presente histórico do ponto
de vista das forças produtivas humanas e sociais isoladamente – claramente abstrato,
especulativo e... teleológico, pois que se erige a totalidade do desenvolvimento humano
como padrão de medida (aqui, a origem da ideologia fáustica e prometéica de Marx, que
vem de Hegel e do idealismo alemão) – quer dizer, um ponto de vista que se abstrai das
relações de produção fetichistas, ou seja, do ponto de vista propriamente imanente à
economia política, com sua fundação histórica particular, e não antropológica geral. Em
Marx, no entanto, esse ponto de vista especulativo não é fundante, não cria uma
essência humana como sujeito em movimento – ao contrário, é uma perspectiva crítica,
como que feita de fora, que estabelece os universais humanos como pressuposições;
enfim, uma visão das possibilidades objetivas que surgem no reino do capital. Ora, o
último Lukács transforma tais possibilidades em essência objetiva do processo (em-si),
apenas necessitando da práxis consciente para efetivá-las (para-si) – a armadilha
prática que consiste em não ver nenhuma necessidade de ruptura no fundamento posto
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pela centralidade do trabalho, do valor, da economia como esfera separada etc.


Assim, na verdade, o que Lukács deve considerar como essência histórica é
menos a lei do valor (e jamais o capital) do que o processo de crescimento das forças
produtivas humanas. E como isso aparece como um progresso objetivo e mais ou menos
contínuo na história moderna, ele lhe dá o nome de essência ou substância do ser social
em geral. As contradições em relação a essa essência rebaixam-se então ao nível
fenomênico: o que significa relativizar à vontade a alienação como histórica e
espacialmente desigual, descontínua, contingente, neutra, socialmente necessária ou
então só aparente. Certamente, Lukács pensa em frases de Marx que dizem que as forças
produtivas sociais do trabalho (ou humanas) aparecem como forças produtivas do
capital. Esta aparência, no entanto, é objetiva – não é uma ilusão da consciência, pois é
a forma de manifestação da essência mística do capital. O que está posto são as forças
produtivas do capital (ele é a essência que aparece), o que fica pressuposto são a forças
produtivas sociais e humanas. Trata-se então da forma de aparição da essência do modo
de produção capitalista, e não de um suposto modo de produção “humanista” genérico.
A aparência que Marx se refere em tais juízos de essência (“ontológicos”) diz respeito à
inversão real de sujeito e objeto. As forças produtivas serem humanas – eis a aparência
ideológica, na verdade; pois elas são o Capital em processo, uma objetivação da relação-
capital (o verdadeiro fundamento/sujeito), em que o capital aparece como um simples
processo de trabalho humano produtor de bens úteis, como em qualquer outra formação
social, e assim como uma simples coisa sem determinação histórico-formal precisa. Eis
o naturalismo fetichista da economia política em ato. Mas como coisa social alienada o
Capital aparece como a maquinaria que movimenta e suga o trabalho vivo. Ao contrário,
Lukács humaniza a essência do capital, vendo nesse processo a apoteose do humano –
afirmando claramente uma teleologia na história, embora formalmente o negue. Mas
quando cita as Teorias da mais-valia de Marx, a especulação teleológica torna-se
evidente:
"A produção pela produção nada mais quer dizer que desenvolvimento das forças
produtivas humanas, isto é, desenvolvimento da riqueza da natureza humana como
finalidade em si (...). Não se compreende que esse desenvolvimento da espécie homem,
embora se processe inicialmente em detrimento das capacidades da maioria dos
indivíduos humanos e de todas as classes humanas, termina por destruir esse
antagonismo e coincidir com o desenvolvimento do indivíduo singular; não se
compreende, portanto, que o mais alto desenvolvimento da individualidade só é obtido
através de um processo histórico no qual os indivíduos são sacrificados." (Marx).

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O que Lukács comenta ingenuamente deste modo: “Por isso, a referência


remissiva do desenvolvimento das forças produtivas ao desenvolvimento do gênero
humano jamais abandona o critério da objetividade ontológica” – como se Marx não
estivesse especulando ou criando uma teleologia metafísica do processo histórico (só
assim pode-se garantir que o capital “termina por destruir esse antagonismo”), ou como
se a “essência ontológica” aqui não se tratasse de simples possibilidade mas de um reino
da liberdade já instaurado e que justificasse todos os sacrifícios humanos, enfim, como
se a monstruosidade da produção de capital como fim em si mesmo coincidisse
essencial e necessariamente com a produção para os homens.
Na Estética de Lukács essa lógica da identidade fica mais evidente: o mundo
violento e anti-humano do capital deve ser “refletido” e “antropomorfizado” pelas obras
afirmativas (daí a defesa do realismo burguês), criando um “mundo adequado” ao
“gênero humano”; no limite, torna-se a norma estética que cria a “identidade absoluta
entre interioridade e exterioridade”, em que a arte não só deve refletir “um concreto
espaço animado, mas tem também a função de animar um espaço concreto e real, fazê-
la ainda mais pátria do homem, mundo próprio [!]” (Estética, vol. II, g. n.). Eis aqui,
nesta estética idealista, o destino do sujeito-objeto idêntico, que anteriormente pelo
menos era a consciência da negatividade histórica do proletariado.
De fundamento da alienação e do terror histórico que é, a lei do valor se converte
em origem da humanização do homem. Na verdade, na OSS, essa boa fé na base e nas
estruturas depende bem mais do que ocorre na esfera dita “extra-econômica” e
“superestrutural” da política (luta de classes) e da ética, enfim, da luta de consciências e
interesses. A identidade sujeito-objeto então quase desaparece: o “objeto” substancial, a
economia, é o produto do “sujeito” do processo (o trabalho ou o proletariado), mas já
não é idêntica ou unida a ele, ela mesma é um tipo de objeto vivo estranho e
incontrolável – embora o Estado socialista possa planejar e coordenar a economia,
obviamente que por sobre a cabeça do proletariado produtor do valor eterno.

A ideia fixa dos princípios e a dialética imaginária


Desde “Meu caminho para Marx” (1933), o materialismo histórico e dialético se
torna, nas intenções de Lukács, uma “doutrina” aplicável à realidade em geral, tanto que
em seu Postscriptum (1957) ele confirmava que “o esforço sério na direção de uma
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ciência marxista universal pode dar à minha vida um conteúdo indestrutível”. Aliás, a
busca sistemática de uma lógica, uma ética, uma estética, uma psicologia marxistas
poderá “preencher fecundamente a vida de gerações inteiras[!]”. Com a OSS, essa mania
de grandezas é coroada como doutrina ontológica da espécie humana, talvez de todas as
espécies, do mundo natural e social, quiçá, até do Outro. O filósofo não rejeita a dialética
na natureza, mas a continua e a desdobra socialmente, na interação supostamente
“contraditória” entre forças naturais e sociais – e por que não também “religiosas”?
Marx certamente não delirava quando falava dos “caprichos teológicos” ou da
“objetividade fantasmática” da forma-valor. Eis pelo menos uma “metafísica” ontológica
do real, não constituída por seres imaginários, e que supera a autoestilização do sujeito
moderno como o senhor absoluto de seu destino. E como Lukács consegue converter
milagrosamente o valor na matriz prática dos valores éticos que humanizam o homem,
ele o transforma positivamente em homo economicus! O universal humano não se
estilhaça mais pela economia e a divisão do trabalho, ele tem de “se realizar”
imaginariamente nessa forma cindida. Claro também que não sem antes denunciar as
“contradições”, puramente “fenomênicas”, em relação à “essência” constituída pelo
progresso objetivo do trabalho e das faculdades humanas. Assim, como vimos, a
contradição cegamente constituída e constitutiva da relação social fetichista se torna
positivamente, como em Hegel, a mera manifestação exterior de um progresso da
identidade humana. Lukács troca, no final, o Weltgeist anteriormente formado pelo
proletariado e o Partido pela metafísica das forças produtivas do gênero humano. Não
há dialética do capital, mas conflito entre essa ética e as estruturas reificadas. Mais ou
menos como em Proudhon, “ele imagina que a divisão do trabalho, o crédito, a fábrica,
todas as relações econômicas foram inventadas em benefício da igualdade, e todavia
acabaram sempre por se voltar contra ela. (...) Se há contradição, ela existe apenas entre
sua ideia fixa e o movimento real” (Marx, A miséria da filosofia).

O verdadeiro pai do Marxismo Ocidental Oriental


Note-se que nesta sua segunda fundação ontológica do marxismo, o filósofo
húngaro deixa o cargo indesejado de pai do marxismo ocidental para assumir o de pai
do marxismo oriental ortodoxo. O ontológico é uma volta às raízes originárias do ser e
de suas leis primordiais. Se o capital, para Marx, é o fundamento real da produção
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burguesa, então Lukács busca o fundamento imaginário desse fundamento real,


tornando-o um mero resultado do trabalho humano: “o capital no processo é só
existência passiva, objetiva, na qual a determinação formal pela qual é capital –
portanto uma relação social existente para si – está totalmente cancelada”, como diria
Marx (Grundrisse). Para isso, tem de retornar à categoria do trabalho em termos
totalmente abstratos, antropológicos e positivos, o que supostamente daria uma
sustentação “materialista” à consciência de classe, ou antes, à consciência e à prática da
espécie – lembrando que Lukács visava a uma Ética marxista. Simbolicamente, tudo se
passa como se faltasse alguém para ocupar o lugar do grande Pai morto (Marx-Lênin); a
OSS faz o papel do suplente do Pai simbólico do marxismo do Leste (o “marxismo
soviético”, na expressão de Marcuse). De fato, a busca de leis ontológicas deseja suprir a
falta (ou a recusa) da Lei no real estado de exceção stalinista.

Um passo para frente, dois para trás


O filósofo avança neste primeiro volume, então, uma discussão da necessidade de
uma ontologia marxista – ou marxista-leninista, poderíamos dizer também, pois Lênin é
um apoio imprescindível de seu projeto (além de Aristóteles, Goethe, Hegel, Hartmann
e Engels). O volume se contrapõe, histórica e criticamente, e aqui temos a parte mais
sólida do livro, às visões ontológicas religiosas e metafísicas, à ontologia heideggeriana,
fenomenológica e existencialista, bem como às filosofias da lógica e da epistemologia
neokantiana, positivista e neopositivista (Mach, Carnap, o primeiro Wittgenstein, o
pragmatismo).
O materialismo marxista, que Lukács busca elevar à dignidade ontológica, afirma
não só a verdade objetiva das categorias históricas da crítica da economia política,
embora com o mau acento na sua identidade e continuidade “substancial” e positividade
ou neutralidade valorativa (o prometeísmo de Marx sai incólume), mas também a
verdade ontológica de princípios racionais universais do ser social – sempre em geral.
Para isso, ele tem de voltar sistematicamente às relações mais imediatas entre homem e
natureza, isto é, às bases antropológicas e naturais abstratas de toda e qualquer
formação, mormente no trabalho material. Sem dúvida, são bases gerais, mas não
fundamentos. Justamente aquilo que Marx considerava sem necessidade de grandes
explicações, pois constituiria um discurso geral abstrato, sem poder fundante e
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explicativo, válido apenas como “modo de evitar repetições”, pois bem: é aí que o nosso
filósofo deposita todas as suas fichas, propondo o que ele chama de “generalizações
filosóficas”. Segundo Marx, porém, não a unidade, mas a separação histórica entre
homens e meios de produção é que precisava ser explicada; não a produção ou as forças
produtivas isoladamente, mas as relações de produção e distribuição específicas em
relação dialética com tais forças, no mundo burguês – em suma, o modo de produção e
reprodução, ou ainda, a dialética entre determinações formais e relações materiais de
produção – é isso que constituía o discurso substantivo de Marx – que por isso mesmo
ultrapassa a ontologia filosófica em direção a uma crítica imanente do que é e parece
ontológico, crítica do que se cristaliza nas chamadas “leis histórico-naturais”. Lukács
prefere no entanto concentrar-se nas raciocinações infinitas sobre a práxis em geral, o
processo material de produção, as forças produtivas como “base” prioritária da
economia e do ser social genéricos. A famosa questão marxista da produção de mais-
trabalho e de mais-valia – reveladores da verdade negativa da sociedade do trabalho e
do valor – tende assim a quase sumir do mapa. De Hegel, interessam-lhe, sobretudo, os
esquemas do ardil do trabalho e da astúcia da Razão. Pode-se duvidar se a OSS não é
uma imensa glosa desses dois modelos filosóficos, que terminam por suprimir as
estruturas históricas e dialéticas da exposição de Marx. De fato, o livro desliza pelo ser
social de todas as épocas, da Idade da pedra lascada à União Soviética, numa
terminologia genérica e imprecisa, sem explicitar e detalhadamente nenhum modo de
produção. Basta perceber como estão muito pouco presentes em seus esquemas o “ser-
precisamente-assim” dos conceitos históricos do trabalho, tais como trabalho abstrato e
assalariado ou trabalho escravo e servil.

Quem não trabalha não come: a “ética” da lei do valor


Da mesma forma, nenhuma diferenciação entre o valor e a forma-valor nas várias
sociedades; uma forma, aliás, ontologizada e completamente confundida como base
prototípica de “valores ético-morais” a partir de raciocínios abstratos sobre a produção
de valores de uso. Entenda quem puder! Assim, lemos na OSS os dois planos
contraditórios de constituição dos valores morais – o primeiro plano, constituído pelo
fetiche do valor:
“A relação real, objetiva, independente da consciência, que designamos aqui com o termo
‘valor’, é efetivamente, sem prejuízo dessa sua objetividade, em última análise, mas
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apenas em última análise, também o fundamento ontológico de todas as relações sociais


que chamamos de valores; e, por isso, também o veículo de todos os tipos de
comportamento socialmente relevantes que são chamados de avaliações (ou juízos de
valor)” (OSS).

Como derivar a justiça e a liberdade do terror econômico, ou seja, do dinheiro que se


autovaloriza? Sem dúvida, muitos dos valores ocidentais, em especial a moral do
trabalho e o patriarcado do valor (a cisão: homem = valor/mulher = não-valor) só
podem brotar nesse contexto. Mas então como pressupor aí valores positivos e
humanizadores, como propõe Lukács? Ora, basta lembrar que o trabalho que põe valor
também deve produzir “bens úteis” (hipoteticamente não para o Outro) e que são
subjetivados e consumidos, gerando capacidades humanas e a possibilidade do tempo
livre:
“Interessa-nos exclusivamente afirmar que tudo aquilo que no trabalho e através do
trabalho surge de expressamente humano constitui, precisamente, aquela esfera do
humano sobre a qual — direta ou indiretamente — baseiam-se todos os valores” (OSS).

Aqui, então, o segundo plano de gênese dos valores: o trabalho útil, como ideação e
posição de fins na matéria, que seria a protoforma de toda atividade. De fato, os
indivíduos são historicamente “o que” e “o modo como produzem” (Marx/Engels). É
claro que “o trabalho forma” (Hegel) capacidades técnicas, sociais e intelectuais no
sujeito que produz. Porém, em qual contexto isso se torna um fim em si, um valor, uma
moral exclusiva centrada na autoconservação – uma “moral de escravos” (Nietzsche)?
Em qual sentido os indivíduos não são ou não se reduziriam à produção e à divisão do
trabalho? Questionar a objetividade desse progresso e a racionalidades desses valores
não tem nada de “irracionalismo” – o que “destrói a razão” é a própria razão
instrumental, que Lukács põe no Altar e irracionalmente cultua.
N’A Ideologia Alemã, Marx lembra que o trabalho “concreto” sempre foi uma
“existência unilateral”, “subordinada/inferior” e que só tem a “aparência de uma
autoatividade”; nesse contexto preciso, “a vida material aparece como a finalidade” da
existência. E por isso, “a revolução comunista volta-se contra o modo da atividade
existente até aqui, elimina o trabalho”. Como o trabalho historicamente é, ainda
segundo Marx, uma atividade subordinada ao reino da necessidade (às causalidades
exteriores, naturais e sociais), idêntico ao reino da instrumentalização de coisas,
animais e homens (o domínio da razão instrumental sobre a natureza, da cisão entre

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trabalho intelectual e manual etc.), não resta como valor moral senão a valorização
forçada, tipicamente burguesa ocidental, dos meios técnicos, instrumentais e utilitários
da dominação, que absorvem e suprimem os fins humanos exteriores a esse reino.
Assim, os traços da autoatividade, na esfera do trabalho histórico, são claramente
residuais. Eles devem ser procurados lá onde o trabalho cessa ou se transfigura em
outra coisa, não mais estritamente subordinada à consciência objetificadora e às
necessidades materiais, mas antes ao corpo, à sensibilidade, ao desejo e à lógica da
própria atividade: ócio, jogo, festa, sociabilidade, sexualidade, vida doméstica, ciência,
educação, artes – precisamente o que foi separado, no mundo moderno, em esferas mais
ou menos exteriores à economia empresarial. Hoje, é claro que até mesmo tais esferas
foram racionalizadas economicamente, por assim dizer “trabalhizadas”. Quando Lukács
fala do trabalho como forma originária dos valores morais, no fundo deve ter em mente
o modelo da criação estética e artesanal, ou a produção comunitária (típica do pré-
capitalismo). Sem dúvida, porém, se tais atividades são muito parcialmente fins em si
(ou finalidades sem fim) – como sinais históricos do possível reino da liberdade –, isso
apenas desvela o que o trabalho historicamente nunca foi e nunca poderá ser. Por isso,
como diz Marx, citado muitas vezes por Lukács: o reino da liberdade está para além do
reino da necessidade. Sua condição é, por isso mesmo, não a extensão do trabalho, mas
a redução do tempo do trabalho (aqui, no sentido de produção material) ao mínimo,
superando a sujeição dos homens à causalidade econômico-social alienada.

Os marxistas e sua antropologia disfarçada de ontologia


Mas então, em vez da crítica do valor, do trabalho e da economia política, Lukács
prefere realizar a bizarra apologia direta dos benefícios ditos “objetivos” do valor-
trabalho, a começar talvez, é bom lembrar, pela escravidão colonial, o imperialismo, o
stalinismo e seus valores da “produção”. Tudo é possível. São as vantagens de se forjar
um Diamat versão flex. Os princípios são então “refletidos” a partir da realidade natural
e social depurada das contradições, especialmente a partir da “essência” formada por
essa realidade econômica “objetiva” – neutra e sublimada como no positivismo – uma
espécie de economia em geral (em vez da economia antiga, asiática, feudal ou
capitalista), vale sempre ressaltar, uma certa lógica socioantropológica do trabalho. A
partir de tais categorias gerais da economia (trabalho, divisão do trabalho, cooperação,
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utilidade etc.), ou antes da antropologia filosófica, seria possível fundar uma práxis ética
marxista de corte humanista, claramente antimetafísica, contrária a todo imperativo
categórico moral puramente racional e às várias formas de decisionismo, voluntarismo e
politicismo, bem como ao determinismo economicista. O alvo parece justo, no entanto
os meios e os fundamentos histórico-materiais pressupostos são uma areia movediça –
complicadíssimos, para dizer o mínimo.
Como vimos, Lukács pensa tais categorias, mais ou menos como o jovem Marx,
como referentes, em última instância, ao homem e às suas bases naturais (o homem
posto como sujeito fundante, mesmo que negado): certamente como bases categoriais
sociais e históricas (divisão do trabalho, trabalho socialmente necessário, valor, troca
etc.), mas válidas para todas as épocas, em medidas variáveis – nesse sentido elas
seriam quase todas essências contínuas e trans-históricas, como não poderia deixar de
ser em uma ontologia que busca fundamentos positivos. Assim, contudo, as “leis
histórico-naturais do desenvolvimento” da sociedade burguesa, tal como nomeadas por
Marx, são em grande parte esvaziadas de sua especificidade e negatividade históricas
imanentes e projetadas em geral para várias formações sociais – como a categoria
fundamental do valor e, portanto, do trabalho abstrato –, inclusive para a sociedade
emancipada (comunista). “A anatomia do homem é uma chave para a anatomia do
macaco”, diz Marx, mas não sem advertir que as determinações da época burguesa –
como “última etapa” da “pré-história” do homem, vale lembrar –, não deveriam
eliminar as diferenças específicas, nem poderiam ser projetadas como um esquema
evolutivo ou desenvolvimentista quase-linear e causal de essências postas, sob o risco de
eternizar as categorias burguesas e o seu modo de funcionamento; pior, talvez,
tornando-as categorias “humanas”, lá onde o Homem ainda não é sujeito pleno e
portanto não é fundamento posto, mas antes a criatura de relações sociais “pré-
históricas” complexas. Uma antropologia crítica só teria sentido como antropologia
negativa, como análise de negações e de resíduos possíveis do homem em sua pré-
história. O que só se faz “escovando a história a contrapelo” (W. Benjamin).

A racionalização estoica da miséria


Daí a falha da leitura e da crítica lukácsiana de Hegel, no capítulo deste vol. 1 da
OSS. De um lado, a incompreensão da teoria da negação dialética de Hegel, que não
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parte de princípios e fundamentos positivos: a substância que é sujeito, na


Fenomenologia, é um processo negativo que suprime os fundamentos em favor do
devir, o qual passa a expressar negações do Espírito-Sujeito, constituindo-o só ao final
(Cf. Ruy Fausto, Marx: lógica e política, vol. 1). Lukács pode até visar isso, mas não o
faz quando supõe um fundamento humano “fixo” que vai, sem descontinuidade objetiva
radical, se preenchendo de determinações afirmativas, como se estas não fossem
negações determinadas do homem. Lukács nega o negativo: por isso, sua dialética é
síntese e afirmação do existente, não podendo levar para além dele. Para Marx, a
novidade radical instaurada pelo Capital é formada, ao contrário, por negações: a
expropriação originária, a mercantilização da força de trabalho e a posição da finalidade
cega e autonomizada da valorização do valor. Lukács nega-se a pensar esse processo
teleológico cego ao nível da totalidade do modo de produção capitalista, que justamente
caracteriza o resultado objetivo de sua essência, pois só enxerga a teleologia ao nível do
trabalho imediato dos homens. Não percebe que a “falsa ontologia” de Hegel (a astúcia
da Razão) é a narrativa idealista da realidade realmente invertida e alienada. Assim,
Lukács falha na leitura do aspecto crítico da função do especulativo e da totalidade em
Marx. Esta só se concretiza na conceituação rigorosa da relação-capital, que se dá entre
o trabalho abstrato assalariado, como “substância” do valor, e o Capital, como “sujeito
automático”. O materialismo de Lukács simplesmente desconhece ou se recusa a pensar
essa “metafísica real” (Marx), que inverte sujeito e objeto. Tudo parte do trabalho do
sujeito social em-si e como que destinado para-si enquanto gênero, como se uma
alienação radical, seu ser-para-Outro, não o constituísse desde a base, fosse só um
aspecto fenomênico. O real é racional, o racional é real. O homem lukácsiano é no fundo
um estoico, vivendo no reino de essências puras e inabaláveis do pensamento: “Como
forma universal do espírito do mundo, o estoicismo só podia surgir no tempo do medo e
escravidão universais, mas também de cultura (Bildung) que havia elevado o formar até
o nível do pensar (...) é apenas o conceito da liberdade e não a própria liberdade viva”
(Hegel, Fenomenologia do Espírito). Mas por outras vias, assim, o postulado hegeliano
da totalidade especulativa do Espírito (“a identidade de identidade e não-identidade”) é
confirmada por Lukács como totalidade da liberdade humana –, cujos acidentes e
contradições de percurso repousam seguramente sob o eterno fundamento categorial do
Grande Hotel Occidental. Kafka sabia que esse Grande Hotel na verdade era a América,
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a pátria transcendental do trabalho abstrato. O Outro, o não-idêntico, não existe.

A verdadeira e a falsa ontologia do capital – a “ontologia” da miséria e a


miséria da ontologia
Será que se cumpre a promessa de uma crítica realmente materialista? Serão tais
princípios mais “sólidos” e “objetivos”, como o termo ontológico dá a entender? Note-se
como o termo ontologia tem dois sentidos no livro que muitas vezes são indiferenciados
e antagônicos: por um lado, o grande mérito do livro, ela refere-se à realidade histórica
efetiva das categorias do capital como “determinações da existência” e “formas de
pensamento” (Marx), impondo o primado da economia e das leis “histórico-naturais” do
Capital, em suma, uma “ontologia” (entre aspas, histórico-negativa) da miséria
instaurada pela dominação do capital através do trabalho (donde valerá ler, sem culto,
os capítulos sobre a “Alienação” e a “Reprodução”, no vol. 2); por outro lado, como
apontamos, a ontologia remete às origens e princípios do ser social em geral, à uma
suposta essência trans-histórica consubstanciada pelas “leis objetivas” do trabalho
determinado pelas necessidades humanas, como se ele fosse a “essência” e o “momento
predominante” em geral, inclusive sob (ou antes sobre) o mundo capitalista – com o
que, é claro, o primeiro sentido da ontologia, crítico-negativo, é praticamente esvaziado
e destruído, pois a objetividade fetichista do Capital e de suas categorias alienadas se
transforma e se desfigura, em três níveis articulados:
a) numa manifestação fenomênica ou mero resultado alienado (quase como um rebote
inesperado) do processo de metabolismo de sociedade-natureza mediante a posição de
fins teleológicos individuais na matéria natural – como se esta determinação
antropológica geral tivesse papel fundante real e preponderante sobre as mediações do
capital, da lei do valor, da divisão do trabalho etc. Lukács sabe que se trata de uma
abstração teórica, uma “abstração razoável” (como Marx diz nos Grundrisse) – lógica e
não-efetiva – de um momento material genérico de complexos histórico-sociais. Mas
ilegitimamente ele a extrapola como uma essência determinante, que expulsa a
expressão das verdadeiras contradições imanentes do capital. Assim, a relação-capital
não é concebida dialeticamente como o abismo desse suposto fundamento do trabalho
em geral – que subsume formal e realmente o trabalho e o converte em mera base
material da valorização e, assim, numa manifestação concreta do processo abstrato do
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capital-sujeito. Na OSS, o capital é uma continuidade desdobrada dos atos teleológicos


humanos, seu resultado imprevisível. Sem dúvida, os atos teleológicos dos agentes são
um elemento do capital, mas não o princípio metafísico que o põe em movimento. Marx
abandonou o capítulo sobre a “produção em geral” justamente por isso. De fato, para
Lukács, o ponto de partida, como vimos, a verdadeira “célula germinal” da economia
marxiana, não é a célula da forma-mercadoria ou forma-valor, mas os atos de posição
teleológica do trabalho (de onde a possibilidade, se quisermos, de deduzir a forma-valor
da produção intencional de valores de uso, da divisão do trabalho, da troca e, enfim, sem
descontinuidade, da própria relação homem-natureza). Assim, portanto, ocorra o que
ocorrer, a “intenção” humana do trabalho dito concreto – mas no fundo apenas um
modelo filosófico-ideológico do “trabalho em geral” –, é somente “abstraída” pela
circulação mercantil como uma suposta instância externa, sem perverter sua essência
humana, que teria imaginariamente o papel determinante de última instância;
b) num resultado do conflito de classes, mas no fim de contas redutível a “relações
humanas”, que seriam a essência oculta “por trás” do fetiche reificado e que
movimentariam o capital; aqui, Lukács faz sociologia econômico-política, logicamente
necessária, mas dando-lhe um papel fundante que reduz o estatuto absolutamente
predominante e central do fetichismo e da alienação (Entfremdung) do capital. Já em
HCC, o fetichismo era concebido mais como uma reificação subjetiva que “escondia”
processos, do que como ser objetivo, o cerne constitutivo das relações de produção
realmente autonomizadas como relações entre coisas e, nesse sentido, relações a-sociais.
Certamente são os homens que agem e reproduzem as suas relações – mas num nível
fundamental anterior à própria luta de classes, eles são agidos e coagidos à luta, através
da relação-Capital. Essa distinção de níveis é sutil, mas importantíssima. Assim, é como
se o processo da produção de valores – o “mundo do trabalho”, como os epígonos
costumam dizer – não fosse mediatizado e comandado pelo capital como o “sujeito
predominante” do processo, como diz Marx (O Capital), desde a base, o que inverte e
subverte toda teleologia dos agentes (capitalista ou trabalhador). Vale frisar esse ponto
crucial: a alienação se dá desde o ponto de partida – os atos teleológicos racionais no
âmbito empresarial invertem-se em “racionais” e “produtivos” em relação aos meios
somente se abstrairmos toda a degradação humana e socioambiental do processo de
trabalho concreto; e com respeito aos fins e à totalidade, eles se tornam totalmente
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contraditórios e irracionais. A OSS reconhece isso pelas bordas, negando o caráter


teleológico do social como um todo – o estranhamento surge deste nível –, mas abstrai a
negatividade já operante, desde o fundamento, nos meios, inclusive na redução real-
capitalista do metabolismo homem-natureza à ação racional instrumental. De resto, a
OSS afirma positivamente essa redução do processo vital à consciência humana,
positivando a la Hegel o seu caráter civilizatório e repressor das emoções e impulsos,
como forjador da personalidade e do Eu idêntico e coisificado, plenamente constituído
no mundo burguês. O recalcado é o mal-estar dessa civilização – em Lukács, porém, o
inconsciente freudiano – como o caráter “demoníaco” de seus escritos de juventude – é
eliminado à força, com supostos ganhos “materialistas”, pela psicologia dos reflexos de
Pavlov e pela pedagogia humana do “trabalho” (de Hegel, Marx e Engels). Em HCC, o
modelo histórico-crítico do trabalho industrial taylorista pelo menos não passava batido
pela crítica: o cálculo abstrato, a eficácia puramente técnica e instrumental do trabalho
orientado pelos fins utilitários – este trabalho historicamente concreto – era parte do
reino da abstração real das qualidades, não podia ter parte com o reino da liberdade
humana, a não ser como um certo potencial – para muito além do taylorismo. De modo
que a produção (como condição material inextinguível) e o consumo (como seu
momento interno/base ideal) tornam-se meros meios ou suportes da relação de
produção Capital, que, esta sim constitui os seus pressupostos materiais e a falsa
Totalidade. Nesse sentido, o hoje tão desprezado HCC, acertava metodologicamente
quando afirmava, de maneira crítica, o primado da totalidade e não o da economia ou a
do trabalho em geral.
c) o fetichismo se transforma numa questão, enfim, de “ideologia”, de “falsa
consciência” e, nova categoria no front, de “manipulação” (política, retórico-comercial,
lógico-epistemológica neopositivista etc.). Uma redução sociologista do fetiche à
aparência e à subjetividade (de classe), que já aparecia em HCC, e agora tende a se
ampliar, à medida que as categorias reais da socialidade a-social do fetichismo são como
que “humanizadas” e “suavizadas” de negatividade. Por isso, quando o estranhamento
fetichista perde o seu papel central, como essência objetiva do ser social moderno, pode-
se de fato imaginar transcendê-lo por postulados éticos “ontopráticos”.

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Ontologia do ser social e do ser a-social


De um lado, então, temos na OSS o caráter “ontológico” histórico-negativo das
categorias do capital (mercadoria, valor, trabalho abstrato/concreto, capital etc.) com a
sua real força mística fundante da socialidade a-social atual, e que Lukács pouco trata
neste vol. 1, a não ser no capítulo sobre Marx, se bem que como uma lógica inerente à
economia em geral; de outro, temos a Ontologia como uma filosofia perene ou universal
sobre os princípios da práxis humana, do processo trans-histórico (mais engelsiano que
marxiano) de socialização e suposta civilização e humanização da espécie pelo trabalho,
que tem logicamente de abstrair, recalcar e sublimar todas as formações históricas em
que o trabalho apareceu como um dos momentos subordinados do mundo social ou
como sinônimo objetivo de dominação, alienação e sofrimento (tripalium), como uma
condição “ontológica” divinizada apenas pela força do mito, da religião e dos costumes,
justificada pela filosofia e imposta pela classe dominante, que precisamente assim se
livrava do trabalho para si.

Cacoete ou palavra da salvação?


O termo “ontológico” na OSS, assim, é um termo ambíguo. Ontológico como
referente aos fundamentos naturais e socioantropológicos, sem peso fundante, ou como
o domínio fantasmagórico das “abstrações reais”, estas sim com peso fundante no
mundo moderno? Onde é que Marx transforma o processo metabólico em geral em uma
“abstração real” ontológica? Eis a ilusão da falsa imediatidade da práxis, que degrada o
marxismo à ontologia ingênua. Um termo que vai virando quase um cacoete entre os
epígonos, como se fosse a “palavra da salvação”: ora significando a “objetividade
fantasmagórica” do valor, que tolhe os homens da posição de sujeitos (embora não o
antagonismo de classes, vale sublinhar), ora o nível puramente técnico-material e
antropológico da produção ou da relação metabólica homem-natureza.

Em primeira ou em última instância, sempre o “trabalho”


Na raiz, portanto, o caminho inverso ao de Marx: uma hipóstase ontológica de
princípios em vez da relativização e redefinição histórica do conceito de trabalho ou de
produção, mostrando que esta só se tornou “trabalho” de fato, só se pôs efetivamente e
veio a conceito como “trabalho sans phrase”, como diz expressamente os Grundrisse,
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apenas no mundo moderno, pois, nas formações pré-capitalistas ela se fundia, como a
parte material da reprodução social, aos outros momentos da vida (religião, guerra, vida
doméstica, “política”, tempo livre etc.). A produção não era uma esfera legal regida pelo
tempo abstrato do valor ou por critérios puramente econômicos, tal como no
capitalismo, e, por isso mesmo, muitas vezes não visava somente aos puros fins
racionais, úteis ou econômicos. Tomar o valor (de troca e de uso) como base e critério
dos valores morais é tornar o princípio de autoconservação uma religião secular da
razão instrumental, tal como o fizeram Hobbes, Sade, o positivismo e o darwinismo
social: o Eu como um eterno ser para o Outro. Precisamente aqui a liberdade aparece
como o progresso da razão dominadora.
Nesse sentido, não se trata de eliminar o uso e a utilidade das considerações
éticas – mas de determiná-los e relativizá-los como critérios históricos. Além da
consciência, do imaginário e das necessidades no ato produtivo, poderíamos divisar
como mediações significativas de qualquer práxis o inconsciente e a pulsão, a ordem
sociossimbólica e o real (no sentido lacaniano), que parecem impelir muitas vezes a
reprodução social para além do princípio do prazer e da autoconservação. Sem isso,
talvez, não se entende o papel histórico fundamental da violência, do sagrado e de todas
as mediações extra-econômicas nas formações não-capitalistas (Cf. Perry Anderson,
Pierre Clastres, Marshall Sahlins, entre outros) – ou mesmo na capitalista. Em HCC,
reconhecia-se isso mais e melhor. Assim, nunca ou muito dificilmente a produção por si
própria se torna diretamente a mediação social central ou exerce o papel de “momento
predominante” nas formações não-capitalistas, já que os homens, suas “necessidades” e
“desejos”, mediados pelas relações sociais diretas efetivas, eram o fundamento e a
finalidade social da vida. Não há produção, nem ato teleológico separado da
comunicação e da linguagem, dos ritos, da política etc. O ser primeiro é um mito da
razão analítica. O processo produtivo, aqui e talvez ainda mais no capitalismo, é uma
simples base ou condição material entrelaçada ao social e às ideologias, sem dinamismo
próprio. A não ser na metafísica das forças produtivas. Não menos que isto: uma
determinação entre outras, nunca a determinação de primeira ou última instância. Aqui,
inclusive, a argumentação tem de ocorrer contra a letra de vários textos de Marx, para
conservar o seu espírito de crítica do valor, do trabalho e do capital. A OSS enterra,
então, o caminho para um materialismo crítico em que as relações sociais e simbólicas
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comporiam o “primado do objeto” (Adorno), para além da unilateralidade das supostas


leis gerais da economia.

Prioridade da base sobre a superestrutura ou a dos prefácios sobre o


movimento histórico efetivo?
É claro que Lukács tenta nos dizer que a base econômica é “prioritária” apenas no
sentido de ser um “ponto de partida” (usando palavras de Marx), “sem hierarquia de
valor” entre os momentos, ou pelo menos sem determinismo. Base que atuaria no jogo
de “ação recíproca” entre a base e da superestrutura. Esse motivo é afirmado muitas
vezes na OSS contra o marxismo vulgar. Mas, no fundo, essa divisão – tipicamente
moderna – entre base e superestrutura já é todo o problema. Aqui, o problema de
tomar os prefácios e introduções de Marx como fundamentos de uma teoria geral da
práxis, desprezando a forma de apresentação dialética das categorias sociais efetivas de
cada formação, o que só pode gerar falácias argumentativas escolásticas: sempre a
economia – e pior, a lei do valor, como vimos – se torna, nessa sistematização, o
processo-sem-sujeito predominante em “última instância” (como na “teoria geral das
práticas” de Althusser, aliás), ganhando o papel fundador essencial, como força
produtiva e relação de produção, quando não a centralidade ontológica de definição do
que é a “generidade humana”, como a “protoforma” ou o “modelo originário” da
liberdade e de todas as atividades humanas com algum fim racional etc. Primazia ou
sobredeterminação, eis sempre o trabalho, que é também o trabalho de segunda mão de
uma antropologia datada, rematada pelo velho economicismo marxista – apenas sem
determinismo, e com muita ação recíproca, que na verdade neutraliza a base fundante
de última instância. Sem dúvida, o trabalho deve fundar uma antropologia negativa: na
Dialética do Esclarecimento, a relação de dominação capitalista pode estar pressuposta
na lógica da autoconservação, no pensamento mitológico e na lógica da identidade do
Esclarecimento – inseparáveis da lógica histórica da troca, do trabalho alienado e da
dominação social. Mas, valendo como pressupostos elementares ou meras tendências
limitadas, eles são postos e atualizados como fundamentos só no mundo do Capital, que
redefine os termos e até os inverte. Não se parte de abstrações da antropologia filosófica,
e por isso há gêneses e rupturas categoriais à vista, sem possibilidade de ontologização
a-histórica ou trans-histórica de formas de pensamento e existência social.
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Trabalho inflacionado
A OSS inflaciona inteiramente o termo trabalho, abstraindo-o das relações
históricas efetivas, já que tudo se torna, no fundo, em qualquer tempo, trabalho ou
momento subsumido do processo-com-sujeito predominante do trabalho (a oscilação
dualista é algo necessário): conversar, discursar, plantar, cozinhar, pescar, amar,
dormir, criar os filhos, desenhar, pensar, orar, escrever etc., como atividades
conscientes e evidentemente com consequências práticas, poderiam ser reduzidas
também, em última instância, a trabalho – o que faz sentido (parcial talvez) no mundo
capitalista ou real-socialista, que tende a “trabalhizar” tudo, pois rege efetivamente o
todo pelo metro abstrato da equivalência geral e da compulsão do crescimento das
forças produtivas como fins para o Outro (e não para a “generidade humana em si” ou
“para-si”, é sempre bom salientar). No capítulo da “Reprodução”, no vol. 2, é a vida
inteira que tem de girar em função do ato produtivo: são as mulheres e homens que se
tornam uma espécie de fundamento anexado pelo trabalho abstrato proletário (o
reprodutor por definição). A base subsumida pelo Capital, que o filósofo transfigura
antropologicamente como algo comandado pelos “carecimentos materiais”: “Tão-
somente o carecimento material, enquanto motor do processo de reprodução individual
ou social, põe efetivamente em movimento o complexo do trabalho; e todas as
mediações existem ontologicamente apenas em função da sua satisfação” (Lukács, “As
bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem”).
Se o trabalho, no capitalismo, não é uma simples coisa nem um processo somente
material (parte de uma força produtiva social junto às máquinas etc.), mas uma relação
social fundante, é porque ele foi tornado um processo de valorização de capital –
mediado por uma relação de produção (forma-valor) que o converte no que ele nunca
havia sido: numa mediação histórico-social fundamental (Cf. Moishe Postone). Pois nas
sociedades pré-modernas ele nunca ganhou esse estatuto central de mediador objetivo:
se a relação social de produção não era o valor e muito menos o capital, a produção era
diretamente comunal ou social, por isso ele não tinha a supremacia sobre a sociedade e
os vários momentos da vida. Tais sociedades obviamente produziam (digamos:
“trabalhavam”), mas não podiam ser definidas como sociedades do trabalho ou de
trabalhadores em abstrato – ao contrário, eram amiúde sociedades de recusa do
trabalho, sociedades de relativa abundância do tempo e do espaço qualitativos,
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sociedades do ócio, da festa, da pólis, da guerra, do mito e da religião etc., que os


punham relativamente para além de necessidades puramente materiais, o que lhes dava
uma particularidade histórico-geográfica impensável no capitalismo. A OSS realmente
tende a tornar a história impensável. Aqui poderíamos dizer que a produção era só uma
pressuposição do todo, um substrato ou uma condição material – e não uma força
determinante ou predominante em “primeira” ou em “última instância”.

Dos Flintstones aos Jetsons: a criptomodernidade do trabalho


O que Lukács faz, portanto, é projetar (quase de forma imperceptível) a lógica
moderna do trabalho abstrato como um atributo do trabalho ou da produção social em
geral. E por isso Marx se limita às determinações mínimas do metabolismo homem-
natureza, nos capítulos I e V de O capital, sem elevá-lo a fundamento real – só por isso
também nunca precisou escrever um livro geral de ontologia ou um capítulo genérico
sobre o Trabalho, mas antes um livro histórico-crítico sobre o Capital. O modelo de
trabalho criptomoderno da OSS, porque já abstraído das relações sociais efetivas
(separado das relações “extra-econômicas” que o impediriam de ser momento
prevalecente em geral), se torna, violentamente, o pressuposto de toda e qualquer
produção. Um passo adiante na exposição e o trabalho abstrato é projetado na práxis
social de toda formação histórica e assim eternizado. Assim, não há práxis histórico-
social efetiva que não seja (dá-lhe Engels de novo) desde sempre e para sempre
regulada pela lei do valor. Dos Flintstones aos Jetsons, mutatis mutandis, os homens
são trabalhadores: têm sempre de bater o cartão (“sob pena de ruína”) pois são sempre
regulados pelo tempo abstrato da produção universalíssima do valor (“não sabem, mas o
fazem”, daí que tais frases marxianas se tornam lemas ontológicos para a OSS e a sua
Estética). Mesmo na sociedade emancipada haverá um reino da necessidade regulado
pela eterna lei do valor.
Para nossa sorte, este ponto já foi criticado pelo seleto discípulo István Mészáros
(em Para além do capital), ainda que sem tirar todas as consequências que permitiriam
refutar a OSS desde a base e questionar alguns dos pressupostos centrais de sua própria
lógica de “emancipação do trabalho”, que continua a pôr o trabalho como centralidade
trans-histórica do social (apesar de Mészáros conhecer muito melhor Marx do que
Lukács e boa parte do marxismo tradicional). Segundo Lukács, assim, na etapa superior
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do socialismo,
“desaparece a estrutura da troca de mercadorias, deixa de operar a lei do valor
para os indivíduos enquanto consumidores. Todavia, é evidente que resta em
vigor na própria produção, inclusive no crescimento das forças produtivas, o
tempo de trabalho socialmente necessário e, por conseguinte, segue operando
a lei do valor enquanto reguladora da produção” (OSS).

Eis o fim de linha dessa Ontologia. Ou seja, os supostos comunistas, os


“indivíduos livremente associados”, têm agora acesso ao consumo necessário, mas
continuam a se relacionar através das coisas, por meio da divisão do trabalho e da
comparação objetiva de seus produtos privados, pois só estes exprimem sua vontade e a
sua socialização, como eternos trabalhadores que são. Em suma, se a lei do valor é
simplesmente “imanente ao trabalho” em geral (como diz ainda Lukács), ela deve
continuar “ontologicamente” a impor-se “por trás de suas costas” (Marx). O comunismo
não suprime o fetiche das leis econômicas, apenas distribui melhor os seus bens e
formas de atividade, por meio do Planejamento central, embora tenda a reduzir o tempo
de trabalho socialmente necessário e pôr o tempo livre. Nesse sentido bastante preciso,
o humanismo de Lukács faz uma crítica tênue e muito velada à religião soviética do
trabalho e do produtivismo. E é claro, ainda, que nossa crítica só pode ser histórica e
imanente, pois Lukács viveu numa época em que os avanços técnico-científicos da 3ª
Revolução Industrial apenas germinavam.
Contudo, o modo de produção existente (principalmente no socialismo) tende a
aparecer já como uma forma ontológica aperfeiçoada do ser social. Lukács cria assim
uma miséria filosófica que legitima e ontologiza – eterniza – a miséria social e seu
fundamento antagônico. Que, é claro, reproduz-se na miséria da atualidade: a miséria
que se tornou o trabalho como fonte da riqueza social quando comparado às
possibilidades do trabalho morto objetivado –, concretizado pela ciência e a técnica
atuais – estas sim, a base fundamental da riqueza material, potencialmente convertível
em tempo livre disponível para todos. Com o que o conhecimento e o tempo livre (e não
o trabalho) é que se tornam realmente (ou melhor, potencialmente) a verdadeira
riqueza e o seu verdadeiro fundamento. Ou seja, a base da nova forma de mediação do
metabolismo da sociedade emancipada do fundamento supostamente ontológico do
trabalho, do valor e do capital. Interessante notar como Marx sempre separou
conceitualmente o processo de produção material como algo mais geral e mais amplo do
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que um processo de trabalho material. Assim, quando diz sobre a tendência cega do
capital: “o desenvolvimento da força produtiva só lhe é importante à medida que
aumenta o tempo de mais-trabalho da classe trabalhadora e não à medida que diminui
o tempo de trabalho para a produção material de modo geral; assim move-se pelo
antagonismo” (O capital, Livro 3). Por isso, a revolução da base produtora do capital é o
pressuposto para explodir a lei do valor e fazê-lo “voar pelos ares”. Sendo assim,
poderíamos voltar ao capítulo VI e redefinir os seus termos como historicamente
determinados, já que o trabalho superou o próprio trabalho:
“O desenvolvimento das forças do trabalho, que o capital incita continuamente
em sua ilimitada mania de enriquecimento (...) avançou a tal ponto que a posse e
a conservação da riqueza universal, por um lado, e, por outro lado, a sociedade
que trabalha se comporta cientificamente com o processo de sua reprodução
progressiva, com sua reprodução em uma abundância constantemente maior; que
deixou de existir, por conseguinte, o trabalho no qual o ser humano faz o que
pode deixar as coisas fazerem por ele (...) o trabalho não aparece mais como
trabalho, mas como desenvolvimento pleno da própria atividade” (Marx,
Grundrisse).

Aqui sim, no fim da “pré-história humana”, entram os termos que Lukács inverte
e põe no começo de sua ontologia: homem e indivíduos, atividade própria, força
produtiva e riqueza social universal, necessidades humanas etc., logicamente
pressupondo o fim da mania infinita de trabalho e enriquecimento do Capital. Esta
esfera da produção não apareceria mais também, como insiste o húngaro, como um
reino da necessidade fechado em suas leis autônomas. Os campeões da objetividade
esquecem o que pode haver de subjetivo e imaginário na organização da produção
social.

Penso, logo trabalho: a certeza hiperbólica e o megadiscurso do método


Ao contrário do que pregam os marxistas universitários hegemônicos, é no
mínimo de se desconfiar se a OSS não se torna mais um “discurso do método”
hiperbólico para uso do mestre e dos discípulos que, em vez de desdobrar e atualizar a
crítica da economia política de Marx, pensando as contradições imanentes atuais da
valorização, a historicidade e a negatividade de todas as categorias modernas do
sistema, termina por naturalizar e fetichizar tais categorias como princípios ontológicos
positivos e eternos. Curiosamente, quando se deveria voltar a pensar a história efetiva,
retorna-se à eterna discussão do método e das formas de conhecimento em abstrato (o
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tal desvio lógico-gnoseológico criticado nos outros). De fato, Lukács não quer discutir
efetividades, mas “princípios” e “modelos originários” para construir um sistema de
verdades dogmáticas. Isso desde a sua Estética. A clareza cartesiana do ideal científico
clássico obscurece necessariamente os fundamentos históricos, pois pretende sempre
pensar o particular sob a anterioridade de leis gerais fundantes e apreender o
movimento como predicado de um sujeito posto (Cf. R. Fausto, Marx, lógica e política,
t. 1).

O terror mítico da história e a mania da fundação positiva


Porém, uma questão radical anterior a tudo isso é: por que o marxismo tem essa
mania de erigir uma filosofia e uma fundação positiva? Depois dos esboços não-
publicados e abandonados dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, d’A
Ideologia Alemã e da “Introdução” aos Grundrisse (1857), Marx não percebe
criticamente que o campo da “fundamentação positiva” é o campo da ideologia (não na
versão desarmada desse conceito, que lhe dá Lukács), tendo-se antes de passar à crítica
imanente direta das formações econômico-sociais? Dessa maneira não se torna o
marxismo uma “visão de mundo” e uma doutrina invariante, enfim, mais uma “teoria
tradicional” – pomposamente chamada “materialista histórica e dialética” –, porém
semelhante às ideologias burguesas, para as quais “houve história até aqui, mas agora
não há mais”?

Trabalho decrépito
O que há de decrépito e de intempestivo no último Lukács é justamente isto:
quando o mundo burguês como um todo já dava sinais claros do colapso de seus
fundamentos – a lista é grande: automatização e esgotamento previsível da da lógica da
acumulação, crise fiscal do Estado, crise da ideologia do trabalho e do movimento
operário tradicional, crítica do iluminismo e do antropocentrismo, criação de novos
valores éticos e estéticos para além do trabalho (das mulheres, dos estudantes à
libertação sexual, do tempo livre à ecologia), crise do sistema soviético (Tchecoslováquia
e Hungria, p. ex.), limites ecológicos de todo desvario produtivista do Ocidente e do
Oriente, surgimento de uma arte radicalmente crítica e negativa, ligação entre
psicanálise, crítica radical e novos movimentos sociais etc. – pois bem, na contramão
181
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

disso tudo, Lukács regride àqueles “fundamentos” burgueses tradicionais para re-
consolidá-los, a começar pela lógica obsoleta da socialização pelo valor-trabalho, dando-
lhe a aura de essência humana trans-histórica. Feitas as contas, porém, tudo isso vem
num trajeto coerente com seu percurso histórico, de tolerância e de crítica meramente
ética ao stalinismo, que operava como uma defesa humanista da modernização
socialista retardatária.
Em vez de encaminhar uma crítica das estruturas econômico-sociais, políticas e
ideológico-culturais efetivas do Estado e do Capital avançados em crise (como fizeram,
entre outros, Adorno, Benjamin, Marcuse, Lefebvre, Debord, Braverman, Mandel, Gorz,
Altvater, Kurz, Harvey, Schwarz, Arantes, Žižek, Mészáros), ou de reconstituir sua
história (Dobb, Arrighi, Sohn-Rethel, Kurz, entre outros) ou ainda, de retomar
rigorosamente a lógica da apresentação dialética de O capital (Rosdolsky, Backhaus,
Reichelt, Ruy Fausto, Giannotti, Postone, Grespan, entre outros), o velho Lukács
retorna aos fundamentos reconhecidamente abstratos e artificiosos de uma suposta
lógica ontológica da práxis humana – sempre, sempre em geral. Nesse sentido, sua obra
é um complemento de Habermas, com a sua lógica da interação e da ação comunicativa
em geral, rodando em falso também no plano puramente ético, sem a crítica radical do
valor e da cisão de gêneros (como proposta por Adorno e Kurz).

O novo programa de Gotha, a confusão entre pressuposição e fundamento


Para precisar um pouco mais, ainda, o equívoco fatal é então este: a operação
maior dessa ontologização forçada é (como Marx já advertia na Introdução aos
Grundrisse) o contrabando de determinações históricas da essência social capitalista
para a essência humana em geral – e vice-versa. O erro que consiste em abstrair
categorias “simples” e “razoáveis” para delas derivar fundamentações “históricas” a
priori. Em linguagem técnica, Lukács confunde pressuposto e fundamento, ou seja: o
que é pressuposto material geral e abstrato das formações sociais torna-se ser-posto
desde o início e fundamento histórico essencial do capitalismo, que na verdade só pode
ser o próprio Capital como sujeito automático e predominante (“automatisches” /
“übergreifendes Subjekt”, diz n’O capital). Além disso, tomando o trecho do Cap. VI de
O Capital como fundamento ontológico (e não como um pressuposto abstrato e
historicamente variável e redefinível com a entrada maciça da ciência e da técnica na
182
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produção da riqueza material) transforma a produção em geral, fundada numa relação


técnica racional com a natureza, num processo do trabalho vivo em massa, incluindo
este tempo social como o principal fator da riqueza social. A metafísica do trabalho,
como o “único produtor de riqueza”, antevista por Marx na Crítica ao Programa de
Gotha, dá o seu último suspiro.

A miséria da ontologia: a metafísica terrorista do trabalho e da consciência


reificada
Desse ponto de vista, esta Ontologia é uma anti-“ontologia”, já que não tem
poder explicativo do funcionamento das categorias reais, tornando-se uma metafísica
antropológica do trabalho e da consciência. Os termos são eloquentes: o trabalho como
“protoforma” e “modelo originário” da práxis e da liberdade. Que o diga o proletariado
soviético como “representante” da generidade humana. Daí o mais bizarro percurso da
OSS: deduzir e extrair os valores ético-morais marxistas da forma do valor econômico.
Como ontologia negativa, é certo, o empreendimento teria futuro (mais ou menos, o que
fez a Minima Moralia adorniana), se o valor de troca é a protoforma da regressão e do
terror, que ameaça sempre novamente transformar o potencial homem em macaco. A
liberdade que se confunde com a dominação da natureza é um fenômeno contraditório,
também uma falsidade ideológica, pois na “natureza dominada”, como meros objetos
proletarizados, os homens estão incluídos e são silenciados. Há e não há liberdade, tal
como há e não há homens – estes são potencialidades em devir. Nesse sentido, o gênero
humano continua em grande parte mudo ou pelo menos silencioso, só audível em
negativo, como tensão e resíduo do sistema: na dissonância de Schoenberg, nos rumores
e na corporalidade de Beckett, nos gestos tensos e enigmáticos das personagens de
Kafka, nos gestos abstratos e sofridos da pintura de Pollock – mimetizando e se
contrapondo criticamente à linguagem burocrática, universal e impessoal da consciência
coisificada. Racionalidade instrumental elevada à última potência, que pretende reduzir
todo o social a si, como se o ato de projetar fins racionais na natureza explicasse toda a
subjetividade e toda espécie de relação social. O não-idêntico resiste.

Consequências da miséria ontológica para o presente


Pode-se dizer que a OSS é um velho cachorro morto? Mas como Hegel, é um
183
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cachorro morto que fala muito e nos diz respeito no nível político e ideológico, onde se
travam alguns confrontos decisivos. Esta enorme gramática dos equívocos pode ter
efeitos curativos ou deletérios para o presente – dependendo do processo de recepção,
que não está concluso e pode embasar amplos setores da esquerda brasileira e europeia
atual. Elevado a momento prevalecente, prioritário, central, essencial, fundante,
determinante, em primeira ou última instância – os termos variam e se confirmam
circularmente – o trabalho passa a reivindicar o papel ontológico que só o Capital de
fato tem na modernidade como um fetiche que nos coage ao trabalho – “produtivo” e
“necessário” somente do ponto de vista dele – mas que, autodestruindo esta sua própria
base “ontológica” negativa, tem de deixar de ser e de valer, fazendo desmoronar todas as
categorias do pensamento e da prática modernas que pareciam “objetivas”,
“ontológicas” ou “eternas”.
Na crise do trabalho abstrato, quando o marxismo tradicional o admite, o
trabalho “concreto” passa a ser cultuado como centro da vida e da sociabilidade e não é
mais criticado, nem mesmo quando se revela que ele nada mais é que a face visível,
material, qualitativa e destrutiva do trabalho abstrato e alienado, e que vai sendo
excluído pelo mecanismo estrutural inconsciente, que tende inevitavelmente a
desvalorizá-lo. O trabalho vivo (diferente do conceito negativo de proletariado, como
sujeito sem objeto – por isso mesmo, absurdo) é então contraposto abstratamente ao
mercado, à circulação, às classes “parasitas”, ao capital financeiro e especulativo
“judaico”, a tudo o que não gera valor e riqueza material, inclusive às mulheres, aos
negros, aos imigrantes, aos ciganos, aos pobres, vagabundos e criminosos em geral, tal
como se evidencia cada vez mais nas tendências fascistas no capitalismo mundial em
crise. Com isso, é o humanismo do trabalho que revela a sua verdadeira face
particularista e corporativista, reformista e anti-humana, e que um dia pôde se conciliar
com o totalitarismo stalinista.
As mediações de uma possível contraposição do proletariado ao capital são ainda
exíguas ou inexistentes. A tendência a vê-lo nos moldes da velha classe operária
produtiva tem seus efeitos na ideologia da ontologia e da honra do trabalho, no pós-
operaísmo italiano, na valorização repentina do trabalhador técnico-científico de classe
média ou do trabalhador de massa da semiperiferia capitalista. A OSS não desconhece o
recuo das barreiras naturais por meio da automação e da diminuição do trabalho
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socialmente necessário. Mas, na base, perpetua o erro comum do marxismo tradicional


de confundir o trabalho imediato qualquer, assalariado ou não, sempre capaz de ser
flexibilizado e estendido em massa, como o principal fator determinante do valor e,
ainda pior, da riqueza material, sem ver a contradição posta pelas atuais forças
produtivas para a lei do valor, mesmo com os sinais maciços da automação, do
desemprego estrutural, da desvalorização, informalização e precarização do trabalho,
em grande parte já totalmente improdutivo (ou só produtivo num nível selvagem),
enfim, do descolamento radical do dinheiro especulativo da produção e do
endividamento sistêmico – isso sem falar da crise ambiental global, que parece impedir
por si só todo desvario produtivista que tente recolocar o trabalho como centro da
socialização, critério universal de participação social e principal uso do tempo social. O
erro oposto, no entanto, é a metafísica das forças produtivas técnico-científicas, que
pode produzir o grosso da riqueza material e a maior parte do valor excedente (como
mais-valia relativa), sem explodir de imediato as bases do capital, pois que esta é ainda a
sua propriedade, gerando mercadorias que simulam preços, cobrando renda de acesso e
a canibalização do tecido social, pelo menos enquanto as bolsas e os circuitos de
endividamento não quebram.
Assim, ainda, ambos os lados identificam as forças produtivas como o sujeito
pleno da história – o que faz o capitalismo de repente ganhar uma “face humana” um
tanto inusitada, cheia de valores de uso e potencialidades na vida cotidiana, ou
possibilidades de “decisão” e “alternativas” dentro das coordenadas da sociedade do
trabalho e do valor, contrapostas como que de fora ao Capital e ao Estado. Segundo os
equívocos derivados da filosofia humanista, fundacionista e instrumental-funcionalista
(pois tudo é função de uma base econômica fixa, mesmo em Negri), portanto, o
capitalismo surge como um imenso conjunto de alternativas de “posição teleológica”
(quer dizer, de produção de mercadorias), conforme a arqui-ideologia da livre iniciativa
do sujeito burguês. No contexto da concorrência monopolista e da crise estrutural
apontada, nem isso mais é verdade. Certamente, Lukács pensava numa política de
alternativas socialistas no âmbito da Cultura e do Estado – mas congelando seus
pressupostos materiais, sendo o socialismo real o seu referente. A lógica do trabalho
moderno, que ele supõe miraculosamente como um processo mediador concreto da
formação, restringe a priori alternativas radicais a ela, e no final só reproduz a
185
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reificação da classe-que-sobrevive-do-trabalho (e do não-trabalho). O interesse do


trabalho tornou-se um interesse particular, uma ideologia que eterniza a produção
capitalista para salvaguardar os direitos “justos” da venda e da reprodução da sua força
de trabalho. Que alternativas “produtivas” serão estas face à crise geral do Estado e do
capital monopolista, no momento do colapso da valorização do valor-trabalho? Para o
proletariado em devir, como (anti-)classe da (anti-)miséria, a única alternativa
verdadeira e universal seria a de abolir esse jogo de alternativas miseráveis.
(2000-2012)

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O Dinheiro do Espírito
e o Deus das Mercadorias
A abstracção real segundo Sohn-Rethel

Nuno Miguel Cardoso Machado1

“It is as if alongside and external to lions, tigers, rabbits,


and all other actual animals (…) there existed also in
addition the animal, the individual incarnation of the
entire animal kingdom.”
Karl Marx

1 – Introdução
Alfred Sohn-Rethel (1899-1990) é porventura um dos nomes mais negligenciados
no contexto do chamado “marxismo ocidental”. Autor fortemente influenciado pela
Teoria Crítica da Escola de Frankfurt – entrou em contacto directo com Benjamin,
Adorno, Horkheimer e Bloch, nos anos 20 e 30 –, permaneceu sempre à margem do
mundo académico e teve de lutar ao longo de toda sua vida contra enormes dificuldades
económicas.
Nunca desistiu, contudo, de defender a sua tese principal: “O trabalho intelectual da
minha vida (…) serviu para esclarecer (…) uma visão meio intuitiva que me coube
elaborar em 1921 [ainda enquanto estudante universitário] (…): o descobrimento do
sujeito transcendental [Kantiano] na forma mercadoria”. 2 Esta proposição acerca da
“identidade secreta” que se estabelece entre a abstracção real presente na troca de

1 Licenciado em Economia (Instituto Superior de Economia e Gestão – Universidade Técnica de Lisboa) e


Mestre em Sociologia Económica e das Organizações (ISEG-UTL). Bolseiro de Investigação no SOCIUS
– Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações. Endereço de e-mail:
nuno.cocas.machado@gmail.com
2 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal – Para a Epistemologia da História Ocidental.

João Pessoa: UFPB, Mestrado em Economia, 1995c [1989], p. 1. Disponível em:


<http://nunomiguelmachado.files.wordpress.com/2012/01/sohn-rethel-1.pdf>. Acesso em:
07/jan/2012.
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mercadorias e a abstracção conceptual da forma do pensamento3 valer-lhe-ia desde cedo


uma enorme desconfiança, e inclusive o epíteto de “doido” (!) por parte de Alfred
Weber, o seu orientador de tese no doutoramento.4
É forçado a emigrar para Inglaterra, em 1937, na sequência do avanço Nazi, e aí
trava conhecimento com George Thomson, a única pessoa que também havia
identificado a ligação entre a filosofia e o dinheiro, nos seus estudos sobre a Grécia
antiga.5 Todavia, apenas após o seu regresso à Alemanha atingirá finalmente a
notoriedade, com a publicação da sua magnum opus: Trabalho espiritual e corporal,6
em 1970. Ainda foi a tempo de conseguir uma breve carreira na Universidade de
Bremen, entre 1972 e 1976.
Como nota Jappe, “Sohn-Rethel é um dos raros marxistas” que nos pode ajudar “a
compreender o século XXI”, uma vez que recupera o “núcleo mais valioso e profundo”
da teoria de Marx: “a análise da lógica do valor e da mercadoria” 7. Com efeito, foi capaz
de discernir que a característica distintiva do capitalismo é a “abstracção” que impõe à
vida social. Mediante o conceito de «abstracção real», “Sohn-Rethel deu uma
contribuição bastante importante para a elaboração da crítica do fetichismo da
mercadoria”,8 assumindo-se como um dos precursores da denominada “Nova Crítica do
Valor”.9
A tese principal de Sohn-Rethel é que existe não apenas uma analogia mas uma
“verdadeira identidade” entre os elementos formais da síntese social – “a rede de
relações mediante a qual a sociedade forma um todo coerente” 10 – e os elementos
formais do pensamento. “A base conceptual do conhecimento (cognition) é lógica e
historicamente condicionada pela formação básica da síntese social da sua época”. 11
Assim, “as categorias são históricas na sua origem e sociais por natureza”. 12 Por outras

3 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour – A Critique of Epistemology. London: The
Macmillan Press Ltd, 1978 [1970], p. xiii.
4 Idem, Ibidem, p. xiii.
5 Idem, Ibidem, p. xiv.
6 Cf. SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit.
7 JAPPE, Anselm. “Pourquoi lire Sohn-Rethel aujourd’hui?” In : SOHN-RETHEL, Alfred, La pensée-

marchandise. Broissieux: Éditions du Croquant, 2010, pp. 7-8.


8 Idem, Ibidem, p. 8.
9 Cf. JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria – Para uma nova crítica do valor. Lisboa : Antígona,

2006, pp. 209-210.


10 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 4.
11 Idem, Ibidem, p. 7.
12 Idem, Ibidem, p. 7.

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palavras, “as formas de pensamento socialmente necessárias de uma época são aquelas
em conformidade com as funções socialmente sintéticas dessa época”.13
Ora, no âmbito da produção mercantil, é a troca (de mercadorias) que possui uma
função socialmente sintética em virtude da abstracção que origina, centrada nas funções
do dinheiro enquanto “equivalente universal”. Os elementos formais que constituem a
abstracção da troca assemelham-se inequivocamente aos elementos conceptuais da
faculdade cognitiva emergente com o crescimento da produção mercantil. De acordo
com o autor, enquanto elementos conceptuais, estas formas constituem princípios de
pensamento básicos tanto da filosofia Grega, como da ciência natural moderna, e estão
na base da separação entre trabalho intelectual e manual.14
Em suma, nas sociedades mercantis, a síntese social é realizada pelas próprias
categorias de tal modo que a faculdade cognitiva que engendram é uma capacidade
social a priori da mente. Assim, Kant estava certo ao afirmar que

os elementos constituintes da nossa forma de pensamento (cognition) são realizados e derivam de


uma origem a priori, mas estava errado ao atribuir esta pré-formação [do pensamento] à própria
mente envolvida num acto fantasmagórico de «síntese transcendental a priori», não localizável no
tempo nem no espaço.15

Não obstante, há que realçar que a teoria de Sohn-Rethel se revela problemática em


vários aspectos porque desloca a origem da abstracção real para a esfera da circulação, 16
dado que, na sua perspectiva, “a produção (…) é um metabolismo não social e supra-
histórico com a natureza”.17 Pelo contrário, apenas nas sociedades capitalistas é que o
“trabalho” constitui o vínculo social; nas sociedades do passado, a actividade produtiva
era “objecto de decisões conscientes tomadas nas outras esferas da vida”,18 não
constituindo uma esfera separada e autonomizada. Para além disto, se em Marx é o
“trabalho abstracto” que confere aos produtos a sua “objectividade de valor”, i.e.,
constitui a “substância do valor”, para Sohn-Rethel é a troca que é responsável pelo
valor das mercadorias.19

13 Idem, Ibidem, p. 5.
14 Idem, Ibidem, pp. 6-7.
15 Idem, Ibidem, p. 7.
16 JAPPE, Anselm. “Pourquoi lire Sohn-Rethel aujourd’hui?”, op. cit., p. 25.
17 Idem, Ibidem, p. 26.
18 Idem, Ibidem, p. 29.
19 Idem, Ibidem, p. 29.

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Daqui decorre a principal diferença, como veremos, entre a teoria Sohn-Retheliana


da “abstracção real ” e aquela da Nova Crítica do Valor. Em suma, Sohn-Rethel não
consegue ver que

a abstracção no acto da troca mais não faz do que dar cumprimento à abstracção criada na
produção, na qual o trabalho é concreto enquanto processo material, mas não para os produtores
enquanto seres sociais. Foi o modo de produção capitalista que fez da circulação uma forma total, e
não o inverso.20

Neste artigo, começamos por analisar, no ponto 2, a relação entre abstracção real e
abstracção conceptual na óptica de Sohn-Rethel, explicitando os elementos formais da
troca e a sua relação com as bases do pensamento abstracto. No ponto 3, abordamos a
relação histórica entre as formas de síntese social e as diferentes formas de pensamento
que originam. No ponto 4, damos uma atenção especial ao capitalismo e à sua ligação
com a ciência moderna. Finalmente, no ponto 5, procedemos a uma análise crítica da
obra Sohn-Retheliana à luz da Nova Crítica do valor.

2 – Abstracção Real e Abstracção Conceptual


2.1 – A crítica da epistemologia como complemento da crítica da economia política
A obra Sohn-Retheliana procura responder a uma das grandes questões
epistemológicas, nomeadamente: “qual é a origem das formas de consciência, dessas
«grelhas» [grilles] que permitem a cada indivíduo organizar os dados múltiplos que lhe
fornece a percepção sensível […]?”.21 Até hoje, foram dadas duas respostas
fundamentais a esta interrogação:

ou bem que essas categorias são elas mesmas de origem empírica, o resultado da constância da
experiência, mas sem validade absoluta, e sem a possibilidade de deduzir delas julgamentos a
priori (…). É a resposta empirista, de David Hume até Paul Feyerabend. Ou então pressupõe-se
uma estrutura ontológica, praticamente inata ao homem, que em todos os tempos e em todos os
lugares organiza da mesma maneira a priori um material que é incognoscível (inconnosaible)
enquanto tal. É, naturalmente, a solução proposta por Kant.22

De um modo original, Sohn-Rethel avança com uma terceira hipótese: “a origem das
formas de consciência (e do conhecimento) não é nem empírica nem ontológica, mas

20 Idem, Ibidem, p. 27, itálico nosso.


21 JAPPE, Anselm. “Pourquoi lire Sohn-Rethel aujourd’hui?”, op. cit., p. 8.
22 Idem, Ibidem, p. 9.

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histórica.”.23 As formas do pensamento derivam da acção humana; todavia, não da


acção enquanto tal, “como categoria ela mesma filosófica e abstracta, mas da acção
histórica e concreta do homem” 24 enquanto ser social. Isto coaduna-se com a tese
Marxiana de que é a realidade social que determina a consciência humana, e não o
inverso. Por outras palavras, as formas de consciência são a “expressão das relações
sociais dos homens numa dada época”, sendo nesse contexto específico que adquirem
uma “validade objectiva”.25
As categorias Marxianas expressam simultaneamente relações sociais particulares e
formas de pensamento.26 Assim, segundo Sohn-Rethel, a análise da forma mercadoria,
que constitui a pedra angular da crítica da economia política empreendida por Marx,
pode servir igualmente de ponto de partida para uma crítica da epistemologia
“burguesa”, em particular, a de Kant.
O problema do conhecimento deve ser relacionado com a teoria de Kant, mas,
obviamente, não como uma questão “a-histórica «do conhecimento como tal»” e sim
como um “fenómeno histórico específico [marcado] pela separação entre trabalho
espiritual e manual, que cresce (…) de maneira completamente desenvolvida pela
primeira vez entre os antigos clássicos e depois, por sua vez, sobretudo na época
moderna europeia”.27
Se nas teorias epistemológicas existentes o trabalho “espiritual” científico e
filosófico, i.e., a forma conceptual do pensamento, é caracterizado pela “a-
temporalidade” histórica do seu conteúdo e “aceita-se essa a-historicidade como um
fundamento dado”, Sohn-Rethel, por seu turno, propõe o estudo das “formas de
aparecimento do trabalho espiritual e de sua separação do trabalho manual, como
problema parcial histórico-materialista”, ou seja, a introdução do “problema do
conhecimento na formulação Kantiana (…) no terreno do materialismo histórico
induzido por Hegel”.28
O autor sustenta, portanto, a tese de uma “origem social da razão pura”, deduzindo

23 Idem, Ibidem, p. 9, itálico nosso.


24 Idem, Ibidem, p. 9, itálico nosso.
25 Idem, Ibidem, p. 9.
26 Cf. POSTONE, Moishe. Time, Labor and Social Domination – A Reinterpretation of Marx’s Critical

Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.


27 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal, op. cit., p. 6.
28 Idem, Ibidem, p. 7, itálico nosso.

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os conceitos puros da razão da “fisicalidade abstracta da acção de troca”. A abstracção é


uma realidade espácio-temporal, mas ocorre “por trás das costas” dos participantes. 29
Neste sentido, a “unidade transcendental da auto-consciência” Kantiana é a reflexão
intelectual de um dos elementos da abstracção da troca: a forma da permutabilidade das
mercadorias subjacente à unidade do dinheiro e da síntese social.
O dinheiro, ao providenciar o veículo (material) no qual se traduz a abstracção real,
ajuda a perceber a “uniformidade lógica da abstracção intelectual” presente em todos os
indivíduos numa sociedade mercantil: as categorias nucleares do seu pensamento
conceptual reproduzem os elementos formais da abstracção real .30
O “sujeito transcendental” pode portanto ser definido “como um conceito fetiche da
função capital do dinheiro”.31 Esta falsa consciência culmina no ego cogito de Descartes:
“a formação do pensamento, que em todos os aspectos merece a qualificação de
«social», apresenta-se diametralmente oposta à sociedade como o Ego”.32
A estrutura social da troca de mercadorias assenta sobre uma abstracção não
empírica do acto de troca e revela uma “igualdade formal com a abstracção dos
conceitos metodológicos básicos da ciência exacta da natureza”. Pode-se afirmar que “a
abstracção da troca não é pensamento, mas ela possui a forma do pensamento em
categorias puras da razão”.33
Podemos concluir que, ao contrário de Kant, Sohn-Rethel reconduz a abstracção
mental às condições estruturais que estão na base da socialização e não às
“fantasmagorias idealistas do Sujeito transcendental ou do Espírito”:34

O nascimento da razão pura ocorre (…) não no nem através do homem, nem passo a passo, com a
formação dos conceitos empíricos de nossa linguagem ordinária, mas sim em uma abstratividade
formada acabada e idêntica para todos os indivíduos (…). Através disso, a razão pura é uma

29 Idem, Ibidem, p. 14.


30 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 76.
31 Idem, Ibidem, p. 77. Jappe expressa uma ideia semelhante: “O tema do fetichismo existe de forma

latente no pensamento de Kant (…). O valor é uma forma a priori, em sentido kantiano, porque toda a
objectividade se manifesta através dele: é uma reticula de que o indivíduo não tem consciência, mas que
é preliminar a toda a percepção e lhe constitui os objectos. O apriori kantiano é uma ontologização e
individualização não histórica do valor que, na sociedade moderna, é o verdadeiro apriori, mas um
apriori social, não natural” (JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria, op. cit., p. 171). Assim, a
“análise das categorias da socialização enquanto formas preliminares a todas as outras questões conduz
a uma teoria da mediação social que poderia contribuir para ultrapassar as teorias objectivistas e
subjectivistas tradicionais” (Idem, Ibidem, p. 171).
32 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 77.
33 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal, op. cit., p. 37.
34 Idem, Ibidem, p. 38.

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potência desprendida da psicologia humana e produzida separadamente da subjectividade dos


homens. (…) A razão é um poder completamente coisificado do homem, ao qual a fisicalidade do
acto da troca se transmite na forma da conversão da abstracção real em abstracção do pensamento.
(…) Longe, portanto, de ser o ponto brilhante da autonomia espiritual dos homens, que o idealismo
nele avista, a capacidade de compreender dos homens civilizados pressupõe (…) a extensão da
profundidade e da opacidade da reificação.35

Seguindo o raciocínio de Sohn-Rethel,36 abordaremos nos pontos seguintes as três


ideias principais que norteiam a sua obra: a troca de mercadorias é a fonte original da
abstracção; esta abstracção (real) contém os elementos formais essenciais para a
faculdade cognitiva do pensamento conceptual; a abstracção real engendra a
“abstracção ideal” comum à filosofia Grega e à ciência moderna.

2.2 – Troca de mercadorias, abstracção real e síntese social


Sohn-Rethel diz-nos que os seus primeiros escritos, nomeadamente os dos anos 30,
devem ser encarados como um mero “estágio de autodesenredo; a medida para o
julgamento desses trabalhos não está neles mesmos, e sim no esclarecimento ao qual
eles final e definitivamente me levaram: o que está exposto em meu livro de 1970
[Trabalho Espiritual e Corporal]”.37
Não obstante, encontra-se já nos mesmos a tese fundamental que constitui o cerne
do pensamento Sohn-Retheliano, pelo menos em estado embrionário:

Não são talvez a unidade da autoconsciência e o sujeito do conhecimento, na realidade, desde a


origem só um reflexo intelectual inevitável da unidade do dinheiro, o pensamento discursivo uma
forma da consciência condicionada pela função do dinheiro para a sociedade mediada pelas
mercadorias, e o conhecimento racional do objeto só a reprodução ideal da maneira e modo, como
numa tal sociedade se realiza a produção de acordo com as leis da troca mercantil? Esta suposição
parece à primeira vista uma hipótese ousada, que leva a consequências muito graves. Queremos
mesmo assim colocá-la, pois cremos que ela se pode demonstrar. A hipótese a propósito chega a
dizer que as formas de consciência, que nós denominamos formas do conhecimento no sentido
racional, surgiram da reificação presente na troca mercantil.38

Com efeito, a versão primitiva da análise “fenomenológica ” da troca está presente


na sua “Liquidação Crítica do Apriorismo”.39 No entanto, há uma grande ênfase na

35 Idem, Ibidem, p. 39.


36 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 28.
37 SOHN-RETHEL, Alfred. “Exposição sobre a teoria da socialização funcional. Uma carta a Theodor W.

Adorno (1936)”. In: __. Trabalho Espiritual e Corporal, op. cit., p. 89, itálico nosso.
38 SOHN-RETHEL, Alfred. “Para a liquidação crítica do apriorismo. Uma pesquisa materialista (Março-

Abril 1937)”. In: __. Trabalho Espiritual e Corporal, op. cit., pp. 98-99, itálico nosso.
39 Cf. Idem, Ibidem, pp. 101-123.

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exploração como origem da reificação40 em detrimento da descrição dos elementos


formais da troca, como sucederá em Trabalho Espiritual e Corporal.41
Os desenvolvimentos e os resultados das suas pesquisas nas décadas subsequentes
serão conhecidos apenas sob a forma de pequenos ensaios. 42 É apenas em 1970, quando
finalmente consegue publicar a sua obra principal, que surgirá a primeira exposição
detalhada da sua teoria e um interesse alargado na mesma43. É portanto à análise da sua
magnum opus que dedicaremos as páginas seguintes.

2.2.1 – A abstracção da mercadoria (commodity abstraction)


Atentemos nas palavras de Sohn-Rethel:

A forma da mercadoria é abstracta e a abstracção domina toda a sua órbita. (…) Na forma do
dinheiro a riqueza torna-se abstracta e, enquanto possuidor dessa riqueza, o próprio homem torna-
se um homem abstracto, um possuidor de propriedade privada. (…) [Assim,] uma sociedade na
qual a troca de mercadorias forma o nexus rerum é um conjunto de relações puramente abstractas
onde tudo o que é concreto está em mãos privadas.44

Todavia, a essência da abstracção mercantil é o facto da mesma não ser induzida


pelo pensamento, isto é, não possuir a sua origem nas mentes dos homens mas nas suas
acções: “trata-se de uma abstracção no sentido real, literal”. 45 O conceito económico de
valor resultante da mesma é caracterizado por uma completa ausência de qualidade, por
uma diferenciação puramente quantitativa e aplicável a qualquer tipo de mercadoria.
Como veremos mais à frente, esta característica da abstracção “valor” revela uma
semelhança incrível com as categorias fundamentais da ciência natural quantitativa:

enquanto os conceitos da ciência natural são abstracções do pensamento, o conceito económico de


valor é real. Não existe em nenhum outro sítio para além da mente humana mas não deriva dela. Ao

40 “A reificação se pode constatar na troca mercantil e em suas formas, mas é impossível explicá-la a partir
dela. Sua origem e fonte encontram-se na exploração” (Idem, Ibidem, p. 104). Ou mais à frente: “A
síntese constitutiva, à qual todo o conhecimento teorético logicamente como geneticamente remonta, é a
reificação e a socialização material que se opera pela exploração.” (Idem, Ibidem, p. 118).
41 Cf. SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., pp. 35-57.
42 Cf., por exemplo, SOHN-RETHEL, Alfred. “Historical Materialist Theory of Knowledge”, Marxism

Today, 1965. Disponível em: <http://nunomiguelmachado.files.wordpress.com/2012/01/sohn-rethel-


2.pdf>. Acesso em: 07/jan/2012.
43 A que se seguiriam várias outras obras, infelizmente, na sua maioria, não traduzidas do alemão (cf.

REINFELDER, Monika & SLATER, Phil. “Intellectual and Manual Labour: An Introduction to Alfred
Sohn-Rethel”. Capital & Class, 6, 1978, pp. 137-139.)
44 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 19.
45 Idem, Ibidem, p. 20.

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invés, tem um carácter puramente social, resultando da esfera espácio-temporal das inter-relações
humanas.46

Na sua análise, Marx faz da distinção entre “valor de uso” e “valor de troca” o
principal aspecto da mercadoria. Sohn-Rethel, por sua vez, traça esta distinção em
termos das actividades humanas a que corresponde: “acções de uso” e “acções de
troca”.47 O uso e a troca são mutuamente exclusivos no tempo. O uso corresponde aos
processos materiais mediante os quais os homens asseguram a sua sobrevivência, aquilo
que Marx designa por intercâmbio ou “metabolismo com a natureza.” Esta prática
material é suspensa durante o acto da troca, que não tem nada de natural: é algo
puramente social em termos de constituição e âmbito. Embora a troca implique a
negação da realidade corpórea do uso e do valor de uso, ela mesma traduz-se, ainda
assim, numa “realidade física”: o movimento das mercadorias no tempo e no espaço de
um proprietário para o outro.48 A síntese social capitalista é realizada pela troca e não
pelo uso.49
A característica marcante do acto da troca é que a sua separação em relação ao uso
assume a necessidade cega de uma “lei social objectiva”. Mas a abstracção
(abstractness) da troca não se aplica à consciência das pessoas que trocam: a
consciência dos agentes está ocupada com o uso potencial (e “concreto”) das coisas que
são trocadas, pelo que é o acto da troca que efectua “inconscientemente” a abstracção. O
acto da troca, e apenas o acto, é abstracto, pelo que a consciência e a acção das pessoas
envolvidas na troca se separam.50
À medida que a produção mercantil se desenvolve, a imaginação do homem torna-se
cada vez mais separada das suas acções e individualizada, assumindo a dimensão de
uma consciência privada, o que torna impossível a transmissão “directa” das formas da
troca – abstracção real – à consciência humana. Assim, a abstracção da troca entra
apenas nas suas consciências após o acto da troca, “quando são confrontados com o
resultado completo da circulação das mercadorias”: o dinheiro, “mediante o qual a
abstracção assume uma existência separada”.51

46 Idem, Ibidem, p. 20.


47 Idem, Ibidem, p. 23.
48 Idem, Ibidem, p. 27.
49 Idem, Ibidem, p. 29.
50 Idem, Ibidem, p. 26.
51 Idem, Ibidem, p. 27.

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Em suma, a abstracção do valor ou da mercadoria deve ser vista como uma


“abstracção real” derivada da actividade social humana e, por sua vez, esta “abstracção
contida na troca (…) determina o modo conceptual de pensamento peculiar às
sociedades baseadas na produção de mercadorias”.52 Não obstante, as pessoas tomam
consciência da abstracção da mercadoria “apenas quando encaram o resultado que as
suas próprias acções engendraram por trás das suas costas”: 53 o dinheiro.

2.2.2 – Os elementos formais da troca


Sohn-Rethel enumera um conjunto de elementos formais inerentes à troca de
mercadorias: (i) solipsismo prático; (ii) a forma de permutabilidade das mercadorias;
(iii) quantidade, (iv) espaço e tempo abstractos; (v) substância e acidência. Como
veremos mais à frente, todas estas características formais possuem uma
correspondência quase perfeita com os elementos conceptuais do pensamento. Mas
descrevamo-los então um pouco mais em detalhe.
Em primeiro lugar, na base da produção de mercadorias, existe um estado de
“independência recíproca.”.54 A troca de mercadorias impele o solipsismo entre os
envolvidos, i.e., não está dependente daquilo que comunicam uns com os outros. “A
doutrina de que entre todas as pessoas, e para cada uma delas, solus ipse (apenas eu)
existo é apenas uma formulação filosófica dos princípios que regulam a troca na
prática”.55
Assim, a forma da inter-relação das trocas de mercadorias molda os mecanismos
psicológicos dos indivíduos cujas vidas domina, “mecanismos que eles concebem como
a natureza humana, inata. (…) Eles consideram que agiram no seu próprio interesse
embora, de facto, apenas tenham obedecido às leis do nexo da troca. O solipsismo
prático da troca entre possuidores de mercadorias não é mais do que a prática da
propriedade privada enquanto base das relações sociais”.56 O acto de troca é social, a
mente dos envolvidos é privada: o resultado é uma mudança no estatuto das
mercadorias enquanto propriedade privada.57

52 Idem, Ibidem, pp. 22-23.


53 Idem, Ibidem, p. 33.
54 Idem, Ibidem, p. 40.
55 Idem, Ibidem, p. 42.
56 Idem, Ibidem, p. 42.
57 Idem, Ibidem, pp. 42-43.

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Em segundo lugar, as mercadorias são trocáveis precisamente em virtude de serem


objectos passíveis de uma exclusão mútua de propriedade.58 A indivisibilidade ou
unidade da mercadoria não decorre das suas propriedades materiais, mas sim sociais: a
singularidade (singleness) da sua existência (social) constitui a forma da
permutabilidade (interchangeability) das mercadorias. A permutabilidade aplica-se a
qualquer mercadoria, independentemente das suas propriedades materiais. 59 A
mercadoria pertence a um mundo unificado comum a todos os indivíduos privados, pelo
que a troca confere à síntese social a sua unidade.60 O dinheiro actua como o veículo
concreto, material da forma da permutabilidade das mercadorias e traduz a sua
singularidade (oneness).
A abstracção refere-se à inter-relação dos agentes da troca e não aos próprios
agentes. Isto porque não são os indivíduos que causam a síntese social mas as suas
acções. Estamos perante uma abstracção pura que possui, todavia, uma realidade
espácio-temporal e que assume uma representação separada no dinheiro, uma relação
que é formalizada apenas em termos do entendimento (understanding) humano. “O
dinheiro é uma coisa abstracta, um paradoxo em si mesmo – uma coisa que realiza a sua
função socialmente sintética para além da compreensão humana”.61 A função do
dinheiro não está relacionada com o nosso ser físico ou natural, sendo apenas
compreensível no âmbito das nossas inter-relações enquanto seres humanos. Não
possui qualquer significado fora da mente humana e, contudo, “possui uma
determinada realidade fora delas – uma realidade social”.62
Em terceiro lugar, a troca contém um postulado de igualdade entre as duas
mercadorias a serem trocadas. “Estas são equiparadas em virtude de serem trocadas,
não são trocadas em virtude de qualquer igualdade [material] que possuam”.63 A
transformação de relações humanas em relações entre coisas, ou seja, a propriedade

58 Idem, Ibidem, p. 43.


59 Idem, Ibidem, p. 44.
60 Idem, Ibidem, pp. 43-44.
61 Idem, Ibidem, p. 45.
62 Idem, Ibidem, p. 45.
63 Idem, Ibidem, p. 46.

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“reificante” da troca, está ligada a este efeito igualizador do acto da troca sobre os
objectos.64 Ora, a equiparação produzida pela troca supera todas as medições
dimensionais específicas e estabelece uma esfera de quantidade não-dimensional, de
quantidade tout court. “Por outras palavras, o postulado da troca abstrai a quantidade
de tal forma que constitui a base do pensamento matemático”. 65
Em quarto lugar, esta abstracção da quantidade pura ganha importância acrescida
quando relacionada com a abstracção correspondente relativa ao tempo e ao espaço. A
troca força uma abstracção relativamente a todas as actividades (materiais) que
compõem o “metabolismo com a natureza”, pois os objectos trocados são assumidos
como imutáveis durante a transacção. “A troca esvazia o tempo e o espaço dos seus
conteúdos materiais e atribui-lhes conteúdos de significado puramente humano
relacionados com o estatuto social das pessoas e das coisas”.66 Por outras palavras, e ao
contrário das sociedades do passado, o tempo e o espaço deixam de ser específicos –
associados a eventos e fenómenos específicos – e passam a ser abstractos.
Finalmente, com a duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro, “a sua
substancialidade sem qualidades e persistente espelha-se na materialidade não
descritiva do dinheiro”.67 Deste modo, a natureza imutável e indistinta (non-descript)
da mercadoria enquanto valor de troca traduz a sua substância, enquanto as suas
propriedades específicas enquanto valor de uso constituem a sua acidentalidade
(accidents).68

O acto de troca pode ser descrito como o movimento abstracto, através do espaço e tempo
abstractos (homogéneos, contínuos e vazios), de substâncias abstractas (materialmente reais mas
desprovidas de qualidades sensíveis) que, portanto, não sofrem qualquer mudança material e
apenas permitem uma diferenciação quantitativa (diferenciação em termos de quantidade
abstracta, não-dimensional).69

O elemento-chave a reter é que “os aspectos formais da troca (…) constituem o


mecanismo da abstracção real indispensável para a síntese social ao providenciarem a

64 Idem, Ibidem, p. 47.


65 Idem, Ibidem, p. 47.
66 Idem, Ibidem, p. 48.
67 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal, op. cit., p. 30.
68 SOHN-RETHEL, Alfred. “Science as alienated consciousness”. In: LEVIDOW, Les (org.), Radical

Science Essays. London: Free Association Books, 1986 [1975], pp. 128-129.
69 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 53, itálico no original.

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matriz para o raciocínio (reasoning) conceptual abstracto característico das sociedades


baseadas na produção de mercadorias”.70 O padrão de movimento inerente à abstracção
da troca introduz um conceito de natureza como “mundo material objectivo”, um
mundo do qual o homem, enquanto sujeito social, se retirou. O tempo (infinito) e o
espaço (ilimitado) abstractos propiciam uma concepção da natureza antitética
relativamente à sociedade. Com efeito, uma ideia clara de natureza surge apenas na era
da produção mercantil, superando os antropomorfismos das sociedades tribais assentes
na produção comunitária.71
Nas sociedades modernas podemos distinguir, portanto, duas “fisicalidades”
(physicalities): a primeira, “concreta e material”, compreende as mercadorias enquanto
objectos de uso e as actividades humanas correspondentes ao intercâmbio material com
a natureza – trata-se da “primeira natureza”; a segunda, “abstracta e puramente social”,
diz respeito às mercadorias enquanto objectos de troca e quantidades de valor – trata-se
da “segunda natureza” sintética, criada (inconscientemente) pelo homem. “Ambas
existem no tempo e no espaço; a natureza primária é criada pelo trabalho, a segunda
natureza é dominada pelas relações de propriedade”.72
A abstracção relativamente à primeira natureza engendrada pela troca, através da
sua separação do uso, impõe-se como uma “fiscalidade” abstracta ou, melhor, como um
tipo de natureza abstracta, “desprovida de toda a realidade sensível e admitindo apenas
una diferenciação quantitativa. Ademais, é compreensível apenas para as pessoas
familiarizadas com o dinheiro e envolvidas na sua utilização e aquisição”, isto é, no
contexto da “civilização” nascida na Grécia Antiga.73 A realidade social e puramente
abstracta da troca existe apenas na cabeça dos homens, mas não deriva dela. Decorre do
acto da troca, da sua necessidade implicada pela produção privada levada a cabo
independentemente pelos indivíduos.
Sohn-Rethel chega portanto à seguinte conclusão: “Esta abstracção real é o arsenal
onde, ao longo das eras de troca mercantil, o trabalho intelectual foi buscar os seus
recursos conceptuais. Constituiu a matriz histórica da filosofia Grega e é a matriz dos

70 Idem, Ibidem, p. 51.


71 Idem, Ibidem, p. 56.
72 Idem, Ibidem, pp. 56-57, itálico nosso.
73 Idem, Ibidem, p. 57.

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paradigmas conceptuais da ciência tal como a conhecemos”.74 As mudanças nestes


paradigmas indicam mudanças que ocorrem na matriz que os enquadra, e vice-versa,
“uma vez que as formas socialmente necessárias do pensamento (cognition) não
possuem outra origem que não seja o funcionalismo prevalecente da síntese social”.75

2.2.3 – A conversão da abstracção real na abstracção conceptual e o “intelecto


independente”
Recapitulemos: é apenas o acto da troca que exerce um efeito social; a consciência
dos indivíduos é privada e ignora o carácter socialmente sintético das suas acções.
Podemos falar de uma “segunda natureza” que compreende “a sua realidade
socialmente sintética no tempo e no espaço históricos e a forma ideal de pensamento
(cognition) através de conceitos abstractos”.76 A segunda natureza inclui, portanto, a
forma mercadoria (entendida apenas como acto de troca) – i.e., a “abstracção real” – e a
forma do pensamento abstracto (filosofia e ciência), i.e., a “abstracção conceptual”.
A abstracção real converte-se na sua reflexão ideal ou forma intelectual. Esta
“conversão” requer como ponto de partida a utilização da moeda – único aspecto
“palpável” da abstracção real – nas trocas comerciais.77 Não existe nenhuma matéria na
natureza que se adeqúe completamente ao material que deve compor a moeda. Todos os
materiais são perecíveis, transitórios, corruptíveis, sujeitos aos efeitos do tempo, etc. O
dinheiro trata-se de algo real e, ainda assim, demarcado de toda e qualquer qualidade
sensível mediante a qual a realidade é real para nós. Não possuindo qualidades
sensíveis, o dinheiro é indestrutível, eterno. 78
Ora, subjacente a esta função monetária, está a abstracção geral da mercadoria “que
permite, e aliás, impõe (inforces) a formação de conceitos de pensamento puro quando
esta abstracção é mentalmente identificada com a sua realidade espacio-temporal”.79 A
“matéria imaterial”, não empírica, da qual o dinheiro virtualmente deveria ser feito,
apenas pode ser representada genuinamente fora do “campo conjunto da matéria

74 Idem, Ibidem, p. 57.


75 Idem, Ibidem, p. 57.
76 Idem, Ibidem, p. 61.
77 Idem, Ibidem, p. 62.
78 Idem, Ibidem, p. 64.
79 Idem, Ibidem, pp. 64-65.

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natural e da empiria da percepção; em outras palavras: só na forma do conceito não


empírico ou «puro».”80

O facto de a moeda ser o meio que reflecte a abstracção real explica a existência de uma
uniformidade lógica da abstracção intelectual entre todos os pensadores conceptuais de uma
sociedade de troca, num dado estágio [de desenvolvimento] e formação. (…) As categorias básicas
do trabalho intelectual (…) são réplicas dos elementos da abstracção real.81

O que diferencia o trabalho intelectual do trabalho manual é precisamente a sua


utilização de formas de abstracção não empíricas, apenas representáveis através
conceitos puros, não-empíricos. Estas formas abstractas de pensamento derivam da
abstracção real da troca, também ela não-empírica e puramente social. Esta é a única
forma de decifrar a origem e a “natureza do trabalho intelectual e da ciência evitando o
idealismo”.82 A filosofia Grega constitui a primeira manifestação histórica da separação
entre cabeça e mãos.
A origem histórica do pensamento conceptual traduz-se, na sua forma plenamente
desenvolvida, no surgimento do “intelecto puro” (pure intellect) em completa separação
das actividades físicas do homem.83 Este intelecto, por sua vez, aplica-se à realidade
exterior – sociedade e natureza – de acordo com o “objecto” que lhe é familiar – o
padrão objectivo de pensamento decalcado da abstracção da mercadoria e das suas
características formais.84 A ciência do trabalho intelectual decorrente da segunda
natureza está fundada numa abstracção não empírica e em conceitos de natureza a
priori. Assim, os elementos formais da troca já mencionados – tempo e espaço
abstractos, matéria abstracta, quantidade como abstracção matemática, movimento
abstracto, etc. – formam um quadro de análise, também ele abstracto, capaz de
comportar todos os fenómenos observáveis.85
A noção da natureza como um mundo físico objectivo independente do homem – a
divisão entre sociedade e natureza – nasce quando a produção mercantil atinge o seu
auge enquanto economia monetária, i.e., “quando as relações sociais assumem o
carácter impessoal e reificado da troca de mercadorias”. Os conceitos não empíricos

80 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal, op. cit., p. 35.


81 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 76.
82 Idem, Ibidem, p. 66.
83 Idem, Ibidem, p. 67.
84 Idem, Ibidem, p. 69.
85 Idem, Ibidem, p. 73.

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derivados da abstracção real possuem uma “realidade objectiva” na medida em que


descrevem a acção reduzida a uma realidade física elementar, ou seja, descrevem o
denominador “mínimo absoluto daquilo que constitui um acontecimento natural”, pelo
que constituem o paradigma do pensamento mecanicista.86
A forma do pensamento “vai, de um modo geral, conformar-se com a estrutura
(make-up) da formação social existente baseada na produção de mercadorias. O próprio
pensamento, contudo, ignora completamente esta conformidade dado que a sua
alienação lhe oculta a [forma da] sociedade”.87 A abstracção está na génese (e no
resultado) da troca, mas esse facto escapa ao intelecto, que está destinado “a ser
alienado por uma falsa consciência quando tenta explicar o seu próprio modo de
pensamento”.88
De acordo com Sohn-Rethel, “as bases válidas da ciência de uma [determinada]
época são aquelas que se adequam (in keeping with) à síntese social dessa época.”
Assim, “mudanças significativas na formação da síntese social encerram mudanças
correspondentes na formação da ciência”.89 De facto, como veremos mais à frente, o
desenvolvimento da ciência moderna foi de par em par com o surgimento do
capitalismo moderno.90 A descoberta das chamadas leis naturais é o objectivo do
método matemático e experimental da ciência “exacta” nascida com Galileu e Newton.
Podemos rematar que, na produção mercantil, o trabalho intelectual e o
pensamento social estão necessariamente separados do trabalho físico. A produção
material perde a sua coesão social directa e apenas pode formar uma totalidade viável
através de uma rede de trocas efectuadas sobre a égide da propriedade privada que,
enquanto capital, controla a produção e sujeita o trabalho manual – escravo, servil, ou
assalariado – à exploração. O trabalho manual é espoliado não apenas económica, mas
também intelectualmente, sendo despojado do conhecimento que rege o seu trabalho.91

3 – Forma Mercadoria e Forma do Pensamento: evolução histórica

86 Idem, Ibidem, p. 72.


87 Idem, Ibidem, p. 71.
88 Idem, Ibidem, p. 72.
89 Idem, Ibidem, p. 78.
90 Idem, Ibidem, p. 74.
91 Idem, Ibidem, p. 78.

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Comecemos por apresentar a distinção que Sohn-Rethel faz entre “sociedades de


produção” e “sociedades de apropriação”. Quando a forma da síntese social é
determinada pela relação de trabalho no processo produtivo, isto é, deriva a sua ordem
fundamental directamente do processo de trabalho humano que interage com a
natureza – então essa é uma “sociedade de produção” e tem a possibilidade de ser uma
sociedade sem classes. É este o caso das comunidades “primitivas” e de uma (possível)
sociedade comunista futura. As pessoas criam a sua própria sociedade enquanto
produtores.92
As sociedades de apropriação, por sua vez, são baseadas na apropriação dos
produtos do trabalho por parte dos membros não trabalhadores. Existem dois tipos de
apropriação: (i) unilateral, na qual há uma apropriação (pública) do excedente
produzido por parte de uma autoridade – mediante a imposição de tributos ou do roubo
puro e simples – no contexto de formas de “dominação directa e de servidão”; e (ii)
recíproca, assente na troca privada e na produção de mercadorias. “A característica
comum de todas as sociedades de apropriação é que a síntese social é efectuada por
actividades qualitativamente diferentes, e separadas no tempo, do trabalho que produz
os objectos da apropriação”.93
De um modo geral, segundo Sohn-Rethel,94 podemos distinguir três épocas maiores
no desenvolvimento social da humanidade que correspondem, por seu turno, a três
etapas no desenvolvimento do pensamento e do conhecimento: sociedades primitivas,
sociedades da Idade do Bronze e sociedades produtoras de mercadorias (antigas e
modernas). Ao sintetizar esta evolução histórica, dedicaremos uma atenção especial ao
último tipo, nomeadamente à Grécia Antiga e ao capitalismo moderno.

3.1 – As sociedades primitivas e a Idade do Bronze


A sociedade tribal (ou comunismo primitivo) corresponde ao surgimento da
linguagem e da consciência humanas. Todavia, a consciência é aqui inteiramente
“prática”, ou seja, corresponde ao conhecimento de como fazer as coisas, mas não ao
conhecimento necessário para as explicar. Assim, o indivíduo não concebe a sua

92 Idem, Ibidem, p. 83.


93 Idem, Ibidem, pp. 83-84.
94 Cf. SOHN-RETHEL, Alfred. “Historical Materialist Theory of Knowledge”, op. cit.

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existência fora do contexto do grupo social a que pertence (tribo, clã, etc.); não enfrenta
a natureza como um indivíduo, mas, pelo contrário, define de um modo “mágico” um
processo que lhe é inteiramente incompreensível. 95
As civilizações da Idade do Bronze (exemplo: Antigo Egipto) correspondem ao
surgimento da escrita e da numeração. Nestas sociedades, o comércio ainda não
permeia a ordem interna da comunidade, sendo conduzido essencialmente com outros
povos. Os seus principais desenvolvimentos intelectuais incluem: a criação de sistemas
de contabilização dos bens armazenados, o estabelecimento de padrões de medida, a
astronomia e a calendarização das cheias, uma geometria elementar para a divisão e
redistribuição das áreas agrícolas, e a criação de registos escritos. Embora estes
elementos traduzam a existência de um trabalho intelectual separado das actividades
manuais, ainda não implicam nem pressupõem um modo de pensamento conceptual.96

3.2 – Grécia: a sociedade clássica de apropriação


A metalurgia com recurso ao ferro desenvolveu-se por volta da 1000 AC e deu
origem a civilizações como a dos Gregos, dos Etruscos e dos Romanos. Citemos
Thomson:

ao aumentar a produtividade e ao possibilitar novas divisões do trabalho, o uso do ferro


aprofundou ainda mais o processo de transformação da produção e apropriação colectivas em
produção e apropriação individuais. Assim, marcou uma nova etapa no crescimento da produção
mercantil. A aldeia comunal, assente na propriedade comum e na apropriação do excedente sob a
forma de tributo, foi sucedida por uma comunidade de proprietários individuais, cada um
produzindo independentemente para o mercado. Este era o caso da polis Grega, baseada no uso do
ferro.97

A troca de mercadorias originou o pensamento abstracto apenas na antiguidade


clássica tardia, pois apenas a partir da civilização Grega se afirmou como síntese social
abrangente. Antes existiam apenas actos de troca isolados e acidentais.98 Quando a
realidade comercial assumiu uma preponderância tão grande que conduziu à invenção
da moeda, por volta de 680 AC, os seus efeitos perturbadores e desagregadores fizeram-

95 Idem, Ibidem, p. 2.
96 Idem, Ibidem, p. 3.
97 THOMSON apud SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 95.
98 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., pp. 58-59.

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se sentir sobre a ordem interna da comunidade.99 O aumento da propriedade privada e


das trocas entre os indivíduos conduziu à transformação dos produtos em mercadorias e
à criação de uma síntese social assente numa economia monetária e na apropriação
privada.100
Esta revolução social foi acompanhada por uma forma de pensamento própria e
distinta. O crescimento da produção de mercadorias na Grécia levou ao nascimento da
filosofia e do modo de pensamento conceptual na costa Jónica do mar Egeu (com Tales,
Anaximandro, etc.), o centro da actividade comercial marítima. A divisão entre trabalho
intelectual e manual “torna-se um factor de extrema importância”.101
O primeiro “pensador puro” que criou (inconscientemente) um conceito
perfeitamente adequável ao dinheiro foi Parménides, com o seu conceito de “ser”:
imutável através dos tempos, estendido por todo o espaço, não possuidor de
propriedades sensíveis e estritamente homogéneo, uniforme e incapaz de perecer. 102
Citemos mais uma vez Thomson:

O homem, o sujeito, aprendeu a abstrair-se do mundo externo, o objecto, e a encará-lo pela


primeira vez como um processo natural determinado pelas suas próprias leis, independente da sua
vontade; contudo, através do mesmo acto de abstracção ele alimentou (nursed) em si mesmo a
ilusão de que as novas categorias de pensamento possuíam uma validade imanente independente
das condições sociais e históricas que as tinham criado.103

A matemática e, em particular, a geometria criada pelos Gregos possuía igualmente


um carácter puramente intelectual e formalizado, ausente de qualquer ligação prática
com a medição (como sucedia no Egipto, por exemplo). A medida dissociou-se do acto
de medir, ou seja, a operação manual subordinou-se a um acto de puro pensamento
destinado a apreender as leis quantitativas do espaço ou números abstractos.104

O seu conteúdo conceptual era independente não apenas deste ou daquele propósito particular, mas
de qualquer tarefa prática. (…) Emergiu uma forma pura de abstracção que foi incorporada no
pensamento reflexivo. Preconizamos que isto pôde apenas ser o resultado da generalização intrínseca
à comensuração monetária do valor das mercadorias promovida pela moeda.105

99 Idem, Ibidem, p. 96.


100 Idem, Ibidem, p. 98.
101 Idem, Ibidem, pp. 98-99.
102 Idem, Ibidem, p. 65.
103 THOMSON apud SOHN-RETHEL, Alfred. “Science as alienated consciousness”, op. cit., p. 123.
104 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 101.
105 Idem, Ibidem, p. 102.

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Sohn-Rethel conclui que embora não existisse uma produção de mais-valia em sentido
capitalista, a síntese social na Grécia antiga era baseada na troca dos produtos como
mercadorias e não mais num modo de produção comunitário. Isso foi o suficiente para
que a abstracção real se tornasse no elemento dominante para a forma de pensamento
vigente nessa sociedade e “autoriza-nos a reconduzir as características conceptuais da
filosofia e da matemática grega (…) a esta raiz”.106

3.3 – A Idade Média e o Renascimento


Com a desintegração do Império Romano, assistiu-se ao fim das formas de
produção mercantil características da antiguidade clássica. A economia perdeu o seu
carácter monetário e esclavagista e transformou-se no Feudalismo, baseado numa
produção agrícola e artesanal em pequena escala. A produção individual ocorria de
acordo com a divisão do trabalho no interior da casa senhorial medieval.107
Todavia, o crescimento, entre os séculos IX e XII, das forças produtivas ao dispor
dos artesãos e dos camponeses conduziu à formação das cidades e ao renascimento das
relações monetárias, associadas ao desenvolvimento do capital mercantil. Os tributos e
os impostos começaram a ser cobrados em dinheiro, o que forçou o estabelecimento de
uma economia monetária e de um raciocínio análogo nos indivíduos. 108 No final do
século XIV assiste-se à transição dos modos de produção artesanal para uma época pré-
capitalista, marcada pelo Renascimento e pela origem e desenvolvimento das ciências
naturais.109
Em resultado da revolução comercial ocorrida na Idade Média – e que se
aprofundou nos séculos seguintes – deu-se uma mudança da produção individual para a
produção social num grau cada vez mais alargado. A formação das comunidades
urbanas no final do Feudalismo significou a necessidade de muralhas e defesas comuns,
edifícios administrativos, catedrais, estradas, pontes, sistemas de abastecimentos de
água e de drenagem, etc. Estes desenvolvimentos foram responsáveis por uma série de

106 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal, op. cit., p. 54.


107 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., pp. 104-105.
108 Idem, Ibidem, pp. 106-107.
109 Idem, Ibidem, p. 110.

206
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actividades que os recursos económicos, técnicos e teóricos limitados da produção


artesanal já não conseguiam satisfazer. 110
Aos artesãos faltava sobretudo uma qualificação fundamental para resolver os
problemas colocados pela época nascente: o pensamento abstracto codificado na
matemática, ou seja, “a lógica do pensamento socializado”. Se o capital começou a
exercer a sua influência sobre a produção, a matemática passou a dominar os poderes
intelectuais da produção social: assistiu-se pela primeira vez à aplicação da ciência em
larga escala.111 A matemática abre um fosso entre o pensamento e a acção humana,
“estabelecendo uma divisão inequívoca entre cabeça e mãos nos processos
produtivos”.112
Mais do que qualquer outro factor, “foi o desenvolvimento das armas de fogo que
impôs o uso da matemática aos artesãos. (…) a tecnologia das armas de fogo (…), a
partir da segunda metade do século XV, intensificou e acelerou enormemente os
desenvolvimentos tecnológicos”.113 A utilização das armas de fogo criava problemas
cruciais, tais como, por exemplo, a relação entre a força explosiva, o peso dos canhões e
o alcance dos projécteis, resolúveis apenas com o recurso à matemática. Para além
disso, a produção de armamento expandiu a fundição de metais, a mineração (do ferro)
e as exigências de transporte. Também a arquitectura militar adquiriu uma importância
acrescida com vista à protecção dos portos e das cidades. E relembremos que todos estes
desenvolvimentos foram de par em par com o estabelecimento de uma economia
monetária a uma escala nunca antes vista.114

4 – O capitalismo e a génese da ciência moderna

110 SOHN-RETHEL, Alfred. “Science as alienated consciousness”, op. cit., p. 134.


111 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 112.
112 Idem, Ibidem, pp. 112-113.
113 Idem, Ibidem, p. 113.
114 Idem, Ibidem, p. 113. Kurz destaca igualmente o papel decisivo da “economia política das armas de

fogo” na implantação do trabalho abstracto e das relações monetárias: a “produção de mercadorias e


economia monetária como elementos básicos do capitalismo receberam um impulso decisivo no início
da era moderna por meio do desencadeamento da economia militar e armamentista” (KURZ, Robert.
“Canhões e Capitalismo – A revolução militar como origem da modernidade”, 1997. Disponível em:
<http://obeco.planetaclix.pt/rkurz2.htm>. Acesso em: 05/jan/2012.). “Para poder financiar as
indústrias de armamento e os baluartes, os gigantescos exércitos e a guerra, os estados tinham de
espremer ao máximo sua população e isso, em correspondência à matéria, numa forma igualmente
nova: no lugar dos antigos impostos em espécie, a tributação monetária. As pessoas foram assim
obrigadas a «ganhar dinheiro» para poder pagar seus impostos ao estado” (Idem, Ibidem).
207
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É possível “compreender a génese histórica e lógica das ciências exactas enquanto


parte essencial das relações de produção capitalistas”.115 O método matemático e
experimental de Galileu possibilitou o conhecimento da natureza através de outras
fontes que não o trabalho manual: esta é a característica-chave da ciência moderna, pois
“com uma tecnologia dependente do conhecimento dos trabalhadores, o modo de
produção capitalista seria uma impossibilidade”.116
O factor decisivo para a criação das ciências exactas foi a extensão do conceito de
inércia ao movimento por parte de Galileu, criando a ciência da dinâmica. Galileu abriu
caminho à aplicação da matemática ao cálculo dos fenómenos naturais, sendo um
precursor da mecânica Newtoniana. Demonstrou que os fenómenos podem ser isolados
das influências ambientais não controladas e testados experimentalmente.
O princípio do movimento inercial (inertial motion) diz que um corpo permanece
em movimento desde que não sofra qualquer interferência de uma força externa. 117
Assim, pressupõe: a possibilidade de isolar um corpo do seu ambiente físico; uma
concepção de espaço infinitamente homogéneo (geometria Euclidiana); e uma
concepção de movimento – e de repouso – enquanto estados presentes no mesmo nível
ontológico.118

A nossa explicação do princípio do movimento inercial é que o mesmo deriva do padrão de


movimento contido na abstracção real da troca mercantil. Este movimento possui a realidade, no
tempo e no espaço, dos movimentos das mercadorias no mercado e, portanto, da circulação do
dinheiro e do capital. O padrão é absolutamente abstracto, no sentido em que não possui qualquer
traço de qualidades perceptíveis, e é definido como: o movimento linear abstracto – através do
espaço e tempo abstractos, vazios, contínuos e homogéneos – de substâncias abstractas que não
sofrem qualquer mudança material, sendo este movimento apenas propício (amenable) ao
tratamento matemático. Embora ocorra continuamente na nossa vida económica, o movimento
correspondente a esta descrição não é perceptível às nossas consciências privadas. Quando logra
entrar nas nossas consciências fá-lo de uma forma puramente conceptual, cuja fonte já não é
reconhecível; nem o mecanismo a que deve a sua abstracção.119

Deste modo, Sohn-Rethel deriva os conceitos a priori da ciência, não de uma


natureza externa, mas da natureza histórica do homem. Retomemos o exemplo do
conceito de inércia. Na antiguidade, na Idade Média e ainda no Renascimento, existe

115 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 117.
116 Idem, Ibidem, p. 123.
117 Idem, Ibidem, p. 125.
118 Idem, Ibidem, p. 127.
119 Idem, Ibidem, p. 128.

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um conceito estático de inércia, pois os processos de troca estão confinados à esfera da


circulação (capital monetário e mercantil). Mas com o advento do capitalismo, surge um
conceito dinâmico de inércia. Isto decorre de os meios de produção – homens e
máquinas – passarem a ser controlados pelo mercado. “A produção […] [é agora uma]
unidade amalgamada (mingled) de troca e produção (…) constitui um processo
constante e contínuo que funciona como um sistema economicamente automático (self-
compelling)”.120
Ora, se na esfera económica o poder social é constituído pelo capital, na esfera da
tecnologia é constituído pela ciência, ou, mais concretamente,

pela operação metódica da mente humana na sua forma socializada, guiada pela sua lógica
específica, a matemática. Esta mente socializada do homem (…) é o dinheiro desprovido dos seus
acessórios (attachments) materiais, portanto, imaterial e não mais reconhecível como dinheiro e,
com efeito, não sendo já dinheiro mas o «intelecto puro». Na sua forma de dinheiro é o capital
dominando o processo de trabalho (…) [e] funcionado de um modo automático ao impor a
corporização do trabalho (…) em valores que geram uma mais-valia. Na sua forma de intelecto
científico a mente socializada aplica-se aos fenómenos físicos dos quais depende o funcionamento
(working) automático do processo de trabalho dos vários capitais.121

O padrão da abstracção contida na troca passou a assumir o significado do “mínimo


absoluto” daquilo que constitui um acontecimento físico (natural). Qualquer
acontecimento que possa ser construído como um compósito deste mínimo é, portanto,

concebível em termos de categorias puramente teóricas e passível de um tratamento


completamente matemático. De facto, é assim que a ciência moderna procede. Hipóteses teóricas,
numa forma conceptual e formulação matemática, são trabalhadas e testadas (…). O fenómeno
testado é salvaguardado de qualquer interferência humana e registam-se as medições específicas
que serão depois interpretadas conforme indicadas pelos instrumentos, e que deverão responder às
questões avançadas pelas hipóteses.122

Em virtude do seu isolamento, um fenómeno apenas pode ser sujeito a investigação


fora do contexto em que ocorre. Deste modo, a

ciência moderna não visa ajudar a sociedade nas suas relações com a natureza. Estuda a natureza
apenas do ponto de vista da produção capitalista. Se as experiências produzirem uma verificação
confiável da hipótese, esta torna-se numa «lei da natureza» estabelecida sob a forma de uma lei de

120 Idem, Ibidem, pp. 129-130.


121 Idem, Ibidem, p. 130.
122 Idem, Ibidem, pp. 131-132.

209
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acontecimentos recorrentes. E este é o resultado que o capitalista poderá utilizar numa aplicação
tecnológica na sua fábrica.123

Numa afirmação plena de actualidade, diz-nos Sohn-Rethel que “os objectos


passíveis de serem controlados pelo capital devem colocados (cast) na forma de uma
mercadoria. A verdade exacta da ciência exacta constitui o conhecimento da natureza
sob a forma da mercadoria”.124 Neste sentido, se nos modos de produção comunal
primitivos “a prática social era racional mas a teoria era irracional (mitológica e
antropomórfica), na base da produção de mercadorias a relação foi invertida;
nomeadamente, a prática social tornou-se irracional (escapa ao controlo humano) mas o
seu modo de pensamento assumiu formas racionais”.125
Sohn-Rethel consegue ainda perceber as potencialidades da automatização, embora
não as ligue à superação do trabalho. É obviamente necessário redefinir a relação do
homem com a automatização, mas

o homem poderia agora, em princípio, ter à sua disposição forças de produção que abrangem, na
sua realidade física, a socialização que nas eras de produção mercantil se foi acumulando no
trabalho intelectual da mente humana – ou seja, na ciência. Isto é uma inversão na relação entre o
homem e os seus instrumentos (tool). Os instrumentos são repositórios das suas potencialidades
sociais e o homem pode permanecer um indivíduo utilizando esses instrumentos para satisfazer as
suas necessidades e desejos num horizonte inimaginável. É claro que isto implica que o socialismo
substitua o capitalismo.126

O socialismo deve estabelecer uma aliança entre a sociedade e a natureza, através de


uma ciência assente na unidade entre trabalho intelectual e manual. 127 A ciência numa
sociedade socialista será, metodologicamente falando, a mesma ciência que existe
actualmente. Não obstante, o socialismo possuirá os meios para contrariar as
propriedades nocivas da ciência sob o capitalismo: o facto de as categorias científicas
básicas derivarem da segunda natureza e estarem completamente alienadas das
realidades qualitativas da primeira natureza; o facto de a ciência ser forçada a isolar os
seus objectos de estudo do respectivo ambiente; e o facto de ser uma actividade
puramente intelectual.128

123 Idem, Ibidem, p. 132.


124 Idem, Ibidem, p. 132.
125 Idem, Ibidem, pp. 133-134.
126 Idem, Ibidem, p. 177.
127 Idem, Ibidem, p. 181.
128 Idem, Ibidem, pp. 183-184.

210
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Os produtores associados controlarão os meios de produção materiais e intelectuais,


concertando-os de modo a estabelecer uma verdadeira simbiose com a natureza a nível
global. “A prática material dos seres humanos nas suas actividades sociais exigirá que as
descobertas científicas sejam integradas na relação entre a sociedade e a natureza”. As
descobertas nunca permanecerão desconectadas; ao invés, serão sempre combinadas e
“regularão a interacção colectiva com a natureza”.129
Segundo Sohn-Rethel, numa sociedade socialista, a ciência perderá o seu carácter
unilateralmente intelectual. Os avanços conseguidos pela ciência, ao longo do século
XX, já não parecem adequar-se à racionalidade subjacente ao capitalismo,

libertando poderes naturais que o capital não consegue controlar [e “rentabilizar”, ou seja, colocar
na forma do valor, N.M.]. Portanto, se permanecermos nas garras (clutches) do capitalismo,
estamos ameaçados com a perda da racionalidade social da ciência que o capitalismo já possuiu e
podemos cair na irracionalidade da nossa prática social combinada com uma irracionalidade
correspondente da nossa teoria. (…) O homem chegou a uma encruzilhada em que é confrontado
com a alternativa de seguir o caminho do socialismo e alcançar, talvez, uma racionalidade tanto da
prática como da teoria sociais, ou continuar a seguir o caminho do capitalismo e perder ambas.130

5 – Sohn-Rethel e a Nova Crítica do Valor

5.1 – A falsa ontologização do trabalho


O Marxismo clássico, do movimento operário, esteve sempre refém de uma crítica
reduzida do capitalismo: entende o capitalismo meramente na base da propriedade
(jurídica) privada dos meios de produção por parte dos capitalistas e da respectiva
exploração “subjectiva” dos trabalhadores mediante a apropriação da mais-valia que
estes produzem. Assim, trata-se de “expropriar os expropriadores”, de retirar aos
“parasitas da sociedade” a mais-valia produzida pelo “trabalho produtivo honesto”. E o
instrumento para isso, o “motor da história”, é constituído pela “luta de classes”, pela
elevação do proletariado a “sujeito da história” responsável pela construção de uma
sociedade assente numa ontologia do trabalho. No fundo, trata-se de uma crítica
sobretudo da distribuição – da circulação, se quisermos – e da oposição da “anarquia do
mercado” a uma planificação e afectação central do (tempo de) trabalho da sociedade.

129 Idem, Ibidem, p. 184.


130 Idem, Ibidem, p. 135.
211
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A Nova Crítica do Valor131 (NCV) designa esta pela teoria do Marx “exotérico”. A ela
contrapõe o núcleo “esotérico” da teoria de Marx: o escândalo já não é o “roubo” por
parte dos capitalistas da mais-valia produzida pelos trabalhadores, mas a própria
produção de valor e o próprio trabalho enquanto substância desse mesmo valor.
Recuperando a teoria do fetichismo de Marx, a NCV empreende uma crítica radical do
“sistema produtor de mercadorias da modernidade”, evidenciando a necessidade de
abolir as suas categorias de base que tendem a ser ontologizadas, inclusive pelos
“marxistas”: valor, mercadoria, trabalho, Estado, mercado, etc. Já não se trata de uma
“luta de classes” mas antes de uma luta contra uma dominação impessoal, quasi-
objectiva,132 erigida em “sujeito automático” e que escapa ao controlo dos homens e os
subjuga. Não se trata mais de libertar o trabalho mas de nos libertarmos do trabalho; a
emancipação humana virá não da elevação do trabalho a princípio supremo da
humanidade, mas da sua abolição, da libertação do “intercâmbio ou metabolismo com a
natureza” (Marx) e da produção de riqueza material dos grilhões do valor e da
abstracção trabalho qua sociabilidade humana comum reificada, da loucura de uma
“metafísica real”.
Ao recuperar a análise da forma mercadoria e a teoria do fetichismo de Marx, Sohn-
Rethel assume-se como um dos precursores desta corrente. 133 Todavia, como já vimos,
uma das suas ideias centrais é que “a abstracção surge da relação de circulação entre os
homens”.134 Para o autor,

nem o trabalho é abstracto por natureza, nem sua abstracção para «trabalho humano abstracto» é
seu próprio produto. O trabalho não se abstrai a si mesmo. O lugar da abstracção está fora do
trabalho, na forma social de relacionamento própria da relação de troca. (…) [A troca] abstrai
(ou, digamos, abstratifica) o trabalho. O resultado dessa relação é o valor das mercadorias.135

E acrescenta, noutro lugar, que não pode ser reconhecida

131 Esta corrente está associada a autores como Moishe Postone (EUA), Jean-Marie Vincent (França) e –
no espaço de língua alemã – aos Grupos Krisis e Exit! (Robert Kurz, Anselm Jappe, Roswitha Scholz,
Claus Peter Ortlieb, Norbert Trenkle, Ernst Lohoff, Franz Schandl, etc.). No espaço de língua
portuguesa, realçamos o site http://obeco.planetaclix.pt/, que contém imensas traduções de artigos,
livros e entrevistas dos autores mencionados, assim como a revista Sinal de Menos:
http://sinaldemenos.org/ (publicação fortemente influenciada pela NCV).
132 POSTONE, Moishe. Time, Labor and Social Domination, op. cit.
133 Cf. JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria, op. cit., pp. 211-212; JAPPE, Anselm. “Pourquoi lire

Sohn-Rethel aujourd’hui?”, op. cit.


134 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal, op. cit., p. 26.
135 Idem, Ibidem, p. 11, itálico nosso.

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à forma valor das mercadorias nenhuma relação inerente ao trabalho. (…) [Assim,] o facto decisivo
presente na produção de mercadorias é que sobre a sua base a socialização não se enraíza no
carácter social do processo de trabalho (…), mas em um sistema de apropriação formalizado e
generalizado como circulação da troca. (…) Em outras palavras, a abstracção das mercadorias é
abstracção da troca, não abstracção do trabalho.136

Deste modo, como facilmente se perceberá, esta asserção constitui o principal alvo
das objecções da NCV à obra Sohn-Retheliana.137 Neste sentido, apresentaremos
brevemente as principais críticas lançadas por alguns dos seus autores-chave: Robert
Kurz salienta que o fetichismo do valor permeia todo o processo de reprodução social
capitalista; Moishe Postone realça que apenas no capitalismo é que o “trabalho” é
responsável pela síntese social; e Norbert Trenkle desmistifica a suposta “inocência” ou
neutralidade do conceito de trabalho concreto.
Kurz realça que a teoria de Sohn-Rethel foi a primeira a introduzir o conceito de
abstracção real no debate marxista. Todavia, “para ele a abstracção socialmente
objectivada apenas é real como uma «abstracção da troca» (…). Apenas no mercado é
que o trabalho abstracto se apresenta como a substância comum das mercadorias que as

136Idem, Ibidem, pp. 27-28, itálico nosso.


137 Refira-se que, com a excepção David Black (cf. “On Philosophic Battles of Ideas, Past and Present”,
2010, pp. 4-5. Disponível em: <http://www.usmarxisthumanists.org/wp-content/uploads/pdf/black-
on-philosophic-battles-of-ideas-20100817.pdf>. Acesso em: 05/jan/2012) e Alberto Toscano (cf. “The
Open Secret of Real Abstraction”. Rethinking Marxism, 20, 2, 2008, pp. 280-282), a maioria dos
autores nem sequer se apercebem desta questão, limitando-se a seguir acriticamente as teses de Sohn-
Rethel (cf. HARSTOCK, Nancy. “Social Life and Social Science: The Significance of the
Naturalist/Intentionalist Dispute”. PSA: Proceedings of the Biennial Meeting of the Philosophy of
Science Association, Vol. 1980, Volume Two: Symposia and Invited Papers, 1980, pp. 325-345;
MUNIZ, José Norberto. “O conhecimento científico como falsa consciência necessária”. Cadernos de
Ciência & Tecnologia. 12, 1/3, 1995, pp. 29-38; PRADO, Eleutério. “A abstração mercantil e a teoria
neoclássica”, 2009. Disponível em: <http://eleuterioprado.files.wordpress.com/2010/07/baixar-texto-
4.pdf>. Acesso em: 05/jan/2012; WOLF, Philipp. “The A Priori of Money: Alfred Sohn-Rethel and
Literature”. Tropismes, 9, 1999, pp. 179-191). Mesmo Galvan, naquela que é sem dúvida a melhor
introdução ao pensamento Sohn-Retheliano em língua portuguesa, fica igualmente refém de uma
identificação (exclusiva) da abstracção real com a troca mercantil: “o espaço-tempo da abstracção real é
o mercado” (GALVAN, Cesare Giuseppe. Moeda e Ciência – Ensaios sobre a teoria de Sohn-Rethel.
Recife: Ed. do Autor, 2001, p. 31). Follari (cf. “Los Rostros de Sohn-Rethel”. Herramienta, 44, 2010.
Disponível em: <http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-44/los-rostros-de-sohn-
rethel>. Acesso em: 05/jan/2012) defende igualmente a colocação da troca no cerne da síntese social
capitalista, uma vez que “o processo de circulação social é mais universal que o trabalho.” Augusto
considera esta ontologia do trabalho em Sohn-Rethel um “elemento positivo” (!), na medida em que
possibilita uma aproximação à “abordagem lukácsiana” (AUGUSTO, André Guimarães. “Gênese da
Ciência em Lukács e Sohn-Rethel: proposta de uma síntese a partir da categoria da emergência”, 2011, p.
11. Disponível em: <http://www.uff.br/niepmarxmarxismo/MM2011/TrabalhosPDF/AMC131F.pdf>.
Acesso em: 05/jan/2012). Em nossa opinião, contudo, e apesar dos seus méritos inegáveis e carácter
pioneiro, a ontologização do trabalho – assim como a identificação do proletariado com o “sujeito-
objecto” da história (Geist Hegeliano) – constitui também precisamente uma das principais fraquezas da
obra de Lukács (cf. POSTONE, Moishe. Time, Labor and Social Domination, op. cit., pp. 72-83).
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torna compatíveis”.138 Por outras palavras, “o trabalho abstracto (…) é tratado


implicitamente como conceito da circulação (…) [situado] para além da esfera da
produção.139

Tal corresponde (…) à subdivisão do processo de reprodução capitalista em uma esfera ontológica-
transhistórica do trabalho concreto, do processo de produção material, por um lado, e em uma
esfera especificamente capitalista da troca, ou do mercado, da regulação «anárquica» do mercado,
por outro, onde se pretende «libertar» a ontologizada esfera da produção da esfera da circulação
especificamente capitalista (…). Paradoxalmente, «o trabalho» como «trabalho sob a sua forma
historicamente específica» [trabalho abstracto], «converte-se» assim não no próprio trabalho, e por
isso, também não em dispêndio efectivo de força de trabalho no processo de produção real, mas
apenas no seu além social, como processo de troca ou acto de mercado fora do trabalho, quando já
nem sequer se trata de trabalho activo, mas apenas do seu reflexo fetichista nos produtos como
mercadorias.140

É preciso notar que a “forma de fetiche do valor (…) abrange todo o processo da
reprodução social”, pelo que não pode ser “reduzida à forma da mercadoria no sentido
da mera objectividade da circulação”.141 Em Sohn-Rethel, o valor é remetido para um
“processo de abstracção ex post”, pelo que o autor tem de conceber o “duplo carácter do
trabalho representado nas mercadorias” dividido por duas esferas distintas, “em vez de
determinar o carácter de toda a reprodução: na produção não se encontra senão o
trabalho «concreto» ou «útil», enquanto o produto em forma de mercadoria apenas na
circulação surge como representação do trabalho abstracto”.142

Este equívoco deriva do facto de o trabalho não ser ele próprio – como pensa Sohn-
Rethel – algo de natural, sendo “precisamente na sua qualidade de produtos do trabalho
que as coisas já são mercadorias ou produtos da abstracção real, e não apenas por força
do acto da troca no mercado”. 143 Kurz conclui assim que embora Sohn-Rethel tenha
chegado mais longe do que o “marxismo do movimento operário” e lhe assista o mérito

138 KURZ, Robert. “A Substância do Capital – O trabalho abstracto como metafísica real social e o limite
interno absoluto da valorização. Primeira Parte: A qualidade histórico-social negativa da abstracção
«trabalho»”, 2004, p. 25-26. Disponível em:
<http://nunomiguelmachado.files.wordpress.com/2012/01/r-kurz.pdf>. Acesso em: 07/jan/2012.
139 Idem, Ibidem, p. 44.
140 Idem, Ibidem, p. 44.
141 Idem, Ibidem, p. 25.
142 Idem, Ibidem, p. 25.
143 Idem, Ibidem, p. 26.

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de, com o conceito de abstracção real, ter desenvolvido a consciência teórica da


problemática, o que constituiu um marco, ele mantém-se inteiramente refém da
ontologia do trabalho e assim com o conceito de abstracção real limitado à circulação, o
que tanto mais o vincula à cisão do conceito de trabalho em uma abstracção má,
puramente circulatória a posteriori, por um lado, e uma concreção «boa», produtiva e
supostamente ontológica, por outro.144

De acordo com Postone, embora Sohn-Rethel procure analisar as “estruturas de


pensamento (…) em termos da sua constituição pelas formas de síntese social”, ele não
analisa “a especificidade do trabalho no capitalismo como sendo socialmente
constitutivo”.145 Assim, argumenta que “o tipo de abstracção e a forma de síntese social
vinculada (entailed) na forma valor não é uma abstracção do trabalho mas uma
abstracção da troca”.146 Diz Postone que Sohn-Rethel

não relaciona a noção da abstracção trabalho com a criação de estruturas sociais


alienadas. Ao invés, ele avalia positivamente o modo de síntese social (…) efectuado pelo
trabalho na produção industrial como não-capitalista e opõe-lo ao modo de socialização
efectuado pela troca, que avalia negativamente. Apenas este último modo de socialização
(…) constitui a essência do capitalismo.147

No capitalismo, pelo contrário, a “qualidade historicamente específica” do


“trabalho” prende-se precisamente com o facto de realizar a síntese social, algo
desconhecido nas sociedades precedentes. Assim, é a “especificidade da produção
capitalista” e as “estruturas sociais alienadas” criadas pela socialização mediada pelo
trabalho que são responsáveis pela abstracção real e não uma suposta troca (de
mercadorias) extrínseca ao processo produtivo e ao trabalho.148

Postone aplaude a tentativa Sohn-Retheliana de “relacionar a emergência histórica


do pensamento abstracto, da filosofia e da ciência natural com formas sociais
abstractas”.149 Não obstante, a sua interpretação equivocada quanto ao carácter e

144 Idem, Ibidem, p. 26.


145 POSTONE, Moishe. Time, Labor and Social Domination, op. cit., p. 177.
146 Idem, Ibidem, p. 178.
147 Idem, Ibidem, p. 178, itálico nosso.
148 Idem, Ibidem, p. 178.
149 Idem, Ibidem, p. 179.

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constituição dessas formas acaba por minar a sua “tentativa sofisticada de uma leitura
epistemológica das categorias de Marx”.150

Segundo Trenkle, o trabalho não constitui uma “constante antropológica”, 151


tratando-se, pelo contrário, de “uma poderosa abstracção real historicamente imposta,
que coage as pessoas sob seu poder violento”.152 Assim,

o trabalho, como forma específica da atividade da sociedade da mercadoria, já é per se


abstrato pois que constitui uma esfera separada/abstraída (abgezogene) do contexto
social remanescente. E, como tal, só existe em geral onde a produção de mercadorias já se
transformou na forma determinante da socialização; isto é, no capitalismo, onde a
atividade humana na forma do trabalho não serve a qualquer outra finalidade que à
valorização do valor.153

Com o conceito de abstracção real, Sohn-Rethel descreve “um processo de abstração


que não é executado através da consciência das pessoas como ato de pensamento, mas
que é pressuposto no pensar e agir como estrutura apriori de síntese social e que os
determina.” Todavia, para o autor, a abstracção real está ligada exclusivamente ao acto
de troca de mercadorias mediante a “conexão funcional do mercado”.154

Assim, a esfera do trabalho aparece-lhe

como um espaço pré-social no qual os produtores privados ainda fabricam seus produtos
completamente não influenciados por qualquer forma socialmente determinada. Só a
posteriori eles lançam seus produtos como mercadorias na esfera da circulação, onde,
então, na troca, se abstrai de suas particularidades materiais (e com isto, indiretamente,
do trabalho concreto despendido neles), onde assim eles se transformam em portadores
de valor. Este ponto de vista, que separa a esfera da produção da circulação opondo-as
externamente, não atinge o nexo interno do moderno sistema produtor de
mercadorias.155

Para Trenkle, o busílis da questão é que

150 Idem, Ibidem, p. 179.


151 TRENKLE, Norbert. “O que é o valor? A que se deve a crise?”, 1998, p. 4. Disponível em:
<http://nunomiguelmachado.files.wordpress.com/2012/01/n-trenkle1.pdf>. Acesso em: 05/jan/2012.
152 Idem, Ibidem, p. 2.
153 Idem, Ibidem, p. 3.
154 Idem, Ibidem, p. 5.
155 Idem, Ibidem, p. 5, itálico nosso.

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os produtos não são fabricados no processo de produção capitalista como coisas úteis
inocentes que alcançam o mercado a posteriori, mas cada processo de produção é de
antemão direcionado à valorização do capital e correspondentemente organizado. Quer
dizer, os produtos já são fabricados na forma fetichista da coisa-valor; eles devem atender
a apenas um fim: representar o tempo de trabalho abstrato despendido para sua produção
na forma de valor. A esfera da circulação (…) é o lugar no qual o valor representado nos
produtos é realizado ou pelo menos deveria ser realizado. 156

Obviamente que as mercadorias devem ser igualmente coisas úteis, mas o lado
sensível/material da mercadoria (“valor de uso”) não é primariamente a finalidade da
produção capitalista; constitui tão-somente um “efeito colateral inevitável”, na medida
em que “o valor não se realiza sem um suporte material”. 157 O que se retira daqui é que
também o lado “concreto” do trabalho não permanece incólume face à “forma
pressuposta de socialização”. “Se o trabalho abstrato é a abstração de uma abstração,
então, o trabalho concreto representa apenas o paradoxo de ser o lado concreto de uma
abstração (isto é, da forma-abstração «trabalho»)”.158 Deste modo, é “concreto” apenas
no sentido de que as diferentes mercadorias “necessitam de processos de produção
materialmente diferentes” que, contudo, não se “comportam técnica e
organizacionalmente frente à finalidade implícita da valorização” de um modo neutro.
“O lado concreto-material do trabalho é (…) nada mais que a forma palpável, na qual a
ditadura do tempo do trabalho abstrato confronta e coage a atividade dos trabalhadores
sob seu ritmo”.159

Sintetizemos então a crítica de Trenkle a Sohn-Rethel: “as mercadorias produzidas


no sistema do trabalho abstrato já representam valor mesmo se ainda elas não tiverem,
contudo, entrado na esfera da circulação”.160 Isto porque para poderem entrar no
processo de circulação (“mercado”), os produtos (“mercadorias”) já se devem “encontrar
na forma fetichizada da coisa-valor”.161

156 Idem, Ibidem, p. 6.


157 Idem, Ibidem, p. 6.
158 Idem, Ibidem, p. 6.
159 Idem, Ibidem, p. 6.
160 Idem, Ibidem, p. 7.
161 Idem, Ibidem, p. 7.

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5.2 - O conhecimento científico e o “sujeito burguês”

Se existe um claro desacordo quanto à origem da abstracção real (no capitalismo), já


no que se refere ao aspecto “epistemológico” propriamente dito da teoria de Sohn-
Rethel, este parece estar mais harmonizado com a teoria preconizada pela NCV.
Segundo Ortlieb, as “relações estruturais entre o método científico-matemático (…) e a
lógica da sociedade da mercadoria, em sua forma desenvolvida e actual” parecem tornar
o “programa [epistemológico] de Sohn-Rethel” claramente “viável”,162 apesar de se
poder objectar que os mesmos antecedentes do capital industrial – capital mercantil e
que rende juros – terem surgido igualmente noutras sociedades (na China ou na Índia,
por exemplo),“sem que por isso o pensamento tomasse o mesmo rumo que no Ocidente
e, ademais, sem que surgisse uma dinâmica capitalista independente”.163

Apesar de a ciência natural se apresentar como uma “ciência não-valorativa”,


neutra, ela constitui na verdade um produto histórico específico. 164 Tal como Sohn-
Rethel havia constatado, o método científico – desde Galileu e Newton até aos nossos
dias – não deriva primariamente da observação, mas de proposições matemáticas e
conceitos não empíricos.165 Diz-nos Ortlieb, numa afirmação em clara sintonia com
Sohn-Rethel, que, por exemplo, “a ideia de leis universais da natureza pressupõe um
conceito objectivo de tempo linear e divisível infinitamente, assim como um conceito de
espaço homogéneo”.166

A “revolução do modo de pensar” surgida com a Modernidade instaurou “uma razão


que é específica da época burguesa”, pelo que o “conhecimento objectivo” produzido

162 ORTLIEB, Claus Peter. “Objectividade Inconsciente – Aspectos de uma crítica das ciências
matemáticas da natureza”, 1998, p. 10. Disponível em:
<http://nunomiguelmachado.files.wordpress.com/2012/01/cp-ortlieb.pdf>. Acesso em: 07/jan/2012.
163 Idem, Ibidem, p. 7. Postone vai mais longe e diz que Sohn-Rethel não coloca uma ênfase suficiente na

distinção entre a realidade da Grécia Antiga e a realidade capitalista moderna – na qual a forma
mercadoria é totalizante – e, portanto, entre a filosofia Grega e o racionalismo moderno (POSTONE,
Moishe. Time, Labor and Social Domination, op. cit., p. 156). Para além disso, ao colocar a troca, e não
o trabalho, no centro da síntese social não é capaz de explicar convenientemente as formas de
pensamento dos séculos XIX e XX associadas ao processo de produção fetichista capitalista (Idem,
Ibidem, pp. 178-179). Ao excluir as implicações da forma mercadoria para o próprio trabalho, “restringe
a sua epistemologia social a uma consideração de formas de pensamento estáticas, abstractas e
mecânicas” (Idem, Ibidem, p. 179), escapando ao seu escrutínio muitas formas de pensamento
características da modernidade.
164 ORTLIEB, Claus Peter. “Objectividade Inconsciente”, op. cit, p. 1.
165 Idem, Ibidem, pp. 4-7.
166 Idem, Ibidem, p. 7.

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nesta sociedade não é um “conhecimento a-histórico, independente das formas de


sociedade e válido em igual medida para todos os seres humanos”.167 Podemos afirmar
que o “pensamento científico (…) acabou por impor-se graças ao poder da sociedade da
mercadoria”.168

Ortlieb baseia a sua análise primariamente na forma sujeito (burguesa), e são


visíveis algumas semelhanças com Sohn-Rethel, que já em 1937, na sua “Liquidação
Crítica do Apriorismo”, escrevia que o conceito de subjectividade se refere ao “sujeito do
conhecimento”. Neste sentido, “o pensamento do sujeito do conhecimento pressupõe
uma espécie de auto-reflexão, na qual o indivíduo «se» distingue como ser pensante de
seu corpo e de tudo o que é material no espaço e se pensa como idêntico através do
tempo”.169 A sua tese é que a subjectividade relaciona-se com a “substituibilidade
económica da função do dinheiro como material monetário”, pelo que o sujeito teórico
surge da identificação do homem com o dinheiro. “O sujeito teórico é o possuidor de
dinheiro”.170 E acrescenta mais à frente:
Como possuidor de dinheiro [o indivíduo] se identifica como sujeito imaterial da validade na
função do dinheiro identicamente uniforme e geral, tanto na matéria de seu dinheiro enquanto
igualmente puro corpo material, que cria primeiro o ser-aí de sua subjectividade e de seus actos
válidos. Pela validade de seu pensamento o possuidor do dinheiro é idêntico com todos os outros
possuidores de dinheiro.171

Ortlieb desenvolve estas intuições Sohn-Rethelianas da seguinte forma, que merece


ser citada na sua plenitude:

O elo que une a sociedade da mercadoria com a forma objetiva de conhecimento é o


sujeito burguês, isto é, a constituição específica da consciência que, por um lado, se requer
para subsistir na sociedade da mercadoria e do dinheiro, e que, por outro, o sujeito deve
ter para ser capaz de um conhecimento objetivo.

167 Idem, Ibidem, pp. 8-9.


168 Idem, Ibidem, p. 9.
169 SOHN-RETHEL, Alfred. “Para a liquidação crítica do apriorismo”, op. cit., p. 119.
170 Idem, Ibidem, p. 119.
171 Idem, Ibidem, p. 122. Escutemos Jappe: “A moeda representava a mesma abstracção em relação à

actividade social que o conceito em relação ao pensamento. A própria concepção de um sujeito


individual que permanece idêntico a si mesmo face a um mundo exterior em transformação (…)
difunde-se em conjunto com a existência do valor. No valor, o indivíduo tem a experiência de uma
substância não empírica que permanece idêntica enquanto passa por diversas manifestações ou
«incarnações». No dinheiro, esta abstracção torna-se «real» na vida quotidiana. A desagregação das
antigas comunidades efectuada pelo dinheiro fez com que, pela primeira vez na história (…), nascesse o
«indivíduo», que se concebe a si mesmo como diferente da comunidade.” (JAPPE, Anselm. As
Aventuras da Mercadoria, op. cit., pp. 186-187).
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A forma-mercadoria (…) se converteu em forma universal devido ao fato de que o


capitalismo fez da força de trabalho uma mercadoria da qual seus portadores dispõem
livremente: isto é, livres de dependências pessoais, livres de toda coação, menos da que os
obriga a ganhar dinheiro. Mas esta coação impessoal é universal (...) e a venda da própria
força de trabalho [converteu-se] na forma predominante de reprodução. (…) A
necessidade de dispor do máximo possível de dinheiro se converte assim no primeiro
«interesse próprio», igual para todos os membros da sociedade, ainda que o tenham que
perseguir competindo uns contra os outros (…).

A aparente autonomia do indivíduo corresponde à aparente neutralidade do processo


econômico, que se apresenta às mônadas econômicas como um processo regido por leis,
descritível unicamente com os conceitos da teoria (…) que se tomou emprestada das
ciências da natureza. Nos dois sentidos, o sujeito burguês é inconsciente de sua própria
condição social: sem mais obrigações do que a de assegurar-se a subsistência (com a qual,
entretanto, não pode cumprir enquanto indivíduo), alimenta com seu trabalho abstrato a
megamáquina da valorização do capital, de cujo funcionamento, por outra parte, não
assume nenhuma responsabilidade, já que o experimenta como regido por leis naturais
inacessíveis ao seu próprio atuar.172

Como já vimos anteriormente, o nexo entre a possibilidade de um conhecimento


objectivo e a consciência da própria identidade foi destacado por Hume e Kant. Segundo
Ortlieb, e mais uma vez em linha com Sohn-Rethel, “a consciência da identidade não
pode ser deduzida da experiência” pois precede “todo o conhecimento empírico.” Mas
também não é “algo inato ao ser humano enquanto tal, mas que se constituiu
socialmente”, exigindo “a constituição de um sujeito capaz de conhecimento
objectivo”.173

Ortlieb explicita este sujeito examinando as exigências inerentes ao método


científico moderno. As experiências científicas são, antes de mais, “uma intervenção do
experimentador sobre si mesmo: a eliminação de sua corporeidade e de seus
sentimentos”, produzindo-se a “eliminação do factor subjectivo”, ou seja, a ilusão de que
o sujeito, na verdade, nada tem a ver com um processo do conhecimento puramente
objectivo, técnico.174

Não obstante, todos os actos e medições experimentais constituem uma relação


recíproca “entre o sujeito que conhece e a natureza da qual faz seu objecto”, mediada
precisamente pelo método matemático científico. Isto significa que uma “experiência

172 ORTLIEB, Claus Peter. “Objectividade Inconsciente”, op. cit, p. 10-11.


173 Idem, Ibidem, p. 11.
174 Idem, Ibidem, p. 11.

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científica” nunca se refere simplesmente a uma “«natureza em si», mas unicamente a


esta forma específica de interacção,” pelo que as chamadas leis da natureza não são
meros “produtos do discurso” multiplicáveis ad infinitum, “prescindindo do lado
objectivo, nem tampouco meras propriedades da natureza, que nada tivessem a ver com
os sujeitos cognoscentes”.175 Em suma, “a cisão das peculiaridades individuais” a que se
submete o sujeito do conhecimento para não comprometer uma experiência é
equivalente àquela a “que se submete, na abstração matemática do experimento mental,
os objetos de sua contemplação: fazendo abstração de suas qualidades, e mesmo de toda
coisa concreta”.176

Assim, Ortlieb conclui que

A ilusão que faz aparecer a regularidade produzida pelo experimento como se fosse uma
propriedade da natureza é a mesma ilusão pela qual o cego processo social da sociedade
mercantil se apresenta aos homens como um processo regido por leis, exterior a eles
próprios, quando de fato são eles que o constituem através de sua ação como sujeitos
burgueses. O sujeito enquanto «ator consciente que não é consciente de sua própria
forma» [Kurz] concebe a si mesmo como separado da natureza e dos demais sujeitos, os
quais experimenta como mero «mundo externo»; com o que se pressupõe
inconscientemente o marco social total, específico da sociedade burguesa, o único que
produz semelhante forma de consciência. O nexo sistêmico da forma-mercadoria,
objetivado desse modo, constitui também a igualdade dos sujeitos que a forma objetiva de
conhecimento pressupõe: a igualdade enquanto mônadas mercantis e monetárias,
cidadãos adultos e responsáveis, dotados de direitos iguais e submetidos a regras e leis
idênticas”.177

6 – Conclusão

Ao longo da sua obra, Sohn-Rethel demonstra que

“A ciência natural, tal como a matemática, (…) é uma parte funcional de uma forma
particular do processo de vida social. A sua lógica é baseada na abstracção da nossa
própria condição existencial historicamente específica (timebound), (…) na abstracção da
sociedade em relação a si mesma. É desta abstracção, e não de qualquer origem absoluta
ou fonte «intelectual» espontânea, que a lógica da ciência deriva o seu carácter de
intemporalidade. Por outras palavras, existe uma causa historicamente específica para a
lógica intemporal”.178

175 Idem, Ibidem, p. 12.


176 Idem, Ibidem, p. 13.
177 Idem, Ibidem, p. 12.
178 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit. pp. 200-201, itálico nosso.

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Assim, os conceitos cognitivos não são derivados simplesmente do mundo material


ou da natureza “externa”, mas “do ser social das épocas históricas em que estes
conceitos nascem e desempenham um papel”.179 O modo de pensamento conceptual
surgiu, historicamente, da divisão entre trabalho intelectual e manual associada à
produção mercantil. O trabalho intelectual tem uma característica básica: a “lógica
universal intemporal”, que o torna incompatível com a história, tanto social como
natural. Deste modo,

os conceitos intemporais são a-históricos no seu significado e apresentam-se como milagres


históricos, tais como o «milagre Grego». (…) Obviamente, este modo a-histórico de pensamento é
ele mesmo um fenómeno histórico. E enquanto os seus conceitos intemporais e não empíricos
continuarem a não ser entendidos historicamente, a própria história permanecerá
incompreensível.180

Em suma, Sohn-Rethel consegue descortinar

a origem dos conceitos puramente intelectuais na realidade espácio-temporal do ser social, o seu
carácter enquanto reflexões de uma abstracção incrustada (enshrined) no dinheiro, portanto, a sua
natureza enquanto extensões (offshoots) da reificação sobre a qual assenta a coesão da sociedade
da troca, o seu uso essencial enquanto formas de pensamento socializadas, a sua relação antitética
com o trabalho manual, a sua ligação acessória com a divisão classista da sociedade.181

Relativamente ao papel e à forma que as ciências naturais poderão assumir numa


sociedade pós-capitalista, podemos concluir com Ortlieb que

À medida que as ciências naturais ampliam as possibilidades de ação humanas, constituem uma
ferramenta útil, à qual não se deveria renunciar. Mas a «ciência natural como religião de nosso
tempo» (Pietschmann), que eleva a propriedade da própria natureza a regularidade produzida pela
forma de conhecimento objetiva e erige em cosmovisão a natureza regida por leis, determinando o
que vemos e o que deixamos de ver, esta ciência não sobreviverá a nossa época moderna. A imagem
da «natureza» sempre foi uma imagem socialmente constituída; e não se vê por quê uma sociedade
liberada de toda forma universal-abstrata e inconsciente necessitaria ainda de uma imagem
unitária da natureza, obrigatória para todos por igual e em todo momento.182

Não obstante os seus méritos inegáveis, a teoria Sohn-Retheliana apresenta, como


vimos no ponto 5, limitações óbvias que decorrem fundamentalmente da sua

179 Idem, Ibidem, p. 201.


180 Idem, Ibidem, p. 203, itálico nosso.
181 Idem, Ibidem, p. 203.
182 ORTLIEB, Claus Peter. “Objectividade Inconsciente”, op. cit, p. 14, itálico nosso.

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equiparação do trabalho ao metabolismo com a natureza. A sua definição do capitalismo


como uma “sociedade de apropriação” transfere a especificidade capitalista para a esfera
da circulação – “exploração” mediante a apropriação dos produtos do trabalho por parte
dos não trabalhadores – e desloca a abstracção real da esfera da produção para a esfera
da troca. Portanto, o que diferencia o capitalismo não é o trabalho (“abstracto”) mas
precisamente o facto de a síntese social não ser efectuada, aos seus olhos, pelo trabalho
(!) e sim pelo processo de troca de mercadorias. Não é o trabalho abstracto e o valor que
se impõem enquanto modo de produção dominante, mas é a “lógica” do mercado que
invade a produção (ontologizada).
Sohn-Rethel não percebe que o processo de produção capitalista é
simultaneamente: um processo de produção material (de bens) e um processo de
produção de valor, i.e., um processo de “valorização do valor” através da absorção de
“trabalho vivo”. Portanto, não é o “mercado” que se torna co-extensivo com a sociedade,
mas o “trabalho abstracto” e a produção de mercadorias.
Ao invés de abolir o trabalho, Sohn-Rethel pretende “planificá-lo” e afectá-lo
“conscientemente”, por oposição à “anarquia” do mercado, que efectua essa
quantificação “indirectamente e de um modo inconsciente” como resultado do “processo
social de troca”.183 Ao ontologizar o trabalho, o autor consegue mesmo concluir que o
próprio Taylorismo já é um passo fundamental em direcção ao socialismo (!): “se a sua
análise [de Taylor] foi feita ao serviço do capital (…), o método não necessita de servir
esse objectivo, nem de ser utilizado pelo capital como meio de impor o seu controlo
sobre o trabalho. Poderia mesmo ser um método operado pelos próprios
trabalhadores”.184 Estamos perante o núcleo mais “exotérico” da teoria Sohn-
Retheliana, para usar uma expressão da NCV.
Para além disso, e para terminar, refira-se que não é só o “trabalho intelectual” que
constitui um a priori social. Em Marx, o trabalho (abstracto) tout court e a mercadoria
constituem desde logo um a priori: expressam simultaneamente relações sociais
particulares e igualmente formas de pensamento.185 Assim, a “forma do pensamento” de
todos os “sujeitos monetários da modernidade” (Kurz) constitui um a priori

183 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit. p. 169.
184 Idem, Ibidem, p. 170, itálico nosso.
185 Cf. POSTONE, Moishe. Time, Labor and Social Domination, op. cit.

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(inconsciente) marcado pela “forma da mercadoria”, pelo valor, pelo trabalho e pela
(ir)racionalidade a eles inerente, que determina e enquadra as suas acções e
comportamentos quotidianos. Ao ontologizar o trabalho, Sohn-Rethel tem de deslocar a
especificidade do capitalismo para a esfera da troca e para um “trabalho intelectual” ao
serviço da “classe dominante”.

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Teses sobre a Comuna de Paris

Guy Debord
Attila Kotànyi
Raoul Vaneigem

É preciso retomar sem nenhuma ilusão o estudo do movimento operário clássico; sem
ilusões, em primeiro lugar, no que concerne a seus diversos tipos de herdeiros políticos
ou pseudoteóricos, uma vez que não possuem senão a herança de seu fracasso. Os êxitos
aparentes daquele movimento são seus fracassos fundamentais (o reformismo ou a
instalação no poder de uma burocracia estatal) e seus fracassos (a Comuna ou a revolta
das Astúrias [em 1934]) são até agora seus êxitos abertos, para nós e para o porvir.

A Comuna foi a maior festa do século XIX. Encontra-se nela, originalmente, a impressão
dos insurgentes de terem se tornado mestres de sua própria história, não tanto no nível
da decisão política “governamental” quanto no da vida quotidiana naquela primavera de
1871 (veja-se o jogo de todos com as armas; o que quer dizer: jogar com o poder). É
também nesse sentido que se tem que entender Marx: “a maior medida social da
Comuna foi a sua própria existência em atos”.

A frase de Engels: “Vejam a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado” – deve ser
levada a sério, como base para fazer ver o que não é a ditadura do proletariado como
regime político (as diversas modalidades de ditadura sobre o proletariado, em seu
nome).

225
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Todo mundo soube fazer justas críticas às incoerências da Comuna, à falta manifesta de
um dispositivo. Mas como pensamos hoje que o problema dos dispositivos políticos é
muito mais complexo do que pretendem os herdeiros abusivos do dispositivo de tipo
bolchevique, é tempo de considerar a Comuna não somente como um primitivismo
revolucionário ultrapassado do qual se sobrepuja todos os erros, mas como uma
experiência positiva cujas verdades ainda não foram encontradas ou realizadas.

A Comuna não teve chefes. Isso num período histórico em que a ideia de que era preciso
tê-los dominava absolutamente o mundo operário. Assim se explicam antes de tudo seus
fracassos e êxitos paradoxais. Os guias oficiais da Comuna são incompetentes (no caso
de se tomar como referência o nível de Marx ou Lenin, e mesmo Blanqui). Mas em
contrapartida os atos “irresponsáveis” do momento devem precisamente ser
reivindicados para o que virá no movimento revolucionário do nosso tempo (mesmo se
as circunstâncias os limitaram quase todos ao destrutivo – o exemplo mais conhecido é
o do insurgente dizendo ao burguês suspeito que afirma que nunca se meteu com
política: “é justamente por isso que eu te mato”).

A importância vital do armamento geral do povo é manifestada, na prática e nos sinais,


em todo o movimento. No conjunto, não se abdicou em prol de destacamentos
especializados o direito de impor pela força uma vontade comum. O valor exemplar
dessa autonomia dos grupos armados tem sua contrapartida na falta de coordenação: o
fato de não ter em nenhum momento da luta contra Versalhes, ofensivo ou defensivo,
levado a força popular a um grau de eficácia militar; mas [também] não se pode
esquecer que a revolução espanhola se perdeu, e no final a própria guerra, devido a uma
tal transformação em “exército republicano”. Pode-se pensar que a contradição entre
autonomia e coordenação dependiam em grande medida do nível tecnológico da época.
226
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A Comuna representa até hoje a única realização de um urbanismo revolucionário,


atacando no próprio local os sinais petrificados da organização dominante da vida,
reconhecendo o espaço social em termos políticos, não crendo que um monumento
possa ser inocente. Aqueles que associam isso a um niilismo lumpenproletário, à
irresponsabilidade das pétroleuses [incendiárias], devem confessar em contrapartida
tudo o que consideram como positivo, a conservar, na sociedade dominante (ver-se-á
que é quase tudo). “Todo o espaço já está ocupado pelo inimigo… O momento da
aparição do urbanismo autêntico será de criar, em certas zonas, o vazio desta ocupação.
O que chamamos de construção começa aí. Ela pode ser entendida com o auxílio do
conceito de campo positivo, cunhado pela física moderna.” (“Programa elementar de
urbanismo unitário”, I.S., nº 6)

A Comuna de Paris foi vencida menos pela força das armas do que pela força do hábito.
O exemplo prático mais escandaloso é a recusa em recorrer ao canhão para tomar o
Banco de França, quando o dinheiro fez tanta falta. Durante todo o poder da Comuna, o
Banco permaneceu um enclave versalhense em Paris, defendido por algumas
espingardas e pelo mito da propriedade e do roubo. Os demais hábitos ideológicos
foram desastrosos em todos os sentidos (a ressurreição do jacobinismo, a estratégia
derrotista das barricadas em memória de 48 etc.).

A Comuna mostra como os defensores do velho mundo beneficiam sempre, de um modo


ou de outro, da cumplicidade dos revolucionários; e sobretudo daqueles que pensam a
revolução. Os próprios revolucionários pensam como eles. O velho mundo guarda assim
as bases (a ideologia, a linguagem, os costumes, os gostos) no desenvolvimento de seus
inimigos, e serve-se delas para reconquistar o terreno perdido. (Só lhe escapa para
sempre o pensamento em atos próprio ao proletariado revolucionário: o Tribunal de
227
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

Contas ardeu). A verdadeira “quinta coluna” está no próprio espírito dos


revolucionários.

10

A anedota dos incendiários, já nos últimos dias, indo destruir a Notre-Dame, e que
esbarram com o batalhão armado dos artistas da Comuna, é rica de significado: é um
bom exemplo de democracia direta. Mostra também, ademais, os problemas ainda por
resolver na perspectiva do poder dos conselhos. Será que aqueles artistas unânimos
tinham razão em defender uma catedral em nome de valores estéticos permanentes, e
em última instância em nome do espírito dos museus, enquanto outros homens
almejavam justamente ter acesso à expressão naquele dia, traduzindo por meio daquela
demolição seu desafio a uma sociedade que, na derrota iminente, jogava toda sua vida
no nada e no silêncio? Os artistas partidários da Comuna, agindo como especialistas,
encontravam-se já em conflito com uma manifestação extremista da luta contra a
alienação. Cabe censurar aos homens da Comuna não terem ousado responder ao terror
totalitário do poder com a totalidade do emprego de suas armas. Tudo leva a crer que se
tentou eliminar os poetas que traduziram naquele momento a poesia em suspenso da
Comuna. A massa de atos irrealizados da Comuna torna possível que se convertam em
“atrocidades” os atos esboçados, e que as lembranças sejam censuradas. A frase “aqueles
que fizeram revoluções pela metade não fizeram senão cavar uma sepultura” explica
também o silêncio de Saint-Just.

11

Os teóricos que reconstituem a história daquele movimento colocando-se do ponto de


vista onisciente de Deus, que caracterizava o romancista clássico, mostram facilmente
que a Comuna estava objetivamente condenada, que ela não tinha possibilidade de ir
além. Não se pode esquecer que, para aqueles que vivenciaram o acontecimento, o além
estava lá.

228
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12

A audácia e a inventividade da Comuna não se medem evidentemente em relação à


nossa época, mas em relação às banalidades de então na vida política, intelectual, moral;
em relação à solidariedade de todas as banalidades em meio às quais a Comuna
declarou guerra. Assim, considerando a solidariedade das banalidades atuais (de direita
e de esquerda), pode-se imaginar o tamanho da inventividade que podemos esperar de
uma explosão daquela.

13

A guerra social de que a Comuna é um momento ainda dura (muito embora suas
condições superficiais tenham mudado bastante). Sobre o trabalho de “tornar
conscientes as tendências inconscientes da Comuna” (Engels) a última palavra não foi
dita.

14

Há cerca de vinte anos, na França, os cristãos de esquerda e os estalinistas concordam,


em lembrança de sua frente nacional anti-alemã, em enfatisar aquilo que houve na
Comuna de mal-estar nacional, de patriotismo ferido, e, para falar claramente, de “povo
francês pedindo via petição para ser governado” (segundo a “política estalinista” atual),
e no fim levado ao desespero pela carência da direita burguesa apátrida. Bastaria, para
regurgitar essa água benta, estudar o papel dos estrangeiros que vieram combater pela
Comuna: esta foi realmente, antes de mais nada, a inevitável prova de força em que
devia se conduzir a ação de “nosso partido”, como dizia Marx, na Europa desde 1848.

(18 de março de 1962)

[Fonte: “Sur la Commune”, in Guy Debord, Œuvres, Paris, Gallimard, 2006, pp. 628-33.
Tradução: Raphael F. Alvarenga]

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Crítica Social ou Niilismo?


O “trabalho do negativo”: de Hegel e Leopardi até o presente

Anselm Jappe

As sociedades modernas geralmente preferiram tirar proveito de seus críticos ao


invés de encarcerá-los. Quando a crítica era “construtiva” – e em geral se esforçava em
sê-lo – os administradores da sociedade a escutavam de bom grado. Ainda assim,
restavam sempre algumas pessoas cujo descontentamento com as condições de vida
dominantes adquiria o ímpeto de uma recusa global, pela qual estavam dispostas a
lançar-se contra o existente ainda sem dispor de qualquer alternativa imediata,
apresentando a destruição da ordem estabelecida como um valor em si mesmo. Para
este tipo de crítica impossível de ser integrada, se tem sempre à disposição a acusação
de “niilismo”, e não apenas quando se trata do terrorismo de revolucionários como os
Ravachol e Nechaiev no século XIX. Por outro lado, a crítica social radical, ainda que
quase nunca tenha aceitado o qualificativo de “niilista”, também encampou a bandeira
da negação: a negação não apenas de algum aspecto, ou de uns poucos aspectos do
existente, aos quais pudessem se opor outros momentos positivos, mas a negação do
existente em todos ou quase todos os seus aspectos, desde o modo de produção até a
família, da religião até o Estado, da cultura até as formas mais moderadas de oposição.
Antes que surgisse, para o século XIX, a sociedade industrial, semelhante
questionamento total do mundo se manifestava somente nas revoltas de caráter
religioso, apocalíptico ou messiânico, sendo a última delas a Revolução Inglesa. A
paligênese a que aspiravam as correntes radicais de tais movimentos, como os
anabatistas de Thomas Münster ou os Irmãos do Livre Espírito, ia com freqüência muito
além dos sonhos mais audazes dos seus sucessores modernos. Mas o seu horizonte não
era niilista, muito pelo contrário: era um horizonte “pleno”, que se propunha em termos
essencialistas, já que a revolta terrena achava sua referência, sua significação e sua meta
no Reino de Deus que tinha de se instaurar sobre a Terra. Não tinham “fundado sua
causa em nada”, senão, pelo contrário, em Deus, a mais plena das realidades. Por
motivos análogos, ninguém chamaria de niilista aqueles pensadores modernos – penso
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sobretudo em Charles Fourier – que, conquanto tenham elaborado uma crítica


impiedosa da sociedade como um todo, subordinaram tal negação a uma visão positiva
da felicidade garantida no futuro; de modo que se lutava não tanto contra o existente,
mas a favor de um mundo diferente, o qual mitigava em grande parte a agressividade
dos meios e das formas, outra característica daquela contestação radical que seus
adversários insistem em chamar de “niilismo”.
Tal contestação radical não poderia surgir antes que se generalizasse aquele
contraste entre o indivíduo e o mundo que achou sua primeira expressão no
romantismo; expressão que, no entanto, em muitos aspectos não foi ainda superada.
Naquela época, a negação radical surgiu ao mesmo tempo em diversas esferas. De um
lado, tomou a forma de uma rebelião existencial do indivíduo que vê a si mesmo como
num estado de guerra contra a sociedade, mesmo quando concebe esta sociedade sob o
aspecto genérico do “mundo” ou da “vida”. Tal rebelião já não encontra seu ponto de
fuga e sua garantia em uma certeza religiosa que se opôs a um mundo vivenciado como
inteiramente negativo e corrompido, como acontecia no caso dos “rebeldes” de épocas
anteriores, como Blaise Pascal. Nos românticos, a negação tinha cobrado
independência, ao menos onde não conduzia a tentativas a qualquer preço de voltar a
um substrato firme, como a Idade Média de Novalis e o protestantismo de Kierkegaard.
O exemplo supremo de um pensamento romântico que expressa uma condenação total
do existente sobre bases materialistas e atéias é o de Giacomo Leopardi. Veremos que
suas idéias, ainda que não se possa falar de uma influência direta, inauguram um tipo
muito específico de crítica radical e existencial que fala na primeira pessoa.
Quase ao mesmo tempo em que o pensamento de Leopardi se desenvolvia, e
igualmente dentro do âmbito do romantismo, se formou a filosofia de Hegel. Esta, no
entanto, parece ser o extremo oposto de uma doutrina niilista; mas às vezes acontece de
um pensador ser compreendido melhor por seus adversários do que pelos seus próprios
seguidores. Um autor que captou muito bem o aspecto subversivo de Hegel é Elémire
Zolla, um estudioso francês dos místicos, que afirmou em 1971, num panfleto
abertamente reacionário, que Hegel

exaltava a crítica como um fim em si mesmo e utilizava a utopia como droga para
alimentar a destruição incessante, quer dizer, a negação determinada de todas as coisas
subsistentes. Qualquer petrificação, isto é, qualquer forma bem formada, fica dissolvida
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pelo furor conceitual e pelo sarcasmo.1

Zolla tem toda razão: Hegel é o ponto de partida daquela negação progressiva de
todos os aspectos do mundo estabelecido que não reivindicava nada de positivo no já
existente, seja na realidade empírica, seja na mente de Deus ou de algum inventor genial
como Fourier. Mas a “fúria do desaparecer”, como disse Hegel, não é niilista, enquanto
não é negação abstrata, mas negação determinada; não se trata de um genérico “não” a
todas as coisas, senão a demonstração de que tudo o que existe em sua unilateralidade
“se entregou aos braços do demônio e tem necessariamente que perecer” – como disse
Hegel citando o Fausto de Goethe2 – para abrir o caminho às formas mais elevadas, que
logo serão negadas a sua vez. Toda carga destrutiva da contribuição hegeliana estava já
encerrada em seu método. Os discípulos de Hegel não fizeram mais que lhe adicionar
esse conteúdo. A dialética hegeliana estava destinada a encontrar-se com a rebelião dos
poetas românticos e seus sucessores, os protótipos do sujeito moderno, impedindo
assim que essa rebelião degenerasse em desespero suicida frente a um mundo
aparentemente sem saída. Como veremos, grande parte da crítica social
verdadeiramente radical, do “trabalho do negativo”, foi uma resultante do encontro da
dialética hegeliana com o indivíduo que se rebelava contra o mundo: Stirner e Bakunin,
a poesia moderna, os dadaístas e os surrealistas, até achar uma espécie de resumo e
culminação nos situacionistas e Guy Debord.
Como se sabe, toda a dialética hegeliana se baseia na negação, à qual se outorga
uma importância antes nunca vista em toda a história do pensamento ocidental, salvo,
quem sabe, em algumas formas de misticismo ou na “teologia negativa”. Desde o
prefácio da Fenomenologia do Espírito, Hegel sublinha a inutilidade de todo
pensamento “se faltam a seriedade, a dor, a paciência e o trabalho do negativo”.3 Ao
longo do desenvolvimento histórico e individual, cada forma existe somente enquanto
dissolução e negação da forma precedente, que fica reconhecida em sua insuficiência.
Na Fenomenologia do Espírito não se fala de outra coisa, pois nada é tomado como um
princípio tanto histórico como lógico e ontológico. O fato mesmo de que algo exista se
deve ao nada, a negação do ser, pois do contrário este careceria de toda determinação.

1 Zolla, E. Che cosa è la tradizione. Milán: Adelphi, 1998 (citado em A Republica, 26 de março de 1998).
2 Hegel, G.W. F. Phänomenologie des Geistes. Suhrkamp, pág. 270.
3 Ibid, pág. 24.

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Na introdução à Ciência da Lógica podemos ler:

A única maneira de lograr o progresso científico [...] é o reconhecimento da proposição


lógica que afirma ser o negativo ao mesmo tempo positivo, ou que o contraditório não se
resolve em um zero, em um nada abstrato, mas somente na negação do seu conteúdo
particular; quer dizer, que tal negação não é qualquer negação e sim a negação daquela
coisa determinada que se resolve, e por isso é uma negação determinada [...]. Ao mesmo
tempo em que a resultante, isto é, a negação, é uma negação determinada, ela tem um
conteúdo. É um novo conceito, mas um conceito superior, mais rico que o precedente. 4

A negação é precisamente aquilo mediante o qual a razão, sendo capaz de


englobar Todo o pensamento, se eleva acima do intelecto, que permanece ancorado na
positividade do dado isolado (e que, precisamente em sua rígida oposição ao devir, é o
verdadeiramente negativo). Numa outra passagem da Ciência da Lógica lemos o
seguinte:
O intelecto determina e mantém firmes as determinações. A razão é negativa e
dialética, porque resolve no nada as determinações do intelecto; é positiva porque cria o
universal, e nele compreende o particular. [...] Mas em sua verdade a razão é espírito,
que está acima dos dois, como razão inteligente, ou intelecto racional. O espírito é o
negativo, é o que constitui as qualidades tanto da razão dialética como do intelecto. 5
O espírito, a categoria central de todo o pensamento hegeliano é, portanto,
essencialmente negativo. Então não surpreende que o passo desde o ser completamente
indeterminado, idêntico ao nada, à existência determinada seja precisamente uma
consciência da primeira negação do ser que, em sua carência de toda determinação,
resulta no ser nada. A negação não é nem o nada nem o ser, mas o devir: “A realidade
contém nela mesma a negação, é uma existência, não é um ser indeterminado, abstrato.
Do mesmo modo, também a negação é uma existência, não esse nada que deve ser
abstrato”. 6
Em outras palavras, sem negação, sem contradição não haveria nenhum devir,
nenhuma realidade concreta: “Se ao contrário se toma a realidade em sua determinação,
então – uma vez que ela contém essencialmente o momento do negativo – o conjunto de
todas as realidades se converte também no conjunto de todas as negações”. 7

4 Hegel, G.W.F. Wissenchaft der Logik. Suhrkamp, vol. I, pág.49.


5 Ibid.págs. 16-17.
6 Ibid., pág. 122
7 Ibid., pág. 120.

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Devo limitar-me aqui a recordar, sem mais, que Hegel desenvolveu, a partir
desses princípios lógicos gerais, um sistema especulativo dentro do qual tanto a história
concreta quanto a história da filosofia, a filosofia da natureza, a estética, a religião e o
direito, se despregam a partir do princípio da negação determinada. Poucos anos antes,
no Fausto de Goethe, o diabo define a si mesmo como “o espírito que sempre nega”:
parece que aqueles anos foram a época em que a humanidade descobriu a negação.
É sabido, no entanto, que no sistema hegeliano o negativo é somente uma etapa
no caminho até o positivo, até uma positividade rica e articulada graças à contribuição
do negativo. “O falso é um momento do verdadeiro”, dizia Hegel; a alienação do homem,
que se vê negado por suas próprias criações, é somente um momento transitório do
desenvolvimento do Espírito universal que conduz à reconciliação final das
contradições. Partindo desse ponto de vista, a filosofia de Hegel é essencialista, em tudo
o contrário do niilismo. Não é casual que Hegel tenha acabado resgatando a prova
ontológica da existência de Deus. Contudo, a intenção de encerrar como em uma garrafa
o “inquieto devir na sucessão do tempo”, após descobri-lo como raiz do mundo
moderno, estava condenada ao fracasso. Os “jovens hegelianos” utilizaram a dialética do
seu mestre como ferramenta para desmontar em poucos anos, ao menos no plano
teórico, todas as construções humanas, de maneira tão completa que muito pouca coisa
ficou por fazer à posteridade. Efetivamente, desde então a filosofia, como disciplina
separada, reduziu-se à chata cópia do existente, empenhada, antes de tudo, em eludir a
força explosiva do negativo: não por acaso, tem sido essencialmente uma forma de
positivismo.
Os jovens hegelianos viam na filosofia de Hegel o meio para aniquilar o mal
presente e preparar as revoluções mais radicais, por muito que alguns espíritos menores
acreditassem que a negação puramente teórica era superior às inevitáveis limitações da
prática. Karl Grün, um dos chamados “socialistas alemães” vilipendiado por Marx e
Engels em A Ideologia Alemã, recomenda em 1845 aos franceses:

Deixai de beber café e vinho durante um ano [...] deixai Guizot governar e a Argélia ficar
sob o domínio do Marrocos [...] sentai em uma mansarda e estudai a Lógica mais a
Fenomenologia [...] (Ao cabo de um ano) vosso olhar será mortal, vossa palavra moverá
montanhas, vossa dialética será mais afiada que a mais afiada entre as guilhotinas. Vós
parareis diante do Hôtel de Ville... e a burguesia já era; acercareis ao Palácio Bourbon
que se desintegrará, toda a sua câmara dos deputados se dissolverá no nihilum album,
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Guizot desaparecerá, Luis Felipe empalidecerá até se tornar uma sombra histórica, e de
todos estes momentos que sucumbem se elevará, certo do triunfo, a idéia absoluta da
sociedade livre. 8

Antes de seguir adiante com os avatares da negação hegeliana, aí onde ela


permaneceu fiel a si mesma e não se apressou por integrar-se em uma nova positividade
(como fez, entre outros, o marxismo convertido em ciência positiva), joguemos um olhar
na rebelião existencial dos românticos. Mais além da nostalgia, da Weltschmerz, da
fascinação por toda sorte de decomposição que se pode encontrar na literatura
romântica, foi sem dúvida Leopardi – morto seis anos depois de Hegel, em 1837 - quem
alcançou a negatividade mais cabal. Uma negatividade que resulta insuportável até os
dias de hoje, como demonstra o fato de que com freqüência se tenha tratado de negar-
lhe a categoria de pensador e filósofo e tirar-lhe a importância de sues escritos em prosa,
onde com maior claridade se manifesta o aspecto crítico, para vê-lo somente como um
poeta lírico; e ainda neste terreno houve quem quisesse negar, como Benedetto Croce, o
valor daquelas composições poéticas nas quais a polêmica corrosiva de Leopardi torna
impossível relegá-lo ao papel do delicado cantor melancólico. O pessimismo de Leopardi
era rigorosamente ateu e materialista; era, conforme uma interpretação muito
difundida, inicialmente pessoal, depois histórico e finalmente cósmico. Por outro lado,
tem-se insistido muito nas fontes pessoais do pessimismo de Leopardi, acossado por
enfermidades, amores infelizes, estreitezas materialistas, uma família e uma cidade
natal insuportáveis.

Na maior parte de suas obras, Leopardi nega efetivamente qualquer valor à


vida, vítima de uma natureza que se comporta como madrasta indiferente ante suas
criaturas. Talvez não se tivesse visto um pessimismo tão radical desde os tempos da
Antiguidade. Ainda assim, para Leopardi cabe a possibilidade de uma saída; e isso o
aproxima, por assim dizer, muito mais do que de Schopenhauer, com quem amiúde o
comparam, aos rebeldes de 1968. O sofrimento fundamental do homem é, para
Leopardi, o tédio. O tédio nasce da escassa freqüência das sensações prazerosas, cuja
possibilidade não é negada por Leopardi. Nos diálogos filosóficos da Operette morali se
diz: “aquilo que talvez seja o mais digno de chamar-se vida, isto é, a intensidade e
abundância das sensações, é o que todos os homens por natureza amam e desejam”. Se

8 Cit. em Marx, K. e Engels, F. Die deutsche Ideologie, MEW, vol.3, pág. 476.
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um indivíduo vivesse apenas a metade do tempo, todas as sensações seriam mais fortes,
o tédio não existiria e a vida seria quase desejável:

Quisesse poder acelerar (a atividade vegetativa de nosso corpo) de modo que a vida se
reduzisse à medida da de alguns insetos, chamados efêmeros... Neste caso, suponho que
não restaria lugar algum para o tédio... Mas se tu queres de verdade ser útil aos homens
prolongando a vida, encontre uma arte pela qual se possa multiplicar o número de
sensações e de seus atos... Não crês que os antigos viviam mais que nós, já que devido
aos graves e contínuos perigos que costumavam correr, em geral morriam mais cedo?. 9

Em outras palavras, uma vida intensa faria suportável a dor e o esvaziamento da


existência; e nem sempre Leopardi concebe tal intensidade como simples resultado de
uma vida abreviada. Em outro diálogo faz dizer a Cristóvão Colombo que afrontar riscos
e perigos em busca de grandiosas façanhas é sem dúvida preferível a uma existência
segura, mas monótona. Em seu diário intelectual, o Zibaldone, a alusão à maior
vitalidade dos tempos antigos se expressa assim:

Somos todos uns egoístas. E agora? Somos mais felizes? De que gozamos? Uma vez se lhe
tenha tirado ao mundo o belo, o grande, o nobre, que resta de prazer, de vantagem, de
vida? Não digo em general nem para a sociedade, senão em particular e para cada um.
Quem é ou quem era mais feliz? Os antigos com seus sacrifícios, suas preocupações, suas
inquietudes, negócios, atividades, façanhas e perigos, ou nós com nosso amor ao bem
próprio e nossa despreocupação pelo bem alheio ou público etc.? Os antigos com seu
heroísmo ou nós com o egoísmo? 10

Aqui, como em diversas passagens de Leopardi, se expressa uma moral heróica


cujo ideal é o mundo antigo: à desenganada consciência do vazio da vida na época
moderna, a época da “alienação” segundo Hegel, Leopardi opõe o que Hegel chamava a
“bela vida ética” da polis grega. Em outras palavras, segundo Leopardi, uma realidade
social que oferecia ao indivíduo a possibilidade de uma vida plena, gloriosa e
aventureira, que o permitisse participar da história ao invés de sofrê-la seria mais forte
que a ontológica insensatez da vida.
Leopardi foi, de fato, um observador atento de sua época; de forma alguma ele
vivia fora do mundo, como atesta, entre outras coisas, sua aguda crítica aos costumes
italianos, que ainda hoje conserva alguma atualidade. Mas aquilo que só agora revela
todo seu valor de antecipação é o fato de Leopardi não simpatizar de forma alguma com
os movimentos liberais e patrióticos de seu tempo, tratando-os, ao contrário, com um

9 Leopardi, G. “Dialogo di um físico e di um metafisico”, em Operette morali. Milán: Garzanti, 1989, págs.
101-103.
10 Leopardi, G. Zibaldone, 21-I-1821.(Ed. Sansoni, Tutte le opere, págs. 180 e segs).

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sarcasmo tão áspero quanto certeiro. Portanto, não deixa de ser abusivo que os
herdeiros de tais movimentos pretendam reivindicar um “Leopardi progressista”, como
rezava o título do livro de um “intelectual orgânico” do Partido Comunista Italiano
publicado em 1947. Leopardi também não foi um reacionário ou um “existencialista”
apolítico, como ultimamente se tem afirmado com freqüência: tratava-se da crítica
daquele progresso, daquela “razão geométrica”, como ele próprio dizia, que outros logo
chamariam de razão instrumental ou sociedade da mercadoria. Existem momentos em
Leopardi que se assemelham à crítica da Dialética do Esclarecimento de Adorno e
Horkheimer. Em outros aspectos, era partidário do progresso entendido como
superação da Idade Média cristã, que para Leopardi, ao contrário de muitos outros
românticos, não lhe inspirava o menor assomo nostálgico. O que emerge do ideal da
Antiguidade é o desejo de uma vida apaixonada e apaixonante. Seu horizonte não era
nem a igualdade social nem o desenvolvimento das forças produtivas, porque tinha
compreendido aonde eles nos conduziriam: ao triunfo completo de uma sociedade
mercantil inteiramente vazia de conteúdos. Seu horizonte era mais próximo do “mudar
a vida” de Rimbaud. Não é casual que Nietzsche tenha sido um dos primeiros grandes
admiradores de Leopardi fora da Itália. Mesmo sem uma filiação direta, talvez se possa
dizer que Leopardi foi um dos pais daquela contestação da ordem existente há algumas
décadas cujo grito de guerra foi: “uma sociedade que aboliu a aventura converte a
abolição desta sociedade na única aventura possível”.
A negatividade radical, armada com todos os argumentos que lhe proporcionou
aquela suma da filosofia que foi a especulação hegeliana, se verificou graças ao ardor
subversivo liberado pelo sujeito moderno. O que distingue uma tal negatividade das
diversas perspectivas de transformação do mundo mediante revoluções ou reformas é a
presença de uma perspectiva individual, subjetiva e imediata, de uma aspiração à
felicidade aqui e agora, em lugar do sacrifício em nome de uma causa gloriosa que
algum dia haveria de dar seus frutos.

A combinação da dialética hegeliana com a rebelião de quem vivia na própria pele


um presente experimentado como inteiramente negativo produziu personagens notáveis
que colocaram a negação radical a serviço do desejo de uma mudança imediata e total.
Um deles concebia tal mudança como um rechaço de qualquer tipo de sociedade e de

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tudo o que estivesse por sobre as próprias pessoas, enquanto para outro destes
personagens, significava a dedicação de corpo e alma à revolução social. Refiro-me a
Max Stirner e Mikhail Bakunin. Ainda que os historiadores da filosofia classifiquem
ambos, e não sem alguma razão, como “hegelianos”, prevalece neles o rebelde que só
num segundo momento se faz teórico. Stirner foi um dos poucos a quem se pode chamar
efetivamente de “niilista” e que aceitava este rótulo. Sua obra mais importante, O único
e sua propriedade, começa exatamente com a mesma frase com que acaba: “Eu fundei
minha causa em nada”. Esta obra pertence à crítica social somente num sentido muito
indireto, pois Stirner se opõe imparcialmente a qualquer tipo de sociedade. Com razão
se diz que Stirner não pode ser comparado nem a Marx nem a Bakunin ou os
anarquistas, mas a Pascal, Dostoievsky e Nietzsche ou, ainda melhor, ao Marquês de
Sade e Antonin Artaud.11

Em Bakunin, ao contrário, uma reflexão desordenada, mas apaixonada, se


combina com o ativismo frenético e o compromisso revolucionário. Também ele recebeu
com freqüência o epíteto de “niilista”, por mais que não tivesse nada além de contatos
fugazes com os niilistas russos em sentido rigoroso e que, por fim, renegasse o
terrorismo de Nechaiev. Seus escritos gozam, no entanto, de ampla difusão
(especialmente em países como a Espanha), mas ele não era propriamente um teórico e
seus escritos que surgiram com freqüência a partir de cartas, foram conseqüência direta
de uma negatividade vivida com paixão. É conhecida a anedota de que Bakunin, ao
passar diante de uma casa em obra, mandou parar o carro em que viajava e se pôs a
ajudar os trabalhadores. Essa unidade de teoria e paixão prática é o motivo pelo qual em
alguns meios ele segue gozando de tanta popularidade. Bakunin segue sendo um dos
exemplos mais elevados do encontro do negativo “existencial” com o negativo
“hegeliano”. Por isso Marx enviou-lhe um exemplar de seu O Capital com uma
dedicatória ao “velho hegeliano”. Para dizer a verdade, as referências a Hegel que
podemos encontrar nos escritos de Bakunin não são freqüentes, mas são bastante
significativas. Em Estatismo e Anarquia se lê:
Mas o outro partido, o dos chamados hegelianos revolucionários, acabou sendo mais
conseqüente e incomparavelmente mais audaz que o próprio Hegel; arrancou a seus
ensinos a máscara conservadora, pondo assim a desnudo a negação cruel que está na
essência de seus escritos. Essa tendência encabeçada pelo célebre Feuerbach, quem levou

11 Châtelet, F. (ed.) La philosophie et l’histoire. Paris: Hachette, 1973.


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a conseqüência lógica até a negação total não apenas de qualquer mundo divino, mas
também de toda metafísica... Durante os anos 1830-40 prevaleceu a opinião de que uma
revolução que seguisse à difusão do hegelianismo, que está se desenvolvendo no sentido
de uma negação completa, teria de ser incomparavelmente mais radical, mais profunda,
mais impiedosa e de maior alcance destrutivo que a revolução de 1793.12

Sobre os jovens hegelianos de Berlin, o círculo dos chamados “livres”, Bakunin os


menciona como o “primeiro círculo de niilistas alemães, cuja atitude conseqüente até o
cinismo superava mesmo a dos niilistas mais fervorosos da Rússia”.13

Enquanto se formava o movimento operário internacional, que objetivamente


ajudou a sociedade capitalista a alcançar sua forma madura, nas margens seguiram
existindo aqueles que reclamavam uma vida inteiramente distinta aqui e agora.
Enquanto, mesmo no movimento anarquista, esse impulso negativo se debilitava,
sobreviveu, por outro lado, nas vanguardas artísticas que se dedicaram a autodissolução
da expressão artística. Como se sabe, entre 1860 e a Primeira Guerra Mundial, as artes
levaram a cabo a mais radical “desconstrução”, por assim dizer, de todos os valores da
cultura ocidental e anunciaram a necessidade de sua superação. Era paradigmático o
“mudar a vida” de Rimbaud, ele também um partidário entusiasta da Comuna de Paris.
Outros exemplos de negação de um tipo bastante niilista se encontram em seu
contemporâneo Lautréamont e igualmente no autor de Ubu roi, Alfred Jarry. Era
inevitável que se produzisse um encontro entre a rebeldia que se expressava na
decomposição da arte e na exigência de transformar o mundo no plano prático,
exigência que fazia valer um movimento operário que então já carecia de toda dimensão
subjetiva. O primeiro resultado desse encontro foi o dadaísmo, especialmente em sua
versão berlinense, que estava vinculada à revolta do proletariado alemão de 1918 a 1920.
No dadaísmo a negatividade se manifesta novamente em toda sua pureza, beirando o
niilismo: De toda a cultura, a política, a vida, não fica mais do que um grito infantil:
“Dada”. Os dadaístas expressaram uma recusa de todos os valores tal como nunca se
havia visto, mas também a esperança da transformação. Com o refluxo da onda
revolucionária, quando a experiência dadaísta conduz em Paris à formação do
movimento surrealista, é retomada uma maior reflexão e, não por acaso, reaparece

12 Bakunin, M. Staatlichkeit und Anarchie. Berlin: Ullstein, 1979, pág. 558.


13 Ibid, pág. 570.
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também a dialética hegeliana. Em 1922, antes ainda do início oficial do movimento


revolucionário surrealista, seus fundadores, André Breton e Louis Aragon, falam do:

Homem que para Mallarmé, Villiers de L’Isle-Adam, Jarry e, sobretudo, para Dada foi o
verdadeiro messias: Hegel, cujo ‘idealismo absoluto’ exerce hoje em dia uma influência
enorme, até ao ponto em que tanto os partidos conservadores quanto os mais avançados
o reivindicam por igual. Estamos tentados a oferecer aqui um resumo desta doutrina que
nos é familiar e na qual se encontra a origem o Coup de dés (De Mallarmé), a Eve future
(de Villiers de L’Isle-Adam), as Spéculations (De Jarry), a vida de Jacques Vaché.
Entretanto, bastará recordar que até para explicar as bufonadas de certas manifestações
dadaístas mesmo os jornalistas mais toscos deram com Hegel.14

Os surrealistas, ao menos os encabeçados por Breton, dedicaram-se a uma


grande série de intervenções escandalosas mediante as quais tratavam de ventilar a
repulsa que lhes inspirava a sociedade em que se achavam. Atacavam todas as vacas
sagradas como o patriotismo, assim como os modos mais profundos de pensar, perceber
e sentir. Organizaram questionários perguntando “se o suicídio é uma solução” e
defenderam um parricida, incitaram os soldados à deserção e insultavam os vigários nas
ruas, escarneciam o escritor recém falecido Anatole France e instigavam os doentes
mentais a atacar os psiquiatras, para citar apenas alguns exemplos. Uniam a vida
boêmia com chamamentos, se bem que excessivamente genéricos e às vezes retóricos, à
revolução que até então nunca se tinha ouvido num grupo de artistas. Em uma
proclamação de 1925, intitulada La révolution d’abord et toujours, lê-se o seguinte:

acreditamos na necessidade inevitável da libertação total... queremos... proclamar nosso


distanciamento absoluto... das idéias que formam a base da civilização européia, não
muito longínqua todavia, e de toda civilização baseada nos insuportáveis princípios da
necessidade e do dever... Certamente somos bárbaros, uma vez que uma certa forma de
civilização nos causa repulsa... Não aceitamos as leis da Economia nem da troca, não
aceitamos a escravidão do trabalho, e num âmbito mais amplo, declaramos guerra à
História. O estereotipado dos guetos, os atos, as mentiras da Europa concluíram seus
ciclos de repugnância (Spinoza, Kant, Blake, Hegel, Schelling, Proudhon, Marx, Stirner,
Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Nietzsche: esta enumeração é por si só o início de
vossa ruína). Agora lhes toca aos mongóis acampar em nossas vagas.15

Nota-se aqui não só o predomínio do elemento negador sobre o positivo ou


“propositivo”, mas também a grande clareza à hora de discernir os próprios
antepassados: foi efetivamente Spinoza quem declarou pela primeira vez que “omnis

14 Breton, A. Oeuvres, vol. I Paris: Gallimard, 1988, pág. 632 (Projet pour la bibliothèque de Jacques
Doucet).
15 La Révolution surrèaliste, n. 5.

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determinatio est negatio”, como recordava também Hegel 16; e foi em Kant e Schelling
que estava pensando o inventor do termo “niilista”, Friedrich Heinrich Jacobi (1799),
autor de inclinações místicas.

Os surrealistas eram capazes de levar a negação até o paroxismo, como na


conhecida frase do Segundo Manifesto do surrealismo de Breton, segundo a qual “o ato
surrealista mais simples consiste em sair à rua, revolver em punho, e disparar
aleatoriamente contra o maior número de homens possível”, uma vez que “o
surrealismo não teme erigir em dogma a revolta absoluta, a insubmissão total, a
sabotagem sistemática”17. No entanto, como já dissemos, a revolta a qualquer preço não
desdenha a contribuição hegeliana. Conquanto o emprego freqüente de fórmulas
hegelianas nos escritos surrealistas dê a impressão de que se trata de mero ornamento
estilístico, é verdade, no entanto, que Breton recorre à dialética como garantia do
projeto surrealista de unificar “a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o
futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo”.18 Em uma entrevista de 1950,
Breton caracterizou com grande lucidez a importância que teve o surrealismo para a
crítica social radical:

As duas necessidades que eu tinha sonhado uma vez em unificá-las, ‘transformar o


mundo’, segundo Marx, e ‘mudar a vida’, segundo Rimbaud, no transcurso dos últimos
quinze anos se dissociaram e se tornaram cada vez mais opostos; mas eu não abandono a
esperança de que voltem a se encontrar. O grande obstáculo que se opõe atualmente ao
seu encontro é o stalinismo. Ao falsificar todos os valores revolucionários, o stalinismo
cortou a ponte que, desde Saint-Simon e de Fourier, as mantinha unidas. 19

Aqui fica evidente tanto o papel que jogaram os surrealistas no trabalho de


reconciliação dos dois filões da negatividade moderna como também sua proximidade
com a agitação situacionista. A Internacional Situacionista constitui algo assim como a
summa de todas as experiências mencionadas até agora. Existiu de 1957 até 1972 e
esteve fortemente marcada pela figura de Guy Debord, que anteriormente havia
impulsionado em Paris um pequeno grupo chamado Internacional Letrista.

Os letristas e depois os situacionistas, que se concebam inicialmente como uma

16 Hegel, Wissenschaft der Logik, op. cit., pág. 121.


17 Breton, A. Manifestes du surrèalisme. Paris: Gallimard, 1988, pág. 74.
18 Ibid., págs. 72 e segs.
19 Breton, A. Entretiens. Paris: Gallimard, 1969, pág. 278.

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espécie de renovação do surrealismo primitivo, aspiravam superar a arte e transladar


seus conteúdos no sentido da “construção integral da vida”. Dos “comportamentos
experimentais”, a psicogeografia, a deriva e o “urbanismo unitário” do primeiro período,
passaram logo a uma crítica social integral centrada no conceito de “espetáculo”. O
espetáculo é a transformação de toda experiência vivida em imagens que se contempla
passivamente, segundo exposto, sobretudo, no livro de Debord A Sociedade do
Espetáculo, publicado em 1967. Não se tratava simplesmente de uma crítica dos mass
media, e sim de uma teorização elaborada em bases hegelianas e marxianas, do
fetichismo da mercadoria que se transformou em uma mera imagem. Se “a primeira fase
da dominação da economia sobre a vida engendrou, no modo de definir toda realização
humana, uma evidente degradação do ser ao ter”, agora passamos do ter ao parecer. 20
Os situacionistas não se limitavam à teoria, praticando uma intensa agitação, muito
além da política tradicional, a favor da “revolução da vida cotidiana” e da liberação de
todas as paixões, a despeito das pressões sociais. Anteciparam em grande medida o
espírito de aventura do maio de 1968, no qual participaram ativamente; revolta que foi
efetivamente o grande resultado do encontro da tradição “hegeliana” em sentido lato, a
crítica racional da sociedade, com o desejo de uma vida inteiramente distinta da que era
experimentada pelos sujeitos individuais. Nunca antes uma insurreição de tal dimensão
havia tido em tal grau o caráter de uma rebelião existencial coletiva.21

Quando a Internacional Situacionista fez em 1972 o balanço de suas atividades,


contava entre os seus êxitos ter “sabido fazer a parte subjetivamente negativa do
processo, seu lado mau, começar a entender sua própria teoria desconhecida”, posto que
“a Internacional Situacionista pertence ela mesma a este lado mau” 22. Devemos
recordar, entretanto, que aqui o negativo é entendido no sentido hegeliano, como
“negação da negação” e passagem ao estado seguinte.
No entanto, Debord causava forte impressão também como personalidade, de

20 Debord, G. La société du spectacle, Paris, 1967, af. 17.


21 Para mais detalhes acerca dos situacionistas, devo remeter ao meu livro sobre Debord. [Edição
brasileira: Jappe, A. Guy Debord, Petrópolis: Vozes, 1999 – N. d. T.]. Aqui convém avaliar o quão
negativo ou niilista era um movimento que se orgulhava de ser o mais extremista de todos e de propor a
única crítica total da sociedade contemporânea, com a qual os situacionistas tinham rompido inclusive
no plano pessoal (recusa do trabalho e dos meios habituais de debate intelectual etc.).
22 Debord, G/ Sanguinetti, G. La veritable scission dans l’Internationale. Paris: Champ Libre, 1972, págs.

14 e segs.
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cuja fascinação parece tomar parte seu papel de “príncipe das trevas”. Debord chegou a
Paris aos 20 anos, em 1951, e logo em seguida sentiu-se atraído pelo recém formado
ambiente letrista, outro grupo animado pelo espírito de negação radical que resgatara e
radicalizara certos aspectos do dadaísmo e do surrealismo, sobretudo a intenção de
reduzir a poesia às letras puras. Mas antes de tudo, se tratava de um ambiente de
extrema oposição a todos os valores admitidos. Muitos anos depois, em 1978, Debord
ainda falava com entusiasmo daqueles “demolidores”, inteiramente dedicados à negação
vivida e existencial:
Havia naquele tempo nos bancos de areia à margem esquerda do rio [...] um
bairro onde tudo era decidido localmente. É comum em períodos sacudidos por grandes
mudanças, a pessoa, mesmo a mais inovadora, ter muita dificuldade durante algum
tempo para se livrar de muitas idéias antiquadas, tendendo a reter pelo menos algumas
delas, achando impossível rejeitar totalmente, como falsas e inúteis, afirmações que são
aceitas universalmente [...] Porém, é preciso acrescentar que [...] tais dificuldades
acabam logo superadas e um grupo das pessoas começa a fundar sua real existência em
uma rejeição deliberada daquilo que é aceito universalmente, e com total indiferença
para com as possíveis conseqüências. 23
Debord explica que aqueles indivíduos criam só e abertamente em que “nada é
verdade, tudo está permitido”: “Não existia nada acima de nós que pudéssemos
considerar digno de estima... Para quem pensa e age desta maneira, não há problema
algum em escutar por longos momentos aqueles que acham algo bom nas condições
existentes, ou mesmo algo meramente tolerável”.24 Ainda assim, é significativo que
Debord tenha se distanciado de todo niilismo abertamente assumido. Na revista
Internationale Lettriste de 1952 podemos ler o seguinte: “Não há niilistas, mas somente
impotentes”25; e no número subseqüente da mesma revista se encontra um breve artigo
de Debord intitulado Pour en finir avec le confort nihilist. Em 1957, Debord escreve, em
retrospectiva, na revista Potlatch: “Cabe observar, portanto, que certo niilismo
satisfeito, que era majoritário na Internacional Letrista até as expulsões de 1953, se

23 Debord, G. In girum imus noctec et consumimur igni (filme de 1978). Paris: Gérard Lebovici, 1990,
págs 33 e segs.
24 Ibid, Idem.
25 Em Berrébr, G. (ed.), Documents relatifs à la fondation de l’Internationale Situationniste. Paris: Allia,

1985, págs. 155 e segs.


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prolongou objetivamente nos excessos de sectarismo que contribuíram para perverter


algumas de nossas decisões até 1956”. 26 Debord também afirmou que ele e seus amigos
podiam ser tomados como dadaístas, mas somente na medida em que representavam
um “dadaísmo positivo”.27
Foi exatamente o desejo de sair da pura negatividade que levou Debord a
elaborar uma teoria que se pretendia oposta à sociedade do espetáculo, essa “negação
visível da vida”28, como ela a chamava, opondo-se à vida vazia e tediosa, como negação
revolucionária e acesso aqui e agora à plenitude da vida verdadeira. A nova onda
revolucionária anunciada pelos situacionistas é também herdeira da arte que, como
disse Debord, “desde o romantismo até o cubismo é, em última instância, uma arte cada
vez mais individualizada da negação, que se renova perpetuamente até chegar à
desagregação e à negação consumada da esfera artística”.29 O mesmo estilo
revolucionário situacionista, baseado no détournement, a reutilização de elementos já
existentes, mas com uma função diferenciada, (ou seja, uma espécie de anti-citação),
não é segundo Debord, “uma negação do estilo, mas um estilo da negação”. 30 Com
efeito, “a única que conserva o sentido da cultura é a sua negação real”.31

Parece, enfim, que não encontramos o niilismo em nenhum lugar. Ainda assim,
chamar de “niilista” a crítica social radical é algo mais do que uma mera reação
defensiva. Para ser exato, não é nada menos que uma distorção da verdade: niilista é a
própria sociedade moderna, e isso por motivos que vão muito além do quanto indicaram
Nietzsche ou Heidegger. A sociedade moderna é niilista porque o nada, a carência de
fundamentos, é o núcleo de seu modo de produção. Quando não se produz para o valor
de uso, mas unicamente para o valor de troca, quando o trabalho não serve para
satisfazer nenhuma necessidade concreta, mas somente para fabricar quaisquer objetos
destinados ao mercado (o que Marx chamou de “trabalho abstrato”), então a abstração,
o puramente quantitativo, o predomínio da forma - e concretamente a forma-
mercadoria - sobre qualquer conteúdo determina o conjunto da vida social. O valor de

26 Potlatch 1954-1957, reimp. Paris: Gérard Lebovici, 1985, pág. 228.


27 Ibid., pág. 173.
28 Debord, G. La société du spectacle, cit., af. 10.
29 Ibid., af. 189.
30 Ibid., af. 204.
31 Ibid., af. 210.

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troca, a simples quantidade de trabalho social incorporado à mercadoria, é o triunfo da


quantidade, da abstração da qualidade. Hegel já sabia que “fazer valer as abstrações no
mundo real significa destruir a realidade”. 32 O valor de troca não é um princípio “pleno”
que pode criar a sociedade à sua medida, e sim uma potência destruidora que conduz à
subordinação dos seres humanos, da natureza e da própria produção material, à
necessidade de acúmulo incessante do valor de troca; cuja realização, por outro motivo,
qual seja, em função do aumento da produtividade, se torna cada vez mais difícil. A
contradição entre a riqueza material concreta e a forma vazia pela qual esta deve passar
talvez tenha alcançado hoje em dia um estágio decisivo. O certo é, de todo modo, que a
forma-mercadoria, após um período de incubação que durou aproximadamente três
séculos, conquistou rapidamente a sociedade na época das revoluções burguesas e da
revolução industrial. Explica-se, deste modo, a irrupção repentina do negativo em suas
diversas variantes na cultura dos primeiros decênios do século XIX: esta representava
uma constatação crítica do desmoronamento dos fundamentos tradicionais da
sociedade, mas também uma espécie de mimésis desse processo, isto é, sua reprodução
no pensamento e na vida; sobretudo porque a desaparição dos velhos vínculos sociais, a
superação da “plenitude” da época pré-moderna ou feudal, também era vivida durante
muito tempo como uma libertação.

Desse ponto de vista, um elemento niilista consciente podia efetivamente fazer


parte da crítica social. Era muito compreensível que em certos períodos o prazer da
destruição prevalecesse sobre a exigência de reconstruir. Contudo, o mesmo que Max
Horkheimer demonstrou acerca do parente e antepassado do niilismo, o cepticismo, 33
vale também para a negação como fim em si mesmo, que de uma função ao menos
parcialmente crítica passa a um papel completamente funcional ao sistema em relação
ao qual pretende distanciar-se – na medida em que coloca no mesmo saco este sistema e
todas as tentativas de transformá-lo.
Neste século, o niilismo inerente à sociedade da mercadoria abandonou sua fase
embrionária, que só podemos detectar mediante a análise teórica realizada por Marx
sobre a forma-mercadoria. Agora, ao contrário, ele aparece em plena luz do dia. O

32 Hegel, G.W.F. Lecciones de historia de la filosofia, cit. em Krahl, H.J. Konstitution und Klassenkampf.
Frankfurt a. M.: Verlag Neue Kritik, 1971.
33 Horkheimer, M. Montaigne und die Funktions der Skepsis (1938), em Gesammelte Schriften, vol. IV.

Frankfurt a M.: Fischer, 1988.


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capitalismo produz devastações e “negações” as quais nem mesmo os niilistas mais


autênticos teriam sido capazes de imaginar. Stirner teria achado amoral o moderno
sujeito atomizado da concorrência. As esperanças que Leopardi depositava em uma vida
breve e insegura, como condição para torná-la mais apreciável, tornaram-se realidade
de um modo muito pouco heróico ou antigo. Também é comum definir o nazismo, não
sem razão, como uma “revolta do niilismo”. Não é casual que Marx tenha previsto, em
seus primeiros esquemas de trabalho, terminar sua crítica da economia política, o futuro
O Capital, com um capítulo sobre “o apocalipse”.34 Toda a crítica marxiana da economia
política é uma teoria da crise e uma previsão de seu colapso final, por mais que os assim
chamados marxistas tenham menosprezado esse ponto nodal de sua teoria. Hoje em dia,
podemos tranquilamente abandonar toda negatividade radical à desordem imperante,
que afinal sabe praticá-la melhor que os melhores niilistas. O que nos faz falta é, como
dizia Hegel, a negação da negação ou – para dizê-lo com Averroes – a destruição da
destruição.

[Texto publicado na revista Mania, nºs 4-5-6.


Tradução de Luis Bredlow.
Tradução para o português de Marcos Barreira.]

34 MEGA II, 2, pág. 14.


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Terão os situacionistas sido a


última vanguarda?

Anselm Jappe

Hoje em dia está na moda apresentar os situacionistas como a “última vanguarda


artística”. Afirmação absurda (a menos que ela se aplique a interesses banais) que
pretende estabelecer uma ligação entre os situacionistas e outras pretensas vanguardas
dos anos 1960, tais como o Fluxus ou o Happening. Na verdade estes foram ignorados,
por vezes desprezados, pelos situacionistas. Outros acreditam poder passar a bandeira
de vanguarda aos movimentos artísticos atuais ou poder vender, na qualidade de
novidades sempre interessantes, os elementos singulares da produção situacionista dos
primeiros anos, como o détournement, a deriva ou a psicogeografia, agora arrancados
do seu contexto.
Por outro lado, caracterizar os situacionistas como a “última vanguarda” contêm
uma verdade involuntária. Sua história, ou pelo menos a de Guy Debord, levou à
conclusão lógica a trajetória histórica das vanguardas. Ela coloca um ponto final e
mostra ao mesmo tempo a impossibilidade de uma vanguarda na atualidade. Ela faz
compreender que a vanguarda não é uma categoria supra-histórica, eterna, não mais
que a própria arte, mas que ela pertence a um determinado momento do
desenvolvimento da sociedade capitalista.
Sabe-se que Guy Debord nunca almejou ser um artista no sentido habitual do
termo e menos ainda um teórico da estética. O que ele visava era a superação da arte e
sua realização na vida. Ele a enunciou como programa social e a executou, em larga
medida, na sua própria vida. Mesmo a Internacional situacionista e suas ações,
incluindo Maio de 1968, deviam ser uma espécie de obra de arte. Nesse caso, Debord
concluiu efetivamente o ciclo das vanguardas iniciado na segunda metade do século
XIX. Se autoliquidar para dissolver-se na vida sempre foi a pretensão das vanguardas.
Já Kant e Hegel afirmaram que a arte tinha por missão operar a mediação entre o

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sentido e a razão, a forma e o conteúdo, a natureza e o homem, o indivíduo e a


sociedade. À arte foi suposto poder reconciliar esses aspectos e juntar o que estava
separado. Para Hegel a arte é uma alienação do Espírito, destinada a retornar no final à
unidade superior que é o próprio Espírito. Certamente os artistas modernos não tiveram
a intenção de seguir os preceitos desses filósofos ou de outros pensadores. No entanto,
quando a arte refletia sobre sua própria função ela a formulava geralmente como uma
tentativa de se unir à vida e anular a separação das esferas que se acentuava cada vez
mais no seio da sociedade capitalista. A arte era destinada a representar a subjetividade
pura, a livre criação e o sujeito dominando seu mundo. Porém, era inevitável entrar em
conflito com o que parecia a real negação da subjetividade operada pela lógica da
produção moderna.
Esta abordagem reúne as formas mais diversas da arte moderna. A aspiração de
reconduzir a arte na vida não se acha somente no surrealismo e nas outras correntes que
se pode chamar de românticas, mesmo se lá elas são mais visíveis. Encontramos esse
desejo igualmente em correntes opostas, entre elas o construtivismo russo, assim como
em todas as correntes do funcionalismo: em Mondrian, na Bauhaus, etc. Todas essas
correntes queriam terminar com o estatuto separado da arte, para que ela mudasse a
realidade da vida capitalista, submissa unicamente ao critério da rentabilidade
econômica – mesmo que alguns imaginassem essa união entre arte e vida como uma
revolução social inspirada pela poesia, enquanto outros a concebiam como aplicação dos
princípios artísticos à produção em série de arranha-céus, toalhas de mão e xícaras de
café. Disso resta que tais vanguardas tenham como denominador comum a vontade de
não fazer mais somente arte ou de não mais fazer da arte o todo. Este fato não é
desmentido pelo verdadeiro culto da arte ao qual se abandonavam numerosas de suas
correntes, às vezes com acento quase religioso. A hipervalorização da arte decorre do
fato das vanguardas estarem conscientes da pobreza que reveste a vida real sob o
capitalismo. Ela visava assim, ao menos inicialmente, atenuar a realidade com a ajuda
de valores artísticos. Isso é uma aspiração tipicamente moderna. Tal objetivo não é
próprio nem da arte das sociedades pré-capitalistas, nem da arte acadêmica. Chegar ao
seu próprio desaparecimento é o que resta, portanto, inscrever, como gostam de dizer
hoje, no “código genético” das vanguardas.

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Os surrealistas foram os artistas que proclamaram de maneira mais consciente


essa necessidade de autosuperação da arte. Sabe-se, no entanto, que eles aceitaram
muito rapidamente que sua revolta se tornasse objeto de museu e recaísse novamente
na “arte”. Os situacionistas, tomando explicitamente a aspiração inicial dos surrealistas,
tentaram transpor definitivamente o Rubicão: eles recusaram o status de artistas e
procuraram fomentar uma revolução social que estivesse à altura das promessas
contidas na arte moderna.
Para motivar a necessidade de ultrapassar a arte, Debord recorreu (ao contrário
das teorias vanguardistas anteriores) à crítica marxista do fetichismo da mercadoria.
Como se sabe, Debord chamou de “espetáculo” o estado contemporâneo do fetichismo
da mercadoria. Contra todas as recuperações pós-modernas e estetizantes desse
conceito, convém sublinhar que, para Debord, o espetáculo é uma forma da mercadoria,
no sentido de Marx. No espetáculo, a mercadoria se apresenta como algo dado e leva o
espectador a uma permanente contemplação passiva. Trata-se de superar (aufheben no
sentido hegeliano) a arte porque ela também é uma forma de espetáculo que se
contempla passivamente. Ela é, pois, uma forma de fetichismo. Mas à medida que a arte
se torna um projeto que visa a transformação consciente da vida, ela assume uma
função claramente “desfetichizante”.
No século XX, duas outras estéticas importantes de inspiração marxista
atribuíram à arte uma função “desfetichizante”: a de Theodor W. Adorno e a do último
Lukács. Em Adorno, é, sobretudo na arte abstrata que aparece tal função. A arte deve
abandonar a crença ilusória segundo a qual sob o capitalismo o homem seria ainda um
sujeito. Mesmo que isso pareça paradoxal, é graças a uma citação de Bertolt Brecht que
Adorno conseguiu explicar essa idéia:
O que torna a situação tão complicada é o fato de que a simples 'réplica da realidade' nos
informa menos do que nunca sobre essa realidade. Uma fotografia das fábricas Krupp ou
AEG não diz quase nada sobre essas instituições. A realidade autêntica se tornou
funcional. A reificação das relações humanas, por exemplo, a fábrica, não mais se
manifesta.1

Para Adorno, o fetichismo (a subordinação do indivíduo às coisas) constitui um


fenômeno real. A arte deve exprimir essa dominação exercida pelas forças abstratas, a

1 Citado em Th. W. Adorno, “Lecture de Balzac”, in: Notes sur la littérature, trad. S. Muller, Paris,
Flammarion, 1984.
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perda de sentido, a destruição da linguagem. Mas ela deve fazê-lo utilizando-se de todos
os meios artísticos existentes. Somente assim a arte estará à altura das forças produtivas
atuais e poderá deixar entrever um outro uso possível. É nisso que reside, segundo
Adorno, o lado emancipatório da arte moderna. Este indica a possibilidade de uma
relação diferente, não repressiva, entre o sujeito e a natureza, e subtrai a obra de arte do
imperativo categórico da sociedade mercantil segundo o qual todas as coisas devem ser
“úteis” e participar da troca. De tal modo, a arte moderna, por ser abstrata e
aparentemente distante da experiência vivida é, na verdade, segundo Adorno, sempre
ligada ao desenvolvimento da realidade.
Para Lukács, ao contrário, a arte que se pretende “desfetichizante” – deve ser
“realista”, e não abstrata, porque ela tem por tarefa recolocar o homem no centro da
sociedade, enquanto a aparência fetichista o faz acreditar que ele já não se encontra
mais nesse centro. Sua concepção de fetichismo é, deste modo, diametralmente oposta a
de Adorno: o fetichismo, no sentido de Lukács, atribui falsamente as ações dos
indivíduos e dos grupos sociais às forças impessoais, subtraídas do controle e da
responsabilidade humana. Por conseguinte, a arte, por ser “desfetichizante”, deve ser
também “antropomorfisante”. Ela deve mostrar que, sob a superfície reificada, é o ser
humano que age. Como se sabe, o grande exemplo citado por Lukács é Balzac. A arte
tem igualmente por missão revelar que a falta de sentido, o isolamento e o absurdo aos
quais o homem moderno vê-se exposto não constituem a realidade mais profunda, mas
uma aparência fetichista atrás da qual se escondem os interesses de classe. Os mesmos
autores que, para Adorno, representam a verdadeira crítica do fetichismo como Beckett
ou Kafka, mas também as pinturas expressionista ou surrealista (em menor medida),
são, aos olhos de Lukács, o auge da fetichização (mesmo tendo mudado de opinião
quanto à obra de Kafka).
As posições estéticas diferentes de Debord, Adorno e Lukács estão estreitamente
ligadas às suas diferentes interpretações do conceito de fetichismo. Em Lukács, o
fetichismo é somente uma forma de falsa consciência, uma falsa representação de
mundo que é preciso substituir por uma visão justa, que ele denomina “realista”. Para
Adorno e para Debord, as relações humanas são realmente falsificadas. O fetichismo
transformou a natureza da vida social. É preciso denunciar o escândalo em lugar de ver
nele uma simples mistificação.
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Às diferentes interpretações do fetichismo correspondem avaliações diferentes do


período do pós-guerra. Segundo Adorno, a intervenção do Estado e dos grandes
monopólios a partir dos anos 30 bloqueou a dinâmica interna do capitalismo: as forças
produtivas não se encontram mais em contradição com as relações de produção. Para a
teoria crítica de Adorno, a situação política, econômica e social está completamente
congelada e só resta a arte como única liberdade e única esperança. Para os
situacionistas, o capitalismo do pós-guerra conhece uma evolução rápida, e o momento
do fim da sociedade de classes parece aproximar-se, porque o novo proletariado vai
parar de suportar seu papel de espectador passivo. Ele colocará um fim à arte, assim
como a todas as outras alienações. Para Lukács, enfim, a sociedade burguesa representa
uma etapa importante no desenvolvimento da humanidade, embora esteja em declínio e
destinada a sucumbir na concorrência com os países socialistas.
Nenhuma dessas concepções parece justa, porque nenhuma tem em conta a
dinâmica interna que conduz o capitalismo à sua crise: essencialmente, a concentração
sempre mais aguda entre a forma abstrata (o valor das mercadorias) e o conteúdo
concreto. O modo de produção capitalista se baseia na exploração do trabalho vivo e, ao
mesmo tempo, ele deve fazer todo possível para reduzir este trabalho vivo utilizando as
máquinas: não há solução para uma tal contradição que não deixou de crescer durante
todo o século XX. No entanto, nem para Adorno, nem para Lukács, nem para Debord, o
capitalismo está condenado por sua própria dinâmica interna a entrar um dia em uma
crise profunda. Eles vêem no capitalismo um sistema estável, ao qual só a intervenção
de um sujeito externo poderá colocar fim. Esta intervenção parece possível a Lukács e
Debord (mesmo que seja de maneira fundamentalmente diferente), enquanto Adorno
praticamente abandona toda esperança de vê-la colocada em marcha. Eis porque a arte
moderna que Adorno faz o elogio corre o risco de simplesmente reproduzir a vida e de
embelezá-la – é exatamente isso que os situacionistas reprovavam nas tendências
artísticas de seu tempo. Adorno cita sempre Beckett e Kafka como autores exemplares,
porque eles denunciam uma situação insuportável – mas hoje esses autores aparecem
mais como a consciência infeliz e impotente de uma miséria presente. Assim, mesmo a
arte negativa pode tornar-se um ornamento e um monumento erguido à gloria da
resignação.

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Por outro lado (e contrariamente às esperanças de Debord), a evolução social


não ocorreu no sentido de uma superação da arte. O espetáculo mostrou que era capaz
de resistir aos assaltos (como em 1968) e conseguiu em seguida ascender às gerações
novas que nunca conheceram outra coisa a não ser o próprio espetáculo. Durante os
anos 1950 e 1960 (os anos de agitação situacionista), a arte, seja ela moderna ou
clássica, parecia uma coisa bem modesta em relação à possibilidade de realizar seu
conteúdo na vida cotidiana. Mas o espetáculo que terminou por triunfar está ainda
muito aquém do nível da arte tradicional. Em suas obras tardias, Debord começa a
apreciar a arte do passado: ele lamenta que não haja mais um Tucídides ou um
Donatello, lamenta a destruição de pinturas e construções antigas e revela seu gosto pela
métrica e pelos autores clássicos. Não se deve ver nesse interesse pela “grande” cultura
uma simples evolução pessoal de Debord e menos ainda uma retratação de suas
opiniões anteriores. Ele apenas se dá conta da inutilidade de se prosseguir a destruição
artística dos valores herdados.
O capitalismo é uma “sociedade sem qualidades”, uma sociedade que não pode
ter uma cultura própria. Seu fundamento é o valor, a simples quantidade de trabalho
abstrato representada numa mercadoria, sem que se leve em conta sua utilidade ou sua
beleza. O capitalismo tem por único objetivo acumular tautologicamente o trabalho
morto, porque ele é estruturalmente indiferente a todo conteúdo. Daí a impossibilidade
de uma cultura propriamente capitalista. O capitalismo pode somente (e mesmo isso
apenas em sua fase inicial, fundamentalmente no século XIX) dar uma expressão mais
elaborada aos conteúdos derivados das sociedades que o antecederam. A modificação de
todas as condições de vida que ele produziu e a multiplicação dos meios técnicos
aumentaram as possibilidades de expressão, mas os conteúdos a exprimir (a riqueza da
experiência humana) só poderiam sair do mundo não capitalista. A arte então conheceu
um desenvolvimento intenso, tanto que o novo princípio capitalista estava ainda em
conflito com os resíduos das épocas anteriores. A arte do século XIX vivia uma tensão
entre a tendência social à abstração e os indivíduos que ainda não estavam
completamente submissos. Logo depois que o capitalismo começou a “coincidir com seu
conceito”, para utilizar uma expressão hegeliana, o significativo desenvolvimento dos
meios tornou-se tautológico, um fim em si mesmo, exatamente como a produção do
valor. O capitalismo realizou o fim da arte, da mesma maneira que ele tinha, em outra
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ocasião, criado a arte como esfera separada.


Pode ser uma função explicitamente crítica da arte ela mesma não ser mais
necessária hoje. A cada dia nós testemunhamos como a sociedade capitalista entra em
colapso por si própria. No presente, é o problema das alternativas que é colocado: o que
virá quando o capitalismo entrar em colapso, deixando atrás dele um amontoado de
ruínas? Trata-se de salvar uma base para os desenvolvimentos futuros, além do niilismo
da sociedade atual, para que o capitalismo não arraste a sociedade inteira para o seu
túmulo. Então, vê-se a essência do capitalismo não somente na opressão e na exploração
econômica, mas também no empobrecimento e na destruição sócio-cultural,
demonstrando que o papel da arte moderna parece independente de suas intenções,
sendo ele nitidamente menos crítico do que se pensa geralmente.
De fato, o aspecto iconoclasta da arte moderna se revela ambíguo. O processo de
decomposição das formas artísticas, começado pelas vanguardas, acompanhou o triunfo
do capitalismo sobre os resíduos das épocas anteriores. Aquelas vanguardas que se
queriam revolucionárias acreditavam que a burguesia conservava seu poder no nível das
“superestruturas”, dos comportamentos, dos valores e da vida cotidiana. A arte se
propunha então mudar as estruturas e criar novas. Mas assim ela somente puxou para
baixo o que já ruía, como diria Nietzsche. Um homem em ruptura total com o passado e
com as tradições (que ele ignora), um homem que não segue seu pensamento racional e
lógico, mas obedece a impulsos inconscientes, indiferente à moral e separado dos laços
sociais, um homem que percebe o mundo como que sob o efeito de uma droga e vagueia
ao acaso: pode-se compreender que por volta de 1925 uma tal ideia tenha podido
fascinar aqueles que não suportavam mais a monotonia da vida burguesa. Mas esse
indivíduo que os surrealistas chamavam “desejantes” tornou-se realidade sob a forma
do indivíduo contemporâneo e de uma maneira tão cruel quanto irônica. Para se impor
na sua integridade, a sociedade mercantil capitalista tinha necessidade de um indivíduo
inteiramente “novo”, e esse homem “novo” se encontrava ao mesmo tempo no projeto
declarado de numerosas vanguardas artísticas.
Particularmente significativo dessa visão é o culto que os surrealistas, diferentes
vanguardas literárias e às vezes os próprios situacionistas, devotaram ao Marquês de
Sade, culto que nos dias atuais tornou-se banal. O repúdio de todos os valores morais
tradicionais tão fundamentais como a proibição de matar, foi considerado um ato de
253
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libertação permanente para alcançar a realização de todos os desejos. Na verdade, como


mostraram Horkheimer e Adorno na Dialética do Esclarecimento, o mundo descrito por
Sade constitui uma antecipação do sistema industrial e do sujeito moderno da
concorrência total, cuja única regra é o direito do mais forte e que está disposto a tudo
em troca de prazeres mecânicos e repetitivos. O caso do Marquês de Sade mostra
claramente que a libertação total de um sujeito fetichizado é apenas a libertação total do
sujeito capitalista.
Como se sabe, a arte e a literatura moderna não estão longe da tarefa que
tradicionalmente lhes foi atribuída: a de representar ou de imitar a natureza. Ao mesmo
tempo, as ciências não estão limitadas a imitar a natureza e começaram massivamente a
“reinventá-la”. O destacamento do “significante” em relação ao “significado” foi
apresentado como uma libertação, um desenvolvimento do espírito humano. Este
abandono da mímesis constitui sem dúvida a origem de tudo o que a arte moderna teve
de grande. Mas como ignorar que foi em conjunto com um processo durante o qual a
técnica e a ciência tornaram a natureza “supérflua”, que se afirmou o homem como
criador do seu próprio mundo, um mundo independente da natureza? Como ignorar
que os fantasmas de todo poder e manipulação são um traço comum da arte moderna e
da técnica? Por volta de 1914, o poeta chileno Vicente Huidobro, fundador do
“criacionismo”, proclamou que a poesia não queria mais servir à natureza, mas criar
árvores mais belas do que as árvores naturais. Nesta época, tal programa poderia
parecer muito poético. Hoje, ele seria visto como uma antecipação da manipulação
genética.
Quase sempre, foi dito que a poesia moderna, e a cultura moderna em geral,
compreendidas de acordo com a intenção de seus criadores, eram um protesto contra o
progresso “sem alma” (interpretação conservadora) ou contra o capitalismo
(interpretação de esquerda). Nos dois casos, a poesia e a cultura modernas teriam
representado uma oposição à evolução tecnológica e econômica. Mas o que não se vê
mais habitualmente, é que a arte moderna apesar de sua atitude contestatória por vezes
radical, evolui quase sempre no interior da moldura constituída pela sociedade
mercantil, atuando freqüentemente como uma pioneira involuntária. Vê-se facilmente o

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paralelo com o marxismo do movimento operário2. O produtivismo da indústria


encontra seu prolongamento no produtivismo da poesia. O domínio da forma sobre o
conteúdo constitui igualmente o centro da cultura moderna, como na lógica do valor. O
isomorfismo entre a poesia moderna e a lógica do valor é tão claro, e sempre se admite
abertamente. Sobre esse assunto, pode-se citar o estudo do pesquisador alemão Hugo
Friedrich, Estrutura da lírica moderna3 (1956), porque se Friedrich não é mais um
defensor incondicional da lírica moderna, ele é ainda menos hostil a seu respeito. Em
algumas palavras que ele consagra à relação entre a evolução lírica e a evolução social,
se exprime a opinião corrente quanto ao caráter “contestador” da poesia moderna:
segundo ele, pode-se cair na “tentativa mais extrema” de “salvar pela ditadura do
imaginário a liberdade do espírito numa situação histórica onde o racionalismo
científico e os aparelhos do poder de ordem cultural, técnica e econômica terminam
por organizar e coletivizar a liberdade, tirando assim sua natureza própria” (p. 129).
Apesar disso, as observações de Friedrich mostram involuntariamente que a partir de
Rimbaud e Mallarmé (assim como todas as outras técnicas e procedimentos da arte
moderna: Friedrich evoca sempre Picasso), a poesia não combateu a lógica da
mercadoria e da ciência, muito pelo contrário, na verdade ela as imitou
antecipadamente. A lei fundamental da poesia moderna reside na decomposição e na
desarticulação do real para que a criação se faça, com ajuda de elementos desprovidos
de sentido e das relações entre eles, a partir das novas construções arbitrárias, que já
não correspondem mais a nenhuma experiência. Segundo Friedrich, os conceitos chave
da lírica moderna são: a deformação, a abstração, a dissonância, a desumanização, a
preferência pelo inorgânico, a admiração da beleza de cidades sem homens, a imitação
da matemática, a imaginação ditatorial, os simples jogos do espírito, a liberdade
puramente negativa, a desorientação, a tendência à crueldade, a falta de pulsões
humanas, a indiferença. Na poesia moderna, o movimento, o ritmo e a forma tornam-se
os objetivos em si. O movimento tautológico do valor, nós acrescentamos, se exprime na

2 Ao mesmo tempo, não é necessário superestimar este aspecto. A arte moderna exprimiu (muito mais
que o movimento operário da mesma época) tudo o que era refratário à lógica mercantil, como, por
exemplo, a resistência ao trabalho e à subordinação da vida às exigências da produção. Em certos
momentos, a arte era mesmo a única possibilidade de formular esta situação de mal-estar.
3 H. Friedrich, Structure de la poésie moderne, Paris, Le Livre de poche, 1999; Previamente Paris, Denoël-

Gonthier, 1976. (Orig.: Die Struktur der modernen Lyrik. Von Baudelaire bis zur Gegenwart,
Hamburg, Rowohlt, 1956).
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autoreferencialidade da arte: numa poesia cujo conteúdo é apenas ato poético


propriamente dito (como em Mallarmé) e, em geral, nos conteúdos arbitrários e
intercambiáveis que querem somente exprimir uma dinâmica que, enquanto tal, é
totalmente vazia (o que se produziu por volta de 1910 na pintura rayonista) 4. Como a
mercadoria, a poesia moderna abole todas as diferenças: entre o bonito e o feio, o alto e
o baixo, o espaço e o tempo, o interior e o exterior. O tempo e o espaço se destacam da
experiência e tornam-se completamente abstratos.
Certamente, essa afinidade entre arte moderna, ciência e indústria foi sempre
colocada em relevo, muitas vezes pelas próprias tendências artísticas (é verdade que
várias dentre elas não tinham intenção explícita de criticar a sociedade do seu tempo). A
afirmação segundo a qual a destruição das formas artísticas tradicionais constituiria por
si só uma crítica da sociedade moderna foi repetida muito mais frequentemente pela
reflexão sobre a arte do que pela arte mesma5. Na maioria dos casos a arte queria “ir
com seu tempo” e considerava vantajoso utilizar procedimentos próximos daqueles
utilizados pela ciência. A ciência e a indústria, a técnica e a vida urbana estabelecida, aos
olhos dos artistas modernos, eram dados objetivos e socialmente neutros; mesmo
quando a arte se propunha uma função crítica ela se limitava à intenção de mudar o uso
social desses dados. Em diversas correntes construtivistas a adoção de métodos
científicos não é mais espantosa. Em contrapartida, ela pode surpreender no caso de
certas correntes “românticas”, como o surrealismo, que pretendia buscar o que é
inconsciente e mágico, arcaico e primitivo. Mas os artistas dessas correntes aplicavam
também em suas obras a lei fundamental da arte moderna: isolar e recompor. Estamos
diante de um traço fundamental que é comum a todas as tendências artísticas
modernas, o que prova, além disso, que a caracterização (ou auto-caracterização) da arte
moderna como “irracional” (tanto faz se ela é enunciada como censura ou elogio) é
inapropriada: no essencial, a arte moderna fica inscrita no quadro da razão mercantil e

4 O Rayonismo é um movimento artístico russo criado pelo pintor M. Larionov e sua esposa N.
Gonchárova entre 1910-12. É reconhecido como uma das primeiras manifestações da moderna arte
abstrata (N.d. T.).
5 Autores como Mallarmé, Joyce ou Beckett mostraram muito pouco interesse pela praxis social (mesmo

levando em conta a defesa dos anarquistas feita por Mallarmé). Em autores como Rimbaud ou Picasso,
uma atitude convencional “de esquerda” ou revolucionária não tem relação íntima com os aspectos
formais de sua arte. Diferentemente, os dadaístas e os surrealistas procuraram criar conscientemente
essa relação.
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quando ela cai no irracional, trata-se geralmente do gênero de irracionalidade que


constitui o simples reverso da razão mercantil.
É possível objetar que a arte moderna não se reduzia simplesmente à lógica da
abstração social nem fechava os olhos diante dela, mas que visava a apropriação das
novas técnicas (consideradas sempre, como já afirmamos, desenvolvimentos neutros e
não elementos estruturalmente negativos) para fazer delas melhor uso. Não rejeitar
abstratamente a modernidade, mas criar uma modernidade melhor; não é somente o
objetivo declarado de certos movimentos artísticos, mas igualmente dos situacionistas:

“(...) não há liberdade artística possível antes de nos apoderarmos dos meios
acumulados pelo século XX, que são para nós os verdadeiros meios de produção artística
(...) O domínio da natureza pode ser revolucionário ou tornar-se a arma absoluta das
forças do passado” 6.

Isso se acha também na base da estética de Adorno:

“A arte é moderna graças à mímesis do que é endurecido e alienado. É assim, e não pela
negação da realidade muda, que ela se torna eloqüente (...) Baudelaire não vitupera
contra a reificação, ele não a reproduz também, ele protesta contra ela na experiência de
seus arquétipos”7.

Mas tais observações não invalidam em nada as análises desenvolvidas acima,


porque existe uma tendência em subestimar as similitudes independentes da intenção
subjetivas dos artistas.

Friedrich sublinha o caráter anti-subjetivo da poesia moderna, que passa sempre


por estranhamente subjetivo. Na verdade, o arbitrário subjetivo e o despotismo face aos
conteúdos (ao material poético) se reverte continuamente numa ausência total do
sujeito, absorvido pelo objeto. Mallarmé, sobretudo, com suas poesias etéreas sobre os
anjos, os leques e quartos vazios exprime sem nenhuma agressividade aparente a
“pulsão niilista”, o “desejo de aniquilar o mundo”, que anima a sociedade mercantil.
Este amável professor do liceu procurou desembaraçar-se do mundo objetivo tout court

6 Internationale Situationniste, I/8(1958).


7 Th. W. Adorno, Théorie esthétique, trad. M. Jimenez e E. Kaufholz, Paris, Klincksieck, 1995, p. 43.
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para trocá-lo pela linguagem pura.8 Ele vê nisso a única saída frente ao nada ontológico
que, em sua visão, representa a verdadeira forma do absoluto. Friedrich faz
explicitamente do “aniquilamento do real” uma característica de toda a lírica moderna
(p. 133). Com Mallarmé, as coisas existem somente enquanto destruídas. Ele dizia dele
mesmo: “A destruição fez minha Beatriz”, e sua criação mais conhecida foi a página
branca. Em geral, os poetas e artistas modernos proclamaram alegremente seu
programa de destruição, sempre se opondo à mentalidade “construtiva” do burguês
execrado. “A ausência do mundo” que Lukács atribuiu com agressividade, mas nunca
sem razão, à arte moderna é a conseqüência desse prévio “aniquilamento do mundo”.
As grandes utopias sempre participaram na obra destrutiva do capitalismo. A
idéia de poder impor à realidade as concepções nascidas da cabeça e de fazer “tabula
rasa” de toda tradição corresponde, por um lado, à lógica do artista moderno que queria
remodelar o mundo de acordo com sua própria subjetividade pura; por outro lado, à
lógica do valor que reconstrói o mundo de acordo com a sua própria imagem, e lhe
impõe violentamente uma forma sem conteúdo. Essa remodelação do mundo pode ser
obra de um aparelho de Estado (o Estado stalinista mais que qualquer outro), mas isso
também pode ser operado, ainda que de modo dissimulado bem como menos visível,
pelas forças do mercado. É tudo particularmente sensível no domínio da arquitetura
racionalista e funcionalista, fáceis de criticar. O mesmo vale para a arquitetura
aparentemente oposta, elaborada por um membro da Internacional situacionista como
o arquiteto holandês Constant. No final das contas, a cidade utópica “New Babylon”
projetada por Constant (projeto que, segundo seu autor, devia cobrir o planeta inteiro e
que foram expostos no Centro Georges-Pompidou em 1989 e mais recentemente em
Dokumenta 2002 de Kassel) não é tão diferente da “Cite radieuse” realizada por Le
Corbusier, da “máquina de habitar” como este último chamava com orgulho suas
construções, em relação às quais a arquitetura situacionista de Constant era considerada
um contraponto9.

8 Malevitch escreveu um pouco mais tarde: “O que expus não era um quadro vazio, mas a sensação de
ausência do objeto” (citado por Johanna W. Stahlmann, Teses sobre o fim do belo, in: Krisis 12 [1992],
p. 175). Certamente, artistas como Mallarmé ou Malevitch têm um lado místico que se inscreve numa
longa tradição para a qual o mundo é apenas um disfarce e um jogo de aparências. A “destruição do
mundo” executada no espírito não pertence, por conseguinte, apenas à sociedade mercantil. Contudo, a
forma especifica e não religiosa que toma essa idéia em certas correntes da arte moderna (os exemplos
são numerosos) é típica da sociedade da mercadoria.
9 Sobre a arquitetura de Constant, ver o dossiê na Sinal de Menos, n. 5, p. 26-71 (N. d. E.).

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Hoje em dia a arte não tem mais que ajudar na “destruição do mundo” operada
pelo valor. A obra de aniquilamento que devia acabar (e havia necessidade disso) se
encerrou. Mas o retorno à arte “clássica” do século XIX ou do “grande realismo” pregado
por Lukács é irrealizável. A arte moderna e o neoclassicismo são o avesso e o reverso da
mesma medalha, a exemplo das luzes e do romantismo. É necessário efetivamente
“salvar o homem”, como queria Lukács, mas não lhe atribuindo por decreto um status
que ele não tem na sociedade fetichista. A “perda dos sentidos” na sociedade capitalista
é bem real e não somente, como Lukács pensava, uma questão de “perspectiva”. É
preciso então se perguntar se não pode existir uma arte em forma tradicional, mas
atenta às fraturas e à negatividade. Esta foi a característica da literatura barroca que, na
forma e no conteúdo, antecipou numerosos traços da arte moderna e afrontou a
negatividade sem, no entanto, tornar-se cúmplice dela. A esse olhar, a obra de Walter
Benjamin continua sempre atual.

Com Debord, o último vanguardista, tornado finalmente um estilista “clássico” o


círculo se completa. Em 1955, Debord pediu a destruição de todas as igrejas, sem se dar
conta de seu valor artístico. 35 anos mais tarde, ele constata que esse programa foi
realizado pelo progresso da dominação espetacular. Se Debord mudou de idéia, isso não
teve nada a ver com o processo bastante comum pelo qual um revolucionário ou um
velho vanguardista se reconcilia com seu inimigo, passando a apreciar o que antes era
desprezado. Trata-se, ao contrário, de uma importante tomada de consciência. A
natureza da dominação capitalista mudou profundamente na segunda metade do século
XX, não somente no sentido banal de que ela está sempre em constante transformação,
mas no sentido de que, estando desembaraçada definitivamente dos restos pré-
capitalistas, ela começou verdadeiramente a “coincidir com o seu conceito”. Essa vitória
é também o início da verdadeira crise. Em tais condições, um soneto ou um busto de
Donatello representam talvez a verdadeira arte subversiva – isso porque eles nos
lembram toda a riqueza qualitativa da experiência humana anterior à unificação
quantitativa operada pela mercadoria capitalista, e todas as promessas de emancipação
e felicidade que nelas estavam implicitamente contidas. A “reviravolta” de Debord não
representa o malogro do seu projeto inicial de levar a arte moderna à sua conclusão. Não
foi a arte moderna que fracassou, mas a própria sociedade mercantil. No entanto, ela
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não é a única sociedade possível.

[Tradução de Marcos Barreira


Orig.francês: Les situationnistes ont-ils été la dernière avant-garde? In: Jappe, A. L’Avant-
Garde Inacceptable – Réflexions sur Guy Debord. Éditions Lignes, 2004. Uma versão alemã foi
publicada na revista Krisis 26.]

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Extratos de Pollock
Ou, Pintura moderna e trabalho abstrato

Cláudio R. Duarte
“Painting is self-discovery. Every good artist paints
what he is.” (Jackson Pollock, 1956)

Efeito de encantamento
O centenário de Jackson Pollock (1912-1956) passou em relativo silêncio por
estas bandas – em absoluto contraste com a agitação que provocou em seu tempo,
prestes a torná-lo uma lenda –, mas digno talvez do silêncio que suas obras mais
radicais no estilo dripping (“gotejado”) e all-over (“cobertura integral”) impõem ainda
hoje ao observador, desde que começaram a aparecer por volta de 1947.
Dadas as suas dimensões colossais, elas se impõem como uma presença física
maciça, enigmática, resistindo duramente à interpretação. Nada refletem ou significam.
Ainda hoje, a sensação para muitos que as contemplam pausadamente é a de uma
absorção hipnótica ou mesmo a de um arrebatamento místico.

(Jackson POLLOCK, Lucifer, 1947, Óleo, esmalte e pintura de alumínio s/ tela, 104,1 x 267,9 cm.)
O que vai sugerido por alguns de seus títulos, tais como Lucifer (Fig. 1)1,

1 Cf. essa tela em alta resolução, juntamente com alguns vídeos do pintor em ação, em:
http://www.sfmoma.org/explore/multimedia/interactive_features/61 (Acesso: 29.11.12, salvo menção
contrária, todos os links deste ensaio têm essa data como referência). Há um panorama geral
(incompleto) de suas obras, em formato digital de qualidade mediana, em:
http://www.wikipaintings.org/en/jackson-pollock/mode/all-paintings
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Enchanted Forest2, Cathedral3, Alchemy4 (todos de 1947) ou Lavender Mist (1950).5


Onde o “místico” em telas como esta? Em lugar algum, salvo se virmos a sedução
“demoníaca” do título apresentada e dramatizada – não representada – pela confusão
geral, pelas linhas abstratas contínuas e quase obsessivas formando um emaranhado
tenebroso e enredador, pelo brilho ofuscante do meio esmaltado e alumínio, bem como
pelas manchas e pingos multicoloridos surgindo espantosamente de todos os cantos.
Esbatendo a distinção entre figura e fundo, linha e cor, a tela se oferece como uma
superfície planar rasa densamente recoberta, descentrada e polifônica6 – uma textura
que não para de falar, girar, tergiversar numa língua estranha e fantástica de borrões e
emaranhados, impondo-nos um imenso trabalho de observação. A “presença” de um
inferno.

Ritual do fazer abstrato


Desde a origem, essa arte contém um impulso mimético e um resíduo mítico-
ritual, seja nos temas ou na técnica, que, como momentos predominantes, refreiam a
intencionalidade e a ideia clássica de construção. Só assim, passando pelo conteúdo
socialmente banido, ela se espiritualiza, cria sua lei e constrói a sua categoria especial de
imediaticidade. Sob o seu efeito, o espectador em geral se deslumbra, imerso numa
massa caótica de tintas, aparentemente incriada, qual fosse um ambiente dado (um
objet trouvé na lona do chão do estúdio?), ao mesmo tempo em que intui uma enérgica
vontade de elaboração – a tinta gotejada e arremessada por toda a tela a partir do alto,

2 Cf. http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-online/show-
full/piece/?search=jackson%20pollock&page=1&f=quicksearch&cr=7
3 http://www.humanitiesweb.org/human.php?s=g&p=c&a=p&ID=1233
4 Cf. http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-online/show-
full/piece/?search=jackson%20pollock&page=1&f=quicksearch&cr=6
5 Cf. http://www.nga.gov/fcgi-bin/timage_f?object=55819&image=13750&c=20centpa
6 Conforme Greenberg, a pintura all-over de Pollock é “‘descentralizada’, ‘polifônica’, [e] depende de uma

superfície composta de elementos idênticos ou muito semelhantes que se repetem sem uma variação
marcada de uma borda a outra da pintura. É um tipo de pintura que prescinde, evidentemente, de
começo, meio e fim. Embora a pintura ‘all-over’ quando bem-sucedida, ainda seja pendurada numa
parede com efeito dramático, ela se aproxima muito da decoração – do tipo visto em padrões de papel
de parede que podem se repetir indefinidamente –, e na medida em que a pintura ‘all-over’ permanece
uma pintura de cavalete, o que ocorre de certo modo, ela contamina a noção do gênero com uma
ambiguidade fatal”. E ainda: a tela sai “preenchida de ponta a ponta com motivos regularmente
espaçados que se repetem uniformemente como os elementos de um padrão de papel de parede, e que
portanto parecem capazes de repetir a pintura ao infinito para além de sua moldura.” (GREENBERG,
Clement. “A crise da pintura de cavalete” [1948] e “Pintura ‘de tipo americano’ [1955-58] in: __. Arte e
cultura: ensaios críticos. Trad.: Otacílio Nunes. São Paulo: Ática, 1996, p. 165 e p. 223, grifos meus).
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preenchendo virtualmente todos os espaços até ultrapassar as próprias margens do


quadro.
O mito aqui, no entanto, não tem conteúdo simbólico algum. É pura forma ritual
vazia, uma forma técnica. Transcendente a toda referência, não fossem os títulos (em
grande parte arbitrários e intercambiáveis), essa arte nada expressa aparentemente
senão o seu próprio anseio de fazer: uma longa série de gestos abstratos de um pintor
que quer anular-se como autor individual, esvaziando a expressão de uma subjetividade,
buscando o anonimato e a exterioridade de um puro e simples ato sans phrase. Mais
que um anseio, talvez: a apresentação de um culto ritual do fazer abstrato. Como
escreveu há muito Harold Rosenberg: um “pintor de ação” como Jackson Pollock não
pinta algo, mas “simplesmente PINTA” (“just PAINT”) – ou melhor ainda, diríamos:
PINGA. O quadro se converte assim na apresentação de seu próprio processo de
produção – tal é o cerne da Action Painting, como ficou celebremente conhecida.7

Momentos do feito/feitiço
Arte desencantada, quebradora de tabus e convenções, ao mesmo tempo, aquela
espécie de “participação nas trevas” identificada por Adorno na arte moderna, que
incorpora em si a alienação da totalidade, vestindo o “ideal do negro” e criando uma
espécie de “compensação imaginária” utópica diante da “catástrofe da história do
mundo”8 – eis os dois ou três momentos significativos que, como tudo em Pollock, se
entrelaçam, conferindo-lhe densidade histórica e tornando o seu trabalho uma
referência central do alto modernismo.

Mediação social do feitiço


Acelerando um pouco o passo, note-se que se tais obras totalizam uma espécie de
puro dispêndio de energia abstrata – para além da figuração e dos referenciais – nem
por isso o seu referente social não existe, como se ela pairasse acima das nuvens.
Poderíamos imaginá-lo justamente como o processo social mais abstrato e
transcendente. O seu lugar não é o céu, mas o subterrâneo infernal da sociedade

7 Cf. ROSENBERG, Harold. “The American Action Painters”. Art News, vol. 51, n. 8, Dez. 1952, pp. 22-23,
48-50. Ver também: Idem, O objeto ansioso. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
8 ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Lisboa: Ed. 70, 1993, p. 53 e 156-7.

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moderna. Em seu automovimento irrefreável, sensível-suprassensível, tais obras


tendem a arrebatar tanto o pintor como o observador. Segundo Giulio Carlo Argan, que
já nos sugeriu acima a fórmula do ritual vazio, há aqui o “lúcido delírio” de uma
atividade que se autonomiza e impõe o seu próprio ritmo, “assim como o ritmo da dança
acaba por se assenhorear do dançarino e por dominá-lo”: é como “um pacto, quase de
coexistência, entre instrumentos e pessoas, um ritmo que se apodera de tudo e de todos,
inclusive os espectadores, e a tudo e todos envolve numa exaltação coletiva, num ritmo
também dos movimentos do corpo.”9 Pelo adiantado em nosso subtítulo e nas
descrições, o leitor já anteviu que estamos sugerindo a correlação essencial dessa técnica
artística com o substrato material do mundo moderno: a lógica do valor e do trabalho
abstrato. Nessa chave crítica, a técnica “ritual” aparece mediada por essa matriz
fetichista. Boa parte da crítica tangencia em suas análises essa matriz prática, embora
falte o conceito. Ao mesmo tempo, isso tem a sua razão, pois é claro que ela não se reduz
a ela e está bem longe dela como realidade imediata. A relação é de mediação dialética.
Ocorre que o capital sempre foi visto como uma mediação externa às forças produtivas,
ainda mais às forças estéticas autônomas; e, assim, ele quase sempre foi concebido
como um freio ao seu livre desenvolvimento. A técnica de Pollock faz pensar tanto na
autonomia da arte como no seu exato oposto: o movimento livre e frenético dessa
“dança ritual”, que rompe as barreiras estéticas consolidadas, faz-se semelhante muito
precisamente à linha de produção capitalista, aparentemente dirigida por nenhuma
relação ou fundamento que não a própria coisa social em movimento.

Poética do excesso
Em vários sentidos, eis aqui uma poética do excesso. Excesso de meios materiais,
indistinto de um excesso de construção – uma construção negativa, porém, que
suprime a plena elaboração dos meios utilizados, como nos faz pensar Rodrigo Naves,
quando diz em uma observação refinada:
“O problema de Jackson Pollock é a rigor criar uma resistência ao próprio ato de pintar,
um método que possibilitasse que as formas daí resultantes fossem a concretização da
própria dificuldade de formalizar – uma recusa portanto a usar o pincel como um

9 ARGAN, Giulio C. Arte moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos [1970]. São Paulo:
Cia. das Letras, 2010, p. 622 e 681 (termo de Lara-Vinca Masini), grifos meus.
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instrumento que domesticasse uma matéria (a tinta) apropriada a um fim (a pintura, a


tela)”.10

Um trabalho material e tanto, porém, que produz de modo expandido muitas telas
numa só, segundo sua medida disparatada e sem-sujeito, sem dar conta dos excessos
que introduz na tela.11 Ao contrário da arte moderna brasileira, aqui não há nenhuma
“timidez formal”, tal como a estudada por Naves em Guignard e Volpi. 12 A recusa
pollockiana de idear, de usar o pincel etc. não é a negação da construção e da
domesticação – mas antes uma negação do limite da formalização tradicional que
plasmava uma ideia, impressões, emoções etc. de um sujeito sobre um objeto. Abstraído
o polo da expressão subjetiva, tende a restar o polo construtivo elementar do drip –
como método objetivado, automático e aleatório em relação ao pano não esticado. Em
certo sentido, parece-nos que Pollock domina ainda mais a tela ao pintá-la no chão,
submetendo-a a partir do alto, manifestando toda a sua corporalidade sobre o suporte,
convertendo-o em tela de projeção – não de um eu – mas de processos corporais
objetivados; técnica que pode ser lida como uma dominação subjetiva ainda mais
integral da natureza e de seus meios materiais (inclusive domesticando novas tintas
industriais etc.). Essa profanação técnica tende ao “ritual” do “caráter fetichista”, ao
contrassenso de uma “linguagem da alienação absoluta” – nesse ponto preciso algo
semelhante às aporias técnicas da lógica objetivada da nova música.13
O movimento do capital é “sem fim” e “desmedido”.14 Do mesmo modo, o
trabalho aqui não tem começo e muito menos um fim predeterminado. Ninguém pode
dizer que ele não poderia ser continuado ad infinitum – até o “apocalipse”, que é
também a aparência de muitas de suas telas –, tal é a sua lei. Desse modo, ela tende a se
tornar uma work in progress ou uma espécie de “obra aberta sempre aberta” a uma

10 NAVES, Rodrigo. “Jackson Pollock: a água-viva e o mar” in: __. O vento e o moinho. Ensaios sobre arte
moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 254.
11 “Há um excesso de matéria em relação aos precários limites físicos que tentam confiná-la; (...) um

trabalho que não dá conta dos processos que desencadeia: um mundo desmesurado e no entanto feito à
nossa medida.” (Idem, ibidem, p. 265.)
12 NAVES, Rodrigo. A forma difícil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
13 ADORNO, Theodor. W. Philosophie de la nouvelle musique. [1948] Paris: Gallimard, 1979, p. 79 e 114,

175... Um diagnóstico que vale tanto para Stravinski como para a escola de Schoenberg.
14 MARX, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988, Livro I, tomo 1, p. 124-126. Masslos é traduzido

por Kothe como “insaciável”.


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nova rasura.15 Ou pelo menos, quando ela se autolimita, um trabalho de arte


radicalmente ampliado, como uma série de atos acabados mas virtualmente infinitos.
Exatamente assim, através desse movimento de cisão e plena exteriorização de si
– um “expressionismo abstrato” “levado às raias do absurdo”16, como diz Naves –, ele
explode a pintura tradicional, superexpõe visualmente os elementos que compõem o
artifício pictórico, crivando seu estranho idioma coisificado num espaço imenso, que
finalmente se lança sobre o observador – e o extasia e o emudece, a menos que ele
trabalhe em sua interpretação crítica.

Estética luciferina
“A apropriação do trabalho pelo capital, o capital absorvendo em si o
trabalho vivo, se apresenta ante o trabalhador de maneira cruamente
perceptível – ‘como se tivesse amor no corpo’” (Marx, Grundrisse,
citando o Fausto de Goethe).

Não seria possível descrevê-la segundo a Teoria do romance, como uma estética
“luciferina” ou “demoníaca”? De fato, ela surge do sentimento angustiado da alienação
entre sujeito e objeto – e da luta do sujeito ativo contra a “indolência e autossuficiência
d[a] vida [cotidiana] que apodrece em silêncio.” “O herói [“problemático” do romance
burguês] é livre quando, com pertinácia luciferina, atinge a perfeição em si e a partir de
si mesmo, quando – para a atividade de sua alma – exila todas as meias medidas do
mundo onde seu ocaso reina soberano.”17 Tal como no Fausto, ela sai em busca de uma
nova ligação vital com o “grande mundo”, não mais intelectual, mas prática. Desse
ponto de vista, ela aparentemente só tomaria os seus desejos como a realidade
verdadeira, quebrando todas as convenções do belo e do útil, num confronto político
que vai em busca de um gozo intenso, por assim dizer “fáustico”:
“Herrschaft gewinn' ich, Eigentum! / Die Tat ist alles, nichts der Ruhm”
(Domínio eu quero, apropriação! A ação é tudo, a glória nada).
“No princípio era a ação” – mas puramente mefistofélica ou luciferina: arte como
comportamento afirmativo e desmedido sobre a tela – a “comédia de uma revolução que

15 Cf. as telas mais carregadas como Alchemy (1947), Number 3, 1949


http://www.wikipaintings.org/en/search/jackson%20pollock/1#supersized-search-185317, Number 6,
1949: http://www.wikipaintings.org/en/search/jackson%20pollock/1#supersized-search-185272 e o
Big Dripper 47: www.mcah.columbia.edu/arthumanities/zoomify/pollock_big_dipper/BigDipper.html
16 NAVES, “Jackson Pollock: a água-viva e o mar”, op. cit., p. 254.
17 LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. (Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica)

[1914-16]. São Paulo: Ed.34/Duas Cidades, 2000, p. 92-3.


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se restringe às armas do gosto”, como brinca Rosenberg. 18 No calor da hora, Mário


Pedrosa também viu no pintor americano uma grande “força contestatória” – ou antes,
também o seu oposto: “Uma solução de desespero, de violência, certa aquiescência com
a desordem espontânea” – o “desespero do homem que se sente enredado nos fios da
máquina descontrolada”. Sublinhemos esse enredamento na maquinaria social, que
quebra a ilusão da liberdade e da pura imediaticidade do ato. Assim, teríamos “a
sedução da desordem pela desordem, a manifestação inconsciente de um desejo coletivo
de autodestruição”. Do ponto de vista histórico, para Pedrosa, tratava-se de “uma volta à
indefinição, à supressão da linha ou da forma definida, ao mundo pequeno-burguês
desestruturado do impressionismo” ou do “espontaneísmo” romântico.19
Aceitemos que a contestação pré-individual e espontaneísta da ordem é um dos
momentos dessa pintura, mas ainda será preciso interpretar em que sentido essa
regressão avança e é um passo na formulação artística de questões sociais ainda
fundamentais de nosso tempo.

Um excesso organizado
Just paint: se a ação impensada ou o gesto abstrato e impessoal é tudo, o gracejo
sobre tais telas serem factíveis por uma criança, um chimpanzé ou sabe-se lá qual
processo originário de fractais20, não deixa de ter o seu grão de verdade. Inquirido por
Hofmann, certa vez, Pollock diz que não precisava pintar a natureza: “Eu sou a
natureza”. “The man may be over forty, the painter around seven” – constatava
Rosenberg.21 Que o confirmem ainda Deleuze e cia., vendo em Pollock um dos modelos
estéticos do seu “espaço liso” ou “espaço nômade”, com a sua “linha abstrata”,
“desterritorializada”, “rizomática”, “inorgânica”, como “puro fluxo do devir” e livre

18 ROSENBERG, “The American Action Painters”, op. cit., p. 49.


19 PEDROSA, Mário. “Atualidade do abstracionismo” [1951] in: Arantes, Otília (org.). Modernidade cá e
lá. Textos escolhidos IV, Mário Pedrosa. São Paulo: Edusp, 2000, p. 181. Ver os comentários de Otília F.
ARANTES, “Abstração e modernidade” in:__. Mário Pedrosa: itinerário crítico. São Paulo: Scritta,
1991.
20 Cf. TAYLOR, R., MICOLICH, A., JONAS, D. ‘The Construction of Jackson Pollock's Fractal Drip

Paintings”. Leonardo, vol. 35, n. 2, MIT Press, 2003.


21 ROSENBERG, op. cit., p. 23.

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“potência de repetição” multiplicadora, correlatos ao “afecto” do “devir-animal”, do


“devir-criança”, entre outras sutilezas físicas e metafísicas.22
Mas a estética luciferina de Pollock é isso e outra coisa: um caos de caso pensado,
mais ou menos organizado. É certo que o dripping e o all-over implicam numa grande
desarticulação e informalidade da obra. Pode-se dizer que ela é menos composta do que
acumulada e montada pela justaposição de materiais, camadas de tinta, pregos, areia,
restos de cigarro, vidro etc., impondo-se ruidosamente como uma imagem estilhaçada,
para além da imagem simbólica. Desde a base, reduz-se a ideação e elimina-se a imagem
projetada de um todo. No entanto, é muito claro que o pintor escolhe minimamente as
dimensões da tela, as tintas empregadas, suas quantidades, o tempo, a direção e a
intensidade geral dos movimentos etc. Segundo Argan, “a margem de acaso é mínima
(...) [o pintor] não projeta o quadro mas prevê um modo de comportamento”.23 Para
usar termos de Peter Bürger, trata-se de uma “produção indireta ou mediada do acaso”,
que calcula parcialmente os seus meios, “permanecendo o resultado consideravelmente
imprevisível”24 – e assim também incerta como invenção de uma obra de arte. Como
conclui Adorno:
“o progresso da arte como fazer e o ceticismo a ela adscrito formam entre si contraponto. Na
realidade, este progresso é acompanhado pela tendência para o involuntário absoluto desde a
escrita automática, há quase cinquenta anos, até ao tachismo e à música aleatória de hoje. É com
razão que se constatou a convergência da obra de arte tecnicamente integral e totalmente
fabricada com a obra absolutamente fortuita; sem dúvida, o que aparentemente não parece
fabricado é-o com maior razão”.25

Isso que a faz muito mais afim, aliás, ao free jazz ou à música regressiva de
Stravinksi do que à dissonância estritamente construída da Escola de Viena (como
pensara Greenberg). Não é por isso mesmo que Pollock é mais fácil de ser copiado do
que qualquer outro pintor abstrato? Obviamente isso não ocorre porque tal técnica seja
ingênua, ou esteja facilmente disponível a qualquer um (contanto que se tome alguns
litros de uísque – aliás, na fase do dripping, o pintor permaneceu sóbrio), muito menos

22 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 2002,
vol. 4, p. 97-98, e vol. 5, p. 203-214. Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Organs without Bodies: on Deleuze and
Consequences. New York: Routledge, 2004, p. 5.
23 ARGAN, op. cit., p. 622, grifos nossos.
24 Contudo, o autor pensa o método do tachismo e da action paiting como puro espontaneísmo, que

resulta em meras casualidades e arbitrariedades (BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo:
Cosac Naify, 2012, p. 124).
25 ADORNO, Teoria estética, op. cit., p. 39.

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porque adote as cegas leis naturais como princípio; mas sem dúvida porque ela
desprende-se voluntariamente do legado plástico tradicional, tendo-se como um ato de
liberdade radical e iconoclasta. Ato idêntico, porém, a uma regressão mimética para
aquém das formas construtivas alcançadas pela arte abstrata de seu tempo, ou pelo
próprio Pollock nos anos 30 (ainda influenciado por Picasso, Miró, Masson, Orozco,
Hofmann, entre outros). A renovação técnica, em sua revolta contra as convenções, aqui
tem um aspecto infantil, regressivo, selvagem, como veículo de expressão caótica de
energia vital, de angústias, dos choques traumáticos reprimidos por tais convenções.26 E
no entanto não se pode dizer que não se constroem novos padrões formais a partir desse
aparente abandono à simples imediaticidade.
A recusa relativa da pré-ideação e da figuração temática, a acumulação aleatória
de materiais mediante a justaposição de grandes camadas de tinta até vazar as bordas
da tela, a redução da pintura à exposição dos movimentos que originaram a sua
fabricação, a ausência de centro e de contraste de valores, o aspecto de textura e, no
limite, de papel de parede decorativo – tudo isso fixa um padrão estético incomum, pois
é o resultado de uma espécie de ritual de “sacrifício técnico” do sujeito. Não se deve
exagerar no aleatório e no improviso, portanto, esquecendo o seu aspecto de totalmente
fabricado.
Em Lucifer, vê-se uma difusão de pingos coloridos (vermelhos, laranjas,
amarelos, azuis, roxos) bem distribuídos pela superfície, em meio à rede de linhas e
manchas pretas e verdes e à textura em tinta esmalte e alumínio, criando um certo
padrão formal repetitivo bastante eficaz. Como dizia o pintor, são “pinturas sem começo
nem fim”, mas há certamente quadros perdidos ou não plenamente conseguidos.
Conclui-se que Pollock, com a sua “dança ritual” (levada simbolicamente a sério por
entusiastas da comarca junguiana), corta a expressão subjetiva tradicional – ao mesmo
tempo em que, erguendo o quadro na parede, retoma a distância e passa a reforçar a
tinta em certas zonas do quadro e a corrigir o que aparecia de início mero acaso. Por
isso mesmo, a tela homogeneíza uma certa textura coerente, enfim, cria uma forma
negativa. O domínio do acaso salva-a da heteronomia radical, da impossibilidade de

Cf. a similaridade com as primeiras obras de Schoenberg e de Webern e de toda a obra de Stravinski:
26

ADORNO, Philosophie de la nouvelle musique, op. cit., especialmente p. 52, 166-175.


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arte, produzindo uma segunda imediaticidade, que aparece como uma segunda
natureza. Por isso mesmo se torna necessária, durável, consistente como obra.

O movimento da abstração na/da sociedade do trabalho


Para desvendar melhor o referente dessa forma técnica, precisamos voltar aos
quadros “expressionistas” de Pollock dos anos 30. Será por acaso que temos aí
figurações do trabalho e da conquista do Oeste norte-americano? É o que vemos em
Camp with Oil Rig (1930-33), Going West (1934-38)27 e Cotton Pickers (1935).28
As cores sombrias, a curvatura e a distorção das formas humanas e naturais
anunciam um referente social negativo, doloroso, vergado sobre si, reprimido: uma
tensão difusa e como que prestes a explodir. É como se a energia do processo social
produtivo forçasse uma desintegração – impossível de se realizar, contudo, pois
formalmente retida pelas linhas do desenho, isto é, pela representação figurativa do
trabalho. Os temas usuais de seu mestre, Thomas H. Benton, ganham nas mãos de
Pollock essa forma tensa e distorcida peculiar. Essa ao que parece a mesma energia
expansiva que toma todo o quadro e começa a esboroar os contornos da forma em The
Flame (1934-38)29 e em outras telas do período, sempre com gestos circulares e
disruptivos bastante marcados.
Aos poucos, chegando os anos da grande guerra, Pollock vai consolidando um
outro estilo antifigurativo, como vemos em Mural (1943), Gothic (1944), There were
Seven in Eight (1945)30, Shimmering Substance31 e Eyes in the Heat (ambas de 1946).32
Até esse momento, suas telas eram pintadas convencionalmente (cavalete,
pinceis, tintas tradicionais) e sugeriam figuras ou temas, com um título que os
reforçava. Em meio ao caos, transparece aqui um certo padrão de ordenação, que dá
uniformidade ao quadro: um amontoado de traços ondulares, que, mesmo que
dessimetricamente, se harmonizam e perfazem um todo ainda mais ou menos lógico,
coerente e, como foi chamado às vezes, “signalético”; os “olhos febris” se destacam aqui

27 Cf. http://www.wikipaintings.org/en/search/jackson%20pollock/1#supersized-search-185565
28 Cf. http://images.albrightknox.org/luna/servlet/view/all/who/Jackson+Pollock?res=2
29 Cf. http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=79680
30 Cf.http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=79690
31 Cf.http://www.humanitiesweb.org/human.php?s=g&p=c&a=p&ID=1234
32 Cf. http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-online/show-
full/piece/?search=Eyes%20in%20the%20Heat&f=Title&object=76.2553.149
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e ali como significantes, com cores que sugerem um tema, a vida remanescente ou em
ebulição, escapando à frieza e à clareza da simples representação.
Nas primeiras telas do estilo dripping, após 1947, os nomes sugerem ainda a
temática do mistério e da transcendência, como daria no seu “Lúcifer” ou nas brumas
envolventes da “Floresta encantada” e da “Catedral”. O passo seguinte de Pollock,
socialmente mergulhado na era “do avião, da bomba atômica, do rádio”, como ele um
dia resumiu o espírito objetivo dos anos da Guerra Fria, é claramente destrutivo de toda
referência primária, salvo é claro a do movimento em abstrato, tal como vemos, por
exemplo, ainda, em Vortex (1947), Full Fathom Five (1947, fig. 6)33, Number 1-A, 194834
e Number 31, 195035. As telas aparentam-se cada vez mais a trabalhos materiais
intensos. A referência social do trabalho, como trabalho abstrato, intensifica-se por
meio do filtro dessa forma que recusa a pintura artesanal tradicional. Assim, poder-se-ia
afirmar que, numa espécie de Aufhebung (supressão/ conservação/ elevação) do
conteúdo em forma, Pollock dá aqui o passo decisivo que permite imitar e apresentar a
lógica social de redução do trabalho concreto à substância de trabalho humano
abstrato.
Doravante, nas telas começa a predominar uma malha densa, sombria e
aparentemente anárquica, como vimos, com o privilégio do preto, do branco e do cinza,
em geral desistindo dos temas e das titulações (trocadas por números e datas de
produção). Os quadros se fecham cada vez mais numa massa gigantesca de manchas e
pingos justapostos que, como bem notou pioneiramente Clement Greenberg, têm todos
a “mesma importância”, são “equivalentes em acento e ênfase”, criando uma
“uniformidade”, uma “pura monotonia”, uma “acumulação de repetições”, que dissolve
“o pictórico em mera textura, em sensação manifestamente pura” – talvez expressando,
segundo o crítico, um “naturalismo monista para o qual não há coisas primeiras nem
últimas”.36 Tal equivalência abstrata e monista parece nos remeter claramente à lógica
capitalista do dinheiro: o valor como coágulo de trabalho homogêneo, que, em seu
impulso de autovalorização, expande-se torrencialmente como criação de mais-trabalho

33 Cf. http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=79070 . Um detalhe da fatura:


http://www.wikipaintings.org/en/search/jackson%20pollock/1#supersized-search-185309
34 Cf. http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=78699
35 Cf. http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=78386
36 GREENBERG, “A crise da pintura de cavalete”, op. cit., p. 166-7.

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e de mais-valor, e de mais pontos de circulação e troca – a construção cerrada do


sistema capitalista mundializado propriamente dito.
Além do fazer abstrato, os quadros de Pollock não apresentariam várias
homologias imagéticas com esse mesmo processo objetivo? Criadas pelo infinito
gotejamento das tintas, as linhas confundem-se, mas nunca desaparecem: são como a
materialização assustadora de trabalhos enérgicos – sem propriamente criar e figurar
nada no detalhe –, em que tudo se interliga e se antagoniza37, formando, porém, uma
série de caminhos que levam a lugar algum nem se resolvem harmonicamente. A tinta
alumínio se projeta para a frente. O que lhe dá um aspecto de teia, nebulosa ou
megalópole, com o mesmo substrato fantasmático de valor... A falta do foco central e da
hierarquia pode ser superada quando se toma o centro como a própria totalidade da
obra, como movimento de mediação, tal como o capital, subordinando tudo ao seu
padrão uniforme, se autorrepele e retorna a si e já não prescinde de nenhuma parte para
se constituir como tal. Nos quadros mais representativos do all-over (e há outros
menos, como veremos), nada escapa à rede pollockiana. Como se o centro estivesse em
cada célula ou em cada trecho dessa pintura intensificada, cada trecho valendo como
centro e representando, a seu modo mais ou menos uniforme, o todo. Mas se vista de
perto, contudo, essa totalidade uniforme desaparece na informalidade e na
heterogeneidade de pingos e manchas. No detalhe ínfimo (marcas vermelhas, amarelas,
linhas diagonais etc.), o singular mostra-se fragmento heteróclito que se opõe aos outros
pontos do sistema total cristalizado. Sem começo nem fim, explodindo as margens do
quadro, o seu tamanho ideal seria o tamanho do mundo.

Hieróglifos do hieróglifo social: o “expressionismo industrial”

Uma regressão metódica, assim, como vínhamos apontando, que se abandona ao


jogo da experimentação, do improviso, da repetição compulsiva e desmedida, da
informalidade, mas num processo não de todo descontrolado. Em certo sentido, uma
alienação da alienação – isto é, como bem viu Rodrigo Naves, uma tentativa de

37 “Surge como produto uma horizontalidade movediça, uma espécie de água-viva, uma coisa que se opõe
às outras coisas” (NAVES, “Jackson Pollock: a água-viva e o mar”, op. cit., p. 261).
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separação e quase de nomeação da lógica do trabalho alienado.38 Por outro lado,


contudo, como também anteviu o crítico, uma oposição que incorpora necessariamente
o veneno do trabalho alienado em si.39 Ou como havíamos dito: a participação nas
trevas como regra.
Digamos que, um pouco como Klee40 ou os pintores do grupo CoBrA – mas sem
talvez sua potência construtiva e vital, respectivamente –, Pollock incorpora e
transfigura progressivamente os conflitos da sociedade industrial avançada – não mais
como tema (ao modo da arte de Léger ou Benton), mas como forma e procedimento
técnico radical. Com isso, o artista eleva e transfigura o trabalho industrial ao seu
conteúdo de verdade, como forma negativa e degradada da experiência social. Como em
Wols, seu precursor, a imagem e a transcendência estéticas saem destruídas,
mergulhando o espectador no crepúsculo do sentido – um processo estritamente
homólogo à divisão do trabalho fabril, que reduz e destrói a imagem integral do
processo e não só ela, é certo, o próprio trabalhador. Por isso também essa obra se
constrói no limiar de se tornar não-obra, uma coisa – a real thing – entre as coisas do
real. E que se mantém de pé somente por um milagroso tour de force, que a permite
apresentar “sensações pictóricas imediatas e concretas” inigualáveis. 41 Um passo além e
estamos na pop, no minimalismo e nas sequelas aniquiladoras da forma autônoma,
conhecidas como pós-modernas.
É esse caráter de forma autônoma rigorosa que a torna, em primeira instância,
uma espécie de hieróglifo do “hieróglifo social” da forma-mercadoria (Marx). Sua

38 “Na ação pollockiana (...) o corpo aparece como atividade significativa bruta, um momento residual do
trabalho, sem um fim externo e carente de uma totalidade que lhe empreste sentido. Enfim, uma recusa
completa a atribuir sentido à alienação. Normalmente, exterioridade e alienação aparecem quase como
sinônimos. Na obra de Pollock, no entanto, exterioridade é rigorosamente a realização da
descontinuidade possível entre trabalho (no sentido corrente) e criação.” (NAVES, op. cit., p. 258-9).
39 Assim, na conclusão de seu artigo, Naves parece retificar a posição anteriormente citada: “Este processo

no entanto [o crítico comenta aqui a arte de Richard Serra] – e mais uma vez volta a semelhança com
Pollock – se efetiva por meio de um determinado trabalho, anônimo e industrial, alheio à tradição de
moldar artesanalmente a matéria do mundo. Esse trabalho, em lugar de resumir-se a uma operação de
transformação de um material em uma forma, procura estabelecer, na justaposição de elementos, um
desequilíbrio em que a própria relação entre as partes não trabalhadas das obras adquire
expressividade” (NAVES, op. cit., p. 265). Vide a questão do fetiche nas obras atuais (op. cit., p. 240-2).
40 “Em numerosas obras autênticas da arte moderna, o estrato material industrial é rigorosamente evitado

como tema, por desconfiança perante a arte mecânica como pseudomorfose; mas, negada pela redução
do tolerado e por uma construção reforçada, afirma-se com maior força: assim em Klee. (...) É moderna
a arte que, segundo o seu modo de experiência, absorve o que a industrialização produziu sob as relações
de produção dominantes”. (ADORNO, Teoria Estética, op. cit., p. 47.)
41 Cf. READ, Herbert. História da pintura moderna [1968]. São Paulo: Círculo do Livro, 1980, p. 266 e

256-7 (o autor se baseia num artigo de Sam Hunter).


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espessura histórica e temporal é redutível ao da duração de seu ato abstrato, um símile


peculiar do trabalho reduzido ao “puro dispêndio produtivo de cérebro, músculos,
nervos, mãos humanos” (Marx). Em 1950, Pollock declarava: “The modern artist, it
seems to me, is working and expressing an inner world – in other words – expressing
the energy, the motion, and other inner forces”. A ilusão do artista, nessa chave
materialista, seria imaginar que são as suas próprias forças imediatas que são
expressas, como criadoras de um mundo radicalmente outro. Sem prejuízo de sua
autonomia, ao contrário, o que se apresenta objetivamente em sua cisão e exteriorização
radical é antes o próprio modo desmedido de funcionamento das forças produtivas
sociais enquanto forças do capital, que põem virtualmente toda objetivação social como
exteriorização e alienação (trabalho intelectual e manual taylorizado etc.). Em sua
desrealização da vida e do conteúdo sensível, a arte “deve macaquear o fim em si do
capital, que gostaria de se emancipar de todo conteúdo material (...). A arte pela arte é
simplesmente o clímax da arte como caricatura involuntária do capital”.42
Nesse caso, a arte se converte em uma força produtiva fetichista internalizada e
inconsciente de si. Daí o seu traço de ritual secularizado. O barbarismo e o infantilismo
são o eco do capitalismo mais avançado, que há muito desintegrou as condições de
formação do sujeito burguês, que só pode se realizar de fato como sujeito pós-burguês.
Em sua essência, essa arte expressa a loucura objetiva da razão burguesa, que há
muito demitiu o sujeito e quer eliminar toda a expressão. Na falta de intenção, trata o
corpo como mera coisa à disposição do Outro, como um instrumento capaz de afirmar e
realizar todas as intenções. A partir da quebra da distância em relação ao suporte, o
domínio instaura-se como um “trono” sobre a tela, chegando até a identificação anal-
sádica com a própria coisa dominada, que passa a ter “vida própria”: “No chão eu fico
mais à vontade. Sinto-me mais próximo, mais parte da pintura [more a part of the
painting], pois desse modo posso girar ao redor, trabalhar dos quatro lados ao mesmo
tempo e literalmente me encontrar na pintura [be in the painting]”. Daí o seu aspecto de
incriado, de não-feito pelo homem, tão distinto em relação a pintores do expressionismo
abstrato e do informal como Kline, Still, De Kooning, Dubuffet, Jorn, Appel, em que a

42 Cf. KURZ, Robert. “A estética da modernização – da cisão à integração negativa da arte” in:__. Com
todo vapor ao colapso. Juiz de Fora: Editora UFJF / Pazulin, 2004, p. 120. Ver também toda a
regressão ao fetichismo da técnica e à “alienação como objetividade” na nova música, tal como analisada
por ADORNO (Philophie de la nouvelle musique, op. cit.).
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presença e a sutileza da mão humana se faz presente. Nessa coreografia automatizada,


temos antes uma espécie de “expressionismo industrial”, como refletiu recentemente
uma historiadora da arte: “Produced under the standardizing imperative of
industrialism, Pollock's work is more like work – ordinary work – than art history has
been able to acknowledge.” 43
Mutatis mutandis, eis a caracterização adorniana do que aparece como o
comportamento “catatônico” na música espacializada de Stravinski: “Toda energia
desencadeada se põe a serviço de uma obediência cega e sem finalidade a regras cegas,
que impõem um trabalho de Sísifo”.44 Como Stravinski em música, Pollock é “o que diz
sim” em pintura. Em menor voltagem, este ainda ao que parece o sentido da
impassibilité informal “bizantina” de Mark Rothko e da pura espacialidade visual
abstrata, “manufaturada” pelos estilos Colour Field e Hard Edge, que já nem
precisavam dissimular serem uma mera realização técnica feita para deslumbrar e
acalmar, afim à psicotécnica e ao design publicitários.
Na consciência do artista, porém, ele pode aparecer como uma negação mais ou
menos “artesanal” ou “irracional” do mundo industrial (vale lembrar que Pollock
inspirava-se na ideologia junguiana e surrealista da expressão imediata do
inconsciente). À civilização do trabalho, contrapõe-se, sublimado, o seu dejeto-objeto
anal, que escapa às formas bem-educadas. É aqui, a meu ver, que se poderia aceder ao
inconsciente em sua obra: como contrapolo de uma cultura protestante, fundada na
acumulação de riqueza abstrata. Segundo dizem os críticos, ainda, Pollock nunca deixou
de ser um stalinista – afim portanto ao sistema de modernização que elevou o trabalho
em abstrato à segunda natureza do homem. O antagonismo entre forças produtivas e
relações de produção transfigura-se, em sua pintura, na hipóstase, artisticamente
mediada, do trabalho industrial abstrato, contraposto imaginariamente às relações
produção que o fundam. Como força, se afunda na aquiescência à desordem amorfa. O
amorfo não é aqui o sem-forma, mas antes a impotência de constituição de formas mais
substanciais e resistentes. Isso muda, no entanto, lá onde se sente a diferença
introduzida no procedimento e na condução, como veremos ao final. Sem deixar de ser

43 JAFEE, Barbara. “Jackson Pollock's Industrial Expressionism”. Art Journal, Vol. 63, No. 4 (Winter,
2004), p. 79.
44 Cf. as posições de Stravinski em ADORNO, Philosophie de la nouvelle musique, op. cit., p. 174-186.

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uma mercadoria – e lutando contra o seu caráter de mercadoria à disposição dos


capitães da indústria e até mesmo da CIA – a obra de Pollock tem condições de resistir
como um último grito expressionista antes da liquidação geral pós-moderna, a mera
estética das mercadorias.

Estética do desmanche: a dificuldade de construir pela negação


Essa possibilidade de resistência está contida em sua técnica. Segundo o bom
crítico marxista Meyer Schapiro, sua arte teria, como grande parte da arte modernista
radical, “características opostas à produção industrial”. Com efeito, nada mais estranho
à indústria que o abandono à contingência e à inutilidade da ação. 45 O momento crítico
de oposição não é mera aparência. De fato, ela está lá. Mas dificilmente constrói algo
outro – a não ser quando introduz mudanças sutis na técnica, que procedem justamente
de seu caráter contingente e eventual. (Em Rothko esse problema da diferença mínima
também parece se articular). Argan percebeu outros traços dessa posição dialética:
“Pollock não utiliza a pintura para exprimir conceitos e juízos: desafoga sua cólera contra
a sociedade do projeto, fazendo de sua pintura uma ação não-projetada e não garantida
contra o risco. Antes de ser cósmico e existencial, seu furor é profissional, técnico: um
raptus que o prende em seu estúdio de artista e força-o a empregar os instrumentos de
seu ofício, as telas e as tintas, de maneira contrária a todas as regras. Suas tintas são as
fabricadas pela indústria: esmalte, vernizes metálicos, fosforescentes. Depois de ter criado
essas maravilhosas matérias corantes, a técnica moderna emprega-as de maneira imbecil,
para dar brilho aos automóveis dos dirigentes e às panelas das donas-de-casa”.46

Vimos que Naves também ressalta o lado da “criação” em oposição ao trabalho,


como recusa de formalização do material. Contudo, tais juízos abalizados devem lidar
também com o aspecto em certo sentido “regressivo” de Pollock, como anteriormente
sugerido, o qual compartilha não só materiais “grosseiros” e “insólitos” 47 da indústria
(paus, colheres de pedreiro, facas, tinta esmalte, alumínio, areia, cacos de vidro), que lhe
dão qualidades tímbricas hostis, brutas e chocantes, mas também um esquema veloz,
semiconsciente, em certo sentido bruto, simples e abstrato de realização, que se diria
muito mais quantitativo do que qualitativo. A dimensão monumental dos quadros viria

45 “Enquanto na indústria o acidente é um fato que destrói a ordem, interrompe um processo regular e
deve ser eliminado, na pintura o aleatório ou acidental é o princípio de uma ordem”. SCHAPIRO, Meyer.
“A pintura abstrata recente (1957)” in:__. A arte moderna - séculos XIX e XX. São Paulo: Edusp, 1996,
p. 282 e 285.
46 ARGAN, Giulio C., op. cit., p. 622.
47 DORFLES, Gillo. Tendências da arte de hoje. Lisboa: Arcádia, 1964, p. 88.

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a “acentuar ainda mais o desaparecimento do que Pollock rejeita: todas as sutilezas e


todos os matizes da pintura tradicional”.48 Assim, um esquema adotado com “furor
profissional, técnico” – ou “ritual”, como propôs Argan –, em muitos pontos
paradoxalmente semelhante ao automatismo industrial. Tais são as características
sociais que o pintor americano mimetiza do seu jeito, é claro, por meio de um métier
particular e complexo. Nesse sentido, o seu trabalho tem um momento concreto,
sensível, qualitativo, único, irredutível e assim oposto ao trabalho abstrato industrial. E,
no entanto, trata-se de um “trabalho” calculado para apagar as pistas de sua
individualidade e repelir de si as antigas qualidades técnicas acumuladas pela pintura
tradicional, tipicamente artesanais, ao abdicar da sutileza, da concreção e da
formalização mais “delicada” de seu material (como apontaram Vallier e Naves),
afirmando-se mais como processo abstrato de dispêndio de energia e recursos materiais
do que como resultado. Assim o faz, sem o saber, tanto quanto mais tende à
inarticulação, à contingência e ao automatismo, domesticando a tela à força de
preenchê-la e de rasurá-la integralmente. Como aponta Dorfles: “Pollock não consegue
constituir um sinal seu que alcance a emblematização e perdure constantemente”.49 Eis
o problema da supressão do sujeito compositivo. As partes então se desqualificam e têm
uma falsa autonomia: o traço isolado só significa dentro da rede e, por assim dizer, “no
atacado”. Nada se constitui, no limite, senão a sua própria lógica coisificada como ideia
fixa. A questão é que esse espírito prático enrijecido é também uma mania nacional.

O artista como produtor/mercador nacional


Clement Greenberg via no aspecto rude e agressivo de sua produção um traço
nacional representativo. E talvez mesmo, diríamos nós, de toda uma formação
territorial. Num maravilhoso fragmento das Minima Moralia de Adorno, podemos
intuir o substrato material dessa técnica “desprovida de expressão” mediada na própria
configuração da paisagem americana:
“O que falta à paisagem americana não é tanto, como gostaria uma ilusão romântica,
ausência de reminiscências históricas, e sim o fato de que nela a mão do homem não
tenha deixado pistas. Isso se refere não somente à falta de campos cultivados, às matas
não desbravadas, geralmente densas e não muito altas, mas sobretudo às estradas. Estas
irrompem subitamente em meio à paisagem, e quanto mais planas e largas elas são, tão
mais desprovida de qualquer relação e com mais violência destaca-se sua pavimentação

48 VALLIER, Dora. A arte abstrata. Lisboa/São Paulo: Edições 70/Martins Fontes, 1986, p. 214.
49 DORFLES, Tendências da arte de hoje, op. cit., p. 88, grifos nossos.
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cintilante em face da vegetação demasiado selvagem do meio ambiente. Elas são


desprovidas de expressão. (...) elas carecem da qualidade suave, tranquilizante, não-
angulosa, das coisas feitas à mão ou pelos instrumentos imediatos desta. É como se
alguém jamais tivesse acariciado essa paisagem. Ela é desolada e desoladora. A isso
corresponde a maneira de percebê-la. Pois o que o olhar apressado viu apenas de dentro
do automóvel não pode ser retido e, como lhe fazem falta os traços, assim também
desaparece sem deixar traços”.50

Aparece evidenciado aqui, a meu ver, o estrato óptico inconsciente da experiência


pollockiana. O aforismo termina colocando uma questão homóloga à apreensão dessas
telas: não é praticamente impossível formar uma imagem mental precisa delas? Não por
falta de trabalho, mas por excesso do trabalho em abstrato, que tende a igualar e apagar
os traços distintivos concretos, dotando-lhes da “má infinitude de um arabesco”, além
do fato de sua dimensão monumental tão afim às dimensões colossais e desumanas da
paisagem americana. Em formato reduzido elas provavelmente tendem a perder a sua
essência, imanente à “affluent society”, e o seu efeito encantatório, que parece exigir
naturalmente a grande escala. Elas parecem contar, assim como Baudelaire, com um
consumidor desatento e desmemoriado, numa época em que a experiência social
declinou em favor da “vivência” e especialmente da “vivência de choque”, típica do
operário, do jogador e da massa urbana – a “experiência hostil e ofuscante da época da
chamada Grande Indústria”.51
Adorno descreve acima uma paisagem em que o trabalho abstrato resplandece
sob o signo de uma calamidade triunfal. De modo que ficamos tentados a perguntar:
poderia a action painting de Pollock não nascer na pátria do trabalho abstrato? 52

50 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia – Reflexões a partir da vida danificada. São Paulo: Ática, 1993,
§ 28, p. 41, grifos nossos.
51 BENJAMIN, Walter. “Über einige Motive bei Baudelaire [1939]”, Gesammelte Scriften, B. I. Frankfurt:

Surhkamp, 1974, p. 609 e ss. Trad.: “Sobre alguns temas em Baudelaire” in: Charles Baudelaire, um
lírico no auge do capitalismo, OE, III. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 105 e ss.
52 “O trabalho parece uma categoria muito simples. A representação do trabalho nessa universalidade –

como trabalho em geral – também é muito antiga. Contudo, concebido economicamente nessa
simplicidade, o ‘trabalho’ é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples
abstração. (...) Essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado mental de uma totalidade
concreta de trabalhos. A indiferença para com o trabalho determinado corresponde a uma forma de
sociedade na qual os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo
determinado do trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho
deveio, não somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação de riqueza em geral e,
como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos em uma particularidade, como determinação.
Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau de desenvolvimento na mais moderna forma de
existência da sociedade burguesa – nos Estados Unidos. Logo, só nos Estados Unidos a abstração da
categoria ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho ‘puro e simples’ [sans phrase], o ponto de partida da
Economia moderna, devém verdadeira na prática.” MARX, Karl. Grundrisse (Manuscritos econômicos
de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política). São Paulo: Boitempo, 2011, p. 57-8.
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Alguns intérpretes, caminhando por uma via mais empírica direta, de fato não afastam o
referencial americano natural, social e urbano de sua obra. Um bom crítico, Leo
Steinberg – que vê nas telas do expressionismo abstrato ainda uma relação visual do
homem ereto perante a natureza e nas telas de Pollock algo como as “moitas” [thickets]
no campo –, ajuda-nos a construir a genealogia de toda uma estética nacional, inserida
aí a action painting, que tende se tornar um corpo a corpo com a vida, o trabalho, a
ação, o happening, o jogo, a coisa real:
“Desde a Segunda Guerra Mundial, a arte americana é impensável sem esse impulso
libertador rumo a algo diverso da arte (...). Arte não, mas indústria. Não ser artesanal,
mas produzir uma série, uma linha. Dar instruções por telefone a uma siderúrgica e
realizar uma arte intocada pela mão do artista. (...) Arte não, mas objetos, e esses objetos
promovidos como coisas acima da arte, embora tenham sido concebidos com um legítimo
objetivo estético: manter a coisa feita inarticulada, suas relações internas tão minimizadas
que não reste nada senão uma relação imediata com o seu ambiente externo”. (...) “Arte
não, mas happenings, arte não, mas ação social, arte não, mas transação, ou situação,
experimento, estímulo comportamental. Arte não, mas investimento”.53

Como reforça ainda mais Argan, “a arte nos Estados Unidos tem suas várias
correntes, porém todas partilham a infração das censuras, a coragem do excessivo e do
paradoxal, da projeção em escala gigantesca. A arte é o local onde se regenera e se
purifica o pragmatismo alienante da vida cotidiana: ela também é pragmática e ativista,
mas positiva e criativa”.54 A positividade, diríamos nós, é o problema crucial para
Pollock: como produzir sem simplesmente confirmar o já existente, abrindo fissuras na
técnica quase-automatizada?

Estratos esteticamente abstraídos


O que parecia um jogo casual ou infundado se põe como segunda natureza.
Façamos o extrato parcial até aqui, antes de apontar onde Pollock dá o seu salto para
além de seu círculo de fogo. Um primeiro estrato social da obra pollockiana seria
formado, assim, a partir da relação de absorção e superação da arte moderna
(dadaísmo, surrealismo, cubismo, mas também Benton, Hofmann e a pintura
americana) e da cultura psicanalítica de seu tempo. Um segundo seria constituído pelo
conflito e o impulso concorrencial das vanguardas no acirrado mercado da arte

53 STEINBERG, Leo. “Outros critérios” in: Ferreira, G. e Mello, C. Clement Greenberg e o debate crítico.
Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 181-2.
54 ARGAN, Arte moderna, op. cit., p. 527.

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americano do pós-guerra: a arte como um modo e um meio de vida; um terceiro estrato,


mais oculto, não obstante fundamental como fomos indicando, seria formado pelo
“espírito objetivo” ou “religião secularizada” constituída pelo protestantismo, o
pragmatismo, o empirismo e o culto social do trabalho.
Se voltarmos à fórmula “expressionismo abstrato”, portanto, veremos que ela tem
alguma precisão, mas desloca o problema: expressão abstrata, sim, radicalmente
antifigurativa, mas de quem ou de quê? Como visto, temos aqui uma obra que questiona
a ideia da expressão do interior de um agente; e que ao se exteriorizar totalmente vale
como um modo de crítica social da alienação do chamado sujeito burguês. No entanto, o
que se exprime nessa ação é menos um “sujeito do inconsciente” do que um
determinado inconsciente social – formações criptográficas de homens convertidos em
mônadas de dispêndio de força de trabalho para um outro.

O devir-nômade como devir-proletário


No sentido proposto, notemos como esse ativismo é paradoxalmente
contemplativo, como diria Lukács55 – uma passividade de espectador diante do
espetáculo da tela, semelhante à do trabalhador industrial que assiste os seus próprios
movimentos reificados, tornados rituais maquínicos exteriores à sua própria vontade.
Essa arte diferenciada tende, assim, paradoxalmente, ao trabalho indiferenciado,
puramente quantitativo, repetitivo e espacializado. Daí também o círculo do mau
infinito que ameaça a produção desses quadros feitos em série, forçando o novo a entrar
no esquema do eterno retorno do mesmo. Com o que se afirma a verdade social
inconsciente de que se trabalha meramente para existir e para continuar a trabalhar. Há
variedade em Pollock, mas há também rotina, variantes, torniquetes, repetições.
Por um lado, então, sua pintura pode ser vista, segundo Argan, como uma
“intensa força contestatória, numa civilização pragmatista, de ação”; por outro, como
reconhece o crítico:
“O credo da sociedade puritana dos Estados Unidos diz: existe-se para fazer. O contrário é
que é verdadeiro: faz-se para existir, é preciso fazer a existência. Antes da ação, não há
nada: não um sujeito e um objeto, não um espaço onde se mova, um tempo em que se
dure. Pollock parte realmente do zero, do pingo de tinta que deixa cair na tela”.56

55 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 204.
56 ARGAN, Giulio, Arte moderna, op. cit., p. 538 e 531-2.
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“Faço, logo existo” – tal seria a fórmula desse sujeito pollockiano, que nos lembra de
perto o “sujeito sem objeto” proletarizado de Marx, que se torna mera potência de
trabalho em abstrato, separado dos meios de produção, há muito convertidos em
Capital, e que só existe de fato em seu ato para o Outro, após a troca. Só após o
sacrifício comercial de si pode ele ser reconhecido socialmente. Como trabalho abstrato
estritamente manual, prescinde-se de fato da consciência teleológica do arquiteto.
Invertendo a antropologia geral do processo produtivo, o homem torna-se aqui, na
prática-limite, o “apêndice da maquinaria” (Marx) ou uma espécie de “abelha” que
executa trabalho material em geral (cf. Kurz) e já não precisa questionar o conteúdo, a
finalidade, a utilidade ou a qualidade do que faz. Tanto faz se são quadros, purgantes ou
bombas. O trabalho reduzido, no limite, a impulso cinético cristalizado em matéria
bruta. Sem o pensar, Pollock aproxima-se perigosamente do ato mecânico, inimigo da
arte – um traço inteiramente visível nesse “devir-imperceptível” (para falar como
Deleuze e Guattari) em direção ao inorgânico, ao literal, em suma, ao Real não
simbolizado.57 No coração desse Real, imagina-se alcançar o ato livre e o ser autêntico;
de fato encontra-se a imitação de um inconsciente “esquizo”, dublê do capital. Seu ritual
vazio extrai um gozo da regressão – oposto ao le goût du néant baudelaireano – que
serve, no limite, como calmante imaginário para superar a frieza do mundo.
De outro ponto de vista, o “devir-nômade” de Pollock esconderia em seu cerne a
condição de um miserável devir-proletário, a posição social de instrumento/objeto do
gozo do Capital, e que nada ganha em ser filosoficamente estetizada e inocentada.58
Essa posição aparece dialetizada o mais literalmente possível num desenho de
Pollock chamado War, de 1947.59 Embora pouco comentado, nele pode-se ver em ato a
transição do concreto ao abstrato da produção pollockiana na massa de matéria
acumulada ao centro. Ao hipostasiar as técnicas do all-over e do dripping, fechando
virtualmente todos os poros e constituindo massas formais-informais, Pollock as
inutiliza como processo criador e construtivo. Tal qual no capitalismo, as forças
produtivas invertem-se em forças automatizadas, virtualmente inúteis, como a arte, e

57 Cf. FOSTER, Hal. “O retorno do real”. Revista Concinnitas, ano 6, volume 1, n.8. Julho de 2005.
58 DELEUZE & GUATTARI, op. cit., vol. 5, p. 57-9. Os filósofos estetizam o devir-proletário como uma
espécie de benção: o “devir-nômade”, o “devir-animal”, o “devir-louco” e outros devires nietzcheanos
modernos “inocentes”.
59 Cf. http://www.metmuseum.org/Collections/search-the-collections/210002644

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principalmente destrutivas. As figuras inúteis se acumulam até o céu, a arte aparece


como vão dispêndio de material. O posterior bloqueio da objetivação e da expressão do
eu ou do espaço de representação vivido passa a expressar dolorosamente a ruína do
representado. O artista revela a si e à própria sociedade como sujeito-sujeitado à
substância do trabalho abstrato, reduzido ao puro gesto mecânico, pronto a ser
deslocado de lá para cá a soldo do capital, no limite convertível numa massa descartável
em campo de batalha. Exatamente isto em War: a conversão do vivo em morto ou em
massa amorfa. Um homem e um boi sangrando são aqui lançados numa pilha de
escombros putrefatos; outro ser é crucificado; nenhuma saída à vista. Em certo sentido,
uma imagem dialética do processo de “proletarização do mundo”: a redução prática das
qualidades naturais e humanas à pura substância de valor ou de corpos extermináveis
pelo estado de exceção mundial na era atômica que então se consolidava. É assim que se
pode retomar o aspecto sensível em sua obra, no sentido de uma resensibilização de
seus materiais.

Fora da teia – a posição do sujeito como negação


Essa então a chave negativa para quebrar o encanto. É inegável que sua arte se
colocava, tal como o dadaísmo e o surrealismo, como uma contraposição direta ao que
essa sociedade considerava valor e utilidade. A feiura, a agressividade, o gesto de
gratuidade e desperdício dessa arte – que perdeu hoje quase todo seu impacto social e
político, a ponto desses quadros valerem milhões e alguns críticos ou proprietários
magnatas os terem como “ideal de beleza” e “expressividade humana” (claro que por
boas razões inconscientes) – respondiam diretamente a uma realidade social coercitiva.
Na arte moderna, a planaridade e a desestruturação funcionavam como
significantes da ausência de referenciais e de fundamentos sociais estáveis no reino do
puro movimento unificado do capital, tanto quanto do empobrecimento dos meios
expressivos e da experiência social em geral. O ascetismo e a fragmentação cubista em
Picasso expressam a negatividade de um “espaço social abstrato” constituído como
“homogêneo e quebrado”, povoado de tensões.60 Em Pollock, ela se faz assim processo,
dinamismo, luta entre o que coexiste. O que luta e se contrapõe, no entanto, é o enigma

60Cf. as “contradições do espaço” em LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos,


1974, capítulos IV e V. Para uma visão menos favorável, ver os textos de A. Jappe nesta edição.
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social de nosso tempo. Um tempo que se autodestrói em seus antagonismos sistêmicos.


É por aí mais uma vez que veríamos sua forma e sua técnica mimetizarem um tanto
passivamente a ordem alienada e autodestrutiva contra a qual se rebela, a forma
abstrata mesma das relações capitalistas. O chamado “formalismo” pollockiano expressa
o formalismo vazio dessas relações. Por isso também elas não têm nenhum referente
empírico preciso, podendo equivaler, como o dinheiro, a qualquer coisa. A liberdade de
referenciais mimetiza ao mesmo tempo a emancipação do sujeito e a violência do
processo de sua formação. De fato, o trabalho só se pôs modernamente, vale lembrar aos
apologistas, como “trabalho livre” de amarras e de conteúdos substanciais enquanto
livre empresa e assalariamento, ambos constitutivos da propriedade privada moderna. A
expropriação histórica da força de trabalho, como abstração realizada, já é o prenúncio
da regressão em direção ao amorfo dos quadros de Pollock.
Se não se forçar um pouco a interpretação talvez não se possa chegar ao ponto de
inflexão contido no desdobramento da obra: como argumentamos, o automatismo da
ação destrói no limite o plano construtivo, ao mesmo tempo em que o absolutiza como
processo. Lá onde o movimento se absolutiza tudo contraditoriamente se coisifica ou
paralisa numa massa pegajosa, confusa, arruinada – tal qual “uma garatuja que apaga
todas as linhas”, criando uma “ruidosidade visual”, uma “confusão que impede todo
acontecimento”.61 Veja-se além de algumas já citadas, Number 1, 194962, ou essa outra
obra das mais abarrotadas e confusas de Pollock: Number Five, 194863 (aliás, vendida
recentemente por US$ 140 milhões!).
Pollock coloca o enigma em pé, mas não pode resolvê-lo, pois tende a demolir a
saída construtiva. Nessa profusão total dos trabalhos, o acaso e o arbítrio se afirmam
secamente e como que se naturalizam (“Eu sou a natureza”). A “morte da arte” a faz
renascer cada vez mais como trabalho abstrato, igual e indiferente. 64 Aqui, a pintura é
talvez mais espaço que tempo, mais acúmulo de material que de tensões, e como diria
Deleuze, mais “reproduz o visível” do que “torna visível”. Nesse contexto, a obra se

61 Em seu livro sobre Francis Bacon (A lógica da sensação), Deleuze percebeu essa problemática em
Pollock. Mas a questão já se colocava em Mil platôs (op. cit., vol. 4, p. 160-162).
62 Cf. http://www.artchive.com/artchive/p/pollock/pollock_1_1949.jpg.html
63 Cf. http://www.wikipaintings.org/en/jackson-pollock/number-5-1948-1
64 Isso é cada vez mais “claro” para os discursos fim de linha: “a verdadeira descoberta filosófica (!) penso

ser, na verdade, que não existe uma arte mais verdadeira do que outra (...): toda arte é igual e
indiferentemente arte” (DANTO, Arthur. Após o fim da arte. São Paulo: Edusp, 2006, p. 38.)
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acumula e se arruína. Daí a provável razão de Pollock ter reconfigurado o all-over e o


dripping no início dos anos 50. Até o seu abandono. A lógica da imediaticidade
produzida (ou “acaso mediado”) precisava ser novamente mediatizada. O que
equivaleria a uma tomada de consciência do não-idêntico: tanto do limite de sua forma
de objetivação exteriorizada, enquanto ritual de dispêndio de energia abstrata, como
daquilo que não se deixa reduzir ao espaço plano e liso da linha abstrata e desmedida.
Assim, numa das obras mais bem realizadas (e mais comentadas) da fase final do estilo
dripping – Autumn Rhythm (Number 30, 1950)65 –, o procedimento relembra a força
visual de Lucifer e Lavender Mist, mas numa intensidade de sensações superior,
ganhando mais movimento e multiplicidade, não obstante uma certa contenção na
técnica que impede a total extrusão do gesto, que (n0s) emociona muito.
As sugestões de movimento e parada, convergência e tensão, potência e
fragilidade ou delicadeza natural (o ritmo outonal dos tons terra) são plenamente
conseguidas. A tela se preenche, mas não se turva. Algo dessa movimentação pode ser
dito do “mar e as águas-vivas” de Number 32, 1950 66, tomada como modelo por Naves.
Levada ao extremo em sua fase preto e branco, a poética do excesso atingia um
limite intransponível, que, caso semelhante em Beckett (embora a sua poética seja a do
sinal de menos), tendia a autodestruir-se, empobrecendo radicalmente o pintado e o
composto. Não era ainda o limite nem o fim da arte moderna, como sabemos. Isso
porque ela estava destinada a se afirmar cada vez mais, de modo frágil, irônico ou
cínico, num mercado repleto de concorrentes. No caso, o que há de novo, o que vem
depois do caráter de mercadoria internalizado pela destruição pictórica pollockiana, é a
“mercadoria integral” da indústria cultural. Só para arejar um pouco o debate e até para
medi-lo: se em Pollock um trabalho compulsivo se apresenta como fundamento, em
Andy Warhol, por exemplo, têm-se a exposição de sua pura coisificação: latas de sopa ou
feijão, imagens de Marylin ou Mao – ou sua pura síntese abstrata: um painel em silk-
screen chamado “200 One Dollar Bills” (1962), uma obra comprada recentemente, aliás,
por algum idiota por US$ 43,7 milhões! Warhol avisara: “making money is art, and work
is art and good business is the best art”. Já em chupins como o alemão Hans-Peter

65 Cf. http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/57.92. Veja-se também a maior sutileza e a


“economia” de Number 18, 1950 http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-
online/show-full/piece/?search=Jackson%20Pollock&page=1&f=People&cr=8 (Acesso em 12.01.13).
66 Cf. http://www.wikipaintings.org/en/search/Number%201,%201949/1#supersized-search-282426

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Feldmann, a regressão se finaliza: o espetáculo do dinheiro agiganta-se na exposição de


um prêmio de US$ 100 mil, em notas reais de 1 dólar, forrando as paredes do Museu.67
A transgressão verdadeira seria não aceitá-lo, ou talvez doá-lo para alguma causa.
Queimá-lo seria real demais, uma coisa que o sujeito estético privado reprime
violentamente como o único limite impossível de ultrapassar.
Voltando aos impasses de Pollock. Três telas apresentam lógicas de composição
um tanto diferentes: Out of Web (1949), Blue Poles (1952) e The Deep (1953). Nas três
obras, o movimento não se totaliza, deixa lacunas, abre espaços de respiração, deixa
existir algo sólido – fora da rede –, que bloqueia e interrompe o movimento das linhas
disparatadas.
Particularmente em Out of Web68, Pollock literalmente recorta o material da tela,
nega os padrões fixos e destaca figuras etéreas que não chegam a se constituir (em tons
de terra totalmente contrastantes) em meio à tempestade de costume. O espaço se
articula mais e esclarece as tensões. O pintor passa a controlar e reduzir o seu próprio
anseio de elaboração. O artifício lógico é desfetichizado ao se resensibilizar
mimeticamente o material. A ideia fixa do processo é fluidificada pela ideia
minimamente construtiva de figuras, que domesticam o movimento desenfreado. Uma
tensão dialética se produz. A formação se repõe como problema mais enfaticamente.
Pela mesma época, Adorno explicava como Schoenberg, “o compositor dialético”
por excelência, só progride em suas últimas obras quando paralisa e supera a técnica
dodecafônica autonomizada e fetichizada. Imiscuindo-se subjetivamente no objeto
autônomo, ele “viola a série” – tal qual um representante do sujeito social que suprime
estruturas objetivadas: “o compositor dialético paralisa a dialética”.69 O que se dá
somente quando se supera o elemento regressivo contido no “culto do método

67 Dedico esta nota especialmente para Mr. Arthur Danto:


Cf. http://www.thisiscolossal.com/2011/05/first-look-hans-peter-feldmann-suspends-100000-dollar-
bills-on-the-walls-of-the-guggenheim-museum/ (Acesso em 05.12.12).
68 Cf. http://www.wikipaintings.org/en/jackson-pollock/number-7-out-of-the-web-1949#supersized-
artistPaintings-282325
69 ADORNO, Philosophie de la nouvelle musique, op. cit., p. 133.

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absoluto ou do material absoluto”.70


É algo dessa dialética, certamente, que aparece mais tarde na experimentação de
de sua própria lógica de criação – veja-se Blue Poles, 195271 : a apresentação do máximo
de tensão entre os postes azuis e o que resta fora deles, limitando e bloqueando o fluxo
do trabalho insano: como uma espécie de lei subjetivamente mediada que se impõe
para barrar as teleologias cegas e sem fim da esfera privada de sujeito. O trabalho
excedente, levado ao extremo nos detalhes acumulados, aparece como vão, supérfluo,
contingente, mutável. A lógica que tornou obrigatória o dispêndio maquínico de
trabalho se torna ela mesmo aleatória – um resultado produzido, também suprimível.
(Ou invertendo o ponto de vista, as forças produtivas atuais ultrapassam e já corroem os
limites ou entraves postos, fazendo relativizar o dispêndio absurdo). Noutros termos, se
trata quase de uma espécie de desontologização do trabalho exteriorizado e ritualizado:
uma negação que põe a contingência da contingência, e com ela uma possível economia
de meios, uma maior sensibilidade compositiva (e não só cumulativa) que limita – mas
sem suprimir – o excesso produtivista. Só assim a arte apenas promete a reconciliação:

70 Em outro texto que constituiu a linha condutora deste ensaio, Adorno comenta que a pintura, enquanto
“arte do espaço”, só se dialetiza temporalmente quando se tensiona internamente e não quando
simplesmente representa o movimento: “Painting that behaves dynamically, as if it were capturing
temporal events, as the futurists desired and many abstract painters attempt to do with circling figures,
exhausts itself, at best, in the illusion of time, while the latter is incomparably more present in a picture
where it has disappeared among the relationships on the surface or the expression of what has been
painted”. Assim, quando suprime, por meio da construção, a rigidez do impulso mimético, e vice-versa.
“Yet this process, as a process that is immanent in the thing itself, and by no means belongs merely to
the mode of its production, is essentially one of tensions. If these are lacking, if the elements of the
painting do not seek to get away from each other, do not, indeed, contradict each other, then there is
only a preartistic coexistence, no synthesis. Tension, however, can in no way be conceived without the
element of the temporal. For this reason, time is immanent in the painting, apart from the time that is
spent on its production. To this extent, the objectivization and the balance of tensions in the painting
are sedimented time”. Finalmente, a construção racional e a mimese mediam-se dialeticamente fazendo
divisar um estado social em que a estética não seria mais uma esfera separada da vida, nem o sujeito
burguês uma mônada de trabalho-dinheiro privada. Ao mesmo tempo, essa supressão faz divisar o atual
estado de regressão à barbárie pré-individual. “The forms created by some painters, wildly proliferating
between patterns and organisms, as their makers play over into three-dimensionality - the illusion that
nonperspectivist painting had destroyed — are evidence of this. It is no accident that the turmoil within
them is so musiclike. The most extreme esthetic progress is intertwined with regression. What art
becomes, depends on whether its progress retains power over the regressive element, or whether it
succumbs to it with the barbaric literalness that triumphs equally in the cult of absolute methods or of
absolute material.” (ADORNO, Theodor W. “On Some Relationships between Music and Painting”
[1965]. The Musical Quarterly, Vol. 79, No. 1, Spring, 1995, pp. 66-79, Trad. Susan Gillespie, grifo meu).
71 Cf. http://cs.nga.gov.au/zoom/ZOOM.cfm?zImagePath=36334&View=LRG&IRN=36334

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a paralisação do fetiche automático, o controle social consciente das forças produtivas.


Mais uma vez Pollock mostra por que é um inventor radical de “imagens dialéticas”.72
Por fim, em The Deep, 195373, utilizando o método tradicional do pincel, temos a
sugestão das profundezas, do buraco, da falta, e, com eles, do real e do desejo, que
alguns viram como um traço feminino – mas que parece antes de mais nada uma
criação de uma zona de sombra impenetrável ao olhar dominador (do pintor e dos
observadores). Mais precisamente, trata-se do bloqueio do perspectivismo ordenador
renascentista (uma solução que aparecia germinalmente desde A Queda de Ícaro de
Brueghel). Ela permite múltiplas perspectivas, mas o ponto de vista mais essencial,
ligado à materialidade da própria coisa, é o de um furo ou explosão no centro da massa
de tinta branca (e de sua simbologia consagrada: o céu, a pureza, o homogêneo, o
mundo branco-ocidental).

**

Nesta altura, pode parecer menos abstrata a afirmação de Naves de que o pintor
buscava “uma resistência ao próprio ato de pintar, um método que possibilitasse que as
formas daí resultantes fossem a concretização da própria dificuldade de formalizar”. Em
termos benjaminianos, a arte de Pollock passa a configurar imagens dialéticas destas
dificuldades: saltar fora da rede, parar a locomotiva do progresso, explodir o continuum
vazio e homogêneo da história.

(setembro 2012 /janeiro 2013)

72 “A ambiguidade é a manifestação imagética da dialética, a lei da dialética na imobilidade” (W.


Benjamin).
73 Cf. http://www.wikipaintings.org/en/search/jackson%20pollock/1#supersized-search-282190

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Tímida, sim, mas um tantinho desrecalcada


Ainda um exercício em torno da matéria de Naves e de Guignard

“(...) todas as formas mais fortes lhe desagradam.”


(Rodrigo Naves, A forma difícil).

Eraldo Santos

Timidez
O que poderá significar algo como uma forma tímida? Será essa
pergunta que nos orientará na leitura de “O Brasil no Ar: Guignard”, ensaio pertencente
ao livro A forma difícil, do crítico materialista Rodrigo Naves1. Não pretendemos, tal
como também não foi a pretensão de Naves com seu estudo sobre o artista plástico suíço
radicado no Brasil, esgotar nesse curto percurso nosso objeto. Menos do que um
subterfúgio, trata-se aqui de uma decisão metodológica inerente a qualquer ensaística:
“certamente o objeto espiritual, comporta em si mesmo aspectos infinitamente diversos,
cabendo a decisão sobre os critérios de escolha apenas à intenção do sujeito do
conhecimento”2. Isso não significa, todavia, que o elenco de critérios possa ou que será
definido arbitrariamente. A escolha, aqui, busca ser precisa. Precisa porque ao girar em
torno de uma possível resposta à questão estaremos lançando luz também sobre a
maneira como Naves esclarece em seu ensaio alguns aspectos fundamentais da obra de
Alberto da Veiga Guignard. Mas precisa também porque vinculada necessariamente à
primazia do objeto, ao buscar, por constantes esforços, iluminar o traçado estrutural
imanente ao texto sobre o qual estamos nos debruçando, investigando como ele se
organiza em sua dinâmica interna, como nele mesmo se fundamenta sua própria

1 Rodrigo Naves, “O Brasil no ar: Guignard”. A forma difícil. São Paulo: Ática, 1996, p. 131-143. Tendo em
vista a grande quantidade de citações necessárias para uma análise que acompanhe, como o queremos,
de perto os movimentos estilísticos do ensaio, doravante as citações de passagens do texto de Naves
serão feitas no corpo do nosso próprio texto, entre parênteses.
2 Adorno, Theodor. “O ensaio como forma”. In Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003, p.33.

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consistência.3
Naves lançará mão, para tentar explicar o que se passa na organização interna à
forma artística de Guignard, de uma enorme diversidade de termos e expressões – de
recursos poéticos, de metáforas (“somente roçar o espaço, sem vertebrá-lo” [p. 141],
“diluir a consistência das coisas” [p. 131]), de filosofemas, oriundos da ontologia, da
metafísica (“os únicos atributos possíveis de uma extensão que não se deixa recortar” [p.
142], “tensão entre potência e ato” [p. 136]), de vocábulos referentes ao domínio da ética
(“que se engrandece com o sentimento das próprias renúncias” [idem]) e correntes no
domínio da crítica política (“mais uma crônica de violência do que de civilização”
[idem]).
Um leitor desavisado, que não leu outros dos ensaios de Naves, poderia
taxativamente afirmar, sem muita desconfiança, que esse é o estilo característico do
autor – e prosseguir sem inquietudes. Mas talvez seja necessário ir à frente de uma
maneira mais tateante. Não parece que essa seja uma questão que se resolva com tanta
facilidade. Se, decerto, há algo como o “estilo de Rodrigo Naves”, que nesse texto
também estaria presente, no mínimo deveríamos notar também que esse recurso
estilístico, ao qual terminamos de nos referir, é empregado neste ensaio exaustivamente
– é quase impossível não encontrar uma frase no texto em que não se torne patente o
esforço em tentar explicar, por um vocábulo ou expressão – metafísica, filosófica,
metafórica, ética, etc. – a timidez tão característica à forma de Guignard. Isso nos
impulsiona a levantar uma hipótese: não se trata aqui de “algo do autor”, característico
dele, idiossincrasia; mas de algo do autor diante de uma determinada obra. Há qualquer
coisa de uma iminente tensão na timidez da forma de Guignard que desafia o trabalho
do conceito tal como ele opera em situações comuns. E Naves, sensível a isso, faz com
que a sua prosa mimetize algo dessa tensão do objeto em direção ao qual ela se
aproxima.

3 Cf. Jorge de Almeida, “Primazia do objeto”. Crítica dialética em Theodor Adorno. Música e verdade nos
anos 20. Cotia: Ateliê Editorial, 2007, p. 13-26. Almeida começa a apresentar nesse momento do seu
texto os critérios para a crítica artística que caracterizarão a ensaística adorniana desde seus primeiros
momentos, quando o filósofo inicia seus trabalhos como crítico musical em Frankfurt: se a tradição, à
qual podíamos nos vincular com relativa segurança, nos oferecia, através dos gêneros, formas e
temáticas, um critério para a produção e avaliação da obra de arte, após o horror da Primeira Guerra,
arte e crítica deveriam se voltar para a imanência da obra artística, isto é, para a consistência interna
[Stimmigkeit] da configuração das obras de arte, como caminho para avaliar a sua força criadora e
revolucionária.
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Originalidade e dificuldade
O quadro está aí; podemos olhá-lo, mas para onde olhar
precisamente? A tensão que a obra de Guignard causa é a tensão de uma constante
inquietude. Onde se fixar, diante de um território “tão imaterial, que parece pairar além
das definições, e que agora é profundidade, instantes depois se torna puro véu, para logo
transformar-se numa garoa fina, que dilui a consistência das coisas?” (p. 131). Nessa
“imensidade relutante”, não encontramos nenhum lugar onde possamos nos segurar,
onde possamos nos prender. “Resta correr os quadros de alto a baixo, na esperança de
encontrar um apoio que possa sustentar formas estáveis, que deem direção e alguma
ordem às obras. Em vão” (p. 132). Não há mais onde se apoiar, não há mais hierarquia
do que está disposto, como é natural na estrutura formal das obras clássicas. Resta-nos
vagar diante da “dinâmica singela e aquosa” das gigantescas paisagens de Guignard,
que, quanto mais espaço nos oferecem, menos nos afirmam. Tudo parece estar prestes a
desaparecer sob a névoa ou por ela ser corroído. Não há aqui a estrutura forte dos
quadros cubistas, que choca ao tornar patente a impossibilidade da convivência pacífica
dos elementos (p. 133); nem a violência de uma natureza imponente, capaz de nos elevar
ao sentimento do sublime, à sensação de se estar diante do que é grande e poderoso
demais, como em Caspar David Friedrich (p. 131); nem a potência de uma natureza
pujante, que transborda e se exterioriza quando elevada à máxima corrosão pela luz
impressionista, como nas Ninfeias, de Monet (p. 135).
Qual seria, então, a configuração formal da obra de Guignard, como transpô-la
através do pensamento conceitual? Difícil. Mas exatamente por quê? Porque “o mundo
parece prestes a escorrer, como se o víssemos através de uma janela molhada” (p. 134).
Porque aqui o mundo é formado por uma “matéria rala” (idem). Porque o mundo de
Guignard “não vem à tona” (p. 135). Só nos são entregues, além dessa matéria difusa e
inquietante, essas singularidades, soltas no espaço – bandeirinhas, igrejinhas, casinhas,
homenzinhos – que parecem nos lembrar que não estamos em qualquer mundo “de
castelos imaginários, brumas antigas” (p. 138), mas aqui bem perto, em Ouro Preto, ou
numa cidadezinha mineira qualquer, perdida numa noite de inverno que tenta eclipsá-
la; pequenos marcadores que nos transportam do lugar-nenhum para o Brasil.
Esse mundo, em sua morosidade, flerta intensamente com o informe. Derrete,
escorre, não se materializa. O texto de Naves quer a ele dar uma forma, e nisso insiste.
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São necessárias metáforas, comparações, imagens; recorre-se aos termos que


conhecemos previamente, ao vocabulário que se tem à mão, proveniente dos campos do
saber com os quais trabalhamos, do nosso cotidiano mais comum, para ver se esse
mundo de alguma maneira nos pode ser in-formado. Mas ele escapa, porque é de sua
natureza ser de uma formalidade que não se determina com precisão. O ensaio de Naves
– quadro que é – insiste em pintá-lo, ou talvez repintá-lo, esse mundo que resiste,
porque nos escapa por entre os dedos.
Naves lhe rodeia, lhe observa. Extrai-lhe uma metafísica e uma política. A
princípio isso poderia parecer uma extravagância – que dimensão metafísica e que
caráter político poderiam existir ali, por entre as bandeirinhas e as palmeiras, sob ou
sobre aquelas brumas que quase tudo engolem?

No ensaio, elementos discretamente separados entre si são reunidos em um todo


legível; ele não constrói nenhum andaime ou estrutura. Mas, enquanto
configuração, os elementos se cristalizam por seu movimento. Essa configuração
é um campo de forças, assim como cada formação do espírito, sob o olhar do
ensaio, deve se transformar em um campo de forças4.

O trabalho ensaístico consiste justamente em reunir aqueles objetos que, à


primeira vista, se oferecem como diferentes entre si e separados no mundo. Nada
aparentemente mais distinto, de fato, do que bandeirinhas e atributos da extensão,
palmeirinhas e violência, igrejinhas e essências absolutas. O que Naves nos mostrará é
que há algo na própria organização formal do material artístico, na maneira como o
artista organiza sua obra, que espelha algo da época em que ele vive e que manifesta
algo da pretensão de sua arte. O ensaio busca cristalizar, justamente através da
linguagem da qual lança mão para iluminar o seu objeto, esses elementos pictóricos,
aparentemente dispersos, que se relacionam nas paisagens do pintor. Para compreender
como ele efetua tal cristalização, devemos entender por que uma ontologia da forma
artística de Guignard, como Naves parece esboçar, é necessária e por que ela traz em seu
bojo uma concepção de política que é inerente a tal forma. Forma e concepção que o
ensaísta tanto descreve como critica. Pois essa tendência à dissolução tem suas
consequências – se Naves pode dizer do pintor que “suas soluções – de resto,
extremamente originais – também revelam muito de suas dificuldades” (p. 133), isso

4 Adorno, Theodor, op. cit., p. 35.


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ocorre porque há algo nas decisões de Guignard que carregam uma tensão irresolvida e,
mais precisamente, uma tensão política irresolvida. O ensaio de Naves transforma, com
seus movimentos, tal tensão em “campo de forças”, explicita-a.

Uma extensão sem atributos


Que levemos a sério as afirmações de Naves quando ele ressalta a pouca
disponibilidade da natureza de Guignard para “individualizações fortes” (p. 134).
Consequência necessária desse caráter “ralo”, “atmosférico”, “aquoso”, “imaterial”,
peculiar à forma como o que é natural se manifesta nas paisagens do pintor. Já vimos
que o que dá alguma materialidade às paisagens é aquilo que é muito diminuto e
modesto, os pequenos elementos que surgem aqui e ali, quase desaparecendo por entre
as brumas. Sobre eles, Naves comenta: “Balões, igrejinhas, palmeiras, etc. constituem os
únicos atributos possíveis de uma extensão que não se deixa recortar” (p. 142). Aqui o
ensaísta lança mão, diante de seu objeto, de dois conceitos tradicionais da ontologia:
“atributo” e “extensão”. A extensão, não custa lembrar, é a característica fundamental
dos corpos – pode-se retirar tudo de um corpo, menos sua extensão. Um corpo pode
perder ou ter alteradas todas suas características – cor, formato, peso, etc. Enquanto ele
estiver no espaço, contudo, ocupará uma região nele, sendo, portanto, propriamente
extenso. Em suma, a extensão é o limite máximo do que posso abstrair dos objetos que
estão no espaço se eu quiser que eles continuem sendo corpos. O atributo, por sua vez, é
isso que pode ser removido dos predicados de um ente particular, sem detrimento da
alteração de sua essência; como no exemplo anterior, tudo o que num corpo não é
essencial para que ele seja pensado enquanto tal. Um corpo não azul continua sendo um
corpo; a cor, portanto, é um atributo dos corpos, não uma característica essencial deles.
O que Naves traça aqui é a figura de uma extensão sem atributos, que resiste a se
deixar recortar em objetos individualizados e que só se materializa raras vezes nesses
modestos elementos estanques. Se não fossem eles, só restaria um espaço sem atributos
que o caracterizassem, um espaço essencial, que não permitiria que o observador visse
nele ou sobre ele algo, um espaço abstraído de conteúdo. Talvez seja esse o sentido da
luz meio platônica (p. 135) que percorre os quadros de Guignard: é a luz da Ideia,
daquilo que não carrega a determinação particular dos entes, mas a universalidade de
um conceito arquetípico fundamental, para o qual a forma artística quer saltar.
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E não seria justamente esse incômodo que temos ao percorrer os quadros de


Guignard, acostumados que estamos em encontrar hierarquias, níveis de importância?
Procuramos ver algo e o que nos é dado é o “obstáculo à visão” (p. 138). A forma de
Guignard chega muito perto de uma forma que seja pura forma, sem desníveis, sem
particularidades; outra maneira de dizer que ela chega bem perto do informe, pois,
diante da resistência firme de uma substância que insiste em não receber forma, a
formalização não faz sentido. No nível da composição da pintura, isso tem um efeito
muito claro: é enfraquecido o limite entre o espaço e as figuras, sua articulação é
dissolvida (p. 133). A tendência é que o quadro se dilua em mera bruma.
O impulso para a formalização, que não está na própria forma, é buscado por
baixo dela, pelo que ela pressupõe, por baixo dessas brumas – lá, com certeza, deve
haver algo que possa tornar esse mundo uma realidade com rosto definido. Quando,
inquietos, cansamos, enfim, de tentar achar nos quadros algo que deveríamos estar
procurando, passamos a esperar

que, a qualquer momento, uma figura se erga das brumas e catalise as forças que
aquelas massas turvas deveriam conter. Nada. A ausência de dinâmica nesse
mundo homogêneo e contido suspende qualquer possibilidade de irrupção. Por
certo, lá dentro, lá onde reinam aquelas névoas satisfeitas, tem lugar todo um
jogo de atrações. Mas são tão sutis essas afeições, essas afinidades eletivas, que
apenas podemos suspeitar de sua existência, ao mesmo tempo em que somos
relegados a ficar indefinidamente de fora, o que reafirma a nossa falta de
comunicação com esse meio doce, não fosse ele também tão triste por não ter
conseguido vir à tona (p. 136).

Esperamos, sempre e cada vez mais, algo, que, todavia, nunca chega. É aí que
Naves mostrará a face política da forma artística guignardiana. Para que tanta força
empreendida para evitar que as “formas subam à superfície” (p. 137)? Por que tal receio
de individuação? Por que tamanha vontade de dissolução? Por que tamanha timidez da
forma? O meio doce, nossa promessa de felicidade, quer vir à tona, mas o pintor não
deixa.
Trata-se da aposta que Guignard faz, e que organiza sua forma artística: uma
aposta segundo a qual a essência é sempre mais plena do que a manifestação sensível
pode dar conta (p. 138), de que a solução do mistério é sempre inferior às promessas
(idem). Ao fugir do impulso formal, ao optar por uma ontologia das essências que
insiste em afastar uma ontologia dos atributos, o pintor pressupõe determinada

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estrutura social. Um meio tão lábil só pode pressupor “uma coletividade que mal
arranhe suas superfícies”, “intercâmbios amenos” entre os homens e entre eles e as
coisas e nunca uma “sociabilidade baseada em relações produtivas” (p. 134). De fato,
não encontramos aqui arranha-céus, ferrovias, operários... Basta que puxemos pela
memória um quadro como a Estação de Ferro do Brasil de Tarsila para que percebamos
que o projeto de Guignard pressupõe uma sociabilidade humana radicalmente diferente.
Seu projeto de modernidade artística, distanciando-se de outros vanguardistas
brasileiros, opõe-se à modernidade econômica que, como discurso ou como prática de
dois gumes, tomava conta da paisagem brasileira. Por isso as afirmações categóricas de
Naves: “o mundo do trabalho e suas trocas não atrai a atenção de Guignard” (p. 134), “o
Brasil de Guignard volta as costas ao trabalho, à vida ativa e a seu poder de
formalização” (p. 142). Afasta-se do Brasil burguês, pleno de aspirações de modernidade
e em vias de uma modernização complicada, e vai em direção ao país do campo, do
interior, e ao seu tempo manso: em Guignard, a modernidade é pensada a partir de
protocolos de retorno.
É justamente porque vê uma relação necessária entre o formalismo da obra e um
determinado ideal de organização da sociedade, isto é, uma forma social precisa, que
Naves pode dar um salto e referir a forma de Guignard a um projeto de nação. Projeto
que quer garantir a tal nação – novamente se utiliza aqui termos da ontologia – uma
certa transcendência. Transcendência que tornaria a imagem dessa nação imune a
“qualificações circunstanciais” (p. 141). Mais do que isso, que lhe possibilitasse “uma
essência inacessível e razoavelmente poderosa que a resguardasse de materializações
mundanas e cabais, deixando permanentemente aberta a possibilidades de novas
configurações” (idem). No traçado do pintor, o Brasil torna-se o país das múltiplas
possibilidades, país em potência (e não em ato), país de essências puras (não
contaminadas por atributos). Aparentemente na superfície do quadro que vemos, na
verdade o Brasil está no fundo; no fundo das brumas, de onde esperamos que ele saia a
qualquer momento.
As igrejinhas e as névoas de Guignard são, de fato, uma solução formal curiosa
para o problema referente ao conhecido “desrecalque localista” que Antonio Candido5

5 cf.Candido, Antonio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945”. In Literatura e Sociedade. Estudos de teoria
e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, p. 129-66.
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caracterizou como momento fundamental da forma artística brasileira. Tratar-se-ia, não


custa lembrar, de buscar no caracteristicamente nacional, no intrinsecamente brasileiro,
a força e a originalidade da obra de arte, seu material e sua forma. Nesse sentido, os
atributos ínfimos de Guignard parecem, num primeiro momento, surgir para invocar
saudosamente um Brasil anterior à formalização burguesa. Mas esse pequeno
desrecalque logo encontra uma espécie de bloqueio – as brumas sempre chegam,
reagindo como se, num ato de distração morosa, tivessem deixado escapar aquelas
materializações. O que não impede que, de fato, essa forma um tantinho desrecalcada
invoque a nostalgia da vida calma de interior, disso que se confundirá sob a égide do
capitalismo, com cansaço e preguiça. Se, por um lado, poder-se-ia afirmar que “o
desrecalque localista seria uma conquista importante do primeiro Modernismo e
consistia na superação dum sentimento de inferioridade que nosso povo, mestiço, de
nação muito jovem, sentia em relação ao europeu, mais antigo, depositário de cultura
milenar”6, por outro, não se pode deixar de ter em conta que esse retorno a nós mesmos
consistiu no mais das vezes num retorno aos nossos mitos fundadores. Por isso, não se
pode deixar de ter em vista que há, decerto, um viés crítico em tal projeto artístico do
pintor. “A história do Brasil é mais uma crônica de violências do que de civilização” (p.
142), e, por isso, opta-se por uma epokhé; sob o risco de um critério violento, opta-se
pela suspensão, por certa reserva cética, até que outro critério melhor surja. Daí o
sentido desse medo de afirmar, pois afirmar é dar forma a algo, é decidir. E estamos em
estado de suspensão, com medo de mais uma vez darmos forma à violência. É,
portanto, nessa dialética irresolvida que a forma de Guignard flerta com sua própria
dissolução, com uma identificação definitiva com uma não-forma ou, melhor, com uma
forma aberta a potencialidades.
Mas resta ainda mais tensão, que também não se resolve. Num trecho já citado
aqui, ela é explicitada: trata-se da reafirmação da “nossa falta de comunicação com esse
meio doce, não fosse ele também tão triste por não ter conseguido vir à tona” (p. 136).
Se por um lado há a esperança de que a potencialidade se torne ato, por ora aquela

6 Cavalcante, Jurandir. “Desrecalque localista” na visão de Mário de Andrade. Dissertação (Mestrado em


Letras – Literatura Brasileira). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2010, p.6 Disponível em:
http://ia701207.us.archive.org/8/items/desrecalqueLocalistaNaVisoDeMrioDeAndrade/DesrecalqueLo
calistaNaVisoDeMrioDeAndrade.pdf. Acessado em 05.09.2012.
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natureza surge como mera bruma que, no limite, não nos permite vislumbrar um futuro,
mas “apenas entrever seu ocultamento” (p. 143).
Se a recusa da identidade fixa, da individuação, possui sua razão de ser, por seu
caráter crítico, por outro lado, corre-se o risco de permanecer sempre em estado de
suspensão, em que nada é definido – ou quase nada, só alguns elementos modestos,
aqui e ali, recortando de leve a paisagem. É aí que a forma tímida mostra seu caráter
político. Pois até que ponto a timidez da obra de arte não espelhará uma profunda
timidez nas proposições, uma profunda timidez por ações, uma insegurança diante do
mundo? Esse é o impasse da forma de Guignard. Roberto Schwarz, num ensaio em que
analisa justamente os impasses um tanto semelhantes relativos à poesia pau-brasil, nos
lembra de uma valiosa lição de Adorno.

Até segunda ordem, o processo histórico não caminhou na direção dos objetivos
libertários que animavam as vanguardas política e artística. Assim, aliados à
energia que despertaram, esses objetivos acabaram funcionando como
ingredientes dinâmicos de uma tendência outra, e hoje podem ser entendidos
como ideologia, de significado a rediscutir. Nem por isto são ilusão pura, se
considerarmos, como Adorno, que a ideologia não mente pela aspiração que
expressa, mas pela afirmação de que esta se haja realizado7.

Decerto não se pode deixar de lado a aposta política inovadora que a obra de
Guignard apresenta. Mas essa “tendência outra”, à qual Schwarz chama a atenção, é
justamente o perigo ideológico de uma postura política que, ao afirmar continuamente
que é melhor não dar forma a ações definidas, faz acreditar que permanecer nas brumas
dá certo, já deu e que continuará dando. É assim que a ideologia, que não é
necessariamente ilusão, pode cristalizar-se como ameaça.
Mas, se a dialética é esse devir dos contrários, cumpre também perceber o lado
positivo da negatividade, esse momento em que se manifestaria a abertura esperançosa
e transformadora que à aspiração ideológica seria subjacente. Talvez uma constatação
falte à análise cuidadosa de Naves, que, ao se concentrar nos resultados negativos do
projeto de Guignard, não explicita com mais clareza a contradição no interior da qual o
projeto artístico do pintor se movimenta. Remetendo-nos ainda a outro texto de
Schwarz, sobre o Oito e meio de Fellini, poderíamos lembrar que

7 Schwarz, Roberto. “A carroça, o bonde e o poeta modernista” in:__. Que horas são? São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p. 12.
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a crítica da felicidade, em que se recuperam a fraternidade universal e a pureza


das figuras brancas, seria sentimentalismo se fosse real, se fosse apresentada
como solução. Sendo irreal, entretanto, apenas visão, é justo que seja triunfal,
pois concilia contradições dolorosas. Sendo triunfal e sem realidade, tinge-se de
melancolia, é de uma beleza improvável. A mentira é sua verdade, euforia e
garganta cerrada: a apoteose torna-se sinal de sua própria ausência8.

Há uma escritura contraditória, como Naves quer nos apontar com seu ensaio, imanente
a uma crônica da indiferença e da violência; mas também, como não se pode deixar de
lembrar, a uma crônica de promessa da felicidade. E essa felicidade prometida só coloca
com mais força o problema do sofrimento: Guignard assim alcança o triunfo
melancólico, a apoteose que se desmente. Deslocando um tanto a ideia de Ricoeur,
segundo a qual o mal surge entre os homens precisamente porque todos eles querem ser
felizes, podemos entender o que há aqui de contraditório no projeto do pintor. Talvez
com a mesma inquietude com a qual procura algo nos quadros sobre o qual possa se
apoiar, o ensaísta dá, para finalizar sua obra, uma forma precisa ao problema: “por ora
está tudo em suspenso. Sabe Deus até quando” (p. 143).

8 Schwarz,Roberto, apud Prado Jr., Bento. “A sereia desmistificada”. In: Alguns ensaios. São Paulo: Paz e
Terra, 2000, p. 212.
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Rodrigo Naves
e as dificuldades da formação
Naves, Guignard, Machado e a crítica das formas modernas

Cláudio R. Duarte

Alguns pressupostos da crítica de Rodrigo Naves

Rodrigo Naves é um dos críticos brasileiros que hoje mais se destaca pelo rigor
teórico e analítico no campo das artes plásticas. Buscamos mostrar na primeira parte
deste ensaio, em tom de apresentação geral, a potência de seu método crítico em dois
livros que realizam um mapeamento significativo da arte moderna e contemporânea no
Brasil e no mundo. Num segundo tempo, analisaremos diferentes níveis de vigência das
duas categorias críticasipais prinpropostas pelo autor – “dificuldade de forma” e “forma
difícil” – em dois artistas brasileiros bastante diferentes: o pintor Alberto da Veiga
Guignard e o escritor Machado de Assis. Ambos se encontram sob o mesmo solo
problemático identificado por Naves. Em Machado, não há dificuldade de forma. A sua
forma se constituiu, consolidando a formação da literatura brasileira. Ainda assim é
uma forma que, superando a literatura brasileira anterior, no limite também a suprime.
Por outro lado, Guignard apresenta em sua pintura uma “timidez formal”, e talvez por
causa dela, momentos ambivalentes e um traço utópico, que vale a pena pensar em
detalhe – contrapondo-os não só a Machado, mas à toda estética das mercadorias
contemporâneas. Compreender essas contradições se torna um pouco mais fácil, talvez,
quando se estabelece o campo de problemas socialmente comum estabelecido e a sua
matriz social geradora, apesar das formulações históricas variadas dos dois artistas.
A matriz prática que secretamente os unifica, como não poderia deixar de ser se
formos materialistas, é estabelecida pelas condições materiais da formação social e
subjetiva no capitalismo, na concretude histórica de uma modernização social
conservadora. Entra aqui especialmente a forma fundamental da práxis imposta pelo
mundo do mercado, num país que postergou até quando pôde a formação de um

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mercado de trabalho livre. Mais tarde, o processo de modernização sem integração


social dificulta o nosso regime de formas, mas não impede uma espécie de formação
negativa regida do modo mais selvagem pela forma-mercadoria e pelo trabalho
abstrato. Esta, sempre com alguns ajustes, a dialética pressuposta e desdobrada pelo
crítico em suas análises. Em Guignard, aparece algo como uma “recusa do trabalho”
internalizada como forma e conteúdo de sua pintura. Em Machado, é menos o trabalho
do que os seus resultados ideológicos e fetichizados que aparecem como centro de
gravidade (o discurso de autolegitimação das classes dominantes, as práticas de
dominação social, o fetichismo da lógica social incorporado nas próprias formas e estilos
dos romances etc.).

Da dificuldade de forma à forma difícil

A crítica de Rodrigo Naves busca sempre realizar a mediação histórica entre as


categorias e os fenômenos estéticos. Não parte de categorias estáticas, como se
habitassem o puro reino do espírito e pudessem ser aplicadas de fora aos fenômenos,
mas parte do movimento próprio de constituição de seus objetos artísticos concretos,
que, precisamente assim, produzem as suas formas e categorias históricas específicas. A
crítica estritamente imanente do objeto estético é também crítica categorial de
categorias naturalizadas. Assim, como o objeto estético é mediado por Naves de modo
materialista através de uma totalidade social determinada – um sujeito social e um
conjunto de obras, inseridos mais ou menos em grupos, escolas e estilos, numa
formação social nacional, enfim, num determinado modo de produção – então, tais
formas e categorias estéticas mobilizadas por sua crítica são, como diria Adorno,
“conteúdos sedimentados”, ou como diria Antonio Candido, “reduções estruturais” do
processo social.
Uma dessas categorias específicas, produzidas em estreita relação com a matéria
histórica brasileira, é a que o autor denomina “forma difícil” – o título de seu livro de
ensaios (publicado originalmente em 1996) sobre artistas tão variados como Debret,
Almeida Jr., Guignard, Volpi, Segall, Amílcar de Castro e Mira Schendel. 1 O estilo de

1 NAVES, Rodrigo. A forma difícil. Ensaios sobre arte brasileira. Ed. revista e ampliada. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. Doravante citado diretamente no corpo do texto através da abreviatura:
FD, seguido do número da página.
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composição dos ensaios do livro é um fenômeno à parte. Sua qualidade literária reside
no fato de conseguir imitar as resistências, indeterminações e vacilações de seus objetos,
sem deixar de escavar os seus pressupostos materiais e determinar a sua essência aos
poucos, mediante a imersão integral em cada um deles, às vezes em cada detalhe
significativo (uma linha, uma cor num quadro, p. ex.). Por isso mesmo, ela é capaz de
evitar generalizações e juízos peremptórios. Aqui se percebe o preparo, a inteligência e a
independência do crítico face às modas e às teorias prontas.
No diagnóstico de Naves, o conjunto da arte brasileira apresenta a princípio uma
grande “dificuldade de forma”. Avançando modernidade adentro, porém, o problema se
converte, sem se diluir totalmente, propriamente na questão de uma “forma difícil” (cf.
FD, 27-9).
A dificuldade de forma tem dois sentidos fundamentais: a) ela aparece como uma
dificuldade do artista em formalizar mais integralmente os seus materiais intraestéticos
e os seus pressupostos sociais, uma espécie de “timidez” ou “relutância formal”; b) ela
aparece como um traço imposto pela resistência da matéria à sua formalização. Dessa
maneira, não apenas por uma questão de cegueira ideológica (os preconceitos raciais de
Debret, p. ex.) ou da eventual insuficiência dos artistas (os problemas de formação
cultural de um país ex-colonial e em vários sentidos atrasado na modernização
burguesa) e do sistema artístico nacional (o qual, p. ex., dificultou a independência
social dos artistas) – essa dificuldade de forma se dá também por uma dificuldade
objetiva de formalização, que está contida na articulação própria da matéria, tanto
quanto no conjunto das formas sociais e culturais estabelecidas.
Assim, as condições coloniais do país (escravismo, paternalismo, clientelismo,
formação tardia de um mercado de trabalho livre, falta de integração econômica e social
etc.) impõem uma estrutura social e espacial que aparece ao artista plástico estrangeiro
(o caso de Debret) como objetivamente difícil de penetrar e estudar, como um meio
frágil, instável, humilde, menos estruturado do que o de seu país, em suma, como uma
coisa inteiramente peculiar pedindo a reelaboração de suas técnicas neoclassicistas.
Essa mesma matéria pode aparecer formalizada de maneira acanhada e fortemente
naturalizada e idealizada de modo nacionalista (como no mundo “solar” e caipira de
Almeida Jr.). Ela pode também surgir, em seguida, como difusa, nebulosa e
indeterminada, ou ainda tímida, singela e coletivamente anônima (como nos quadros de
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Guignard, Volpi e também Tarsila), tendo agora como pressuposto a modernização


retardatária incompleta ou conservadora do país, reproduzindo conjuntamente relações
mais modernas e mais arcaicas, provindas da colonização, mesmo que em processo de
desintegração acelerada. E então, no curso de uma modernização social tardia e sem
cidadania, coloca-se o problema da “forma difícil”. Ela se forjará como uma matéria
opaca, tenebrosa, hostil e fragilmente individualizada (como nas gravuras de Goeldi e
nos quadros de Iberê Camargo); ou ainda mais uma vez instável e frágil (como nalguns
construtivistas como M. Dacosta e E. Sued). Finalmente como forma plenamente
constituída, mas dobrada pela resistência do material, nas complexas operações da
escultura em ferro (o caso de Amilcar de Castro). Já adentrando no mundo
contemporâneo, essa forma pode parecer intensa mas frágil, indecisa, rebelde à
continuidade do traço e exigindo uma realização mais delicada (caso dos desenhos de
Mira Schendel, entre outros). Na base do processo, de ponta à ponta, correm o processo
de subdesenvolvimento e de modernização conservadora, ao mesmo tempo que o
movimento de sua recusa – só que na maioria dos casos mais ou menos impotente,
mesclada à timidez, ao convívio pacífico ou mesmo talvez à aceitação das situações de
injustiça e dependência. Como comenta o autor sobre dois dos melhores pintores
brasileiros:

“Essa dificuldade de forma realmente perpassa boa parte da melhor arte brasileira. Relutância
em estruturar fortemente os trabalhos, e com isso entregá-los a uma convivência mais positiva e
conflituada com o mundo, leva-os a um movimento íntimo e retraído, distante do caráter
prospectivo de parcela considerável da arte moderna. Esse recolhimento contudo não livra os
trabalhos da realidade. Ao contrário, essas estruturas frágeis se deixam envolver de maneira
complexa e inesperada. Sua natureza remissiva (...) evoca uma sociabilidade de ordem
semelhante, pouco definida, doce e reversível. A feição um tanto primitiva dos trabalhos de
Guignard e Volpi tem uma significação profunda. A recusa à violenta sociedade do trabalho
marca-os do princípio ao fim. Essas obras tímidas supõem um modo suave de moldar as coisas, e
estão mais para um artesanato amoroso ou para um extrativismo rústico do que para a
conformação taxativa da indústria. Contudo, esse ideal meigo que defendem conspira contra suas
expectativas, já que essas aparências amenas e essas formas frágeis não podem se opor à pressão
do real, que os coage sem cessar” (FD, 27).

O arco escolhido pelo autor é amplo e percorre a formação do país, da colônia ao


realismo, do modernismo à arte contemporânea. Note-se como o livro tem de lidar
assim com uma dialética das formas e categorias em três níveis integrados: as categorias
e o funcionamento específico do campo artístico brasileiro; as categorias mais amplas da

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arte moderna propriamente nacional e internacional; e as formas frágeis e etéreas da


arte contemporânea já inserida imediatamente na globalização, no sistema integrado
chamado “indústria cultural”, que passa a produzir não só mercadorias culturais de
diversa ordem e qualidade, como também sistemas de percepção estética como um todo.
Este último nível, ao que parece, surge como o pressuposto estrutural da introdução de
outro livro importante do autor, O vento e o moinho, uma coletânea de vários ensaios
sobre o tema.2

Um mapa da ventania
O que o autor percebe criticamente como a tendência hegemônica na arte
contemporânea gira em torno da fragilidade formal e da vaidade das obras (um misto de
autoironização radical e de “impotência arrogante”). Estas caem ao “vento” como que
por si próprias, sem construir formas (“moinhos”) resistentes, ou são elas mesmas
vítimas da descontinuidade do mercado e da fluidez da produção automatizada de bens
culturais, e assim também levadas facilmente por esse “vento” metafórico/real.
Diferentemente de grande parte da arte de combate do modernismo, fortemente lógica e
construtiva – e isso mesmo quando “expressionista” ou “informal” –, a estética
contemporânea, pós-anos 60, integra cada vez menos o conteúdo social e político de
maneira crítica, mediada pelas formas. A incorporação deve ser tomada aqui não como a
banalidade de temas politicamente superficiais contemplados (isso há de sobra), mas
como configuração internalizada de processos e contradições sociais, que abriria ainda a
visão de possibilidades sociais objetivas. “Por certo”, diz o autor,

“há esforços bem sucedidos e obras à altura de nossos dilemas. Na maior parte dos casos, porém,
parece que o não reconhecimento das dificuldades da atual experiência histórica tem conduzido a
uma incorporação exterior e rebaixada de dinâmicas que terminam sendo apenas tematizadas,
sem que os trabalhos de arte tenham a capacidade de aceder – e de revelar – à articulação desses
movimentos e estabelecer com a realidade uma relação em que eles, justamente por agirem como
uma força interna ao mundo que fendem, mostram-se também capazes de apresentá-lo como
uma realidade menos impositiva, cujas fissuras cabe à arte (entre outras forças) revelar e manter”
(Naves, VM, 17-8).

2 NAVES, Rodrigo. O vento e o moinho. Ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. Doravante citado diretamente no corpo do texto através da abreviatura:
VM, seguido do número da página.

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De “Manet a Pollock”, como diz o autor, “a arte moderna produziu uma


quantidade de grandes obras de arte comparável apenas à do Renascimento e (...) com
uma diversidade estilística nunca antes vista na história da arte (...)” (VM, 16). Salvo
engano nosso, a partir da pop art, do minimalismo etc. não há, para o crítico, uma soma
de obras críticas e consistentes que possa se equiparar ao passado em termos de
profundidade e de qualidade.
Não que tudo ocorra como mero desperdício técnico. Mas quando a estética
contemporânea incorpora a mediação social de seu mundo e de seus materiais, ela o faz
de maneira pobre, reativa e um tanto paradoxal: às vezes simulando posições críticas,
pretendendo romper imediatamente a diferença entre forma e vida (VM, 22-3) – e
assim dessublimando alegremente a arte em jogo, ação, performance midiática etc. (não
sem criar o paradoxo de continuar a exigir instituições culturais para acolher o que
prescinde de forma autônoma, sem falar no apoio legitimador e financeiro direto);
outras vezes, ainda, até onde posso conhecer por meio dos artigos de Naves, propondo
abstrações superficiais e formações rebarbativas, por exemplo, propondo-se como meta-
arte, arte conceitual etc. isto é, mais como discursos críticos tautológicos e meta-
artísticos sobre a sua própria impossibilidade de arte, e pior ainda, segundo o crítico,
orgulhosos “de sua autoimolação” (VM, 20). Assim, em muitas dessas criações
artísticas, tudo se resume à operação com “características superficiais do trabalho de
arte (alguma ousadia, a expressão por meios não convencionais, a capacidade de dispor
coisas no espaço e tornar visível”)”, propondo, no final de contas, mais uma “arte
adjetiva” do que “substantiva” (VM, 26). Por outro lado, ainda, alguns “críticos”
simplesmente legitimam o vale-tudo, relativizando radicalmente e finalmente
demolindo os critérios de julgamento crítico. No vale-tudo, tudo é valor, tudo é trabalho
social homogêneo e abstrato.3
Para o crítico, parece que temos hoje, no fundo, uma arte que busca mais
estetizar a má ou a boa existência no atual capitalismo “pós-moderno”, “espetacular”,
“virtual” e “flexível” (tudo depende do ponto de vista, nesta altura tão fugaz, pragmático
e relativo como todo o resto) do que configurá-lo e revelá-lo criticamente. O que

3 Como aparece na pena de um crítico como Arthur Danto (Após o fim da arte), citada pelo autor (VM,
22).

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pressupõe um processo refinado de mediação, isto é, de interpenetração crítica e


dialética de sujeito e objeto, forma e matéria. Os pressupostos dialéticos de Naves, no
entanto, parecem totalmente desconsiderados pela estética pós-moderna. Em
contrapartida, a essência difusa do sistema não escapa de todo a elas, penetrando-os e
fundamentando-os da maneira mais cega e objetiva. Pois, apesar da tendência ao
discurso adjetivo, completa o autor, na

“ânsia de se fazer comunicar, a arte passa a usar o mundo de maneira ainda mais instrumental
que a dos processos industriais”, usando por exemplo materiais incomuns (como esperma, cera,
gordura, sangue ou terra etc.), o que, segundo o crítico, “rebaixa o mundo sensível à condição de
mero suporte, como também mantém a ilusão de que essa intervenção desmedida na realidade,
esse manuseio das coisas conduz à mais cristalina das significações, ainda que esteja levando o
mundo à breca.” (VM, 27, grifos meus).

Porém, nem tudo é tão mau na arte contemporânea, como muitas vezes deixa ver o
crítico. Como matiza o autor, nos seus melhores momentos os artistas contemporâneos,

“em vez de apenas replicar na forma envergonhada de seus trabalhos – porque de resto apenas
fantasmas não têm forma – a fugacidade contemporânea, se esforçam por mapear o terreno em
que nos movemos, permeáveis a ele e céticos quanto às soluções ansiosas. Provavelmente tenha
sido Samuel Beckett o artista que melhor conseguiu caracterizar essa situação singular” (VM, 19,
grifos meus).

A “forma envergonhada” remete ainda à “forma tímida” e “singela” própria ao


modernismo das artes plásticas brasileiras. Neste segundo livro, o autor reconsidera, a
partir de Mira Schendel, Lygia Clark e outros contemporâneos (e não por acaso
mulheres talvez), a possibilidade de se pensar formações mais “frágeis”, “delicadas” ou
“menos rigorosas” (VM, p. 30), ou o próprio caráter resistente do material (como se vê
em Amilcar), como contraposições decididas, críticas, à formalização mais forte e
integral, típica do abstracionismo construtivista. Críticas no sentido de um contraponto
utópico ou de franca oposição à violência da sociedade do trabalho, da técnica, da
opulência mercantil. O que o autor via como um problema ou um defeito no livro
anterior, agora se torna uma solução adequada ou mais ou menos adaptada ao curso das
coisas no campo estético e do mundo. Em todo o caso, em seu novo prefácio de 2010 à
Forma difícil, o autor relativiza a ênfase nesse otimismo, já que de 1996 em diante o
meio se tornou “mais profissional”, há “mais artistas trabalhando de forma contínua e
empenhada”, mas não há de fato “o mesmo grau de qualidade” do passado modernista.

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O que não é só um problema nacional, pois parece atingir o campo das artes plásticas
em nível mundial (cf. FD, 11).
Isso porque falta ao conjunto desses melhores trabalhos contemporâneos,
segundo o crítico, a pesquisa, o empenho, o sentido da “aventura”. Daí a necessidade
para ele, nesse momento estéril, de retroceder e aprender com os grandes artistas da
tradição moderna a como formular os problemas atuais com mais vigor. Pois eles não
são somente o passado. Isso seria cair num mau historicismo. Artistas como Beckett e
Pollock também delinearam “os dilemas com que lidamos ainda hoje” (VM, 28).
O nome literário de Beckett é importante aqui, pois mostra como o autor reata
laços com campos do saber e das artes que parecem totalmente desligados. No fundo, o
segredo de Naves é conhecer bem, com base em seus mestres (como Adorno e Schwarz),
o processo dialético entre formas sociais e culturais e a mediação social integral imposta
pelo capitalismo (Estado, mercado, luta de classes etc.). É por isso ainda que não se
pode talvez exigir, de modo dogmático, as formas fortes e substantivas do modernismo
construtivo nesse novo contexto opaco, espetacular e flexível.
Um contexto que o autor denomina muito precisamente como sendo, assim, o de
uma “crise de inimigos”: “a dificuldade de as forças sociais se articularem tanto pela
ausência de um opositor claro quanto pela incapacidade de ordenarem a si mesmas,
movimentos que se complicam mutuamente” (VM, 15, g.n.).

Guignard: o Brasil suspenso entre o mito, a ideologia e a utopia

“... o ser humano não está completamente traído


quando uma parte dele ainda não foi
completamente vendida e se alegra consigo
própria” (E. Bloch, O Princípio Esperança, 1959).

No mundo pictórico de Alberto da Veiga Guignard, o Brasil aparece como um


tema suspenso – um grande ponto de interrogação. Sua melhor série de quadros tem a
ambientação do mundo caipira de Minas Gerais como um tema pressuposto, abstraído
pela forma, ao mesmo tempo confirmado e negado. 4 Um mundo nevoento, difuso e

4 Cf. imagens digitais de várias obras no site do Projeto Guignard: http://www1.cultura.mg.gov.br/


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completamente ambíguo. Tal como no mundo machadiano, o mesmo e o outro se


fundem e se confundem.
Como mostra o crítico, as suas paisagens mineiras e as suas tardes e noites de São
João (pintadas entre 1950 e o início dos anos 1960) estimulam no observador um olhar
pausado, um “moroso vaivém” pela superfície em busca de formas que se declarem e se
estabilizem. Em vão, pois as linhas se esfumam, esmorecem, não se constituem de todo.
O quadro se preenche de uma espessa névoa branca ou cinzenta, uma garoa fina e uma
baita escuridão noturna, mal iluminada pela Lua, as fogueiras e alguns balõezinhos,
velando ou reduzindo ao máximo as suas tênues figuras imaginadas – montanhas
gigantes encobertas, igrejas, bandeiras, homenzinhos, palmeiras, procissões, cercas,
pontes, trens, túneis e linhas férreas, além dos astros no céu. Como revela o crítico,
contudo, estas figuras coloridas miúdas, pontuam e imprimem um certo ritmo à tela:
ressaltam detalhes no todo, sustentam mínimas variações na obra e servem de apoio ao
olhar interessado.
Mas de fato trata-se de um mundo predominantemente “difuso” de “espessuras
incertas”, como caracteriza o autor (FD, 175 e 177), alimentando uma profundidade
ambivalente, que desarticula o espaço e quase dissolve as figuras numa continuidade
nevoenta, enfraquecendo os seus limites (FD, 180) e impondo-nos o seu ritmo mole, a
sua “ruminação pachorrenta” (FD, 178). Precisamente assim, na predominância dessa
massa quase informe de tintas escuras, os indivíduos se humilham e se submetem,
identificam-se ao meio turvo envolvente, abrindo o espaço à noite metafísica de São
João.
Não seria o santo católico e seu mundo de mistérios que ofusca a visão nessas
noites tristes de junho? O crítico reconhece o seu aspecto global de “bruma metafísica”
(FD, 185). “O espaço se instila nos seres, retirando quase toda a sua solidez” (FD, 180) –
o que parece valer como a assunção de um grande Outro consistente, de cunho religioso,
que ordena uma totalidade “simbólica” e “aurática”, no sentido benjaminiano. Nesse
sentido, a superfície rasa típica da arte moderna incorporada por Guignard, cultivando
as suas ambiguidades, não passaria por uma solução de compromisso com a arte
renascentista e mesmo com a simbólica cristã, pré-renascentista? A “luz interna, meio
neoplatônica” da pintura de Guignard valeria como signo de

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“uma espiritualidade acanhada, que percebe laivos de vaidade no impulso de se afirmar, e


portanto se recolhe, deixando a prova de sua hesitação nessa claridade turva, entre espírito e
matéria (...) uma ética particular, meio matuta, na qual a tensão entre potência e ato se esvai e se
engrandece com o sentimento das próprias renúncias – uma espécie de santidade meiga, entre
são Francisco de Assis e um monge budista” (FD, 181-2).

Inútil, contudo, pois a ideia oculta não se oferece ao olhar, muito menos vem à
tona. Podemos apenas suspeitar alguma existência abstrata lá atrás, velada. A tela atrai
o olhar para o segundo plano, mas ao mesmo tempo impõe a “falta de comunicação”
com o plano transcendente. A “revelação” não se cumpre. Ela não tem a luz mística e os
contornos da arte cristã. Pulsa algo lá trás talvez – e as comunidades em procissão saem
das várias igrejas e soltam balões de São João aqui e ali onde se as vê. Talvez porque o
que lateja em toda a tela é somente algo imanente ao mundo dos homens – mas de
homens ainda presos ao plano místico. Porém, um mundo histórico, em processo de
urbanização (trens, túneis etc.), que tende a dissolver as suas estruturas naturalizadas.
Não poderíamos inverter o raciocínio e pensar isso que não aparece nos quadros como
uma dissipação e evanescência do sagrado? É que em si, por sua fatura, esses quadros
recusam a configuração cristã e renascentista do mundo.
Na bela exposição do crítico, a afirmação da superfície rasa ou planar da pintura
modernista, e que faz de Guignard um tipo particular de moderno, vinha no sentido da
marcha do Esclarecimento: a afirmação de uma lógica social puramente imanente
unificada pelo mercado, contrária a um ponto de fuga centralizador e aos focos
hierarquizantes. Algo que surgiria no sentido de romper portanto a ideia de
fundamentos ou ordenações sociais fixas, sagradas e hereditárias. Com o que o sujeito
não mais espelharia um mundo fixo e ordenado pelo olhar de um sujeito isolado (como
na arte perspectivística e ilusionista da Renascença), muito menos um mundo
completamente ordenado, pouco individuado e legitimado como divino (arte cristã). O
sujeito pressuposto, desde o impressionismo, passava a agir sobre as coisas, a
reagenciá-las, promovendo novas relações, “à semelhança das possibilidades abertas
pelos novos movimentos sociais e pelas novas técnicas” (FD, 168 e 178).
No entanto, em Guignard esse movimento configurador das exuberâncias da arte
moderna, com o seu jogo de luzes analíticas e de produção de figuras desencaixadas e
estranhadas (a partir do impressionismo e do cubismo), aqui se detém numa superfície
turva e indefinida, por alto ainda sugestiva de fundamentos fixos e conservadores, como

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claramente se dobra à expressão de uma “cidade paralítica” (como aparece num bom
verso de Drummond sobre São João Del-Rei, em Alguma poesia), também
conservadora, num outro compasso de modernização. Nesse caso, as demandas do
objeto, portanto, dificultam a forma. São “noites tristes”, segundo Naves, mas nem por
isso menos sugestivamente “doces”, “líricas”, “meigas”, “empáticas”, representativas de
uma certa sociabilidade cabocla e caipira. Eis o traço mais difícil de definir
conceitualmente: uma sociabilidade comunitária, meio mítica e nostálgica, como
vimos, e ainda, a um só tempo, ideológica e utópica. Fora do tempo – mas ainda nele.
Note-se como a tela exige um lento processo de interpretação e como que
mimetiza a lentidão de um modo de vida pré-moderno, em que aparentemente o poder
da abstração do trabalho capitalista não deixou as suas marcas na paisagem. Tudo se
passaria assim – se não fosse o seu contexto referencial uma sociedade moderna desde a
Colônia, portanto inserida na mais violenta exploração econômica da natureza e dos
homens; aqui, no caso, desde o ciclo do ouro em Minas Gerais. Algo que a névoa
ideológica desses quadros encobriria, sob o manto religioso da cultura caipira. Como diz
o crítico:

“Essas paisagens difusas e desabitadas pedem uma coletividade que mal arranha suas superfícies;
pedem intercâmbios amenos, tanto entre elas e seus eventuais habitantes quanto entre os
próprios homens: algum extrativismo, caça, pesca etc. Aquilo que no cubismo era mediação, aqui
é proximidade. O mundo do trabalho e suas trocas não atraem a atenção de Guignard. Não por
acaso seus quadros têm algo de primitivo – todas as formas mais fortes lhe desagradam.” (FD,
180).

Desse modo, temos aqui um ponto cego, ideológico, embora em parte ele
pertença ao próprio objeto: um mundo de relativo atraso em relação ao centro do
sistema. É um outro o ponto que o crítico não deixa de observar em sua introdução: “nas
obras de Volpi e Guignard há de fato uma camuflagem da arte com a própria arte. Não
por acaso nossa pintura se especializou nesse ofício de sutilezas, refinando os matizes
que confessam uma convivência amorosa com os seres, longe de quaisquer rupturas e
descontinuidades” (FD, 29, g.n.).
Ao mesmo tempo, contudo, há um estrato residualmente utópico nessas
paisagens noturnas etéreas e fantásticas – que as tira da órbita do presente, e que vale
registrar com as palavras do crítico:
“Ao fim, fica a impressão de que suas superfícies são mais um obstáculo à visão do que uma
presença taxativa que, por sua força formal, nos deixe vislumbrar novos modos de aparecimento,

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outras maneiras de ordenar o sensível e a existência. Com sua fatura turva, esses quadros relutam
em se entregar à superfície, e se atêm a esse revolvimento moroso, daquilo que não quer assomar.
O que é original – ao contrário do que ocorre com grande parte da pintura moderna – não se
mostra. Lateja ao fundo, cioso de que a solução do mistério é sempre inferior às suas promessas.”
(FD, 184).

Nesse sentido, as obras de Guignard proporiam elementos que essa sociedade, com a
sua racionalidade objetivante e instrumental, não pode acolher. Por si mesmas, elas
recusam as “materializações mundanas e cabais”, “deixando permanentemente aberta a
possibilidade de novas configurações” (FD, 188), o que equivale a dizer – se as
traduzirmos em linguagem conceitual crítica – que elas refugam o trabalho moderno,
as duras leis da troca e de sua falsa transparência. Mas isso, reforça o crítico, enquanto
signos ambíguos das “potencialidades” de um país novo, de um “futuro inefável e
generoso”, fundadas em nossas “meigas particularidades”, enfim como signos de uma
“disponibilidade amena, sem os travos da história, sem a irreversibilidade dos processos
violentos” (ib.).
Esses traços parecem caracterizar, portanto, um pintor romântico, utópico,
imobilista, condenado à inação. Pode ser. Mas o momento predominante talvez seja
mesmo este:

“O Brasil de Guignard volta as costas ao trabalho, à vida ativa e a seu poder de formalização” (ib.,
p.189).

O pintor resguardaria justamente desse modo, talvez, menos uma essência trans-
histórica de um homem já dado, imposta por uma ontologização do trabalho, do que a
possibilidade de um universal humano concreto, não-dividido pelo trabalho e pela troca
de produtos privados. Por isso, o seu tema fundamental, é bom lembrar – o
fundamento acima evocado talvez? –, é antes de mais nada uma festa. Um evento feito
pelos homens. São eles e suas construçõs, vale recordar, que imprimem o pequeno ritmo
ao quadro. Mas paradoxalmente, desse ponto de vista, o ritmo criador de um balanço de
tensões residuais essenciais – caso se considerarmos que o mínimo aqui se potencializa
como uma contraposição irredutível entre uma grande bruma dissolvente e pequeninos
seres e obras resistentes. É o que sugere assim uma mínima, mas não menos essencial,
temporalidade imanente ao quadro, a simultaneidade de tempos sociais-naturais

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diferentes.5 Daí a meu ver a importância de considerar a série das Paisagens, Tardes e
Noites mineiras de Guignard como partes da obra conjunta do pintor (o que o crítico
parece descurar), pois tenderiam a revelar um novo conteúdo social, um meio humano e
geográfico certamente menos estruturado, menos incisivamente apropriado – pelo
poder da abstração real moderna. Em parte como ideologia, é claro, em parte como um
contraponto utópico ou digamos heterotópico (para usar termos de Henri Lefebvre). 6
O que fica a partir dessa experiência prolongada do pintor (vale lembrar, com
uma forte formação europeia) com o Brasil? O que fica, ao que me parece, é menos os
seus resultados ambíguos (entre o mito e a ideologia, e a utopia, tal como analisado a
partir do aporte de Naves) do que a verdade de seu procedimento crítico.
É aqui que a sua obra mais se coaduna aliás, a meu ver, menos com Machado de
Assis do que com alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade da fase dita
“metafísica”, tais como “Dissolução” (em Claro enigma, 1951) e “Habilitação para a
noite” (em Fazendeiro do ar, 1954, um nome por si só sugestivo de todo um referente
social comum). Poemas que afirmam uma espécie de eu lírico “opaco”, uma espécie de
“materialista utópico” ou “heterotópico”, como se queira: a afirmação da
intransparência do corpo e do desejo ao campo do visível, a resistência do eu poético ao
“agressivo espírito carreado pelo dia” de trabalho, a recusa do plano místico de “astros e
deuses”, a “polícia estrita do nada”, enfim, a aceitação da noite como quebra do
imaginário social e do brotar de “uma outra ordem de seres / e coisas não figuradas”.7
Voltando ao possível procedimento crítico proposto por Guignard. Por seu
momento utópico, sua obra pressuporia algo talvez não cogitado pelo ensaio de Naves:

5 “Painting that behaves dynamically, as if it were capturing temporal events, as the futurists desired and
many abstract painters attempt to do with circling figures, exhausts itself, at best, in the illusion of time,
while the latter is incomparably more present in a picture where it has disappeared among the
relationships on the surface or the expression of what has been painted”. “Yet this process, as a process
that is immanent in the thing itself, and by no means belongs merely to the mode of its production, is
essentially one of tensions. If these are lacking, if the elements of the painting do not seek to get away
from each other, do not, indeed, contradict each other, then there is only a preartistic coexistence, no
synthesis” (ADORNO, Theodor W. “On Some Relationships between Music and Painting” [1965]. The
Musical Quarterly, Vol. 79, No. 1, Spring, 1995, (Trad. Susan Gillespie), grifos meus.
6 Seria interessante pensar aqui por exemplo o Diário de Helena Morley, tal como analisado por Roberto

Schwarz em “Outra Capitu” in:__. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. O texto de
Eraldo Santos “Tímida sim, mas um tantinho desrecalcada”, publicado nesta edição de Sinal de menos,
propõe outras formulações engenhosas para se pensar as ambivalências de Guignard.
7 Cf. DUARTE, Cláudio R. “Poética do desterro – Drummond e a formação suspensa em Fazendeiro do

ar” – um ensaio nosso publicado em Sinal de Menos nº4, 2010, e reescrito em nossa tese de
doutoramento: “Literatura, geografia e modernização social: espaço, alienação e morte na literatura
moderna”. São Paulo: FFLCH-USP, 2010, disponível no banco digital de teses da Universidade.
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uma crítica da violência contida na técnica da planaridade rasa da pintura modernista.


Não sei ao certo se o problema se põe dessa maneira, pois a escrita de Naves é dialética
até a medula, contendo em sua apresentação vários momentos cifrados do objeto, que
custam muito serem formulados de maneira clara (o que para a dialética significa: de
maneira contraditória). Em todo caso, com a sua posição “ambígua”, a meio caminho do
perspectivismo linear e da planaridade, Guignard parece ocultar e assim, por isso
mesmo, pressupor e sugerir um plano não-idêntico ao que se põe visível. O que parece
contestar uma parte do modernismo. Por meio de sua “participação nas trevas” –
identificada por Adorno como um elemento essencial da vertente mais crítica do
movimento europeu –, Guignard incorpora em si a alienação da totalidade, vestindo o
ideal negativo do negro. E com ele resguarda a utopia de uma sociedade livre, para além
do reino da necessidade.8
De fato, o modernismo suprime a visualidade renascentista, fundada na ilusão da
perspectiva linear, que era também a ilusão do sujeito burguês no mundo das
mercadorias, mas nem sempre ele suprime a lógica de uma visualização integral: no
limite, o que ele propõe é a materialização visual integral do conteúdo sensível. Assim o
faz, segundo Henri Lefebvre (cujos passos estamos seguindo), achatando e reduzindo a
espessura do real, feita de três dimensões, ao plano abstrato da bidimensionalidade,
muitas vezes geometricamente despedaçada para torná-la mais exposta, até mesmo
superexposta. Desse modo, ela representa e domina mais integralmente os seus meios e
os materiais de expressão, sugerindo a simultaneidade, a transparência e a presença
totais dos elementos numa superfície plana. Nem toda restrição à planaridade parece
ser sinônimo de renúncia e de aceitação dos limites da representação (cf. FD, 183).
A abstração radical e a ilusão de transparência do modernismo podem também
ocultar a opacidade do mundo, a sua essência pressuposta, a sua irredutibilidade ao
plano das superfícies, que são o domínio reificado do imaginário e da ideologia. Aqui
encontraríamos ainda o que Naves, segundo vimos anteriormente, identificou como
alguns dos pilares da “arte adjetiva” contemporânea: o uso instrumental excessivo de

8 “Hoje em dia”, escreve o crítico alemão, “a arte radical significa arte sombria, negra como sua cor
fundamental”.(...) “A utopia, o não-ente, se encontra para a arte velada de negro, permanece, em todas
as suas mediações, como lembrança, a lembrança do possível contra o real que a reprime, algo como a
compensação imaginária da catástrofe da história do mundo, liberdade que, sob a influência da
necessidade, não existiu e acerca da qual não se sabe se pode existir” (ADORNO, Theodor W. Teoria
estética. Lisboa: Ed. 70, 1993, pp. 53 e 156-7).
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“meios não convencionais” (ou seja, a desensibilização dos meios e dos próprios
conteúdos de expressão) e a mera “capacidade de dispor coisas no espaço e tornar
visível.” É a marcha do Esclarecimento caminhando à reboque da marcha da
mercantilização integral da vida. Para Debord, o primado do visual – como a
tempestade de imagens descoladas do contexto vivido da práxis – funda materialmente
a “sociedade do espetáculo”, sendo o seu avesso obsceno a relação corporalmente muito
concreta de exploração do trabalho. Um fato social que parece muitas vezes passar como
algo natural pela pintura moderna e contemporânea (cubismo analítico, pop art,
minimalismo, op art, hard edge, colour field etc.).9
Mas o juízo crítico de Naves prevalece. Na matéria configurada por esses quadros
tímidos, matutos, que relutam e negaceiam o sentido, Guignard quebra a “ilusão da
transparência” propondo uma “ilusão da opacidade”10 ambígua, a ideologia ou a utopia
de uma comunidade orgânica, regida por laços tradicionais. A imagem de uma vida
lenta, preguiçosa, oposta ao trabalho, mas também oposta ao curso de sua possível
superação. As duas coisas ao mesmo tempo. Por isso, há aqui uma dificuldade de
determinação, que é uma dificuldade de forma.
Ao contrário das “ilusões perdidas” de Balzac, Machado de Assis propõe um país
reinado pelas ilusões: não só pelo domínio do discurso ilusório da ideologia, que
bloqueia o real, mas o reino das ilusões que se tornaram reais, como ilusões reais.

A forma difícil em Machado de Assis

“...a razão só pode resistir no desespero e no


excesso; é preciso o absurdo para não se
sucumbir à loucura objetiva (Th. W. Adorno,
Minima Moralia, 1951).

9 O crítico marxista francês, Henri Lefebvre, comenta: “O espaço, ao fim desse processo, só tem existência
social através de uma visualização intensa, agressiva e repressiva. Trata-se então de um espaço visual,
não simbolicamente, mas efetivamente. A predominância do visível implica um conjunto de
substituições e deslocamentos pelos quais o visual suplanta e toma o lugar do corpo inteiro.” Em
Picasso, o autor vê a redução da tridimensionalidade à superfície e a restituição, pela simultaneidade,
dos aspectos múltiplos da coisa pintada. Mas, pela sua fragmentação unitária, forma-se um espaço
“homogêneo-quebrado”, “uma visualização absoluta das coisas”, perfeitamente apreensível em seu
tratamento do corpo feminino caricaturado, torturado e exposto de mil maneiras (LEFEBVRE, Henri.
La production de l’ espace. Paris: Anthropos, 1974, p. 330 e 347).
10 LEFEBVRE, ibid., passim.

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Parece que não estamos tão longe, sob certos aspectos, do mundo machadiano de
Brás Cubas, de Rubião e Quincas Borba, de Aires e Flora, aliás, Rubião também um
“matuto” mineiro, representativo da esfera dos dependentes no país. Em Memórias
póstumas de Brás Cubas (1880)11, trata-se também, apesar da desenvoltura e da
agilidade da forma, de uma “obra difusa”, com “contração cadavérica”, erguida por um
“narrador volúvel” preso às ideias fixas, aos formalismos e às superficialidades do
mundo burguês (como mostraram de maneira variada Roberto Schwarz e José Antonio
Pasta, de maneira variada) 12, em estrito conchavo com a norma patriarcal que lhe dá
duplo poder (dominação direta pelo mando escravista e paternalista e indireta por meio
do dinheiro e do poder político). Nessa narrativa, pouca coisa se sustenta por si – seja
enredo ou personagens –, nada tem um claro projeto constituído, nada “edifica nem
destrói”. E se algo perdura, é só por uma disseminação de enigmas obscuros e de
alegorias insípidas – mas que remetem incessantemente à dissolução de nosso Antigo
Regime colonial, embora sem que um mundo burguês esteja constituído ou mesmo em
processo claro de formação. Já o seu prólogo, por exemplo, tem um “jeito obscuro e
truncado”, um pouco como a armação difusa das telas de Guignard. Em Quincas Borba
(1886-1891), também a alma de Rubião aparece como um caos quase sem forma, que,
no fim de seu desenvolvimento, perde a sua identidade. Esta identidade é a mera
imagem de um Senhor da elite patriarcal, mas no limite uma identidade suprimida pela
invasão de um Outro absoluto, sem lei. Noutros termos, a sua forma é completamente
postiça: a de uma ideia fixa, estranha e delirante. No fundo, a ideia do duplo de um
duplo (o Imperador Napoleão III). De mero dependente, Rubião se transfigura em
Imperador, garantidor da lei em um país real em que a lei é a exploração e a violência
física direta sobre os corpos (escravos, dependentes), a lei perversa e caprichosa
pressuposta já em Brás Cubas. Por outro lado, a ideia fixa delirante desse Imperador –
vencer os inimigos no “campo de batatas” e servir Humanitas –, aparece elevada a
princípio construtivo do romance, como uma lógica maníaca indestrutível que semeia
cisões no corpo social. A filosofia de Quincas Borba corresponde, de uma forma

11MACHADO DE ASSIS, José M. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959, vol. 1. A seguir citamos
no corpo do texto, quando necessário, o número das páginas deste volume.
12 Desenvolvo de maneira mais livre, neste ensaio, os resultados da análise da prosa machadiana,

publicados em minha tese anteriormente citada. Naturalmente eles devem muito aos mestres da crítica
machadiana tais como Schwarz, Gledson e Pasta. Se economizo referências teóricas é, assim o espero,
em proveito da fluência do texto e do desdobramento crítico de suas e de novas formulações.
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distorcida e amalucada, à lógica real de uma “guerra de morte” (p. 608) de todos contra
todos (“a supressão de uma [vida], é a condição da sobrevivência da outra”, p. 560).
Uma loucura objetiva que, apesar de sua veia cômico-fantástico e carnavalesca, pretende
visualizar e explicar a totalidade do mundo. Nesse ponto, ela é muito semelhante ao
famoso capítulo do delírio de Brás Cubas. Mas de fato é assim, de modo fantástico, que
esse mundo tende a funcionar: atropelando impiedosamente as vidas que se opõem às
rodas de Humanitas – uma verdadeira e impressionante cifra alegórica do fetiche do
Capital, escarnecendo das leis humanas impotentes que tentam regulá-lo (aqui, em
especial, a menção à Lei do Ventre Livre, de 1871). A vida comunitária orgânica, cristã,
filantrópica (que já nos apareceu na gente humilde da pintura de Guignard) é, na
metrópole fluminense, invertida na pura superfície de um mundo essencialmente
violento e violentado por esse Outro fora da lei.
A ideia fixa também aparece no processo de acusação de um advogado ciumento
em Dom Casmurro (1900), num livro paradoxal formado por meras impressões quase
pictóricas (pequenos quadros em “formato de cromos”, como diz Schwarz, da vida social
de uma família patriarcal no fim do Segundo Reinado) – o que fez a crítica pensá-lo às
vezes sob a marca da “prosa impressionista” de James, Conrad, Tchecov, Svevo e Proust
– meras impressões, dizíamos, que se invertem em certezas inabaláveis. A “névoa”
detectada por Guignard, aqui, é interna à alma do narrador, um caos de sensações
ambíguas e ameaçadoras (tal como revelada no episódio dos “olhos de ressaca” de
Capitu). Um narrador que para se defender de tal caos sensitivo e pleno de gozo
ameaçador, coisifica o mundo externo, evacua toda temporalidade e possibilidade de
mudança, por meio de uma construção rígida, extremamente lógica e sistemática, que é,
no fundo, a de um delírio de ciúmes paranoico (como indica J. A. Pasta).
“Como envolver um meio tão lábil e propiciar-lhe um recorte?” – pergunta Naves
(FD, 180) a respeito de Guignard. Como se vê, essa dificuldade de forma do mundo rural
do pintor mineiro foi completamente superada por Machado de Assis. Sua forma
narrativa se põe com a clareza ofuscante do delírio de totalidade. No entanto, ela se
torna necessariamente uma “forma difícil” – pois aqui, continua a imperar, do ponto de
vista do conteúdo social, uma dificuldade objetiva de formalização, ou seja, uma
dificuldade que está contida na articulação imanente da matéria brasileira. O que
significa, por outro lado, que o conteúdo social resiste à vontade caprichosa e opressiva
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desses narradores de classe, aparecendo no texto como um acúmulo de tensões,


descaídas, incoerências, conflitos, frustrações, uma massa de detalhes que contradiz o
seu triunfo e suas explicações metafísicas do mundo. Sua vitória é apenas a superfície de
um mundo que vai se arruinando e sucumbindo sob o reino do mercado mundial e do
imperialismo.
Na maestria da prosa machadiana, não se pode dizer portanto que haja uma
dificuldade de formalização literária. Machado supera Alencar, Macedo, Almeida e
outros que vieram antes (e depois dele também, é claro). Mas de fato, essa forma se
constitui se suprimindo13, desmanchando um mundo interno e externo aos sujeitos,
tendo de revolver uma matéria social objetivamente opaca, volúvel, instável, em
decomposição. Daí o seu traço negativo e cadavérico. Este traço essencial determina a
forma e o conteúdo do romance machadiano. Uma configuração literária que só se
perfaz como forma pela construção de lógicas cerradas: ideias fixas que ordenam o lado
volúvel e precário da matéria social (a “sede de nomeada” do emplasto Brás Cubas; o
Humanitismo e o Imperador Napoleão III; a pureza e as certezas inabaláveis,
masculino-patriarcais, de Bento Santiago).
Por fim, em Esaú e Jacó (1904) e no Memorial de Aires (1908), temos novamente
romances feitos de impressões e de uma peculiar dialética de atenuações de um
diplomata aposentado. Em Esaú e Jacó, o princípio do duplo, erigido a partir da luta
entre os gêmeos Pedro e Paulo, um princípio um tanto similar ao Quincas Borba, é
ainda uma vez elevado a uma lógica quase absoluta que preside o romance, até o ponto
da extenuação e do tédio do narrador e de nós leitores. Uma espécie de mania de cisão
do narrador, promovendo conflitos frustrados e estéreis. Por outro lado, o romance é
feito de impressões fugidias e de personagens que não se comportam como sujeitos
burgueses esclarecidos ao modo do realismo europeu – num país agora francamente
moderno, não mais escravista. Daí o seu núcleo enfeitiçado, dominado pelo mito, as
adivinhações, o espiritismo, os amuletos e o delírio melancólico, os quais convergem
para o seu princípio de composição disparatado. As “gentes” de “alma insípida” são a
base subjetiva do romance, tal como do lado objetivo impõe-se a especulação
desbragada do Encilhamento e o mundo de abstrações ideológicas da elite separada do

13 Cf. o conceito fundamental de “formação supressiva” de PASTA, José Antonio. “Volubilidade e ideia fixa
(O outro no romance brasileiro)” [1999]. Sinal de Menos, nº 4, 2010.
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trabalho. Um mundo nublado que se monta, assim, de ponta-cabeça, sobre a metáfora


do Inferno dantesco e das alegorias míticas e históricas de base greco-romana. Estas
estão aqui calculadas para sugerir e nomear o poder da oligarquia e o Cesarismo
imposto pelo estado de sítio e a ditadura de Floriano, o subsolo infernal de uma
sociedade vivendo da especulação financeira e da exclusão social e territorial. Não
obstante, na superfície da sociabilidade cotidiana do romance, habita-se um mundo
calmo, pacífico, da “boa gente” de família católica e supersticiosa (nesse ponto,
novamente um pouco semelhante às “paisagens fantásticas” e ao “aspecto irreal” do
universo de Guignard – cf. FD, 184-5). Note-se como o que em Guignard era um fundo
opaco, o signo ambíguo de um fundo ideológico ou utópico de recusa do trabalho, em
Machado se torna a superfície ideológica de um mundo violento e desgraçado “desde a
origem” pela colônia e o trabalho escravo.
Isso perdura e se apresenta claramente como uma segunda natureza até o
momento em que a história desfaz as ilusões, e vice-versa: as ilusões também desfazem
o que parecia história, avanço, modernização social. Um mundo completamente
ambíguo e transitivo em que “o mesmo é o outro e o outro é o mesmo”, conforme a
fórmula crítica essencial de José Antonio Pasta sobre o romance brasileiro e o
machadiano em particular.
A etérea Flora é pintada, nesse contexto cercado de gente insípida, não com a
clareza botticelliana, mas antes como uma femme fragile, indecisa, uma Beatriz
espremida pela “supremacia do mundo das coisas” (Adorno) – como “uma esquisitona”
ou “uma inexplicável” – e, novamente, por meio de metáforas do mundo da pintura.
Aqui, há alguma semelhança com a pintura de Guignard. Como explica Aires:
“Inexplicável é o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem acabar de pintar.
Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta, pouca tinta, nova tinta, e nunca lhes
parece que a árvore é árvore, nem a choupana, choupana. Se se trata então de gente,
adeus. Por mais que os olhos da figura falem, sempre esses pintores cuidam que eles não
dizem nada. E retocam com tanta paciência, que alguns morrem entre dous olhos, outros
matam-se de desespero” (p. 917).

E de fato, nas alucinações de Flora, o índice da jovem nação, tudo perde a


identidade. Flora é uma espécie de “natureza morta” ao modo dos impressionistas ou da
art noveau. Quando a fantasmagoria dos gêmeos invade o seu quarto, o narrador
comenta: “Era um espetáculo misterioso, vago, obscuro, em que as figuras visíveis se
faziam impalpáveis, o dobrado ficava único, o único desdobrado, uma fusão, uma
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confusão, uma difusão...”, uma “transfusão, enfim” (cf. EJ, caps. LXXIX e LXXX). A
técnica dos capítulos curtos, providos de materiais heteróclitos, também reforça a
fragmentação e a opacidade do romance. Estes, enfim, alguns dos traços compositivos
que Alexandre Eulálio (em seus Escritos, 1992) associou à pintura do impressionismo,
do pontilhismo e da art noveau. Também no Memorial de Aires tudo se turva sob as
impressões fugidias e incertas do narrador. Aires abafa a realidade pela retórica, atenua
os excessos cometidos pela gente bem posta – abreviando: os contornos da forma
relutam em desabrochar e reduzem totalmente a estridência produzida pelas Memórias
póstumas de Brás Cubas, ou a clareza cristalina de Dom Casmurro. A forma literária do
Memorial tende a se desfazer nas impressões de notas esparsas de um diário feito
aparentemente ao acaso, sem compromissos. Uma forma que mostraria semelhanças
com o “aspecto lavado” dos quadros de Guignard, a aparência de um mundo de
aparências objetivamente ambíguas, que “parece prestes a escorrer” (FD, 180) – embora
não guarde potencial utópico algum, terminando em grande desolação.
Novamente aqui poderíamos pensar em uma influência dos pintores
impressionistas. Por certo a associação tem certa procedência, mas se engana quanto ao
seu sentido. Parece-nos que a solução de Naves, tendo em vista a obra de Almeida Jr. e
Guignard, é bem mais rigorosa. O pressuposto material do impressionismo era o
dinamismo de uma sociedade industrial plenamente constituída. Tecnicamente não se
dissolviam as figuras e o mundo representados, mas antes, quebrava-se a sua aparência
compacta, natural, inalterável. O seu princípio é o de uma luz racional que revela a
natureza e as coisas humanas. A intensidade das cores, o espessamento das tintas etc.
serviam como meios de produzir diferenciações e novas configurações dos objetos, que
se oferecem ao olhar e tornam-se disponíveis à ação humana (FD, 181). Ora, temos
praticamente o oposto, em Aires. Sua profissão era representar diplomaticamente o
Brasil violento e iníquo no mundo civilizado. Como tal, ele usa a “prosa impressionista”
em suas notas diárias como um jogo para manter as aparências e as convenções sociais.
Aires é uma espécie de diplomata-coveiro, o duplo de Ares/Marte, cuja “vocação é
descobrir e encobrir” para enterrar os mortos do processo de guerra social. E, assim, ele
mergulha no reino das ambivalências e antagonismos, elevando-as a sistema após tê-las
desvelado – sob uma luz mortiça – como contradições de uma sociedade agônica, que
não sai do mesmo lugar. Plus ça change, plus c'est la même chose.
317
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**
Como vemos, nesses romances, a esfera do trabalho sai de foco e fica sempre
pressuposta. Aqui teríamos mais um ponto de semelhança com Guignard. Mas em
Machado, não há consolo, nem promessa. Por isso, aquele que seria o seu último
romance (Esaú e Jacó) termina com o enterro de Flora, nascida em 1871, uma espécie
de representante, no nível das elites, das mínimas promessas de emancipação de uma
jovem nação que se modernizava e que abria um mercado de trabalho livre (a partir do
Ventre Livre). O cidadão Machado era um pessimista, contrário aos emplastros
milagrosos. A utopia política, para ele (aliás, um monarquista), seria porventura
cumprir a Lei e formar uma ordem burguesa mínima no país do vale-tudo e da
gambiarra, um povo que parece ter a “bossa da combatividade” (para usar um termo de
Aires/Ares).
Mas nos romances, como formas literárias rigorosas, representantes de um
sujeito social pressuposto, por trás da névoa psíquica obscura de Brás, Bento, Quincas,
Rubião ou Jacobina, o escritor nos diz que não há nada senão a dependência e a
servidão masoquista ao Outro. Os ídolos religiosos, mesclados aos do poder e do
consumo dessa elite e das classes inferiores, são a prótese de sentido de uma sociedade
separada da vida ativa, que nada constrói. E que não têm cura, tal como os doentes
mentais graves.
O que sugere uma nova questão: forma difícil ou impossibilidade de forma? Se
estamos certos, o problema proposto pela forma difícil machadiana, é no limite um
outro ainda, um pouco mais radical: o poder de uma ideia fixa inamovível – enquanto
índice alegórico de uma determinada formação social e de uma determinada lógica
social objetivada como “guerra de morte” mundial –, que implica numa impossibilidade
radical de forma e de reforma.
Do ponto de vista das possibilidades do presente, para nós, uma impossibilidade
radical – a não ser que seja superada a matriz social que continua a nos produzir como
mera força de trabalho abstrata a serviço daquele Outro sem lei, que Machado ajudou a
decifrar como um vazio e que Guignard ajudou a suspender, fazendo-nos desejar outras
formas de organizar a vida.

(Dez. 2012/Jan. 2013)


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Adesão e desbunde
Os êxtases sórdidos de um Brecht às avessas

Raphael F. Alvarenga
Natasha B. Palmeira

Para nós, o teatro não é um repositório de


substituições para vivências não vividas.

Bertolt Brecht1

Sob não poucos aspectos, José Celso Martinez Corrêa é um artista não somente
extravagante mas extraordinário, um mestre da encenação teatral, sendo inegável a
importância que teve na vida cultural e na história do teatro no Brasil. Os elogios, de
nossa parte, param aí, infelizmente. Com sua última peça, Acordes (2012) – codirigida
por Catherine Hirsch, Camila Mota e Marcelo Drummond –, uma mais do que livre
adaptação da Peça didática de Baden-Baden sobre o acordo (1929), Zé Celso e sua
companhia, o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, propõem, segundo anunciado no site do
grupo, uma “versão sampleada, antropófaga e TragiComicOrgyástica da ‘ópera de
sacação’ de Bertolt Brecht e Paul Hindemith”2. A coisa toda seria simplesmente ridícula,
claro, e indigna de nota, não se tratasse, uma vez mais, de um caso de extrema
regressão. Como de costume, o controverso diretor busca épater le bourgeois – como se
tal imperativo decadentista ainda estivesse na ordem do dia –, seja por meio do encanto,
seja pela perturbação sensorial, ou ainda, apelando para a agressão direta 3. O
envolvimento maravilhador, contudo, limita-se a poucos lances, como o momento,
ainda no início da peça, em que um ator encarnando Santos Dumont literalmente

1Na tradução de Gerd Bornheim.


2 http://teatroficina.uol.com.br/akordes/acordes_release.html
3 Comparada às peças da época da ditadura militar, a agressão ao público, é bem verdade, até que é

branda. Salvo engano, o abrandamento do tratamento de choque destinado ao burguês conservador,


enrustido e careta se deve menos a uma mudança na concepção do fazer teatral de Zé Celso do que às
necessidades comerciais do momento, uma vez que a subversão desbundada, por assim dizer,
constituindo fatia importante do mercado cultural pós-moderno, agora é devidamente subvencionada,
contando com patrocínio da Petrobras, apoio do Itaú Cultural, e assim por diante. Se ao menos as
contradições desta condição fossem assumidas e enfrentadas... mas seria talvez pedir muito.
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decola em cena com seu avião: uma música atmosférica se combina às batidas do
coração do piloto, que ressoam em volume elevado por todo o teatro, acelerando na
medida em que o aparelho é içado aos ares e ganha altura, feito que não deixa de
impressionar, muito embora não deixe lastro durável na imaginação do espectador. Não
é de espantar que uma das inspirações confessas na montagem da peça – ainda segundo
nos informa o site do grupo – tenha sido o cinema de Spielberg, conhecido pela miríade
de efeitos especiais de tirar o fôlego, com a qual preenche o vácuo conteudístico e
compensa os defeitos e manifestas fragilidades da construção formal de filmes pré-
concebidos para quebrar recordes de bilheteria. Seja como for, no resto do tempo – e a
peça tem duas horas e meia de duração – o diretor lança mão dos mais consagrados
meios de se chocar uma audiência, intercalando explosões de bombas, fogos de artifício,
batidas estridentes de tambores e repentinas mudanças na luz – o que deixa o
espectador num estado de permanente excitação e alerta –, com cenas de tortura,
mutilação, muito sangue jorrado, espancamento, estupro, defecação, escatofagia, parto,
masturbação e, last but not least, fitofilia, com o próprio diretor simulando copular com
a grande árvore do teatro, ou, em suas próprias palavras, “surubando a Terra”.
Obviamente, ou pelo menos, com exceção dos corpos nus – que, é claro, não podiam
deixar de figurar numa peça do Oficina –, nada do acima mencionado é “real”, o que não
diminui a irritabilidade e a ojeriza de parte dos espectadores – uma minoria, no entanto
– diante de tanta sordidez.
Prevendo já uma possível objeção a nosso argumento, cabe aqui uma nota
explicativa. A decisão de Zé Celso de encenar esta peça em particular, dentre todas do
repertório brechtiano, não é nada gratuita, uma vez que uma das cenas da mesma, a da
desconcertante amputação dos membros de um palhaço gigante, provocou escândalo já
à época de Brecht, quando da encenação de estreia no Festival Musical de Baden-Baden
de 1929. Conta-se que Gerhardt Hauptmann tenha deixado o local, indignado com o
excesso de violência, pois também ali o palco fora lavado com sangue falso etc. Dito isso,
não se pode ignorar que aquela apresentação, aliás nunca depois reproduzida, fora
considerada pelo próprio Brecht uma espécie de experimento feito sobre base de uma
peça inacabada (as cenas seguintes ainda não haviam sido escritas) e cuja concepção (o
veio didático e coletivista, vale ressaltar) começava apenas a ser definida (tratava-se da
segunda Lehrstück, escrita como contraponto e par dialético da primeira, O voo sobre o
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oceano). Tendo em vista o momento e o contexto em que foi encenada, e principalmente


talvez, tratando-se de um festival no qual o experimentalismo vanguardista era via de
regra bem aceito, não chega a surpreender o espírito de provocação, traço característico
que Brecht partilhava com os movimentos históricos de vanguarda; é mesmo cabível
imaginar que o dramaturgo quisesse testar os limites, quiçá chocar os ânimos, daquele
público em particular – no que, diga-se de passagem, foi bem-sucedido, já que o Festival
acabou transferido para Berlim. Os meios empregados (sangue falso, violência visual
explícita etc.), contudo, são obviamente excepcionais no conjunto da obra. Reproduzi-
los sem maiores considerações, em circunstâncias muito distintas, ainda por cima
ampliando-os ao extremo, como veremos, não deixa de ter consequências. Seja como
for, nada em arte é inocente, e o que está em jogo, para nós, que fique claro, não é tanto
a violência da encenação em si, mas a sua necessidade inerente, e o seu propósito.
Isso posto, voltemos então à adaptação da peça pelo Oficina. Boa parte do público
presente, gentilmente tratado por Zé Celso de “multidão”4, parecia não se afetar em
nada com o que transcorria em cena, como se brutalidade e baixeza alguma pudessem
ainda surpreender num mundo em que há muito deixaram de ser exceções para se
tornarem a norma. Ainda assim, é difícil entender tamanha indiferença. Pois, como não
bastassem os choques visuais e sonoros, o espectador tutelado, tratado do começo ao
fim como uma criança idiota, muito embora tachado de “ator”, “intérprete” e
“protagonista”, em dado momento é também agredido com chibatadas de ramos de
manjericão. Pouco depois, oferecem-lhe fatias de melancia, para que se lambuze junto
com os “atores” na sujidade sangrenta e torpe do “palco”. Em suma, a distância é
constante e deliberadamente quebrada entre a cena e o público, o qual é desde o início e
o tempo todo não somente convidado a participar – seja pelo próprio Zé Celso ao
microfone, seja por palavras de ordem que aparecem no telão, determinando o que deve
ser feito, dito, ou cantado pela “multidão” –, mas principalmente intimado a aderir:
quem não “acorde” em jogar o jogo que devolva o ingresso e se retire, eis o pacto
explícito que firma a “plateia” no começo da “peça”. E o que mais surpreende, de novo, é

4 Uma “multidão” (die Menge), que dialoga com o coro em cena, figura também no texto de Brecht, mas
no seu caso, desnecessário dizer, não se tratava de modo algum de um público pagante levado a
participar – e de maneira um tanto pífia – de uma experiência místico-festiva regressiva. Na estreia da
peça em Baden-Baden, a tal “multidão” era também composta pelo público presente, mas sobretudo por
cerca de 100 cantores distribuídos na plateia.
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a disposição com que se aceita tudo aquilo de bom grado: alguns “espectadores-atores”
mostravam conhecer de cor as letras das canções e as coreografias, chegando mesmo a
inclinar as costas para receber a vergalhada dos “atores-sacerdotes”.
Nada de novo sob o sol, dirá o leitor avisado5. Por certo, Zé Celso vem fazendo
peças assim há meio século, mais precisamente, já faz tempo que o diretor e sua trupe
“arrombam portas abertas”, por assim dizer, uma vez que o insulto ao conservadorismo
burguês repressor através da nudez despudorada, da apologia do uso de drogas etc., ou
por outra, a celebração de uma atitude anarcossexual com conotação místico-libertária
transgressora de tabus mediante um retorno pseudorromântico às origens rituais
arcaicas da humanidade, já não guardam qualquer resquício de crítica, o que dirá de
utopia, numa sociedade consideravelmente permissiva quando comparada à de décadas
atrás 6. Também não é a primeira vez que encena Brecht de forma controversa, ou no
mínimo ambígua – nos anos 60, as encenações nada convencionais de Galileu e Na
selva das cidades marcaram época. Tampouco são novidades, num contexto mais
amplo, a vilipendiação e/ou banalização da estética de combate – de teor antiburguês e
anticapitalista – concebida por Brecht a partir de meados dos anos 20. Bob Wilson, que
recentemente se apresentou em São Paulo na direção do Berliner Ensemble, não nos
deixa mentir, com seu belo e conformista espetáculo à base de pisca-pisca e neon azul.
Se é assim, perguntar-se-á o leitor, por que escrever sobre esta adaptação de Zé Celso
em particular, cujo impacto real – num momento histórico em que as ideias parecem ter
perdido toda importância na legitimação ou na crítica da ordem vigente – é
praticamente nulo? A razão de nossa crítica é tripla. Em primeiro lugar nos move a
convicção de que a arte reacionária – arte que, como diria Adorno, é e sempre foi ruim –
deve ser chamada pelo nome e combatida sem ressalvas onde quer que se manifeste. Em
segundo lugar porque, salvo engano, a peça condensa um tipo de gozo estúpido que nos
tempos que correm, ditos pós-ideológicos, parece sintomático de um modo dominante

5 Ou informado pelos ensaios de Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-69”, in O pai de família e
outros estudos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, sobretudo pp. 87-89, e Anatol Rosenfeld, entre outros
“Irracionalismo epidêmico”, in Prismas do teatro, São Paulo, Perspectiva, 2000, pp. 209-10.
6 Antes pelo contrário, como já colocava em evidência Herbert Marcuse nos anos 60, a liberação de
energias sexuais e agressivas reprimidas até então permitiu extravasar muito da infelicidade, da
frustração e do descontentamento com a ordem social estabelecida, sentimentos que, sem condições de
se desenvolverem conscientemente, poderiam segundo o filósofo vir a se tornar reservatórios para um
novo estilo fascista de vida e morte. A propósito, veja-se o capítulo sobre a “dessublimação repressiva”
em A ideologia da sociedade industrial, trad. G. Rebuá, Rio de Janeiro, Zahar, 1969.
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de funcionamento da ideologia, que na medida do possível importa identificar. Por


último, mas não menos importante, há a necessidade de fazer jus à obra de Brecht, no
mínimo para que sua presente vilipendiação, ou seu elogio por razões erradas, não
fiquem sem resposta.
Comecemos pelos maus usos – para não dizer abusos – do teatro e da teoria
brechtianos na contemporaneidade. Na ocasião de sua recente passagem pelos trópicos,
Bob Wilson declarou o seguinte: “Embora o trabalho de Brecht seja frequentemente
analisado como sendo político, eu nunca pensei dessa forma. Eu o vejo mais como algo
filosófico.”7 De fato, Brecht não fazia teatro político no sentido banal que em geral se dá
ao termo, ou seja, não se limitava a fazer teatro panfletário, de conteúdo político. Mas
tampouco se pode esquecer que ele tinha uma concepção um tanto peculiar da atividade
filosófica, a qual chegou a associar, metaforicamente, a uma espécie de combate: “a arte
de tomar e dar [golpes] numa luta [die Kunst des Nehmens und Gebens im Kampf]”8.
Ora, na adaptação de Bob Wilson, a estética, no sentido mais depurado e estéril do
termo, é amplamente privilegiada, o que, na prática, se traduz em cena pelo
esvaziamento de qualquer dinâmica de classe – algo surpreendente, para dizer o
mínimo, numa encenação logo d’A ópera dos três vinténs...
Diferentemente do norteamericano, Zé Celso pretende dar com a nova peça um
salto “politicante”, por assim dizer: “A Crise Mundial de hoje refletindo a Crise de 29 fez
retornar phoderosamente [sic] a Poética Política Brechtiana demolidora do Capitalismo.
[...] As ondas da maré baixa do Capitalismo em 2012 trouxeram de volta à praia Bertolt
Brecht.”9 Tudo se passa como se o nome “Brecht”, estampado no programa de um
teatro, tivesse se tornado um significante forte o suficiente para definir qualquer
empresa artística como “política” ou “engajada” – o que explica o fato de Bob Wilson ter
de se justificar, dizer que a seu ver Brecht não tem nada de político, exaltando ao
contrário o adjetivo inofensivo de “filosófico” –, mesmo quando, no caso da adaptação
de Zé Celso, a poesia do dramaturgo alemão e o universo cênico por ele concebido não

7Citado em Gustavo Fioratti, “Dois em um: Bob Wilson volta a São Paulo à frente da companhia fundada
por Bertolt Brecht”, in Folha de São Paulo (3/11/2012), p. E1.
8 Bertolt Brecht, “Über die Art des Philosophierens”, in Gesammelte Werke, vol. 15, Frankfurt/ M.,

Suhrkamp, 1967, p. 252.


9 José Celso Martinez Corrêa, “A Universidade Antropófaga Fábrica da Máquina do Desejo”, in

http://blogdozecelso.wordpress.com/2012/12/07/a-maquina-de-desejo-de-teatro-total-de-acordes
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aparecem senão vagamente, muito vagamente, nalguns poucos aspectos da encenação,


que se resumem no fundo a fragmentos de texto desconexos, colados ao conjunto sem
uma qualquer necessidade inerente ao material trabalhado. O “engajamento”, se é que é
possível chamar assim, se dá em Acordes de outra forma: através de fotos e vídeos, tem-
se a impressão de que a peça pretende se posicionar à esquerda do espectro político,
alinhando-se a todo tipo de luta e movimento social contestatório da atualidade, dos
índios guarani sem-terra aos rebeldes sírios, passando pelos afetados por incêndios
criminosos em favelas de São Paulo, pelos grevistas da PUC-SP e pelos indignados
manifestantes agredidos pela polícia em protestos contra as políticas de austeridade
adotadas por uma Europa afundada na crise, e assim sucessivamente10.
Eis o ponto em que se torna visível o desacordo, para não dizer a total
discrepância, entre a declarada intenção política rebelde, supostamente progressista, e a
prática artística, manifestamente retrógrada. Desacordo de pouca relevância afinal, se é
verdade que a intenção do artista não figura entre os aspectos mais significativos na
constituição de uma obra de arte. Interessa-nos por isso o segundo ponto: a regressão
imanente à própria forma com que a obra é produzida. Nesse sentido é algo revelador o
modo como Zé Celso e seu grupo grafam sua atividade: Teat(r)o. Sintomaticamente
põem entre parênteses a razão do teatro – ou a razão tout court, isto é, a possibilidade
de o sujeito se descolar, momentaneamente que seja, daquilo que vivencia, de colocar
um objeto ou os elementos de uma situação em perspectiva, e assim considerá-los com o
devido distanciamento, condição para discernir qualidades, estabelecer relações não-
evidentes etc. –, restando apenas a potência disruptiva do ato, em realidade um acting
out impotente, ainda que regressivo, devido ao alto grau de estetização da violência.
Salvo engano, figura aí a parte de indiferença – vale dizer, o fato de as ideias, sejam

10 No vídeo que postaram na internet (http://www.youtube.com/watch?v=096QEl4yixg) para a


divulgação da peça, a pretensão ao engajamento universal “à esquerda da esquerda” é clara: simpatizam
explicitamente com a causa de todos os “danados da terra”, contra todo tipo de repressão, pelos direitos
humanos etc. etc., ainda que tudo acabe banalizado, entre outras coisas, pelo ritmo e a coreografia
toscos de “Gangnam Style”, presumidamente uma música “de protesto”. Como se sabe, o vídeo do
rapper sul-coreano PSY, hit recordista de visualizações no Youtube, com mais de um bilhão de acessos
até o momento, e que segundo a Associated Press já gerou US$ 8,1 milhões em contratos publicitários,
foi produzido com o intuito de ridicularizar o estilo de vida a um tempo descolado e vulgar de um bairro
abastado de Seul. Acontece que a chacota ali, como chamou recentente atenção Slavoj Zizek,
paradoxalmente acabou operando de modo a reforçar a adesão àquele mesmo estilo de vida dos
endinheirados, constituindo assim, segundo o filósofo esloveno, um exemplo de fenômeno ideológico na
sua forma mais pura.
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quais forem, no fundo não contarem mais – que diz respeito tanto à postura subjetiva
pós-moderna quanto sobretudo à ordem globalizada do real, supostamente desprovida
de contradições, e na qual calamidades de toda espécie se confundem com promoção da
liberdade.
Com efeito, uma das marcas definidoras da época presente é a falta de
racionalidade própria, o que explica em parte a citação arbitrária de estilos, que marcou
igualmente períodos anteriores, de desestabilização dos referenciais burgueses, como a
década de 1920, não por acaso momento de irradiação das estéticas de vanguarda, boa
parte das quais alinhadas a movimentos políticos e sociais que visavam acelerar o
enterro da civilização burguesa moribunda. Por isso talvez, apesar da intenção política e
vanguardista, aliás um tanto ingênua e deslocada, não podemos deixar de notar, e a
despeito de preencher com efeitos tecnológicos ultramodernos as lacunas da forma
dramatúrgica – mas para quem já declarou em diferentes ocasiões não acreditar na
dramaturgia, e sim no que chama de “tragecomediorgia”, isso não haveria de ser um
problema –, tudo em Acordes soa como uma repetição farsesca de esquemas e padrões
formais mais do que batidos, como se o que noutros tempos chegou mal ou bem a se
apresentar na forma de um distanciamento irônico, por isso mesmo com sinal negativo,
estivesse agora completamente positivado. Aqui cabe o que escreveu num outro
contexto Roberto Schwarz: “Onde a negatividade dava conta da resistência do real, a
positividade faz que ele evapore.”11 A aspiração à monumentalidade, já manifestada em
montagens anteriores, possibilitada em grande medida pelos recursos técnicos (digitais
e analógicos) de última geração, sem falar na pirotecnia, suplanta qualquer resquício de
ironia que ainda pudesse ter a peça de Brecht, que por essa razão é tomada ao pé da
letra.
Por diferentes que sejam as encenações de Zé Celso e Bob Wilson, evidencia-se em
ambos uma fetichização das possibilidades técnicas atuais. Estas são de fato
inesgotáveis, o que não quer dizer que o sejam também as possibilidades de fazer com
que toda a tecnologia disponível faça sentido na elaboração de uma peça de teatro, coisa
que não entra na cabeça da turma deslumbrada com o “contemporâneo”. O que dizer,
por exemplo, no caso de Acordes, da utilização abusiva de raios laser e video mappings,

11 Roberto Schwarz, “Marco histórico” (1985), in Que horas são?, São Paulo, Companhia das Letras, 1987,
p. 64.
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ou ainda, da “atualização textual” dos quadros de apresentação das cenas, que levam
títulos tais que “#toacordes”, como se cada cena apresentada se resumisse num boçal
hashtag de redes sociais? No início do espetáculo, uma atriz informa ao público que a
peça é filmada e transmitida ao vivo pela internet, para uma multidão de
“cyberespectadores” mundo afora, acrescentando que as imagens poderão
eventualmente “virar filme, DVD, holografia e até outras coisas que a ciência ainda não
inventou”. Numa outra ocasião, a mesma atriz já havia deixado claro o novo credo: “A
internet é uma espécie de Deus reinventado. A gente quer chegar às pessoas, atingir.” 12
Em suma, os artistas entretêm a ilusão de que pelo simples fato de se servirem das
novas tecnologias estejam em controle das mesmas, quando em verdade o próprio uso
que fazem delas já implica uma subserviência primordial, a saber, o fato, algo óbvio, de
os meios de produção serem determinados pela sociedade vigente – portanto pelas
relações sociais de produção dominantes, as quais em hora alguma são por eles
problematizadas no nível da forma do fazer teatral –, não assimilando em geral senão
aquilo que está de acordo com ela, sociedade.
A insistência no uso de formas antigas – e ao que tudo indica obsoletas, porque
ligadas à produção vanguardista do choque desestabilizador num momento em que a
desestabilização dos sujeitos é exigida e levada a cabo pelo próprio regime de
acumulação financeirizado global, dito “flexível” – como meros esquemas cujos efeitos
se supõem garantidos, e o preenchimento de tais formas com novos meios técnicos, dá
lugar ao que poderíamos chamar de transgressão estabilizada, o que pode ser
interpretado como uma resposta artística ideológica à alienação intensificada do
capitalismo turbinado das últimas décadas. Ao mesmo tempo, a regressão ao mito, no
caso, é tão óbvia e cabal, além de deliberada – trata-se, segundo o “guru-pajé” do
Oficina, de transformar o tabu em totem, ou seja, sacralizar e cultuar tudo o que foge à
norma, ou ainda, à maneira de Juliette, a heroína libertina de Sade, divinizar tudo o que
é tido por pecado –, que acaba redundando em grandes clichês: o bode, a ebriedade do
vinho, os ditirambos dionisíacos, as bacantes, o transe ritual, a purificação pelo sangue
sacrificial, o enorme pênis dourado, a cabeça de Minotauro na entrada do “teatro-
labirinto”, como que dando boas-vindas, em termos lacanianos, não ao deserto do Real,
mas ao Real de um gozo não de todo barrado (Mistérios gozosos, sintomaticamente, é o

12 http://www.globoteatro.com.br/reportagem-1390-acordes.htm
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nome de uma outra peça do grupo) – isso num momento em que a injunção superegóica
ao gozo ilimitado se tornou dominante nas sociedades do capitalismo avançado. De
resto, não deixa de ter sua graça ver o quanto as concepções do Oficina se alinham à
“ladainha pequeno-burguesa no teatro”13, que vive criticando o excesso de racionalidade
das encenações, a esterilidade do cerebralismo, e assim por diante.
Mas voltemos a Acordes. Zé Celso e os seus, assim como Bob Wilson, parecem
esquecer que em obras de arte dignas do nome os meios formais não são fruto do acaso.
Na montagem de que estamos tratando, o ritmo excessiva e desnecessariamente lento
da encenação – só o prólogo tem por volta de quinze minutos –, tratando-se de um
“musical”, é obviamente, em grande medida, estabelecido pela música, que no geral é
bem ruim: além de peças coladas de Kurt Weill (uma canção famosa de Mahagonny) e
Paul Hindemith (segundo os próprios intérpretes a música deste útimo fora recriada
“para o suingue contemporâneo”), tem-se ainda enxertos arbitrários da música clássica
(o Requiem de Mozart) e contemporânea (a faixa “Vordhosbn”, do álbum drukQs, de
Aphex Twin), sem falar na batida eletrônica hardcore, usada nas cenas mais trash, em
particular na da mutilação do palhaço gigante, para criar, junto ao jogo de luzes, uma
atmosfera de pesadelo, batida esta por sua vez sucedida, da forma mais ingênua e
inconsequente, na passagem de uma cena para outra, por batucadas de samba, ou ainda
pelas tradicionais e enfadonhas cantilenas do Oficina, onipresentes na peça anterior,
Macumba antropófaga, que se arrastava assim por mais de seis horas. O tratamento
dado pelo grupo à música diz muito da banalização dos conteúdos, incluindo os mais
atrozes, que é outra marca da nova peça: a barbárie do tempo presente – exemplificada
entre outras tantas coisas pela exibição de imagens chocantes, como a de um índio
kaiowá com o pescoço quebrado – e a celebração dionisíaca – mas, caberia perguntar, o
que se está a celebrar, enfim, esta vida? – desfilam de mãos dadas na passarela do
teatro. A impressão geral é que o que unifica a peça, isto é, seu princípio de unificação
temática, no fundo não é outra coisa senão o arbítrio do próprio diretor; a oscilação não-
problemática entre o crasso e o ridículo, entre a brutalidade e o deslumbre, é a marca do
ecletismo leviano de seu fazer artístico, que tende a tomar superfluidade por riqueza,
reproduzindo aí também, de forma acrítica, a tendência social dominante. Permanece a

13 Nos bons termos de Iná Camargo Costa, “Teatro na luta de classes” (2009), in Nem mais uma lágrima.
Teatro épico em perspectiva dialética, São Paulo, Expressão Popular/Nanquim, 2012, p. 30.
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pergunta: a par do texto da peça, que acaba relegado a segundo plano, o que tem tal
encenação a ver com o teatro de Brecht de modo geral?
A este respeito, vale reler intervenções e entrevistas antigas do diretor do Oficina.
Surpreendentemente, o que se nota é um Zé Celso menos caricatural, mais lúcido, algo
ciente de suas contradições, por isso mesmo mais interessante que a porralouquice
lisérgica das declarações e montagens mais recentes. Citemos alguns trechos em que fala
de Brecht: “[Na selva das cidades é] uma peça que é um combate contra esse mundo
onde a única coisa que se admite é a luta pela sobrevivência, ou a luta pela concorrência,
esse esporte estúpido em que ganha sempre o mais boçal. E é a conclamação para a luta
maior.”14 “Artaud queria que o teatro fosse um ritual e esta é mais ou menos a posição
do Living [Theater], não a nossa, que, de certa forma, está mais perto de Brecht. Nós
queremos acordar as forças das pessoas para elas voltarem a querer. Sabemos, no
entanto, que uma parcela inevitável do público vai apenas nos consumir.” 15 “Brecht não
tem nada a ver com toda uma visão de teatro político de catecismo e catequese, de povo
ingênuo e fodido que os clichês do chamado teatro social anda divulgando por aí. Brecht
é dialético, mágico! O teatro dele é a própria contradição posta a nu. [...] Quando uma
sociedade está em luta, aí é que é a hora mesmo de Brecht. [...] É como macumba para a
cultura dominada. Uma força! [...] Arrebenta com quem está mentindo, com quem não
quer o movimento, o movimento de massas. E é na luta, na pauleira, que é o seu lugar, a
sua hora e a sua vez.”16
Concordando ou não, está claro que por trás de tais declarações havia um bocado
de reflexão sobre a prática teatral, sobre a relação desta com a sociedade etc., e não
simplesmente reposição de clichês. O Oficina atual parece-nos um tanto mais básico,
como se houvessem desaparecido as contradições que nutriam e animavam sua estética
nos anos 60 e 70. Como dito, o teatro feito pelo grupo hoje atende a uma faixa de
mercado cuja demanda é relativamente alta, contando com um público cativo e
vendendo relativamente bem: rebeldia como brand, jouir sans entraves como lifestyle,
anarchy for sale etc. Cabe então ressaltar alguns traços e elementos que distinguem

14 José Celso Martinez Corrêa, “Um jovem Brecht desmunhecado e enfurecido...” (1969), in Primeiro Ato.
Cadernos, depoimentos, entrevistas (1958-1974), org. A. H. Camargo de Staal, São Paulo, Ed. 34, 1998,
p. 141.
15 José Celso Martinez Corrêa, “Lição de voltar a querer” (1972), in Primeiro Ato, op. cit., p. 213.
16 José Celso Martinez Corrêa, “Apêndice: Passando a limpo” (1980), in Primeiro Ato, op. cit., pp. 313-14.

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fundamentalmente as duas concepções, a brechtiana do irracionalismo difuso e


deslumbrado de Zé Celso e seus fâmulos “antropófagos”. Até porque a combinação
esdrúxula, já em fins dos anos 60, de ritual agressivo purgativo inspirado no “teatro da
crueldade” de Artaud e esforço analítico desmistificador associado ao teatro brechtiano
– ela própria, salvo engano, representativa de uma cisão no grupo, que então se dividia
entre a tendência ao niilismo e a consciência da necessidade de combater no palco o
regime militar17 – releva, em parte pelo menos, de uma compreensão insuficiente, para
não dizer equivocada, das concepções e práticas desenvolvidas por Brecht.
Em primeiro lugar, para relembrar o beabá, ao contrário de uma forma que
privilegie a vivência imediata (Erlebnis) e o envolvimento puramente emocional com o
que se desenlaça no palco, fazendo participar o espectador na ação, Brecht, desde
meados dos anos 20, procurou fazer do espectador, antes de tudo, um observador
atento, que exercitasse um modo de ver complexo, privilegiando a análise crítica daquilo
que é exposto em cena: somente assim “os sentimentos são elevados a uma tomada de
consciência”18. O teatro brechtiano, de modo geral, pressupõe o comportamento
reflexivo do público, fala sempre à razão, recusa a emoção que não se eleve ao
raciocínio, por isso evita provocar o medo, o horror ou a libido do espectador com cenas
de violência ou sexualmente apelativas. Ao invés de abolir sem mais a diferença entre
vida e arte19, ou mais precisamente entre real e imaginário, Brecht usa este como
mediação entre a razão e seu objeto, mostrando a cena como irreal, quer dizer, como
ficção, construção feita a partir da fantasia livre, que é o que configura a arte como
lugar-tenente da imagem de uma sociedade emancipada futura. “A chave de todo
trabalho de Brecht”, insistia sempre Gerd Bornheim, “está na palavra distância” 20,
distância, vale dizer, entre o espectador e o palco, entre os atores e o público, entre o
ator e a própria personagem, entre a situação representada e o gesto executado, entre o
gesto corpóreo e a palavra, entre a fala e o canto, entre o canto e a melodia, enfim, como

17 Cf. Ítala Nandi, Teatro Oficina. Onde a arte não dormia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989, p. 135.
18 Bertolt Brecht, “Notas sôbre ‘Mahagonny’” (1930), trad. A. Conrado, in Teatro dialético, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1967, p. 59.
19 Cf. Peter Bürger, Teoria da vanguarda (1974), trad. J. P. Antunes, São Paulo, Cosac Naify, 2012, p. 158:

“A intenção de parte dos representantes dos movimentos históricos de vanguarda de destruir a


instituição arte jamais foi compartilhada por Brecht. De sua aversão pelo teatro da burguesia culta, o
jovem Brecht não concluiu que se devesse abolir o teatro como tal, antes queria transformá-lo
radicalmente.”
20 Gerd Bornheim, Brecht. A estética do teatro, Rio de Janeiro, Graal, 1992, p. 69.

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já apontado, distância entre a própria experiência social cotidiana e a encenação teatral,


condição mínima para que não se reproduza em cena o curso alienado da vida. Ademais,
diga-se de passagem, não há de ser por simples vontade do artista que se fará reconciliar
as esferas que na produção artística se encontram separadas, ou seja, a execução e a
recepção, sendo tal separação um fato objetivo. Ao mesmo tempo, que fique claro,
distância aqui não significa de modo algum ausência de tensão ou de relação entre os
polos; muito pelo contrário, é justamente a distância que possibilita manter a tensão,
dialetizar a relação entre os termos etc., premissa para ir além dos dados imediatos da
configuração social presente sem recair em sínteses falsificadoras, conciliações
extorquidas, ou ainda na ilusão, algo frequente, de uma redenção individual ou social
pelo consumo cultural.
Se é inegável que não há juízo estético possível sem distanciamento, o problema
começa quando este se transforma numa fórmula, numa receita, uma vez que,
dependendo do contexto, paradoxalmente, ele pode vir a operar de modo a reforçar a
ilusão, ou a adesão à realidade dos fatos do mundo existente, ao invés de criticá-las. Dito
de outra maneira, os recursos técnicos e cênicos que permitem um efeito de
alheamento/estranhamento (Verfremdungseffekt) em relação aos conteúdos
apresentados no palco não são necessariamente, por si sós, progressistas, como se não
fosse indispensável refletir a cada caso sobre o sentido que lhes é atribuído, ou seja, a
maneira como são utilizados, com que propósitos e em que circunstâncias. Como notava
Franco Moretti nos anos 80: “Um objeto comum transformado numa coisa inesperada e
estranha; não é isso exatamente a desautomatização da percepção cotidiana defendida
por aquele princípio modernista básico, a ostranenie do formalismo russo? Não é
também a técnica básica da publicidade moderna, que decolou pouco depois da época
áurea dos movimentos de vanguarda e cuja tarefa é dotar as mercadorias de uma aura
estética surpreendente e agradável?” 21 Se o assunto não é novo, também não é de hoje
que o Oficina passa ao largo do problema. Numa intervenção famosa junto à Companhia
do Latão, em que chamou a atenção para a mesma questão, Roberto Schwarz lembrava
o seguinte sobre o teatro de Zé Celso nos anos 60 e 70: “[...] os efeitos de distanciamento
adquiriram um timbre equívoco, mais da ordem da dissociação que do esclarecimento,

21 Franco Moretti, Signos e estilos da modernidade. Ensaios sobre a sociologia das formas literárias
(1988), trad. M. B. de Medina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 282.
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em que autodenúcia feroz (o impulso crítico) e autocomplacência descarada (a


desqualificação da crítica, uma vez que seus portadores haviam sido derrotados)
alternavam e se confundiam, encenando uma espécie de colapso histérico e histórico da
razão.” 22
Voltando à Peça sobre o acordo, no que concerne à temática geral ou à suposta
mensagem de “recusa à ajuda” mobilizada na mesma, chamemos a atenção para o
seguinte: as implicações ideológicas e as consequências práticas contraditórias das
pretensões humanistas ou humanitárias – interligadas que são, no geral, a relações
capitalistas de produção e propriedade –, assim como as conquistas do individualismo
burguês e a necessidade da luta coletiva para se transformar a situação dada, o sacrifício
de si e o senso de responsabilidade coletiva etc., foram de fato preocupações constantes
em Brecht a partir do final dos anos 20, mas nunca receberam do dramaturgo resposta
unívoca e definitiva. De fato, em Brecht, são múltiplas as situações em que são
vislumbrados os motivos da liberdade, da disciplina, do sacrifício de si, do
consentimento, da ajuda, das dificuldades em se praticar o bem numa sociedade
antagônica, e principalmente da necessidade de transformar o mundo, abrangendo
diferentes escopos e níveis de complexidade, que devem sempre ser levados em
consideração. Além de recorrentes em suas peças, tais motivos aparecem quase sempre
de forma variada, isto é, com abordagem distinta e sob diferentes pontos de vista, de
modo a aguçar a percepção das contradições. Um bom exemplo disso é o de duas peças
didáticas, Aquele que diz sim e Aquele que diz não (ambas de 1930), em que os temas da
ajuda, do sacrifício e do acordo recebem tratamento diferenciado. Na versão afirmativa,
um grupo sai numa jornada em busca de medicamentos e assistência médica para sanar
uma epidemia, e justifica com a necessidade de ajudar o povoado enfermo a morte de
um menino que põe em risco a expedição; questionado a respeito, o mesmo concorda
com a necessidade do sacrifício. Já na segunda versão, contrapartida dialética da
precedente, o menino discorda, mas vê-se logo que a situação é todavia outra: não há
epidemia e os propósitos da expedição são sobretudo científicos, de modo que o
sacrifício exigido, naquelas condições, não teria o menor sentido.
Tomemos ainda a questão, recorrente no jovem Brecht, do apagamento da

22 Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, in Seqüências brasileiras, São Paulo,
Companhia das Letras, 1999, p. 124.
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personalidade: em sua primeira peça, Baal (1918), por exemplo, este tinha um viés
negativo (de luta contra o individualismo burguês) e um viés positivo (de reconciliação
com a natureza); em Um homem é um homem (1926), que data de um período em que
começava a estudar Marx, a despersonalização aparecia para o dramaturgo como um
requisito indispensável para a sobrevivência; nas principais peças didáticas, em
contrapartida, a renúncia de si mesmo vinha associada à luta anticapitalista, por isso
mesmo era assumida como condição e prelúdio de uma ressurreição social positiva 23. A
partir do final dos anos 20, mais precisamente, a ruptura com o individualismo e o
utilitarismo burgueses, com a forma isolada e abstrata do sujeito burguês – mas jamais
com o sujeito em geral –, dava-se no interior de um movimento coletivo de
transformação social. Por aí tem-se uma ideia do quanto os significados das noções
mobilizadas no teatro brechtiano, tais que liberdade, ajuda, justiça, bondade,
compaixão, crueldade, violência, disciplina, ou sacrifício, são indissociáveis das
situações e do contexto material em que se encontram inseridas, o que fica novamente
muito claro noutras peças do período, tais que O declínio do egoísta Johann Fatzer
(1927-29), A exceção e a regra (1929-30) e A Santa Joana dos Matadouros (1929-31),
ou ainda naquelas compostas no exílio, como Mãe Coragem e seus filhos (1939), A alma
boa de Setsuan (1943), O círculo de giz caucasiano (1944), entre outras.
Note-se ademais o quanto um tema como o da identificação humanista abstrata
com o próximo é descorticado no nível da própria forma com que é a cada vez tratado. A
respeito de outra de suas peças didáticas, A decisão (1930), que caracteriza seu período
mais radical, experimental e inovador – a ponto de literalmente abolir o público das
representações (e não simplesmente abolir a distância entre palco e plateia, como o
quer Zé Celso) –, Brecht nota que nela a tomada de consciência do jovem camarada,
cujo idealismo – isto é, o fato de simpatizar abstratamente com o sofrimento alheio – o
leva inexoravelmente a falhar ao cabo de cada nova missão que lhe é confiada, ocorre
demasiado tarde, o que não somente prejudica o andamento da luta coletiva como
também leva o personagem à morte, coisas que segundo o dramaturgo poderiam ser
evitadas na vida real através da prática de exercícios cênicos como os propostos naquela

23 Cf. Frédéric Ewen, Bertolt Brecht. Sa vie, son art, son temps (1967), trad. É. Gille, Paris, Seuil, 1973, p.
191.
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Lehrstück24. As peças didáticas tinham, por conseguinte, além do pedagógico,


igualmente um veio estratégico-político; visavam, para resumir, ao aprendizado, pelos
próprios atores e por quem mais participasse das encenações, de uma atitude
fundamental, ou melhor, de um modo de pensar e agir, digamos, crítico-dialético, no
qual a liberdade do indivíduo e a disciplina do corpo coletivo, contrariando o senso
comum, não se encontrariam dissociadas25.
Em Acordes, desnecessário dizer, nem sinal de dialética. Para Zé Celso e consortes,
a realidade é outra, tudo muito simples. Citam as palavras da peça de Brecht como se se
tratassem de axiomas: “Não contem com ajuda [...] Ajuda e violência constituem um
todo,/ E é este todo que é preciso transformar.” 26 Não que não haja verdade, ontem
como hoje, no que é dito aí, mas o que importa é trazer à tona o que está implicado no
enunciado. Noutros termos, não se pode perder de vista que na ausência de mediações
reais, de luta de classes organizada e efetiva, em suma, de um horizonte de superação do
capital, as frases não somente se reduzem à pregação vazia, mas acabam surtindo efeito
inverso àquele que é pregado, o de legitimar a perpetuação do estado geral de violência,
que no capitalismo é a norma. Brecht, é claro, não falava em “estar de acordo” ou em
“rejeitar a ajuda” abstratamente; antes, naquele contexto preciso – lembrando que a
peça foi representada em julho de 1929, ou seja, no intervalo entre dois acontecimentos
de grande importância do tempo, a violenta repressão às manifestações do Dia do
Trabalho em Berlim (episódio que Brecht testemunhou em primeira mão e que até hoje
é conhecido como Blutmai, o “maio sangrento”) e a crise mundial desencadeada pela
queda da Bolsa de Nova Iorque, em outubro do mesmo ano –, o que estava em jogo,
concomitantemente à rejeição da filantropia burguesa e da caridade cristã, as quais
Brecht repudiava por sabotarem a luta pela transformação do mundo, era a necessidade
de estar de acordo com a ruptura revolucionária27, que naquele momento decisivo
figurava ainda no horizonte, em que também se delineavam as perspectivas sinistras da
ascensão nazista, à qual era imperativo resistir.

24 Cf. Bertolt Brecht, “Nachwort für Spiel- und Agitpropgruppen”, in Die Maßnahme. Kritische Ausgabe,
Frankfurt/M., Suhrkamp, 1972, p. 483.
25 Cf. Bertolt Brecht, “Die Musik zur ‘Maßnahme’”, in Gesammelte Werke, vol. 2, Prag/London, Malik,

1938, p. 362.
26 Bertolt Brecht, A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo, trad. F. Peixoto, in Teatro completo,

vol. 3, São Paulo, Paz e Terra, 2004, p. 201.


27 Como não deixou de notar Fernando Peixoto, Brecht. Vida e obra, Rio de Janeiro, José Álvaro/Paz e

Terra, 1974, p. 112.


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Mutatis mutandis, era basicamente o mesmo quadro no Brasil nos anos 1960,
principalmente no pré-golpe, claro, mas de certo modo até o AI-5, vale dizer, “um tempo
em que se vislumbrava a possibilidade de mudança profunda de nossas estruturas
sociais e do efetivo engajamento do país no movimento revolucionário mundial que
acendia as esperanças de que seria possível dar outra face ao mundo”28. Ora, não é
preciso ser gênio para entender que nem de longe é esse o caso atualmente, ou desde
que ficou clara a vitória esmagadora da contrarrevolução em todo o mundo: “Hoje a
expectativa não é mais a de ruptura (o que dirá utópica, como é o caso da gravitação
modernista em torno de uma outra civilização), não há sequer ‘horizonte’, obliterado
numa queda euforizante no Presente, no presente de um capitalismo de novo em
marcha forçada, como nos tempos do Milagre.” 29 Note-se que com o eclipse total das
expectativas de transformação qualitativa radical, vale dizer, na ausência manifesta de
“forças transformadoras capazes de oferecer um horizonte menos sombrio para a
sociedade”30, a própria metáfora oswaldiana da antropofagia, tomada com sinal
positivo, torna-se conservadora, uma vez que reforça de forma ingênua a adesão ao
existente, no caso, ao “darwinismo social” dominante. Por outras palavras, com tal
metáfora, hipostasia-se a lei geral da assimilação do outro a si e de si ao outro, mais
precisamente a luta de morte de todos contra todos pela sobrevivência no mercado e por
um lugar ao sol do consumo massificado, ou ainda a vocação predatória das classes
dirigentes, a descaracterização e o desperdício ligados ao universo do consumo sem
peias, a capacidade da indústria cultural de absorver, neutralizar e comercializar
aspirações libertárias e conteúdos subversivos ou contestatórios, e assim por diante 31.
Nada disso, por certo, parece tirar o sono da pseudovanguardista turma do
desbunde. No final da peça, a “multidão” presente é intimada a se juntar aos artistas

28 Maria Elisa Cevasco, “Para que serve o teatro político?”, in F. Desgranges & M. Lepique (orgs.), Teatro e
vida pública. O fomento e os coletivos teatrais de São Paulo, São Paulo, Hucitec/Cooperativa Paulista
de Teatro, 2012, p. 129.
29 Paulo Eduardo Arantes, “A lei do tormento”, in F. Desgranges & M. Lepique (orgs.), Teatro e vida

pública, op. cit. pp. 203-04.


30 Ismail Xavier, Alegorias do subdesenvolvimento. Cinema novo, tropicalismo, cinema marginal (1993),

São Paulo, Cosac Naify, 2012, p. 441.


31 A este respeito, veja-se a boa leitura de Macunaíma, o filme de Joaquim Pedro, de 1969, feita por Ismail

Xavier no livro citado, pp. 230-62. Veja-se igualmente Roberto Schwarz, “Nacional por subtração”
(1986), in Que horas são?, op. cit., p. 38: “O que [em Oswald] era liberdade em face do catolicismo, da
burguesia e do deslumbramento diante da Europa é hoje […] um álibi desajeitado e rombudo para lidar
acriticamente com as ambigüidades da cultura de massa, que pedem lucidez.”
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numa procissão dançante, verdadeira apoteose carnavalesca de um espetáculo bárbaro


em muitos respeitos. O clima forçado de alegria só faz acentuar o sentimento de
desgosto e desolação com tudo o que presenciamos nas horas precedentes. No alto do
monte de entulho do terreno baldio situado ao lado do Teatro Oficina, Zé Celso se
despede do público e espera a ajuda de um de seus atores para descer. Em meio à
exuberância espalhafatosa geral, a imagem trai o aspecto inofensivo – para a presente
organização da vida, é claro – do artista que acredita que “o Paraíso é o Teat(r)o”.

(dezembro/2012–janeiro/2013)

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Ideologia, comunicação e visualidade


O sistema artístico detectado

Marcelo Mari *

Crítico de arte norte-americano, participante dos debates nova-iorquinos sobre


estética e marxismo, Clement Greenberg estava comprometido com as pesquisas
analíticas da arte moderna. Greenberg foi figura central na mudança da capital mundial
da arte moderna de Paris para Nova York, ele promoveu a entrada dos artistas norte-
americanos como representantes das pesquisas visuais mais atuais e elegeu Jackson
Pollock como o artista-símbolo dos novos tempos. Essa conversão dos artistas norte-
americanos em elite da sensibilidade moderna foi estudada por Serge Guilbaut como um
fenômeno típico das imbricações econômicas, políticas e sociais ocorridas no período do
Pós-Guerra com as disputas entre Estados Unidos e União Soviética.
As origens desse processo de ênfase nos distanciamento estratégico das artes da
batalha ideológica da Guerra Fria remontam ao episódio de surgimento, em 1938, do
Manifesto por uma arte revolucionária independente de Trotski e de Breton. Quando
se encerrou o debate sobre a Frente Popular norte-americana, que uniu comunistas e
liberais nas mesmas fileiras, surgiu uma alternativa para o Realismo Democrático nas
artes visuais. Muitos intelectuais e militantes decidiram se afastar do PCEUA não
apenas por causa dos erros táticos que levaram os comunistas a apoiar o New Deal de
Roosevelt1, mas porque repercutiam notícias sobre os Tribunais de Moscou.
Foi assim que se consolidou o movimento norte-americano de esquerda cujo
mote principal era o anti-stalinismo. Serge Guilbaut informa: "Depois do Primeiro

* Doutor em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (2006). Mestre em Arte e Produção Simbólica pela Escola de Comunicações e Artes da USP (2001).
Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (1997).
Atualmente é professor da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.
1 Em 1937, ocorreu o estreitamento conjuntural da aliança entre o Partido Comunista e a política do New

Deal. Cf. SEATON, E. G. Federal prints and democratic culture: the Graphic Arts Division of the Works
Progress Administration Federal Art Project, 1935-1943. Tese de Doutorado. Northwestem University,
Illinois, 2000, p. 157. (Parênteses nossos).
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Congresso de Artistas Americanos em 1936, a desaprovação da Frente Popular por uma


parte dos intelectuais de esquerda tomou-se mais organizada e virulenta. O abismo
entre trotskistas e stalinistas se ampliou (...). Para muitos intelectuais, ficava cada vez
mais claro que era necessário independência de todos os partidos políticos para os
artistas e escritores.” 2
Nos Estados Unidos, um dos desdobramentos do Manifesto de Trotski e de
Breton foi a crítica do rebaixamento estético da arte na sociedade capitalista de
consumo; preocupação externada por críticos de arte - tais como Greenberg, em seu
ensaio Vanguarda e Kitsch no ano 1939 - foi que a nova arte era um meio de resistir ao
nivelamento da cultura produzido na emergente e dinâmica sociedade de consumo
norte-americana.
Em ensaio sobre o impacto da espetacularização da cultura e sobre o fenômeno
contemporâneo de ascensão das massas para as grades exposições de arte nos museus e
nas bienais espalhados pelo mundo, Paulo Arantes comenta a falência da concepção de
arte moderna, estabelecida nos Estados Unidos a partir do Pós-Guerra, e a superação da
autonomia da arte pela aproximação entre cultura e dinheiro nos anos oitenta: “‘Um
artista pode ser ambos, diplomata e revolucionário’, disse o risonho e bronzeado Robert
Rauschenberg, solicitando dinheiro à classe média alta para uma causa meritória’. Peter
Bürger diria que o moço é impermeável ao processo de re-semantização da arte, iniciada
pela pós-vanguarda uma vez exaurido o ciclo do alto modernismo”3. O que Arantes
explicita é justamente avaliação sobre a perspectiva da esquerda cultural norte-
americana que culminava na produção dos minimalistas e pós-minimalistas e mantinha
a subsistência da entronização da noção de vanguarda estabelecida por Greenberg.
Noção de vanguarda que, em sua origem, estabeleceu o eixo da autonomia dentro de
uma perspectiva conveniente tanto para a irresponsabilidade social como para a
tentativa de manutenção da esfera autônoma da arte, que todavia não garantiu a difusão
do gosto pela indústria cultural.
O principal exemplo de alternativa à tendência expressionista da arte moderna
foi apresentado pelo militante e crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa. Após breve

2 GUILBAUT, S. How New York stole the idea of the modem art - Abstract Expressionism, Freedom, and
the Cold War. Chicago: The University of Chicago Press, 1985, p. 21.
3 ARANTES, Paulo Eduardo. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004, p. 204.

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passagem pela França, Pedrosa viajou para os Estados Unidos e passou a residir em
Nova York no final de 1938. Ali, ele travou contato com militantes trotskistas norte-
americanos e com muitos artistas, literatos e críticos de arte que se aproximaram do
trotskismo, entre os quais Alexander Calder, Clement Greenberg e Meyer Schapiro.
Quando voltou ao Brasil em 1945, Pedrosa decidiu batalhar a favor tanto de suas
convicções artísticas como políticas. Ao contrário de seu confrade norte-americano
Greenberg, Pedrosa apostava na arte de Calder e nos desdobramentos artísticos
construtivos para prosseguimento da tendência de mesmo nome da arte moderna.
A fundação da Bienal de São Paulo coincidiu com a iniciativa de Pedrosa em
promover a arte de tendência construtiva no Brasil nos anos de 1950. Difundida na
época, a famosa afirmação de Mário Pedrosa de que “o Brasil está condenado ao
moderno”4, explicava-se pela conformação das relações estabelecidas entre plano local e
plano internacional desde o período da colônia até os dias de hoje. Segundo Pedrosa, a
substituição de modelos estabelecidos na periferia do capitalismo se fazia segundo a
lógica da tentativa de atualização pela importação. Essa importação acentua a tensão de
duas condições de inserção do Brasil nas novas relações internacionais: arcaísmo e
modernização. A tônica desse processo era irremediavelmente o desenvolvimento
desigual, ou “desenvolvimento desigual e combinado” na acepção de Trotski 5, e as
atualizações promovidas no conjunto das atividades sociais ofereciam possibilidade de
integração e de autonomia no curso das mudanças internacionais. Entretanto, como
toda atualização, sua inserção poderia ou não superar as condições preexistentes.
Pedrosa assinalava que o advento da Bienal de São Paulo promoveu não só a
formação do gosto pelo moderno, mas também propiciou um debate sobre
provincianismo local e sobre renitência da arte internacional, produzindo rupturas
locais que não foram definitivas e demarcando muita vez continuidades na reafirmação
da ordem internacional. Ainda que a mostra brasileira fosse símbolo de modernização,
ela passou a ser de fato parte da modernização contraditória que não superou as
condições sociais preexistentes; modernização que estabeleceu tanto a manutenção das
relações de dominação como o predomínio e a acentuação das desigualdades.

4 PEDROSA, Mário. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p.
321.
5 Cf. TROTSKI, L. A revolução permanente. Lisboa: Antídoto, 1977.

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A Bienal de São Paulo que fora, em seu surgimento, responsável pela


desprovincianização das artes no Brasil, tornou-se aos poucos o contato frenético não
menos com as modas internacionais que com as alianças espúrias para promoção de
artistas e de modas internacionais, a atuação de gangsteres das artes. O sistema das
artes fechou-se na lógica do mercado. Como dizia Pedrosa, “a mostra de arte passa a ser
feira de arte, e os marchands passam a dominar. As leis do mercado capitalista não
perdoam: a arte, uma vez que assume valor de câmbio, torna-se mercadoria como
qualquer presunto”6.
Mário Pedrosa acompanhou de perto as mudanças internacionais e, por isso, ele
foi capaz de antecipar o surgimento da crítica de arte gangsterizada, o crítico-marchand.
O trabalho de Anne Cauquelin anuncia as redes de comunicação como meio de difusão
do valor da arte, do valor artístico; mas não é só isso, a rede de comunicação rearticula a
produção artística segundo seus parâmetros comunicativos: rede, bloqueio, redundância
e saturação, nominação7. O modelo de crítica de arte desse novo momento é Leo Castelli,
promoter da de Andy Warhol. Crítico de arte que atua seguindo a lógica dos meios de
comunicação, Castelli associa seu nome como marca ao sucesso dos artistas, torna-se
indissociável do sucesso deles; cedo ele percebeu a novidade da época: nada escapa da
rede de comunicação e ela atua como construtora de realidade.
A rede transforma-se no imperativo categórico das decisões sempre vinculadas
aos ditames do mercado. Veja-se que a perspectiva de Cauquelin desfere afirmativa
peremptória contra o questionamento brando feito por Ignacio Ramonet sobre as
possibilidades abertas ou não pela utilização da rede mundial de comunicação, a
internet8. Para ela, Ramonet erra ao considerar a internet apenas como um meio de
comunicação, que dependeria do uso que se faz ou não dele para considerá-lo como
democratizante de informação ou como veículo indispensável para reafirmação
constante das operações mercadológicas; o meio já implica condicionamentos essenciais
da percepção e da consciência humanas. O meio internet funciona como mais um
aparelho ideológico do Estado, na antiga e ainda corrente acepção de Althusser, e a arte
tem agora seus limites determinados pela substituição da cor cinemascope do desenho

6 PEDROSA, Mário. Mundo, Homem, Arte em Crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 257.
7 CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 88.
8 Cf. RAMONET, Ignacio. Geopolítica do caos. Petrópolis: Vozes, 1998.

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animado do camundongo Mickey, que formou o padrão de percepção de cor de muitas


gerações, pela cor-luz das windows e cia. e das interfaces do computador.
Confiante na abertura de tendências históricas que poderiam levar tanto à
solução a contento da modernização brasileira como ao colapso do projeto moderno,
Mário Pedrosa identificou as contradições inerentes à implementação inicial da
construção de Brasília, como auge da modernização brasileira: “Fatalmente isolado do
povo brasileiro, o seu governo desconhecerá, não participará senão de fora do drama de
seu crescimento. (...) Brasília seria uma espécie de casamata impermeável dos ruídos
externos, aos choques de opinião”9. Várias vezes se cogitou nas célebres palavras de
Pedrosa a avaliação prenunciadora do Golpe Militar; tanto Otília Arantes como Sônia
Salzstein reafirmaram a acuidade de análise de Pedrosa, a partir dos anos da década de
1960, como identificadora do desenlace da iniciativa moderna brasileira capitaneada
pela arquitetura, cujo principal denominador foi a modernização conservadora10.
No exílio, em Paris, Pedrosa reavaliou o significado da arte na sociedade na
década de 1970. Suas conclusões aproximam-se da análise feita recentemente por Chin-
Tao Wu, no livro Privatização da cultura11. Reavaliação dos objetos da cultura, Pedrosa
dizia, em 1975, que a classificação dos níveis culturais serviria como designação de
privilégio e de distinção social na sociedade de classes em que a cultura preserva o
status quo: “Os objetos produzidos pela arte erudita transformaram-se em capital (e
isso em seu pleno sentido especulativo, pois são uma espécie de ações com as quais se
joga nas Bolsas) e sua posse contribui para a acumulação de riquezas que sustenta o
poder da burguesia na sociedade de classes. O mercado de arte é um dos que mais
claramente expressam o que significa, na sociedade individualista, o fenômeno da
acumulação de capital e o sistema de símbolos de prestígio em que se afirma a luta pelo
status nesta sociedade”12.
Desde a arte moderna até as manifestações recentes da arte dita pós-moderna
têm-se a promoção da arte como chave fundamental de construção ideológica do
individualismo como termo último de fruição das benesses simbólicas oferecidas pela

9 PEDROSA, M. Dos murais de Washington aos espaços de Brasília, op. cit., p. 306.
10 MARQUES NETO, José Castilho (Org.) Mário Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2000, p. 70. Cf. também ARANTES, O. B. F. Mário Pedrosa: itinerário crítico. São Paulo: Scritta
Editorial, 1991, p. 92 e seguintes.
11 WU, Chin-Tao. Privatização da cultura. São Paulo: Boitempo & SESC-SP, 2006.
12 PEDROSA, M. Política das artes. São Paulo: EDUSP, 1995, p. 322.

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sociedade capitalista: “A arte moderna, a arte abstrata, a pop art, a minimal art, a body
art, a conceptual art, etc. são todas produtos de consumo conspícuo, ainda que nem
mesmo a burguesia entenda verdadeiramente todos esses novos ismos, mas os aceite na
medida em que vendem. Nesse sentido, a arte (...) é uma forma de mistificação cultural.
Sobretudo, na medida em que reproduz e projeta essa mistificação como os bens
supremos que os grandes monopólios das multi, ou melhor, transnacionais levam para
todo o mundo, principalmente para os países da periferia, como os emblemas, os
símbolos da civilização cosmopolita do global shopping center a que os sumo-
sacerdotes das gigantescas empresas monopolistas querem reduzir o planeta.” 13
Paulo Herkenhoff, em seu ensaio “Pum e cuspe no museu”,14 questiona o campo
estético. Seu ensaio tenta encontrar aquele espaço e aquele instante de tempo muita vez
despercebidos no confronto entre público e obra, que caracteriza o que chamamos de
experiência estética. Herkenhoff identifica a arte com os pequenos gestos, com as
pequenas coisas que se colocam entre a consciência do público e o espaço onde a obra de
arte se encontra. Como mensurar o valor estético de uma obra de arte? As experiências
estéticas propostas por Hélio Oiticica e Lygia Clark nos anos sessenta parecem apontar
para uma solução de resistência contra a aniquilação da arte na era do deus-mercado,
pois a experiência aberta por um Parangolé não se identifica com sua propriedade e
comércio. Medida urgente contra aquilo que Pedrosa tinha constatado: “as leis do
mercado capitalista não perdoam”. De certa forma, Herkenhoff assinala os interstícios
da dimensão estética como grande barreira contra a simples mercantilização das coisas
presentes no mundo. O que há de novo nisso? Vivemos um impasse contemporâneo de
falta de alternativa que possibilitem vislumbrar a transformação efetiva do que está aí.

13 Idem, ibidem, p. 326.


14 HERKENHOFF, Paulo. “Pum e cuspe no museu” In: MANESCHY, Orlando e LIMA, Ana Paula
Felicíssimo de Camargo (orgs.). Já! Emergências Contemporâneas. Belém: EDUFPA/Mirante -
Território Móvel, 2008, p. 203.
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Os devotos do Santo Anônimo


Sobre “as visitas que hoje estamos”

Cláudio R. Duarte

“(...) o discípulo Santos cuidava agora de umas


liquidações últimas e lucrativas. Não só de fé
vive o homem, mas também de pão e seus
compostos e similares.”
(Machado de Assis, Esaú e Jacob, 1904).

O romance, no Brasil, foi um gênero importado. Até pelo menos Machado de


Assis, faltava uma tradição convincente. A pesquisa de formas e materiais
historicamente específicos, capazes de exprimir a mediação incontornável do país no
mundo burguês ocidental, foi assim impulsionada a partir desse mais que reconhecido
“mestre na periferia do capitalismo” (R. Schwarz). A forma romance ganharia aqui
então contornos diferentes em relação ao centro europeu.
A romance de estreia de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira 1, escritor de
Mococa e da Capital (SP), hoje morando em Arceburgo (MG), segue até certo ponto a
linhagem inventiva que vem de Machado, Mario, Oswald, Rosa, Drummond e vai até às
muitas variantes da literatura contemporânea, com Loyola Brandão (Zero), João
Antônio, Rubem Fonseca, Francisco Alvim, Raduan Nassar, Luiz Ruffato, entre tantos
outros. Ao mesmo tempo, pesquisa novos conteúdos de expressão e organização formal.
O resultado é um romance de lembranças e de vozes, muitas vozes, correlatas a um
ouvido aguçadíssimo e a uma mão hábil na escrita em vários registros temporais e
formações estilísticas: prosa em terceira e primeira pessoa, monólogos interiores,
diálogos, lendas, rezas e orações, provérbios, “causos”, poemas, epigramas, chistes,
cenas teatrais, aforismos, certo ensaísmo contido, fotografias comentadas e talvez
outros ainda, pois a matéria está aqui para sobrar, sem pontos finais – com o efeito
calculado de exceder e quebrar as regras e convenções, em que o escritor recria uma das

1 Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, as visitas que hoje estamos. São Paulo: Iluminuras, 2012.

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formas fundamentais do romance brasileiro e hispano-americano em geral: a linha do


“realismo mágico” ou “metafísico”, às vezes dita “barroca” ou “maneirista”,
estruturalmente homóloga à linha dura, excessiva e obscena dos estados de exceção
aqui instaurados, linha que vai de Machado a Mario e a Rosa, de Valle-Inclán e Asturias
até Carpentier, Rulfo, G. Márquez, Fuentes, Llosa e Roa Bastos.2
Isso faz de as visitas que hoje estamos um romance entre aspas e entre
parênteses: moderno, negativo, de difícil identificação e caracterização, mas ainda
interessado nas tensões e contradições da dominação e da fragmentação social atual,
que permanecem como um fundo silencioso, enquanto essência nomeada do processo,
sintetizada pelo ouvido e a escrita irônica do autor.
Sem narrador ou personagens centrais e sem enredo, espalhando-se por cerca de
duzentos fragmentos dissonantes em suas 448 páginas, resta uma espécie de
organização paratática e implosiva.3 Com efeito, não se trata exatamente da narração
de uma progressão lógica, coerente, ascensional de um sujeito a partir de um mundo em
demolição, que fosse explodindo para fora e deixando adivinhar um novo desenho.
(Pode-se imaginar algo disso nos fragmentos finais, que dramatizam a vida do escritor
como sujeito isolado diante das demandas do mercado, do público e da expressão de
uma experiência social, objetiva, de desintegração). É mais um campo de ruínas
históricas – lembranças do passado e do presente – justapostas, estáticas, horizontais,
compartimentadas, às vezes sufocantes, mas sempre abertas às... visitas que hoje
estamos. – Ou inversamente: são estas mesmas ruínas que invadem o sujeito, o seu
espaço particular, a memória individual e coletiva sempre frágil, tudo prestes a ser
devorado pelo Outro e pela violência do Real inominável, o estado ditatorial capitalista
com “face humana” no qual soçobramos.

2 Cf. Cláudio R. Duarte, “O capitalismo como estado de exceção permanente”. Sinal de Menos, nº 8, 2011 e
Carlos Fuentes, Valiente mundo nuevo. México: FCE, 1990, p. 109 e ss.
3 “A logicidade paratática da arte consiste no equilíbrio dos elementos coordenados por ela, naquela

homeostase em cujo conceito a harmonia estética sublima-se como último recurso. Tal harmonia
estética é, face aos seus elementos, algo de negativo, de dissonante em relação a eles (...) Assim, a
harmonia estética qualifica-se também a si mesma como momento. A estética tradicional engana-se ao
exagerar esse momento, a relação do todo às partes, como um todo absoluto, erigindo-o em totalidade.
Mediante essa confusão, a harmonia converte-se no triunfo sobre o heterogêneo, emblema de uma
positividade ilusória.” (Theodor W. Adorno, Ästhetische Theorie in:__. Gesammelte Schriften, Band 7.
Frankfurt: Suhrkamp, 1970, p. 236. Trad.: Artur Morão: Teoria estética [1970]. Lisboa: Ed. 70, 1993, p.
180.)
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O seu êxito artístico é pois o reencontro e a reconstrução formal de parte da


matéria particular já divisada por aquela tradição brasileira – a matéria agônica, talvez
mais que antagônica, de nosso processo acelerado de urbanização. Um processo
desigual e catastrófico, vale frisar, constituído por um padrão de sociabilidade e de
subjetividade capitalistas desde a base, destrutivo e desenraizador, mas que gera a
convivência de pelo menos dois tempos históricos: o do mundo rural e religioso
tradicional, interiorano ou “caipira”, “em vias de desaparição”, como chama a atenção
José Antonio Pasta na orelha do livro4; e o tempo racional-abstrato do mundo urbano,
propriamente capitalista e socialmente fraturado. Um mundo aburguesado, por um
lado, e proletarizado e subproletarizado, precário, informal, sem cidadania, por outro.
Um material disparatado e misturado, que tem de se combinar, e que já torcia a forma e
fazia as suas piruetas metafísicas, por exemplo, em Quincas Borba e Esaú e Jacob.5
Como se vê, Antonio Geraldo tem visitantes ilustres em sua sala, aliás
reconhecidos em epígrafes. Mas o achado maior do livro é, a meu ver, o estabelecimento
de um denominador comum entre esses dois mundos: a continuidade e a síntese
contraditória entre dois fetichismos – o fetiche religioso do mundo rural-caipira e o
fetiche do dinheiro e do capital como totalidade predominante. Da devoção aos mitos e
santos locais passamos cada vez mais à devoção do incrível mas realíssimo “Santo
Anônimo”, celebrado pelo culto ao dinheiro, à pura sobrevivência e ao poder da
máquina capitalista de sujeição e hierarquização social. Os dois momentos convergem
para um tipo urbano-periférico de metafísica de confronto do Destino, com a ajuda dos
semblantes de deus, do diabo, da loteria, da esmola, do favor etc., que unifica os dois
registros fetichistas (o religioso e o econômico); uma especialidade brasileira e latino-
americana, talvez, principalmente entre os pobres e desvalidos, mais ou menos
excluídos da racionalidade secular e monetarizada, vigorando como fé, crendice,
superstição ou último recurso de sentido frente à alienação e ao absurdo social
decretado pelo Capital. Este, no fundo, o divino Espírito Santo que tem hoje direito até a

4 E uma cultura relativamente autárquica, de desamor e de recusa ao trabalho e ao mercado –


acrescentaríamos nós, com base em Antonio Candido, Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1964, pp. 57-66.
5 Não dá para deixar de lembrar, ainda, o ápice da “metafísica” do banqueiro Santos, na época do
Encilhamento: “Cada acção [na bolsa] trazia a vida intensa e liberal, alguma vez imortal, que se
multiplicava daquela outra vida com que a alma acolhe as religiões novas. Nasciam as acções a preço
alto, mais numerosas que as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos.” (J. M. Machado de
Assis, Esaú e Jacob [1904]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 204.)
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uma “capelinha dos santos anônimos”, fotograficamente registrada pelo autor (em “?”,
p. 25). É a elaboração desse tipo de material peculiar que dá ao romance uma densidade
histórica difícil de encontrar na literatura contemporânea.
Enquanto na Europa o romance foi a expressão do modo de vida burguês – com
os seus pressupostos na secularização da cultura urbana, no individualismo e na livre
circulação de mercadorias – no Brasil, os pressupostos eram algo diferentes:
escravismo, clientelismo e dependência direta patriarcal e religiosa conviviam com a
lógica universal do mercado e da acumulação brutal do capital. Aqui, a dominação
indireta e quase-objetiva do mercado se entrelaça, ou melhor, talvez, se realiza por meio
de formas de dominação direta ou quase-direta, fortemente baseadas na coação e na
violência, na hierarquia de classes, na corrupção e no favor político paternalista, mas
também através da cultura e das ideologias de matriz mítico-religiosa. O resultado é
uma sociedade capitalista ao mesmo tempo “cordial” e “selvagem” – o caldeirão
diabólico em que ferve até hoje a massa informal e sem direitos assegurados,
reproduzindo ainda as estruturas arcaicas da Colônia – tal como a velha personagem do
incipit da obra, guardada qual um papel na gaveta direita da cômoda: a velha mãe
colonial “inteira, mesmo que aos pedaços” (p. 21).
O recuo relativo do fetiche religioso gera a luta entre o número e o drama. No
declínio do deus e da religião, forçado pela instauração da Era do Vazio fetichista do
dinheiro, resta dramatizar o inexistente – ou o efêmero movimento negativo que parece
às vezes sacudir a superfície do texto; quando a Igreja e o Supermercado (o templo das
mercadorias), presos juntos, juntos devem ser enforcados. Nesta altura já fechamos o
livro: o sujeito ou sua possibilidade só surgem no fim desse processo negativo, ou no
reinício da leitura da obra, que nos revela então mais claramente a essência de seu
ponto de vista. É a dramatização ensaiada por Antonio Geraldo, desde a introdução em
versos, estabelecendo o “ponto de vista da morte” da (de)composição6:

“dizer tranquilamente: já morri/ (as palavras se encontram no vazio)”

Palavras que correm no espaço vazio em direção ao outro (ao velho e ao novo, por

6 Conforme a caracterização de José Antonio Pasta, na orelha do livro. Cf. também o seu “Volubilidade e
ideia fixa (o outro no romance brasileiro)”. Sinal de menos, nº 4, 2010.
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suposto),
“pelas trilhas escuras de mim mesmo/ até imaginar o outro, e sê-lo/ neste passeio inútil, sem ter
sido/ aquele outro eu mesmo, mas eu mesmo/ sei que pedalo para o atropelo” (“do autor para o
autor”, p. 9).

O drama é aquilo que permanece, incomoda e fere, como um incessante “remoer


[de] tristezas, um inferno mesmo” (p. 17), tanto quanto é o vazio instaurado pelo
progresso, que promete o sujeito e a liberdade, mas não os cumpre. A liberdade em
relação à mentalidade tradicional, desatando-se do registro da fala ordinária nebulosa e
submetida à devoção religiosa do homem simples, não é necessariamente a liberdade da
ação e da palavra, que corre solta sem sentido, ou com sentido sempre já dado e
organizado pelo Código de sobrevivência social do Santo Anônimo – o deus-Dinheiro –,
sempre a ser naturalizado como a nova “religião da vida cotidiana” (Marx), que grassa e
toma todos os quadrantes já a partir da sequência inicial de fragmentos (“caridade”,
“fé”, “exegese”, “sacrifício”, “?”, “procrastinação”, entre outros). Tanto lá como cá restam
“os sonhos dos dias idos, por viver e jamais vividos” (p. 17), trancafiados na “gaveta
direita” da presença-voz feminina já anteriormente referida, a velha mãe de joana e
antônio, mas também, de certa maneira, do “pobre-diabo” dimas; a mãe afinal de um
violento drama cristão e caipira – a luta de morte para vingar a honra ferida da família
–, mas no fundo também um drama pecuniário, ligado à absoluta falta de dinheiro e de
horizontes do “pé-rapado” dimas. Duplo drama que abre o romance em chave crítica e
críptica, alegórica.
A parataxe nervosa da construção, que junta os 200 fragmentos numa linha
esfumada, funciona como mimese da sociabilidade cindida e estilhaçada, que
dificilmente cumpre o que promete. Traço igualmente válido para o campo estético, que
há muito perdeu o solo seguro e a ideia da totalidade. A verdade é que o risco da
dispersão “molecular” pós-moderna ecoa em toda obra moderna, como vemos por
exemplo na problemática da formação do informe na pintura modernista, em Jackson
Pollock, no tachismo, no informal. Daí o fracasso talvez inevitável do trabalho estético –
pois, no limite, os materiais modernos escapam ou resistem à configuração e à
articulação plenas. O mesmo risco da organização paratática desse romance: a
continuidade também inevitavelmente se perde em alguns fragmentos autônomos, salvo
melhor juízo, arbitrários, subjetivos, menos sérios e maduros, em que as tensões

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internas são relaxadas, os núcleos temáticos esboçados são esvaziados ou redundam e


decaem, sem choque e sem pico de tensão. Contudo, por outro ângulo, tais fragmentos
não deixam de ser também resistentes à integração a seu modo, e talvez representem,
enquanto chistes e atos falhos, momentos críticos da totalidade social, expressões do
seu inconsciente. Outras formas da negação, assim, como tentativas de distensão, de
libertação do espírito, de inversão de sentidos, de sinalização de falhas no conjunto
hipertenso, tão rigorosamente armado.7 São ao mesmo tempo momentos sociais e
subjetivos desconformes e tentativas falhadas de resolução da contradição, que
precisam ser apresentadas em conjunto. Como no Inominável beckettiano – il faut
continuer, je ne peux pas continuer, je vais continuer –, o impulso d’as visitas é o de
errar melhor, fracassar melhor.
Mas os destaques, os pontos fortes desse livro forte e bem construído, são aqueles
fragmentos que expõem, de modo concentrado, a tensão social de classes, de gêneros,
de cor e etnias, de idades, de famílias e familiares, de culturas – mas principalmente a
do dinheiro, porque a dívida cobrada pelo Santo Anônimo é geral. Assim, o devedor e o
emprestador (em “cobrança”); o advogado e o pedinte e a recusa até da esmola
(“entrada grátis”, “o encontro”); o chefe filho da puta e enlouquecido pelo poder e seus
empregados e desvalidos em geral (“com espírito” – um dos mais extraordinários, aliás);
a polícia fascista e o extermínio dos párias sociais (“tour de force”); o pastor e a extorsão
do dízimo dos fieis (“acerto”); a separação do casal classe média (“fotocópia”); o
professor, a filha e a mulher interioranos e o negro do basquete americano, um
milionário estuprador (“culpado”); a família patriarcal escravista e a tutela das ex-
escravas (“não é como vocês falam”); o dono preconceituoso do restaurante e os seus
funcionários (“restaurante”); o homem e o animal aprisionados (“canarinho-do-reino”);
o negro desempregado e violento vivendo à custa da esposa negra na favela (“dezembro,
janeiro”); os pobres contra os pobres em geral (“vagabunda”, entre outros); ou a excelsa
liturgia da acumulação e da concorrência ensinada de pai para filho (“lição”). E vários
outros.
Por um lado, então, abertura máxima à audição do Outro, um romance de tipo

7 “O Chiste, onde quer que se encontre, é a forma que desata coisas, que desfaz nós (...) Cada vez que essa
tensão e contenção ameaçam converter-se em hipertensão, procuramos diminuí-la, descarregá-la."
(André Jolles, Formas simples [1930]. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 206 e 212.)

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“dialógico”. Ao mesmo tempo, as vozes falam como que sozinhas, em discursos


ensimesmados que invocam às vezes o outro, mas não lhe dão realmente a palavra
(salvo no drama incestuoso de “Naum”). A simulação de conversa viva e infinita (a bem
dizer morto-viva) tende a romper a tensão dialética, negar o negativo, abrindo o fosso
largo dos paradoxos e dos paralelismos, sem sentido convergente ou divergente. Com o
que se desfaz, porém, a configuração dialética do romance burguês tradicional (com a
matéria “em todas as diversas direções se indo”, num “nada preso ao nada, pelo nada,
boiando em nada”, p. 17). Mas a tensão se recupera e vai ao cume à medida em que se
ressalta a morte – o domínio do trabalho morto, no fundo – como o mediador universal
das práticas e dos discursos.
Aqui o segredo social da forma do romance de Antonio Geraldo, em certo sentido
algo correlata à “implosão-explosão” da forma social urbana moderna. 8 As múltiplas
falas cotidianas reificadas, quase impessoais, dispersivas, pacientemente recolhidas
(não-naturais, é claro, intensamente reelaboradas nos fragmentos), levam a forma do
romance até o seu limite negativo: o limite que o faz desaparecer na medida em que o
constitui – tal é a lógica funesta de um “romance que se faz desaparecendo, ou que se
forma suprimindo-se”, tal como a caracteriza José Antonio Pasta, em sua apresentação.
O desencontro e a dissociação da socialização urbana é um fenômeno estrutural geral,
que, em certo sentido, no Brasil, reproduz o insulamento do bairro caipira, refletindo-
se num processo de segregação socioespacial e de ruralização do urbano 9; algo que o
romance capta, p. ex., na súbita percepção da indistinção de ambos os espaços: “(...)
queria saber mesmo é onde acaba o campo e começa a cidade” (“a questão”, p. 387).
De fato, a industrialização brasileira foi um processo avassalador de destruição e
perda dos laços comunitários – a mesma abstração do passado finamente retratada e
construída, a meu ver, nas pinturas de Alfredo Volpi, com seu tom tímido, matuto, sua
técnica artesanal, feita de elementos inarticulados e redundantes10, que comparecem
também nalgumas soluções d’as visitas que hoje estamos. Só que neste romance sobre o

8 Cf. Henri Lefebvre, A revolução urbana [1970]. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009, caps. I e II.
9 Cf. a ideia de um “pseudocampo” na atual dispersão e rarefação da vida urbana de Guy Debord, A
Sociedade do espetáculo [1967]. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, § 177. Cf. também: Claudio R.
Duarte, Estilhaços da experiência urbana moderna. São Paulo: FFLCH-USP, 2002 (dissertação de
mestrado).
10 Cf. Rodrigo Naves, “Anonimato e singularidade em Volpi” in:__. A forma difícil. (Ensaios sobre arte

brasileira). São Paulo: Cia. das Letras, 2011.


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fim de linha, com um forte acento na dissolução, na abstração, no drama doloroso do


estranhamento do mundo industrial. Eis então um livro negativo, sem reconciliação,
sem condescendência nem para consigo, por exemplo quando o escritor, representante
de uma classe, também é (auto)ironizado como um santo anônimo no mercado
universal (como em “acerto” ou “regras pelo bom sucesso de escritores brasileiros a
favor de uma carreira nas letras” ou mesmo em “ghost-writer de mim mesmo”).
O número (a abstração e a equivalência) contra o drama (o sofrimento e a
heterogeneidade negativa). Fica a cargo do leitor decidir qual ponto de vista deve
prevalecer no romance de Antonio Geraldo. Ambos porém são negativos e se
interpenetram, sem maniqueísmos. De um lado, estão os “sem eira nem beira” – ou
conceitualmente, os proletários (mas só no fundo, mediante o golpe de vista crítico-
conceitual), inseridos na romaria dos

“negócios que carregam a gente pra baixo e mais embaixo, do mato pra cidade, da cidade pra
capital, e, na capital, pra onde deus quiser, de moquiço em moquiço, rodopiando pelas beiradas
em volta da falta de dinheiro, isso quando o diabo não atalha e põe a gente pra correr de volta, em
tudo de novo, mato adentro, mas dando de cara, isso sim, com os descampados secos, os
desmatados passados falsamente verdes em nós, como dizia meu finado pai (...)” (“a hora certa”,
pp. 27-8).

Do outro lado, acima-além do homem (mas também como um núcleo incrustado


nos sujeitos proletarizados), ficam os representantes do imperativo social capitalista,
como puras funções abstratas de trabalho e acumulação, que excedem compulsivamente
a própria lógica do dinheiro, levando-a à pura violência fascista. Esta voz com espírito –
ou só espírito (aliás, em sua abstração, a maior parte das personagens não tem corpo, ou
este se reduz a escombros, a doenças ou aos dejetos corporais) – revela seus pendores
“atávicos” fascistas, por exemplo, desta maneira:

“já virou ritual de fim de ano, sempre convido uns empregados da firma, digo que foram
escolhidos a dedo (...) você não está nem aí com ninguém e poderia exigir com toda a naturalidade
do mundo que a cambada lambesse seus sapatos, o que muitos fariam, diga-se en passant, com
enorme gosto (...) (“com espírito”, pp. 281-2).

Não seriam estas então as duas vozes mais “típicas” e “características” do texto,
no sentido clássico do romance realista (evidentemente sem a sua forma)? De um lado,

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os donos da moeda e da vida, de outro, os “sujeitinhos transformados em moedinha se


enfiando no bolso das próprias calças” (p. 285). A voz do oprimido se contrapõe, ilusória
e ingenuamente, mas não de forma menos verdadeira, deste modo, por exemplo:

“não é assim, não, doutor, o pelourinho já foi faz tempo, não calo, não, vou embora não é porque o
senhor mandou, não, vou porque quero e quero meus direitos, eu não sou sujo, não, minha cor é
essa, mesmo, acabou, passo fome mas acabou, não sou mais capacho de ninguém, não tá vendo?”
(“isso, benedito, não se rebaixa mais não”, pp. 164-5).

Seriam estas a meu ver as vozes discordantes fundamentais do livro, que


suportam uma verdade que desvela as outras vozes como gradações ou aparências suas,
todas como prisioneiras do Outro inconsciente, formado pelas ideologias e a estrutura
fetichista que impõe o sacrifício coletivo real ao Santo Anônimo. Sem elas o livro se
perderia na superfície dos deslocamentos e na volubilidade das linhas de fuga, ou nas
equivalências e na homogeneidade do pseudo-ato de devoção ritual, perderia a sua
própria rica essência heterogênea, tensa e contraditória.
Aqui, então, o núcleo cindido da verdade explode a fantasia da equivalência e da
impessoalidade absolutas impostas pela mediação universal do mercado e do trabalho
abstrato. Mulheres, negros, jovens, crianças, adultos – como trabalhadores e
marginalizados sociais – resistem (como o velho tipo caipira, talvez?) ao mercado e ao
processo de trabalho. Resistem em graus e aparências variados à identificação pura e
simples de si ao comportamento do macho branco-ocidental e patriarcal, do homem
gestor e ganhador de dinheiro.
Seriam os resíduos, articulados do ponto de vista da morte como vimos, de uma
memória coletiva agônica e (não menos) antagônica ao processo capitalista – eis aqui
então, em fim de linha, mais um livro de memórias póstumas no país das Memórias
póstumas, dessa vez as do “caipira” – e mais ainda do proletariado tardio, em parte
desaparecido, em parte talvez em devir, acaso o de sua autossupressão.

(Agosto - Dezembro 2012)

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Três fragmentos de
Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira
as visitas que hoje estamos. São Paulo: Iluminuras, 2012.

a hora certa

diziam que ela era poderosa, dona matilde, benzia e contava


o porvir, até o passado, pra comprovar o futuro descoberto, peguei o ônibus sozinho,
não disse nada a ninguém, que crendice de povo pobre vem perdendo a força, e os
amigos pegam a rir da gente, de uma qualquer correta mínima superstição, que, se não
faz andar o andor, também não desanda o passo da procissão, o que é que tem?, um
homem há que se pegar em alguma coisa, principalmente quando a vida mete o pé na
bunda dos desavisados, na verdade sabidos e ressentidos dessa incômoda contingência
de antemão, desde os nascimentos, por isso carrego comigo esta sempre trazida pedra
de topázio, devia tê-la repassado à minha esposa, sei disso, a tradição, não sei o que
mais, bem, na verdade não consegui, confesso, quebrei a corrente que agora se enrola
nas pernas?, bobagem, foi apenas um presente da minha tia-avó e madrinha, amuleto da
época em que a família ainda mandava, mas já começava a não desmandar, o que está
sempre a um pulinho de fazer um pai de família virar, isso sim, pau-mandado, por conta
do tostão em tostão que foge pro papo de um vizinho lindeiro, esganado coronel
qualquer, ou bisneto dele, tanto faz, arrastando criação, cerca, terra e homem, enfim a
herança, mas isso é outra história, hoje é topar com a mania dessa gente citadina que se
faz de esperta no esconso da falência de ser, ou mesmo no torto dos negócios que
carregam a gente pra baixo e mais embaixo, do mato pra cidade, da cidade pra capital, e,
na capital, pra onde deus quiser, de moquiço em moquiço, rodopiando pelas beiradas
em volta da falta de dinheiro, isso quando o diabo não atalha e põe a gente pra correr de
volta, em tudo de novo, mato adentro, mas dando de cara, isso sim, com os
descampados secos, os desmatados passados falsamente verdes em nós, como dizia meu
finado pai, então penso que venho pelo caminho errado da vida, por isso não me
aprumo, sem parada, de modo que, se padre, macumbeiro, cartomante ou benzedeira
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apontam um rumo, é pelejar nessa direção, a pé, de ônibus, o que for que toque a gente
pra frente, que os desprevenidos de hoje, mesmo a um passo da mendicância, pelo
menos não têm de ralar tanta sola e remendar alpercatas, um nike de camelô anda bem
e gostoso, às vezes é mike, pouco importa, a gente labuta até que muito alinhado, outros
tempos, nova canga, não menos pesada, mas mais bonita, de grife, ou quase de grife, o
que é um consolo moderno, não é?, monte santo de minas fica aqui ao lado, cidadezinha
tranquila, você sabe, o velho isidoro vem de lá, vender bananas, e confirmou a fama de
dona matilde, fui decidido, bati palmas, apertei campainha, ela não estava, então era
esperar, mas ela deveria saber, se era tão boa, que vinha cliente, ou não?, benzedeira
também tem as suas necessidades, pensei, o fusca na garagem era a prova, com a
ferrugem desbeiçando a lataria, uma boa porção do para-lama comida, me abanquei na
sarjeta e fui fazendo espera, tinha todo o tempo do mundo, ela talvez soubesse disso, ou
não?, não demorou e ela apareceu arrastando um sujeito pela mão, meio abilolado de
nascença, parecia, se não por seu todo inteiro, coitado, babava um pouco, dona matilde,
vim em consulta, disse, ela manquitolava, quebrei a perna, 84 anos é peso demais,
revelou, no que me pareceu exagero de vetustez para melhor propaganda do ofício, mas
vou sarando como deus quer, vamos entrando, seu moço, eu não queria dizer logo o
motivo da consulta, ela que adivinhasse e me livrasse de ouvir de mim a lamentação que
me latejava, moço, não precisa dizer, eu enxergo além, quer ver?, o seu caso é este, você
faz assim assado, evite o malpassado, e pronto, paga o que deus mandar que pague,
muito obrigada, vai com deus, mas nada no mundo é como deveria de ser, ela me
mandou sentar numa velha poltrona, rasgada no tecido gobelino, aberta no corvim dos
braços, uns cuspidos chumaços de algodão arrancados talvez pelo desmiolado, é meu
filho, aquele, o último que restou, ela queria só principiar conversa, me desentalar do
meu silêncio, a senhora é casada?, viúva, meu marido morreu do coração, mal que
carregava de menino, passou pros filhos, perdi três, duas moças, uma bem casada,
tadinha, morreu na gravidez, carregando com ela o fruto, sabe lá se de coraçãozinho
podre, também, ficou esse aí, filho de deus, doente da cabeça, mas muito bom de
coração e de coração bom, valha-me deus, que sabe o peso da cruz que nos destina, não
é?, concordei, ela esperava que já fosse expondo meu lenho, percebi, mas o doidinho já
se achegava, você me dá um relógio, moço?, o relógio que ele usava não tinha ponteiros,
dona matilde pediu licença e me deixou com ele, que insistia no presente, eu tenho um
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tantão, falou, e, de fato, trouxe uma caixa de papelão com pelo menos uns 200 relógios
de todo jeito, acho que nenhum funcionando, então ele se esquecia um pouco de mim,
trocava de relógio, pegava outro, abotoava com dificuldade um em cada braço, remexia
na caixa, fingia que acertava a hora, moço, você me dá um relógio?, acabei perdendo a
paciência, dona matilde não voltava, seu relógio não funciona, falei, não tem ponteiros,
está quebrado, não vale nada, está tudo quebrado, repisei, a caixa inteira, ele ficou
quieto, redobrou no apalermado, olhou o braço, bateu com os dedos na máquina,
encostou no ouvido e apertou os olhinhos enrugados, que ficaram ainda mais repuxados
de tristeza, e saiu da sala chutando a caixa, eu e minha língua, pensei, mas a velha não
devia fazer isso, deixar a gente assim, com o filho amalucado, será que ela espiava,
mesmo sem ver?, então pude olhar melhor a sala, que não era escura na enganação de
falsos sortilégios, paredes sujas, com marcas de dedos, reboco esfarelando farofa, verniz
da estante pegando o encardido de sebo do uso, bibelôs diversos espalhados,
elefantinhos de louça em escadinha de tamanho, virados de bunda pra porta, uma
cabeça grande de cavalo, de louça, também, mas enfrentando quem entrasse,
carrancuda, vasos com flores plásticas cagadas e recagadas por mosquitos, que
balangavam sem parar o seu pesinho na gangorra dos galhos, uns assustando os outros,
talvez só pelo gosto do pouso pendulando, até mosquito pode ter sorte e nascer por
perto sem querer da alegria, pensei, em relâmpago de sorriso, um bom agouro?, havia
ainda velhos retratos retocados à mão, daqueles antigos, em contorno falso dos olhos,
gravata sublinhada, muita vez até inventada, em artes de retratista, na vontade de um
terno impossível, o marido, os filhos, todos de cara cor-de-rosa pastel, como que
gritando mudos e embaçados, eu morri faz anos, nós morremos há muito, aquilo
arrepiou meu cangote, juro, e fechou de novo o tempo aos poucos da minha esperança,
desviei os olhos para a estampa mal encaixilhada de um anjo da guarda, guardando em
vão, disse pra mim mesmo, 4 crianças até que bonitas, não se adivinhava nelas doença
do peito ou da cabeça, continuei observando, um aperto maior no coração, o poder da
velha?, uma figura de são jorge e um desenho de pai josé pendiam tortos na outra
parede, aliás, embaixo, uma boneca nova, dessas pretas que fazem agora, mudando
somente a cor da borracha, que as negrinhas devem saber o seu lugar e ir brincando de
vida de verdade, acho, ficava acomodada sentadinha num canto da mesa, com um
chapeuzinho de palha arrancado talvez de um chaveiro, brinde de algum político da
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capital pra caipirada daqui, onde judas já perdeu até o couro da sola dos pés, imaginei,
puxa, pode ser um filho josé, na cabeça de dona matilde, alguma promessa em nome do
menino doente, quem sabe?, havia também um santo expedito, em santinho de quem
alcança graça e manda imprimir 3 milheiros, preso no dente da moldura de um espelho
velho, cariado, que pendia muito alto, próximo do forro verde de madeira, repasto de
cupins, porque as bosticas redondinhas aqui e ali, em montinhos, com asas de aleluia
rebrilhando transparências, então ela ressurgiu, dona matilde, e levei um baita de um
susto, arrancado de repente daquele inventário, vem ver uma coisa, e me arrastou pela
cozinha, saímos da casa, ela devagar demais, até o fundo do quintal muito sujo, a
jabuticabeira carregada, deu água na boca, entramos num quartinho imundo, mal
iluminado, olha aqui na caixa, vê?, umas pedras redondas, grandes, outras tantas
miúdas, o que é isso?, é minha criação de pedras, não pode comprar, não pode dar,
troquei lá na bahia, com um feiticeiro que ficou com meu anel de brilhante, perto da
igreja de são félix, agora moram aqui em casa, frutificadas como o moço pode ver, pra
que servem?, inquiri, não posso contar, mas é bom demais, bebem água uma vez por
semana e comem pó de ferro, a caixa estava mesmo cheia de limalha, ela continuou, tem
macho, tem fêmea, dão cria, olha as pedrinhas aí espalhadas, e vão crescendo, tão bom,
tanto bem, você quer?, mas tem de querer com vontade, então o moço me dá em troca o
que quiser e leva um casal, faz um bem danado, são as únicas que prestam, frisou,
estremeci, a visagem do meu amuleto?, coloquei a mão no bolso e tateei a minha de
família sempre carregada pedra de topázio, e o frio subiu de novo a barriga com os seus
dedos de supetão no susto, não, não, a minha pedra não era a mesma que dava cria,
bebia água e comia ferro, a minha era outra, de outra espécie, mais triste, ou não?,
vamos voltar, ela disse, e tornamos para a sala, vou benzer porque sei que é preciso, qual
o seu nome, seu moço?, valdomiro, então descruza as pernas, filho, põe o pensamento
em deus, ela fechou os olhos e principiou uma reza engrolada, só entendia que o negócio
era com o menino jesus, riscava no ar muitas pequenas cruzes, arregalava os olhos, se
aquietava e virava a cabeça pro lado, olhando pra cima, depois se repetia, rabiscando as
cruzinhas no vento com o polegar perto da minha cabeça, das minhas mãos, dos meus
pés, até que parou, gemeu e sentenciou que eu precisava de 3 benzeduras seguidas e
carreadas, tinha de voltar por 3 dias, o trabalho, seu moço, foi bem feito, tem um preto
nas suas costas, meu filho, uma mulher bonita, mas bonita mesmo, que encomendou,
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ela gosta muito de você, ama, você não quer nada com ela, e ela trabalhou com um
negrão beiçudo assim, e alicatou com os dedos a boca murcha de velha, fazendo
carantonha, um negrão assim, feioso de carvão, na sua sombra, guiando escondido em
você os seus passos errados, seu moço, coisa forte, mas tem uma porção graúda de
mulher boa no seu pé, também, você vai ficar bem de vida, ouviu?, escolhe a moça certa,
não vai se amasiar com pobretona, não, tem moça rica curtindo paixão em seu sossego,
não vai ser bobo, não, ela disse, me olhando medido, eu, a mim, que só queria saber de
um emprego, de um serviço certo e assalariado, com registro em carteira, um homem
sem ocupação, hoje, despossuído, é homem pela metade, e, por maior pedaço de si que
ostente, em gabolice, não passa de um naco de gente, vagabundo aos olhos da
parentalha, um encostado, sem valia, sem ambição, a minha mulher não tem culpa de
ter cultivado o desamor, essa raiva seca que brota de seu homem empacado na
existência, vivendo de bicos e biscates, esmolando auxílio de parentes e amigos que vão
se acoitando de toda ligação, primeiro aos poucos, depois em correria desembestada,
mas ato reflexo, sem malvadeza, eu sei, o pulo de quem pisou em tábua com prego,
medo de que um desgraçado como eu se agarre com muita força no barrado de suas
calças, arrastando tudo e todos pro fundo do poço daqueles afogados em dívidas, e, pra
salvar quem já perdeu as forças de boiar, o melhor é deixar que se afogue um bocado,
antes, por precaução, dizem, esse o medo, e medo não tem instrução, não tem amor de
sangue, menos ainda de afinidade, e a mulher esposa fica sendo o homem da casa,
exigindo o fim de um viciozinho bom, cigarro depois do café, cobrando uma atitude,
sabe-se lá qual, e o homem de verdade se cala em si e não suporta a própria voz, nem a
do pensamento, martelando a angústia, repetindo a golpes secos, no coco da cabeça, que
a vida é de mentira, que falhou, então fui procurar dona matilde, seu moço, de aqui por
diante o caminho é esse, queria ouvir, o rumo da vida é noutra direção, seu moço, é virar
o corpo e apertar o passo, o resto se ajeita, voltam os amigos, a mulher requenta à noite
seu prato de comida, depois de uma sinuca no bar, às sextas-feiras, com os amigos do
serviço, o merecimento reconhecido de ser de novo o homem da casa, obrigado, dona
matilde, a vida às vezes se escancara tanto que você volta o rosto pro outro lado, e tudo
se perde na neblina, a cara na parede do dia a dia, sem saída, por isso também se engana
quem dá murro em cabo de faca, disfarce do pior em tão ruim quanto, porque sem o
aguilhão da dor, sem o sangue do acume na lâmina, vida largada por fazer, dona
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matilde, a senhora é mesmo batuta, é pra lá, então?, a senhora sabe que volto depois,
com o merecido e muito mais, dado de gosto, até um relógio de metal, de marca, pro
filho muito coitado, ia por esse engano da vontade como quem arrisca a fé no jogo do
bicho, a esperança de uma nota de 50 reais perdida no chão, o recado para comparecer à
firma tal, tal hora, levando os documentos, com beijo e sorriso da esposa, aquela para
quem não tive a coragem de dar a merecida minha pedra de topázio dela, o costume em
suspenso, a única herança restada, e, enfim, pois quem quer não deve querer pelas
metades, ela de novo minha mulher, todos esses bons engodos que construímos no
sonho da vigília, mas então a vida com seu ei, oi, moço, me dá um relógio?, e a sala cai
inteira em você, e você pensa, meu deus, o que estou fazendo aqui?, é brincadeira,
nenhuma porção graúda de mulher, não uso aliança, empenhada e perdida, a marca
antiga já apagada pelo sol das andanças sem chegada, ela falou o que eu talvez gostasse
de ouvir?, alguma moça arranjada na vida me fizesse a pouca cortesia, que fosse, eu
mandaria a minha mulher praquele lugar, como mando um sujeito ordinário que pensa
que é mais que eu porque sabe abaixar a cabeça pro doutor fulaninho, acho que um
olhar, um convite de outra moça, qualquer uma, de uma velha que precisasse desejosa
dos serviços de homem, até, eu bateria a porta de casa, sem bilhete, sem levar camisa
remendada, sem levar ovo de madeira pra costurar as meias dessa maldita procura, que
não acaba, ah, dona matilde, até posso crer que fique bem de vida, que possa um dia me
sentar sossegado num fim de tarde, eu acreditaria em tudo isso, em carro, em emprego,
em carteira no bolso, mas não existe, dona matilde, nenhuma moça apaixonada,
nenhuma mulher, nem a minha, nenhum amor de gozo pra cansaço feliz, não, dona
matilde, a cabeça girando, as respostas não dadas engolidas com a decepção,
atravessadas na garganta, até logo, volto amanhã, então, no mesmo horário, acerto tudo
depois, as poucas palavras, e ela riu e sorriu, concordada, não adivinhava, não via, não
sabia que era mentira, que eu mentia, moço, me dá um relógio?, a mão suada segurando
a minha, amanhã mesmo eu volto e você vai ganhar um relógio novo, meu amigo, com
ponteiros que brilham no escuro, disse, pulseira de corvim, ele não falou nada, não
moveu um músculo da cara feia, ele também não acreditou nem um pouco, sabia que
tudo era mentira, como tudo, tudo

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a lição

como esquecer?, foi quando descobri como funcionava o mundo de


verdade, porque hoje eu sei, veja o que consegui, não é fácil juntar, não, meu filho, todo
mundo quer comer você pela perna e arrotar na sua cara, chupar seu sangue e ainda
dizer que ficou enjoado, que não caiu bem, ninguém quer mamar na vaca, não, a não ser
que seja a vaca do vizinho, entendeu?, é a vida, nem mais nem menos, leite derramado é
pra se lamber no chão, quem se faz de rogado perde a boquinha e vai lamber sabão na
rua da amargura, portanto, sem frescuras de isso eu não faço nunca, já que isso nunca
foi aquilo, percebe?, e aquilo, qualquer aquilo que seja, pode justamente ser o que lhe
falta para dar o pulo do gato na vida, bem, estou generalizando, sei que entende, criei
você pra vida, de maneira prática, de modo que lições faladas apenas passam a limpo o
que você vivenciou, olhe, se aquilo deu nisso, e falo de qualquer situação em que haja
algum interesse, material ou espiritual, é porque alguém pelejou bastante, correu atrás,
ou teve uma sorte desgraçada, mas assim não conta, porque não depende de você, e a
minha lição de hoje, culminante, perene e autobiográfica, é a prática sistematizada do
comportamento do sujeito que vai vencer na vida por si só, percebe?, e não vai vencer
custe o que custar, porque nesse caso o preço pode ser muito alto, e aí não compensa, a
não ser que outro pague por você, mas de novo isso não conta, depender dos outros é
dever antes de ter em mãos o lucro, e, normalmente, nesses casos, a vaca vai pro brejo, e
você só a desenterra se entrar sozinho no atoleiro por baixo dela, o que nunca foi
conveniente, concorda?, bem, é verdade que você pode mandar alguém entrar no barro
por você, o que pode funcionar, supondo nesse caso que o camarada desatole o bicho, o
que infelizmente nem sempre acontece, portanto, bem melhor que a vaca siga direto ao
frigorífico, e, de lá, volte trotando ligeiro como capim graúdo pra carteira cada vez mais
gorda, isso você já sabe, então preste bem atenção, vou contar uma história que não
contei pra ninguém, nem pra sua mãe, ouviu?, mas a hora é essa, você homenzinho, já,
bom, eu era criança e não tinha nada, os moleques com carrinho de controle, bola de
capotão, de encher em posto de gasolina, dinheiro pra linha 10 e papel de seda colorido,
pipa com rabiola vistosa, jogo de botão no estrelão, que era o campo oficial, de eucatex,
o pai do birola trabalhava na marcenaria do olegário e vendia pra molecada uma
imitação melhor que o original, os meninos organizavam campeonatos, eu só via, sem
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time, sem estádio, ficava feito besta lambendo os dedos na geral de minha pobreza,
assistência banguela, rindo da alegria dos outros com os amigos desvalidos que também
não tinham as credenciais da infância, por assim dizer, inclusive, o gosto do chico-
capeta era correr e pegar a bolinha que algum daqueles moleques atirava longe, errando
o gol com um leivinha, com um ademir da guia, precisava ver que beleza, eu não,
gandula de jogo de botão?, era demais, concorda?, hoje o chico-capeta continua aí,
ferrado, biscateando a pouca coisa dos afazeres menores, ou excursionando pelo centro
da cidade mendigando esmolas, é isso, quando um moleque consegue limpar o próprio
nariz sozinho, quando tira as melecas do salão sem ajuda adulta, já é possível perceber
nele o homem embutido em si, pois o chico-capeta era assim, desses que enfiam o
indicador no buraco fundo das narinas e ainda fazem pinça com a unha, pra melhor
fisgar a caca, e, depois, felizes com a manobra, enfiam a meleca na boca, chupando os
dedos, então deu no que poderia dar, um chico-capeta, mas não era só isso, não, um
moleque tinha uma bicicleta com pneus de câmara, o dimas, ele não gostava de mim, o
safado, nem uma voltinha, pedi uma vez só, ele riu, disse que não era bicicleta de
rodinha, não, que eu fosse peidar n’água pra fazer borbulha, mas não tem nada, não,
olhe, hoje eu bem, ele na merda, merda de mandar a pessoa errada peidar onde quer
que fosse, peidar na cara dele, isso sim, tudo dado, tudo perdido, por isso obrigo você a
trabalhar, pra dar valor, não vê?, é aí que um pai enfia no filho, nem que seja na marra,
o homem que a criança deve encarnar na vida adulta, bom, eu pedia pra minha mãe
esses brinquedos todos, mas ela só com esse negócio de bola de meia costurada, eu
chutando feito besta os retalhos de nossas roupas desmanchadas, arrancando o tampo
dos dedos com aquele troço vindo de nossa casa, de dentro das gavetas da cômoda, era
como chutar minha avó, entende?, ora, ora, o mundo não é desse jeito, o melhor das
coisas vem de fora, das europas, dos states, das chinas e cochinchinas, fabricadas sabe-
se lá como, não é?, e, mesmo assim, e até por isso, era obrigado a chamar apenas os
molequinhos menores pra jogar, coisa sem graça, então metia o pé neles, de raiva, pra
me divertir um pouco, mas nem isso, em pouco tempo era uma luta achar adversário
disposto a tomar pontapés, o que resolvia distribuindo uns chutes antes do jogo, pra
mostrar a eles que era melhor apanhar jogando, pelo menos, claro que a escolha desses
meninos era criteriosa, nenhum com irmão maior pra tirar satisfação, depois, bom, aí
uma liçãozinha menor que acho que você já sabe, brigar, sempre, só com a certeza de
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bater, isso vale pra tudo, até no amor, mulher não gosta de homem bobão e babão, não,
põe isso na cabeça desde agora, pra não sofrer escorrido à toa depois, cuspindo sangue,
assoando o nariz nas costas da mão, secando os olhos com a gola da camisa, certo?, de
vez em quando minha mãe aparecia com uma bola de plástico, no fim do ano, quando a
prefeitura distribuía uma brinquedada vagabunda, com pirulitos e balas, tudo porcaria,
chutada com força, a bola variava sem direção, estourava no mesmo dia e virava um
gorro legal, pelo menos, um dia chorei mais, vomitei de vontade, queria porque queria
uma bicicleta, no outro dia ela apareceu com um carrinho de rolimã, peguei e joguei
pela janela, apanhei bastante, mandei minha mãe praquele lugar, ela me arrebentou a
boca, fui dormir sem bicicleta, sem carrinho de rolimã, o gosto de sangue na saliva, um
dente meio mole, pra eu aprender, e olha, eu aprendi, se não for do jeito que a gente
quer, melhor deitar tudo janela a fora, pra não se acostumar com a esmola da vida,
saber dizer não, não quero, e virar as costas pro agasalho remendado, mesmo se o frio
estiver de rachar, é assim que se vence na vida, entendeu?, nunca mais fiz gorro de bola
vagabunda, hoje sei que sua avó, sozinha, já fazia demais, coitada, bom, eu ali na cama,
chorando e gemendo mais alto pra ela ouvir, bom, não adiantaria nada, mas da próxima
vez, quem sabe, a mão pesasse menos, lembrando da amolação do choro esticado, chora
bem quem chora pra depois, e não pro que já se perdeu, percebe?, então, ali chorando,
assoei o ranho da raiva nas mãos, fiquei brincando peguento com o muco entre os
dedos, foi secando, fiz uma bolinha, deslizando redondo a obra na pele dos dedos,
tateando a tristeza, me deu uma coisa boa, sabia?, tanto que guardei a bolinha debaixo
da cama, no estrado, dormi bem, como nunca, estava calor, os pés pra fora, balançando,
refrescavam o sono, os sonhos, penso que senti que começava a colocar as coisas no
lugar certo pela primeira vez na vida, sensação que não mais me abandonou, à custa,
claro, da perseverança dos pequenos atos, entende?, o que se configura como o controle
de um sistema em seu todo, a partir do que seria, pros desavisados, apenas perda de
tempo, artesanato de inutilidades, você já vai entender, calma, na noite seguinte peguei
a bichinha escondida, aumentei seu volume com mais meleca, guardei, foi indo, chegava
a tirar sangue do nariz, mas toda noite ela ia aumentando, ganhando corpo, ninguém
mais me viu com o dedo no nariz, hoje também entendo o por baixo dos panos da
etiqueta, conjunto de comportamentos regrados pelos cidadãos educados que escapa
totalmente ao dia a dia dos pobres, não em sua aparência, trejeitos facilmente imitáveis,
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o que não significa nada, mas em sua substância, naquilo que as boas maneiras têm de
direção, de espírito, percebe?, esqueci bicicleta, bola, só eu, decerto, com um segredo
inventado que ia rendendo segundo minha exclusiva vontade, de acordo com meu
comportamento, toda noite tinha que umedecer meu brinquedo, minha construção, que
pegou de esfarelar, jogando fora o esforço de dois, de três dias, o que se configurava
também como um passo seguinte da lição, no começo punha guspe, depois descobri a
cera do ouvido e vi que podia aumentar ainda mais rápido meu negócio, de dia ficava
pensando nele em casa, na escola, onde estivesse, nada, nenhuma ação que desviasse de
alguma forma minha intenção de melhorar e progredir, jogava bola?, lá estava minha
bolinha, o prato de arroz?, amassava a comida com o garfo e via promessas de um futuro
melhor, crescente, minha vida era minha bolinha, na fresta do estrado da cama, que tive
de aumentar com um canivetinho, que o investimento já ia gordo, meu filho, a vida foi
ficando mais feliz, ganhei coragem de meter a mão na cara do dimas, tudo se ajeitando,
dando certo, pegando liga, entende?, às vezes o medo de ser descoberto, medo de que
sua avó jogasse fora aqueles meses todos, os dedos tão acostumados, antes de dormir,
amaciando a bolota sempre maior, amassando de novo um naco despegado, ressequido,
então passava as unhas na cabeça, tirando as casquinhas que ia juntando, raspava atrás
das orelhas, o sebo dos vãos, até do saco, a unha do dedão do pé seria uma fábrica
formidável, não fosse o cheiro, o que me ensinou a desdizer o falso ditado de que todos
os caminhos levariam a roma, rematada imbecilidade aqui no brasil, concorda?,
acordava mais cedo pra aproveitar com calma a remela dos olhos, será que eu era o
único no mundo?, não desperdiçava nada, nem um cravo do nariz, a caspa, uma casca
mole de ferida, tudo de mim nessa empresa, pra mim, em meu benefício, tudo colocado
em ordem em seu lugar, me ensinaram a bater punheta naquela época, mas infelizmente
ainda não tinha porra, que os meninos maiores diziam ser uma cola, fazer o quê?, era
esperar os momentos certos, que muitas vezes independem de nossa vontade, entende?,
nem adianta fazer essa cara, sei que você já toca sua punhetinha, por isso falo sem
pudor, de homem para o homem que você tem aí em você, bom, como ia dizendo,
contentava-me com um líquido pegajoso que aparecia em muito pequena quantidade,
na primeira semana cheguei a esfolar o pau, acredita?, você se lembra, também, de que
a questão da liga era das mais problemáticas, certo?, bem, é preciso planejar os passos,
mas não se faz caminhos por antecipação, abrir uma picada pra ser percorrida no ano
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que vem é desperdiçar suor, o mato fecha de novo, com mais força, isso na melhor das
hipóteses, quando você não trabalha desavisadamente pra um desconhecido qualquer
que, sem saber a direção, topa sem querer com sua trilha e desembesta por ela, largando
você longe, percebe?, bom, minha mãe trabalhava muito, você sabe, quando limpava o
quarto, eu ficava vigiando, o coração nas mãos, o que era inevitável, com o tempo, no
entanto, fui relaxando, senhor de mim, percebi que não tinha por que ter medo, ela só
chacoalhava o lençol e passava uma vassoura no chão, cansada demais pra detalhes de
quem tem tempo pras minúcias, ela nunca teve, só depois que progredi, veja que hoje o
gosto dela é não fazer absolutamente merda nenhuma, no que está muito certa, não é?,
enfim, a troca do lençol era mais perigosa, claro, mas a bolota não ficava mais na beira
do estrado, como no começo, fui obrigado a fabricar uma nova loca, mais protegida,
mais pro meio das tábuas, é preciso ir sempre além, aperfeiçoando o que a natureza e o
trabalho reservaram pro sujeito que faz mira além, como eu, como você, bom, agora que
está ganhando de mão beijada a direção dos alvos, olha lá, hein, não vai comer seu pai
pela perna, hein, quando virar o cano pro lado de seu pai, tira o dedo do gatilho, sempre,
entendeu?, bom, um dia, num sábado à tarde, cheguei da rua e não vi minha caminha,
minha mãe foi e trocou por outra maior, note que ela fez isso por amor, pensando no
filho encolhido nas noites frias, mãe, por quê?, gostava tanto dela, mãe, no calor, era o
que eu tinha de mais gostoso nessa casa, mãe, por quê?, você devia ter perguntado se eu
queria, mãe, ah, mãe, bem, foi isso, chorei bastante escondido, bobagem, era no fundo
minha formatura, meu filho, hoje eu sei, porque naquele momento eu tinha aprendido
tudo, de a a z

com espírito

já virou ritual de fim de ano, sempre convido uns empregados da firma,


digo que foram escolhidos a dedo, e foram, mesmo, vou variando de ano em ano, um
setor agora, outro que não tem nada a ver depois, e assim por diante, levo pra dentro de
casa, pra verem aonde cheguei, pra ficarem admirados com meu modo de vida,

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contarem pros outros, é, isso mesmo, quem não ostenta é como se não tivesse, e esse
negócio, vou ser sincero com você, vale inclusive pra quem não tem, mas quer ter, eu?,
posudo?, até na frente do espelho, rapaz, vai dizer que você também não treina um ar,
um sorriso superior, uma gargalhada escrachada pra mostrar que às vezes, dependendo
da rodinha em que esteja, você não está nem aí com ninguém e poderia exigir com toda
a naturalidade do mundo que a cambada lambesse seus sapatos, o que muitos fariam,
diga-se en passant, com enorme gosto, espalhando inclusive, a passos largos, a notícia
de que sua sola é de couro legítimo, sapato italiano, cromo alemão, o que fosse, fala que
não, ainda mais você, fresco pra caralho com essa coisa de moda, grife, perfume, como
assim?, alta roda?, você vem me falar em vicissitudes de se frequentar a alta roda?, já
notou que até no palavreado você quer aparecer mais que os outros?, essa é boa, você
finge que não está me entendendo, ora, ora, ora, eu manjo você, daqueles ricos que
perdem a hora mas fazem de volta todo o caminho pra ver se encontram um níquel que
caiu das algibeiras, al, gi, bei, ras, gostou do meu troco em nota de cem?, você é foda,
cara, sabe de tudo melhor do que eu, sabe tudo tim-tim por tim-tim, mas não perde a
chance de escutar de novo, só pra ficar no lucro, porra, alta roda?, tudo bem, um termo
às vezes fica démodé de caso pensado, pro povão não atinar com o clássico dele que,
desse modo, integra verdadeiramente apenas o patrimônio refinado de quem pode falar
grosso, é ou não é?, fazia tempo que não ouvia, alta roda, alta roda, bom, se tem quem a
segure lá em cima, essa tal de alta roda, girando sobre a cabeça de muita gente, são eles
todos, querendo ou não, eles, os despossuídos, cacete, então exatamente por isso, sei
disso muito bem, não se pode tirar o mérito daqueles que se equilibram com elegância
nas alturas, claro, tampouco dos pés-rapados, com todos os olhos gordos voltados
miseravelmente pra cima, entorcicolados de inveja, porque todo mundo quer é subir na
vida, e, nessa tentativa generalizada, bíblica, atávica, onde a porrada come solta, mesmo
sem querer os fracassados contribuem, com a massa falida de seus corpos, no mínimo,
para a manutenção, lá nos cumes, dessa alta roda sobre a qual alguns poucos fingem que
brincam de roda, dando-se as mãos desconfiados uns dos outros, temendo o empurrão
de uma concorrência disfarçada que os atirasse na vala comum daqueles tantos que os
alicerçam, é, meu amigo, é esta a alta roda, lugar onde vamos solando desafinados
nossas vidas, cada um por si, sapateado pesado no coco dessa cambada desvalida, eles
que se fodam, é, sei que você está entendendo tudo, tudinho, não adianta fazer cara feia,
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não, o trabalho social de que você conta tanto papo não passa de travesseiro ortopédico
para as noites barulhentas e insones, quando aquele nosso rodopio dançante provoca
uma enxaquecazinha, uma tontura besta, labirintite de alta roda, ui, ui, ui, vertigem
autocomplacente de ter dinheiro saindo pelo ladrão, ai, ai, ai, o ritmo do mundo sempre
foi esse, quem discorda fica fora do baile, passando vontade, o nome disso é antigo, o
nome disso é poder, não seja hipócrita, então você, eu e os outros mais que choram
menos, ou nem choram, porque podem mais e demais, é que estamos no alto dessa alta
roda, caramba, porra, você ficou queimado à toa, não é pra mim que você tem que se
justificar, aliás, não tem que se justificar com ninguém, nem com você mesmo, esta é a
questão, a nossa questão, pros outros lá de baixo isso é resposta, e ponto-final, entendeu
a diferença?, para a maioria, portanto, a pose é o rosto invertido do desejo, para outros é
a própria face no espelho do mundo, presta atenção nisso, a pose, meu caro, é sempre o
rosto de uma verdade deslavada, e, em nosso caso, é a cara de quem está cagando e
andando, percebe?, melhor dizendo, dançando e cagando lá pra baixo, quem recebe
merda na cabeça que levante as mãos pro céu, isso sim, tanto é que muitos que
chegaram lá, lá que é aqui, em nosso caso, faço questão de repetir, dão num certo ponto
de ostentar ao contrário, às avessas, ocasião em que o sujeito obrigatoriamente tem que
estar nadando de braçada, de vento em popa, fornido, sem ter que fazer biquinho e
soprar as velas, coisa que muitas vezes é conveniente quando a corda bambeia, na
calmaria brava dos negócios, e o sujeito se desequilibra lá em cima, aproveitando pela
última vez a imagem giratória de seu clichê, de sua alta roda, como?, porra, você já viu
isso, o sujeito não tem mais onde enfiar o dinheiro e fica chorando as pitangas
amontoadas, e aí mesmo é que a fama de podre de rico se instala de vez, ele pode se dar
ao luxo de andar em carro popular, por exemplo, sem que sua pose sofra um arranhão
na lataria, pelo contrário, o que chega a ser perverso e engraçado, não acha?, mas não
era isso que eu estava contando, o que era, mesmo?, ah, bom, dizia que costumo levar
uns empregados da firma lá em casa, no réveillon, lógico que eles ficam meio
deslocados, deslocados por inteiro e um pouco mais, mas dou a maior atenção,
igualzinha à que destino aos outros convidados, é, é isso mesmo, a mesma pose refletida
de modos diferentes pra cada lado, boa, boa, essa foi boa, eu falo, você é um filho da
puta que entende disso mais do que qualquer um e fica aí fingindo sonsice, bom, mas o
melhor de tudo vem agora, ouve só, não os deixo ir embora de jeito nenhum, digo que
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ficaria muito ofendido, que faço questão de amanhecer o dia com eles, e coisa e tal, eles
ficam, é lógico, pra puxar o saco, claro, então, depois da festa, de manhã, saio de carro
com eles, invento qualquer troço, em casa todo mundo já sabe, minha família também
se diverte depois, quando conto os detalhes do episódio, chego a encenar, mudo a voz,
meu filho até filma, todo mundo caga de rir, bom, você está curioso, né?, os empregados
me acompanham, paro numa rua de um bairro qualquer, com as características
suburbanas ideais, vamos dar uma voltinha a pé?, dar uma espairecida, comi demais, e
vocês?, aí, meu caro, eu é que procuro aqueles moleques na rua, primeiro dia do ano, é
muito engraçado, ando na frente como quem não quer nada, eles vêm correndo, moço,
moço, me dá boas festas?, digo, claro, chego perto, pego a mãozinha deles e falo, boas
festas, deus te abençoe, precisa ver a carinha que fazem, uns não sabem o que dizer,
outros escondem a mão, enfezados, fugindo ao cumprimento seco, essas eu não quero,
falam na lata que é dinheiro, mesmo, eu, então, digo que ele pediu boas festas e estas eu
já dei, de coração, que mané dinheiro, o quê?, pra ganhar dinheiro tem que trabalhar,
suar no batente, pegar no pesado, do jeito que fiz desde criança, quem pede esmola é
mendigo, vagabundo, uns xingam, eu dou risada na cara deles, eu ia te dar dez reais,
agora fodeu, moleque, some da minha frente, vai, trombadinha, senão te meto a mão na
cara, vai chispando, vai, vai pedir pra tua mãe, agora, e continuo a caminhada, o
moleque com cara de choro, ou xingando desaforado, meus empregados ficam
escandalizados, não sabem onde enfiar a cara, com o rabo no meio das pernas,
engraçado demais, fico até meio perdido, sem saber se observo o moleque ou os meus
convidados se entreolhando mudos, mas tem os saidinhos que ameaçam dar alguma
coisa, é o que é mais gostoso de tudo, então fico mais puto ainda, brusco, proíbo em
cima da pinta, grosso, até hoje nenhum me peitou, então enfiam o dinheiro miúdo de
novo nas calças, os trocadinhos, é bonito de ver, os sujeitinhos transformados em
moedinha se enfiando no bolso das próprias calças, obedecidos na sem-graceza de
correr o risco inútil de ficarem plantados na rua da amargura do desemprego, esta sim a
rua em que se dão conta de repente de estarem, rua de endereço em qualquer que seja o
bairro desgraçado onde moram, transmudados para lá pelo medo da voz do patrão, vejo
isso muito bem na cara deles, nos olhos perdidos, na gagueira dos gestos, na vergonha
dos outros amigos infelizes ali perto, vivenciando aquilo, cara, você não imagina como
me divirto com isso, sei que acham maldade, falam mal de mim, depois, por trás, e é
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

exatamente isso que quero, falam por trás, porque na hora não têm coragem de abrir a
boca

(FERREIRA, Antonio Geraldo Figueiredo. as visitas que hoje estamos. São Paulo:
Iluminuras, 2012, pp. 27-35; 191-197; 281-286.)

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

SINAL de MENOS

ISSN 1984-8730 Contribuições:

Edição: A revista aceita contribuições e


comentários críticos, que serão
Cláudio R. Duarte (São Paulo) avaliados quanto ao conteúdo, o
estilo e a adequação à linha editorial.
Daniel Cunha (Porto Alegre)
Os artigos devem ser enviados para
Felipe Drago (Porto Alegre) dcunha77@hotmail.com.

Joelton Nascimento (Cuiabá)

Raphael F. Alvarenga (São Paulo)

Rodrigo C. Castro (São Paulo)

Capa desta edição: Felipe Drago,


com fotografia de Y. Karahalis

>> 2.a ed. revisada.

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