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EDITORIAL 5
ENTREVISTA
ARTIGOS
CIDADE OLÍMPICA 75
Sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência
na cidade do Rio de Janeiro
Marcos Barreira
EXPEDIENTE 366
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013
Editorial
Caros leitores,
Esta edição da revista vem com a marca do seu tempo, como mostra a capa de
Felipe Drago, utilizando fotografia de Y. Karahalis: a crise do capital e seus
desdobramentos – econômicos, teóricos, urbanísticos, ideológicos, ecológicos e
estéticos. Abrimos a revista com uma entrevista com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle, do
Grupo Krisis, publicada na revista alemã Telepolis. A entrevista foca a crise do
capitalismo e sua perspectiva histórica. Para isto, os autores buscam os fundamentos
marxianos da crítica da economia política e da teoria da crise.
Os dois textos seguintes, de Marcos Barreira – “O Exército nas ruas” (este em co-
autoria com Maurílio Lima Botelho) e “Cidade Olímpica” – buscam conceituar a
violência urbana na cidade do Rio de Janeiro no quadro de nossa modernização
retardatária e do movimento do capitalismo global. Episódios como a repressão à greve
da CSN fornecem chaves para a compreensão das atuais “Unidades de Polícia
Pacificadora” no contexto da preparação da cidade para as Olimpíadas.
social sistêmico engrossar, coisas reacionárias desse tipo podem ocorrer nessa e noutras
partes.
Eraldo Santos, em seu texto “Tímida sim, mas um tantinho desrecalcada”, discute
um texto do grande crítico Rodrigo Naves sobre o pintor Alberto da Veiga Guignard. Na
esteira de Naves, suas análises buscam conceituar a forma da pintura de Guignard, que
contém em si a dialética da inserção da sociedade brasileira no capitalismo global, e que
apontava para um projeto diferente de modernidade artística.
Janeiro de 2013
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>>Richard Jellen: Como Marx nos ajuda a entender a crise atual melhor do que
outros teóricos?
Ernst Lohoff: Para responder isso, primeiro temos que atentar para o debate sobre a
crise atual, que se caracteriza por uma enorme discrepância. De um lado, está bem
estabelecido que esta crise é de “proporções históricas”, e a cada duas semanas tem-se
uma nova reunião que termina com os mais importantes chefes de Estado anunciando
que acabaram de salvar a economia global da destruição. Por outro lado, as explicações
que são oferecidas para esse desenvolvimento dramático são extremamente
insuficientes. O discurso oficial em torno da crise está sendo conduzido no nível do
encanador amador, que conserta um cano aqui e outro acolá enquanto o porão é
inundado. Todo tipo de manobra técnico-financeira está sendo discutida, mas ninguém
sabe o que resultará delas, porque não existe uma boa análise teórica do processo de
crise em curso.
EL: Pensamos que isso remete às próprias questões que eles fazem de início. A questão
fundamental da nossa era de crise é na verdade bastante óbvia: por que uma sociedade
com produtividade material absolutamente explosiva, que pode produzir riqueza
material infinitamente, tem de concluir que está aparentemente “vivendo além de suas
possibilidades”? Podemos encontrar a resposta a esta questão em Marx – desde que
façamos uma leitura crítica e não alinhada aos modelos interpretativos do marxismo
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O Capital de Marx não começa contrastando capital e trabalho, mas antes com a “forma
elementar” da sociedade capitalista: a mercadoria. Marx mostra que a contradição
básica que explica a tendência do capitalismo à crise em geral e à crise atual em
particular está imbricada na própria mercadoria. Trata-se da contradição entre duas
formas de riqueza: riqueza material, tal como gerada na produção de bens de uso, e
riqueza abstrata, que é categorialmente representada como valor e reificada na forma do
dinheiro.
EL: Marx faz uma distinção entre crises gerais e crises específicas, dizendo que “em
crises do mercado mundial, todas as contradições da produção burguesa emergem
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NT: A crise que acabamos de descrever foi abafada por décadas pelo inchaço dos
mercados financeiros. No nível da sociedade como um todo, a acumulação de capital
voltou ao seu curso depois das crises dos anos 70, e a economia global voltou a crescer.
Porém, esse crescimento não se baseava mais na produção real de valor através da
exploração da força de trabalho, mas através do crescimento explosivo de capital na
indústria financeira. Como a indústria financeira colocou cada vez mais títulos de
propriedade em circulação (dívidas, ações, derivativos), ela conseguiu colocar em
prática o truque de transformar valor futuro, isto é, valor que ainda não foi produzido e
1 MARX, Karl. Theories of surplus value, Part II. Prometheus Books, 2000, p. 725.
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Mas essa reprodução do capital através da antecipação de valor, que há muito atingiu
proporções astronômicas, entrou ela própria em crise. Ainda que o crescimento
contínuo dos títulos de propriedade, sem os quais o capitalismo não pode mais
sobreviver, esteja operando da mesma forma de sempre e esteja mesmo em aceleração,
isto ocorre apenas porque agora a tarefa está sendo executada por governos, e acima de
tudo por bancos centrais. Os estados aumentam as suas dívidas e os bancos centrais
garantem o excesso de crédito dos bancos privados a juro zero, enquanto
simultaneamente compram títulos do governo que ninguém mais comprará. De fato,
estamos lentamente atingindo os limites desse processo, e a crise do euro é um exemplo
disso.
>>RJ: Como o papel dos bancos centrais mudou no curso da crise financeira?
EL: Acima de tudo, o termo “capital fictício” denota o capital fictício formado por atores
do setor privado; créditos de bancos comerciais junto aos seus tomadores de
empréstimo; e ações e títulos em posse de companhias de seguro, fundos de
investimento ou investidores privados. Mas à medida que as moedas perderam o lastro
do padrão-ouro, há outro ator que se tornou importante na criação de capital financeiro
na indústria financeira: o banco central. A política monetária não é nada sem a
influência dos zeladores da moeda sobre a extensão pela qual o capital-dinheiro fictício
é criado. Isto pode acontecer indiretamente, por exemplo, ao definir o depósito
compulsório que os bancos comerciais são obrigados a reter.
Mas há algo que é muito mais importante. Os próprios bancos centrais estão entrando
nos mercados financeiros e de capitais como participantes do mercado, e acumulando
capital fictício. A assim chamada “criação de dinheiro” consiste em bancos centrais
garantindo o crédito a bancos comerciais, o que significa comprar promessas de
pagamento. Quando os bancos centrais reduzem a taxa de juros sobre esse crédito, ele
abastece a criação de capital fictício. Aumentar a taxa prime tem o efeito inverso. Essa
política de juros foi essencial para superar as crises anteriores na era do capital fictício.
Com ela foi possível até mesmo detonar a acumulação privada de capital fictício durante
a séria crise da nova economia na virada do milênio, com a drástica redução da taxa
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prime.
O que é ainda mais sério do que esse resgate de curto prazo é o fato de que, enquanto
isso, os bancos centrais têm de comprar títulos do governo em grande escala para evitar
que o mercado desses valores mobiliários entre em colapso, começando uma reação em
cadeia de insolvências governamentais. Mas a crise bancária ainda está latente, e os
bancos centrais estão assumindo esse risco, assim como estão fornecendo crédito de
longo prazo a bancos comerciais em apuros, que obviamente seria perdido em caso de
quebra.
Seja no Fed nos Estados Unidos ou nos bancos centrais europeus, isto está
transformando todos os bancos centrais em bancos podres. Eles estão injetando capital-
dinheiro loucamente no sistema bancário, enquanto a qualidade de suas reservas de
moeda está se deteriorando rapidamente, porque elas são cada vez mais compostas por
ativos tóxicos inegociáveis. De fato, os resgates de emergência dos últimos quatro anos
podem ter evitado o colapso do sistema financeiro, mas eles apenas adiaram a
necessidade de desvalorização e, ao mesmo tempo, a socializaram.
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Nesse contexto, a questão não é se haverá inflação, mas quando ela começará e que
caminho tomará. Até aqui, a inflação, ao menos aqui na Alemanha, se limitou a metais
preciosos e terrenos, que funcionam como investimentos seguros no mundo dos bens
materiais. No dia a dia isso já é visível na forma de aluguéis crescentes. Mas dificilmente
isto parará aí.
De certa forma, isto implica um retorno ao estado da economia global de antes da real
decolagem do capital fictício. Nos anos 70, os países capitalistas centrais foram
caracterizados por um fenômeno que os economistas chamaram de “estagflação”: o
crescimento fraco foi acompanhado por uma inflação anual de cerca de 10%. Mas as
coisas ficaram muito maiores em comparação com aquele período. O crescimento fraco
pode levar a uma recessão aberta, e a inflação à hiperinflação. Adiar a crise tem um
preço.
NT: Quando olhamos para as causas, temos que distinguir entre as duas camadas da
crise. A crise de base da valorização do valor é, como já dito, o resultado da aceleração
do desenvolvimento da produtividade, que torna o trabalho cada vez mais supérfluo. A
terceira revolução industrial tem um papel crítico nisso. Enquanto também houve fortes
impulsos para a racionalização em fases anteriores do desenvolvimento capitalista, por
exemplo, nos anos 20 e 30, quando os métodos de produção fordista foram
introduzidos, novos setores da produção industrial de massa estavam sendo explorados
concomitantemente, e eles exigiam trabalho adicional em massa. A expansão da
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Mas na terceira revolução industrial, esse mecanismo compensatório não está mais
funcionando, porque a reestruturação do processo de produção baseada na tecnologia
da informação implica transferir a força produtiva de uma sociedade para o nível do
conhecimento, ou, mais precisamente, para a aplicação do conhecimento na produção.
Os fundamentos da valorização do capital, em consequência, são colocados em xeque,
porque isso leva ao deslocamento absoluto da força de trabalho em todos os setores da
produção de valor, o que não pode mais ser compensado pelo desenvolvimento de novos
setores.
>>RJ: Então o que é capital fictício, e qual o seu papel na crise atual?
O que acontece nesse processo é espantoso. O capital inicial subitamente ganha uma
existência dupla, como resultado de sua venda. Por um lado, o capital inicial é agora
possuído por um tomador de empréstimo ou companhia emissora de ações, mas ao
mesmo tempo o emprestador ou acionista possui um espelho do capital inicial, ou um
título de propriedade (título de dívida, ação, etc.), que representa um crédito pecuniário.
Essa duplicação não é uma mera ficção, como o termo “capital fictício” parece sugerir.
Ela não existe apenas na cabeça das pessoas. Ela adquire uma existência social objetiva
na forma de valores mobiliários, enquanto o título de crédito parecer resgatável. Este é
um crédito para um valor futuro e representa a riqueza capitalista, exatamente da
mesma forma que o valor, que é extraído da força de trabalho pelo capital produtivo.
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que o trabalho se torna cada vez mais supérfluo, devido aos ganhos de produtividade,
porções cada vez maiores de valor futuro, fictício, foram injetadas no presente. Como
resultado, a crise estrutural da valorização foi adiada, por enquanto.
Por outro lado, a maré crescente dos títulos de propriedade só pode encontrar mercado
se de alguma forma parecer plausível que a promessa de pagamento e a perspectiva de
lucros de parte dos tomadores de empréstimo e de outros vendedores de títulos de
propriedade possam ser cumpridas. Quando isso não pode mais ser garantido, a bolha
estoura e parece haver uma “crise financeira”, quando na realidade a única coisa que
fracassou é o mecanismo que tornou possível que a crise estrutural da valorização fosse
adiada por décadas. Se você entende issso, você sabe que a crise atual é muito mais
dramática do que geralmente se percebe. Trata-se de uma crise sistêmica no sentido
mais estrito do termo: uma crise que genuinamente coloca em questão o sistema
capitalista de produção de riqueza.
>>RJ: Quais serão as consequências das políticas de austeridade que estão sendo
executadas pelas classes política e financeira como solução para a crise?
NT: Duas coisas têm de ser mantidas separadas quando falamos sobre medidas de
austeridade. Austeridade no sentido de estabelecer metas oficiais, especificamente como
um caminho para o equilíbrio orçamentário, é uma Fada Morgana. Assim, novas dívidas
têm de ser geradas, porque os estados ficaram sem escolha, a não ser injetar
continuamente muitos bilhões no sistema bancário e financeiro para adiar o seu colapso
o mais que puderem. Eles fazem isso porque haverá consequências catastróficas caso
não o façam. Mas esses bilhões não podem vir da criação de valor real. Eles só podem
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Então os estados têm de fazer tudo o que está ao seu alcance para assegurar a sua
credibilidade, e para fazê-lo como se o seu interesse fosse o de equilibrar os seus
orçamentos no longo prazo. E é exatamente isto o que eles estão demonstrando, através
de políticas brutais de austeridade em relação a toda esfera social que seja considerada
puro estorvo da perspectiva do capital fictício: sistemas de bem-estar social, serviços
públicos, educação, etc. A versão oficial desse relato se revela bastante bem nas
distinções que eles fazem entre setores que são “sistemicamente relevantes” e
“sistemicamente irrelevantes”. Não é necessário explicar que as consequências para a
maior parte da população e para a produção de riqueza material são devastadoras. Basta
olhar para a Grécia e a Espanha, onde o que está sendo executado é exatamente o que
mais cedo ou mais tarde ameaçará os países que ainda não foram tão seriamente
afetados pelas consequências da crise.
>>RJ: Por que eles estão optando por essa política de empobrecimento?
NT: Eles não estão fazendo isso, por exemplo, para criar uma sociedade “sustentável”,
ou para evitar deixar dívidas excessivas para “nossos filhos”, como coloca o jargão
político hipócrita, pateticamente falso. Eles o fazem apenas para continuar a
acumulação de capital fictício. O preço disso continua aumentando, entretanto, porque
não se trata mais de uma questão de manter funcionando a máquina de produção de
riqueza abstrata sugando valor futuro, mesmo quando a máquina é paralisada pela alta
produtividade. Acima de tudo, ao contrário, o que deve ser evitado é o colapso das
montanhas de promessas de pagamento irresgatáveis. Por isso, a maior parte do capital
fictício recém criado flui diretamente de volta para o setor financeiro, e cada vez menos
entra em circulação na economia real.
Como consequência, fica claro que a política de austeridade está atingindo um ponto
onde ela está se tornando contraprodutiva mesmo para o objetivo estreito de acumular
capital fictício. Onde ela é levada ao extremo, como agora na Grécia e na Espanha, ela
está conduzindo diretamente à depressão econômica – e isto também afeta o sistema
bancário e financeiro. Lentamente, isto está ficando claro até mesmo entre os linha-dura
da austeridade alemã e europeia. Por isto, e, é claro, por causa dos protestos de massa,
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novos programas de crescimento e estímulo estão sendo discutidos, mas resta saber se
esses programas serão executados a tempo, antes do começo da derrocada. Espera-se
que eles percebam que podem pelo menos desacelerar a corrida para o
empobrecimento.
É claro que mesmo no melhor dos casos isto serviria apenas para ganhar tempo, porque
esses programas são subsidiados pelo mesmo capital fictício. Isto implica, então, que os
seus apoiadores, como o presidente francês Hollande, não estão de maneira nenhuma
desafiando a austeridade em si. Eles apenas querem dar-lhe uma forma ligeiramente
diferente. Eles também estão perseguindo a ilusão de um orçamento equilibrado, e em
último caso estão dispostos a demandar que a população faça todo o sacrifício possível
por essa ficção. A partir dessa perspectiva, podemos esperar uma alta carga de
crueldade de uma possível coalizão verde-vermelha na Alemanha no próximo ano.
>>RJ: Em seu novo livro2, vocês dizem que “Mais cedo ou mais tarde deve chegar o
ponto no qual o nível das forças produtivas não é mais compatível com a forma
capitalista da riqueza”. Mas não há sempre tendências que compensam a crise
enquanto ela se desenvolve, ou depois?
EL: A teoria marxiana da crise une dois elementos. Por um lado, Marx sustenta a teoria
de que o capital vai em direção a um limite histórico insuperável, devido ao
desenvolvimento das forças produtivas. Por outro lado, ele também examinou o curso
das crises periódicas, que repetidamente interrompem a progressão da acumulação de
capital. Em sua teoria da crise, ambos os elementos estão unidos, pois o problema
básico do capitalismo, a subordinação da produção de riqueza material ao objetivo sem
sentido da valorização do valor, sempre surge durante essas crises periódicas.
2 LOHOFF, Ermst. & TRENKLE, Nobert. Die große Entwertung: Warum Spekulation und
Staatsverschuldung nicht die Ursache der Krise sind [A grande desvalorização: por que a especulação e
o endividamento estatal não são as causas da crise]. Münster: Unrast-Verlag, 2010.
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e em última instância apenas fortalecem o capital. Isto também surge em Marx – onde
ele tem algo completamente diferente a dizer sobre as crises periódicas. “As crises são
sempre apenas soluções momentâneas e forçosas para as contradições existentes. Elas
são erupções violentas, que por um tempo restauram o equilíbrio perturbado”3. Para ele,
o essencial é a constante intensificação e acumulação de novas contradições.
3 MARX, Karl. Capital. New York: International Publishers, 1967, vol. III, p. 249.
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Então, o Estado exerceu um papel central, e isto alimentou a ideia de que ele também
estava na posição de manter o desenvolvimento econômico, guiá-lo, e estabilizá-lo no
longo prazo. Mas quando o boom fordista do pós-guerra chegou ao fim, isto se mostrou
uma ilusão, porque, à medida que a valorização do capital foi paralisada, quando cada
vez mais trabalhadores foram demitidos devido ao rápido aumento da produtividade,
não foram apenas as fontes financeiras que secaram. Ainda mais sério foi o fato de que
ele não conseguiria iniciar um novo surto sustentado de valorização de capital, apesar
do massivo estímulo dos financiamentos e pacotes de crescimento.
Da nossa perspectiva, não há nada de notável nisso, porque, se o Estado pode intervir
nos mecanismos de mercado até certo ponto, ele não tem acesso ao processo
fundamental que é determinado pela contradição interna do capitalismo. Para colocar
de outra forma, o keynesianismo tornou-se inútil frente à racionalização geral que se
seguiu à terceira revolução industrial, que em última instância erodiu os fundamentos
da valorização do capital. Toda tentativa de tirar a economia real da estagflação
fracassou miseravelmente.
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>>RJ: Em seu livro, vocês comparam a economia a uma “escola de arte que prescreve
a borracha como a única ferramenta para a confecção de retratos”. O que isso
significa?
EL: Isto nos leva de volta à questão do início da entrevista. A economia, não importa a
escola, não pode entender a crise, porque ela oblitera a distinção básica entre as duas
formas de riqueza: riqueza material e riqueza abstrata. Os capítulos iniciais dos livros de
teoria econômica sempre dizem que o objetivo da economia é a satisfação das
necessidades e a ótima provisão de bens para as pessoas, e que somente a economia de
mercado sob condições avançadas de divisão do trabalho pode atingir esse objetivo.
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atualmente está fora de controle de todas as formas possíveis. A crise do capital fictício é
também uma crise do euro. E como ela vem sendo considerada? Ela é causada pelos
“gregos preguiçosos”, que teriam desperdiçado o nosso dinheiro “suado”. Essa
personificação não apenas ignora de maneira insana o fato de que uma sociedade foi
empobrecida em meio à abundância, simplesmente porque toda riqueza tem de passar
pelo buraco de agulha da produção de mercadorias. O que é pior é que a raiva em
relação a essa situação miserável é projetada sobre sujeitos coletivos específicos,
construídos, de forma que agora se abriu uma temporada de caça.
Isso não significa que todos os que atacam banqueiros e especuladores sejam
antissemitas. O que isto significa é que esse modelo projetivo de processar a crise é
totalmente compatível com a mania antissemita. Não é coincidência, portanto, que a
linguagem metafórica deslize repetidamente nessa direção, por exemplo no notório
termo “gafanhoto”, que o político social-democrata alemão Franz Müntefering
popularizou, colocando-se como um crítico do capitalismo. A frase “eles nos atacam
como gafanhotos” vem do filme de propaganda nazista Jud Süß, e não é necessário
explicar que os gafanhotos eram animais gananciosos. Outras imagens também são
recorrentes, como a popular representação do capital financeiro como um polvo com o
mundo em seus tentáculos. Ela também aparece de forma quase idêntica na propaganda
antissemita dos nazistas. Temos que ser muito cuidadosos com isso. Ainda há um tabu
na Alemanha contra adentrar a agitação antissemita aberta, mas a tendência é que isto
se torne perceptível, e isto é muito perigoso.
>>RJ: Que tipo de práxis política e social emerge, concretamente, de seu modelo
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teórico?
NT: Bem, antes de qualquer coisa uma rejeição enfática e fundamental da política de
austeridade. É completamente insano afirmar que vivemos além de nossas
possibilidades e que temos que apertar os cintos, frente aos níveis de produtividade
altíssimos. O contrário é verdadeiro. Se fizéssemos uso integral das possibilidades das
forças produtivas modernas, toda pessoa do mundo poderia ter uma boa vida, e teria de
gastar apenas uma fração de seu tempo de vida produzindo bens materiais.
A única razão pela qual isso não ocorre é porque a empresa capitalista, obviamente,
obedece a sua compulsão para criar riqueza abstrata, porque ela adere à lógica de que a
riqueza material só é reconhecida quando representa “valor”. E isso não é simplesmente
algum tipo de oportunidade perdida ou uma possibilidade que passou despercebida. A
aderência à lógica da produção de valor no estado atual da produtividade é
simplesmente catastrófica, porque leva à exclusão de um enorme número de pessoas
“supérfluas”, que são sacrificadas no altar do imperativo sistêmico de manter o fluxo de
capital fictício do futuro para o presente.
Mas se nos livrarmos da ideia aparentemente óbvia de que os bens materiais só podem
ser produzidos como mercadorias, então se abrem perspectivas totalmente novas.
Especificamente, poderíamos perguntar como e em que forma o potencial existente
poderia ser usado de maneira racional em favor da riqueza geral, sem ter de pensar
sobre viabilidade financeira, viabilidade de mercado ou lucratividade. Ao contrário,
teríamos que reivindicar a perspectiva da riqueza material e das necessidades concretas.
Isso já acontece nas práticas dos movimentos sociais, por exemplo quando ações de
despejo são evitadas porque as pessoas não vêem por quê alguém teria de viver na rua
ou em uma barraca simplesmente porque não pode mais pagar a sua prestação ou
aluguel, ou quando as pessoas simplesmente dizem não à privatização de instituições
públicas na esfera social e cultural. São passos iniciais que apontam na direção correta.
Quando eles estão ligados a uma crítica radical da forma abstrata da riqueza, abrem-se
perspectivas totalmente novas de emancipação social.
[Publicado originalmente em Telepolis, em três partes, em 1o, 2 e 6 de agosto de 2012. Traduzido por
Daniel Cunha a partir da versão inglesa traduzida por Joe Keady (www.krisis.org). O original alemão foi
consultado como referência. Títulos originais: “Alle Zentralbanken sind dabei, sich in Bad Banks zu
verwandeln” (parte 1); “Die Wirtschaftskrise und das fiktive Kapital” (parte 2) e “Der Neoliberalismus
wurde zum Paten der Finanzindustrie” (parte 3).]
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Cláudio R. Duarte
Raphael F. Alvarenga
Parece não haver dúvida que o conceito de sujeito é o mais controverso da crítica
social contemporânea, dita pós-metafísica. O problema começa pela determinação
precisa dos termos e do referente em debate. Afirmado e negado na teoria e na prática,
arriscamo-nos a uma discussão entre surdos se não apontarmos, a cada passo, o sentido
histórico da coisa mesma e de seus termos. Sobre esse ponto, em dois críticos do
capitalismo avançado, temos posições diametralmente opostas: a afirmação
incondicional do sujeito, no filósofo esloveno Slavoj Žižek, e a negação incondicional da
forma-sujeito, no teórico alemão Robert Kurz, infelizmente falecido julho passado. Sem
buscar uma falsa harmonização, talvez seja possível jogar um contra o outro a fim de
revelar as unilateralidades e os passos em falso no campo da ideologia contemporânea.
Voltando um pouco aos termos históricos da discussão, digamos então que no
Marx da maturidade o conceito de sujeito não figura no primeiro plano, como
fundamento a priori, mas é sempre pressuposto em cada ato dos agentes sociais (por
isso mesmo são “suportes” das relações burguesas), referindo-se à esfera social da
consciência, das necessidades e paixões, dos valores éticos e estéticos etc., em cada
indivíduo moderno. Para Marx, sem dúvida, este se põe somente a partir do século
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I.
hoje iludida pelo breve intervalo de bonança keynesiana do pós-Guerra e seu desejado
retorno. Unindo com bastante liberdade e inteligência um bom conhecimento da
tradição hegeliano-marxista a uma formação sólida em psicanálise lacaniana, Žižek traz
à tona coisas que pareciam ter saído de cena ou ficado fora de moda desde os anos 70, a
começar pela complicada e polêmica relação entre teoria social e psicologia, crítica da
economia política e crítica da economia libidinal, com o quê põe de volta no centro do
debate duas questões correlatas e da mais fundamental importância: a questão do
sujeito – concebido, na esteira do idealismo alemão e da teoria da pulsão (de morte)
lacaniana, como potência negativa e disruptiva –, questão completamente desacreditada
após mais de três décadas de inculcação pós-estruturalista, e a questão da superação do
capitalismo, a qual, inclusive à esquerda, havia faz tempo, junto com o próprio conceito
de “capitalismo”, desaparecido do horizonte mental pós-moderno.
Não obstante o valor e a originalidade de sua obra, que não são pequenos, obra
cujo interesse consiste ademais, entre outras coisas, em ter escapado, pelo menos à
primeira vista, à falsa alternativa representada pelo pensamento ideológico francês pós-
68 e a enfastiosa teoria crítica alemã pós-virada linguística, podemos nos perguntar se o
pensamento de Žižek, sob não poucos aspectos, notadamente no que concerne à difícil
relação entre teoria social crítica e psicanálise, não teria ainda assim, no fim das contas,
traços regressivos em relação ao que faziam de melhor os velhos frankfurtianos, Adorno
e Marcuse em particular, e isso a despeito do fato de seu entendimento de Hegel e da
psicanálise ser manifestamente superior ao daqueles pensadores. Apesar de seu orgulho
em filiar suas ideias à filosofia hegeliana, às vezes fica a impressão de que,
paradoxalmente, falta dialética a seu pensamento. No que segue, tentaremos expor
algumas contradições em que, justamente por não ser dado a elas um tratamento
propriamente materialista, parecem reincidir algumas de suas ideias.
Até onde vemos – mas é difícil afirmar com segurança, uma vez que,
conscientemente ou não, sobre certas questões, o próprio autor parece mudar de
posição com frequência, às vezes de um livro a outro (em princípio, nada contra, porque
de certo modo dá mostras de um pensamento antidogmático) –, Žižek tende a
estabelecer, na esteira de Lacan no Seminário 16 (proferido não por acaso em 1968-69),
uma homologia entre mais-valia e mais-gozar, ou seja, entre o excedente de valor
extraído na exploração de força abstrata de trabalho, a “causa” que põe em movimento o
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história, na experiência da práxis e no contexto real dos movimentos, que leva Žižek, na
busca por uma “saída” num mundo de expectativas rebaixadas, à apologia abstrata de
certa forma de violência política, a qual, na esteira de Benjamin, chama de “redentora”
ou “divina”, em contraposição à violência mítica de tipo fascista. Razão pela qual,
digamos resumidamente, em contexto de pós-política como o que atravessamos, não vê
como solução senão opor o excesso do “divino” terror de tipo jacobino à lógica excessiva
do capital, que, enquanto puro movimento alienado objetivo, de fato devasta tudo que
encontra no caminho da autovalorização ilimitada. De modo que, poderíamos nos
perguntar, se é verdade que em alguns textos seus critica duramente, e muito a
propósito, os autores pós-estruturalistas, notando neles uma defesa regressiva de
formas perversas do sujeito, será que sua rejeição abstrata (negação indeterminada) do
humanismo liberal-democrático (pós-)moderno – ou por outra, da tolerância
multiculturalista defendida pelos arautos da différance tanto quanto também, embora
de maneira distinta, pela nova visão moral de mundo dos professores alemães – não o
levaria a acatar formas de anti-humanismo não muito diversas daquelas que
encontramos no pensamento de Bataille, Foucault, Deleuze e companhia? Será que não
daria vazão, em suma, a certo entusiasmo por experiências-limite, certa paixão do real
manifestada na transgressão violenta, ou na violência transgressora? Experiências que,
ademais, desintegram o Eu – ou o próprio sujeito? – no fluxo desvairado da pulsão de
morte, no imperativo do gozo e no vínculo social perverso do capitalismo atual? Como
distinguir os dois processos criticamente? E em que medida eles se entrelaçam e se
justificam ideologicamente um ao outro?
Assim, Žižek nota, de maneira perspicaz até, uma diferença qualitativa existindo
entre os milhões de assassinatos propagados pelos regimes comunistas na URSS e na
China e o Holocausto levado a cabo pelo regime nazista – o fato de que no primeiro caso
a matança teria sido parte de estratégia racional ligada às urgências da situação
histórica enquanto que no segundo teria ao contrário sido oriunda de um excesso
irracional meticulosamente planejado a despeito das necessidades objetivas. Ora, não é
que tal diferença não exista – o provaria ademais, num outro exemplo dado pelo autor, a
repulsa que sentimos diante de uma suástica pichada num muro, símbolo da morte e da
violência mítica, e que presumidamente não sentiríamos espontaneamente diante de um
tag da foice e o martelo, símbolo que guardaria, malgré tout, a promessa de uma
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humanidade emancipada –, mas a impressão que fica é que, embora não o diga com
todas as letras, os “crimes de lógica” – para usar uma expressão de Camus – de Stalin e
Mao (também os de Pol Pot?) sairiam algo justificados. Claro que quando colocado
contra a parede Žižek diz que não é nada disso, que os crimes hediondos de Stalin, de
Mao e do Khmer Vermelho dão mostras ao contrário, não menos que os de Hitler, de
sua manifesta impotência em transformar radicalmente a ordem das coisas. Em todo
caso, diga-se de passagem, nem sinal aí da crítica do trabalho abstrato e da matriz
fetichista que comanda os dois regimes, como objetaria Kurz.
Decerto, a necessidade de desmistificar a violência parece até justificada se
lembrarmos da aversão quase visceral de um Adorno por toda e qualquer forma de
manifestação dela, e que levava por vezes o grande crítico dialético a desconsiderar
diferenças de níveis e contextos, como fica claro em sua correspondência com Marcuse
no fim dos anos 1960. Em determinadas situações – mas é preciso analisar caso a caso –
talvez se possa dizer que a violência, enquanto expressão simbólica da rebeldia social,
contenha um potencial emancipador, como por exemplo quando grevistas ou
manifestantes antiglobalização ocupam o espaço público ou privado à força. Verdade
também que tampouco é possível, sem ser ingênuo, acreditar numa transformação
qualitativa da sociedade sem que se faça necessário, em certos momentos, o emprego de
“contraviolência”, ou seja, a imposição de um ponto de vista. Não se trata assim de
pregar a não-violência, que no fundo resultaria em aceitar o status quo, isto é, a
violência institucionalizada da sociedade de classes. O que é a nosso ver problemático,
no fundo, é certa glorificação da contraviolência, emprestando-lhe o adjetivo ambíguo
de “divina”. Não queremos com isso questionar o direito que têm, por exemplo, os
zapatistas de Chiapas de defenderem seu território “libertado”. O problema reside antes
na fetichização dos meios violentos, quando a real questão é como criticar o humanismo
sem cair em seu contrário. Em termos mais rentes ao chão: negar o humanismo do “é
conversando que a gente se entende”, não implica em aderir ao anti-humanismo do “só
a porrada resolve”. Tomadas abstratamente, as duas posições são falsas. Nesse ponto,
nunca é demais relembrar Marcuse, que muito lucidamente sabia que, mesmo que se
sustente – como na perspectiva marxista clássica – que o homem só possa ser posto por
meios revolucionários violentos, isso implica uma negação determinada, vale dizer, uma
violência afetada de não-violência, que não rife os seus fins humanos, e que portanto
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violência divina em ato, que Gandhi teria sido mais violento que Hitler, que o Führer
não foi suficientemente violento por não ter realmente minado as coordenadas do
sistema ao qual pretendia escapar, que a queima de carros nos subúrbios franceses seria
comparável à violência nazista, vale dizer, não passaria de impotente e desesperado
acting out, nada que ver com um passage à l’acte autêntico, e assim por diante.
Querendo ou não, há aí um nivelamento de uma série de acontecimentos bem distintos.
Respondendo a algumas críticas, Žižek dirá que finalmente o tipo de violência que prega
é aquela em que nenhum sangue precisa ser derramado. Se é assim, então por que
diabos chamar de “terror”, ainda por cima “divino”, o que no mais das vezes não passa
de desobediência civil ou resistência não-violenta, como mostra o exemplo predileto do
autor, o do boicote indiano aos produtos britânicos? De novo, para além da pura
provocação, é difícil enxergar o interesse de se ressuscitar tais noções, que mais
confundem do que ajudam a esclarecer os fenômenos que pretendem interpretar, além
de abrirem espaço tanto para a incompreensão à esquerda quanto para críticas das mais
toscas da parte da direita, que toma mesmo tudo ao pé da letra – para muita gente na
mídia dominante, Žižek é com efeito visto como defensor do terrorismo, sans phrase,
por isso mesmo, segundo um jornal sensacionalista, “the most dangerous philosopher in
the West”, juízo que soa um tanto ridículo, mais ainda quando estampado na capa de
um livro seu.
O mesmo se aplica ao “comunismo”, o qual, ao contrário de Brecht ou Debord,
não é pensado pelo autor como movimento prático de negação, mas como uma “ideia” –
por certo corajosa, visto os tempos que correm – que defende junto com Badiou e sob a
égide da qual teríamos que viver para não soçobrarmos no abismo de uma catástrofe de
dimensões telúricas; uma “hipótese”, enfim, necessária para sustentar uma resistência
radical às instituições vigentes. Ninguém dirá que é fácil pensar essa passagem da ideia
à práxis comunista. Contudo, como notou Paulo Arantes num debate recente, é difícil
entender a razão de tamanha algazarra se no fim das contas por “comunismo” Žižek
entende simplesmente a preservação daquilo que é (ou que deveria ser) comum a
todos, do ar que respiramos ao patrimônio genético da humanidade passando pelos
recursos naturais e energéticos e os produtos socialmente produzidos pelo trabalho e a
inteligência humanos, em suma, a riqueza social violentamente acaparada pelo capital
que cobra pelo seu acesso, cada vez mais restrito aos happy few. Assim concebido, o
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“comunismo” pregado por ele não seria muito diferente do anticapitalismo ético e
ecológico dos Fóruns Sociais Mundiais, ou mesmo da economia dos bens comuns –
talvez comandada por um Estado “revolucionário” –, sem prejuízo de um apoio discreto
às vezes a Chávez e a Morales – o que nada têm de radical ou de verdadeiramente anti-
mainstream... Onde fica o radicalismo então? Vê-se por aí uma discrepância no
pensamento žižekiano entre a vontade de ser radical e o conteúdo (finalmente
conservador) do seu discurso político. Assim, não é de admirar que, apesar de toda a
discussão sobre o fetichismo da mercadoria, ele penda o ataque para a democracia e a
política, num misto de politicismo e althusserianismo (como se economia e política
fossem “instâncias” separadas). Por aí se justifica, segundo ele, o retorno a Lenin, uma
vez que, como costuma dizer, mesmo sendo a economia o campo onde tudo será
decidido, a intervenção deverá ser propriamente política (estatal), não econômica. Por
onde se adivinha o Estado ditatorial “proletário” e um mercado regulado politicamente
– não se sabe ao certo se concebido como transição ou como ponto final do capital.
Além do espírito de provocação, Žižek guarda ainda da atitude modernista o
salutar entusiasmo por ideias novas, ousadas, que desafiem o senso comum, que
choquem a ponto de desestabilizar certezas etc., ideias que, como a de comunismo,
pressupõem – eis o ponto – um novo sujeito, que se forma num processo de Verdade
instaurado por determinados acontecimentos. A fidelidade dos sujeitos a tais
acontecimentos, dirá Žižek na esteira de Badiou – mesmo que os dois discordem sobre o
caráter de acontecimento de alguns eventos históricos, como a Revolução Cultural
chinesa –, determinaria um tipo de militância semelhante ao que teria existido nas
primeiras comunidades cristãs, a experiência de uma verdade universal, porque corta
em diagonal todo o espectro social (“nem gregos nem judeus...”), uma verdade além
disso performática, que muda o sujeito que com ela tem contato. É uma visão, digamos,
“generosa”, e que seduz a seu modo, ainda que aqui também as coisas se compliquem.
Embora Žižek tenha o mérito de sacudir a poeira de velhas noções e de recolocar na
ordem do dia a conceituação marxista, ele acaba por esvaziar tais noções, a ponto de
torná-las irrelevantes, para dizer o mínimo. O proletário, por exemplo, concebido como
sujeito que emerge quando todo conteúdo substancial é perdido, que emerge como a
forma mesma da perda, ou da falta, se confunde tour à tour com o sujeito cartesiano, o
“cidadão do mundo” kantiano, o tipo blasé do filme noir, o androide com memórias
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prática de Kant etc. Aqui talvez o problema maior do filósofo esloveno: o endosso
integral do legado lacaniano e de vários despojos da ideologia alemã e francesa em geral.
Voltando ao ponto principal, Žižek insiste no fato de que não existe dominação
que não seja sustentada por algum tipo de gozo fantasmático. Razão pela qual procura
estabelecer uma homologia entre o final da análise, ou seja, o momento em que o
paciente internaliza a falta (do Outro), e o momento de eclosão de uma revolução. Salvo
engano, esta seria pensada como uma versão coletiva da “travessia da fantasia”
lacaniana, quando o proletariado, enquanto representante da “parte dos sem parte”
(Rancière), assumiria livremente o seu próprio ser negativo. Tal “destituição subjetiva”
coletiva seria algo diferente do que em geral se entende por subjetivação de classe, isto
é, diferente da assunção heroica pelo proletariado do seu próprio destino, fornecendo
um sentido novo e algo trágico à contingência insignificante deste último. Acontece que
não dá para pensar a passagem da classe em si à classe para si em termos tão
dicotômicos. Ou melhor, na práxis os dois tempos têm de entrar, ser postos na coisa, o
que implica tanto o reconhecimento coletivo, ainda em jargão lacaniano, da “não-
existência do grande Outro” – ou seja, o despojamento dos modos dominantes de
subjetivação, a destruição do núcleo fantasmático sustentando a realidade social, das
camadas ilusórias que condicionam ideologicamente o cotidiano – quanto algum grau
de simbolização do movimento coletivo, algo que dê um sentido positivo à
transformação social. O próprio Žižek já defrontou diversas vezes o problema, e bom
filósofo que é raramente fornece uma resposta pronta, repetindo ao contrário, quase à
exaustão, livro após livro, a mesma pergunta de diferentes formas: o que acontece no dia
seguinte, após o fim da análise, após o carnaval revolucionário, quando o entusiasmo
sublime da sublevação se esgota? Aqui entra em cena a questão da negação
determinada, da passagem da negatividade externa à negatividade “absoluta”, que em
Hegel é o momento da posição do objeto perdido/negado enquanto objeto simbolizado
– o que Žižek denomina reestruturação de todo o campo simbólico, das relações entre a
Lei pública e seu complemento obsceno etc.
Levando essas questões a outro patamar dialético, Ruy Fausto colocou bem em
evidência a existência de uma inércia própria à estrutura de “suporte” – estrutura que é
condição para que a classe se torne classe em luta, primeiramente luta econômica, por
“reconhecimento”, em seguida luta política propriamente dita –, inércia que só se
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quebra por uma ruptura com o agente enquanto suporte. Ora, tal ruptura implica a
consciência (ou subjetivação) negativa de classe, que obviamente tem a ver com a
necessidade de uma transformação radical e que não pode se dar apenas como crítica da
ideologia e da política. Nesse ponto cabe recordar uma pergunta que costumava fazer
Marcuse: por que a luta pela derrubada da ordem social vigente seria uma necessidade
vital para quem possui ou pode esperar por emprego, casa própria, automóvel etc.?
Pergunta que nos lembra a importância de pensarmos o processo de mediação real,
uma vez que o movimento de superação precisa cuidar da formação da subjetividade
(educação, teatro, nova sociabilidade etc.), descartando a ideia militaresca do “serviço” a
uma Verdade axiomática, sem mencionar um monte de outras coisas, vários níveis a
considerar: a crítica radical da dinâmica do capital e de formações sociais determinadas,
o pensamento “político” sobre táticas e estratégias de luta e, principalmente, a questão
da transição para uma produção não-mercantil e não-estatal.
Ora, Žižek não distingue nem tematiza bem esses níveis e processos, condição
para pensá-los de maneira conjunta e dialética. Talvez seja pedir muito. Por certo, suas
leituras de Marx trazem à tona coisas que muito marxista de renome não entende ou
não consegue ver, como o fato de o capital não ser efetivamente substância-sujeito do
processo histórico – o “sujeito automático”, que põe por si mesmo os próprios
pressupostos, seria antes uma metáfora, ou uma “fantasia objetiva” sustentando o
funcionamento social, e que não se reduz nem à maneira com que os sujeitos (digamos,
os trabalhadores) experimentam o capitalismo, nem à coisa como realmente é, ou seja,
os diferentes níveis de exploração do trabalho, a ilusão de um mercado totalmente
autorregulado etc. O que constrange em Žižek é que ele não dá continuidade ao
argumento (não chega a desenvolver a questão de que em Marx o real sujeito
pressuposto é mesmo o proletariado, ainda que posto como pressuposto negativo),
muda completamente de assunto poucas páginas depois e acaba caindo em contradições
esquisitas, como criticar a estratégia de “mudar o mundo sem tomar o poder” (John
Holloway) ao mesmo tempo em que sustenta que a real transformação será levada a
cabo pelas populações deixadas por conta do planeta-favela, que se encontram
atualmente fora do âmbito do Estado e das leis, e acaba por investir, mais uma vez na
esteira de Badiou, contra a “ilusão democrática”, sustentando que a aceitação dos
mecanismos democráticos como moldura fundamental do processo político burguês é o
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grande empecilho para a transformação radical das relações capitalistas. Talvez, mas
somente se a suspensão da democracia for pensada, não de modo geral, mas como
momento estratégico de um processo superador real, no qual formas de decisão não-
democráticas podem segundo o caso até ter lugar. Do contrário meios e fins são
confundidos, põe-se a antidemocracia quando a democracia deveria ser pressuposta, ou
inteiramente posta lá onde ela nunca entrou (a esfera da produção) etc. Falta portanto
uma crítica da ideia da ditadura do proletariado, que parece-nos semelhante demais à
do marxismo-leninismo tradicional. O mesmo vale para o elogio žižekiano da histeria
em geral, de novo tendo como referência um sujeito pensado de forma isolada. Mas
como defender, abstratamente e sem qualquer mediação, uma dimensão emancipatória
do sujeito histérico? Em momentos mais lúcidos, Žižek chegou a comparar o histérico
com a “bela alma” hegeliana, cuja atitude consiste em deplorar os malevolentes trâmites
do mundo enquanto participa ativa em sua reprodução. Também não se pode esquecer
de Lacan, que notou que fora o histérico o vetor de Maio de 68: volúvel, ele contesta,
mas quer um mestre, coisa que o mercado está cheio para oferecer, com produtos que
funcionam como seus substitutos.
Aqui nosso ponto: no fundo, não se trata de defender qualquer noção de sujeito
isolado, seja ele normal ou patológico; importam os grupos e os valores racionais que
conseguem sustentar, isto sim, e erigir para si na prática. A crítica dialética do sujeito no
fim das contas é menos uma questão de consciência ou desejo do que de prática efetiva,
para além do mercado, do trabalho e do Estado capitalistas; uma questão por
conseguinte mais de movimento real do que simplesmente de consciência ou
subjetividade isoladas. Para dar um exemplo consagrado, lembremos de Baudelaire, de
toda evidência um doente dos nervos, o que não o impediu de lutar do lado certo nas
barricadas parisienses de 1848. E o que o levava a isso? Uma questão de consciência,
sem dúvida, igualmente de desejo, mas sobretudo do movimento que se formou em
certo contexto de crise da reprodução social. Não se pode deixar de frisar essa relação
entre crise objetiva e crise das ideologias e de todas as coordenadas jurídicas (o que
nosso autor às vezes despreza), conforme o esquema de Marx, para além de todo
decisionismo. Importa sublinhar, nesse sentido, aquilo que encontramos por exemplo
num romance como A peste, de Camus, ou em muitas das peças de Brecht, a saber: a
discussão do sujeito social como pergunta não pelo indivíduo isolado, seja ele saudável
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retomar os trilhos e seguir nessa direção, com todo um capítulo dedicado a Hegel, a
Marx, à teoria do valor-trabalho e à questão da renda no capitalismo contemporâneo.
Dito isso, fica a dúvida se tais discussões seriam mais do que capítulos breves e,
no final, de pouca importância na estrutura do monumental edifício teórico-filosófico
que construiu nas últimas três décadas para abarcar os grandes problemas do tempo.
Numa resenha desabusada de seu último grande livro, o colossal Less than Nothing
(2012), com mais de mil páginas sobre “Hegel e a sombra do materialismo dialético”,
um crítico chegou a sugerir que o autor esloveno, por meio de seu discursar compulsivo
sobre tout et n’importe quoi, terminaria por reproduzir, em sua prática teórica e em sua
escrita, justamente a dinâmica desvairada e completamente desprovida de sentido – e,
poderíamos acrescentar por nossa parte, de sujeito, como apontado acima – que ele
mesmo critica. Ao quê Žižek respondeu, não de todo sem razão, que esse tipo superficial
e pseudo-marxista de analogia seria uma triste indicação do baixo nível do debate
intelectual encontrado atualmente na mídia. Ainda assim, poderíamos nos perguntar se,
ao fim e ao cabo, o turbilhão teórico que não cessa de crescer, que parece querer
capturar em seu âmbito a totalidade do real, não deixando de pé nada que cruze seu
caminho, não acaba por minar também as bases daquilo que o filósofo produziu de
melhor. É como se numa espécie de hybris, o sujeito žižekiano perdesse o passo da
reflexão e da síntese dialética e grudasse impulsivamente na matéria amorfa, deslizando
na “jaca” em direção à “merda divina”. Do mesmo modo, a impressão que fica é que
todo o agito, todas as polêmicas – no fundo estéreis, por falta de mediações reais, como
diria Kurz – e as frequentes exaltações a uma política violenta, uma política do real, no
fim das contas, ofuscam o que haveria de mais forte em seu pensamento, vale dizer, os
capítulos sobre o idealismo alemão, sobre Hegel e sobre Lacan, as episódicas discussões
críticas sobre economia política e o desmonte extraordinário dos modos cotidianos do
funcionamento ideológico na época atual.
II.
suas contribuições maiores, que são muitas e incontornáveis. Entre elas, ressaltemos de
forma sumária:
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moderno, para além das lutas pela distribuição da riqueza e do direito, que se dão afinal
no nível da circulação, da aparência ideológica, ou pelo menos dos conflitos mais
superficiais na sociedade burguesa –, mas aqui vale sublinhar, em um momento
histórico de radical refluxo das lutas de classes.
Sabemos como Kurz daí deriva uma distinção entre um Marx da modernização e
da luta de classes reformista (o movimento dos trabalhadores como simples “lutas por
reconhecimento” dentro da ordem capitalista) e um Marx da crítica do fetichismo das
formas burguesas fundamentais. Não que não haja de fato uma diferença de tempos e
níveis na crítica de Marx, mas o problema aqui passa a ser como pensar uma luta
anticapitalista sem luta de classes e sem uma concepção dialética da constituição de
algum tipo de sujeito coletivo para a práxis emancipatória, para além dessas formas
alienadas. É precisamente nesse ponto que a crítica radical de Kurz estanca e se torna
crítica indeterminada, negação abstrata, recusa de mediação (apesar de invocá-la
formalmente o tempo todo), e que encontramos as suas aporias teóricas e práticas, às
vezes até mesmo complicações com os próprios termos em/do debate, enfim, temos algo
de impensado, ideológico e contra-histórico nessa teoria que se quer totalmente
histórica e (quase, muitas vezes quase) onisciente.
Nos últimos anos diríamos até que as formulações de Kurz se tornaram mais do
que polêmicas: elas se tornaram agressivas, grosseiras e algo desesperadas. Uma crítica
que se exaspera justamente perante um mundo burguês que empilha ruínas sem cessar,
embora não dissolva nenhuma de suas estruturas fundamentais. Sem dúvida, a
negatividade infinita pretendida pela teoria de Kurz e de seu grupo nasce no pântano
histórico dos anos 1970 e 80, do Welfare State à hegemonia das teorias keynesianas e
neoliberais e das filosofias democráticas do consenso, nas figuras de um Habermas ou
de um Honneth. Daqui sai a sua ligação com Debord e a Teoria Crítica mais radical de
Adorno e Horkheimer. Mas como a vontade de ruptura total passa a ser o seu telos mais
íntimo, ela busca não mais uma “dialética do Esclarecimento”, como Marx ou os
frankfurtianos ainda pretendiam, mas a destruição do Esclarecimento tout court. Em
Adorno e Horkheimer, a “autodestruição do Esclarecimento” era uma tendência objetiva
– não por excesso de racionalidade, mas por sua falta –, a que impõe o bloqueio da
reflexão e da superação social dos fins fetichizados. O contexto social esclarecido
determina-se como “vida danificada”, “vida falsa”, “vida que não vive”, mas em que algo
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seja, com palavras mais neutras ou menos carregadas (“indivíduo” ou “homem”, “razão
sensível”, “luta emancipatória” ou “formas embrionárias”, “seleção” em vez de Tabula
Rasa etc.), sem produzir de fato a pretendida ruptura radical, já que no fundo ela deve
ser feita na práxis, não simplesmente ao nível do discurso teórico. Vê-se por aí que
muitas vezes Kurz não está combatendo senão “palavras”, visando quase sempre ao que
se encaixa sem restos nas “categorias” do Valor, e não exatamente as suas realidades
histórico-objetivas precisas, que são muitas vezes contraditórias, e que, no detalhe de
seu conteúdo, não se deixam pensar univocamente sob estas mesmas categorias. O
conteúdo reserva um surplus inesperado de sentido, que não cabe na categoria e vice-
versa – conteúdos que, às vezes ainda, podem ser pensados como irredutíveis mesmo
que expressos por modelos teóricos distintos da crítica radical do valor, às vezes ainda
por termos comuns, limpos de referência teórica, mesmo na fala ordinária, ou então, é
claro, pela linguagem artística musical, literária, plástica, teatral, não plenamente
conceitual. Falta aqui a nosso ver, então, por incrível que pareça, uma consciência mais
sutil do funcionamento da linguagem social, da questão da arbitrariedade do
significante, da produção e da interpretação do sentido (jamais dado ou evidente), uma
visão mais generosa e compreensiva dos atos de fala de cada interlocutor. Daí a
sensação de rigidez e dogmatismo de um sujeito monológico do estilo kurziano final,
erigindo-se a aura do absoluto rigor conceitual, crítico e moral, como se fora do conceito
X a linguagem apenas fosse aparência e reificação.
O que pulsa nesse corpo teórico, porém, é uma paixão pela totalidade e pela
identidade. O que significa uma vontade de reduzir o real à transparência do conceito, o
qual ganha peso ontológico (negativo, é verdade) por sobre os fenômenos ônticos, o
peso de um conceito que tende a subsumir a prática sem resto, e representá-la sem
ambivalências, claros-escuros, tensões internas corrosivas – sem contradições enfim –,
dessa vez eliminando a diferença ou a lacuna entre teoria e práxis, essência e fenômeno,
conceito e real, sujeito e objeto. O que ele conhece do “objeto” passa a ser aquilo que ele
projeta quase paranoicamente sobre ele. Nesse horror à contradição dialética, não há
mais lugar para o virtual, o indeterminado, o não-idêntico, operando apenas com
noções postas e repostas (nunca pressupostas) na práxis – isto é, com categorias no
fundo positivas. A elas se contrapõe, de forma antinômica, uma práxis teórica pura,
digamos até quase-kantiana. Daí não só a rigidez, mas a aridez ou a falta de colorido de
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como relação objetivada e fetichizada; ao mesmo tempo só ele, o “sujeito”, existe e está
plenamente posto como sujeito burguês idêntico e petrificado, às vezes inclusive
fundando o sistema social (“O eu abstrato da modernidade cria a forma de violência das
relações de valor e cisão historicamente extremas e totalitárias...”, lê-se em Ontologia
negativa) – algo estranho à dialética de Marx e Adorno, que vê esse eu abstrato como
algo fundado e impotente. Este ainda o preço de trazer a crítica do sujeito e do
Iluminismo ao primeiro plano das essências, como se se tratasse de uma realidade dada,
um fundamento plenamente posto, e não um elemento pressuposto, negado, em
constituição. Daí não parecer haver, para o último Kurz, nenhum nível possível de
experiência e aprendizado negativos nas lutas realmente existentes, muito menos
constituição da luta e luta por constituição de classe, entre os seus óbvios altos e baixos
históricos, que poderiam pôr em xeque esse sujeito burguês coisificado. No jargão dos
epígonos, tudo cai subsumido na “imanência” do capital onipotente, que tudo fagocita
em si, ao mesmo tempo em que todos aparecem sempre apenas como plenos sujeitos
burgueses da circulação simples.
Parece contrafactual, será estranho reconhecer isto, mas: as classes, em Kurz (e
não em Adorno, como ele sempre diz), se tornam pura aparência ou “sujeitos
metafísicos”, enquanto o sujeito burguês abstrato e isolado da circulação se torna a
essência que põe em movimento o sistema. É nesse sentido que a redução conceitual de
todos os agentes efetivos a simples “sujeitos-mercadoria” ou indivíduos “mônadas-
dinheiro” empobrece as suas análises, pois os faz regredir a níveis menos complexos da
determinação social efetiva, a saber, ao nível da aparência da circulação simples! As
determinações mais simples e iniciais adotadas por Kurz, supostamente mais essenciais,
ao contrário, subsumem todos ao mesmo campo idêntico, precisamente aos níveis
elementares, mais pobres e abstratos, da exposição dialética de Marx. O que em Marx e
Adorno era efeito da estrutura fetichista ou da ideologia, em Kurz torna-se essência. Tal
essência (Wesen), na verdade, é inessência, ou tal fundamento (Grund) vai ao abismo
(Abgrund) e é fundamento negado/suprassumido do todo, de modo que a real essência
monstruosa (Unwesen) do modo de produção, para Marx, não se dá simplesmente como
trabalho abstrato que põe valor, mas como automovimento antagônico do capital em
relação ao trabalho, que põe mais-valia e não simplesmente “valor”, põe o trabalhador
como apêndice e não apenas como suporte. Por trás do Grund, há um Hintergrund
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bem, aqui, o homem parece ser o grupo Exit!. A posição mais confortável, nesse caso,
passa a ser o encastelamento teórico, o sonho obsessivo por excelência de poder-saber e
nada faltar em si, claro que arquivando o desejo e a ação de ruptura na cabeça, ou no
“bolso”, como diz Lacan. Por isso mesmo pode-se recusar a falta, a própria subjetividade
da interpretação e do saber críticos, e reivindicar para si uma totalidade onipotente. Em
Marx, Debord ou Žižek, isso se dá de modo diferente. A contradição objetiva do sistema
expressa-se em relações sociais antagônicas, o que também significa: relações com
sentido a ser disputado socialmente, vale dizer, com significado diferente segundo os
“sujeitos” de classe, os quais estão sempre também sujeitos ao movimento, que faz
abalar e vacilar suas posições reificadas, impelindo-os assim ao movimento social. Aqui,
portanto, a força e o interesse do conceito de subjetividade – a partir de Marx
(consciência de classe revolucionária etc.) e de Freud (realidade psíquica, fantasia, lei
simbólica, desejos e pulsões, gozo, passagem ao ato etc.). Parece evidente que qualquer
mobilização crítica contra o sistema tenha de catalisar o mal-estar e o sofrimento. Mas
estes muitas vezes se confundem, na fantasia dos sujeitos, com o seu próprio gozo; por
outro lado, em certo contexto de crise as certezas narcísicas do ego-prazer se
despedaçam, o que invoca a pulsão e o movimento de ruptura. Não há, portanto, uma
realidade unívoca, evidente, para a crítica. Jogar fora o conceito de sujeito significa,
assim, destruir a possibilidade de compreensão de processos histórico-sociais
complexos e contraditórios.
Mas, paradoxalmente, não deixa de haver também uma espécie de “duplo Kurz”,
que sabe do que fala: também ele é obrigado a pensar a mediação de teoria em práxis de
supressão do capital como um movimento histórico concreto, e não como
autodestruição sistêmica; enfim, um movimento que necessita do tempo, do espaço, da
paciência da mediação e da apropriação, do momento da negação do negativo
(“demolição do que tudo demole”) e da reconstrução de relações sociais não fetichistas
(a partir do possível, que havia sido negado). Em suma, é a negação dialética
(Aufhebung) que retorna sob outro nome (Überwindung: ultrapassar, saltar, vencer),
como poder social seletivo de “indivíduos” anticapitalistas (os quais, curiosamente,
teriam todas as características do sujeito moderno: independência, criticidade,
capacidade de distância e de projeto como um “mestre de obras” e não como uma
“abelha” etc.).
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Para concluir, vejamos de perto sua análise da dialética do Capital em seus níveis
articulados. Realmente, o “sujeito automático”, a unidade do movimento da relação-
capital, não é uma aparência; mas por certo também as classes, o Estado e as lutas de
classes não são meras aparências – ao menos não para a exposição de Marx, em O
Capital, pois subsumem e classificam estruturalmente agentes sociais. Imaginar que a
abolição do Capital, como totalidade, possa ser realizada sem luta contra os “sujeitos”
funcionais empíricos que o “dirigem” e o defendem (burguesia e Estado) é um sonho
quixotesco. Aqui também, porém, Kurz faz retornar o recalcado, subentendendo a luta
antipolítica como uma espécie de “metapolítica” antiestatal e de “economia”
antimercado, que não pode simplesmente pular e saltar tais mediações como se fossem
simples aparências (a este respeito, cf. Daniel Cunha, “Penúltimos combates”, em Sinal
de Menos, nº 1). O Estado e a burguesia não agem apenas como sujeitos monádicos,
mas como forças sociais complexas, politicamente, nacionalmente, mundialmente,
como grupos e instituições sociais normativos (inclusive orquestrados consensualmente
pelo “diálogo democrático” habermasiano). É óbvio, mas o óbvio não é tão óbvio nos
círculos alemães às vezes: as classes são realidades complexas, também elas “sínteses de
múltiplas determinações” (Marx), jamais aparências sem substância e sem peso
objetivo. Estrutura e ação social, em Marx, só podem ser determinações reflexivas: a
estrutura fetichista do valor realiza-se como ação histórica efetiva, não é uma estrutura
totalmente “objetiva”, “metafísica”, “a priori”. Por isso é que Moishe Postone, por
exemplo, fala em “dominação quase-objetiva”, deixando muito mais claro que tal
estrutura é uma relação pressuposta, que precisa ser reposta e atualizada mediante lutas
sociais. E agora o ponto-chave, talvez: a ação é sempre ação estruturada pela totalidade
do valor-capital, por certo: mas há algo na ação, enquanto ação de sujeitos pressupostos
justamente, que não é estruturado previamente. Eis um traço típico da sociedade
moderna, que não tem nada de uma essência natural ou humana. O mundo moderno,
firmando o que Hegel chamou “princípio de subjetividade”, produz uma dinâmica social
ímpar. O que significa dizer que o “sujeito do valor”, na forma do suporte de relações
mercantis não se reduz à substância social do valor e do trabalho (como ocorria em
parte nas formações sociais pré-modernas, porém essencialmente constituídas por
fetiches mítico-religiosos). Aqui, então, vem à tona o fundo da questão de classe
kurziana. A posição esfumada ou apagada das classes, principalmente numa Alemanha
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do alto do castelo teórico, não seria apostar na “pureza” teórica e na “impotência”? Não
que a tendência à barbárie não exista, bem pelo contrário. Mas não se trata no fundo do
velho gozo de intelectual alemão contemplativo, como sugeriu um dia Marx?
(Agosto/Dezembro de 2012)
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2 Cecília Coimbra, Operação Rio: o mito das classes perigosas. Rio de Janeiro, Oficina do Autor, 2001, p.
142.
3 Durante a preparação da Operação-Rio, que ocorreu no período da sucessão presidencial, cogitou-se,
com assentimento do prefeito César Maia, a intervenção do Exército nas favelas cariocas em um regime
de “estado de defesa” baseado na suspensão de garantias constitucionais.
4 O Estado de São Paulo, 07 de agosto de 1994.
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consenso conservador em torno não mais da antiga ideia de subversão política, mas da
“violência urbana”, uma categoria, como diz Loïc Wacquant, “sob a qual cada um pode
colocar o que lhe convier” (2001: 67).5
A estratégia para a construção do consenso dependia da desvinculação entre o
debate sobre a segurança pública e o problema da crise do modelo econômico, o que
transformava a pobreza em alvo policial. Ao mesmo tempo, a acumulação de força das
quadrilhas do tráfico, sempre alimentadas pela corrupção policial, tornava-se a
justificativa ideal para a manutenção dos moradores das favelas em uma situação de
exclusão, fora do regime jurídico legal e submetidos a uma forte discriminação. No Rio
de Janeiro, o que se convencionou chamar de “crime organizado” refere-se apenas a um
mercado varejista de drogas que, mesmo contando com algum nível de organização,
opera de modo essencialmente fragmentado e rudimentar. Mas o crime organizado é
funcional para a manutenção de um eficiente controle social. Nesse aspecto, a histeria
produzida pelos meios de comunicações é inversamente proporcional ao torpor em
relação ao crime que se organiza por dentro da polícia e que alimenta as conexões do
tráfico de drogas e de armamentos.6
Na cidade do Rio e em alguns municípios vizinhos, a violência atingiu patamares
bastante elevados no final dos anos 1970, o que coincidiu com o fim do nosso ciclo
incompleto de modernização e o início de uma dinâmica de exclusão social, cujo traço
mais visível foi o processo de favelização em larga escala. E as grandes periferias
cresceram desassistidas, tornando-se territórios sob a influência de grupos armados. Os
números da violência continuaram subindo, sem grandes saltos, nos anos seguintes. Já
em 1981, uma reportagem de capa da revista Veja anunciava a “Guerra civil no Rio”:
dois mil mortos na Baixada Fluminense e um recorde do “comércio clandestino de
5O depoimento, em livro recente, de um importante agente da repressão política do Regime Militar atesta
que esse tema foi introduzido no meio universitário pelos órgãos de segurança oficiais durante o
“Primeiro congresso brasileiro sobre violência urbana e suas implicações”, realizado na cidade do Rio de
Janeiro, em 1980, e em cujos bastidores desenvolvia-se a articulação clandestina da chamada “Operação
Condor”. Cf. Netto, Marcelo e Medeiros, Rogério. Memórias de uma guerra suja. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2012. [N. E.: ver também a entrevista de L. Wacquant na Sinal de Menos #3].
6Praticamente nada dessa estrutura mafiosa nos é dado a saber. Do mesmo modo, nunca se sabe com
9 Moreira Franco, que governou o estado do Rio de Janeiro entre 1987-91, se elegeu com a promessa
demagógica de acabar com a violência em 6 meses. Inutilmente. Foi sucedido por Brizola (e Nilo Batista,
seu vice), que continuou a denunciar, em guerra aberta com as principais empresas de mídia, a
conivência das autoridades com as execuções de jovens nas favelas e periferias. A eleição de Marcello
Alencar, um quadro egresso do brizolismo e com uma trajetória marcada pela defesa de presos políticos
durante a ditadura militar, inverteu novamente a perspectiva do tratamento da segurança. Marcello
Alencar cedeu às pressões da “opinião pública” e adotou medidas extremamente violentas contra a
população pobre do Rio: durante o seu governo, iniciado em 1995, registrou-se um aumento
significativo dos homicídios cometidos por policiais, uma prática estimulada pela “premiação por
bravura”. O ciclo se fecha com o governo de Anthony Garotinho, último governador vinculado ao
trabalhismo, mas que já coloca em questão a atitude de Brizola, considerada por seu secretário de
segurança, Luiz Eduardo Soares, um “absenteísmo de esquerda”.
10 Jornal do Brasil, 01 de novembro de 1994.
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responsabilidade das forças militares durante a ditadura (sobre isso, ver Clóvis Brigagão, A
militarização da sociedade, Rio de Janeiro, Zahar, 1985). Algumas medidas tomadas durante a década
de 1980, principalmente no governo Brizola, tentaram desmilitarizar a polícia, mas houve uma
reviravolta nas décadas posteriores.
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14 O jornal O Globo noticiou: “Em 2009, o Exército recuperou um fuzil que havia sido roubado no 26º
Batalhão de Infantaria Paraquedista, unidade considerada de elite, durante uma operação nos morros
da Pedreira e da Lagartixa, em Costa Barros, no subúrbio do Rio. Na época, todos os cerca de 700
homens lotados no batalhão, localizado na Vila Militar, ficaram presos até que a arma reaparecesse e
fossem identificados os responsáveis pelo roubo”. Cf. “Desvio de armas em quartéis é um desafio para as
Forças Armadas”, 12 de dezembro de 2010. Outra reportagem do mesmo jornal, essa de 29 de junho de
2011, relata que “Pelo menos dois mil projéteis de armamento de grosso calibre desapareceram no
último dia 22, véspera do feriado de Corpus Christi, do Batalhão Escola de Comunicações, na Avenida
Duque de Caxias, na Vila Militar. Alguns soldados da unidade estão, desde a semana passada,
aquartelados por causa do furto do material”.
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superior ao soldo militar.15 Somente entre 2004 e 2008 ocorreram mais de cem casos de
desvios de armamentos dos quartéis do Rio, o que corresponde a algo em torno de 50%
dos casos registrados no Brasil. Em mais um caso rotineiro, em meados de 2004, fuzis
roubados em um quartel do Exército foram encontrados na favela de Antares, em Santa
Cruz, bairro da zona oeste do Rio. O resultado final da operação foi um novo escândalo,
noticiado pela imprensa como uma negociação dos comandantes militares com os
chefes locais do “tráfico”. Pouco depois, outro desvio de armas, no quartel de São
Cristóvão, bairro da área central, teve como consequência uma grande operação cujo
desfecho foi mais uma vez envolvido em denúncias de negociação com as lideranças do
tráfico.
O ápice de todo esse processo, no entanto, só ocorreu em 14 de junho de 2008, 16
quando a imagem do Exército se vinculou de modo inapagável à lógica da violência:
uma ação com onze militares resultou na prisão irregular de três moradores do morro
da Providência (então dominada por uma facção do tráfico) que, em seguida, foram
levados pelos militares até o morro vizinho (dominado por uma facção rival) e
executados pelos traficantes locais. Com a repercussão nacional do episódio, evidenciou-
se como a instituição militar, a exemplo de outras instituições estatais, havia se deixado
permear pela lógica da faccionalização que divide a maior parte das favelas cariocas.
Constatou-se, além disso, que a presença militar na Providência para a fiscalização de
obras de um projeto federal era completamente ilegal.
Outro caso de grandes proporções já havia ocorrido dois anos antes, durante uma
série de ocupações de favelas (treze ao todo) próximas à área central do Rio – incluindo
o próprio morro da Providência. Mais uma vez, os militares saíram às ruas para
15 De acordo com o jornal O Globo, de 03/02/2002, “Ex-militares do Exército treinam traficantes no Rio:
cursos dados por cabos e soldados da reserva custam até R$ 8 mil por mês”. Igualmente, o Jornal do
Brasil noticiou, em 04/04/2002, que “Em uniformes camuflados, armados de fuzis, metralhadoras e
granadas, 32 ex-militares, oriundos da Brigada Paraquedista do Exército estariam cruzando as ruas do
Rio em missões táticas encomendadas por facções criminosas, em guerra por pontos de venda de
drogas. Apelidado de “bonde verde”, o grupo não guardaria fidelidade a qualquer facção, atuando
sempre como mercenário”.
16 Considere-se que, ainda em 27 de junho de 2007, nos “preparativos” da cidade do Rio para a realização
dos jogos Pan-Americanos, uma operação no Complexo do Alemão conhecida como “Chacina do Pan”,
envolvendo policiais militares e a nova “Força Nacional de Segurança”, resultou em 19 pessoas mortas e
62 feridos por armas de fogo. Criada em 2004, a Força Nacional de Segurança é outra expressão da
mlitarização policial. Como tropa federal subordinada ao Ministério da Justiça, operando através de
“convênios” com governos estaduais para intervir em conflitos urbanos, a FNS é também, para muitos
juristas, um exemplo flagrante de inconstitucionalidade.
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recuperar armas roubadas. E, mais uma vez, as operações não possuíam respaldo
jurídico, pois nenhuma medida necessária para a utilização das Forças Armadas na
chamada “garantia da lei e da ordem” foi tomada pelo governo. A Providência
permaneceu dez dias sob intervenção do Exército e, como de costume, os procedimentos
legais mais elementares foram ignorados: nenhum mandado de busca e apreensão para
vasculhar casas e estabelecimentos comerciais, agressões e danos materiais,
cerceamento do trabalho da imprensa etc. Surgiram até denúncias de simulações de
conflitos armados. Outros relatos de moradores, descritos em “A Guerra da Providência”
– estudo que analisa a referida ocupação do Exército, em março de 2006 17 –, apontam
ações ainda mais violentas e arbitrárias que as usualmente praticadas pela Polícia
Militar. Uma moradora da Mangueira, favela ocupada na mesma época, relata: “Hoje, o
morro da Mangueira parou. Fomos impedidos de sair de casa, ir ao trabalho, estudar, ir
e vir. Ficamos sob a mira de um tanque de guerra direcionado para nossas cabeças”18.
Para os autores do estudo, “todos os relatos e as evidências confirmam que as forças
militares entraram na favela da Providência atirando a esmo, aparentemente com o fim
de intimidar os criminosos ou, talvez, a própria população civil. Para ocultar esse fato, a
versão oficial se referiu sempre a troca de tiros com o narcotráfico” 19. E adiante: “os
moradores afirmam peremptoriamente que não houve confronto pois os
narcotraficantes fugiram no primeiro momento. As autoridades se inclinam a
corroborar essa versão a partir das marcas de tiros e cápsulas recolhidas” 20. Das cinco
vítimas da operação, uma delas letal, nenhuma foi formalmente acusada e nenhuma
prisão foi efetuada. No mesmo relatório, “há menção a casos de perda de postos de
trabalho em função da ausência obrigada pelo toque de recolher”.21
Tal como a ação de 2006, a megaoperação de 2010, na Vila Cruzeiro, próxima ao
complexo de favelas do Alemão, não estava prevista por nenhum plano de segurança.
Foi uma situação ocasional, motivada pela obrigação de responder aos ataques do
“crime organizado” ocorridos em toda a cidade nos dias anteriores, mas, sobretudo,
17 José Trajano Sento-Sé et al., “A guerra da Providência: uma análise da ocupação pelo Exército da favela
da Providência no Rio de Janeiro em março de 2006”, Laboratório de Análise da Violência,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em:
<http://www.lav.uerj.br/docs/ rel/2006/guerra_provid_rio_2006.pdf>.
18 Ibidem, p. 11
19 Ibidem, p. 23.
20 Idem.
21 Ibidem, p. 24.
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22 Em janeiro de 2011, 30 militares do Exército e 23 policias militares foram afastados por atos ilícitos
praticados, diante das câmeras de TV, na operação de novembro.
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Alemão vive atualmente uma situação não declarada de estado de sítio. Para
caracterizá-la basta lembrar que a prática dos “mandados de busca coletivos” continua
vigorando e com ela as ações “em cumprimento da lei e da ordem” que englobam – e
criminalizam – favelas inteiras.23 É certo que o Brasil não construiu um Estado de
direito inteiramente desenvolvido e, como lembra Wacquant, “as duas décadas de
ditadura militar continuam a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado
como sobre as mentalidades coletivas”.24 Por isso, acumulam-se as situações em que a
alegação do estado de “necessidade” legitima atos ilícitos praticados por agentes de
segurança do Estado. A rigor, a inexistência da regra plena muitas vezes torna supérflua
a “exceção” entendida como suspensão provisória dos direitos. Os moradores, que
sofriam com a violência que sempre caracterizou o tráfico e as invasões policiais, que
incluem ações sistemáticas de extermínio, continuam privados de direitos básicos:
prisões abusivas por “desacato” e imposição de restrições são comuns, mas agora sob o
comando arbitrário do Exército. O fenecimento das garantias individuais consolida-se,
neste laboratório de controle social, com o toque de recolher anunciado pelos alto
falantes em ações militares de rotina: “o Exército está realizando um mandado judicial
em cumprimento da lei. Fechem suas portas e janelas e aguardem orientação. Quando
solicitado, abra a porta e aja de maneira educada. Obedeçam todas as instruções.
Qualquer ação contrária será considerada como ato hostil e receberá a resposta
necessária”.25
Na ocasião da “retomada” do Complexo do Alemão, os meios de informação trataram
de infundir na população o sentimento de impotência capaz de produzir o estado de
espírito adequado às intervenções discricionárias e ao projeto de ocupação prolongada
de favelas, pois quanto maior a sensação de insegurança, maior a chance de o aparelho
estatal impor seu controle sem contestação. Aqui, os clichês habituais da
23 A Operação Rio I também utilizou os “mandados genéricos de busca e apreensão”, mas, naquele
momento, talvez em virtude da lembrança da Constituinte, a imprensa denunciou os abusos: “No final
de 1994, o Brasil ressuscitou as lettres de cachet, que permitiram aos oficiais da polícia francesa, no
século XVIII, prender, em nome do rei, quem bem entendessem” (Jorge Zaverucha, Frágil democracia,
cit., p. 185). A comparação ressalta o caráter totalmente ilegal da prática: todo mandado deve ser
despachado contra alguém em particular, pois não se trata de uma “carta-branca”.
24 Loïc Wacquant, As prisões da miséria, cit., p. 10.
25 “O Complexo do Alemão em Estado de Sítio”, Veja, 26 de outubro de 2010.
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situação social (...) encontra no recurso da utilização das Forças Armadas no combate ao
narcotráfico dos morros cariocas, sua definitiva e cabal demonstração”28 Dessa forma, o
aumento dos gastos ligados ao aparato policial-militar, que fortalecem a dimensão
punitiva do Estado, torna-se uma compensação negativa para a ausência de políticas
econômicas e sociais inclusivas.
Mais de 30 anos separam a intervenção militar na greve da CSN e a ocupação do
Complexo do Alemão. Embora as confusas interseções entre as esferas civil e militar
sejam comuns aos dois momentos, o horizonte histórico é diferente: em 1988, tratava-se
da repressão às organizações político-sindicais que lutavam, no contexto do processo de
democratização, por melhores condições de trabalho e pela universalização dos direitos.
A funcionalidade econômica desses trabalhadores despertava o desejo de
reconhecimento jurídico e de integração social, até então negada pela exceção
construída militarmente. No entanto, tais expectativas não se concretizaram e os
aspectos democráticos do sistema jurídico e político começaram a dar sinais de
esgotamento, antes de se consolidarem. Em 2010, o recurso à ocupação militar criou
mais uma situação de violência externa ao ordenamento jurídico, que incide sobre os
habitantes das favelas que deixaram de ser funcionais ao patamar econômico atingido
pelo “espetáculo do crescimento”.29 Para a maior parte deles, que permanece, a despeito
das miragens econômicas da última década, muito distante de algum tipo de integração,
a pobreza segue como o problema fundamental. 30 E o avanço do processo de favelização
na cidade do Rio é o desmentido mais flagrante da retórica política sobre o crescimento
econômico. Assim, as políticas públicas são reduzidas a um gerenciamento de
emergências e o contingente populacional “sobrante” torna-se um simples problema
28 Oliveira, Francisco de. Quem tem medo da governabilidade? Novos Estudos. São Paulo: Cebrap, n.o 41,
março de 1995.
29 Se a Ditadura constituiu um período de exceção que aboliu, em nome da defesa da ordem, uma série de
direitos individuais e coletivos, o período da transição democrática tratou de manter intacta a estrutura
social. Daí a situação paradoxal: na nova ordem democrática, os segmentos marginalizados da
população continuam à mercê do mesmo poder punitivo que atingiu os dissidentes políticos e as
organizações sindicais. Só que agora, para manter a base da pirâmide social em seu lugar, não se faz
necessário o recurso à suspensão das liberdades.
30 Especialmente entre os jovens é elevado o número dos que permanecem sem escolaridade básica e sem
acesso ao mercado de trabalho. “Para jovens de favelas com UPP, a pobreza é o maior inimigo”, diz uma
reportagem, a partir dos dados colhidos pelo Ibope. Para 24 % dos 700 jovens moradores de favelas
ocupadas a pobreza aparece como o problema principal, na frente da violência e do desemprego. A
mesma pesquisa constatou que 26% dos entrevistados não estudam nem trabalham. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/rio/para-jovens-de-favelas-com-upp-pobreza-o-maior-inimigo-3298717
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**
Bibliografia
31 “Sou favorável ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Sou cristão, católico, mas
que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito
aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas,
Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é
uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. Não tem oferta da rede pública para que essas
meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só”. (“Cabral defende aborto contra
violência no Rio de Janeiro”, G1, 24 de outubro de 2007).
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Cidade Olímpica
Sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência
na cidade do Rio de Janeiro
Marcos Barreira
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1 Na década de 1960, no antigo Estado da Guanabara, era comum a prática dos incêndios criminosos em
favelas, entre outros métodos violentos, para promover a “limpeza” da cidade. Na mesma época, a
imprensa carioca denunciou a existência de uma operação “mata-mendigos”, durante o governo de
Carlos Lacerda, realizada pela “Seção de Repressão à mendicância”. É importante notar que a existência
da favela nunca foi um problema para o poder público quando eram localizadas fora das áreas nobres.
As grandes remoções ocorridas na cidade tiveram lugar nas favelas da Catacumba, Pasmado e Praia do
Pinto, na zona sul, e na Favela do Esqueleto, em Vila Isabel.
2 No primeiro governo Leonel Brizola, entre 1983-6, foi criado o programa “Cada Família um Lote”, que
pretendia promover a regularização fundiária em áreas favelizadas. Foi a primeira política com esse
caráter no Estado do Rio de Janeiro. No entanto, menos de 10% de um total previsto de 400 mil lotes
foram entregues.
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3 Essa população se renovou de modo constante, conforme a lógica de extermínio do “material humano”
envolvido nos conflitos entre quadrilhas rivais. No entanto, parte significativa do morticínio
contabilizado na cidade do Rio deve-se a execuções policiais transformadas pelas estatísticas oficiais em
“autos de resistência”, quando a polícia mata um opositor em legitima defesa. Essa prática teve
continuidade nas décadas seguintes. Entre os anos de 2000 e 2008, foram mais de 9 mil óbitos
registrados como “autos de resistência”. Em muitos casos, foram facilmente identificadas por laudos
técnicos as características de mortes por execução.
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4 Verani, Sérgio. Assassinatos em nome da Lei, Rio de Janeiro: Ed. Aldebarã, 1996.
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A reestruturação urbana
5 “Não se tinha notícia de uma instituição que se houvesse corrompido de maneira tão avassaladora como
a Polícia Civil do Rio de Janeiro”. Na Polícia Militar, prossegue a reportagem, podemos encontrar
“batalhões inteiros comandados pelas propinas”. Uma polícia arruinada. Veja, 13 de abril de 1994, pp.
16-7.
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6 Cf. Maurílio Lima Botelho, Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos
pobres. Edição do autor, não publicado.
7 Não obstante, as desigualdades em si mesmas não representam empecilho ao turismo. À medida que
várias favelas eram reconhecidas pelo poder público, iniciou-se também um processo de estetização das
paisagens de pobreza, que passaram a ser vistas como parte dos atrativos “exóticos” da cidade. Na favela
da Rocinha, pioneira na modalidade “favela tour”, essa atividade existe pelo menos desde meados dos
anos 1990.
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8 DavidHarvey analisou as modificações da lógica da governança urbana no que ele classifica como a fase
“tardia” do capitalismo. Para Harvey, a principal conseqüência da disputa interurbana é a necessidade
de cada cidade se apresentar, sob pena de perder a concorrência, como um território viável em termos
de custos, incentivos e adequação às exigências dos “novos mercados”. Ver David Harvey, “Do
administrativismo ao empreendedorismo: a transformação da governança urbana no capitalismo
tardio”, in:__. A produção capitalista do espaço. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2006.
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tornou-se visível pelo fato de o governo, por um lado, insistir em “impor a ordem”, e,
por outro, adotar de forma discriminatória a flexibilização das legislações para
contemplar interesses corporativos e promover a adaptação da cidade aos “novos
tempos”. As intervenções orientadas pelo espírito empreendedor possuem enorme
maleabilidade e presteza quando o que está em questão são os negócios de grandes
empresas, mas caracterizam-se pela indiferença em relação aos despossuídos que
dependem de pequenas atividades autônomas. Por isso, o “sucesso” apenas é relativo:
tais intervenções produzem uma série de situações favoráveis para os segmentos
integrados e “rentáveis” da população, mas encontram-se muito distantes dos
programas sociais abrangentes. No caso do Rio, a ambivalência dessa dinâmica consiste
em desregulamentar tudo que cria obstáculo ao lucro dos grupos privados e dificultar as
estratégias de sobrevivência dos pobres, formalizando a precarização da miséria. Daí
uma nova ambiguidade, pois a formalização desejada não significa somente impor
regulamentos e outros empecilhos às atividades informais. Com ela, tais “alternativas”,
antes identificadas pelos poderes públicos como problemas, passam a ser reconhecidas
– de modo tácito ou não – como antídotos contra a incapacidade de absorção da
economia formal, isto é, tornam-se uma compensação para o fato de que a “sociedade de
carteira assinada” não pode abranger o conjunto da população. Na época em que esse
urbanismo com tendência financeiro-corporativa ganhava força no plano local, o
presidente recém-eleito, F. H. Cardoso, cujo governo se esforçava para colocar o Brasil
nesse mesmo rumo de abertura aos mercados mediante a precarização da regulação
social, foi obrigado a reconhecer – em uma palestra no exterior (!) – que o processo de
globalização simplesmente não funcionava para todos e o desemprego e a exclusão
social só tendiam a aumentar com a integração das economias nacionais periféricas no
espaço funcional do mercado mundial.
O “Plano Estratégico”, no entanto, não era sensível a esse tipo de preocupação.
Passando da observação dos sintomas de decadência à terapêutica, adotou justamente
os princípios do lucro e da competitividade (a fim de explorar “as vantagens da cidade”)
e as formas “inovadoras” de administração e execução. Mesmo as intervenções pontuais
em áreas carentes passaram a ser encaradas como estímulo ao “empreendedorismo
popular”. É claro que o novo princípio de intervenção não poderia deixar de fazer a
crítica das antigas visões totalizantes – tais como aquelas que, por má-consciência
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9 Neil Smith, “Nuevo globalismo, nuevo urbanismo”. In: Doc. Anàl. Geogr. 38, 2001. pp. 15-32.
10 “Do administrativismo ao empreendedorismo”, cit.
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interessada das empresas de mídia. Mais do que isso, o projeto olímpico, apresentado
como uma espécie de “sonho coletivo”, dissemina-se a ponto de produzir uma imagem
positiva unificadora. Trata-se de uma fórmula eficaz para a criação de consensos em
torno dessa pretensa vocação da cidade.
Quanto aos meios de realização, vende-se a ideia de que é mais “racional”, ou
seja, mais lucrativo, priorizar obras que drenem grandes quantidades de recursos do
Estado do que utilizar os mesmos recursos na ampliação e manutenção de serviços
básicos indispensáveis a uma população que não pode pagar planos de saúde ou escolas
privadas e que continua sem acesso à infraestrutura urbana. Outra parte dos recursos é
gasta diretamente ou sob a forma de isenção de impostos, tendo como base a lógica da
especulação, especialmente na construção civil e nos serviços ligados ao consumo
turístico. Uma vez apropriados pelas empresas, tais “investimentos” retornam, se tanto,
como meros “efeitos colaterais” para uma população que continua amoldada à condição
de prestadora de serviços baratos, sem qualquer perspectiva de inclusão real nos
processos econômicos. Finalmente, com o definhamento dos sistemas de saúde e
educação, consolida-se uma inversão de objetivos nas políticas de governo, que
abandonam tanto os princípios inclusivos quanto os “meios de consumo coletivo”,
típicos do momento ascendente da modernização econômica, e começam a girar em
torno da competitividade e do consumo individual. A cidade precisa então correr contra
o tempo, e contra as cidades “rivais”, para se adequar, sem segurança jurídica, às
exigências e custos elevados dos padrões internacionais. Nesse contexto, qualquer tipo
de oposição à racionalidade econômica subjacente aos jogos, que é mimetizada por
sujeitos igualmente submetidos, em sua vida diária, à dinâmica da concorrência
generalizada, ganha ares de campanha “contra a cidade”.11
No entanto, resta um problema capaz de atrapalhar este sonho artificialmente
induzido, e que ultrapassa as questões de logística e infraestrutura: a “violência urbana”.
Nenhuma exploração comercial de eventos ou da imagem da cidade seria possível sem
elas estão muito desigualmente distribuídas. Além disso, dados do Núcleo de Estudos
das Violências (Nupevi) mostram que as UPPs estão presentes em menos de 3% das
favelas da cidade, enquanto as milícias e o tráfico dividem entre si a maior parte delas
(respectivamente, 41,5 e 56%). Levando em conta as populações residentes, o percentual
correspondente às áreas que contam com unidades de policiamento permanente se
eleva de modo considerável, mais ainda assim continua pouco abrangente se
considerarmos a amplitude da favelização. Repetindo o padrão recente de intervenção
urbanística, as operações de “pacificação” não seguem uma visão totalizadora:
restringem-se a pontos estratégicos, ligados de maneira direta ou indireta aos locais
economicamente mais valorizados ou à funcionalidade dos grandes eventos.
Essencialmente, as UPPs promovem uma ocupação territorial que secundariza a
tradicional lógica policial e midiática dos enfrentamentos armados. Por esse motivo, as
ocupações atuais têm seguido um padrão diferenciado que resulta em poucas mortes e
prisões. Foi assim que, ao longo dos dois últimos anos, algumas “fortalezas” do tráfico
foram desmanteladas e os integrantes das facções criminosas, que se digladiavam pelos
pontos de venda e confrontavam o aparato policial, foram obrigados a se deslocar para
outros lugares. Muitas abordagens consideram o avanço da “pacificação” parte de uma
política de segurança pública convencional, dotada de uma lógica própria, tal como as
políticas de governos anteriores. No entanto, uma análise da distribuição espacial das
intervenções “pacificadoras” torna visível a natureza instrumental dessa concepção de
enfrentamento da criminalidade violenta e sua estreita relação com o plano de
segurança para os megaeventos catalisadores do novo urbanismo. Esse novo tipo de
intervenção não se limita, é claro, a uma ação temporária. Ele se articula à expansão do
sistema de vigilância estatal sobre as “comunidades” com base no policiamento
permanente e nos programas sociais de administração da pobreza, além de estimular
processos de valorização imobiliária nas áreas abrangidas pelas UPPs. Em um primeiro
momento, de forma apenas experimental, as ocupações se limitaram às pequenas
favelas da zona sul. Em seguida, as UPPs chegaram à Cidade de Deus, considerada
estratégica por dar acesso à Barra da Tijuca, bairro que lidera o ranking dos altos
investimentos imobiliários. Em janeiro de 2010, algumas dessas experiências pioneiras,
nos morros Santa Marta e Cantagalo, receberam “visitas” de representantes do COI. Em
abril do mesmo ano, a UPP chegou ao Centro e, pouco depois, começaram as ocupações
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12 Sobre
a ocupação do conjunto de favelas do Complexo do Alemão, ver Marcos Barreira e Maurílio Lima
Botelho, “O Exército nas ruas: da Operação Rio à Ocupação no Complexo do Alemão. Notas para uma
reconstituição da exceção urbana”, nesta edição da Sinal de Menos.
90
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de passagem, sempre foi alvo das campanhas internacionais de direitos humanos, o que
contribuiu para a formação de uma imagem negativa do país no exterior. Além disso, ao
restringir a ação do Estado nas favelas à truculência da repressão policial, as contínuas
políticas de segurança não conseguiram evitar que áreas “nobres” se convertessem em
territórios de conflito. As operações “pacificadoras”, ao contrário, seguem uma nova
lógica de coexistência, pelo menos no que diz respeito aos espaços economicamente
privilegiados e à legitimação das políticas de Estado.
Por outro lado, o processo de “pacificação” parece ter um pressuposto que não
depende desse tipo de ação estatal. O relativo sucesso alcançado, em âmbitos locais,
com a implementação das UPPs talvez possa ser considerado o resultado de uma
importante reestruturação das formas de operação do crime. 13 Alguns fatores parecem
contribuir diretamente para isso: primeiro, os custos cada vez maiores com armamentos
pesados exigidos pela guerra entre facções ou pela concorrência com grupos milicianos;
em segundo lugar, a concorrência de novas drogas sintéticas que chegam aos
consumidores de alta renda sem passar pelas favelas; e por último, as altas quantias
pagas aos policiais, o popular “arrego”, que consomem parte significativa dos lucros
obtidos com a venda das drogas. Todos esses elementos teriam diminuído a viabilidade
econômica do comércio varejista de drogas e, em última análise, minado o poder dos
operadores. Corroborando essa análise, um estudo voltado para o padrão de renda dos
empregados do tráfico detectou, em meados da década anterior, uma forte queda nos
rendimentos da rede criminosa.14 É óbvio que, com as UPPs, a situação se agrava e a
guerra por territórios periféricos se intensifica.
A crise torna os “comandos” da droga mais fragmentados, irracionais e
autodestrutivos. Eles deixam de representar uma alternativa econômica, mesmo
perigosa e ilegal, e tendem a se tornar núcleos de pura violência. Os diferentes
“comandos” funcionam antes como pobres sucedâneos de identidades coletivas para
indivíduos considerados supérfluos pela concorrência econômica. Para o jovem soldado
do tráfico, a facção já não é um meio de vida ou uma opção racional, mas algo muito
13 Essa a hipótese de Luiz Eduardo Soares; para ele, “o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma
realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua
incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico”.
Cf. A crise no Rio e o pastiche midiático. Disponível em: http://luizeduardosoares.blogspot.com/
14 Cf. Caminhadas de crianças, adolescentes e jovens na rede do tráfico de drogas no varejo do Rio de
Janeiro, 2004-2006. Coordenação de Jailson de Souza e Silva. Rio de Janeiro, novembro de 2006.
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15 Entre os fatores atrativos representados pelo tráfico conta menos a “escolha voluntária” por um tipo de
ascensão social do que a escassez de opções com a qual se deparam as crianças e menores nas favelas. O
apelo da estrutura organizacional do tráfico sobre elas é, portanto, um produto da ausência de
alternativas econômicas racionais, alimentada por sistemas de lealdades e por uma subcultura de
facções “que promove e glorifica abertamente os traficantes (...) vistos como heróis poderosos que
desafiam a polícia tão temida e que se recusam a sofrer a pobreza comum aos demais residentes das
favelas”. As “dificuldades” da adesão à violência armada organizada caracterizadas pelos altos índices de
letalidade e encarceramento são parcialmente compensadas, no imaginário desses jovens, pela
possibilidade de “tornar-se importante”, ter acesso imediato aos bens de consumo e até mesmo o fato de
compartilhar momentaneamente com o seu grupo um “estilo de vida agitado” Cf. Crianças combatentes
em violência armada organizada: um estudo de crianças e adolescentes envolvidos nas disputas
territoriais das facções de drogas no Rio de Janeiro. Luke Dowdney ISER/Viva Rio, 2002. pp. 102-4.
92
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situação. O alcance dos projetos sociais vinculados a elas é limitado, quase fantasioso se
levadas em consideração as verdadeiras dimensões das carências sociais. Além disso, o
tipo de intervenção realizado para a consolidação das unidades permanentes de
policiamento não funciona – e não pode funcionar – como modelo para o conjunto da
cidade: há mais de mil favelas espalhadas pela capital fluminense, sem contar as que se
estendem para além dos limites municipais, em cidades conurbadas, para as quais seria
necessário um contingente policial cuja manutenção atingiria custos incompatíveis com
os orçamentos estatais. Também não se pode imaginar um Estado capaz de controlar de
maneira formal e eficaz a ocupação do espaço urbano por um aparato policial dilatado,
que muito rapidamente reforçaria sua capacidade de operar por conta própria. 16
Em todo caso, a questão da abrangência dessa política continua em aberto. De
acordo com a Coordenadoria de Polícia Pacificadora, criada em janeiro de 2011, teremos
mais 22 UPPs até 2014 (num total de 40), e 160 favelas serão ocupadas por um
contingente de 13 mil policiais militares até 2016. O modelo de segurança das UPPs
revelou-se eficiente quando o que estava em jogo era a diminuição do poder das
quadrilhas armadas, possivelmente já fragilizadas pela “concorrência”. A quebra do
poder territorial do tráfico e a retirada de seus agentes do campo de visão faz com que,
na perspectiva do poder público, o principal resultado das UPPs seja a diminuição
imediata da margem de “descontrole social” em áreas consideradas estratégicas. 17 Mas
daí advém outra consequência que parece fazer parte de um objetivo não declarado: a
“pacificação” força, pelo menos inicialmente, a migração do tráfico para áreas
atividades criminais”. Em seguida: “não quero assumir uma atitude cínica, mas creio que mesmo o mero
afastamento do crime violento para regiões menos visíveis socialmente e mais longe da grande mídia
pode ser um fator positivo para o ambiente e favorecer uma discussão mais serena sobre as políticas de
manutenção da ordem pública...”. Cf. http://www.comunidadesegura.org/MATERIA-upps-pacificacao-
ou-controle-autoritario. Acesso em 15 de janeiro de 2012.
93
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território para produzir “currais eleitorais”. Seus chefes cultivam relações com partidos
tradicionais, financiam campanhas e constroem uma rede de poder clientelista com
influência sobre os serviços de saúde, escolas e delegacias.
Depois do episódio de 2008, o governo estadual reconheceu publicamente o
perigo representado pelas milícias. A idéia de um “poder paralelo”, como amiúde são
definidas as milícias, indica a perda do monopólio estatal da violência. Mas, ao contrário
do tráfico, que estabeleceu conexões e contou, desde o início de suas operações, com a
cumplicidade do aparato policial, a relação das milícias com o Estado é mais intrincada
e nunca externa ou “paralela”. O tratamento dado a esse problema pela imprensa e por
líderes políticos tradicionais ao longo dos últimos anos é bastante revelador. Quando as
primeiras informações sobre os grupos paramilitares começaram a circular, o então
prefeito César Maia declarou tratar-se de “um problema menor” em relação ao tráfico.
Mais de uma vez, lideranças políticas de partidos governistas se referiram publicamente
às milícias de modo eufemístico, como um tipo de “autodefesa comunitária” contra o
poder arbitrário das facções criminosas. Do mesmo modo, até 2008 a cobertura
jornalística destacava que a atuação dos policiais militares envolvidos em tais grupos
situava-se “na contramão da violência produzida em áreas pobres controladas por
traficantes”.18 Enquanto isso, os líderes milicianos apoderavam-se de associações de
bairro e eram eleitos como representantes políticos. As milícias cresceram e
organizaram-se a partir do crime praticado por agentes do Estado. Armaram-se e
continuam a se financiar com a ajuda de apreensões policiais desviadas (armas, drogas e
dinheiro).19
Concebida de forma instrumental, como parte integrante das medidas
necessárias à realização dos eventos que terão lugar na cidade, a “pacificação” é,
igualmente, um momento da efetivação de uma forma de gestão do espaço com
tendências segregadoras que pode ser caracterizada como um “urbanismo de minorias”.
As UPPs abarcam uma área que se coaduna com a ação miliciana em outras partes
empobrecidas da cidade e empurra um segmento do tráfico armado para locais ainda
mais periféricos. Isso significa que o poder público praticamente não levou sua política
20Alves, José Cláudio. “Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime”, Disponível em:
http://www2.cartacapital.com.br/blog/sociedade/violencia-no-rio-a-farsa-e-a-geopolitica-do-crime.
Acesso em 15 de janeiro de 2012.
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policiais, agentes penitenciários e outros funcionários do Estado que lançam mão dessa
condição para se associar em “bandos” e obter renda de modo delituoso. Eles agem nas
brechas do poder público, obrigando os governos a negociarem suas formas de operação
com as lideranças dos batalhões e delegacias policiais. Com a relativa autonomização
obtida por meio desse tipo de negociação, as redes mafiosas tendem a transformar a
“segurança” em um negócio privado a serviço de esquemas locais de poder. A
proliferação de tais bandos em favelas e periferias da cidade não obedece a uma
estratégia, ainda que não exclua associações de interesses; eles ocupam de modo quase
automático os espaços de desagregação social criados pela ausência de ações contínuas
do Estado. Em muitos momentos o tráfico cumpriu papel semelhante em termos de
controle sobre territórios. No entanto, as milícias têm mais facilidade de sair das
margens sociais e organizar-se de forma difusa, pois atuam por meio do Estado. A
disseminação de formas privadas e ilegais de prestação de serviços, inclusive a
“segurança”, indica – mais do que a existência de uma estrutura ilegal paralela – a
identidade cada vez maior entre um Estado que se desobriga dos fins universalistas e a
“pilhagem social”.21 Quando a absorção produtiva da força de trabalho dá sinais de
esgotamento, também as regras gerais ameaçam falhar, revelando o núcleo de violência
da instituição estatal que se esconde por trás dos princípios de representação. O que
Franz Schandl formula a respeito do recente contexto de desagregação da periferia
europeia não deixa de ser uma situação típica de outros lugares: “liberado da relação
idealmente simbiótica com a sociedade, mas como antes dotado de direitos soberanos e
dos correspondentes instrumentos para fazê-los implementar, foi fácil para parte do
aparato estatal converter-se à pilhagem da sociedade” (2001: 150). Não estamos diante
de um simples desvio da norma legal. Em tempos de crise e agudização da ruptura do
tecido social, o que se avizinha é a privatização violenta do imposto e da prestação de
serviços: “se o pagamento de propina ainda evoca certo ar de arbítrio e liberalidade, o
pagamento de proteção está sempre vinculado a uma coerção factual. Se no caso das
propinas a situação ainda é dominada pelos compradores (de serviços, mercadorias,
opções de investimentos), isso não é mais o que se verifica no caso do pagamento de
proteção. Aqui cabe ao vendedor, que pode ser também um chantagista como outro
21 Cf. Franz Schandl, “Pilhagem social: Mosaico de uma desintegração feito com pedras desordenadas”
Sinal de Menos #1, 2009. (Original em: Krisis 24, 2001).
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qualquer, estipular os termos”. Desse modo, continua Schandl, “no lugar do monopólio
fiscal temos polos fiscais, no lugar do monopólio da violência, polos de violência” (2001:
154).
Na Baixada Fluminense e em alguns bairros da zona oeste, os bandos armados,
originados a partir dos grupos de extermínio dos anos 1970-80, operam diretamente.
Em alguns casos, formam grupos políticos convencionais.22 No município do Rio de
Janeiro, especialmente nos bairros com forte presença de classes médias, o aparato
policial tornou-se um acintoso mediador da “economia do crime” e da informalidade.
Essa relação é antiga. Esquadrinhar o território à procura de fontes de lucro por meio de
extorsões, propinas e associação com atividades ilegais é há muito a principal ocupação
do aparato de “segurança” estatal. Especula-se que mesmo a localização das delegacias
tenha relação direta com atividades ilegais.23 Ao contrário dos grupos de extermínio, as
milícias não estão “a serviço” de interesses econômicos: expulsando as facções do tráfico
ou restringindo sua atuação, elas se escusam da função mediadora e buscam o controle
direto das atividades ilegais e do próprio território. Como agem de maneira mais
discreta que o tráfico, sem ostentação de armas, conseguem manter um controle
eficiente sobre favelas e bairros periféricos, nos quais nada que entre em conflito com os
interesses mafiosos consegue se desenvolver.
Na recente ocupação da favela da Rocinha, no fim de 2011, a euforia inicial em
torno da “guerra contra o tráfico” deu lugar a muitas dúvidas, em razão da quantidade
de denúncias contra policiais, mas igualmente pela assistência precária dada às favelas
ocupadas e, sobretudo, pela repercussão negativa dos crimes ligados às milícias.
Durante a operação da Rocinha, houve uma tentativa de resposta por parte do governo,
que, ao contrário das ações anteriores, efetuou mais prisões e apreensões e inibiu
saques, proibindo que policiais subissem o morro com malas ou mochilas. Era o
reconhecimento implícito de que, desde o início da “pacificação”, o crime parece apenas
ter mudado de forma e de lugar.
22 Em seu livro Dos Barões ao Extermínio. Uma história da violência na Baixada Fluminense (APPH-
Clio, 2003), José Cláudio Alves descreve como se deu a ascensão de políticos ligados aos grupos de
extermínio na região da Baixada Fluminense.
23 “Num estudo recente, a Secretaria de Segurança descobriu que a lógica centenária da divisão de
delegacias era determinada pela divisão dos territórios dos bicheiros. Isso porque os delegados tratavam
de estabelecer por meios próprios sua área de influência para garantir o domínio da corrupção num
determinado espaço. Com o tempo, a ligação com o jogo do bicho abriu caminho para o tráfico de
drogas...”. Veja, 29 de março de 2000.
98
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almejados.24
Como vimos, um dos objetivos perseguidos pelos últimos governos tem sido a
construção da imagem do Rio como uma cidade novamente “atraente”, sem conflitos e
conectada aos padrões internacionais de consumo. Além disso, a cidade deveria integrar
da forma mais harmoniosa possível as populações marginalizadas. Entretanto, o
conjunto de transformações sócioespaciais em curso não indica a existência de projetos
de inclusão para as maiorias empobrecidas. Ao contrário, o “efeito olímpico” se traduz
em um tipo de crescimento concentrador de riqueza. Em vez de políticas abrangentes,
que podem ser apenas simuladas, como mostra o maior programa habitacional do
governo federal, há as operações de salvamento dos “parceiros privados” e o
fortalecimento das tendências especulativas e segregadoras do novo padrão urbanístico.
A modificação permanente do espaço em função do lucro contribui para a
adaptação da cidade e do espírito de seus habitantes ao movimento sempre idêntico da
valorização econômica, criando todo um modo de vida condicionado pela necessidade
de mudanças incessantes. No início da década de 1980, Henri Lefebvre observou que os
processos de homogeneização e de fragmentação atuam simultaneamente na
conformação da vida cotidiana moderna. Esses processos contraditórios derivam da
racionalidade burocrática que ajudou a construir as metrópoles atuais e das
equivalências e estratificações ligadas ao “mundo da mercadoria”. 25 A modalidade de
intervenção estatal que se verifica em todo o mundo está voltada para a construção de
relações atomizadas, concentradas na fruição de bens e serviços que se impõe
maciçamente através dos mecanismos de “consumo dirigido”. Nas grandes cidades do
capitalismo globalizado, políticas que impõe um ambiente econômico homogêneo e
eliminam direitos, espaços de convivência e alternativas de sobrevivência são a regra, e
24 Para citarmos apenas um exemplo, um estudo do Ipea (Daniel Cerqueira, “Mortes violentas não
esclarecidas e impunidade no Rio de Janeiro”, Textos para Discussão Ipea, n. 1697, jan 2012) aponta
distorções nas estatísticas de homicídios do Rio de Janeiro relativas ao ano de 2009. De acordo com a
pesquisa, que emprega termos como “omissão” e “escamoteamento”, a redução do número de
homicídios anunciada pelo governo estadual como uma conquista de sua política de segurança coincide
com o aumento dos óbitos de causa indeterminada.
25 Critique de la vie quotidienne III: De la modernité au modernisme (Pour une métaphilosophie du
quotidien). 1981, L’Arche Editeur. Paris. Note-se que, desde os anos 60, em sua sociologia crítica,
Lefebvre nos fala dos segmentos privilegiados da moderna sociedade de consumo como os novos
“olímpicos”. O termo refere-se ao modo como as elites se colocam acima das contradições do cotidiano
vivido pela maioria dos habitantes “comuns”.
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27 Veja-se, por exemplo, como na disputa com o Rio para acolher a imprensa durante a Copa de 2014 o
Governo de SP, derrotado, economizou algo em torno de 100 milhões de reais. “Nos bastidores, SP
festeja derrota para RJ por centro de mídia”. Folha online, 28/05/2011.
28 Apenas dois anos antes dos jogos, o governo federal havia decretado o “estado de calamidade pública”
nos hospitais municipais, promovendo uma intervenção para atenuar a crise da saúde no Rio.
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29 Luciana Corrêa Lago, “Desigualdade e segregação na metrópole. O Rio de Janeiro em tempo de crise”.
Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2000.
30 A valorização imobiliária que as UPPs levam para as favelas “pacificadas” propicia a uma “pequena-
burguesia” local benefícios análogos aos que ocorrem para as classes médias dos bairros vizinhos. Para
além da diminuição dos conflitos e da letalidade, esta parece ser uma importante base de apoio
ideológico das políticas atuais nas favelas. Com a insegurança geral, desaparece a capacidade de
organização coletiva autônoma que chegou a se desenvolver em décadas anteriores. Mesmo nas favelas,
se verifica aquela predominância das soluções individuais e das ideologias “ilusórias e problemáticas” de
classe média hegemonizadas pela lógica do capital, as quais Lefebvre aludia em sua crítica da vida
cotidiana (Lefebvre, 1981: 156).
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32 Forrest Hylton, “Medellín: a paz dos pacificadores”, Margem Esquerda, n. 11, 2008.
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33 Como relata a Folha, em 2007: “grupos de policiais e ex-policiais controlam favelas vizinhas a praças
esportivas e não permitem crimes nas imediações”. “Milícias expulsam tráfico e dominam arredores do
PAN”, Folha de São Paulo, 22/01/2007. Na mesma matéria, podemos ler que “a presença das milícias
em favelas se intensificou no ano passado, quando o esquema de segurança do Pan-Americano já estava
todo elaborado”.
34 “Cidade do Rio ganha 44 ex-favelas”. O Globo, Rio. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/cidade-
35 Jacques Ellul, in: Civilizações: Entrevistas do Le Monde. São Paulo: Ática, 1989.
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Daniel Cunha
Fumaça descendo das chaminés, formando uma neblina negra, com flocos de fuligem
grandes como os maiores flocos de neve – de luto, poderíamos imaginar, pela morte do
sol.1
Esta é uma descrição da Londres vitoriana por Charles Dickens, numa obra de
1853. O preto fúnebre da neblina provém da queima do carvão, o primeiro combustível
da máquina capitalista então incipiente. O efeito criado na cidade pelas emanações
também foi registrado por Monet (figura 1). Aqui procuraremos mostrar como a
dinâmica do capitalismo implica um eterno retorno às condições do início da Revolução
Industrial, em completa contradição com os requisitos ecológico-materiais do século
XXI. Se a história se repete como farsa, esta farsa pode ser o fim da história. Também
tentaremos pincelar alguns caminhos de saída.
Fig. 1: Claude Monet, Le Parlement, Effet du brouillard, óleo sobre tela (1903).
1 Tradução minha do original: “Smoke lowering down from chimney-pots, making a soft black drizzle,
with flakes of soot in it as big as full-grown snow-flakes – gone into mourning, one might imagine, for
the death of the sun”. DICKENS, C. (1853/2001) Bleak house, London: Wordsworth Classics, p. 3.
109
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***
Marx caracterizou a forma das relações sociais determinada pela valorização do
capital como um sujeito automático. Nesse mundo fetichizado, tudo tende a ser
determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário como fim em si mesmo. A
produção social não é objeto de discussão consciente entre os envolvidos, mas mediada
pela mercadoria, este objeto trivial, mas rico em sutilezas metafísicas. A forma-
mercadoria contém em seu conceito as determinações fundamentais da catástrofe
ecológica: a abstração do conteúdo (da matéria) e o impulso à expansão infinita2. Disso
decorre um metabolismo social fraturado em relação à natureza3, expresso na lógica
férrea do empreendimento capitalista: maximização dos lucros, não importa como.
Para a sua expansão, o capital necessita de dois tipos de energia: a energia do
trabalho humano (que cria valor) e a energia termodinâmica, física. Na Inglaterra de
Dickens, a acumulação se dava à base da mais-valia absoluta – jornadas de trabalho
estendidas e baixos salários – e da energia barata e abundante fornecida pelo carvão. No
entanto, o determinante não foi o preço do carvão em si, mas o fato de que o carvão, ao
substituir a energia hidráulica confinada às vizinhanças de quedas d’água, permitiu ao
capital deslocar-se para os centros urbanos, onde havia grande oferta de mão-de-obra
barata (exército industrial de reserva)4. Pode-se dizer que o crescimento explosivo do
capitalismo nascente não seria possível sem esta fonte energética. O carvão, além de
permitir que o capital fosse ao encontro da força de trabalho barata e disciplinada, é um
combustível fóssil, que contém milhões de anos de energia solar acumulada em sua
estrutura química, e materializou a “cultura universal da combustão”.5
De fato, a evolução do capitalismo pode ser representada pela evolução das
emissões de carbono fóssil. No gráfico da figura 1, que apresenta as emissões de carbono
oriundas de combustíveis fósseis, é possível visualizar o crescimento exponencial das
forças produtivas capitalistas, começando pela Revolução Industrial movida a carvão,
passando pela estagnação dos anos 20 e a crise de 29; o boom do pós-guerra e a
2 Cf. CUNHA, D. (2012), “O Antropoceno como alienação”, Sinal de Menos 8: 29-50. Disponível em
www.sinaldemenos.org (acessado em dezembro/2012).
3 Sobre a teoria da fissura do metabolismo com a natureza em Marx, ver FOSTER, J. B. (2000/2005) A
***
8 Cf. Raymond Pierrehumbert em ARCHER, D. & PIERREHUMBERT, R. (orgs.) (2011) The warming
papers: the scientific foundation for the climate change forecast, Oxford: Wiley-Blackwell, p. 7. O texto
mais conhecido e difundido de Fourier sobre o tema é de 1827: FOURIER, J. B-. F. (1827) “Mémoire sur
les températures du globe terrestre et des espaces planétaires”, Mémoires de l’Académie Royale des
Sciences 7: 569-604. Disponível em http://www.academie-
sciences.fr/activite/archive/dossiers/Fourier/Fourier_pdf/Mem1827_p569_604.pdf (acesso em
dezembro/2012). Os primeiros que apontaram claramente as emissões de carbono fóssil como
potencialmente perigosas, no entanto, foram Bolin e Eriksson, mais de um século mais tarde, a partir da
consideração mais aprofundada do ciclo do carbono: BOLIN, B. & ERIKSSON, E. (1958) “Distribution of
matter in the sea and atmosphere: changes in the carbon dioxide content of the atmosphere and sea due
to fossil fuel combustion”, In: ARCHER, D. & PIERREHUMBER, R. The warming papers, op. cit., p.
285-297.
9 Para uma excelente introdução ao ciclo do carbono, ver ARCHER, D. (2010) The global carbon cycle
Princeton: Princeton University Press. Para uma boa ilustração esquemática, ver o relatório do IPCC:
http://www.ipcc.ch/publications_and_data/ar4/wg1/en/ch7s7-3.html (acessado em dezembro/2012).
112
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10 Cf. ARCHER, D (2010) The global carbon cycle, op. cit. James Lovelock e outros sustentam que seres
vivos (bactérias) também participam do processo de regulação, intensificando a reatividade do carbono
no solo. Isto não mudaria o entendimento da dinâmica do processo, já que ela está ancorada em dados
paleoclimáticos. Ver LOVELOCK, J. E. (1982) “The regulation of carbon dioxide and climate: Gaia or
geochemistry”, Planetary Space Science 30 (8): 795-802. Disponível em www.jameslovelock.org
(acessado em novembro/2012).
11 Cf. PIERREHUMBERT, R. T. (2010), Principles of planetary science, Cambridge: Cambridge University
Press, p. 58
113
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2, as emissões antropogênicas atuais são de 9,5 gigatoneladas por ano, ou seja, um fluxo
quase cem vezes maior. Ou, isto corresponde a quase 10% do maior fluxo natural do
ciclo do carbono, a fixação líquida de carbono global por fotossíntese. Tudo indica que
as emissões antropogênicas de carbono excedem em muito a capacidade de regulação
natural da temperatura. O resultado desta massiva emissão antropogênica de carbono é
o contínuo aumento da concentração de carbono atmosférico, como pode ser visto na
curva de Keeling (figura 3).
período variou entre 0,3 e 1,7 gigatoneladas de carbono por ano.13 No ano de 2011, como
já destacado, as emissões de carbono fóssil atingiram 9,5 gigatoneladas, uma taxa mais
de cinco vezes maior do que a taxa máxima do PETM. De fato, se compararmos as
emissões acumuladas do PETM com as emissões de carbono fóssil desde a Revolução
Industrial, vê-se que as emissões antropogênicas apresentam um comportamento mais
explosivo (ver figura 4). Além disso, a quantidade total de carbono emitido no PETM
equivale às reservas de combustíveis fósseis atuais.14
13 Cf. CUI, Y.; CUMP, L. R.; RIDGWELL, A. J.; CHARLES, A. J.; JUNIUM, C. K.; DIFENDORF, A. F.;
FREEMAN, K. H.; URBAN, N. M. e HARDING, I. C. (2011) “Slow release of fossil carbon during the
Paleocene-Eocene Thermal Maximum”, Nature Geoscience 4 (July 2011): 481-485. Para uma exposição
em linguagem mais popular, ver KUMP, L. R. (2011) “The last great global warming”, Scientific
American July 2011: 56-61.
14 Cf. CUI ET AL (2011), op. cit.
15 Neste gráfico, considerou-se que as emissões do início do PETM mantiveram uma taxa constante de 0,3
GTon C/ano, cf. figura 4 (a) em CUI et al (2011), op. cit. Dados das emissões antropogênicas: CDIAC,
http://cdiac.ornl.gov/ftp/ndp030/global.1751_2009.ems (acessado em dezembro/2012).
115
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***
A resposta do capital ao problema do aquecimento global foi o Protocolo de
Kyoto, que entrou em vigor em 2005. O seu absoluto fracasso é facilmente constatado
em um gráfico histórico de emissões (figura 2). Não se poderia esperar algo diferente de
uma bolsa de valores criada para “flexibilizar” as reduções de emissões de carbono. O
Protocolo de Kyoto representou a acumulação primitiva da atmosfera, a mercantilização
do carbono, a privatização de um bem comum. Suas metas de redução para os países
ricos são ridiculamente baixas (cerca de 5% em relação às emissões em 1990), caso
contrário representariam custo excessivo para o capital (razão de qualquer forma
alegada pelos EUA para não aderir ao Protocolo), e para o clima, são inócuas. O
protocolo oferece um mecanismo liberalizante que permite que os grandes poluidores
continuem emitindo carbono caso isto lhes seja conveniente, bastando para isso
comprar “créditos” gerados pelos offsets de outros emissores. De outra parte, o chamado
16 Modelos de tipo Budyko-Sellers, que preveem transições bruscas entre estados glaciais e livres de gelo,
baseiam-se neste efeito. Ver BUDYKO, M. I. (1969) “The effect of solar radiation variations on the
climate of the Earth”, Tellus 21: 5, p. 611-619; SELLERS, W. D. (1969) “A global climatic model based on
the energy balance of the Earth-atmosphere system”, Journal of Applied Meteorology 8, June 1969, p.
392-400.
17 Cf. SOLOMON, S.; PLATTNER, G. K.; KNUTTI, R. e FRIEDLIENGSTEIN, P (2009), “Irreversible
climate change due to carbon dioxide emissions”, Proceedings of the National Academy of Sciences, 106
(6), p. 1704-1709.
18 A maior parte dos cientistas atualmente não considera esta hipótese. Porém, James Hansen afirma que
a “Síndrome de Vênus” seria inevitável caso todas as reservas de combustíveis fósseis não-convencionais
sejam queimadas. Cf. HANSEN, James (2009) Storms of my grandchildren, New York: Bloomsbury,
cap. 10.
116
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19 Por exemplo, um projeto de uma usina termelétrica cujo baseline seria o de utilizar carvão, mas use gás
natural, que emite menos carbono (mas emite!), receberá “créditos de carbono”.
20 É conhecido o caso da Rhodia (inclusive no Brasil), que lucra bilhões com o recebimento de créditos
pelo abatimento de óxido nitroso, um potente gás estufa e subproduto da produção de ácido adípico.
Ocorre que a empresa lucra 35 vezes mais com os créditos de carbono do que com a produção em si, e a
instalação de um filtro simples custaria muito menos do que os valores dos créditos. Cf. GILBERTSON,
T. & REYES (2009), O. Carbon trading: how it works and why it fails, Uppsala: Dag Hammarskjold
Foundation, p. 56. Disponível em http://www.carbontradewatch.org/publications/carbon-trading-how-
it-works-and-why-it-fails.html (acesso em dezembro/2012).
21 REUTERS (2012) Global carbon market value hits record $176 billion,
http://www.reuters.com/article/2012/05/30/ozatp-world-bank-carbon-idAFJOE84T04R20120530
(acessado em dezembro/2012).
117
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petróleo22. A figura 6 ilustra o comércio internacional de carbono (dados até 2008). Este
dado é obtido quando se faz o inventário de emissões de carbono baseados no consumo,
e não no território, como se faz tradicionalmente. Houve uma grande exportação de
emissões de carbono dos países do Anexo B do Protocolo de Kyoto (os países ricos e do
antigo bloco socialista, que em sua maioria têm metas de redução de emissões) para os
demais países. Entre os importadores de emissões, destaca-se a China23. A figura 7
mostra a evolução da matriz energética chinesa, com uma forte inflexão no consumo de
carvão. Por fim, a figura 8 mostra a evolução do preço do petróleo. O início de todos os
movimentos aqui destacados coincidem em 2002, o ano em que a China ingressou na
Organização Mundial do Comércio.
22 O carvão emite entre 95-103 kg CO2/MMBtu, enquanto o gás convencional emite entre 54,7-52,9 kg
CO2/MMBtu e os derivados de petróleo convencionais emitem no intervalo de 59,6-102,1 kg
CO2/MMBtu. Cf. US ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION,
http://www.eia.gov/oiaf/1605/coefficients.html (acessado em dezembro/2012).
23 Os maiores fluxos líquidos globais de carbono embutido saem da China em direção aos Estados Unidos,
à Europa e ao Japão. Cf. DAVIS S. J. & CALDEIRA K. (2009) “Consumption-based accounting of CO2
emissions”, Proceedings of the National Academy of Sciences Early Edition.
Disponível em http://www.pnas.org/content/early/2010/02/23/0906974107.full.pdf (acessado em
dezembro/2012).
118
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24 Entende-se aqui por “países ricos” aqueles inclusos no Anexo B do Protocolo de Kyoto, que incluem a
Europa Ocidental, os Estados Unidos, o Japão e países do antigo bloco soviético do Leste Europeu, e
“países pobres” aqueles que não constam no Anexo B e não possuem metas de emissão. Fonte: conjunto
de dados do artigo PETERS, G. P.; MINX, J. C.; WEBER, C. L. & EDENHOFFER, O. (2011) “Growth in
emission transfers via international trade from 1990 to 2008, Proceedings of the National Academy of
Sciences, Early Edition, http://www.pnas.org/content/early/2011/04/19/1006388108.full.pdf . Os
dados podem ser acessados diretamente em
http://www.pnas.org/content/suppl/2011/04/20/1006388108.DCSupplemental/sd01.xls (acessados
em dezembro/2012). Por conveniência gráfica, o sinal de uma das curvas aqui foi invertido.
25 Fonte dos dados: BP Statistical Review of World Energy June 2012,
http://www.bp.com/statisticalreview (acessado em dezembro/2012).
119
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O que estes dados implicam é que a “alocação eficiente dos recursos” capitalista
induziu o massivo deslocamento da produção para a China, a fim de refestelar-se com a
mão-de-obra barata (mais-valia absoluta) e energia barata – e suja, o carvão27. Na crise
da valorização disparada pela revolução microeletrônica nos países do centro, este foi
um dos resultados do sujeito automático capitalista: justamente na era do alerta
climático global, o capital tomou o movimento que resulta em emitir mais carbono28,
porque era o que melhor correspondia ao seu movimento cego de expansão infinita.
Assim, à extração de mais-valia absoluta na mão-de-obra correspondeu a exploração
absoluta da natureza: após muito tempo, a intensidade de carbono29 aumentou, como
mostra a figura 9. Este movimento pode ser generalizado: tão logo a China deixe de ser
um paraíso de mais-valia absoluta, o capital se moverá para outra localidade, levando a
sua tecnologia fóssil consigo – Índia, Indonésia e Vietnam parecem ser os próximos
refúgio no mercado financeiro (capital fictício), para o qual Kyoto atua como linha auxiliar. Sobre capital
fictício e crise financeira, ver a entrevista com N. Trenkle e E. Lohoff nesta edição da Sinal de Menos.
29 Entendida aqui como emissões de carbono por unidade de energia produzida.
120
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***
As corporações que extraem combustíveis fósseis estão entre as mais lucrativas
do mundo. O lucro anual da Exxon Mobil chegou a mais de 40 bilhões de dólares em
2011. Porém, o ponto crucial não está no lucro propriamente dito destas corporações,
mas na bolha do carbono. O fato é que as reservas de combustíveis registradas pelas
companhias ultrapassam em cinco vezes o que é considerado seguro para a estabilidade
climática, considerando a estabilização do carbono atmosférico em 450 ppm. E grande
parte destas companhias tem ações listadas em bolsa, com precificação destas
30 Esta generalização teórica é demonstrada por Andreas Malm. Trata-se, de fato, de uma curva de
Kuznets invertida. O que a teoria de Kuznets postula é que, após um período inicial de prevalência de
miséria e aumento da poluição, o desenvolvimento do capital geraria aumento de renda e de eficiência
de uso dos recursos (no caso específico, menores emissões carbono por unidade de energia produzida).
A sua grande limitação é que ela se limita às fronteiras nacionais. Malm mostra que o capital se
movimenta de forma a buscar as regiões de menor renda (mais extração de mais-valia), que são as de
menor eficiência (mais emissões de carbono): “O capital que se movimenta globalmente relocalizará
fábricas para onde a força de trabalho seja barata e disciplinada – onde se espera a maior taxa de mais-
valia – através de novos ciclos de consumo massivo de energia fóssil”. Ver MALM, A. (2012) “China as
chimney of the world: the fossil capital hypothesis”, op. cit.
31 Fonte dos dados: BP Statistical Review of World Energy June 2012, op. cit.
121
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reservas.32 Ou seja, estamos diante de uma encruzilhada entre uma crise climática e
uma grande crise de desvalorização das corporações dos combustíveis fósseis, capaz de
apequenar a crise da bolha imobiliária de 2008. Não há saída imanente no capitalismo.
Isto explica as ferrenhas (e caras) campanhas negacionistas: as corporações dos
combustíveis fósseis estão alavancadas pela extração futura. Como diz Naomi Klein:
os deniers não decidiram que a mudança climática é uma conspiração de esquerda ao
descobrir algum conluio socialista. Eles chegaram a essa conclusão considerando
seriamente o que seria necessário para reduzir as emissões globais tão drástica e
rapidamente quanto a ciência exige (...). Eles não estão errados33.
***
A Agência Internacional para a Energia (IEA) traçou três projeções de cenários
para as futuras emissões de carbono34: um com a manutenção das políticas atuais, outro
com a implementação de políticas já planejadas e um terceiro projetando como as
emissões deveriam ser reduzidas para que se mantenha o teor de carbono atmosférico
abaixo do limite de 450 ppm. Na figura 10 (a seguir), mostramos graficamente as três
projeções, juntamente com a proposta de James Hansen para a estabilização em 350
ppm.
As projeções da IEA, tanto com base nas “políticas atuais” como nas “novas
políticas” mostram que tendência do capital é aquela que leva diretamente à catástrofe
ecológica: aumento contínuo das emissões de carbono, em franca contradição com o
conhecimento científico atual do sistema climático terrestre, no que se refere a um
planeta apropriado ao progresso humano. A própria agência reconhece que as “emissões
32 Cf. CARBON TRACKER INITIATIVE (2011) Unburnable carbon – Are the world’s financial markets
carrying a carbon bubble? , disponível em www.carbontracker.org (acessado em dezembro/2012).
33 KLEIN, N. (2011) “Capitalism vs. the climate” , The nation, November 28th 2011, disponível em
122
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35 A proposta de James Hansen consiste na redução das emissões de carbono à taxa de 6% ao ano a partir
de 2013, e pressupõe o concomitante sequestro de 100 GTon de carbono através de melhores práticas de
tratamento do solo e reflorestamento. O atraso até 2020 acarretaria uma taxa de 15% ao ano. As
projeções da IEA foram interpoladas linearmente para a construção do gráfico. Os cenários estão
descritos em INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (2012) World energy outlook 2012, op. cit. e
HANSEN, J. ET AL (2012) Scientific case for avoiding dangerous climate change to protect young
people and nature. Disponível em http://pubs.giss.nasa.gov/abs/ha08510t.html (acesso em
dezembro/2012).
36 MEINSHAUSEN, M.; MEINSHAUSEN, N.; HARE, W.; RAPER, S. C. B.; FRIELER, K.; KNUTTI, R.;
FRAME, D. J. & ALLEN, R. (2009) “Greenhouse-gas emission targets for limiting global warming to
2oC”, Nature 458 (April 2009): 1158-1163.
123
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A própria IEA reconhece que o cenário 450 não é “uma projeção baseada nas
tendências do passado, ele deliberadamente seleciona um caminho energético
plausível”. Mais: afirma que, caso não se mude os rumos até 2017, todas as emissões
admissíveis estarão já contidas (locked-in) na infraestrutura energética construída até
então38. Como bons tecnocratas, eles se recusam a enunciar que isto não se realizará se
depender apenas das forças do mercado, mas apenas com ação (anti)política. O que se
vê na realidade é que fortes investimentos estão sendo feitos para uma caçada aos
37 Eficiência aqui é medida como o número de libras de água que pode ser elevado à altura de um pé
utilizando um bushel (84 libras) de carvão. Os dados são de JEVONS, S. (1865) The coal question: an
inquiry concerning the progress of the nation, and the probable exhaustion of our coal mines, capítulos
VII e XII. http://www.econlib.org/library/YPDBooks/Jevons/jvnCQ7.html (acessado em
dezembro/2012).
38 IEA (2012) World energy outlook 2012, op. cit., p. 25 e 34.
124
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39 O gás natural convencional emite menos carbono do que o carvão e o petróleo, como destacado na nota
22. O fracking, porém, produz emissões fugitivas de metano, de forma que suas emissões são
comparáveis às do carvão. Cf. HOWARTH, R W.; SANTORO R. & INGRAFFEA, A. (2011) “Methane and
the greenhouse-gas footprint of natural gas from shale formations”, Climatic Change Letters 106 (4):
679-690.
40 Ver LUKACS, M. (2012) “World’s biggest geoengineering experiment ‘violates’ UN rules”, The
***
42 BROVKIN, V.; PETOUKHOV, V.; CLAUSSEN, M.; BAUER, E.; ARCHER, D. & JAEGER, C. (2009)
“Geoengineering climate by stratospheric sulfur injections: Earth system vulnerability to technological
failure”, Climate Change 92: 243-259.
43 Para uma crítica do modelo de William Nordhaus, que usa a taxa de juros para descontar os danos
futuros do aquecimento global, ver meu texto CUNHA, D. (2012) “O Antropoceno como alienação”, op.
cit.
44 SCHWARTZMAN, P. D. & SCHWARTZMAN, D. W. (2011) A solar transition is possible, London:
áreas protegidas, a energia disponível seria cerca de 35 vezes maior do que a projeção de demanda
energética para 2.030. Mas a capacidade exigida seria menor em relação às fontes fósseis devido à maior
eficiência das fontes renováveis. Cf. JACOBSON, M. Z. & DELUCCHI, M. A. “A path to sustainable
energy by 2030”, Scientific American, Nov 2009: 58-65.
46 Ou seja, quantas unidades de energia são produzidas por unidade de energia utilizada na construção da
infraestrutura renovável.
126
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47 Evidentemente, o crescimento exponencial da infraestrutura solar (curvas preta, laranja e azul na figura
12) pode e deve ser interrompido quando as necessidades sociais estiverem satisfeitas. O modelo se
dedica a demonstrar a viabilidade de uma transição solar “abundante”, ou seja, que pode fornecer tanta
ou mais energia do que uma base energética fóssil. As curvas vermelha e verde representam transições
solares inviáveis, pois após o abandono da energia fóssil apresentam decaimento ou mantém-se com
capacidade baixa.
48 Cf. SCHWARTZMAN & SCHARTZMAN (2011), op. cit. e JACOBSON, M. Z. & DELUCCHI, M. A. “A
de força do capital. Portanto, estas curvas de transição solar são referências utópico-
materiais, que só podem se realizar com um movimento social que force a mudança do
rumo da história. Não seria nada fácil dispor socialmente sobre o uso do petróleo,
mesmo que seja de uma pequena fração de 1% – o capital certamente resistirá.
***
Em muitos países “em desenvolvimento” de forma geral, e em particular no caso
do Brasil, a maior parte das emissões de carbono provém de mudanças de uso do solo
(desmatamento), e não da combustão de combustíveis fósseis.49 Além disso, boa parte
da matriz energética nacional é composta de energia hidráulica e biocombustíveis, que,
em sentido estrito, são formas de energia solares (o sol é a fonte energética que sustenta
o ciclo hidrológico e a fotossíntese). Seria um erro, porém, considerar que a transição
solar – considerada aqui como transição para uma infraestrutura fotovoltaica e eólica –
é supérflua nestes países, por vários motivos. Os dados indicam que as emissões por
desmatamento apresentam uma tendência decrescente, enquanto as emissões por
queima de combustíveis fósseis aumentam50. As recentes políticas do governo de
incentivo à venda de automóveis e subsídio ao preço da gasolina devem intensificar esta
tendência.51 Ainda, há a perspectiva de exploração de combustíveis fósseis não-
convencionais – além do óleo de águas profundas (pré-sal), já se anuncia a exploração
de gás de xisto (fracking)52. Ainda que não pareça provável que o Brasil se assemelhe à
China em termos de emissões, há pressões para o aumento de emissões fósseis que
podem nos levar à mesma direção que já tomaram China e Índia, por exemplo.
De outra parte, o potencial de energia hidráulica no Brasil, apesar de segundo os
dados oficiais ainda ser cerca de 70% inexplorado 53, já se encontra saturado, a não ser
aumento de veículos leves (automóveis). Cf. MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA & EMPRESA DE
PESQUISA ENERGÉTICA (2011) Plano decenal de expansão de energia 2020, p. 24-25.
52 Ver IPT, “Gás de folhelho: estudo de pré-viabilidade busca analisar potencialidade e impacto do insumo
23-28.
128
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que se faça completa abstração das suas “externalidades”. A maior parte do potencial
inexplorado se encontra na região amazônica.54 Portanto, apenas tecnocratas fanáticos
do “desenvolvimento” a qualquer preço podem pensar seriamente na utilização do
potencial remanescente – mas segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia, Belo
Monte é apenas o começo de uma série de hidrelétricas planejadas para a região da
floresta amazônica.55 Soma-se a isso o fato de que, apesar de serem “menos sujas” do
que termelétricas a carvão, as barragens também emitem gases estufa, devido à
decomposição dos resíduos de biomassa, inclusive metano (gás estufa mais potente do
que o dióxido de carbono), pela decomposição anaeróbia no fundo da barragem.56 Este
efeito é intensificado justamente em áreas de floresta tropical, onde há grande
densidade de biomassa. A barragem de Tucuruí emitiu mais gases estufa do que as
emissões de combustíveis fósseis da cidade de São Paulo57. O caso dos biocombustíveis
também é problemático, pois, com o seu cultivo intensivo, utiliza emissões fósseis
embutidas em fertilizantes e pesticidas sintéticos, transporte, etc. A utilização de área
agrícola em época de crise de produção de alimentos e expansão da fronteira agrícola na
floresta tropical é igualmente questionável, podendo intensificar o desmatamento58 –
sem esquecer o infame trabalho escravo nos canaviais. De forma que, mantidas as
tendências atuais de demanda e produção energética no país, estaremos diante da
alternativa de mais barragens na Amazônia ou termelétricas movidas a combustível
fóssil ou mais área agrícola destinada a “alimentar” automóveis .
Há uma distinção qualitativa das emissões de carbono fóssil: são emissões que
extraem carbono confinado na crosta terrestre para a atmosfera, enquanto o uma
floresta desmatada pode voltar a armazenar carbono com a sua regeneração em uma
entre Philip Fearnside e Luiz Penguelli Rosa, que não analisaremos aqui.
57 Cf. FEARNSIDE, P. M. (2002) “Greenhouse gas emissions from a hydroelectric reservoir (Brazil’s
Tucuruí dam) and the energy policy implications”, Water, Air and Soil Pollution 133: 69-96.
58 Estudo sobre a substituição da gasolina por biodiesel nos EUA indicou que caso seja computado o efeito
da mudança de uso da terra (conversão de florestas e campos em áreas de cultivo), as emissões de gases
estufa do biodiesel seriam maiores. Cf. SEARCHINGER, T.; HEIMLICH, R.; HOUGHTON, R. A.;
DONG, F; ELOBEID, A.; FABIOSA, J.; TOKGOZ, S.; HAYES, D. & YU, T-H. (2008) “Use of U. S.
croplands for biofuels increases greenhouse gases through emissions from land-use change”, Science
319: 1238-1240.
129
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escala de tempo muito mais rápida do que a necessária para que os compartimentos
ambientais globais (oceanos, crosta terrestre via intemperismo) absorvam o carbono
fóssil lançado à atmosfera. A preservação da floresta amazônica, de toda forma,
prescinde da ocorrência do aquecimento global, justificando-se independentemente dele
pela preservação da biodiversidade, regulação climática, direitos de povos indígenas,
questões éticas, estéticas, etc. Não custa lembrar que a atmosfera funciona como um
“tanque de mistura rápida”, ou seja, a concentração de carbono atmosférico é para todos
os efeitos práticos homogênea globalmente, de forma que o enfrentamento do
aquecimento global é inclusive geofisicamente uma questão globalizada,
independentemente da origem territorial das emissões – a questão deve ser enfrentada
transnacionalmente, mesmo quando se enfrenta questões locais, porque os efeitos da
mudança climática tampouco reconhecerão fronteiras nacionais. De fato, uma das
possíveis consequências do aquecimento global é a conversão da floresta amazônica em
savana, já que parece haver estados alternativos entre ecossistemas de tipo floresta
tropical e savana em função da variação da pluviosidade.59
***
Neste ponto deve estar claro que é um equívoco afirmar que o capitalismo é
“materialista”, como faz a ideologia ecologista vulgar. O capital, em sua expansão cega,
desconsidera completamente os ciclos materiais do planeta. Seu desenvolvimento
irracional é capaz de levar ao aumento das emissões de carbono em plena emergência
climática global – algo semelhante a usar um lança-chamas em um incêndio a fim de
“otimizar a alocação dos recursos”. Das mazelas materiais que estão a caminho –
inundação de cidades costeiras, extinção em massa de espécies, aumento da frequência
de ondas de calor e tempestades, migrações em massa, colapso da agricultura,
proliferação de epidemias – o capital faz total abstração. O que se tem, na verdade, é um
sistema fetichista, no qual as decisões sociais fogem ao controle dos envolvidos. Como
diz Moishe Postone:
O sonho implicado pela forma capital é o da total ausência de limites, uma fantasia de
liberdade como a completa liberação da matéria, da natureza. Este “sonho do capital”
59 Cf. HIROTA, M.; HOLMGREN, M.; VAN NES, E.; SCHEFFER, M. (2011) “Global resilience of tropical
forest and savanna to critical transitions”, Science 334: 232-235.
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está se tornando o pesadelo daquilo que ele se esforça por libertar-se: o planeta e seus
habitantes.60
Não deveríamos dizer que o capitalismo é sustentado pela ganância egoísta dos
capitalistas individuais, pois o seu egoísmo é subordinado ao esforço do próprio capital
para reproduzir-se; o que precisamos é de mais, não menos, egoísmo esclarecido (...) São
as nossas preocupações ecológicas que estão ancoradas em um sentido utilitário de
sobrevivência65.
60 POSTONE, M. (1993/2003) Time, Labor, and Social Domination: a reinterpretation of Marx’s critical
theory, Cambridge: Cambridge University Press, p. 383.
61 Cf. JAPPE, A. “Crítica social ou niilismo? O ‘trabalho do negativo’: de Hegel e Leopardi até o presente”,
crisis and the culture industry thesis, In: BIRO, A. (org.), Critical ecologies: the Frankfurt School and
contemporary environmental crises, Toronto: University of Toronto Press
64 ADORNO, T. W. (1969/2003) “Sobre sujeto y objeto”, In: Adorno, T. W. Consignas, Madrid:
Amorrortu, p. 145.
65 ZIZEK, S. (2010) Living in the End Times, New York: Verso, 2010, p. 334-335.
131
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***
Se a técnica avançada está configurada pelo capital, esta forma de relações sociais
que é historicamente determinada, isto implica que ela não é unidimensional; a técnica
é dialética e pode ser reconfigurada e ressignificada. De fato, “a função mais crítica da
tecnologia moderna deve ser a de manter as portas da revolução abertas para sempre” 69
– é no poder da técnica desenvolvida a partir da queima de combustíveis fósseis que
está contido o potencial de um “comunismo solar”. Quais seriam, então, as tarefas
técnico-sociais de combate ao aquecimento global decorrentes do materialismo radical?
É fácil enunciá-las: a já mencionada transição solar; manutenção do carvão e da maior
parte do petróleo e do gás natural embaixo da terra; agroecologia, o que inclui a
66 E que já começou a surtir os seus efeitos. Em 2012, o gelo no Ártico reduziu-se à menor área já
registrada. Recentemente publicou-se artigo científico mostrando que os eventos de temperaturas
extremas (ondas de calor) já se tornaram estatisticamente mais frequentes. Cf. HANSEN, J.; SATO, M.;
RUEDY, R. (2012) “Perception of climate change”, Proceedings of the National Academy of Sciences
109 (37): 14726-14727, E2415-E2423. Disponível em http://pubs.giss.nasa.gov/abs/ha00610m.html
(acessado em novembro/2012).
67 Lembrando Benjamin: “A consciência de destruir o contínuo da história é própria das classes
revolucionárias (...) Na Revolução de Julho aconteceu ainda um incidente em que esta consciência
ganhou expressão. Chegada a noite do primeiro dia de luta, aconteceu que, em vários locais de Paris,
várias pessoas, independentemente umas das outras e ao mesmo tempo, começaram a disparar contra
os relógios das torres”. BENJAMIN, W. “Sobre o conceito da história”. In: BENJAMIN, W. (2010) O
anjo da história: obras escolhidas de Walter Benjamin, Lisboa: Assírio e Alvim.
68 Para uma crítica da utilização da taxa de juros como fator determinante em cenários climatológico-
econômicos do aquecimento global, ver CUNHA, D. (2012), “O Antropoceno como alienação” op. cit.
69 BOOKCHIN, M. (1965) “Towards a liberatory technology”, In: M. Bookchin, Post-scarcity anarchism,
Fig. 13: Claude Monet, Le Parlement, Troué de soleil dans le brouillard, óleo sobre tela (1904)
(Dezembro/2012 - Janeiro/2013)
133
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As sutilezas metafísicas do
negacionismo climático
Como a esquerda tradicional adere à ideologia negacionista
Daniel Cunha
ennemis de la science, Paris: Denoël e ORESKES, N. & CONWAY, E. (2010) Merchants of doubt, New
York: Bloomsbury. Sobre o climate gate, uma as maiores mistificações de massa já produziadas pela
indústria cultural, ver o livro de um dos cientistas envolvidos: MANN, M. E. (2012) The hockey stick and
the climate wars: dispatches from the frontlines, New York: Columbia University Press.
134
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tempo geológica, apresentou grandes mudanças. Basta pensarmos nas eras glaciais
disparadas pelos ciclos de Milankovitch ou na extinção dos dinossauros, provavelmente
causada pela queda de um meteoro que causou mudanças no sistema climático. É
cientificamente muito bem estabelecido em ecologia, porém, que a homeostase 4 é
propriedade real de ecossistemas, em todas as escalas. Se efetivamente não se pode
esperar resiliência5 infinita de ecossistemas dinâmicos, parece ser adequado descrever a
história do sistema terrestre e seus subsistemas como a sucessão de diferentes estados
homeostáticos, com transições mais ou menos catastróficas. O salto metafísico de Onça
pode ser constatado na seguinte afirmação:
Muitos eventos interpretados hoje como catástrofes climáticas são completamente
naturais e comuns, e não há justificativa para fixarmos uma determinada configuração
climática como “normal” ou “preferível”. (Onça 358, grifo nosso).
T (anomalia C)
Holoceno
o
Última era do gelo
Concentração de CO2
CO2 (ppm)
Nível do mar
Nível do mar (m)
Figura 1: anomalia de temperatura, CO2 atmosférico e nível do mar nos 400 mil
anos anteriores à Revolução Industrial (1750)7
7 Define-se como “anomalia de temperatura” o desvio da temperatura média global em relação àquela do
período de 1951 a 1980. Adaptado da página de Makiko Sato e James Hansen:
http://www.columbia.edu/~mhs119/ (acesso em novembro/2012).
8 Este tipo de comportamento, que pode apresentar multiplicidade de estados estacionários e histerese –
ou seja, a propriedade de ecossistemas de apresentar dois diferentes estados possíveis para as mesmas
variáveis de estado, sendo o estado efetivo determinado pela sua história anterior –, já foi demonstrado
em modelos e experimentalmente em ecossistemas como lagos rasos temperados. Os lagos rasos
temperados mudam subitamente de estado (de límpido para turvo ou eutrofizado e vice-versa) com a
variação da concentração de nutrientes. Há registro científico da manipulação intencional
(biomanipulação) para forçar a transição do estado turvo para o estado límpido. Também a evolução das
espécies parece seguir este comportamento dinâmico, como proposto por Niles Eldredge e Stephen Jay
Gould em sua teoria do “equilíbrio pontuado”, baseando-se no fato de que a evolução das espécies,
conforme os registros fósseis, parece ser caracterizado por longos períodos de estabilidade (homeostase)
pontuados por súbitas explosões evolutivas. Sobre mudanças catastróficas em ecossistemas, ver
SCHEFFER, M.; CARPENTER, S.; FOLEY, J. A.; FOLKE, C. & WALKER, B. (2001) “Catastrophic shifts
in ecosystems”, Nature 413: 591-596. Sobre o caso específico dos lagos rasos temperados (modelo
clássico de multiplicidade de estados estacionários) ver SCHEFFER, M.; HOSPER, S. H.; MEIJER, M-
L.; MOSS, B. & JEPPESEN, E. (1993) “Alternative equilibria in shallow lakes”, Tree 8 (8): 275-279.
Sobre biomanipulação em lagos rasos, ver MEIJER, M-L.; DE BOOIS, I.; SCHEFFER, M.; PORTIELJE,
R. & HOSPER, R. (1999) “Biomanipulation in shallow lakes in the Netherlands: an evaluation of 18 case
studies”, Hydrobiologia 408/409: 13-30. Sobre equilíbrio pontuado, ver ELDREDGE, N.; GOULD, S. J
(1972). “Punctuated equilibria: an alternative to phyletic gradualism”, In: Schopf, T. J. M. (ed.), Models
in Paleobiology. San Francisco: Freeman, Cooper and Company, pp. 82-115.
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9 A modelagem e previsão destas mudanças catastróficas é sujeita a grandes incertezas devido ao elevado
grau de não-linearidade, mas vários potenciais limiares (tipping points) são estudados, inclusive em
dados paleoclimáticos. Para uma boa revisão sobre a possibilidade de mudanças climáticas bruscas, ver
ALLEY, R. B.; MAROTZKE, J.; NORDHAUS, W. D.; OVERPECK, J. T.; PETEET, D. M.; PIELKE JR., R.
A.; PIERREHUMBERT, R. T.; RHINES, P. B.; STOCKER, T. F.; TALLEY, L. D. & WALLACE, J. M
(2003) “Abrupt climate change”, Science 299: 2005-2010.
10 “Retroação” ou “retroalimenção” (feedback) no sistema climático é o fenômeno que é disparado pelo
21: 5, p. 611-619; SELLERS, W. D. (1969) “A global climatic model based on the energy balance of the
Earth-atmosphere system”, Journal of Applied Meteorology 8, June 1969, p. 392-400. Para uma
explanação didática, ver a página Snowballearth: http://snowballearth.org/ (acesso em
novembro/2012).
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terrestre, a maior parte dos cientistas, ao menos por ora, descarta esta hipótese 12.
Entretanto, cientistas mais pessimistas, como James Hansen, consideram que a
combustão de todas as reservas de carvão e petróleo não-convencional ocasionaria uma
“síndrome de Vênus” na Terra.13 Evidentemente, um planeta sob estas condições é
absolutamente inóspito a qualquer forma de civilização humana, ou mesmo às formas
de vida que conhecemos.
Além disso, a dinâmica dos fluxos de matéria e energia do planeta implica que a
escala de tempo e o progresso temporal das mudanças climáticas sejam muito distintas
daquelas a que estão acostumadas as instituições humanas. O aquecimento global
provocado pela emissão antropogênica de carbono à atmosfera é irreversível na escala
de tempo de pelo menos mil anos, mesmo que se interrompa completamente a emissão
de gases estufa para a atmosfera.14 Esse comportamento dinâmico do sistema climático
se deve a fenômenos físicos que têm os seus próprios tempos: o dióxido de carbono
tende a ser absorvido pelos oceanos, reduzindo assim a tendência de aquecimento, mas
isto é compensado pela diminuição da taxa de troca térmica com o oceano, de forma que
os efeitos se cancelam, mantendo a temperatura constante.15 Esta “inércia” do oceano,
favorecida pela sua enorme massa, implica que parte do aquecimento devido às
emissões passadas ainda está “armazenada no tubo”, vindo a realizar-se nas próximas
décadas. Devido a este comportamento dinâmico peculiar, é importante desde já
controlar os teores de carbono na atmosfera e suas emissões. Com base em dados
paleoclimáticos, já foi proposto um limite de segurança de 350 ppm de CO2
atmosférico, valor este que já foi ultrapassado.16
12 Cfe. IPCC, Thirty-first session of the IPCC: Bali 26-29 October 2009, disponível em
http://www.ipcc.ch/meetings/session31/inf3.pdf (acesso em novembro/2012).
13 HANSEN, James (2009) Storms of my grandchildren, New York: Bloomsbury, cap. 10.
14 Cf. SOLOMON, S.; PLATTNER, G. K.; KNUTTI, R. e FRIEDLIENGSTEIN, P (2009), “Irreversible
climate change due to carbon dioxide emissions”, Proceedings of the National Academy of Sciences, 106
(6), p. 1704-1709.
15 Devido ao fato de que a dinâmica de ambos os processos – absorção de dióxido de carbono e de calor
pelos oceanos – são limitados pelo mesmo processo físico, a mistura das águas oceânicas profundas.
16 A cessação das emissões pode fazer este valor recuar, se ocorrer antes que se atinja um limiar ou ponto
de não-retorno. Cf. HANSEN ET AL (2008) “Target atmospheric CO2: where should humanity aim?”,
Open Atmospheric Science Journal 2: 217-231. Outros consideram que 350 ppm é um valor
especulativo. Cf. NATIONAL RESEARCH COUNCIL (2011), Climate Stabilization Targets: emissions,
concentrations and impacts over decades to millenia, Washington: The National Academies Press, p.
230. A nosso ver, Hansen et al. não procuraram estabelecer um valor exato para um nível perigoso de
CO2 atmosférico, mas, a partir dos dados disponíveis, indicar um valor de precaução a ser considerado
nas decisões políticas, o que é obviamente necessário. Os próprios afirmam: “Sugerimos um objetivo
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inicial de reduzir o CO2 atmosférico para 350 ppm, com o alvo a ser ajustado à medida que o
entendimento científico e as evidências empíricas dos efeitos climáticos se acumularem”.
17 Cf. HANSEN ET AL (2008), op. cit.
18 Cf. CUI, Y. ET AL (2011) “Slow realease of fossil carbon during the Paleocene-Eocene Thermal
Maximum”, Nature Geoscience 4 July 2011: 481-485. Para uma exposição em linguagem mais popular,
ver KUMP, L. R. (2011) “The last great global warming”, Scientific American, July 2011, p. 57-61.
19 Com o aquecimento global, as espécies animais e vegetais precisam migrar em direção aos pólos ou
maiores altitudes, devido ao deslocamento das zonas climáticas. Isto pode ser causa de extinção de
espécies e colapso de ecossistemas, por exemplo, quando há barreiras para a migração (naturais, como
oceanos, ou artificiais, como cidades), ou quando a mudança é brusca demais. Adaptações evolutivas
também demandam tempo.
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Em sua cruzada contra a teoria do aquecimento global, Onça expõe uma grande
coleção de argumentos e contra-teorias disponíveis na literatura. Uma das fraquezas de
sua tese é que os argumentos mais diversos, por vezes mutuamente excludentes – por
exemplo, teorias alternativas para explicar o aquecimento global e teorias que negam a
ocorrência do aquecimento – são apresentados lado a lado, sem que seja feito um
balanço crítico. Aqui não buscaremos rebater detalhadamente cada um dos argumentos,
cuja refutação está disponível na literatura científica e de divulgação científica 21, mas
escolheremos o mais emblemático. Trata-se da teoria da retroação negativa causada
pelas nuvens levada a cabo por Richard Lindzen, o mais conceituado dos cientistas que
discordam da teoria do aquecimento global22.
Os cientistas climáticos sérios aceitam certos fatos básicos sobre o aquecimento
global: que a concentração de carbono na atmosfera está aumentando continuamente,
como mostrado pela curva de Keeling (ver figura 2); que este carbono atmosférico causa
efeito estufa, devido às propriedades de gases como dióxido de carbono, metano e vapor
d’água, que tornam a atmosfera mais opaca à radiação infravermelha (calor); que há
relevantes para a ciência climática. Além disso, o estilo do seu texto é elegante e atraente, remetendo a
um estilo de ciência mais “romântica” e menos matematizada, o que não é muito comum em publicações
altamente técnicas como são os artigos científicos sobre climatologia. Nos últimos tempos, porém,
Lindzen parece estar se especializando em argumentos e exposições falaciosas. Ver por exemplo a forma
falaciosa como apresentou dados de outro grupo de cientistas – “Misrepresentation from Lindzen”:
http://www.realclimate.org/index.php/archives/2012/03/misrepresentation-from-lindzen/ – ou como
selecionou dados de forma conveniente para “provar” suas teorias – “Lindzen and Choi unravelled”:
http://www.realclimate.org/index.php/archives/2010/01/lindzen-and-choi-unraveled/ (acessados em
dezembro/2012).
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23 Ou seja, incluindo apenas as retroalimentações rápidas. O estudo clássico de Jules Charney de 1979
determinou este valor como 3oC +/- 1,5. De lá para cá este valor se manteve basicamente inalterado para
a imensa maioria dos cientistas climáticos, variando apenas o nível de incerteza. Para se ter uma ideia
do que isto significa, a grande maioria dos cientistas climáticos considera que um aumento da
temperatura média global maior do que 2 oC é perigoso, e que um aumento de 6 oC é absolutamente
catastrófico. Ver o estudo de Charney: AD HOC STUDY GROUP ON CARBON DIOXIDE AND
CLIMATE(1979) Carbon dioxide and climate: a scientific assessment, Washington: National Academy
of Sciences. Disponível em www.nap.edu (acessado em novembro/2012).
24 Fonte dos dados: NOAA, ftp://ftp.cmdl.noaa.gov/ccg/co2/trends/co2_annmean_mlo.txt (acesso em
dezembro/2012).
25 Com o aumento da temperatura média, mais água evapora, e o ar passa a ter maior capacidade de
26 LINDZEN, R. S. (1990) “Some coolness concerning global warming”, Journal of the American
Meteorological Society 71 (3), p. 288-299. Disponível em http://www-
eaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012).
27 O mecanismo apresentava um “problema significativo”, já que os perfis de umidade observados
empiricamente eram diferentes dos propostos no modelo. Ver LINDZEN, R. S. (1993) “On the scientific
basis for global warming scenarios”, Environmental Pollution 83: 125-134. Disponível em http://www-
eaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012).
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a região nebulosa-úmida parece agir como uma íris adaptativa de infravermelho, que
abre e fecha as regiões livres de nuvens altas, que permitem o resfriamento de forma
mais efetiva, de maneira a resistir a mudanças na temperatura superficial tropical28
(grifo nosso)
Esta teoria é conhecida como “efeito íris”.29 Trata-se sem dúvida de uma teoria
científica extremamente elegante, que atesta a inteligência incomum de seu autor. De
fato, pode-se dizer que esta teoria é elegante demais. Afinal, por que a Terra como tal
seria dotada de um mecanismo – um termostato, ou de uma íris – para amortecer um
efeito inédito na história natural, a emissão massiva e repentina de carbono oriundo da
combustão de combustíveis fósseis? Começa aqui a assomar a face mística de Lindzen:
seus modelos de termostato terrestre implicam um planeta que funciona como um
organismo vivo consciente, que regula sua própria temperatura e, assim, permite que
mudemos a composição da atmosfera ao nosso bel-prazer sem causar distúrbios no
sistema climático.
É pertinente aqui fazer uma análise comparativa com a clássica teoria de Gaia
elaborada por James Lovelock e Linn Margulis. Segundo a teoria, a biosfera atua de
forma a moldar o ambiente, tornando-o favorável à vida. De fato, como mostram os
autores da teoria, a composição da atmosfera terrestre seria completamente diferente se
não fosse a presença dos organismos vivos30 – os ciclos biogeoquímicos têm ativa
contribuição da biosfera –, de forma que não apenas o ambiente influencia os
organismos vivos, mas também os organismos vivos influenciam o ambiente. Para
Lovelock, isto implica a homeostase ativa, ou seja, o controle das condições ambientais
28 LINDZEN, R. S.; CHOU, M.-D. e HOU, A. Y. “Does the Earth have an adaptive infrared iris?” Bulletin of
the American Meteorological Society 82 (3), p. 417-432. Disponível em http://www-
eaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012).
29 Impressiona a falta de rigor com que as teorias de Lindzen são analisadas por Onça. A teoria do
termostato das nuvens cumulus e do “efeito íris” são diferentes, mas são apresentadas por Onça como se
fossem a mesma coisa (Onça 276-277). Como já destacado, o próprio Lindzen reconheceu que havia
problemas com a sua teoria do termostato baseada na convecção das nuvens cumulus. Ver LINDZEN
(1993), op. cit.
30 Não haveria, por exemplo, a presença constante simultânea de substâncias reduzidas como metano e
oxidantes fortes como oxigênio; a forma preponderante do nitrogênio seria o nitrato dissolvido, etc., ou
seja, a atmosfera terrestre não está em equilíbrio termodinâmico, podendo ser mantida neste estado
apenas pela ação dos organismos vivos. Cf. LOVELOCK, J. E. & MARGULIS, L. (1974) “Atmospheric
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planetárias pelos seres vivos. Para ilustrar o seu conceito, Lovelock e Watson
elaboraram um modelo matemático, o “mundo das margaridas” (daisyworld)31. Neste
mundo simplificado, plano e sem atmosfera, os seres vivos se resumiriam a margaridas
pretas e brancas, que teriam uma temperatura ótima de crescimento idêntica32.
As margaridas brancas refletem mais radiação solar do que as pretas, que a
absorvem mais. Assim, as margaridas brancas tendem a resfriar o planeta, enquanto as
pretas tendem a esquentá-lo. Mostra-se então que quando ocorre variação da radiação
solar há uma subsequente mudança na proporção de margaridas pretas e brancas – pois
as pretas estão mais adaptadas à radiação solar menor, já que absorvem mais energia,
enquanto as brancas à radiação solar mais intensa, já que a refletem mais – de forma
que a temperatura deste mundo imaginário é mantida constante, como se fosse
equipado de um termostato. Esta seria uma ilustração da maneira pela qual os
organismos vivos tendem a controlar as condições ambientais do seu ambiente, sem
violar os princípios darwinianos.33
No sistema climático real, sabe-se que, na escala de tempo de centenas de
milhares de anos, o aumento da temperatura provoca o aumento da taxa de
intemperismo de silicatos da crosta terrestre, o que remove carbono da atmosfera,
funcionando como retroação negativa34. Lovelock propôs para a sua Gaia que as
bactérias intensificariam esse processo, já que a sua atividade influi na concentração de
dióxido de carbono no solo35. A proposição de uma retroação negativa para controlar a
temperatura do planeta não é novidade, portanto. Ocorre que a teoria da retroação
negativa de Lindzen é uma combinação extremada da retroação geológica com a Gaia de
Lovelock: se em Gaia, na sua melhor versão, a homeostase emerge como resultado da
homeostasis by and for the biosphere: the Gaia hypotehsis”, Tellus XXVI: 1-2. Disponível em
http://www.jameslovelock.org/page34.html (acessado em novembro/2012).
31 LOVELOCK, J. E. e WATSON, A. J. (1983) “Biological homeostasis of the global environment: the
que a temperatura se afasta deste valor, para mais ou para menos, até eventualmente tender a zero.
33 Outros autores, entretanto, mostram que nem toda seleção natural é homeostática, ou seja, ao contrário
long term stabilization of Earth`s surface temperature”, Journal of Geophysical Research 86 (10): 9776-
9782.
35 LOVELOCK, J. E. (1982) “The regulation of carbon dioxide and climate: Gaia or geochemistry”,
interação cega dos seres vivos36 (de forma análoga ao equilíbrio de preços como
resultado da “mão invisível” do mercado), e pode ser perturbada pela ação de forças
suficientemente fortes 37 , em Lindzen é o próprio planeta inorgânico que se autorregula,
não na escala de tempo geológica (como no intemperismo de rochas), mas como uma
retroalimentação rápida, capaz de compensar a súbita emissão antropogênica de
carbono. Estamos próximos aqui de uma espécie de animismo, de um “mundo das
margaridas” sem as margaridas, com resiliência tendendo ao infinito.
Porém, homeostase e resiliência são propriedades emergentes, que resultam da
interação entre os diferentes componentes de um ecossistema em sua evolução natural.
Imaginar uma regulação homeostática para processos significativos de magnitude
desconhecida na história natural de um sistema dinâmico, que mantenha este sistema
no mesmo estado de equilíbrio, sem mudanças de estado ou estados transientes, é
apostar na metafísica.38 É isto que faz a teoria do “efeito íris” de Lindzen: aposta na
existência de um sistema de regulação natural para a súbita adição de grande
quantidade de carbono na atmosfera a uma taxa inédita na história planetária – ou seja,
um sistema com resiliência metafísica, que não se caracteriza como uma propriedade
emergente de um sistema natural, mas como a mais pura teleologia. Um entendimento
materialista da resiliência, porém, implica necessariamente a possibilidade de que o
estado homeostático de um sistema possa ser rompido.
Pode-se argumentar, porém, que o “termostato” e o “efeito íris” são apenas
metáforas, e que não há nenhum sentido metafísico nas expressões utilizadas por
Lindzen, assim como se usa o termo para o caso da retroação negativa do intemperismo
de rochas combinado com as emissões de carbono das erupções vulcânicas. No entanto,
o próprio Lindzen descreve o controle da temperatura atmosférica como “uma ideia de
36 Versões “fortes” da teoria de Gaia afirmam que os seres vivos controlam a Terra de forma ativa,
inclusive no sentido a “otimizar” o ambiente, de forma que o planeta como um todo poderia ser
considerado um ser vivo. Aqui Gaia definitivamente deixa de ser uma metáfora eventualmente útil e
adentra o terreno do misticismo.
37 Como é o caso do aquecimento global antropogênico ou mesmo o “mundo das margaridas”, onde a
Lindzen está aqui claramente utilizando o argumento do design inteligente, ou seja, está
afirmando que a Terra deve ser dotada de um mecanismo de retroalimentação negativa
que regula a temperatura do planeta, mesmo para fenômenos de dimensões inéditas na
história natural, porque foi projetada, e o projeto não poderia ser defeituoso, não
poderia estar sujeito a distúrbios previsíveis a um projetista onisciente, que um projeto
deveria prever estes distúrbios de antemão e precaver-se contra eles: a Terra é sábia.
Um argumento que mergulha nas águas turvas do criacionismo e do misticismo. De
fato, tal argumento é, mais do que politicamente, cientificamente equivocado. Ele atenta
contra aquilo que Jacques Monod chamou de “postulado da objetividade”:
39 Cf. KERR, R. A. (1989) “Greenhouse skeptic out in the cold”, Science 246, December 1989, p. 1118.
40 LINDZEN, R. S. (1990) “A skeptic speaks out”, EPA Journal 16, p. 45-47. Kerr (1989), op. cit., p. 119,
relata: “Em outra de suas asserções filosóficas, Lindzen acredita que as retroalimentações negativas (...)
dominam todas as retroalimentações de aquecimento, ou positivas. Em escalas de tempo de poucos
séculos ou menos, ele diz, até mesmo a mais forte perturbação, de qualquer origem, não iria levar o
sistema climático relativamente insensível a um estado distintamente mais quente”.
41 Disponível em
http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200506/ldselect/ldeconaf/12/5012508.htm (acessado em
novembro/2012).
42 MONOD, J. (1971/1989), O acaso e a necessidade, 4a. ed., Petrópolis: Vozes, p. 32.
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mundo real, o que é um truísmo. De fato, modelos matemáticos não são perfeitos e não descrevem todos
os possíveis processos envolvidos no sistema estudado, e isso nem é desejável. Diz-se no meio que a
modelagem é a arte da simplificação, de modo que a identificação dos processos-chave de um sistema
permitem compreender a dinâmica do todo, desprezando-se os processos que apenas tornariam as
simulações mais lentas, custosas e de difícil compreensão. De qualquer forma, todo modelo deve sempre
ser utilizado criticamente, e validado com dados empíricos. Os modelos climáticos apresentam
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Faltou apenas afirmar que o petróleo foi uma dádiva divina predestinada ao
desenvolvimento do capitalismo – e ao enriquecimento dos capitalistas. De fato, os
argumentos de Onça analisados até aqui poderiam ser tiros vindos da direita – e de fato
o são: autores como Richard Lindzen e Luc Ferry 47, usados por Onça, são referências
conservadoras cativas. Ao final, o que se tem é uma apologia da flexibilização das
relações com a natureza – tal qual a flexibilização dos direitos trabalhistas – para que a
acumulação de capital fique desimpedida. Como argumenta Naomi Klein:
Mas Onça faz um enxerto em sua teoria para torcê-la em direção à esquerda,
como veremos agora.
imperfeições (como a magnitude do efeito dos aerossóis e o comportamento das nuvens), mas estão em
constante aperfeiçoamento; tampouco são as únicas ferramentas para a análise da mudança climática, já
que também se pode extrair informações do clima passado (dados paleoclimáticos). O que se estranha é
que modelos são utilizados em praticamente todos os processos produtivos e econômicos da atualidade,
e Onça parece querer dispensá-los justamente no caso onde eles são mais necessários, tanto pela
gravidade e dinâmica peculiar da questão, onde se fazem necessários projeções e cenários, quanto pelo
fato de que não se pode conduzir experimentos controlados com o planeta.
46 Dessler, por exemplo, partindo do mesmo tipo de dados que Lindzen, chega ao resultado de que a
retroalimentação das nuvens é provavelmente positiva, com uma pequena probabilidade de que seja
negativa, mas com magnitude baixa, não suficiente para amortecer o efeito das emissões
antropogênicas. Ver DESSLER, A. E. (2010) “A determination of the cloud feedback from climate
variations over the past decade”, Science 330, December 2010, 1523-1527.
47 Ferry faz uma crítica da “ecologia profunda” do ponto de vista liberal, com as graves limitações
A Climatologia aparece hoje como uma importante força produtiva do capitalismo tardio.
Com a hipótese do aquecimento global, atual mãe de todos os medos ambientais, ela se
posiciona na linha de frente do desenvolvimento de novas tecnologias e do controle dos
interesses sociais, atuando em prol do saneamento de empresas por parte do Estado e
assim, consolidando-o em seu papel de grande gerenciador da economia. (Onça 411)
Assim,
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49 Fourier foi o primeiro a tentar determinar a temperatura da superfície terrestre a partir de um modelo
físico (balanço energético), e nisso considerou o efeito da atmosfera (o chamado “efeito estufa”).
Arrhenius chegou a um valor supreendentemente preciso para a época da sensibilidade climática à
duplicação da concentração de carbono atmosférico, mas não considerou as emissões de carbono de seu
tempo perigosas para o clima, pois considerou que elas aumentariam linearmente (tivesse Arrhenius
conhecido Marx, talvez fizesse uma projeção exponencial). Callendar chegou a conclusão semelhante à
de Arrhenius, também assumindo progressão linear das emissões, mas já admite a influência humana
no clima por emissões de carbono (ainda que pudesse ser positiva): “Poucos entre os que estão
familiarizados com as trocas de calor naturais da atmosfera que contribuem para forjar o clima e o
tempo estariam preparados para admitir que as atividades humanas poderiam ter influência sobre
fenômenos de tão grande escala. (...) Espero mostrar que esta influência não apenas é possível, mas que
está realmente acontecendo no presente”. Revelle & Suess descartaram a possibilidade de aquecimento
global antropogênico devido à suposição de uma absorção de carbono pelos oceanos muito mais rápida
do que o que ocorre na realidade, mas admitem: “Nas próximas décadas a taxa de combustão de
combustíveis fósseis continuará a crescer, se as exigências de combustível e energia de nossa civilização
industrial global continuarem a crescer exponencialmente (...) Portanto, a humanidade está agora
levando a cabo um experimento geofísico em grande escala, de um tipo que não poderia ter ocorrido no
passado e nem ser reproduzido no futuro”. Finalmente, Bolin & Eriksson, levando em consideração
química do “tampão” do oceano, que desacelera a absorção de carbono atmosférico, e a aceleração das
emissões de carbono, concluíram que as emissões poderiam ser perigosas: “As implicações em relação
ao equilíbrio radiativo da Terra (...) podem ser consideráveis”. Ver FOURIER, J.-B. J. (1827) “On the
temperatures of the terrestrial sphere and interplanetary space”, Mémoires de l’Académie Royale des
Sciences 7: 569-604; TYNDALL, J. (1861) “On the absorption and radiation of heat by gases and
vapours, and on the physical connexion of radiation, absorption, and conduction”, Philosophical
Magazine 4 (22): 169-194, 273-285; ARRHENIUS, S. (1896) “On the influence of carbonic acid in the
air upon the temperature of the ground”, The London, Edinburg and Dublin Philosophical Magazine
and Journal of Science 5th Series, Vol. 41, no. 251; CALLENDAR, G. S. (1938) “The artificial production
of carbon dioxide and its influence on climate”, Quarterly Journal of the Royal Meteorological Society
64: 223-240; REVELLE, R. & SUESS, H. E. (1957) “Carbon dioxide exchange between atmosphere and
ocean and the question of an increase of atmospheric CO2 during the past decades”, Tellus 9: 18-27;
BOLIN, B. & ERIKSSON, E. (1958) “Changes in the carbon dioxide content of the atmosphere and sea
due to fossil fuel combustion”, In: The Atmosphere and the sea in motion: scientific contributions to the
Rossby Memorial Volume (ed. B. Bolin), New York: Rockfeller Institute Press, p. 130-142; KEELING, C.
D. (1960) “The concentration and isotopic abundances of carbon dioxide in the atmosphere” Tellus XII
(2): 200-203.
50 Pollock é citado explicitamente como referência de sua análise (Onça 400-ss.).
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embora os dois pólos do ‘campo’ não possam existir somente para si e pressuponham
sempre o pólo contrário, eles não são hierarquicamente iguais. Muito pelo contrário, há
um sobrepeso estrutural do pólo econômico, que, por um lado, pode parecer superado
(aufgehoben) temporariamente em benefício do pólo estatal-político, mas que, por outro
lado, sempre se restabelece novamente. (...) A evidência desse predomínio do mercado
pode ser demonstrada com base num fato fundamental: o Estado não possui nenhum
meio primário de regulação, mas depende do meio do mercado, isto é, do dinheiro.
Entretanto, o meio ‘poder’ atribuído ao Estado e, teoricamente, na maioria das vezes,
identificado com o dinheiro não possui nenhum grau hierárquico primário, apenas um
grau secundário, pois todas as medidas do Estado precisam ser financiadas 51.
51 KURZ, R. (1997) “A falta de autonomia do Estado e os limites da política”, In: KURZ, R. Os últimos
combates, Petrópolis: Vozes, p. 91-115.
52 Ibid., p. 113-114.
53 Ver DUARTE, C. R. (2012) “O capitalismo como estado de exceção permanente”, Sinal de Menos 8: 51-
54 Para uma crítica do marxismo tradicional, ver POSTONE, M. (1993/2003) Time, Labor, and Social
Domination: a reinterpretation of Marx’s critical theory, Cambridge: Cambridge University Press;
KURZ, R. (1991/2004) O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da
economia mundial, São Paulo: Paz e Terra.
55 “A ciência climática constitui hoje uma mitologia” (Onça 427); “a Climatologia trabalha pela
maior parte das emissões de carbono foi originada nos países ricos, mas, segundo as projeções
científicas, os mais prejudicados pelo aquecimento global seriam os países pobres – incluindo o Brasil,
que teria áreas costeiras inundadas e poderia perder a floresta amazônica. Exige-se, portanto,
compensação. Sobre o movimento por “justiça climática”, ver KLEIN, N. (2009) Climate rage,
disponível em http://www.naomiklein.org/articles/2009/11/climate-rage (acessado em
novembro/2012). Uma das iniciativas mais notórias neste sentido é a do Equador, que demanda ser
compensado pelos países ricos para que não explore o petróleo de Yasuní, onde há um floresta tropical,
evitando as emissões de carbono e a destruição da floresta. Ver http://www.sosyasuni.org/ (acessado
em novembro/2012).
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013
se você perguntar aos membros do Instituto Heartland, a mudança climática faz com que
algum tipo de revolução esquerdista seja inevitável, e é precisamente por isso que eles
estão tão determinados a negar a sua realidade. Talvez devêssemos prestar mais atenção
às suas teorias – eles podem ter entendido algo que a esquerda ainda não captou 58.
Porém, isso não pode se tratar de uma mera distribuição de renda – que, mantida
a sociabilização capitalista, talvez decretasse definitivamente a catástrofe ecológica
global – mas de mudar a forma da riqueza e de sua materialização técnica
correspondente (a transição solar). Como a esquerda tradicional ontologiza o valor e o
trabalho abstrato, não surpreende que rejeite ideologicamente tudo aquilo que os
ameace, como o aquecimento global.
(Setembro/2012-Janeiro/2013)
57 Esta identidade categorial de esquerda e direita também pode se manifestar como o outro lado da
moeda da teoria de Onça, ou seja, quando se reconhece a crise ecológica e se propõe, a partir de ponto de
vista de esquerda, um novo ciclo de acumulação baseado em tecnologias ecológicas – um New Deal
verde. Ver SCHWARTZMAN, D. (2011) “Green New Deal: an ecosocialist perspective”, Capitalism,
nature, socialism 22 (3): 49-56.
58 KLEIN, N. (2011), op. cit.
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Lukács
A Ontologia da miséria / A miséria da Ontologia
LUKÁCS, György, Para uma ontologia do ser social, vol. 1. São Paulo: Boitempo,
2012. (Apresentação de José Paulo Netto, tradução do alemão por Mario Duayer e Nélio
Schneider, acrescida da tradução de Carlos Nelson Coutinho, baseada na edição
italiana).
Cláudio R. Duarte
Eis um lançamento há muito aguardado e que vai fazer Escola. A maior proeza de
Lukács foi fundar “filosoficamente” o marxismo duas vezes: com História e Consciência
de Classe (HCC), no início dos anos 1920, e com a Ontologia do Ser Social (OSS), escrita
ao longo dos anos 1960, em que busca renovar e salvar todos os esforços empreendidos
ao longo da vida. Hoje ele tem a felicidade de ser reconhecido como o filósofo marxista
mais importante. Tratando-se de princípios e fundamentos, ainda mais em terras “sem
fundo” e “sem caráter” como esta, eis um livro fervorosamente aguardado por boa parte
da esquerda marxista brasileira, principalmente universitária, completamente
desorientada na neblina das desestruturações do assim chamado “mundo do trabalho”.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013
“Essa centralidade da categoria do valor é um fato ontológico (...) o ponto focal das mais
importantes tendências de toda realidade social (...) o caráter médio do trabalho surge de
modo espontâneo, objetivo, desde os graus mais primitivos de sua socialidade. (...) Antes
de mais nada, aparece no valor, enquanto categoria social, a base elementar do ser social:
o trabalho” (Lukács, OSS, Cap. IV, “Os princípios ontológicos fundamentais de Marx”).
Eis a espantosa pedra angular da OSS e da prometida Ética. Pode-se concluir assim que
para o velho Lukács, o mundo burguês, regido pela lei do valor-trabalho, existe desde
sempre.
O equívoco sobre a profundidade e a extensão histórica da lei do valor não é
banal. O próprio Marx teve de tatear a questão durante anos, mas nos Grundrisse
conclui que “a determinação do valor pelo puro tempo de trabalho só se dá sobre a base
da produção de capital, ou seja, da separação das duas classes” e que o capital é o
“último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor”.
Portanto, pode-se seguramente dizer que há mercadorias e dinheiro (portanto preços e
valor de troca) no pré-capitalismo, mas isso não pode significar que o valor, ou melhor,
a forma-valor e sua substância criada pelo trabalho abstrato estão postas como
fundamento em sociedades que bloqueavam a mercantilização integral da vida
(trabalho assalariado, acumulação de capital, concorrência, em suma, a economia como
um domínio alienado). Nada disso, para nosso ontólogo: “implicitamente, [a lei do
valor] já está presente quando o homem realiza ainda apenas trabalho útil, quando seus
produtos não se tornam ainda mercadorias; e resta em vigor — de novo implicitamente
– após ter cessado a compra-venda de mercadorias” (OSS). Este “implicitamente”
gostaria de dizer: a lei do valor não está posta, não tem papel fundante, está apenas
pressuposta ou é só uma determinação teórica (pois a produção sempre pode ser
160
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013
medida pelo tempo), não efetivada na produção social. O que teria de valer também
para o próprio conceito de trabalho: ele se põe como mediação social central apenas
como trabalho abstrato produtor de valor, ou seja, apenas no capitalismo, quando as
relações sociais diretas e mais ou menos abertas são substituídas pela relação coisificada
dos agentes, através da troca de mercadorias, dentre elas a força de trabalho (Cf. Moishe
Postone, Time, Labor and Social Domination). A “economia” e o “trabalho” (a
conversão dos homens particulares em “trabalho”), assim, são abstrações reais
históricas e não trans-históricas. Mas o velho Lukács não pode tirar tal conclusão, pois
isso impediria a construção de todo o seu sistema erigido a partir de noções primeiras e
gerais. Ora, se tal pedra angular desmorona na teoria e na práxis histórica, então, é toda
a obra lukácsiana da maturidade que também desmorona.
Reconciliação forçada
Em todo caso, a boa fé nessa base econômica é completamente forçada – o cerne
da “reconciliação forçada” já apontada por Adorno –, pois fica coagida a aceitar a
violência cega da lei do valor, como um eterno “ser” em “automovimento”, como
reconhece Lukács, e que só pode implicar na violência do Estado, ambos como garantias
ideológicas da justiça, da liberdade e da identidade ao final do processo. A operação
ideológica, aqui, lança mão do recurso marxiano de olhar o presente histórico do ponto
de vista das forças produtivas humanas e sociais isoladamente – claramente abstrato,
especulativo e... teleológico, pois que se erige a totalidade do desenvolvimento humano
como padrão de medida (aqui, a origem da ideologia fáustica e prometéica de Marx, que
vem de Hegel e do idealismo alemão) – quer dizer, um ponto de vista que se abstrai das
relações de produção fetichistas, ou seja, do ponto de vista propriamente imanente à
economia política, com sua fundação histórica particular, e não antropológica geral. Em
Marx, no entanto, esse ponto de vista especulativo não é fundante, não cria uma
essência humana como sujeito em movimento – ao contrário, é uma perspectiva crítica,
como que feita de fora, que estabelece os universais humanos como pressuposições;
enfim, uma visão das possibilidades objetivas que surgem no reino do capital. Ora, o
último Lukács transforma tais possibilidades em essência objetiva do processo (em-si),
apenas necessitando da práxis consciente para efetivá-las (para-si) – a armadilha
prática que consiste em não ver nenhuma necessidade de ruptura no fundamento posto
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ciência marxista universal pode dar à minha vida um conteúdo indestrutível”. Aliás, a
busca sistemática de uma lógica, uma ética, uma estética, uma psicologia marxistas
poderá “preencher fecundamente a vida de gerações inteiras[!]”. Com a OSS, essa mania
de grandezas é coroada como doutrina ontológica da espécie humana, talvez de todas as
espécies, do mundo natural e social, quiçá, até do Outro. O filósofo não rejeita a dialética
na natureza, mas a continua e a desdobra socialmente, na interação supostamente
“contraditória” entre forças naturais e sociais – e por que não também “religiosas”?
Marx certamente não delirava quando falava dos “caprichos teológicos” ou da
“objetividade fantasmática” da forma-valor. Eis pelo menos uma “metafísica” ontológica
do real, não constituída por seres imaginários, e que supera a autoestilização do sujeito
moderno como o senhor absoluto de seu destino. E como Lukács consegue converter
milagrosamente o valor na matriz prática dos valores éticos que humanizam o homem,
ele o transforma positivamente em homo economicus! O universal humano não se
estilhaça mais pela economia e a divisão do trabalho, ele tem de “se realizar”
imaginariamente nessa forma cindida. Claro também que não sem antes denunciar as
“contradições”, puramente “fenomênicas”, em relação à “essência” constituída pelo
progresso objetivo do trabalho e das faculdades humanas. Assim, como vimos, a
contradição cegamente constituída e constitutiva da relação social fetichista se torna
positivamente, como em Hegel, a mera manifestação exterior de um progresso da
identidade humana. Lukács troca, no final, o Weltgeist anteriormente formado pelo
proletariado e o Partido pela metafísica das forças produtivas do gênero humano. Não
há dialética do capital, mas conflito entre essa ética e as estruturas reificadas. Mais ou
menos como em Proudhon, “ele imagina que a divisão do trabalho, o crédito, a fábrica,
todas as relações econômicas foram inventadas em benefício da igualdade, e todavia
acabaram sempre por se voltar contra ela. (...) Se há contradição, ela existe apenas entre
sua ideia fixa e o movimento real” (Marx, A miséria da filosofia).
explicativo, válido apenas como “modo de evitar repetições”, pois bem: é aí que o nosso
filósofo deposita todas as suas fichas, propondo o que ele chama de “generalizações
filosóficas”. Segundo Marx, porém, não a unidade, mas a separação histórica entre
homens e meios de produção é que precisava ser explicada; não a produção ou as forças
produtivas isoladamente, mas as relações de produção e distribuição específicas em
relação dialética com tais forças, no mundo burguês – em suma, o modo de produção e
reprodução, ou ainda, a dialética entre determinações formais e relações materiais de
produção – é isso que constituía o discurso substantivo de Marx – que por isso mesmo
ultrapassa a ontologia filosófica em direção a uma crítica imanente do que é e parece
ontológico, crítica do que se cristaliza nas chamadas “leis histórico-naturais”. Lukács
prefere no entanto concentrar-se nas raciocinações infinitas sobre a práxis em geral, o
processo material de produção, as forças produtivas como “base” prioritária da
economia e do ser social genéricos. A famosa questão marxista da produção de mais-
trabalho e de mais-valia – reveladores da verdade negativa da sociedade do trabalho e
do valor – tende assim a quase sumir do mapa. De Hegel, interessam-lhe, sobretudo, os
esquemas do ardil do trabalho e da astúcia da Razão. Pode-se duvidar se a OSS não é
uma imensa glosa desses dois modelos filosóficos, que terminam por suprimir as
estruturas históricas e dialéticas da exposição de Marx. De fato, o livro desliza pelo ser
social de todas as épocas, da Idade da pedra lascada à União Soviética, numa
terminologia genérica e imprecisa, sem explicitar e detalhadamente nenhum modo de
produção. Basta perceber como estão muito pouco presentes em seus esquemas o “ser-
precisamente-assim” dos conceitos históricos do trabalho, tais como trabalho abstrato e
assalariado ou trabalho escravo e servil.
Aqui, então, o segundo plano de gênese dos valores: o trabalho útil, como ideação e
posição de fins na matéria, que seria a protoforma de toda atividade. De fato, os
indivíduos são historicamente “o que” e “o modo como produzem” (Marx/Engels). É
claro que “o trabalho forma” (Hegel) capacidades técnicas, sociais e intelectuais no
sujeito que produz. Porém, em qual contexto isso se torna um fim em si, um valor, uma
moral exclusiva centrada na autoconservação – uma “moral de escravos” (Nietzsche)?
Em qual sentido os indivíduos não são ou não se reduziriam à produção e à divisão do
trabalho? Questionar a objetividade desse progresso e a racionalidades desses valores
não tem nada de “irracionalismo” – o que “destrói a razão” é a própria razão
instrumental, que Lukács põe no Altar e irracionalmente cultua.
N’A Ideologia Alemã, Marx lembra que o trabalho “concreto” sempre foi uma
“existência unilateral”, “subordinada/inferior” e que só tem a “aparência de uma
autoatividade”; nesse contexto preciso, “a vida material aparece como a finalidade” da
existência. E por isso, “a revolução comunista volta-se contra o modo da atividade
existente até aqui, elimina o trabalho”. Como o trabalho historicamente é, ainda
segundo Marx, uma atividade subordinada ao reino da necessidade (às causalidades
exteriores, naturais e sociais), idêntico ao reino da instrumentalização de coisas,
animais e homens (o domínio da razão instrumental sobre a natureza, da cisão entre
167
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013
trabalho intelectual e manual etc.), não resta como valor moral senão a valorização
forçada, tipicamente burguesa ocidental, dos meios técnicos, instrumentais e utilitários
da dominação, que absorvem e suprimem os fins humanos exteriores a esse reino.
Assim, os traços da autoatividade, na esfera do trabalho histórico, são claramente
residuais. Eles devem ser procurados lá onde o trabalho cessa ou se transfigura em
outra coisa, não mais estritamente subordinada à consciência objetificadora e às
necessidades materiais, mas antes ao corpo, à sensibilidade, ao desejo e à lógica da
própria atividade: ócio, jogo, festa, sociabilidade, sexualidade, vida doméstica, ciência,
educação, artes – precisamente o que foi separado, no mundo moderno, em esferas mais
ou menos exteriores à economia empresarial. Hoje, é claro que até mesmo tais esferas
foram racionalizadas economicamente, por assim dizer “trabalhizadas”. Quando Lukács
fala do trabalho como forma originária dos valores morais, no fundo deve ter em mente
o modelo da criação estética e artesanal, ou a produção comunitária (típica do pré-
capitalismo). Sem dúvida, porém, se tais atividades são muito parcialmente fins em si
(ou finalidades sem fim) – como sinais históricos do possível reino da liberdade –, isso
apenas desvela o que o trabalho historicamente nunca foi e nunca poderá ser. Por isso,
como diz Marx, citado muitas vezes por Lukács: o reino da liberdade está para além do
reino da necessidade. Sua condição é, por isso mesmo, não a extensão do trabalho, mas
a redução do tempo do trabalho (aqui, no sentido de produção material) ao mínimo,
superando a sujeição dos homens à causalidade econômico-social alienada.
utilidade etc.), ou antes da antropologia filosófica, seria possível fundar uma práxis ética
marxista de corte humanista, claramente antimetafísica, contrária a todo imperativo
categórico moral puramente racional e às várias formas de decisionismo, voluntarismo e
politicismo, bem como ao determinismo economicista. O alvo parece justo, no entanto
os meios e os fundamentos histórico-materiais pressupostos são uma areia movediça –
complicadíssimos, para dizer o mínimo.
Como vimos, Lukács pensa tais categorias, mais ou menos como o jovem Marx,
como referentes, em última instância, ao homem e às suas bases naturais (o homem
posto como sujeito fundante, mesmo que negado): certamente como bases categoriais
sociais e históricas (divisão do trabalho, trabalho socialmente necessário, valor, troca
etc.), mas válidas para todas as épocas, em medidas variáveis – nesse sentido elas
seriam quase todas essências contínuas e trans-históricas, como não poderia deixar de
ser em uma ontologia que busca fundamentos positivos. Assim, contudo, as “leis
histórico-naturais do desenvolvimento” da sociedade burguesa, tal como nomeadas por
Marx, são em grande parte esvaziadas de sua especificidade e negatividade históricas
imanentes e projetadas em geral para várias formações sociais – como a categoria
fundamental do valor e, portanto, do trabalho abstrato –, inclusive para a sociedade
emancipada (comunista). “A anatomia do homem é uma chave para a anatomia do
macaco”, diz Marx, mas não sem advertir que as determinações da época burguesa –
como “última etapa” da “pré-história” do homem, vale lembrar –, não deveriam
eliminar as diferenças específicas, nem poderiam ser projetadas como um esquema
evolutivo ou desenvolvimentista quase-linear e causal de essências postas, sob o risco de
eternizar as categorias burguesas e o seu modo de funcionamento; pior, talvez,
tornando-as categorias “humanas”, lá onde o Homem ainda não é sujeito pleno e
portanto não é fundamento posto, mas antes a criatura de relações sociais “pré-
históricas” complexas. Uma antropologia crítica só teria sentido como antropologia
negativa, como análise de negações e de resíduos possíveis do homem em sua pré-
história. O que só se faz “escovando a história a contrapelo” (W. Benjamin).
173
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apenas no mundo moderno, pois, nas formações pré-capitalistas ela se fundia, como a
parte material da reprodução social, aos outros momentos da vida (religião, guerra, vida
doméstica, “política”, tempo livre etc.). A produção não era uma esfera legal regida pelo
tempo abstrato do valor ou por critérios puramente econômicos, tal como no
capitalismo, e, por isso mesmo, muitas vezes não visava somente aos puros fins
racionais, úteis ou econômicos. Tomar o valor (de troca e de uso) como base e critério
dos valores morais é tornar o princípio de autoconservação uma religião secular da
razão instrumental, tal como o fizeram Hobbes, Sade, o positivismo e o darwinismo
social: o Eu como um eterno ser para o Outro. Precisamente aqui a liberdade aparece
como o progresso da razão dominadora.
Nesse sentido, não se trata de eliminar o uso e a utilidade das considerações
éticas – mas de determiná-los e relativizá-los como critérios históricos. Além da
consciência, do imaginário e das necessidades no ato produtivo, poderíamos divisar
como mediações significativas de qualquer práxis o inconsciente e a pulsão, a ordem
sociossimbólica e o real (no sentido lacaniano), que parecem impelir muitas vezes a
reprodução social para além do princípio do prazer e da autoconservação. Sem isso,
talvez, não se entende o papel histórico fundamental da violência, do sagrado e de todas
as mediações extra-econômicas nas formações não-capitalistas (Cf. Perry Anderson,
Pierre Clastres, Marshall Sahlins, entre outros) – ou mesmo na capitalista. Em HCC,
reconhecia-se isso mais e melhor. Assim, nunca ou muito dificilmente a produção por si
própria se torna diretamente a mediação social central ou exerce o papel de “momento
predominante” nas formações não-capitalistas, já que os homens, suas “necessidades” e
“desejos”, mediados pelas relações sociais diretas efetivas, eram o fundamento e a
finalidade social da vida. Não há produção, nem ato teleológico separado da
comunicação e da linguagem, dos ritos, da política etc. O ser primeiro é um mito da
razão analítica. O processo produtivo, aqui e talvez ainda mais no capitalismo, é uma
simples base ou condição material entrelaçada ao social e às ideologias, sem dinamismo
próprio. A não ser na metafísica das forças produtivas. Não menos que isto: uma
determinação entre outras, nunca a determinação de primeira ou última instância. Aqui,
inclusive, a argumentação tem de ocorrer contra a letra de vários textos de Marx, para
conservar o seu espírito de crítica do valor, do trabalho e do capital. A OSS enterra,
então, o caminho para um materialismo crítico em que as relações sociais e simbólicas
175
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Trabalho inflacionado
A OSS inflaciona inteiramente o termo trabalho, abstraindo-o das relações
históricas efetivas, já que tudo se torna, no fundo, em qualquer tempo, trabalho ou
momento subsumido do processo-com-sujeito predominante do trabalho (a oscilação
dualista é algo necessário): conversar, discursar, plantar, cozinhar, pescar, amar,
dormir, criar os filhos, desenhar, pensar, orar, escrever etc., como atividades
conscientes e evidentemente com consequências práticas, poderiam ser reduzidas
também, em última instância, a trabalho – o que faz sentido (parcial talvez) no mundo
capitalista ou real-socialista, que tende a “trabalhizar” tudo, pois rege efetivamente o
todo pelo metro abstrato da equivalência geral e da compulsão do crescimento das
forças produtivas como fins para o Outro (e não para a “generidade humana em si” ou
“para-si”, é sempre bom salientar). No capítulo da “Reprodução”, no vol. 2, é a vida
inteira que tem de girar em função do ato produtivo: são as mulheres e homens que se
tornam uma espécie de fundamento anexado pelo trabalho abstrato proletário (o
reprodutor por definição). A base subsumida pelo Capital, que o filósofo transfigura
antropologicamente como algo comandado pelos “carecimentos materiais”: “Tão-
somente o carecimento material, enquanto motor do processo de reprodução individual
ou social, põe efetivamente em movimento o complexo do trabalho; e todas as
mediações existem ontologicamente apenas em função da sua satisfação” (Lukács, “As
bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem”).
Se o trabalho, no capitalismo, não é uma simples coisa nem um processo somente
material (parte de uma força produtiva social junto às máquinas etc.), mas uma relação
social fundante, é porque ele foi tornado um processo de valorização de capital –
mediado por uma relação de produção (forma-valor) que o converte no que ele nunca
havia sido: numa mediação histórico-social fundamental (Cf. Moishe Postone). Pois nas
sociedades pré-modernas ele nunca ganhou esse estatuto central de mediador objetivo:
se a relação social de produção não era o valor e muito menos o capital, a produção era
diretamente comunal ou social, por isso ele não tinha a supremacia sobre a sociedade e
os vários momentos da vida. Tais sociedades obviamente produziam (digamos:
“trabalhavam”), mas não podiam ser definidas como sociedades do trabalho ou de
trabalhadores em abstrato – ao contrário, eram amiúde sociedades de recusa do
trabalho, sociedades de relativa abundância do tempo e do espaço qualitativos,
177
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do socialismo,
“desaparece a estrutura da troca de mercadorias, deixa de operar a lei do valor
para os indivíduos enquanto consumidores. Todavia, é evidente que resta em
vigor na própria produção, inclusive no crescimento das forças produtivas, o
tempo de trabalho socialmente necessário e, por conseguinte, segue operando
a lei do valor enquanto reguladora da produção” (OSS).
que um processo de trabalho material. Assim, quando diz sobre a tendência cega do
capital: “o desenvolvimento da força produtiva só lhe é importante à medida que
aumenta o tempo de mais-trabalho da classe trabalhadora e não à medida que diminui
o tempo de trabalho para a produção material de modo geral; assim move-se pelo
antagonismo” (O capital, Livro 3). Por isso, a revolução da base produtora do capital é o
pressuposto para explodir a lei do valor e fazê-lo “voar pelos ares”. Sendo assim,
poderíamos voltar ao capítulo VI e redefinir os seus termos como historicamente
determinados, já que o trabalho superou o próprio trabalho:
“O desenvolvimento das forças do trabalho, que o capital incita continuamente
em sua ilimitada mania de enriquecimento (...) avançou a tal ponto que a posse e
a conservação da riqueza universal, por um lado, e, por outro lado, a sociedade
que trabalha se comporta cientificamente com o processo de sua reprodução
progressiva, com sua reprodução em uma abundância constantemente maior; que
deixou de existir, por conseguinte, o trabalho no qual o ser humano faz o que
pode deixar as coisas fazerem por ele (...) o trabalho não aparece mais como
trabalho, mas como desenvolvimento pleno da própria atividade” (Marx,
Grundrisse).
Aqui sim, no fim da “pré-história humana”, entram os termos que Lukács inverte
e põe no começo de sua ontologia: homem e indivíduos, atividade própria, força
produtiva e riqueza social universal, necessidades humanas etc., logicamente
pressupondo o fim da mania infinita de trabalho e enriquecimento do Capital. Esta
esfera da produção não apareceria mais também, como insiste o húngaro, como um
reino da necessidade fechado em suas leis autônomas. Os campeões da objetividade
esquecem o que pode haver de subjetivo e imaginário na organização da produção
social.
tal desvio lógico-gnoseológico criticado nos outros). De fato, Lukács não quer discutir
efetividades, mas “princípios” e “modelos originários” para construir um sistema de
verdades dogmáticas. Isso desde a sua Estética. A clareza cartesiana do ideal científico
clássico obscurece necessariamente os fundamentos históricos, pois pretende sempre
pensar o particular sob a anterioridade de leis gerais fundantes e apreender o
movimento como predicado de um sujeito posto (Cf. R. Fausto, Marx, lógica e política,
t. 1).
Trabalho decrépito
O que há de decrépito e de intempestivo no último Lukács é justamente isto:
quando o mundo burguês como um todo já dava sinais claros do colapso de seus
fundamentos – a lista é grande: automatização e esgotamento previsível da da lógica da
acumulação, crise fiscal do Estado, crise da ideologia do trabalho e do movimento
operário tradicional, crítica do iluminismo e do antropocentrismo, criação de novos
valores éticos e estéticos para além do trabalho (das mulheres, dos estudantes à
libertação sexual, do tempo livre à ecologia), crise do sistema soviético (Tchecoslováquia
e Hungria, p. ex.), limites ecológicos de todo desvario produtivista do Ocidente e do
Oriente, surgimento de uma arte radicalmente crítica e negativa, ligação entre
psicanálise, crítica radical e novos movimentos sociais etc. – pois bem, na contramão
181
[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013
disso tudo, Lukács regride àqueles “fundamentos” burgueses tradicionais para re-
consolidá-los, a começar pela lógica obsoleta da socialização pelo valor-trabalho, dando-
lhe a aura de essência humana trans-histórica. Feitas as contas, porém, tudo isso vem
num trajeto coerente com seu percurso histórico, de tolerância e de crítica meramente
ética ao stalinismo, que operava como uma defesa humanista da modernização
socialista retardatária.
Em vez de encaminhar uma crítica das estruturas econômico-sociais, políticas e
ideológico-culturais efetivas do Estado e do Capital avançados em crise (como fizeram,
entre outros, Adorno, Benjamin, Marcuse, Lefebvre, Debord, Braverman, Mandel, Gorz,
Altvater, Kurz, Harvey, Schwarz, Arantes, Žižek, Mészáros), ou de reconstituir sua
história (Dobb, Arrighi, Sohn-Rethel, Kurz, entre outros) ou ainda, de retomar
rigorosamente a lógica da apresentação dialética de O capital (Rosdolsky, Backhaus,
Reichelt, Ruy Fausto, Giannotti, Postone, Grespan, entre outros), o velho Lukács
retorna aos fundamentos reconhecidamente abstratos e artificiosos de uma suposta
lógica ontológica da práxis humana – sempre, sempre em geral. Nesse sentido, sua obra
é um complemento de Habermas, com a sua lógica da interação e da ação comunicativa
em geral, rodando em falso também no plano puramente ético, sem a crítica radical do
valor e da cisão de gêneros (como proposta por Adorno e Kurz).
cachorro morto que fala muito e nos diz respeito no nível político e ideológico, onde se
travam alguns confrontos decisivos. Esta enorme gramática dos equívocos pode ter
efeitos curativos ou deletérios para o presente – dependendo do processo de recepção,
que não está concluso e pode embasar amplos setores da esquerda brasileira e europeia
atual. Elevado a momento prevalecente, prioritário, central, essencial, fundante,
determinante, em primeira ou última instância – os termos variam e se confirmam
circularmente – o trabalho passa a reivindicar o papel ontológico que só o Capital de
fato tem na modernidade como um fetiche que nos coage ao trabalho – “produtivo” e
“necessário” somente do ponto de vista dele – mas que, autodestruindo esta sua própria
base “ontológica” negativa, tem de deixar de ser e de valer, fazendo desmoronar todas as
categorias do pensamento e da prática modernas que pareciam “objetivas”,
“ontológicas” ou “eternas”.
Na crise do trabalho abstrato, quando o marxismo tradicional o admite, o
trabalho “concreto” passa a ser cultuado como centro da vida e da sociabilidade e não é
mais criticado, nem mesmo quando se revela que ele nada mais é que a face visível,
material, qualitativa e destrutiva do trabalho abstrato e alienado, e que vai sendo
excluído pelo mecanismo estrutural inconsciente, que tende inevitavelmente a
desvalorizá-lo. O trabalho vivo (diferente do conceito negativo de proletariado, como
sujeito sem objeto – por isso mesmo, absurdo) é então contraposto abstratamente ao
mercado, à circulação, às classes “parasitas”, ao capital financeiro e especulativo
“judaico”, a tudo o que não gera valor e riqueza material, inclusive às mulheres, aos
negros, aos imigrantes, aos ciganos, aos pobres, vagabundos e criminosos em geral, tal
como se evidencia cada vez mais nas tendências fascistas no capitalismo mundial em
crise. Com isso, é o humanismo do trabalho que revela a sua verdadeira face
particularista e corporativista, reformista e anti-humana, e que um dia pôde se conciliar
com o totalitarismo stalinista.
As mediações de uma possível contraposição do proletariado ao capital são ainda
exíguas ou inexistentes. A tendência a vê-lo nos moldes da velha classe operária
produtiva tem seus efeitos na ideologia da ontologia e da honra do trabalho, no pós-
operaísmo italiano, na valorização repentina do trabalhador técnico-científico de classe
média ou do trabalhador de massa da semiperiferia capitalista. A OSS não desconhece o
recuo das barreiras naturais por meio da automação e da diminuição do trabalho
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O Dinheiro do Espírito
e o Deus das Mercadorias
A abstracção real segundo Sohn-Rethel
1 – Introdução
Alfred Sohn-Rethel (1899-1990) é porventura um dos nomes mais negligenciados
no contexto do chamado “marxismo ocidental”. Autor fortemente influenciado pela
Teoria Crítica da Escola de Frankfurt – entrou em contacto directo com Benjamin,
Adorno, Horkheimer e Bloch, nos anos 20 e 30 –, permaneceu sempre à margem do
mundo académico e teve de lutar ao longo de toda sua vida contra enormes dificuldades
económicas.
Nunca desistiu, contudo, de defender a sua tese principal: “O trabalho intelectual da
minha vida (…) serviu para esclarecer (…) uma visão meio intuitiva que me coube
elaborar em 1921 [ainda enquanto estudante universitário] (…): o descobrimento do
sujeito transcendental [Kantiano] na forma mercadoria”. 2 Esta proposição acerca da
“identidade secreta” que se estabelece entre a abstracção real presente na troca de
3 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour – A Critique of Epistemology. London: The
Macmillan Press Ltd, 1978 [1970], p. xiii.
4 Idem, Ibidem, p. xiii.
5 Idem, Ibidem, p. xiv.
6 Cf. SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit.
7 JAPPE, Anselm. “Pourquoi lire Sohn-Rethel aujourd’hui?” In : SOHN-RETHEL, Alfred, La pensée-
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palavras, “as formas de pensamento socialmente necessárias de uma época são aquelas
em conformidade com as funções socialmente sintéticas dessa época”.13
Ora, no âmbito da produção mercantil, é a troca (de mercadorias) que possui uma
função socialmente sintética em virtude da abstracção que origina, centrada nas funções
do dinheiro enquanto “equivalente universal”. Os elementos formais que constituem a
abstracção da troca assemelham-se inequivocamente aos elementos conceptuais da
faculdade cognitiva emergente com o crescimento da produção mercantil. De acordo
com o autor, enquanto elementos conceptuais, estas formas constituem princípios de
pensamento básicos tanto da filosofia Grega, como da ciência natural moderna, e estão
na base da separação entre trabalho intelectual e manual.14
Em suma, nas sociedades mercantis, a síntese social é realizada pelas próprias
categorias de tal modo que a faculdade cognitiva que engendram é uma capacidade
social a priori da mente. Assim, Kant estava certo ao afirmar que
13 Idem, Ibidem, p. 5.
14 Idem, Ibidem, pp. 6-7.
15 Idem, Ibidem, p. 7.
16 JAPPE, Anselm. “Pourquoi lire Sohn-Rethel aujourd’hui?”, op. cit., p. 25.
17 Idem, Ibidem, p. 26.
18 Idem, Ibidem, p. 29.
19 Idem, Ibidem, p. 29.
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a abstracção no acto da troca mais não faz do que dar cumprimento à abstracção criada na
produção, na qual o trabalho é concreto enquanto processo material, mas não para os produtores
enquanto seres sociais. Foi o modo de produção capitalista que fez da circulação uma forma total, e
não o inverso.20
Neste artigo, começamos por analisar, no ponto 2, a relação entre abstracção real e
abstracção conceptual na óptica de Sohn-Rethel, explicitando os elementos formais da
troca e a sua relação com as bases do pensamento abstracto. No ponto 3, abordamos a
relação histórica entre as formas de síntese social e as diferentes formas de pensamento
que originam. No ponto 4, damos uma atenção especial ao capitalismo e à sua ligação
com a ciência moderna. Finalmente, no ponto 5, procedemos a uma análise crítica da
obra Sohn-Retheliana à luz da Nova Crítica do valor.
ou bem que essas categorias são elas mesmas de origem empírica, o resultado da constância da
experiência, mas sem validade absoluta, e sem a possibilidade de deduzir delas julgamentos a
priori (…). É a resposta empirista, de David Hume até Paul Feyerabend. Ou então pressupõe-se
uma estrutura ontológica, praticamente inata ao homem, que em todos os tempos e em todos os
lugares organiza da mesma maneira a priori um material que é incognoscível (inconnosaible)
enquanto tal. É, naturalmente, a solução proposta por Kant.22
De um modo original, Sohn-Rethel avança com uma terceira hipótese: “a origem das
formas de consciência (e do conhecimento) não é nem empírica nem ontológica, mas
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O nascimento da razão pura ocorre (…) não no nem através do homem, nem passo a passo, com a
formação dos conceitos empíricos de nossa linguagem ordinária, mas sim em uma abstratividade
formada acabada e idêntica para todos os indivíduos (…). Através disso, a razão pura é uma
latente no pensamento de Kant (…). O valor é uma forma a priori, em sentido kantiano, porque toda a
objectividade se manifesta através dele: é uma reticula de que o indivíduo não tem consciência, mas que
é preliminar a toda a percepção e lhe constitui os objectos. O apriori kantiano é uma ontologização e
individualização não histórica do valor que, na sociedade moderna, é o verdadeiro apriori, mas um
apriori social, não natural” (JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria, op. cit., p. 171). Assim, a
“análise das categorias da socialização enquanto formas preliminares a todas as outras questões conduz
a uma teoria da mediação social que poderia contribuir para ultrapassar as teorias objectivistas e
subjectivistas tradicionais” (Idem, Ibidem, p. 171).
32 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 77.
33 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal, op. cit., p. 37.
34 Idem, Ibidem, p. 38.
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Adorno (1936)”. In: __. Trabalho Espiritual e Corporal, op. cit., p. 89, itálico nosso.
38 SOHN-RETHEL, Alfred. “Para a liquidação crítica do apriorismo. Uma pesquisa materialista (Março-
Abril 1937)”. In: __. Trabalho Espiritual e Corporal, op. cit., pp. 98-99, itálico nosso.
39 Cf. Idem, Ibidem, pp. 101-123.
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A forma da mercadoria é abstracta e a abstracção domina toda a sua órbita. (…) Na forma do
dinheiro a riqueza torna-se abstracta e, enquanto possuidor dessa riqueza, o próprio homem torna-
se um homem abstracto, um possuidor de propriedade privada. (…) [Assim,] uma sociedade na
qual a troca de mercadorias forma o nexus rerum é um conjunto de relações puramente abstractas
onde tudo o que é concreto está em mãos privadas.44
40 “A reificação se pode constatar na troca mercantil e em suas formas, mas é impossível explicá-la a partir
dela. Sua origem e fonte encontram-se na exploração” (Idem, Ibidem, p. 104). Ou mais à frente: “A
síntese constitutiva, à qual todo o conhecimento teorético logicamente como geneticamente remonta, é a
reificação e a socialização material que se opera pela exploração.” (Idem, Ibidem, p. 118).
41 Cf. SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., pp. 35-57.
42 Cf., por exemplo, SOHN-RETHEL, Alfred. “Historical Materialist Theory of Knowledge”, Marxism
REINFELDER, Monika & SLATER, Phil. “Intellectual and Manual Labour: An Introduction to Alfred
Sohn-Rethel”. Capital & Class, 6, 1978, pp. 137-139.)
44 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 19.
45 Idem, Ibidem, p. 20.
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invés, tem um carácter puramente social, resultando da esfera espácio-temporal das inter-relações
humanas.46
Na sua análise, Marx faz da distinção entre “valor de uso” e “valor de troca” o
principal aspecto da mercadoria. Sohn-Rethel, por sua vez, traça esta distinção em
termos das actividades humanas a que corresponde: “acções de uso” e “acções de
troca”.47 O uso e a troca são mutuamente exclusivos no tempo. O uso corresponde aos
processos materiais mediante os quais os homens asseguram a sua sobrevivência, aquilo
que Marx designa por intercâmbio ou “metabolismo com a natureza.” Esta prática
material é suspensa durante o acto da troca, que não tem nada de natural: é algo
puramente social em termos de constituição e âmbito. Embora a troca implique a
negação da realidade corpórea do uso e do valor de uso, ela mesma traduz-se, ainda
assim, numa “realidade física”: o movimento das mercadorias no tempo e no espaço de
um proprietário para o outro.48 A síntese social capitalista é realizada pela troca e não
pelo uso.49
A característica marcante do acto da troca é que a sua separação em relação ao uso
assume a necessidade cega de uma “lei social objectiva”. Mas a abstracção
(abstractness) da troca não se aplica à consciência das pessoas que trocam: a
consciência dos agentes está ocupada com o uso potencial (e “concreto”) das coisas que
são trocadas, pelo que é o acto da troca que efectua “inconscientemente” a abstracção. O
acto da troca, e apenas o acto, é abstracto, pelo que a consciência e a acção das pessoas
envolvidas na troca se separam.50
À medida que a produção mercantil se desenvolve, a imaginação do homem torna-se
cada vez mais separada das suas acções e individualizada, assumindo a dimensão de
uma consciência privada, o que torna impossível a transmissão “directa” das formas da
troca – abstracção real – à consciência humana. Assim, a abstracção da troca entra
apenas nas suas consciências após o acto da troca, “quando são confrontados com o
resultado completo da circulação das mercadorias”: o dinheiro, “mediante o qual a
abstracção assume uma existência separada”.51
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“reificante” da troca, está ligada a este efeito igualizador do acto da troca sobre os
objectos.64 Ora, a equiparação produzida pela troca supera todas as medições
dimensionais específicas e estabelece uma esfera de quantidade não-dimensional, de
quantidade tout court. “Por outras palavras, o postulado da troca abstrai a quantidade
de tal forma que constitui a base do pensamento matemático”. 65
Em quarto lugar, esta abstracção da quantidade pura ganha importância acrescida
quando relacionada com a abstracção correspondente relativa ao tempo e ao espaço. A
troca força uma abstracção relativamente a todas as actividades (materiais) que
compõem o “metabolismo com a natureza”, pois os objectos trocados são assumidos
como imutáveis durante a transacção. “A troca esvazia o tempo e o espaço dos seus
conteúdos materiais e atribui-lhes conteúdos de significado puramente humano
relacionados com o estatuto social das pessoas e das coisas”.66 Por outras palavras, e ao
contrário das sociedades do passado, o tempo e o espaço deixam de ser específicos –
associados a eventos e fenómenos específicos – e passam a ser abstractos.
Finalmente, com a duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro, “a sua
substancialidade sem qualidades e persistente espelha-se na materialidade não
descritiva do dinheiro”.67 Deste modo, a natureza imutável e indistinta (non-descript)
da mercadoria enquanto valor de troca traduz a sua substância, enquanto as suas
propriedades específicas enquanto valor de uso constituem a sua acidentalidade
(accidents).68
O acto de troca pode ser descrito como o movimento abstracto, através do espaço e tempo
abstractos (homogéneos, contínuos e vazios), de substâncias abstractas (materialmente reais mas
desprovidas de qualidades sensíveis) que, portanto, não sofrem qualquer mudança material e
apenas permitem uma diferenciação quantitativa (diferenciação em termos de quantidade
abstracta, não-dimensional).69
Science Essays. London: Free Association Books, 1986 [1975], pp. 128-129.
69 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 53, itálico no original.
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O facto de a moeda ser o meio que reflecte a abstracção real explica a existência de uma
uniformidade lógica da abstracção intelectual entre todos os pensadores conceptuais de uma
sociedade de troca, num dado estágio [de desenvolvimento] e formação. (…) As categorias básicas
do trabalho intelectual (…) são réplicas dos elementos da abstracção real.81
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existência fora do contexto do grupo social a que pertence (tribo, clã, etc.); não enfrenta
a natureza como um indivíduo, mas, pelo contrário, define de um modo “mágico” um
processo que lhe é inteiramente incompreensível. 95
As civilizações da Idade do Bronze (exemplo: Antigo Egipto) correspondem ao
surgimento da escrita e da numeração. Nestas sociedades, o comércio ainda não
permeia a ordem interna da comunidade, sendo conduzido essencialmente com outros
povos. Os seus principais desenvolvimentos intelectuais incluem: a criação de sistemas
de contabilização dos bens armazenados, o estabelecimento de padrões de medida, a
astronomia e a calendarização das cheias, uma geometria elementar para a divisão e
redistribuição das áreas agrícolas, e a criação de registos escritos. Embora estes
elementos traduzam a existência de um trabalho intelectual separado das actividades
manuais, ainda não implicam nem pressupõem um modo de pensamento conceptual.96
95 Idem, Ibidem, p. 2.
96 Idem, Ibidem, p. 3.
97 THOMSON apud SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 95.
98 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., pp. 58-59.
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O seu conteúdo conceptual era independente não apenas deste ou daquele propósito particular, mas
de qualquer tarefa prática. (…) Emergiu uma forma pura de abstracção que foi incorporada no
pensamento reflexivo. Preconizamos que isto pôde apenas ser o resultado da generalização intrínseca
à comensuração monetária do valor das mercadorias promovida pela moeda.105
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Sohn-Rethel conclui que embora não existisse uma produção de mais-valia em sentido
capitalista, a síntese social na Grécia antiga era baseada na troca dos produtos como
mercadorias e não mais num modo de produção comunitário. Isso foi o suficiente para
que a abstracção real se tornasse no elemento dominante para a forma de pensamento
vigente nessa sociedade e “autoriza-nos a reconduzir as características conceptuais da
filosofia e da matemática grega (…) a esta raiz”.106
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115 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit., p. 117.
116 Idem, Ibidem, p. 123.
117 Idem, Ibidem, p. 125.
118 Idem, Ibidem, p. 127.
119 Idem, Ibidem, p. 128.
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pela operação metódica da mente humana na sua forma socializada, guiada pela sua lógica
específica, a matemática. Esta mente socializada do homem (…) é o dinheiro desprovido dos seus
acessórios (attachments) materiais, portanto, imaterial e não mais reconhecível como dinheiro e,
com efeito, não sendo já dinheiro mas o «intelecto puro». Na sua forma de dinheiro é o capital
dominando o processo de trabalho (…) [e] funcionado de um modo automático ao impor a
corporização do trabalho (…) em valores que geram uma mais-valia. Na sua forma de intelecto
científico a mente socializada aplica-se aos fenómenos físicos dos quais depende o funcionamento
(working) automático do processo de trabalho dos vários capitais.121
ciência moderna não visa ajudar a sociedade nas suas relações com a natureza. Estuda a natureza
apenas do ponto de vista da produção capitalista. Se as experiências produzirem uma verificação
confiável da hipótese, esta torna-se numa «lei da natureza» estabelecida sob a forma de uma lei de
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acontecimentos recorrentes. E este é o resultado que o capitalista poderá utilizar numa aplicação
tecnológica na sua fábrica.123
o homem poderia agora, em princípio, ter à sua disposição forças de produção que abrangem, na
sua realidade física, a socialização que nas eras de produção mercantil se foi acumulando no
trabalho intelectual da mente humana – ou seja, na ciência. Isto é uma inversão na relação entre o
homem e os seus instrumentos (tool). Os instrumentos são repositórios das suas potencialidades
sociais e o homem pode permanecer um indivíduo utilizando esses instrumentos para satisfazer as
suas necessidades e desejos num horizonte inimaginável. É claro que isto implica que o socialismo
substitua o capitalismo.126
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libertando poderes naturais que o capital não consegue controlar [e “rentabilizar”, ou seja, colocar
na forma do valor, N.M.]. Portanto, se permanecermos nas garras (clutches) do capitalismo,
estamos ameaçados com a perda da racionalidade social da ciência que o capitalismo já possuiu e
podemos cair na irracionalidade da nossa prática social combinada com uma irracionalidade
correspondente da nossa teoria. (…) O homem chegou a uma encruzilhada em que é confrontado
com a alternativa de seguir o caminho do socialismo e alcançar, talvez, uma racionalidade tanto da
prática como da teoria sociais, ou continuar a seguir o caminho do capitalismo e perder ambas.130
A Nova Crítica do Valor131 (NCV) designa esta pela teoria do Marx “exotérico”. A ela
contrapõe o núcleo “esotérico” da teoria de Marx: o escândalo já não é o “roubo” por
parte dos capitalistas da mais-valia produzida pelos trabalhadores, mas a própria
produção de valor e o próprio trabalho enquanto substância desse mesmo valor.
Recuperando a teoria do fetichismo de Marx, a NCV empreende uma crítica radical do
“sistema produtor de mercadorias da modernidade”, evidenciando a necessidade de
abolir as suas categorias de base que tendem a ser ontologizadas, inclusive pelos
“marxistas”: valor, mercadoria, trabalho, Estado, mercado, etc. Já não se trata de uma
“luta de classes” mas antes de uma luta contra uma dominação impessoal, quasi-
objectiva,132 erigida em “sujeito automático” e que escapa ao controlo dos homens e os
subjuga. Não se trata mais de libertar o trabalho mas de nos libertarmos do trabalho; a
emancipação humana virá não da elevação do trabalho a princípio supremo da
humanidade, mas da sua abolição, da libertação do “intercâmbio ou metabolismo com a
natureza” (Marx) e da produção de riqueza material dos grilhões do valor e da
abstracção trabalho qua sociabilidade humana comum reificada, da loucura de uma
“metafísica real”.
Ao recuperar a análise da forma mercadoria e a teoria do fetichismo de Marx, Sohn-
Rethel assume-se como um dos precursores desta corrente. 133 Todavia, como já vimos,
uma das suas ideias centrais é que “a abstracção surge da relação de circulação entre os
homens”.134 Para o autor,
nem o trabalho é abstracto por natureza, nem sua abstracção para «trabalho humano abstracto» é
seu próprio produto. O trabalho não se abstrai a si mesmo. O lugar da abstracção está fora do
trabalho, na forma social de relacionamento própria da relação de troca. (…) [A troca] abstrai
(ou, digamos, abstratifica) o trabalho. O resultado dessa relação é o valor das mercadorias.135
131 Esta corrente está associada a autores como Moishe Postone (EUA), Jean-Marie Vincent (França) e –
no espaço de língua alemã – aos Grupos Krisis e Exit! (Robert Kurz, Anselm Jappe, Roswitha Scholz,
Claus Peter Ortlieb, Norbert Trenkle, Ernst Lohoff, Franz Schandl, etc.). No espaço de língua
portuguesa, realçamos o site http://obeco.planetaclix.pt/, que contém imensas traduções de artigos,
livros e entrevistas dos autores mencionados, assim como a revista Sinal de Menos:
http://sinaldemenos.org/ (publicação fortemente influenciada pela NCV).
132 POSTONE, Moishe. Time, Labor and Social Domination, op. cit.
133 Cf. JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria, op. cit., pp. 211-212; JAPPE, Anselm. “Pourquoi lire
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à forma valor das mercadorias nenhuma relação inerente ao trabalho. (…) [Assim,] o facto decisivo
presente na produção de mercadorias é que sobre a sua base a socialização não se enraíza no
carácter social do processo de trabalho (…), mas em um sistema de apropriação formalizado e
generalizado como circulação da troca. (…) Em outras palavras, a abstracção das mercadorias é
abstracção da troca, não abstracção do trabalho.136
Deste modo, como facilmente se perceberá, esta asserção constitui o principal alvo
das objecções da NCV à obra Sohn-Retheliana.137 Neste sentido, apresentaremos
brevemente as principais críticas lançadas por alguns dos seus autores-chave: Robert
Kurz salienta que o fetichismo do valor permeia todo o processo de reprodução social
capitalista; Moishe Postone realça que apenas no capitalismo é que o “trabalho” é
responsável pela síntese social; e Norbert Trenkle desmistifica a suposta “inocência” ou
neutralidade do conceito de trabalho concreto.
Kurz realça que a teoria de Sohn-Rethel foi a primeira a introduzir o conceito de
abstracção real no debate marxista. Todavia, “para ele a abstracção socialmente
objectivada apenas é real como uma «abstracção da troca» (…). Apenas no mercado é
que o trabalho abstracto se apresenta como a substância comum das mercadorias que as
Tal corresponde (…) à subdivisão do processo de reprodução capitalista em uma esfera ontológica-
transhistórica do trabalho concreto, do processo de produção material, por um lado, e em uma
esfera especificamente capitalista da troca, ou do mercado, da regulação «anárquica» do mercado,
por outro, onde se pretende «libertar» a ontologizada esfera da produção da esfera da circulação
especificamente capitalista (…). Paradoxalmente, «o trabalho» como «trabalho sob a sua forma
historicamente específica» [trabalho abstracto], «converte-se» assim não no próprio trabalho, e por
isso, também não em dispêndio efectivo de força de trabalho no processo de produção real, mas
apenas no seu além social, como processo de troca ou acto de mercado fora do trabalho, quando já
nem sequer se trata de trabalho activo, mas apenas do seu reflexo fetichista nos produtos como
mercadorias.140
É preciso notar que a “forma de fetiche do valor (…) abrange todo o processo da
reprodução social”, pelo que não pode ser “reduzida à forma da mercadoria no sentido
da mera objectividade da circulação”.141 Em Sohn-Rethel, o valor é remetido para um
“processo de abstracção ex post”, pelo que o autor tem de conceber o “duplo carácter do
trabalho representado nas mercadorias” dividido por duas esferas distintas, “em vez de
determinar o carácter de toda a reprodução: na produção não se encontra senão o
trabalho «concreto» ou «útil», enquanto o produto em forma de mercadoria apenas na
circulação surge como representação do trabalho abstracto”.142
Este equívoco deriva do facto de o trabalho não ser ele próprio – como pensa Sohn-
Rethel – algo de natural, sendo “precisamente na sua qualidade de produtos do trabalho
que as coisas já são mercadorias ou produtos da abstracção real, e não apenas por força
do acto da troca no mercado”. 143 Kurz conclui assim que embora Sohn-Rethel tenha
chegado mais longe do que o “marxismo do movimento operário” e lhe assista o mérito
138 KURZ, Robert. “A Substância do Capital – O trabalho abstracto como metafísica real social e o limite
interno absoluto da valorização. Primeira Parte: A qualidade histórico-social negativa da abstracção
«trabalho»”, 2004, p. 25-26. Disponível em:
<http://nunomiguelmachado.files.wordpress.com/2012/01/r-kurz.pdf>. Acesso em: 07/jan/2012.
139 Idem, Ibidem, p. 44.
140 Idem, Ibidem, p. 44.
141 Idem, Ibidem, p. 25.
142 Idem, Ibidem, p. 25.
143 Idem, Ibidem, p. 26.
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constituição dessas formas acaba por minar a sua “tentativa sofisticada de uma leitura
epistemológica das categorias de Marx”.150
como um espaço pré-social no qual os produtores privados ainda fabricam seus produtos
completamente não influenciados por qualquer forma socialmente determinada. Só a
posteriori eles lançam seus produtos como mercadorias na esfera da circulação, onde,
então, na troca, se abstrai de suas particularidades materiais (e com isto, indiretamente,
do trabalho concreto despendido neles), onde assim eles se transformam em portadores
de valor. Este ponto de vista, que separa a esfera da produção da circulação opondo-as
externamente, não atinge o nexo interno do moderno sistema produtor de
mercadorias.155
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os produtos não são fabricados no processo de produção capitalista como coisas úteis
inocentes que alcançam o mercado a posteriori, mas cada processo de produção é de
antemão direcionado à valorização do capital e correspondentemente organizado. Quer
dizer, os produtos já são fabricados na forma fetichista da coisa-valor; eles devem atender
a apenas um fim: representar o tempo de trabalho abstrato despendido para sua produção
na forma de valor. A esfera da circulação (…) é o lugar no qual o valor representado nos
produtos é realizado ou pelo menos deveria ser realizado. 156
Obviamente que as mercadorias devem ser igualmente coisas úteis, mas o lado
sensível/material da mercadoria (“valor de uso”) não é primariamente a finalidade da
produção capitalista; constitui tão-somente um “efeito colateral inevitável”, na medida
em que “o valor não se realiza sem um suporte material”. 157 O que se retira daqui é que
também o lado “concreto” do trabalho não permanece incólume face à “forma
pressuposta de socialização”. “Se o trabalho abstrato é a abstração de uma abstração,
então, o trabalho concreto representa apenas o paradoxo de ser o lado concreto de uma
abstração (isto é, da forma-abstração «trabalho»)”.158 Deste modo, é “concreto” apenas
no sentido de que as diferentes mercadorias “necessitam de processos de produção
materialmente diferentes” que, contudo, não se “comportam técnica e
organizacionalmente frente à finalidade implícita da valorização” de um modo neutro.
“O lado concreto-material do trabalho é (…) nada mais que a forma palpável, na qual a
ditadura do tempo do trabalho abstrato confronta e coage a atividade dos trabalhadores
sob seu ritmo”.159
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162 ORTLIEB, Claus Peter. “Objectividade Inconsciente – Aspectos de uma crítica das ciências
matemáticas da natureza”, 1998, p. 10. Disponível em:
<http://nunomiguelmachado.files.wordpress.com/2012/01/cp-ortlieb.pdf>. Acesso em: 07/jan/2012.
163 Idem, Ibidem, p. 7. Postone vai mais longe e diz que Sohn-Rethel não coloca uma ênfase suficiente na
distinção entre a realidade da Grécia Antiga e a realidade capitalista moderna – na qual a forma
mercadoria é totalizante – e, portanto, entre a filosofia Grega e o racionalismo moderno (POSTONE,
Moishe. Time, Labor and Social Domination, op. cit., p. 156). Para além disso, ao colocar a troca, e não
o trabalho, no centro da síntese social não é capaz de explicar convenientemente as formas de
pensamento dos séculos XIX e XX associadas ao processo de produção fetichista capitalista (Idem,
Ibidem, pp. 178-179). Ao excluir as implicações da forma mercadoria para o próprio trabalho, “restringe
a sua epistemologia social a uma consideração de formas de pensamento estáticas, abstractas e
mecânicas” (Idem, Ibidem, p. 179), escapando ao seu escrutínio muitas formas de pensamento
características da modernidade.
164 ORTLIEB, Claus Peter. “Objectividade Inconsciente”, op. cit, p. 1.
165 Idem, Ibidem, pp. 4-7.
166 Idem, Ibidem, p. 7.
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A ilusão que faz aparecer a regularidade produzida pelo experimento como se fosse uma
propriedade da natureza é a mesma ilusão pela qual o cego processo social da sociedade
mercantil se apresenta aos homens como um processo regido por leis, exterior a eles
próprios, quando de fato são eles que o constituem através de sua ação como sujeitos
burgueses. O sujeito enquanto «ator consciente que não é consciente de sua própria
forma» [Kurz] concebe a si mesmo como separado da natureza e dos demais sujeitos, os
quais experimenta como mero «mundo externo»; com o que se pressupõe
inconscientemente o marco social total, específico da sociedade burguesa, o único que
produz semelhante forma de consciência. O nexo sistêmico da forma-mercadoria,
objetivado desse modo, constitui também a igualdade dos sujeitos que a forma objetiva de
conhecimento pressupõe: a igualdade enquanto mônadas mercantis e monetárias,
cidadãos adultos e responsáveis, dotados de direitos iguais e submetidos a regras e leis
idênticas”.177
6 – Conclusão
“A ciência natural, tal como a matemática, (…) é uma parte funcional de uma forma
particular do processo de vida social. A sua lógica é baseada na abstracção da nossa
própria condição existencial historicamente específica (timebound), (…) na abstracção da
sociedade em relação a si mesma. É desta abstracção, e não de qualquer origem absoluta
ou fonte «intelectual» espontânea, que a lógica da ciência deriva o seu carácter de
intemporalidade. Por outras palavras, existe uma causa historicamente específica para a
lógica intemporal”.178
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a origem dos conceitos puramente intelectuais na realidade espácio-temporal do ser social, o seu
carácter enquanto reflexões de uma abstracção incrustada (enshrined) no dinheiro, portanto, a sua
natureza enquanto extensões (offshoots) da reificação sobre a qual assenta a coesão da sociedade
da troca, o seu uso essencial enquanto formas de pensamento socializadas, a sua relação antitética
com o trabalho manual, a sua ligação acessória com a divisão classista da sociedade.181
À medida que as ciências naturais ampliam as possibilidades de ação humanas, constituem uma
ferramenta útil, à qual não se deveria renunciar. Mas a «ciência natural como religião de nosso
tempo» (Pietschmann), que eleva a propriedade da própria natureza a regularidade produzida pela
forma de conhecimento objetiva e erige em cosmovisão a natureza regida por leis, determinando o
que vemos e o que deixamos de ver, esta ciência não sobreviverá a nossa época moderna. A imagem
da «natureza» sempre foi uma imagem socialmente constituída; e não se vê por quê uma sociedade
liberada de toda forma universal-abstrata e inconsciente necessitaria ainda de uma imagem
unitária da natureza, obrigatória para todos por igual e em todo momento.182
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183 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour, op. cit. p. 169.
184 Idem, Ibidem, p. 170, itálico nosso.
185 Cf. POSTONE, Moishe. Time, Labor and Social Domination, op. cit.
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(inconsciente) marcado pela “forma da mercadoria”, pelo valor, pelo trabalho e pela
(ir)racionalidade a eles inerente, que determina e enquadra as suas acções e
comportamentos quotidianos. Ao ontologizar o trabalho, Sohn-Rethel tem de deslocar a
especificidade do capitalismo para a esfera da troca e para um “trabalho intelectual” ao
serviço da “classe dominante”.
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Guy Debord
Attila Kotànyi
Raoul Vaneigem
É preciso retomar sem nenhuma ilusão o estudo do movimento operário clássico; sem
ilusões, em primeiro lugar, no que concerne a seus diversos tipos de herdeiros políticos
ou pseudoteóricos, uma vez que não possuem senão a herança de seu fracasso. Os êxitos
aparentes daquele movimento são seus fracassos fundamentais (o reformismo ou a
instalação no poder de uma burocracia estatal) e seus fracassos (a Comuna ou a revolta
das Astúrias [em 1934]) são até agora seus êxitos abertos, para nós e para o porvir.
A Comuna foi a maior festa do século XIX. Encontra-se nela, originalmente, a impressão
dos insurgentes de terem se tornado mestres de sua própria história, não tanto no nível
da decisão política “governamental” quanto no da vida quotidiana naquela primavera de
1871 (veja-se o jogo de todos com as armas; o que quer dizer: jogar com o poder). É
também nesse sentido que se tem que entender Marx: “a maior medida social da
Comuna foi a sua própria existência em atos”.
A frase de Engels: “Vejam a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado” – deve ser
levada a sério, como base para fazer ver o que não é a ditadura do proletariado como
regime político (as diversas modalidades de ditadura sobre o proletariado, em seu
nome).
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Todo mundo soube fazer justas críticas às incoerências da Comuna, à falta manifesta de
um dispositivo. Mas como pensamos hoje que o problema dos dispositivos políticos é
muito mais complexo do que pretendem os herdeiros abusivos do dispositivo de tipo
bolchevique, é tempo de considerar a Comuna não somente como um primitivismo
revolucionário ultrapassado do qual se sobrepuja todos os erros, mas como uma
experiência positiva cujas verdades ainda não foram encontradas ou realizadas.
A Comuna não teve chefes. Isso num período histórico em que a ideia de que era preciso
tê-los dominava absolutamente o mundo operário. Assim se explicam antes de tudo seus
fracassos e êxitos paradoxais. Os guias oficiais da Comuna são incompetentes (no caso
de se tomar como referência o nível de Marx ou Lenin, e mesmo Blanqui). Mas em
contrapartida os atos “irresponsáveis” do momento devem precisamente ser
reivindicados para o que virá no movimento revolucionário do nosso tempo (mesmo se
as circunstâncias os limitaram quase todos ao destrutivo – o exemplo mais conhecido é
o do insurgente dizendo ao burguês suspeito que afirma que nunca se meteu com
política: “é justamente por isso que eu te mato”).
A Comuna de Paris foi vencida menos pela força das armas do que pela força do hábito.
O exemplo prático mais escandaloso é a recusa em recorrer ao canhão para tomar o
Banco de França, quando o dinheiro fez tanta falta. Durante todo o poder da Comuna, o
Banco permaneceu um enclave versalhense em Paris, defendido por algumas
espingardas e pelo mito da propriedade e do roubo. Os demais hábitos ideológicos
foram desastrosos em todos os sentidos (a ressurreição do jacobinismo, a estratégia
derrotista das barricadas em memória de 48 etc.).
10
A anedota dos incendiários, já nos últimos dias, indo destruir a Notre-Dame, e que
esbarram com o batalhão armado dos artistas da Comuna, é rica de significado: é um
bom exemplo de democracia direta. Mostra também, ademais, os problemas ainda por
resolver na perspectiva do poder dos conselhos. Será que aqueles artistas unânimos
tinham razão em defender uma catedral em nome de valores estéticos permanentes, e
em última instância em nome do espírito dos museus, enquanto outros homens
almejavam justamente ter acesso à expressão naquele dia, traduzindo por meio daquela
demolição seu desafio a uma sociedade que, na derrota iminente, jogava toda sua vida
no nada e no silêncio? Os artistas partidários da Comuna, agindo como especialistas,
encontravam-se já em conflito com uma manifestação extremista da luta contra a
alienação. Cabe censurar aos homens da Comuna não terem ousado responder ao terror
totalitário do poder com a totalidade do emprego de suas armas. Tudo leva a crer que se
tentou eliminar os poetas que traduziram naquele momento a poesia em suspenso da
Comuna. A massa de atos irrealizados da Comuna torna possível que se convertam em
“atrocidades” os atos esboçados, e que as lembranças sejam censuradas. A frase “aqueles
que fizeram revoluções pela metade não fizeram senão cavar uma sepultura” explica
também o silêncio de Saint-Just.
11
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12
13
A guerra social de que a Comuna é um momento ainda dura (muito embora suas
condições superficiais tenham mudado bastante). Sobre o trabalho de “tornar
conscientes as tendências inconscientes da Comuna” (Engels) a última palavra não foi
dita.
14
[Fonte: “Sur la Commune”, in Guy Debord, Œuvres, Paris, Gallimard, 2006, pp. 628-33.
Tradução: Raphael F. Alvarenga]
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Anselm Jappe
exaltava a crítica como um fim em si mesmo e utilizava a utopia como droga para
alimentar a destruição incessante, quer dizer, a negação determinada de todas as coisas
subsistentes. Qualquer petrificação, isto é, qualquer forma bem formada, fica dissolvida
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Zolla tem toda razão: Hegel é o ponto de partida daquela negação progressiva de
todos os aspectos do mundo estabelecido que não reivindicava nada de positivo no já
existente, seja na realidade empírica, seja na mente de Deus ou de algum inventor genial
como Fourier. Mas a “fúria do desaparecer”, como disse Hegel, não é niilista, enquanto
não é negação abstrata, mas negação determinada; não se trata de um genérico “não” a
todas as coisas, senão a demonstração de que tudo o que existe em sua unilateralidade
“se entregou aos braços do demônio e tem necessariamente que perecer” – como disse
Hegel citando o Fausto de Goethe2 – para abrir o caminho às formas mais elevadas, que
logo serão negadas a sua vez. Toda carga destrutiva da contribuição hegeliana estava já
encerrada em seu método. Os discípulos de Hegel não fizeram mais que lhe adicionar
esse conteúdo. A dialética hegeliana estava destinada a encontrar-se com a rebelião dos
poetas românticos e seus sucessores, os protótipos do sujeito moderno, impedindo
assim que essa rebelião degenerasse em desespero suicida frente a um mundo
aparentemente sem saída. Como veremos, grande parte da crítica social
verdadeiramente radical, do “trabalho do negativo”, foi uma resultante do encontro da
dialética hegeliana com o indivíduo que se rebelava contra o mundo: Stirner e Bakunin,
a poesia moderna, os dadaístas e os surrealistas, até achar uma espécie de resumo e
culminação nos situacionistas e Guy Debord.
Como se sabe, toda a dialética hegeliana se baseia na negação, à qual se outorga
uma importância antes nunca vista em toda a história do pensamento ocidental, salvo,
quem sabe, em algumas formas de misticismo ou na “teologia negativa”. Desde o
prefácio da Fenomenologia do Espírito, Hegel sublinha a inutilidade de todo
pensamento “se faltam a seriedade, a dor, a paciência e o trabalho do negativo”.3 Ao
longo do desenvolvimento histórico e individual, cada forma existe somente enquanto
dissolução e negação da forma precedente, que fica reconhecida em sua insuficiência.
Na Fenomenologia do Espírito não se fala de outra coisa, pois nada é tomado como um
princípio tanto histórico como lógico e ontológico. O fato mesmo de que algo exista se
deve ao nada, a negação do ser, pois do contrário este careceria de toda determinação.
1 Zolla, E. Che cosa è la tradizione. Milán: Adelphi, 1998 (citado em A Republica, 26 de março de 1998).
2 Hegel, G.W. F. Phänomenologie des Geistes. Suhrkamp, pág. 270.
3 Ibid, pág. 24.
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Devo limitar-me aqui a recordar, sem mais, que Hegel desenvolveu, a partir
desses princípios lógicos gerais, um sistema especulativo dentro do qual tanto a história
concreta quanto a história da filosofia, a filosofia da natureza, a estética, a religião e o
direito, se despregam a partir do princípio da negação determinada. Poucos anos antes,
no Fausto de Goethe, o diabo define a si mesmo como “o espírito que sempre nega”:
parece que aqueles anos foram a época em que a humanidade descobriu a negação.
É sabido, no entanto, que no sistema hegeliano o negativo é somente uma etapa
no caminho até o positivo, até uma positividade rica e articulada graças à contribuição
do negativo. “O falso é um momento do verdadeiro”, dizia Hegel; a alienação do homem,
que se vê negado por suas próprias criações, é somente um momento transitório do
desenvolvimento do Espírito universal que conduz à reconciliação final das
contradições. Partindo desse ponto de vista, a filosofia de Hegel é essencialista, em tudo
o contrário do niilismo. Não é casual que Hegel tenha acabado resgatando a prova
ontológica da existência de Deus. Contudo, a intenção de encerrar como em uma garrafa
o “inquieto devir na sucessão do tempo”, após descobri-lo como raiz do mundo
moderno, estava condenada ao fracasso. Os “jovens hegelianos” utilizaram a dialética do
seu mestre como ferramenta para desmontar em poucos anos, ao menos no plano
teórico, todas as construções humanas, de maneira tão completa que muito pouca coisa
ficou por fazer à posteridade. Efetivamente, desde então a filosofia, como disciplina
separada, reduziu-se à chata cópia do existente, empenhada, antes de tudo, em eludir a
força explosiva do negativo: não por acaso, tem sido essencialmente uma forma de
positivismo.
Os jovens hegelianos viam na filosofia de Hegel o meio para aniquilar o mal
presente e preparar as revoluções mais radicais, por muito que alguns espíritos menores
acreditassem que a negação puramente teórica era superior às inevitáveis limitações da
prática. Karl Grün, um dos chamados “socialistas alemães” vilipendiado por Marx e
Engels em A Ideologia Alemã, recomenda em 1845 aos franceses:
Deixai de beber café e vinho durante um ano [...] deixai Guizot governar e a Argélia ficar
sob o domínio do Marrocos [...] sentai em uma mansarda e estudai a Lógica mais a
Fenomenologia [...] (Ao cabo de um ano) vosso olhar será mortal, vossa palavra moverá
montanhas, vossa dialética será mais afiada que a mais afiada entre as guilhotinas. Vós
parareis diante do Hôtel de Ville... e a burguesia já era; acercareis ao Palácio Bourbon
que se desintegrará, toda a sua câmara dos deputados se dissolverá no nihilum album,
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Guizot desaparecerá, Luis Felipe empalidecerá até se tornar uma sombra histórica, e de
todos estes momentos que sucumbem se elevará, certo do triunfo, a idéia absoluta da
sociedade livre. 8
8 Cit. em Marx, K. e Engels, F. Die deutsche Ideologie, MEW, vol.3, pág. 476.
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um indivíduo vivesse apenas a metade do tempo, todas as sensações seriam mais fortes,
o tédio não existiria e a vida seria quase desejável:
Quisesse poder acelerar (a atividade vegetativa de nosso corpo) de modo que a vida se
reduzisse à medida da de alguns insetos, chamados efêmeros... Neste caso, suponho que
não restaria lugar algum para o tédio... Mas se tu queres de verdade ser útil aos homens
prolongando a vida, encontre uma arte pela qual se possa multiplicar o número de
sensações e de seus atos... Não crês que os antigos viviam mais que nós, já que devido
aos graves e contínuos perigos que costumavam correr, em geral morriam mais cedo?. 9
Somos todos uns egoístas. E agora? Somos mais felizes? De que gozamos? Uma vez se lhe
tenha tirado ao mundo o belo, o grande, o nobre, que resta de prazer, de vantagem, de
vida? Não digo em general nem para a sociedade, senão em particular e para cada um.
Quem é ou quem era mais feliz? Os antigos com seus sacrifícios, suas preocupações, suas
inquietudes, negócios, atividades, façanhas e perigos, ou nós com nosso amor ao bem
próprio e nossa despreocupação pelo bem alheio ou público etc.? Os antigos com seu
heroísmo ou nós com o egoísmo? 10
9 Leopardi, G. “Dialogo di um físico e di um metafisico”, em Operette morali. Milán: Garzanti, 1989, págs.
101-103.
10 Leopardi, G. Zibaldone, 21-I-1821.(Ed. Sansoni, Tutte le opere, págs. 180 e segs).
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sarcasmo tão áspero quanto certeiro. Portanto, não deixa de ser abusivo que os
herdeiros de tais movimentos pretendam reivindicar um “Leopardi progressista”, como
rezava o título do livro de um “intelectual orgânico” do Partido Comunista Italiano
publicado em 1947. Leopardi também não foi um reacionário ou um “existencialista”
apolítico, como ultimamente se tem afirmado com freqüência: tratava-se da crítica
daquele progresso, daquela “razão geométrica”, como ele próprio dizia, que outros logo
chamariam de razão instrumental ou sociedade da mercadoria. Existem momentos em
Leopardi que se assemelham à crítica da Dialética do Esclarecimento de Adorno e
Horkheimer. Em outros aspectos, era partidário do progresso entendido como
superação da Idade Média cristã, que para Leopardi, ao contrário de muitos outros
românticos, não lhe inspirava o menor assomo nostálgico. O que emerge do ideal da
Antiguidade é o desejo de uma vida apaixonada e apaixonante. Seu horizonte não era
nem a igualdade social nem o desenvolvimento das forças produtivas, porque tinha
compreendido aonde eles nos conduziriam: ao triunfo completo de uma sociedade
mercantil inteiramente vazia de conteúdos. Seu horizonte era mais próximo do “mudar
a vida” de Rimbaud. Não é casual que Nietzsche tenha sido um dos primeiros grandes
admiradores de Leopardi fora da Itália. Mesmo sem uma filiação direta, talvez se possa
dizer que Leopardi foi um dos pais daquela contestação da ordem existente há algumas
décadas cujo grito de guerra foi: “uma sociedade que aboliu a aventura converte a
abolição desta sociedade na única aventura possível”.
A negatividade radical, armada com todos os argumentos que lhe proporcionou
aquela suma da filosofia que foi a especulação hegeliana, se verificou graças ao ardor
subversivo liberado pelo sujeito moderno. O que distingue uma tal negatividade das
diversas perspectivas de transformação do mundo mediante revoluções ou reformas é a
presença de uma perspectiva individual, subjetiva e imediata, de uma aspiração à
felicidade aqui e agora, em lugar do sacrifício em nome de uma causa gloriosa que
algum dia haveria de dar seus frutos.
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tudo o que estivesse por sobre as próprias pessoas, enquanto para outro destes
personagens, significava a dedicação de corpo e alma à revolução social. Refiro-me a
Max Stirner e Mikhail Bakunin. Ainda que os historiadores da filosofia classifiquem
ambos, e não sem alguma razão, como “hegelianos”, prevalece neles o rebelde que só
num segundo momento se faz teórico. Stirner foi um dos poucos a quem se pode chamar
efetivamente de “niilista” e que aceitava este rótulo. Sua obra mais importante, O único
e sua propriedade, começa exatamente com a mesma frase com que acaba: “Eu fundei
minha causa em nada”. Esta obra pertence à crítica social somente num sentido muito
indireto, pois Stirner se opõe imparcialmente a qualquer tipo de sociedade. Com razão
se diz que Stirner não pode ser comparado nem a Marx nem a Bakunin ou os
anarquistas, mas a Pascal, Dostoievsky e Nietzsche ou, ainda melhor, ao Marquês de
Sade e Antonin Artaud.11
a conseqüência lógica até a negação total não apenas de qualquer mundo divino, mas
também de toda metafísica... Durante os anos 1830-40 prevaleceu a opinião de que uma
revolução que seguisse à difusão do hegelianismo, que está se desenvolvendo no sentido
de uma negação completa, teria de ser incomparavelmente mais radical, mais profunda,
mais impiedosa e de maior alcance destrutivo que a revolução de 1793.12
Homem que para Mallarmé, Villiers de L’Isle-Adam, Jarry e, sobretudo, para Dada foi o
verdadeiro messias: Hegel, cujo ‘idealismo absoluto’ exerce hoje em dia uma influência
enorme, até ao ponto em que tanto os partidos conservadores quanto os mais avançados
o reivindicam por igual. Estamos tentados a oferecer aqui um resumo desta doutrina que
nos é familiar e na qual se encontra a origem o Coup de dés (De Mallarmé), a Eve future
(de Villiers de L’Isle-Adam), as Spéculations (De Jarry), a vida de Jacques Vaché.
Entretanto, bastará recordar que até para explicar as bufonadas de certas manifestações
dadaístas mesmo os jornalistas mais toscos deram com Hegel.14
14 Breton, A. Oeuvres, vol. I Paris: Gallimard, 1988, pág. 632 (Projet pour la bibliothèque de Jacques
Doucet).
15 La Révolution surrèaliste, n. 5.
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determinatio est negatio”, como recordava também Hegel 16; e foi em Kant e Schelling
que estava pensando o inventor do termo “niilista”, Friedrich Heinrich Jacobi (1799),
autor de inclinações místicas.
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14 e segs.
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cuja fascinação parece tomar parte seu papel de “príncipe das trevas”. Debord chegou a
Paris aos 20 anos, em 1951, e logo em seguida sentiu-se atraído pelo recém formado
ambiente letrista, outro grupo animado pelo espírito de negação radical que resgatara e
radicalizara certos aspectos do dadaísmo e do surrealismo, sobretudo a intenção de
reduzir a poesia às letras puras. Mas antes de tudo, se tratava de um ambiente de
extrema oposição a todos os valores admitidos. Muitos anos depois, em 1978, Debord
ainda falava com entusiasmo daqueles “demolidores”, inteiramente dedicados à negação
vivida e existencial:
Havia naquele tempo nos bancos de areia à margem esquerda do rio [...] um
bairro onde tudo era decidido localmente. É comum em períodos sacudidos por grandes
mudanças, a pessoa, mesmo a mais inovadora, ter muita dificuldade durante algum
tempo para se livrar de muitas idéias antiquadas, tendendo a reter pelo menos algumas
delas, achando impossível rejeitar totalmente, como falsas e inúteis, afirmações que são
aceitas universalmente [...] Porém, é preciso acrescentar que [...] tais dificuldades
acabam logo superadas e um grupo das pessoas começa a fundar sua real existência em
uma rejeição deliberada daquilo que é aceito universalmente, e com total indiferença
para com as possíveis conseqüências. 23
Debord explica que aqueles indivíduos criam só e abertamente em que “nada é
verdade, tudo está permitido”: “Não existia nada acima de nós que pudéssemos
considerar digno de estima... Para quem pensa e age desta maneira, não há problema
algum em escutar por longos momentos aqueles que acham algo bom nas condições
existentes, ou mesmo algo meramente tolerável”.24 Ainda assim, é significativo que
Debord tenha se distanciado de todo niilismo abertamente assumido. Na revista
Internationale Lettriste de 1952 podemos ler o seguinte: “Não há niilistas, mas somente
impotentes”25; e no número subseqüente da mesma revista se encontra um breve artigo
de Debord intitulado Pour en finir avec le confort nihilist. Em 1957, Debord escreve, em
retrospectiva, na revista Potlatch: “Cabe observar, portanto, que certo niilismo
satisfeito, que era majoritário na Internacional Letrista até as expulsões de 1953, se
23 Debord, G. In girum imus noctec et consumimur igni (filme de 1978). Paris: Gérard Lebovici, 1990,
págs 33 e segs.
24 Ibid, Idem.
25 Em Berrébr, G. (ed.), Documents relatifs à la fondation de l’Internationale Situationniste. Paris: Allia,
Parece, enfim, que não encontramos o niilismo em nenhum lugar. Ainda assim,
chamar de “niilista” a crítica social radical é algo mais do que uma mera reação
defensiva. Para ser exato, não é nada menos que uma distorção da verdade: niilista é a
própria sociedade moderna, e isso por motivos que vão muito além do quanto indicaram
Nietzsche ou Heidegger. A sociedade moderna é niilista porque o nada, a carência de
fundamentos, é o núcleo de seu modo de produção. Quando não se produz para o valor
de uso, mas unicamente para o valor de troca, quando o trabalho não serve para
satisfazer nenhuma necessidade concreta, mas somente para fabricar quaisquer objetos
destinados ao mercado (o que Marx chamou de “trabalho abstrato”), então a abstração,
o puramente quantitativo, o predomínio da forma - e concretamente a forma-
mercadoria - sobre qualquer conteúdo determina o conjunto da vida social. O valor de
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32 Hegel, G.W.F. Lecciones de historia de la filosofia, cit. em Krahl, H.J. Konstitution und Klassenkampf.
Frankfurt a. M.: Verlag Neue Kritik, 1971.
33 Horkheimer, M. Montaigne und die Funktions der Skepsis (1938), em Gesammelte Schriften, vol. IV.
Anselm Jappe
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1 Citado em Th. W. Adorno, “Lecture de Balzac”, in: Notes sur la littérature, trad. S. Muller, Paris,
Flammarion, 1984.
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perda de sentido, a destruição da linguagem. Mas ela deve fazê-lo utilizando-se de todos
os meios artísticos existentes. Somente assim a arte estará à altura das forças produtivas
atuais e poderá deixar entrever um outro uso possível. É nisso que reside, segundo
Adorno, o lado emancipatório da arte moderna. Este indica a possibilidade de uma
relação diferente, não repressiva, entre o sujeito e a natureza, e subtrai a obra de arte do
imperativo categórico da sociedade mercantil segundo o qual todas as coisas devem ser
“úteis” e participar da troca. De tal modo, a arte moderna, por ser abstrata e
aparentemente distante da experiência vivida é, na verdade, segundo Adorno, sempre
ligada ao desenvolvimento da realidade.
Para Lukács, ao contrário, a arte que se pretende “desfetichizante” – deve ser
“realista”, e não abstrata, porque ela tem por tarefa recolocar o homem no centro da
sociedade, enquanto a aparência fetichista o faz acreditar que ele já não se encontra
mais nesse centro. Sua concepção de fetichismo é, deste modo, diametralmente oposta a
de Adorno: o fetichismo, no sentido de Lukács, atribui falsamente as ações dos
indivíduos e dos grupos sociais às forças impessoais, subtraídas do controle e da
responsabilidade humana. Por conseguinte, a arte, por ser “desfetichizante”, deve ser
também “antropomorfisante”. Ela deve mostrar que, sob a superfície reificada, é o ser
humano que age. Como se sabe, o grande exemplo citado por Lukács é Balzac. A arte
tem igualmente por missão revelar que a falta de sentido, o isolamento e o absurdo aos
quais o homem moderno vê-se exposto não constituem a realidade mais profunda, mas
uma aparência fetichista atrás da qual se escondem os interesses de classe. Os mesmos
autores que, para Adorno, representam a verdadeira crítica do fetichismo como Beckett
ou Kafka, mas também as pinturas expressionista ou surrealista (em menor medida),
são, aos olhos de Lukács, o auge da fetichização (mesmo tendo mudado de opinião
quanto à obra de Kafka).
As posições estéticas diferentes de Debord, Adorno e Lukács estão estreitamente
ligadas às suas diferentes interpretações do conceito de fetichismo. Em Lukács, o
fetichismo é somente uma forma de falsa consciência, uma falsa representação de
mundo que é preciso substituir por uma visão justa, que ele denomina “realista”. Para
Adorno e para Debord, as relações humanas são realmente falsificadas. O fetichismo
transformou a natureza da vida social. É preciso denunciar o escândalo em lugar de ver
nele uma simples mistificação.
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2 Ao mesmo tempo, não é necessário superestimar este aspecto. A arte moderna exprimiu (muito mais
que o movimento operário da mesma época) tudo o que era refratário à lógica mercantil, como, por
exemplo, a resistência ao trabalho e à subordinação da vida às exigências da produção. Em certos
momentos, a arte era mesmo a única possibilidade de formular esta situação de mal-estar.
3 H. Friedrich, Structure de la poésie moderne, Paris, Le Livre de poche, 1999; Previamente Paris, Denoël-
Gonthier, 1976. (Orig.: Die Struktur der modernen Lyrik. Von Baudelaire bis zur Gegenwart,
Hamburg, Rowohlt, 1956).
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4 O Rayonismo é um movimento artístico russo criado pelo pintor M. Larionov e sua esposa N.
Gonchárova entre 1910-12. É reconhecido como uma das primeiras manifestações da moderna arte
abstrata (N.d. T.).
5 Autores como Mallarmé, Joyce ou Beckett mostraram muito pouco interesse pela praxis social (mesmo
levando em conta a defesa dos anarquistas feita por Mallarmé). Em autores como Rimbaud ou Picasso,
uma atitude convencional “de esquerda” ou revolucionária não tem relação íntima com os aspectos
formais de sua arte. Diferentemente, os dadaístas e os surrealistas procuraram criar conscientemente
essa relação.
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“(...) não há liberdade artística possível antes de nos apoderarmos dos meios
acumulados pelo século XX, que são para nós os verdadeiros meios de produção artística
(...) O domínio da natureza pode ser revolucionário ou tornar-se a arma absoluta das
forças do passado” 6.
“A arte é moderna graças à mímesis do que é endurecido e alienado. É assim, e não pela
negação da realidade muda, que ela se torna eloqüente (...) Baudelaire não vitupera
contra a reificação, ele não a reproduz também, ele protesta contra ela na experiência de
seus arquétipos”7.
para trocá-lo pela linguagem pura.8 Ele vê nisso a única saída frente ao nada ontológico
que, em sua visão, representa a verdadeira forma do absoluto. Friedrich faz
explicitamente do “aniquilamento do real” uma característica de toda a lírica moderna
(p. 133). Com Mallarmé, as coisas existem somente enquanto destruídas. Ele dizia dele
mesmo: “A destruição fez minha Beatriz”, e sua criação mais conhecida foi a página
branca. Em geral, os poetas e artistas modernos proclamaram alegremente seu
programa de destruição, sempre se opondo à mentalidade “construtiva” do burguês
execrado. “A ausência do mundo” que Lukács atribuiu com agressividade, mas nunca
sem razão, à arte moderna é a conseqüência desse prévio “aniquilamento do mundo”.
As grandes utopias sempre participaram na obra destrutiva do capitalismo. A
idéia de poder impor à realidade as concepções nascidas da cabeça e de fazer “tabula
rasa” de toda tradição corresponde, por um lado, à lógica do artista moderno que queria
remodelar o mundo de acordo com sua própria subjetividade pura; por outro lado, à
lógica do valor que reconstrói o mundo de acordo com a sua própria imagem, e lhe
impõe violentamente uma forma sem conteúdo. Essa remodelação do mundo pode ser
obra de um aparelho de Estado (o Estado stalinista mais que qualquer outro), mas isso
também pode ser operado, ainda que de modo dissimulado bem como menos visível,
pelas forças do mercado. É tudo particularmente sensível no domínio da arquitetura
racionalista e funcionalista, fáceis de criticar. O mesmo vale para a arquitetura
aparentemente oposta, elaborada por um membro da Internacional situacionista como
o arquiteto holandês Constant. No final das contas, a cidade utópica “New Babylon”
projetada por Constant (projeto que, segundo seu autor, devia cobrir o planeta inteiro e
que foram expostos no Centro Georges-Pompidou em 1989 e mais recentemente em
Dokumenta 2002 de Kassel) não é tão diferente da “Cite radieuse” realizada por Le
Corbusier, da “máquina de habitar” como este último chamava com orgulho suas
construções, em relação às quais a arquitetura situacionista de Constant era considerada
um contraponto9.
8 Malevitch escreveu um pouco mais tarde: “O que expus não era um quadro vazio, mas a sensação de
ausência do objeto” (citado por Johanna W. Stahlmann, Teses sobre o fim do belo, in: Krisis 12 [1992],
p. 175). Certamente, artistas como Mallarmé ou Malevitch têm um lado místico que se inscreve numa
longa tradição para a qual o mundo é apenas um disfarce e um jogo de aparências. A “destruição do
mundo” executada no espírito não pertence, por conseguinte, apenas à sociedade mercantil. Contudo, a
forma especifica e não religiosa que toma essa idéia em certas correntes da arte moderna (os exemplos
são numerosos) é típica da sociedade da mercadoria.
9 Sobre a arquitetura de Constant, ver o dossiê na Sinal de Menos, n. 5, p. 26-71 (N. d. E.).
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Hoje em dia a arte não tem mais que ajudar na “destruição do mundo” operada
pelo valor. A obra de aniquilamento que devia acabar (e havia necessidade disso) se
encerrou. Mas o retorno à arte “clássica” do século XIX ou do “grande realismo” pregado
por Lukács é irrealizável. A arte moderna e o neoclassicismo são o avesso e o reverso da
mesma medalha, a exemplo das luzes e do romantismo. É necessário efetivamente
“salvar o homem”, como queria Lukács, mas não lhe atribuindo por decreto um status
que ele não tem na sociedade fetichista. A “perda dos sentidos” na sociedade capitalista
é bem real e não somente, como Lukács pensava, uma questão de “perspectiva”. É
preciso então se perguntar se não pode existir uma arte em forma tradicional, mas
atenta às fraturas e à negatividade. Esta foi a característica da literatura barroca que, na
forma e no conteúdo, antecipou numerosos traços da arte moderna e afrontou a
negatividade sem, no entanto, tornar-se cúmplice dela. A esse olhar, a obra de Walter
Benjamin continua sempre atual.
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Extratos de Pollock
Ou, Pintura moderna e trabalho abstrato
Cláudio R. Duarte
“Painting is self-discovery. Every good artist paints
what he is.” (Jackson Pollock, 1956)
Efeito de encantamento
O centenário de Jackson Pollock (1912-1956) passou em relativo silêncio por
estas bandas – em absoluto contraste com a agitação que provocou em seu tempo,
prestes a torná-lo uma lenda –, mas digno talvez do silêncio que suas obras mais
radicais no estilo dripping (“gotejado”) e all-over (“cobertura integral”) impõem ainda
hoje ao observador, desde que começaram a aparecer por volta de 1947.
Dadas as suas dimensões colossais, elas se impõem como uma presença física
maciça, enigmática, resistindo duramente à interpretação. Nada refletem ou significam.
Ainda hoje, a sensação para muitos que as contemplam pausadamente é a de uma
absorção hipnótica ou mesmo a de um arrebatamento místico.
(Jackson POLLOCK, Lucifer, 1947, Óleo, esmalte e pintura de alumínio s/ tela, 104,1 x 267,9 cm.)
O que vai sugerido por alguns de seus títulos, tais como Lucifer (Fig. 1)1,
1 Cf. essa tela em alta resolução, juntamente com alguns vídeos do pintor em ação, em:
http://www.sfmoma.org/explore/multimedia/interactive_features/61 (Acesso: 29.11.12, salvo menção
contrária, todos os links deste ensaio têm essa data como referência). Há um panorama geral
(incompleto) de suas obras, em formato digital de qualidade mediana, em:
http://www.wikipaintings.org/en/jackson-pollock/mode/all-paintings
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2 Cf. http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-online/show-
full/piece/?search=jackson%20pollock&page=1&f=quicksearch&cr=7
3 http://www.humanitiesweb.org/human.php?s=g&p=c&a=p&ID=1233
4 Cf. http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-online/show-
full/piece/?search=jackson%20pollock&page=1&f=quicksearch&cr=6
5 Cf. http://www.nga.gov/fcgi-bin/timage_f?object=55819&image=13750&c=20centpa
6 Conforme Greenberg, a pintura all-over de Pollock é “‘descentralizada’, ‘polifônica’, [e] depende de uma
superfície composta de elementos idênticos ou muito semelhantes que se repetem sem uma variação
marcada de uma borda a outra da pintura. É um tipo de pintura que prescinde, evidentemente, de
começo, meio e fim. Embora a pintura ‘all-over’ quando bem-sucedida, ainda seja pendurada numa
parede com efeito dramático, ela se aproxima muito da decoração – do tipo visto em padrões de papel
de parede que podem se repetir indefinidamente –, e na medida em que a pintura ‘all-over’ permanece
uma pintura de cavalete, o que ocorre de certo modo, ela contamina a noção do gênero com uma
ambiguidade fatal”. E ainda: a tela sai “preenchida de ponta a ponta com motivos regularmente
espaçados que se repetem uniformemente como os elementos de um padrão de papel de parede, e que
portanto parecem capazes de repetir a pintura ao infinito para além de sua moldura.” (GREENBERG,
Clement. “A crise da pintura de cavalete” [1948] e “Pintura ‘de tipo americano’ [1955-58] in: __. Arte e
cultura: ensaios críticos. Trad.: Otacílio Nunes. São Paulo: Ática, 1996, p. 165 e p. 223, grifos meus).
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Momentos do feito/feitiço
Arte desencantada, quebradora de tabus e convenções, ao mesmo tempo, aquela
espécie de “participação nas trevas” identificada por Adorno na arte moderna, que
incorpora em si a alienação da totalidade, vestindo o “ideal do negro” e criando uma
espécie de “compensação imaginária” utópica diante da “catástrofe da história do
mundo”8 – eis os dois ou três momentos significativos que, como tudo em Pollock, se
entrelaçam, conferindo-lhe densidade histórica e tornando o seu trabalho uma
referência central do alto modernismo.
7 Cf. ROSENBERG, Harold. “The American Action Painters”. Art News, vol. 51, n. 8, Dez. 1952, pp. 22-23,
48-50. Ver também: Idem, O objeto ansioso. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
8 ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Lisboa: Ed. 70, 1993, p. 53 e 156-7.
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Poética do excesso
Em vários sentidos, eis aqui uma poética do excesso. Excesso de meios materiais,
indistinto de um excesso de construção – uma construção negativa, porém, que
suprime a plena elaboração dos meios utilizados, como nos faz pensar Rodrigo Naves,
quando diz em uma observação refinada:
“O problema de Jackson Pollock é a rigor criar uma resistência ao próprio ato de pintar,
um método que possibilitasse que as formas daí resultantes fossem a concretização da
própria dificuldade de formalizar – uma recusa portanto a usar o pincel como um
9 ARGAN, Giulio C. Arte moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos [1970]. São Paulo:
Cia. das Letras, 2010, p. 622 e 681 (termo de Lara-Vinca Masini), grifos meus.
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Um trabalho material e tanto, porém, que produz de modo expandido muitas telas
numa só, segundo sua medida disparatada e sem-sujeito, sem dar conta dos excessos
que introduz na tela.11 Ao contrário da arte moderna brasileira, aqui não há nenhuma
“timidez formal”, tal como a estudada por Naves em Guignard e Volpi. 12 A recusa
pollockiana de idear, de usar o pincel etc. não é a negação da construção e da
domesticação – mas antes uma negação do limite da formalização tradicional que
plasmava uma ideia, impressões, emoções etc. de um sujeito sobre um objeto. Abstraído
o polo da expressão subjetiva, tende a restar o polo construtivo elementar do drip –
como método objetivado, automático e aleatório em relação ao pano não esticado. Em
certo sentido, parece-nos que Pollock domina ainda mais a tela ao pintá-la no chão,
submetendo-a a partir do alto, manifestando toda a sua corporalidade sobre o suporte,
convertendo-o em tela de projeção – não de um eu – mas de processos corporais
objetivados; técnica que pode ser lida como uma dominação subjetiva ainda mais
integral da natureza e de seus meios materiais (inclusive domesticando novas tintas
industriais etc.). Essa profanação técnica tende ao “ritual” do “caráter fetichista”, ao
contrassenso de uma “linguagem da alienação absoluta” – nesse ponto preciso algo
semelhante às aporias técnicas da lógica objetivada da nova música.13
O movimento do capital é “sem fim” e “desmedido”.14 Do mesmo modo, o
trabalho aqui não tem começo e muito menos um fim predeterminado. Ninguém pode
dizer que ele não poderia ser continuado ad infinitum – até o “apocalipse”, que é
também a aparência de muitas de suas telas –, tal é a sua lei. Desse modo, ela tende a se
tornar uma work in progress ou uma espécie de “obra aberta sempre aberta” a uma
10 NAVES, Rodrigo. “Jackson Pollock: a água-viva e o mar” in: __. O vento e o moinho. Ensaios sobre arte
moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 254.
11 “Há um excesso de matéria em relação aos precários limites físicos que tentam confiná-la; (...) um
trabalho que não dá conta dos processos que desencadeia: um mundo desmesurado e no entanto feito à
nossa medida.” (Idem, ibidem, p. 265.)
12 NAVES, Rodrigo. A forma difícil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
13 ADORNO, Theodor. W. Philosophie de la nouvelle musique. [1948] Paris: Gallimard, 1979, p. 79 e 114,
175... Um diagnóstico que vale tanto para Stravinski como para a escola de Schoenberg.
14 MARX, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988, Livro I, tomo 1, p. 124-126. Masslos é traduzido
Estética luciferina
“A apropriação do trabalho pelo capital, o capital absorvendo em si o
trabalho vivo, se apresenta ante o trabalhador de maneira cruamente
perceptível – ‘como se tivesse amor no corpo’” (Marx, Grundrisse,
citando o Fausto de Goethe).
Não seria possível descrevê-la segundo a Teoria do romance, como uma estética
“luciferina” ou “demoníaca”? De fato, ela surge do sentimento angustiado da alienação
entre sujeito e objeto – e da luta do sujeito ativo contra a “indolência e autossuficiência
d[a] vida [cotidiana] que apodrece em silêncio.” “O herói [“problemático” do romance
burguês] é livre quando, com pertinácia luciferina, atinge a perfeição em si e a partir de
si mesmo, quando – para a atividade de sua alma – exila todas as meias medidas do
mundo onde seu ocaso reina soberano.”17 Tal como no Fausto, ela sai em busca de uma
nova ligação vital com o “grande mundo”, não mais intelectual, mas prática. Desse
ponto de vista, ela aparentemente só tomaria os seus desejos como a realidade
verdadeira, quebrando todas as convenções do belo e do útil, num confronto político
que vai em busca de um gozo intenso, por assim dizer “fáustico”:
“Herrschaft gewinn' ich, Eigentum! / Die Tat ist alles, nichts der Ruhm”
(Domínio eu quero, apropriação! A ação é tudo, a glória nada).
“No princípio era a ação” – mas puramente mefistofélica ou luciferina: arte como
comportamento afirmativo e desmedido sobre a tela – a “comédia de uma revolução que
Um excesso organizado
Just paint: se a ação impensada ou o gesto abstrato e impessoal é tudo, o gracejo
sobre tais telas serem factíveis por uma criança, um chimpanzé ou sabe-se lá qual
processo originário de fractais20, não deixa de ter o seu grão de verdade. Inquirido por
Hofmann, certa vez, Pollock diz que não precisava pintar a natureza: “Eu sou a
natureza”. “The man may be over forty, the painter around seven” – constatava
Rosenberg.21 Que o confirmem ainda Deleuze e cia., vendo em Pollock um dos modelos
estéticos do seu “espaço liso” ou “espaço nômade”, com a sua “linha abstrata”,
“desterritorializada”, “rizomática”, “inorgânica”, como “puro fluxo do devir” e livre
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Isso que a faz muito mais afim, aliás, ao free jazz ou à música regressiva de
Stravinksi do que à dissonância estritamente construída da Escola de Viena (como
pensara Greenberg). Não é por isso mesmo que Pollock é mais fácil de ser copiado do
que qualquer outro pintor abstrato? Obviamente isso não ocorre porque tal técnica seja
ingênua, ou esteja facilmente disponível a qualquer um (contanto que se tome alguns
litros de uísque – aliás, na fase do dripping, o pintor permaneceu sóbrio), muito menos
22 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 2002,
vol. 4, p. 97-98, e vol. 5, p. 203-214. Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Organs without Bodies: on Deleuze and
Consequences. New York: Routledge, 2004, p. 5.
23 ARGAN, op. cit., p. 622, grifos nossos.
24 Contudo, o autor pensa o método do tachismo e da action paiting como puro espontaneísmo, que
resulta em meras casualidades e arbitrariedades (BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo:
Cosac Naify, 2012, p. 124).
25 ADORNO, Teoria estética, op. cit., p. 39.
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porque adote as cegas leis naturais como princípio; mas sem dúvida porque ela
desprende-se voluntariamente do legado plástico tradicional, tendo-se como um ato de
liberdade radical e iconoclasta. Ato idêntico, porém, a uma regressão mimética para
aquém das formas construtivas alcançadas pela arte abstrata de seu tempo, ou pelo
próprio Pollock nos anos 30 (ainda influenciado por Picasso, Miró, Masson, Orozco,
Hofmann, entre outros). A renovação técnica, em sua revolta contra as convenções, aqui
tem um aspecto infantil, regressivo, selvagem, como veículo de expressão caótica de
energia vital, de angústias, dos choques traumáticos reprimidos por tais convenções.26 E
no entanto não se pode dizer que não se constroem novos padrões formais a partir desse
aparente abandono à simples imediaticidade.
A recusa relativa da pré-ideação e da figuração temática, a acumulação aleatória
de materiais mediante a justaposição de grandes camadas de tinta até vazar as bordas
da tela, a redução da pintura à exposição dos movimentos que originaram a sua
fabricação, a ausência de centro e de contraste de valores, o aspecto de textura e, no
limite, de papel de parede decorativo – tudo isso fixa um padrão estético incomum, pois
é o resultado de uma espécie de ritual de “sacrifício técnico” do sujeito. Não se deve
exagerar no aleatório e no improviso, portanto, esquecendo o seu aspecto de totalmente
fabricado.
Em Lucifer, vê-se uma difusão de pingos coloridos (vermelhos, laranjas,
amarelos, azuis, roxos) bem distribuídos pela superfície, em meio à rede de linhas e
manchas pretas e verdes e à textura em tinta esmalte e alumínio, criando um certo
padrão formal repetitivo bastante eficaz. Como dizia o pintor, são “pinturas sem começo
nem fim”, mas há certamente quadros perdidos ou não plenamente conseguidos.
Conclui-se que Pollock, com a sua “dança ritual” (levada simbolicamente a sério por
entusiastas da comarca junguiana), corta a expressão subjetiva tradicional – ao mesmo
tempo em que, erguendo o quadro na parede, retoma a distância e passa a reforçar a
tinta em certas zonas do quadro e a corrigir o que aparecia de início mero acaso. Por
isso mesmo, a tela homogeneíza uma certa textura coerente, enfim, cria uma forma
negativa. O domínio do acaso salva-a da heteronomia radical, da impossibilidade de
Cf. a similaridade com as primeiras obras de Schoenberg e de Webern e de toda a obra de Stravinski:
26
arte, produzindo uma segunda imediaticidade, que aparece como uma segunda
natureza. Por isso mesmo se torna necessária, durável, consistente como obra.
27 Cf. http://www.wikipaintings.org/en/search/jackson%20pollock/1#supersized-search-185565
28 Cf. http://images.albrightknox.org/luna/servlet/view/all/who/Jackson+Pollock?res=2
29 Cf. http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=79680
30 Cf.http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=79690
31 Cf.http://www.humanitiesweb.org/human.php?s=g&p=c&a=p&ID=1234
32 Cf. http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-online/show-
full/piece/?search=Eyes%20in%20the%20Heat&f=Title&object=76.2553.149
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e ali como significantes, com cores que sugerem um tema, a vida remanescente ou em
ebulição, escapando à frieza e à clareza da simples representação.
Nas primeiras telas do estilo dripping, após 1947, os nomes sugerem ainda a
temática do mistério e da transcendência, como daria no seu “Lúcifer” ou nas brumas
envolventes da “Floresta encantada” e da “Catedral”. O passo seguinte de Pollock,
socialmente mergulhado na era “do avião, da bomba atômica, do rádio”, como ele um
dia resumiu o espírito objetivo dos anos da Guerra Fria, é claramente destrutivo de toda
referência primária, salvo é claro a do movimento em abstrato, tal como vemos, por
exemplo, ainda, em Vortex (1947), Full Fathom Five (1947, fig. 6)33, Number 1-A, 194834
e Number 31, 195035. As telas aparentam-se cada vez mais a trabalhos materiais
intensos. A referência social do trabalho, como trabalho abstrato, intensifica-se por
meio do filtro dessa forma que recusa a pintura artesanal tradicional. Assim, poder-se-ia
afirmar que, numa espécie de Aufhebung (supressão/ conservação/ elevação) do
conteúdo em forma, Pollock dá aqui o passo decisivo que permite imitar e apresentar a
lógica social de redução do trabalho concreto à substância de trabalho humano
abstrato.
Doravante, nas telas começa a predominar uma malha densa, sombria e
aparentemente anárquica, como vimos, com o privilégio do preto, do branco e do cinza,
em geral desistindo dos temas e das titulações (trocadas por números e datas de
produção). Os quadros se fecham cada vez mais numa massa gigantesca de manchas e
pingos justapostos que, como bem notou pioneiramente Clement Greenberg, têm todos
a “mesma importância”, são “equivalentes em acento e ênfase”, criando uma
“uniformidade”, uma “pura monotonia”, uma “acumulação de repetições”, que dissolve
“o pictórico em mera textura, em sensação manifestamente pura” – talvez expressando,
segundo o crítico, um “naturalismo monista para o qual não há coisas primeiras nem
últimas”.36 Tal equivalência abstrata e monista parece nos remeter claramente à lógica
capitalista do dinheiro: o valor como coágulo de trabalho homogêneo, que, em seu
impulso de autovalorização, expande-se torrencialmente como criação de mais-trabalho
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37 “Surge como produto uma horizontalidade movediça, uma espécie de água-viva, uma coisa que se opõe
às outras coisas” (NAVES, “Jackson Pollock: a água-viva e o mar”, op. cit., p. 261).
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38 “Na ação pollockiana (...) o corpo aparece como atividade significativa bruta, um momento residual do
trabalho, sem um fim externo e carente de uma totalidade que lhe empreste sentido. Enfim, uma recusa
completa a atribuir sentido à alienação. Normalmente, exterioridade e alienação aparecem quase como
sinônimos. Na obra de Pollock, no entanto, exterioridade é rigorosamente a realização da
descontinuidade possível entre trabalho (no sentido corrente) e criação.” (NAVES, op. cit., p. 258-9).
39 Assim, na conclusão de seu artigo, Naves parece retificar a posição anteriormente citada: “Este processo
no entanto [o crítico comenta aqui a arte de Richard Serra] – e mais uma vez volta a semelhança com
Pollock – se efetiva por meio de um determinado trabalho, anônimo e industrial, alheio à tradição de
moldar artesanalmente a matéria do mundo. Esse trabalho, em lugar de resumir-se a uma operação de
transformação de um material em uma forma, procura estabelecer, na justaposição de elementos, um
desequilíbrio em que a própria relação entre as partes não trabalhadas das obras adquire
expressividade” (NAVES, op. cit., p. 265). Vide a questão do fetiche nas obras atuais (op. cit., p. 240-2).
40 “Em numerosas obras autênticas da arte moderna, o estrato material industrial é rigorosamente evitado
como tema, por desconfiança perante a arte mecânica como pseudomorfose; mas, negada pela redução
do tolerado e por uma construção reforçada, afirma-se com maior força: assim em Klee. (...) É moderna
a arte que, segundo o seu modo de experiência, absorve o que a industrialização produziu sob as relações
de produção dominantes”. (ADORNO, Teoria Estética, op. cit., p. 47.)
41 Cf. READ, Herbert. História da pintura moderna [1968]. São Paulo: Círculo do Livro, 1980, p. 266 e
42 Cf. KURZ, Robert. “A estética da modernização – da cisão à integração negativa da arte” in:__. Com
todo vapor ao colapso. Juiz de Fora: Editora UFJF / Pazulin, 2004, p. 120. Ver também toda a
regressão ao fetichismo da técnica e à “alienação como objetividade” na nova música, tal como analisada
por ADORNO (Philophie de la nouvelle musique, op. cit.).
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43 JAFEE, Barbara. “Jackson Pollock's Industrial Expressionism”. Art Journal, Vol. 63, No. 4 (Winter,
2004), p. 79.
44 Cf. as posições de Stravinski em ADORNO, Philosophie de la nouvelle musique, op. cit., p. 174-186.
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45 “Enquanto na indústria o acidente é um fato que destrói a ordem, interrompe um processo regular e
deve ser eliminado, na pintura o aleatório ou acidental é o princípio de uma ordem”. SCHAPIRO, Meyer.
“A pintura abstrata recente (1957)” in:__. A arte moderna - séculos XIX e XX. São Paulo: Edusp, 1996,
p. 282 e 285.
46 ARGAN, Giulio C., op. cit., p. 622.
47 DORFLES, Gillo. Tendências da arte de hoje. Lisboa: Arcádia, 1964, p. 88.
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48 VALLIER, Dora. A arte abstrata. Lisboa/São Paulo: Edições 70/Martins Fontes, 1986, p. 214.
49 DORFLES, Tendências da arte de hoje, op. cit., p. 88, grifos nossos.
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50 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia – Reflexões a partir da vida danificada. São Paulo: Ática, 1993,
§ 28, p. 41, grifos nossos.
51 BENJAMIN, Walter. “Über einige Motive bei Baudelaire [1939]”, Gesammelte Scriften, B. I. Frankfurt:
Surhkamp, 1974, p. 609 e ss. Trad.: “Sobre alguns temas em Baudelaire” in: Charles Baudelaire, um
lírico no auge do capitalismo, OE, III. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 105 e ss.
52 “O trabalho parece uma categoria muito simples. A representação do trabalho nessa universalidade –
como trabalho em geral – também é muito antiga. Contudo, concebido economicamente nessa
simplicidade, o ‘trabalho’ é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples
abstração. (...) Essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado mental de uma totalidade
concreta de trabalhos. A indiferença para com o trabalho determinado corresponde a uma forma de
sociedade na qual os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo
determinado do trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho
deveio, não somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação de riqueza em geral e,
como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos em uma particularidade, como determinação.
Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau de desenvolvimento na mais moderna forma de
existência da sociedade burguesa – nos Estados Unidos. Logo, só nos Estados Unidos a abstração da
categoria ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho ‘puro e simples’ [sans phrase], o ponto de partida da
Economia moderna, devém verdadeira na prática.” MARX, Karl. Grundrisse (Manuscritos econômicos
de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política). São Paulo: Boitempo, 2011, p. 57-8.
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Alguns intérpretes, caminhando por uma via mais empírica direta, de fato não afastam o
referencial americano natural, social e urbano de sua obra. Um bom crítico, Leo
Steinberg – que vê nas telas do expressionismo abstrato ainda uma relação visual do
homem ereto perante a natureza e nas telas de Pollock algo como as “moitas” [thickets]
no campo –, ajuda-nos a construir a genealogia de toda uma estética nacional, inserida
aí a action painting, que tende se tornar um corpo a corpo com a vida, o trabalho, a
ação, o happening, o jogo, a coisa real:
“Desde a Segunda Guerra Mundial, a arte americana é impensável sem esse impulso
libertador rumo a algo diverso da arte (...). Arte não, mas indústria. Não ser artesanal,
mas produzir uma série, uma linha. Dar instruções por telefone a uma siderúrgica e
realizar uma arte intocada pela mão do artista. (...) Arte não, mas objetos, e esses objetos
promovidos como coisas acima da arte, embora tenham sido concebidos com um legítimo
objetivo estético: manter a coisa feita inarticulada, suas relações internas tão minimizadas
que não reste nada senão uma relação imediata com o seu ambiente externo”. (...) “Arte
não, mas happenings, arte não, mas ação social, arte não, mas transação, ou situação,
experimento, estímulo comportamental. Arte não, mas investimento”.53
Como reforça ainda mais Argan, “a arte nos Estados Unidos tem suas várias
correntes, porém todas partilham a infração das censuras, a coragem do excessivo e do
paradoxal, da projeção em escala gigantesca. A arte é o local onde se regenera e se
purifica o pragmatismo alienante da vida cotidiana: ela também é pragmática e ativista,
mas positiva e criativa”.54 A positividade, diríamos nós, é o problema crucial para
Pollock: como produzir sem simplesmente confirmar o já existente, abrindo fissuras na
técnica quase-automatizada?
53 STEINBERG, Leo. “Outros critérios” in: Ferreira, G. e Mello, C. Clement Greenberg e o debate crítico.
Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 181-2.
54 ARGAN, Arte moderna, op. cit., p. 527.
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55 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 204.
56 ARGAN, Giulio, Arte moderna, op. cit., p. 538 e 531-2.
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“Faço, logo existo” – tal seria a fórmula desse sujeito pollockiano, que nos lembra de
perto o “sujeito sem objeto” proletarizado de Marx, que se torna mera potência de
trabalho em abstrato, separado dos meios de produção, há muito convertidos em
Capital, e que só existe de fato em seu ato para o Outro, após a troca. Só após o
sacrifício comercial de si pode ele ser reconhecido socialmente. Como trabalho abstrato
estritamente manual, prescinde-se de fato da consciência teleológica do arquiteto.
Invertendo a antropologia geral do processo produtivo, o homem torna-se aqui, na
prática-limite, o “apêndice da maquinaria” (Marx) ou uma espécie de “abelha” que
executa trabalho material em geral (cf. Kurz) e já não precisa questionar o conteúdo, a
finalidade, a utilidade ou a qualidade do que faz. Tanto faz se são quadros, purgantes ou
bombas. O trabalho reduzido, no limite, a impulso cinético cristalizado em matéria
bruta. Sem o pensar, Pollock aproxima-se perigosamente do ato mecânico, inimigo da
arte – um traço inteiramente visível nesse “devir-imperceptível” (para falar como
Deleuze e Guattari) em direção ao inorgânico, ao literal, em suma, ao Real não
simbolizado.57 No coração desse Real, imagina-se alcançar o ato livre e o ser autêntico;
de fato encontra-se a imitação de um inconsciente “esquizo”, dublê do capital. Seu ritual
vazio extrai um gozo da regressão – oposto ao le goût du néant baudelaireano – que
serve, no limite, como calmante imaginário para superar a frieza do mundo.
De outro ponto de vista, o “devir-nômade” de Pollock esconderia em seu cerne a
condição de um miserável devir-proletário, a posição social de instrumento/objeto do
gozo do Capital, e que nada ganha em ser filosoficamente estetizada e inocentada.58
Essa posição aparece dialetizada o mais literalmente possível num desenho de
Pollock chamado War, de 1947.59 Embora pouco comentado, nele pode-se ver em ato a
transição do concreto ao abstrato da produção pollockiana na massa de matéria
acumulada ao centro. Ao hipostasiar as técnicas do all-over e do dripping, fechando
virtualmente todos os poros e constituindo massas formais-informais, Pollock as
inutiliza como processo criador e construtivo. Tal qual no capitalismo, as forças
produtivas invertem-se em forças automatizadas, virtualmente inúteis, como a arte, e
57 Cf. FOSTER, Hal. “O retorno do real”. Revista Concinnitas, ano 6, volume 1, n.8. Julho de 2005.
58 DELEUZE & GUATTARI, op. cit., vol. 5, p. 57-9. Os filósofos estetizam o devir-proletário como uma
espécie de benção: o “devir-nômade”, o “devir-animal”, o “devir-louco” e outros devires nietzcheanos
modernos “inocentes”.
59 Cf. http://www.metmuseum.org/Collections/search-the-collections/210002644
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61 Em seu livro sobre Francis Bacon (A lógica da sensação), Deleuze percebeu essa problemática em
Pollock. Mas a questão já se colocava em Mil platôs (op. cit., vol. 4, p. 160-162).
62 Cf. http://www.artchive.com/artchive/p/pollock/pollock_1_1949.jpg.html
63 Cf. http://www.wikipaintings.org/en/jackson-pollock/number-5-1948-1
64 Isso é cada vez mais “claro” para os discursos fim de linha: “a verdadeira descoberta filosófica (!) penso
ser, na verdade, que não existe uma arte mais verdadeira do que outra (...): toda arte é igual e
indiferentemente arte” (DANTO, Arthur. Após o fim da arte. São Paulo: Edusp, 2006, p. 38.)
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70 Em outro texto que constituiu a linha condutora deste ensaio, Adorno comenta que a pintura, enquanto
“arte do espaço”, só se dialetiza temporalmente quando se tensiona internamente e não quando
simplesmente representa o movimento: “Painting that behaves dynamically, as if it were capturing
temporal events, as the futurists desired and many abstract painters attempt to do with circling figures,
exhausts itself, at best, in the illusion of time, while the latter is incomparably more present in a picture
where it has disappeared among the relationships on the surface or the expression of what has been
painted”. Assim, quando suprime, por meio da construção, a rigidez do impulso mimético, e vice-versa.
“Yet this process, as a process that is immanent in the thing itself, and by no means belongs merely to
the mode of its production, is essentially one of tensions. If these are lacking, if the elements of the
painting do not seek to get away from each other, do not, indeed, contradict each other, then there is
only a preartistic coexistence, no synthesis. Tension, however, can in no way be conceived without the
element of the temporal. For this reason, time is immanent in the painting, apart from the time that is
spent on its production. To this extent, the objectivization and the balance of tensions in the painting
are sedimented time”. Finalmente, a construção racional e a mimese mediam-se dialeticamente fazendo
divisar um estado social em que a estética não seria mais uma esfera separada da vida, nem o sujeito
burguês uma mônada de trabalho-dinheiro privada. Ao mesmo tempo, essa supressão faz divisar o atual
estado de regressão à barbárie pré-individual. “The forms created by some painters, wildly proliferating
between patterns and organisms, as their makers play over into three-dimensionality - the illusion that
nonperspectivist painting had destroyed — are evidence of this. It is no accident that the turmoil within
them is so musiclike. The most extreme esthetic progress is intertwined with regression. What art
becomes, depends on whether its progress retains power over the regressive element, or whether it
succumbs to it with the barbaric literalness that triumphs equally in the cult of absolute methods or of
absolute material.” (ADORNO, Theodor W. “On Some Relationships between Music and Painting”
[1965]. The Musical Quarterly, Vol. 79, No. 1, Spring, 1995, pp. 66-79, Trad. Susan Gillespie, grifo meu).
71 Cf. http://cs.nga.gov.au/zoom/ZOOM.cfm?zImagePath=36334&View=LRG&IRN=36334
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**
Nesta altura, pode parecer menos abstrata a afirmação de Naves de que o pintor
buscava “uma resistência ao próprio ato de pintar, um método que possibilitasse que as
formas daí resultantes fossem a concretização da própria dificuldade de formalizar”. Em
termos benjaminianos, a arte de Pollock passa a configurar imagens dialéticas destas
dificuldades: saltar fora da rede, parar a locomotiva do progresso, explodir o continuum
vazio e homogêneo da história.
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Eraldo Santos
Timidez
O que poderá significar algo como uma forma tímida? Será essa
pergunta que nos orientará na leitura de “O Brasil no Ar: Guignard”, ensaio pertencente
ao livro A forma difícil, do crítico materialista Rodrigo Naves1. Não pretendemos, tal
como também não foi a pretensão de Naves com seu estudo sobre o artista plástico suíço
radicado no Brasil, esgotar nesse curto percurso nosso objeto. Menos do que um
subterfúgio, trata-se aqui de uma decisão metodológica inerente a qualquer ensaística:
“certamente o objeto espiritual, comporta em si mesmo aspectos infinitamente diversos,
cabendo a decisão sobre os critérios de escolha apenas à intenção do sujeito do
conhecimento”2. Isso não significa, todavia, que o elenco de critérios possa ou que será
definido arbitrariamente. A escolha, aqui, busca ser precisa. Precisa porque ao girar em
torno de uma possível resposta à questão estaremos lançando luz também sobre a
maneira como Naves esclarece em seu ensaio alguns aspectos fundamentais da obra de
Alberto da Veiga Guignard. Mas precisa também porque vinculada necessariamente à
primazia do objeto, ao buscar, por constantes esforços, iluminar o traçado estrutural
imanente ao texto sobre o qual estamos nos debruçando, investigando como ele se
organiza em sua dinâmica interna, como nele mesmo se fundamenta sua própria
1 Rodrigo Naves, “O Brasil no ar: Guignard”. A forma difícil. São Paulo: Ática, 1996, p. 131-143. Tendo em
vista a grande quantidade de citações necessárias para uma análise que acompanhe, como o queremos,
de perto os movimentos estilísticos do ensaio, doravante as citações de passagens do texto de Naves
serão feitas no corpo do nosso próprio texto, entre parênteses.
2 Adorno, Theodor. “O ensaio como forma”. In Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003, p.33.
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consistência.3
Naves lançará mão, para tentar explicar o que se passa na organização interna à
forma artística de Guignard, de uma enorme diversidade de termos e expressões – de
recursos poéticos, de metáforas (“somente roçar o espaço, sem vertebrá-lo” [p. 141],
“diluir a consistência das coisas” [p. 131]), de filosofemas, oriundos da ontologia, da
metafísica (“os únicos atributos possíveis de uma extensão que não se deixa recortar” [p.
142], “tensão entre potência e ato” [p. 136]), de vocábulos referentes ao domínio da ética
(“que se engrandece com o sentimento das próprias renúncias” [idem]) e correntes no
domínio da crítica política (“mais uma crônica de violência do que de civilização”
[idem]).
Um leitor desavisado, que não leu outros dos ensaios de Naves, poderia
taxativamente afirmar, sem muita desconfiança, que esse é o estilo característico do
autor – e prosseguir sem inquietudes. Mas talvez seja necessário ir à frente de uma
maneira mais tateante. Não parece que essa seja uma questão que se resolva com tanta
facilidade. Se, decerto, há algo como o “estilo de Rodrigo Naves”, que nesse texto
também estaria presente, no mínimo deveríamos notar também que esse recurso
estilístico, ao qual terminamos de nos referir, é empregado neste ensaio exaustivamente
– é quase impossível não encontrar uma frase no texto em que não se torne patente o
esforço em tentar explicar, por um vocábulo ou expressão – metafísica, filosófica,
metafórica, ética, etc. – a timidez tão característica à forma de Guignard. Isso nos
impulsiona a levantar uma hipótese: não se trata aqui de “algo do autor”, característico
dele, idiossincrasia; mas de algo do autor diante de uma determinada obra. Há qualquer
coisa de uma iminente tensão na timidez da forma de Guignard que desafia o trabalho
do conceito tal como ele opera em situações comuns. E Naves, sensível a isso, faz com
que a sua prosa mimetize algo dessa tensão do objeto em direção ao qual ela se
aproxima.
3 Cf. Jorge de Almeida, “Primazia do objeto”. Crítica dialética em Theodor Adorno. Música e verdade nos
anos 20. Cotia: Ateliê Editorial, 2007, p. 13-26. Almeida começa a apresentar nesse momento do seu
texto os critérios para a crítica artística que caracterizarão a ensaística adorniana desde seus primeiros
momentos, quando o filósofo inicia seus trabalhos como crítico musical em Frankfurt: se a tradição, à
qual podíamos nos vincular com relativa segurança, nos oferecia, através dos gêneros, formas e
temáticas, um critério para a produção e avaliação da obra de arte, após o horror da Primeira Guerra,
arte e crítica deveriam se voltar para a imanência da obra artística, isto é, para a consistência interna
[Stimmigkeit] da configuração das obras de arte, como caminho para avaliar a sua força criadora e
revolucionária.
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Originalidade e dificuldade
O quadro está aí; podemos olhá-lo, mas para onde olhar
precisamente? A tensão que a obra de Guignard causa é a tensão de uma constante
inquietude. Onde se fixar, diante de um território “tão imaterial, que parece pairar além
das definições, e que agora é profundidade, instantes depois se torna puro véu, para logo
transformar-se numa garoa fina, que dilui a consistência das coisas?” (p. 131). Nessa
“imensidade relutante”, não encontramos nenhum lugar onde possamos nos segurar,
onde possamos nos prender. “Resta correr os quadros de alto a baixo, na esperança de
encontrar um apoio que possa sustentar formas estáveis, que deem direção e alguma
ordem às obras. Em vão” (p. 132). Não há mais onde se apoiar, não há mais hierarquia
do que está disposto, como é natural na estrutura formal das obras clássicas. Resta-nos
vagar diante da “dinâmica singela e aquosa” das gigantescas paisagens de Guignard,
que, quanto mais espaço nos oferecem, menos nos afirmam. Tudo parece estar prestes a
desaparecer sob a névoa ou por ela ser corroído. Não há aqui a estrutura forte dos
quadros cubistas, que choca ao tornar patente a impossibilidade da convivência pacífica
dos elementos (p. 133); nem a violência de uma natureza imponente, capaz de nos elevar
ao sentimento do sublime, à sensação de se estar diante do que é grande e poderoso
demais, como em Caspar David Friedrich (p. 131); nem a potência de uma natureza
pujante, que transborda e se exterioriza quando elevada à máxima corrosão pela luz
impressionista, como nas Ninfeias, de Monet (p. 135).
Qual seria, então, a configuração formal da obra de Guignard, como transpô-la
através do pensamento conceitual? Difícil. Mas exatamente por quê? Porque “o mundo
parece prestes a escorrer, como se o víssemos através de uma janela molhada” (p. 134).
Porque aqui o mundo é formado por uma “matéria rala” (idem). Porque o mundo de
Guignard “não vem à tona” (p. 135). Só nos são entregues, além dessa matéria difusa e
inquietante, essas singularidades, soltas no espaço – bandeirinhas, igrejinhas, casinhas,
homenzinhos – que parecem nos lembrar que não estamos em qualquer mundo “de
castelos imaginários, brumas antigas” (p. 138), mas aqui bem perto, em Ouro Preto, ou
numa cidadezinha mineira qualquer, perdida numa noite de inverno que tenta eclipsá-
la; pequenos marcadores que nos transportam do lugar-nenhum para o Brasil.
Esse mundo, em sua morosidade, flerta intensamente com o informe. Derrete,
escorre, não se materializa. O texto de Naves quer a ele dar uma forma, e nisso insiste.
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ocorre porque há algo nas decisões de Guignard que carregam uma tensão irresolvida e,
mais precisamente, uma tensão política irresolvida. O ensaio de Naves transforma, com
seus movimentos, tal tensão em “campo de forças”, explicita-a.
que, a qualquer momento, uma figura se erga das brumas e catalise as forças que
aquelas massas turvas deveriam conter. Nada. A ausência de dinâmica nesse
mundo homogêneo e contido suspende qualquer possibilidade de irrupção. Por
certo, lá dentro, lá onde reinam aquelas névoas satisfeitas, tem lugar todo um
jogo de atrações. Mas são tão sutis essas afeições, essas afinidades eletivas, que
apenas podemos suspeitar de sua existência, ao mesmo tempo em que somos
relegados a ficar indefinidamente de fora, o que reafirma a nossa falta de
comunicação com esse meio doce, não fosse ele também tão triste por não ter
conseguido vir à tona (p. 136).
Esperamos, sempre e cada vez mais, algo, que, todavia, nunca chega. É aí que
Naves mostrará a face política da forma artística guignardiana. Para que tanta força
empreendida para evitar que as “formas subam à superfície” (p. 137)? Por que tal receio
de individuação? Por que tamanha vontade de dissolução? Por que tamanha timidez da
forma? O meio doce, nossa promessa de felicidade, quer vir à tona, mas o pintor não
deixa.
Trata-se da aposta que Guignard faz, e que organiza sua forma artística: uma
aposta segundo a qual a essência é sempre mais plena do que a manifestação sensível
pode dar conta (p. 138), de que a solução do mistério é sempre inferior às promessas
(idem). Ao fugir do impulso formal, ao optar por uma ontologia das essências que
insiste em afastar uma ontologia dos atributos, o pintor pressupõe determinada
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estrutura social. Um meio tão lábil só pode pressupor “uma coletividade que mal
arranhe suas superfícies”, “intercâmbios amenos” entre os homens e entre eles e as
coisas e nunca uma “sociabilidade baseada em relações produtivas” (p. 134). De fato,
não encontramos aqui arranha-céus, ferrovias, operários... Basta que puxemos pela
memória um quadro como a Estação de Ferro do Brasil de Tarsila para que percebamos
que o projeto de Guignard pressupõe uma sociabilidade humana radicalmente diferente.
Seu projeto de modernidade artística, distanciando-se de outros vanguardistas
brasileiros, opõe-se à modernidade econômica que, como discurso ou como prática de
dois gumes, tomava conta da paisagem brasileira. Por isso as afirmações categóricas de
Naves: “o mundo do trabalho e suas trocas não atrai a atenção de Guignard” (p. 134), “o
Brasil de Guignard volta as costas ao trabalho, à vida ativa e a seu poder de
formalização” (p. 142). Afasta-se do Brasil burguês, pleno de aspirações de modernidade
e em vias de uma modernização complicada, e vai em direção ao país do campo, do
interior, e ao seu tempo manso: em Guignard, a modernidade é pensada a partir de
protocolos de retorno.
É justamente porque vê uma relação necessária entre o formalismo da obra e um
determinado ideal de organização da sociedade, isto é, uma forma social precisa, que
Naves pode dar um salto e referir a forma de Guignard a um projeto de nação. Projeto
que quer garantir a tal nação – novamente se utiliza aqui termos da ontologia – uma
certa transcendência. Transcendência que tornaria a imagem dessa nação imune a
“qualificações circunstanciais” (p. 141). Mais do que isso, que lhe possibilitasse “uma
essência inacessível e razoavelmente poderosa que a resguardasse de materializações
mundanas e cabais, deixando permanentemente aberta a possibilidades de novas
configurações” (idem). No traçado do pintor, o Brasil torna-se o país das múltiplas
possibilidades, país em potência (e não em ato), país de essências puras (não
contaminadas por atributos). Aparentemente na superfície do quadro que vemos, na
verdade o Brasil está no fundo; no fundo das brumas, de onde esperamos que ele saia a
qualquer momento.
As igrejinhas e as névoas de Guignard são, de fato, uma solução formal curiosa
para o problema referente ao conhecido “desrecalque localista” que Antonio Candido5
5 cf.Candido, Antonio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945”. In Literatura e Sociedade. Estudos de teoria
e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, p. 129-66.
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natureza surge como mera bruma que, no limite, não nos permite vislumbrar um futuro,
mas “apenas entrever seu ocultamento” (p. 143).
Se a recusa da identidade fixa, da individuação, possui sua razão de ser, por seu
caráter crítico, por outro lado, corre-se o risco de permanecer sempre em estado de
suspensão, em que nada é definido – ou quase nada, só alguns elementos modestos,
aqui e ali, recortando de leve a paisagem. É aí que a forma tímida mostra seu caráter
político. Pois até que ponto a timidez da obra de arte não espelhará uma profunda
timidez nas proposições, uma profunda timidez por ações, uma insegurança diante do
mundo? Esse é o impasse da forma de Guignard. Roberto Schwarz, num ensaio em que
analisa justamente os impasses um tanto semelhantes relativos à poesia pau-brasil, nos
lembra de uma valiosa lição de Adorno.
Até segunda ordem, o processo histórico não caminhou na direção dos objetivos
libertários que animavam as vanguardas política e artística. Assim, aliados à
energia que despertaram, esses objetivos acabaram funcionando como
ingredientes dinâmicos de uma tendência outra, e hoje podem ser entendidos
como ideologia, de significado a rediscutir. Nem por isto são ilusão pura, se
considerarmos, como Adorno, que a ideologia não mente pela aspiração que
expressa, mas pela afirmação de que esta se haja realizado7.
Decerto não se pode deixar de lado a aposta política inovadora que a obra de
Guignard apresenta. Mas essa “tendência outra”, à qual Schwarz chama a atenção, é
justamente o perigo ideológico de uma postura política que, ao afirmar continuamente
que é melhor não dar forma a ações definidas, faz acreditar que permanecer nas brumas
dá certo, já deu e que continuará dando. É assim que a ideologia, que não é
necessariamente ilusão, pode cristalizar-se como ameaça.
Mas, se a dialética é esse devir dos contrários, cumpre também perceber o lado
positivo da negatividade, esse momento em que se manifestaria a abertura esperançosa
e transformadora que à aspiração ideológica seria subjacente. Talvez uma constatação
falte à análise cuidadosa de Naves, que, ao se concentrar nos resultados negativos do
projeto de Guignard, não explicita com mais clareza a contradição no interior da qual o
projeto artístico do pintor se movimenta. Remetendo-nos ainda a outro texto de
Schwarz, sobre o Oito e meio de Fellini, poderíamos lembrar que
7 Schwarz, Roberto. “A carroça, o bonde e o poeta modernista” in:__. Que horas são? São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p. 12.
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Há uma escritura contraditória, como Naves quer nos apontar com seu ensaio, imanente
a uma crônica da indiferença e da violência; mas também, como não se pode deixar de
lembrar, a uma crônica de promessa da felicidade. E essa felicidade prometida só coloca
com mais força o problema do sofrimento: Guignard assim alcança o triunfo
melancólico, a apoteose que se desmente. Deslocando um tanto a ideia de Ricoeur,
segundo a qual o mal surge entre os homens precisamente porque todos eles querem ser
felizes, podemos entender o que há aqui de contraditório no projeto do pintor. Talvez
com a mesma inquietude com a qual procura algo nos quadros sobre o qual possa se
apoiar, o ensaísta dá, para finalizar sua obra, uma forma precisa ao problema: “por ora
está tudo em suspenso. Sabe Deus até quando” (p. 143).
8 Schwarz,Roberto, apud Prado Jr., Bento. “A sereia desmistificada”. In: Alguns ensaios. São Paulo: Paz e
Terra, 2000, p. 212.
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Rodrigo Naves
e as dificuldades da formação
Naves, Guignard, Machado e a crítica das formas modernas
Cláudio R. Duarte
Rodrigo Naves é um dos críticos brasileiros que hoje mais se destaca pelo rigor
teórico e analítico no campo das artes plásticas. Buscamos mostrar na primeira parte
deste ensaio, em tom de apresentação geral, a potência de seu método crítico em dois
livros que realizam um mapeamento significativo da arte moderna e contemporânea no
Brasil e no mundo. Num segundo tempo, analisaremos diferentes níveis de vigência das
duas categorias críticasipais prinpropostas pelo autor – “dificuldade de forma” e “forma
difícil” – em dois artistas brasileiros bastante diferentes: o pintor Alberto da Veiga
Guignard e o escritor Machado de Assis. Ambos se encontram sob o mesmo solo
problemático identificado por Naves. Em Machado, não há dificuldade de forma. A sua
forma se constituiu, consolidando a formação da literatura brasileira. Ainda assim é
uma forma que, superando a literatura brasileira anterior, no limite também a suprime.
Por outro lado, Guignard apresenta em sua pintura uma “timidez formal”, e talvez por
causa dela, momentos ambivalentes e um traço utópico, que vale a pena pensar em
detalhe – contrapondo-os não só a Machado, mas à toda estética das mercadorias
contemporâneas. Compreender essas contradições se torna um pouco mais fácil, talvez,
quando se estabelece o campo de problemas socialmente comum estabelecido e a sua
matriz social geradora, apesar das formulações históricas variadas dos dois artistas.
A matriz prática que secretamente os unifica, como não poderia deixar de ser se
formos materialistas, é estabelecida pelas condições materiais da formação social e
subjetiva no capitalismo, na concretude histórica de uma modernização social
conservadora. Entra aqui especialmente a forma fundamental da práxis imposta pelo
mundo do mercado, num país que postergou até quando pôde a formação de um
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1 NAVES, Rodrigo. A forma difícil. Ensaios sobre arte brasileira. Ed. revista e ampliada. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. Doravante citado diretamente no corpo do texto através da abreviatura:
FD, seguido do número da página.
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composição dos ensaios do livro é um fenômeno à parte. Sua qualidade literária reside
no fato de conseguir imitar as resistências, indeterminações e vacilações de seus objetos,
sem deixar de escavar os seus pressupostos materiais e determinar a sua essência aos
poucos, mediante a imersão integral em cada um deles, às vezes em cada detalhe
significativo (uma linha, uma cor num quadro, p. ex.). Por isso mesmo, ela é capaz de
evitar generalizações e juízos peremptórios. Aqui se percebe o preparo, a inteligência e a
independência do crítico face às modas e às teorias prontas.
No diagnóstico de Naves, o conjunto da arte brasileira apresenta a princípio uma
grande “dificuldade de forma”. Avançando modernidade adentro, porém, o problema se
converte, sem se diluir totalmente, propriamente na questão de uma “forma difícil” (cf.
FD, 27-9).
A dificuldade de forma tem dois sentidos fundamentais: a) ela aparece como uma
dificuldade do artista em formalizar mais integralmente os seus materiais intraestéticos
e os seus pressupostos sociais, uma espécie de “timidez” ou “relutância formal”; b) ela
aparece como um traço imposto pela resistência da matéria à sua formalização. Dessa
maneira, não apenas por uma questão de cegueira ideológica (os preconceitos raciais de
Debret, p. ex.) ou da eventual insuficiência dos artistas (os problemas de formação
cultural de um país ex-colonial e em vários sentidos atrasado na modernização
burguesa) e do sistema artístico nacional (o qual, p. ex., dificultou a independência
social dos artistas) – essa dificuldade de forma se dá também por uma dificuldade
objetiva de formalização, que está contida na articulação própria da matéria, tanto
quanto no conjunto das formas sociais e culturais estabelecidas.
Assim, as condições coloniais do país (escravismo, paternalismo, clientelismo,
formação tardia de um mercado de trabalho livre, falta de integração econômica e social
etc.) impõem uma estrutura social e espacial que aparece ao artista plástico estrangeiro
(o caso de Debret) como objetivamente difícil de penetrar e estudar, como um meio
frágil, instável, humilde, menos estruturado do que o de seu país, em suma, como uma
coisa inteiramente peculiar pedindo a reelaboração de suas técnicas neoclassicistas.
Essa mesma matéria pode aparecer formalizada de maneira acanhada e fortemente
naturalizada e idealizada de modo nacionalista (como no mundo “solar” e caipira de
Almeida Jr.). Ela pode também surgir, em seguida, como difusa, nebulosa e
indeterminada, ou ainda tímida, singela e coletivamente anônima (como nos quadros de
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“Essa dificuldade de forma realmente perpassa boa parte da melhor arte brasileira. Relutância
em estruturar fortemente os trabalhos, e com isso entregá-los a uma convivência mais positiva e
conflituada com o mundo, leva-os a um movimento íntimo e retraído, distante do caráter
prospectivo de parcela considerável da arte moderna. Esse recolhimento contudo não livra os
trabalhos da realidade. Ao contrário, essas estruturas frágeis se deixam envolver de maneira
complexa e inesperada. Sua natureza remissiva (...) evoca uma sociabilidade de ordem
semelhante, pouco definida, doce e reversível. A feição um tanto primitiva dos trabalhos de
Guignard e Volpi tem uma significação profunda. A recusa à violenta sociedade do trabalho
marca-os do princípio ao fim. Essas obras tímidas supõem um modo suave de moldar as coisas, e
estão mais para um artesanato amoroso ou para um extrativismo rústico do que para a
conformação taxativa da indústria. Contudo, esse ideal meigo que defendem conspira contra suas
expectativas, já que essas aparências amenas e essas formas frágeis não podem se opor à pressão
do real, que os coage sem cessar” (FD, 27).
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Um mapa da ventania
O que o autor percebe criticamente como a tendência hegemônica na arte
contemporânea gira em torno da fragilidade formal e da vaidade das obras (um misto de
autoironização radical e de “impotência arrogante”). Estas caem ao “vento” como que
por si próprias, sem construir formas (“moinhos”) resistentes, ou são elas mesmas
vítimas da descontinuidade do mercado e da fluidez da produção automatizada de bens
culturais, e assim também levadas facilmente por esse “vento” metafórico/real.
Diferentemente de grande parte da arte de combate do modernismo, fortemente lógica e
construtiva – e isso mesmo quando “expressionista” ou “informal” –, a estética
contemporânea, pós-anos 60, integra cada vez menos o conteúdo social e político de
maneira crítica, mediada pelas formas. A incorporação deve ser tomada aqui não como a
banalidade de temas politicamente superficiais contemplados (isso há de sobra), mas
como configuração internalizada de processos e contradições sociais, que abriria ainda a
visão de possibilidades sociais objetivas. “Por certo”, diz o autor,
“há esforços bem sucedidos e obras à altura de nossos dilemas. Na maior parte dos casos, porém,
parece que o não reconhecimento das dificuldades da atual experiência histórica tem conduzido a
uma incorporação exterior e rebaixada de dinâmicas que terminam sendo apenas tematizadas,
sem que os trabalhos de arte tenham a capacidade de aceder – e de revelar – à articulação desses
movimentos e estabelecer com a realidade uma relação em que eles, justamente por agirem como
uma força interna ao mundo que fendem, mostram-se também capazes de apresentá-lo como
uma realidade menos impositiva, cujas fissuras cabe à arte (entre outras forças) revelar e manter”
(Naves, VM, 17-8).
2 NAVES, Rodrigo. O vento e o moinho. Ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. Doravante citado diretamente no corpo do texto através da abreviatura:
VM, seguido do número da página.
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3 Como aparece na pena de um crítico como Arthur Danto (Após o fim da arte), citada pelo autor (VM,
22).
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“ânsia de se fazer comunicar, a arte passa a usar o mundo de maneira ainda mais instrumental
que a dos processos industriais”, usando por exemplo materiais incomuns (como esperma, cera,
gordura, sangue ou terra etc.), o que, segundo o crítico, “rebaixa o mundo sensível à condição de
mero suporte, como também mantém a ilusão de que essa intervenção desmedida na realidade,
esse manuseio das coisas conduz à mais cristalina das significações, ainda que esteja levando o
mundo à breca.” (VM, 27, grifos meus).
Porém, nem tudo é tão mau na arte contemporânea, como muitas vezes deixa ver o
crítico. Como matiza o autor, nos seus melhores momentos os artistas contemporâneos,
“em vez de apenas replicar na forma envergonhada de seus trabalhos – porque de resto apenas
fantasmas não têm forma – a fugacidade contemporânea, se esforçam por mapear o terreno em
que nos movemos, permeáveis a ele e céticos quanto às soluções ansiosas. Provavelmente tenha
sido Samuel Beckett o artista que melhor conseguiu caracterizar essa situação singular” (VM, 19,
grifos meus).
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O que não é só um problema nacional, pois parece atingir o campo das artes plásticas
em nível mundial (cf. FD, 11).
Isso porque falta ao conjunto desses melhores trabalhos contemporâneos,
segundo o crítico, a pesquisa, o empenho, o sentido da “aventura”. Daí a necessidade
para ele, nesse momento estéril, de retroceder e aprender com os grandes artistas da
tradição moderna a como formular os problemas atuais com mais vigor. Pois eles não
são somente o passado. Isso seria cair num mau historicismo. Artistas como Beckett e
Pollock também delinearam “os dilemas com que lidamos ainda hoje” (VM, 28).
O nome literário de Beckett é importante aqui, pois mostra como o autor reata
laços com campos do saber e das artes que parecem totalmente desligados. No fundo, o
segredo de Naves é conhecer bem, com base em seus mestres (como Adorno e Schwarz),
o processo dialético entre formas sociais e culturais e a mediação social integral imposta
pelo capitalismo (Estado, mercado, luta de classes etc.). É por isso ainda que não se
pode talvez exigir, de modo dogmático, as formas fortes e substantivas do modernismo
construtivo nesse novo contexto opaco, espetacular e flexível.
Um contexto que o autor denomina muito precisamente como sendo, assim, o de
uma “crise de inimigos”: “a dificuldade de as forças sociais se articularem tanto pela
ausência de um opositor claro quanto pela incapacidade de ordenarem a si mesmas,
movimentos que se complicam mutuamente” (VM, 15, g.n.).
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Inútil, contudo, pois a ideia oculta não se oferece ao olhar, muito menos vem à
tona. Podemos apenas suspeitar alguma existência abstrata lá atrás, velada. A tela atrai
o olhar para o segundo plano, mas ao mesmo tempo impõe a “falta de comunicação”
com o plano transcendente. A “revelação” não se cumpre. Ela não tem a luz mística e os
contornos da arte cristã. Pulsa algo lá trás talvez – e as comunidades em procissão saem
das várias igrejas e soltam balões de São João aqui e ali onde se as vê. Talvez porque o
que lateja em toda a tela é somente algo imanente ao mundo dos homens – mas de
homens ainda presos ao plano místico. Porém, um mundo histórico, em processo de
urbanização (trens, túneis etc.), que tende a dissolver as suas estruturas naturalizadas.
Não poderíamos inverter o raciocínio e pensar isso que não aparece nos quadros como
uma dissipação e evanescência do sagrado? É que em si, por sua fatura, esses quadros
recusam a configuração cristã e renascentista do mundo.
Na bela exposição do crítico, a afirmação da superfície rasa ou planar da pintura
modernista, e que faz de Guignard um tipo particular de moderno, vinha no sentido da
marcha do Esclarecimento: a afirmação de uma lógica social puramente imanente
unificada pelo mercado, contrária a um ponto de fuga centralizador e aos focos
hierarquizantes. Algo que surgiria no sentido de romper portanto a ideia de
fundamentos ou ordenações sociais fixas, sagradas e hereditárias. Com o que o sujeito
não mais espelharia um mundo fixo e ordenado pelo olhar de um sujeito isolado (como
na arte perspectivística e ilusionista da Renascença), muito menos um mundo
completamente ordenado, pouco individuado e legitimado como divino (arte cristã). O
sujeito pressuposto, desde o impressionismo, passava a agir sobre as coisas, a
reagenciá-las, promovendo novas relações, “à semelhança das possibilidades abertas
pelos novos movimentos sociais e pelas novas técnicas” (FD, 168 e 178).
No entanto, em Guignard esse movimento configurador das exuberâncias da arte
moderna, com o seu jogo de luzes analíticas e de produção de figuras desencaixadas e
estranhadas (a partir do impressionismo e do cubismo), aqui se detém numa superfície
turva e indefinida, por alto ainda sugestiva de fundamentos fixos e conservadores, como
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claramente se dobra à expressão de uma “cidade paralítica” (como aparece num bom
verso de Drummond sobre São João Del-Rei, em Alguma poesia), também
conservadora, num outro compasso de modernização. Nesse caso, as demandas do
objeto, portanto, dificultam a forma. São “noites tristes”, segundo Naves, mas nem por
isso menos sugestivamente “doces”, “líricas”, “meigas”, “empáticas”, representativas de
uma certa sociabilidade cabocla e caipira. Eis o traço mais difícil de definir
conceitualmente: uma sociabilidade comunitária, meio mítica e nostálgica, como
vimos, e ainda, a um só tempo, ideológica e utópica. Fora do tempo – mas ainda nele.
Note-se como a tela exige um lento processo de interpretação e como que
mimetiza a lentidão de um modo de vida pré-moderno, em que aparentemente o poder
da abstração do trabalho capitalista não deixou as suas marcas na paisagem. Tudo se
passaria assim – se não fosse o seu contexto referencial uma sociedade moderna desde a
Colônia, portanto inserida na mais violenta exploração econômica da natureza e dos
homens; aqui, no caso, desde o ciclo do ouro em Minas Gerais. Algo que a névoa
ideológica desses quadros encobriria, sob o manto religioso da cultura caipira. Como diz
o crítico:
“Essas paisagens difusas e desabitadas pedem uma coletividade que mal arranha suas superfícies;
pedem intercâmbios amenos, tanto entre elas e seus eventuais habitantes quanto entre os
próprios homens: algum extrativismo, caça, pesca etc. Aquilo que no cubismo era mediação, aqui
é proximidade. O mundo do trabalho e suas trocas não atraem a atenção de Guignard. Não por
acaso seus quadros têm algo de primitivo – todas as formas mais fortes lhe desagradam.” (FD,
180).
Desse modo, temos aqui um ponto cego, ideológico, embora em parte ele
pertença ao próprio objeto: um mundo de relativo atraso em relação ao centro do
sistema. É um outro o ponto que o crítico não deixa de observar em sua introdução: “nas
obras de Volpi e Guignard há de fato uma camuflagem da arte com a própria arte. Não
por acaso nossa pintura se especializou nesse ofício de sutilezas, refinando os matizes
que confessam uma convivência amorosa com os seres, longe de quaisquer rupturas e
descontinuidades” (FD, 29, g.n.).
Ao mesmo tempo, contudo, há um estrato residualmente utópico nessas
paisagens noturnas etéreas e fantásticas – que as tira da órbita do presente, e que vale
registrar com as palavras do crítico:
“Ao fim, fica a impressão de que suas superfícies são mais um obstáculo à visão do que uma
presença taxativa que, por sua força formal, nos deixe vislumbrar novos modos de aparecimento,
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outras maneiras de ordenar o sensível e a existência. Com sua fatura turva, esses quadros relutam
em se entregar à superfície, e se atêm a esse revolvimento moroso, daquilo que não quer assomar.
O que é original – ao contrário do que ocorre com grande parte da pintura moderna – não se
mostra. Lateja ao fundo, cioso de que a solução do mistério é sempre inferior às suas promessas.”
(FD, 184).
Nesse sentido, as obras de Guignard proporiam elementos que essa sociedade, com a
sua racionalidade objetivante e instrumental, não pode acolher. Por si mesmas, elas
recusam as “materializações mundanas e cabais”, “deixando permanentemente aberta a
possibilidade de novas configurações” (FD, 188), o que equivale a dizer – se as
traduzirmos em linguagem conceitual crítica – que elas refugam o trabalho moderno,
as duras leis da troca e de sua falsa transparência. Mas isso, reforça o crítico, enquanto
signos ambíguos das “potencialidades” de um país novo, de um “futuro inefável e
generoso”, fundadas em nossas “meigas particularidades”, enfim como signos de uma
“disponibilidade amena, sem os travos da história, sem a irreversibilidade dos processos
violentos” (ib.).
Esses traços parecem caracterizar, portanto, um pintor romântico, utópico,
imobilista, condenado à inação. Pode ser. Mas o momento predominante talvez seja
mesmo este:
“O Brasil de Guignard volta as costas ao trabalho, à vida ativa e a seu poder de formalização” (ib.,
p.189).
O pintor resguardaria justamente desse modo, talvez, menos uma essência trans-
histórica de um homem já dado, imposta por uma ontologização do trabalho, do que a
possibilidade de um universal humano concreto, não-dividido pelo trabalho e pela troca
de produtos privados. Por isso, o seu tema fundamental, é bom lembrar – o
fundamento acima evocado talvez? –, é antes de mais nada uma festa. Um evento feito
pelos homens. São eles e suas construçõs, vale recordar, que imprimem o pequeno ritmo
ao quadro. Mas paradoxalmente, desse ponto de vista, o ritmo criador de um balanço de
tensões residuais essenciais – caso se considerarmos que o mínimo aqui se potencializa
como uma contraposição irredutível entre uma grande bruma dissolvente e pequeninos
seres e obras resistentes. É o que sugere assim uma mínima, mas não menos essencial,
temporalidade imanente ao quadro, a simultaneidade de tempos sociais-naturais
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diferentes.5 Daí a meu ver a importância de considerar a série das Paisagens, Tardes e
Noites mineiras de Guignard como partes da obra conjunta do pintor (o que o crítico
parece descurar), pois tenderiam a revelar um novo conteúdo social, um meio humano e
geográfico certamente menos estruturado, menos incisivamente apropriado – pelo
poder da abstração real moderna. Em parte como ideologia, é claro, em parte como um
contraponto utópico ou digamos heterotópico (para usar termos de Henri Lefebvre). 6
O que fica a partir dessa experiência prolongada do pintor (vale lembrar, com
uma forte formação europeia) com o Brasil? O que fica, ao que me parece, é menos os
seus resultados ambíguos (entre o mito e a ideologia, e a utopia, tal como analisado a
partir do aporte de Naves) do que a verdade de seu procedimento crítico.
É aqui que a sua obra mais se coaduna aliás, a meu ver, menos com Machado de
Assis do que com alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade da fase dita
“metafísica”, tais como “Dissolução” (em Claro enigma, 1951) e “Habilitação para a
noite” (em Fazendeiro do ar, 1954, um nome por si só sugestivo de todo um referente
social comum). Poemas que afirmam uma espécie de eu lírico “opaco”, uma espécie de
“materialista utópico” ou “heterotópico”, como se queira: a afirmação da
intransparência do corpo e do desejo ao campo do visível, a resistência do eu poético ao
“agressivo espírito carreado pelo dia” de trabalho, a recusa do plano místico de “astros e
deuses”, a “polícia estrita do nada”, enfim, a aceitação da noite como quebra do
imaginário social e do brotar de “uma outra ordem de seres / e coisas não figuradas”.7
Voltando ao possível procedimento crítico proposto por Guignard. Por seu
momento utópico, sua obra pressuporia algo talvez não cogitado pelo ensaio de Naves:
5 “Painting that behaves dynamically, as if it were capturing temporal events, as the futurists desired and
many abstract painters attempt to do with circling figures, exhausts itself, at best, in the illusion of time,
while the latter is incomparably more present in a picture where it has disappeared among the
relationships on the surface or the expression of what has been painted”. “Yet this process, as a process
that is immanent in the thing itself, and by no means belongs merely to the mode of its production, is
essentially one of tensions. If these are lacking, if the elements of the painting do not seek to get away
from each other, do not, indeed, contradict each other, then there is only a preartistic coexistence, no
synthesis” (ADORNO, Theodor W. “On Some Relationships between Music and Painting” [1965]. The
Musical Quarterly, Vol. 79, No. 1, Spring, 1995, (Trad. Susan Gillespie), grifos meus.
6 Seria interessante pensar aqui por exemplo o Diário de Helena Morley, tal como analisado por Roberto
Schwarz em “Outra Capitu” in:__. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. O texto de
Eraldo Santos “Tímida sim, mas um tantinho desrecalcada”, publicado nesta edição de Sinal de menos,
propõe outras formulações engenhosas para se pensar as ambivalências de Guignard.
7 Cf. DUARTE, Cláudio R. “Poética do desterro – Drummond e a formação suspensa em Fazendeiro do
ar” – um ensaio nosso publicado em Sinal de Menos nº4, 2010, e reescrito em nossa tese de
doutoramento: “Literatura, geografia e modernização social: espaço, alienação e morte na literatura
moderna”. São Paulo: FFLCH-USP, 2010, disponível no banco digital de teses da Universidade.
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8 “Hoje em dia”, escreve o crítico alemão, “a arte radical significa arte sombria, negra como sua cor
fundamental”.(...) “A utopia, o não-ente, se encontra para a arte velada de negro, permanece, em todas
as suas mediações, como lembrança, a lembrança do possível contra o real que a reprime, algo como a
compensação imaginária da catástrofe da história do mundo, liberdade que, sob a influência da
necessidade, não existiu e acerca da qual não se sabe se pode existir” (ADORNO, Theodor W. Teoria
estética. Lisboa: Ed. 70, 1993, pp. 53 e 156-7).
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“meios não convencionais” (ou seja, a desensibilização dos meios e dos próprios
conteúdos de expressão) e a mera “capacidade de dispor coisas no espaço e tornar
visível.” É a marcha do Esclarecimento caminhando à reboque da marcha da
mercantilização integral da vida. Para Debord, o primado do visual – como a
tempestade de imagens descoladas do contexto vivido da práxis – funda materialmente
a “sociedade do espetáculo”, sendo o seu avesso obsceno a relação corporalmente muito
concreta de exploração do trabalho. Um fato social que parece muitas vezes passar como
algo natural pela pintura moderna e contemporânea (cubismo analítico, pop art,
minimalismo, op art, hard edge, colour field etc.).9
Mas o juízo crítico de Naves prevalece. Na matéria configurada por esses quadros
tímidos, matutos, que relutam e negaceiam o sentido, Guignard quebra a “ilusão da
transparência” propondo uma “ilusão da opacidade”10 ambígua, a ideologia ou a utopia
de uma comunidade orgânica, regida por laços tradicionais. A imagem de uma vida
lenta, preguiçosa, oposta ao trabalho, mas também oposta ao curso de sua possível
superação. As duas coisas ao mesmo tempo. Por isso, há aqui uma dificuldade de
determinação, que é uma dificuldade de forma.
Ao contrário das “ilusões perdidas” de Balzac, Machado de Assis propõe um país
reinado pelas ilusões: não só pelo domínio do discurso ilusório da ideologia, que
bloqueia o real, mas o reino das ilusões que se tornaram reais, como ilusões reais.
9 O crítico marxista francês, Henri Lefebvre, comenta: “O espaço, ao fim desse processo, só tem existência
social através de uma visualização intensa, agressiva e repressiva. Trata-se então de um espaço visual,
não simbolicamente, mas efetivamente. A predominância do visível implica um conjunto de
substituições e deslocamentos pelos quais o visual suplanta e toma o lugar do corpo inteiro.” Em
Picasso, o autor vê a redução da tridimensionalidade à superfície e a restituição, pela simultaneidade,
dos aspectos múltiplos da coisa pintada. Mas, pela sua fragmentação unitária, forma-se um espaço
“homogêneo-quebrado”, “uma visualização absoluta das coisas”, perfeitamente apreensível em seu
tratamento do corpo feminino caricaturado, torturado e exposto de mil maneiras (LEFEBVRE, Henri.
La production de l’ espace. Paris: Anthropos, 1974, p. 330 e 347).
10 LEFEBVRE, ibid., passim.
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Parece que não estamos tão longe, sob certos aspectos, do mundo machadiano de
Brás Cubas, de Rubião e Quincas Borba, de Aires e Flora, aliás, Rubião também um
“matuto” mineiro, representativo da esfera dos dependentes no país. Em Memórias
póstumas de Brás Cubas (1880)11, trata-se também, apesar da desenvoltura e da
agilidade da forma, de uma “obra difusa”, com “contração cadavérica”, erguida por um
“narrador volúvel” preso às ideias fixas, aos formalismos e às superficialidades do
mundo burguês (como mostraram de maneira variada Roberto Schwarz e José Antonio
Pasta, de maneira variada) 12, em estrito conchavo com a norma patriarcal que lhe dá
duplo poder (dominação direta pelo mando escravista e paternalista e indireta por meio
do dinheiro e do poder político). Nessa narrativa, pouca coisa se sustenta por si – seja
enredo ou personagens –, nada tem um claro projeto constituído, nada “edifica nem
destrói”. E se algo perdura, é só por uma disseminação de enigmas obscuros e de
alegorias insípidas – mas que remetem incessantemente à dissolução de nosso Antigo
Regime colonial, embora sem que um mundo burguês esteja constituído ou mesmo em
processo claro de formação. Já o seu prólogo, por exemplo, tem um “jeito obscuro e
truncado”, um pouco como a armação difusa das telas de Guignard. Em Quincas Borba
(1886-1891), também a alma de Rubião aparece como um caos quase sem forma, que,
no fim de seu desenvolvimento, perde a sua identidade. Esta identidade é a mera
imagem de um Senhor da elite patriarcal, mas no limite uma identidade suprimida pela
invasão de um Outro absoluto, sem lei. Noutros termos, a sua forma é completamente
postiça: a de uma ideia fixa, estranha e delirante. No fundo, a ideia do duplo de um
duplo (o Imperador Napoleão III). De mero dependente, Rubião se transfigura em
Imperador, garantidor da lei em um país real em que a lei é a exploração e a violência
física direta sobre os corpos (escravos, dependentes), a lei perversa e caprichosa
pressuposta já em Brás Cubas. Por outro lado, a ideia fixa delirante desse Imperador –
vencer os inimigos no “campo de batatas” e servir Humanitas –, aparece elevada a
princípio construtivo do romance, como uma lógica maníaca indestrutível que semeia
cisões no corpo social. A filosofia de Quincas Borba corresponde, de uma forma
11MACHADO DE ASSIS, José M. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959, vol. 1. A seguir citamos
no corpo do texto, quando necessário, o número das páginas deste volume.
12 Desenvolvo de maneira mais livre, neste ensaio, os resultados da análise da prosa machadiana,
publicados em minha tese anteriormente citada. Naturalmente eles devem muito aos mestres da crítica
machadiana tais como Schwarz, Gledson e Pasta. Se economizo referências teóricas é, assim o espero,
em proveito da fluência do texto e do desdobramento crítico de suas e de novas formulações.
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distorcida e amalucada, à lógica real de uma “guerra de morte” (p. 608) de todos contra
todos (“a supressão de uma [vida], é a condição da sobrevivência da outra”, p. 560).
Uma loucura objetiva que, apesar de sua veia cômico-fantástico e carnavalesca, pretende
visualizar e explicar a totalidade do mundo. Nesse ponto, ela é muito semelhante ao
famoso capítulo do delírio de Brás Cubas. Mas de fato é assim, de modo fantástico, que
esse mundo tende a funcionar: atropelando impiedosamente as vidas que se opõem às
rodas de Humanitas – uma verdadeira e impressionante cifra alegórica do fetiche do
Capital, escarnecendo das leis humanas impotentes que tentam regulá-lo (aqui, em
especial, a menção à Lei do Ventre Livre, de 1871). A vida comunitária orgânica, cristã,
filantrópica (que já nos apareceu na gente humilde da pintura de Guignard) é, na
metrópole fluminense, invertida na pura superfície de um mundo essencialmente
violento e violentado por esse Outro fora da lei.
A ideia fixa também aparece no processo de acusação de um advogado ciumento
em Dom Casmurro (1900), num livro paradoxal formado por meras impressões quase
pictóricas (pequenos quadros em “formato de cromos”, como diz Schwarz, da vida social
de uma família patriarcal no fim do Segundo Reinado) – o que fez a crítica pensá-lo às
vezes sob a marca da “prosa impressionista” de James, Conrad, Tchecov, Svevo e Proust
– meras impressões, dizíamos, que se invertem em certezas inabaláveis. A “névoa”
detectada por Guignard, aqui, é interna à alma do narrador, um caos de sensações
ambíguas e ameaçadoras (tal como revelada no episódio dos “olhos de ressaca” de
Capitu). Um narrador que para se defender de tal caos sensitivo e pleno de gozo
ameaçador, coisifica o mundo externo, evacua toda temporalidade e possibilidade de
mudança, por meio de uma construção rígida, extremamente lógica e sistemática, que é,
no fundo, a de um delírio de ciúmes paranoico (como indica J. A. Pasta).
“Como envolver um meio tão lábil e propiciar-lhe um recorte?” – pergunta Naves
(FD, 180) a respeito de Guignard. Como se vê, essa dificuldade de forma do mundo rural
do pintor mineiro foi completamente superada por Machado de Assis. Sua forma
narrativa se põe com a clareza ofuscante do delírio de totalidade. No entanto, ela se
torna necessariamente uma “forma difícil” – pois aqui, continua a imperar, do ponto de
vista do conteúdo social, uma dificuldade objetiva de formalização, ou seja, uma
dificuldade que está contida na articulação imanente da matéria brasileira. O que
significa, por outro lado, que o conteúdo social resiste à vontade caprichosa e opressiva
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13 Cf. o conceito fundamental de “formação supressiva” de PASTA, José Antonio. “Volubilidade e ideia fixa
(O outro no romance brasileiro)” [1999]. Sinal de Menos, nº 4, 2010.
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confusão, uma difusão...”, uma “transfusão, enfim” (cf. EJ, caps. LXXIX e LXXX). A
técnica dos capítulos curtos, providos de materiais heteróclitos, também reforça a
fragmentação e a opacidade do romance. Estes, enfim, alguns dos traços compositivos
que Alexandre Eulálio (em seus Escritos, 1992) associou à pintura do impressionismo,
do pontilhismo e da art noveau. Também no Memorial de Aires tudo se turva sob as
impressões fugidias e incertas do narrador. Aires abafa a realidade pela retórica, atenua
os excessos cometidos pela gente bem posta – abreviando: os contornos da forma
relutam em desabrochar e reduzem totalmente a estridência produzida pelas Memórias
póstumas de Brás Cubas, ou a clareza cristalina de Dom Casmurro. A forma literária do
Memorial tende a se desfazer nas impressões de notas esparsas de um diário feito
aparentemente ao acaso, sem compromissos. Uma forma que mostraria semelhanças
com o “aspecto lavado” dos quadros de Guignard, a aparência de um mundo de
aparências objetivamente ambíguas, que “parece prestes a escorrer” (FD, 180) – embora
não guarde potencial utópico algum, terminando em grande desolação.
Novamente aqui poderíamos pensar em uma influência dos pintores
impressionistas. Por certo a associação tem certa procedência, mas se engana quanto ao
seu sentido. Parece-nos que a solução de Naves, tendo em vista a obra de Almeida Jr. e
Guignard, é bem mais rigorosa. O pressuposto material do impressionismo era o
dinamismo de uma sociedade industrial plenamente constituída. Tecnicamente não se
dissolviam as figuras e o mundo representados, mas antes, quebrava-se a sua aparência
compacta, natural, inalterável. O seu princípio é o de uma luz racional que revela a
natureza e as coisas humanas. A intensidade das cores, o espessamento das tintas etc.
serviam como meios de produzir diferenciações e novas configurações dos objetos, que
se oferecem ao olhar e tornam-se disponíveis à ação humana (FD, 181). Ora, temos
praticamente o oposto, em Aires. Sua profissão era representar diplomaticamente o
Brasil violento e iníquo no mundo civilizado. Como tal, ele usa a “prosa impressionista”
em suas notas diárias como um jogo para manter as aparências e as convenções sociais.
Aires é uma espécie de diplomata-coveiro, o duplo de Ares/Marte, cuja “vocação é
descobrir e encobrir” para enterrar os mortos do processo de guerra social. E, assim, ele
mergulha no reino das ambivalências e antagonismos, elevando-as a sistema após tê-las
desvelado – sob uma luz mortiça – como contradições de uma sociedade agônica, que
não sai do mesmo lugar. Plus ça change, plus c'est la même chose.
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**
Como vemos, nesses romances, a esfera do trabalho sai de foco e fica sempre
pressuposta. Aqui teríamos mais um ponto de semelhança com Guignard. Mas em
Machado, não há consolo, nem promessa. Por isso, aquele que seria o seu último
romance (Esaú e Jacó) termina com o enterro de Flora, nascida em 1871, uma espécie
de representante, no nível das elites, das mínimas promessas de emancipação de uma
jovem nação que se modernizava e que abria um mercado de trabalho livre (a partir do
Ventre Livre). O cidadão Machado era um pessimista, contrário aos emplastros
milagrosos. A utopia política, para ele (aliás, um monarquista), seria porventura
cumprir a Lei e formar uma ordem burguesa mínima no país do vale-tudo e da
gambiarra, um povo que parece ter a “bossa da combatividade” (para usar um termo de
Aires/Ares).
Mas nos romances, como formas literárias rigorosas, representantes de um
sujeito social pressuposto, por trás da névoa psíquica obscura de Brás, Bento, Quincas,
Rubião ou Jacobina, o escritor nos diz que não há nada senão a dependência e a
servidão masoquista ao Outro. Os ídolos religiosos, mesclados aos do poder e do
consumo dessa elite e das classes inferiores, são a prótese de sentido de uma sociedade
separada da vida ativa, que nada constrói. E que não têm cura, tal como os doentes
mentais graves.
O que sugere uma nova questão: forma difícil ou impossibilidade de forma? Se
estamos certos, o problema proposto pela forma difícil machadiana, é no limite um
outro ainda, um pouco mais radical: o poder de uma ideia fixa inamovível – enquanto
índice alegórico de uma determinada formação social e de uma determinada lógica
social objetivada como “guerra de morte” mundial –, que implica numa impossibilidade
radical de forma e de reforma.
Do ponto de vista das possibilidades do presente, para nós, uma impossibilidade
radical – a não ser que seja superada a matriz social que continua a nos produzir como
mera força de trabalho abstrata a serviço daquele Outro sem lei, que Machado ajudou a
decifrar como um vazio e que Guignard ajudou a suspender, fazendo-nos desejar outras
formas de organizar a vida.
Adesão e desbunde
Os êxtases sórdidos de um Brecht às avessas
Raphael F. Alvarenga
Natasha B. Palmeira
Bertolt Brecht1
Sob não poucos aspectos, José Celso Martinez Corrêa é um artista não somente
extravagante mas extraordinário, um mestre da encenação teatral, sendo inegável a
importância que teve na vida cultural e na história do teatro no Brasil. Os elogios, de
nossa parte, param aí, infelizmente. Com sua última peça, Acordes (2012) – codirigida
por Catherine Hirsch, Camila Mota e Marcelo Drummond –, uma mais do que livre
adaptação da Peça didática de Baden-Baden sobre o acordo (1929), Zé Celso e sua
companhia, o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, propõem, segundo anunciado no site do
grupo, uma “versão sampleada, antropófaga e TragiComicOrgyástica da ‘ópera de
sacação’ de Bertolt Brecht e Paul Hindemith”2. A coisa toda seria simplesmente ridícula,
claro, e indigna de nota, não se tratasse, uma vez mais, de um caso de extrema
regressão. Como de costume, o controverso diretor busca épater le bourgeois – como se
tal imperativo decadentista ainda estivesse na ordem do dia –, seja por meio do encanto,
seja pela perturbação sensorial, ou ainda, apelando para a agressão direta 3. O
envolvimento maravilhador, contudo, limita-se a poucos lances, como o momento,
ainda no início da peça, em que um ator encarnando Santos Dumont literalmente
decola em cena com seu avião: uma música atmosférica se combina às batidas do
coração do piloto, que ressoam em volume elevado por todo o teatro, acelerando na
medida em que o aparelho é içado aos ares e ganha altura, feito que não deixa de
impressionar, muito embora não deixe lastro durável na imaginação do espectador. Não
é de espantar que uma das inspirações confessas na montagem da peça – ainda segundo
nos informa o site do grupo – tenha sido o cinema de Spielberg, conhecido pela miríade
de efeitos especiais de tirar o fôlego, com a qual preenche o vácuo conteudístico e
compensa os defeitos e manifestas fragilidades da construção formal de filmes pré-
concebidos para quebrar recordes de bilheteria. Seja como for, no resto do tempo – e a
peça tem duas horas e meia de duração – o diretor lança mão dos mais consagrados
meios de se chocar uma audiência, intercalando explosões de bombas, fogos de artifício,
batidas estridentes de tambores e repentinas mudanças na luz – o que deixa o
espectador num estado de permanente excitação e alerta –, com cenas de tortura,
mutilação, muito sangue jorrado, espancamento, estupro, defecação, escatofagia, parto,
masturbação e, last but not least, fitofilia, com o próprio diretor simulando copular com
a grande árvore do teatro, ou, em suas próprias palavras, “surubando a Terra”.
Obviamente, ou pelo menos, com exceção dos corpos nus – que, é claro, não podiam
deixar de figurar numa peça do Oficina –, nada do acima mencionado é “real”, o que não
diminui a irritabilidade e a ojeriza de parte dos espectadores – uma minoria, no entanto
– diante de tanta sordidez.
Prevendo já uma possível objeção a nosso argumento, cabe aqui uma nota
explicativa. A decisão de Zé Celso de encenar esta peça em particular, dentre todas do
repertório brechtiano, não é nada gratuita, uma vez que uma das cenas da mesma, a da
desconcertante amputação dos membros de um palhaço gigante, provocou escândalo já
à época de Brecht, quando da encenação de estreia no Festival Musical de Baden-Baden
de 1929. Conta-se que Gerhardt Hauptmann tenha deixado o local, indignado com o
excesso de violência, pois também ali o palco fora lavado com sangue falso etc. Dito isso,
não se pode ignorar que aquela apresentação, aliás nunca depois reproduzida, fora
considerada pelo próprio Brecht uma espécie de experimento feito sobre base de uma
peça inacabada (as cenas seguintes ainda não haviam sido escritas) e cuja concepção (o
veio didático e coletivista, vale ressaltar) começava apenas a ser definida (tratava-se da
segunda Lehrstück, escrita como contraponto e par dialético da primeira, O voo sobre o
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4 Uma “multidão” (die Menge), que dialoga com o coro em cena, figura também no texto de Brecht, mas
no seu caso, desnecessário dizer, não se tratava de modo algum de um público pagante levado a
participar – e de maneira um tanto pífia – de uma experiência místico-festiva regressiva. Na estreia da
peça em Baden-Baden, a tal “multidão” era também composta pelo público presente, mas sobretudo por
cerca de 100 cantores distribuídos na plateia.
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a disposição com que se aceita tudo aquilo de bom grado: alguns “espectadores-atores”
mostravam conhecer de cor as letras das canções e as coreografias, chegando mesmo a
inclinar as costas para receber a vergalhada dos “atores-sacerdotes”.
Nada de novo sob o sol, dirá o leitor avisado5. Por certo, Zé Celso vem fazendo
peças assim há meio século, mais precisamente, já faz tempo que o diretor e sua trupe
“arrombam portas abertas”, por assim dizer, uma vez que o insulto ao conservadorismo
burguês repressor através da nudez despudorada, da apologia do uso de drogas etc., ou
por outra, a celebração de uma atitude anarcossexual com conotação místico-libertária
transgressora de tabus mediante um retorno pseudorromântico às origens rituais
arcaicas da humanidade, já não guardam qualquer resquício de crítica, o que dirá de
utopia, numa sociedade consideravelmente permissiva quando comparada à de décadas
atrás 6. Também não é a primeira vez que encena Brecht de forma controversa, ou no
mínimo ambígua – nos anos 60, as encenações nada convencionais de Galileu e Na
selva das cidades marcaram época. Tampouco são novidades, num contexto mais
amplo, a vilipendiação e/ou banalização da estética de combate – de teor antiburguês e
anticapitalista – concebida por Brecht a partir de meados dos anos 20. Bob Wilson, que
recentemente se apresentou em São Paulo na direção do Berliner Ensemble, não nos
deixa mentir, com seu belo e conformista espetáculo à base de pisca-pisca e neon azul.
Se é assim, perguntar-se-á o leitor, por que escrever sobre esta adaptação de Zé Celso
em particular, cujo impacto real – num momento histórico em que as ideias parecem ter
perdido toda importância na legitimação ou na crítica da ordem vigente – é
praticamente nulo? A razão de nossa crítica é tripla. Em primeiro lugar nos move a
convicção de que a arte reacionária – arte que, como diria Adorno, é e sempre foi ruim –
deve ser chamada pelo nome e combatida sem ressalvas onde quer que se manifeste. Em
segundo lugar porque, salvo engano, a peça condensa um tipo de gozo estúpido que nos
tempos que correm, ditos pós-ideológicos, parece sintomático de um modo dominante
5 Ou informado pelos ensaios de Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-69”, in O pai de família e
outros estudos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, sobretudo pp. 87-89, e Anatol Rosenfeld, entre outros
“Irracionalismo epidêmico”, in Prismas do teatro, São Paulo, Perspectiva, 2000, pp. 209-10.
6 Antes pelo contrário, como já colocava em evidência Herbert Marcuse nos anos 60, a liberação de
energias sexuais e agressivas reprimidas até então permitiu extravasar muito da infelicidade, da
frustração e do descontentamento com a ordem social estabelecida, sentimentos que, sem condições de
se desenvolverem conscientemente, poderiam segundo o filósofo vir a se tornar reservatórios para um
novo estilo fascista de vida e morte. A propósito, veja-se o capítulo sobre a “dessublimação repressiva”
em A ideologia da sociedade industrial, trad. G. Rebuá, Rio de Janeiro, Zahar, 1969.
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7Citado em Gustavo Fioratti, “Dois em um: Bob Wilson volta a São Paulo à frente da companhia fundada
por Bertolt Brecht”, in Folha de São Paulo (3/11/2012), p. E1.
8 Bertolt Brecht, “Über die Art des Philosophierens”, in Gesammelte Werke, vol. 15, Frankfurt/ M.,
http://blogdozecelso.wordpress.com/2012/12/07/a-maquina-de-desejo-de-teatro-total-de-acordes
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quais forem, no fundo não contarem mais – que diz respeito tanto à postura subjetiva
pós-moderna quanto sobretudo à ordem globalizada do real, supostamente desprovida
de contradições, e na qual calamidades de toda espécie se confundem com promoção da
liberdade.
Com efeito, uma das marcas definidoras da época presente é a falta de
racionalidade própria, o que explica em parte a citação arbitrária de estilos, que marcou
igualmente períodos anteriores, de desestabilização dos referenciais burgueses, como a
década de 1920, não por acaso momento de irradiação das estéticas de vanguarda, boa
parte das quais alinhadas a movimentos políticos e sociais que visavam acelerar o
enterro da civilização burguesa moribunda. Por isso talvez, apesar da intenção política e
vanguardista, aliás um tanto ingênua e deslocada, não podemos deixar de notar, e a
despeito de preencher com efeitos tecnológicos ultramodernos as lacunas da forma
dramatúrgica – mas para quem já declarou em diferentes ocasiões não acreditar na
dramaturgia, e sim no que chama de “tragecomediorgia”, isso não haveria de ser um
problema –, tudo em Acordes soa como uma repetição farsesca de esquemas e padrões
formais mais do que batidos, como se o que noutros tempos chegou mal ou bem a se
apresentar na forma de um distanciamento irônico, por isso mesmo com sinal negativo,
estivesse agora completamente positivado. Aqui cabe o que escreveu num outro
contexto Roberto Schwarz: “Onde a negatividade dava conta da resistência do real, a
positividade faz que ele evapore.”11 A aspiração à monumentalidade, já manifestada em
montagens anteriores, possibilitada em grande medida pelos recursos técnicos (digitais
e analógicos) de última geração, sem falar na pirotecnia, suplanta qualquer resquício de
ironia que ainda pudesse ter a peça de Brecht, que por essa razão é tomada ao pé da
letra.
Por diferentes que sejam as encenações de Zé Celso e Bob Wilson, evidencia-se em
ambos uma fetichização das possibilidades técnicas atuais. Estas são de fato
inesgotáveis, o que não quer dizer que o sejam também as possibilidades de fazer com
que toda a tecnologia disponível faça sentido na elaboração de uma peça de teatro, coisa
que não entra na cabeça da turma deslumbrada com o “contemporâneo”. O que dizer,
por exemplo, no caso de Acordes, da utilização abusiva de raios laser e video mappings,
11 Roberto Schwarz, “Marco histórico” (1985), in Que horas são?, São Paulo, Companhia das Letras, 1987,
p. 64.
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ou ainda, da “atualização textual” dos quadros de apresentação das cenas, que levam
títulos tais que “#toacordes”, como se cada cena apresentada se resumisse num boçal
hashtag de redes sociais? No início do espetáculo, uma atriz informa ao público que a
peça é filmada e transmitida ao vivo pela internet, para uma multidão de
“cyberespectadores” mundo afora, acrescentando que as imagens poderão
eventualmente “virar filme, DVD, holografia e até outras coisas que a ciência ainda não
inventou”. Numa outra ocasião, a mesma atriz já havia deixado claro o novo credo: “A
internet é uma espécie de Deus reinventado. A gente quer chegar às pessoas, atingir.” 12
Em suma, os artistas entretêm a ilusão de que pelo simples fato de se servirem das
novas tecnologias estejam em controle das mesmas, quando em verdade o próprio uso
que fazem delas já implica uma subserviência primordial, a saber, o fato, algo óbvio, de
os meios de produção serem determinados pela sociedade vigente – portanto pelas
relações sociais de produção dominantes, as quais em hora alguma são por eles
problematizadas no nível da forma do fazer teatral –, não assimilando em geral senão
aquilo que está de acordo com ela, sociedade.
A insistência no uso de formas antigas – e ao que tudo indica obsoletas, porque
ligadas à produção vanguardista do choque desestabilizador num momento em que a
desestabilização dos sujeitos é exigida e levada a cabo pelo próprio regime de
acumulação financeirizado global, dito “flexível” – como meros esquemas cujos efeitos
se supõem garantidos, e o preenchimento de tais formas com novos meios técnicos, dá
lugar ao que poderíamos chamar de transgressão estabilizada, o que pode ser
interpretado como uma resposta artística ideológica à alienação intensificada do
capitalismo turbinado das últimas décadas. Ao mesmo tempo, a regressão ao mito, no
caso, é tão óbvia e cabal, além de deliberada – trata-se, segundo o “guru-pajé” do
Oficina, de transformar o tabu em totem, ou seja, sacralizar e cultuar tudo o que foge à
norma, ou ainda, à maneira de Juliette, a heroína libertina de Sade, divinizar tudo o que
é tido por pecado –, que acaba redundando em grandes clichês: o bode, a ebriedade do
vinho, os ditirambos dionisíacos, as bacantes, o transe ritual, a purificação pelo sangue
sacrificial, o enorme pênis dourado, a cabeça de Minotauro na entrada do “teatro-
labirinto”, como que dando boas-vindas, em termos lacanianos, não ao deserto do Real,
mas ao Real de um gozo não de todo barrado (Mistérios gozosos, sintomaticamente, é o
12 http://www.globoteatro.com.br/reportagem-1390-acordes.htm
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nome de uma outra peça do grupo) – isso num momento em que a injunção superegóica
ao gozo ilimitado se tornou dominante nas sociedades do capitalismo avançado. De
resto, não deixa de ter sua graça ver o quanto as concepções do Oficina se alinham à
“ladainha pequeno-burguesa no teatro”13, que vive criticando o excesso de racionalidade
das encenações, a esterilidade do cerebralismo, e assim por diante.
Mas voltemos a Acordes. Zé Celso e os seus, assim como Bob Wilson, parecem
esquecer que em obras de arte dignas do nome os meios formais não são fruto do acaso.
Na montagem de que estamos tratando, o ritmo excessiva e desnecessariamente lento
da encenação – só o prólogo tem por volta de quinze minutos –, tratando-se de um
“musical”, é obviamente, em grande medida, estabelecido pela música, que no geral é
bem ruim: além de peças coladas de Kurt Weill (uma canção famosa de Mahagonny) e
Paul Hindemith (segundo os próprios intérpretes a música deste útimo fora recriada
“para o suingue contemporâneo”), tem-se ainda enxertos arbitrários da música clássica
(o Requiem de Mozart) e contemporânea (a faixa “Vordhosbn”, do álbum drukQs, de
Aphex Twin), sem falar na batida eletrônica hardcore, usada nas cenas mais trash, em
particular na da mutilação do palhaço gigante, para criar, junto ao jogo de luzes, uma
atmosfera de pesadelo, batida esta por sua vez sucedida, da forma mais ingênua e
inconsequente, na passagem de uma cena para outra, por batucadas de samba, ou ainda
pelas tradicionais e enfadonhas cantilenas do Oficina, onipresentes na peça anterior,
Macumba antropófaga, que se arrastava assim por mais de seis horas. O tratamento
dado pelo grupo à música diz muito da banalização dos conteúdos, incluindo os mais
atrozes, que é outra marca da nova peça: a barbárie do tempo presente – exemplificada
entre outras tantas coisas pela exibição de imagens chocantes, como a de um índio
kaiowá com o pescoço quebrado – e a celebração dionisíaca – mas, caberia perguntar, o
que se está a celebrar, enfim, esta vida? – desfilam de mãos dadas na passarela do
teatro. A impressão geral é que o que unifica a peça, isto é, seu princípio de unificação
temática, no fundo não é outra coisa senão o arbítrio do próprio diretor; a oscilação não-
problemática entre o crasso e o ridículo, entre a brutalidade e o deslumbre, é a marca do
ecletismo leviano de seu fazer artístico, que tende a tomar superfluidade por riqueza,
reproduzindo aí também, de forma acrítica, a tendência social dominante. Permanece a
13 Nos bons termos de Iná Camargo Costa, “Teatro na luta de classes” (2009), in Nem mais uma lágrima.
Teatro épico em perspectiva dialética, São Paulo, Expressão Popular/Nanquim, 2012, p. 30.
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pergunta: a par do texto da peça, que acaba relegado a segundo plano, o que tem tal
encenação a ver com o teatro de Brecht de modo geral?
A este respeito, vale reler intervenções e entrevistas antigas do diretor do Oficina.
Surpreendentemente, o que se nota é um Zé Celso menos caricatural, mais lúcido, algo
ciente de suas contradições, por isso mesmo mais interessante que a porralouquice
lisérgica das declarações e montagens mais recentes. Citemos alguns trechos em que fala
de Brecht: “[Na selva das cidades é] uma peça que é um combate contra esse mundo
onde a única coisa que se admite é a luta pela sobrevivência, ou a luta pela concorrência,
esse esporte estúpido em que ganha sempre o mais boçal. E é a conclamação para a luta
maior.”14 “Artaud queria que o teatro fosse um ritual e esta é mais ou menos a posição
do Living [Theater], não a nossa, que, de certa forma, está mais perto de Brecht. Nós
queremos acordar as forças das pessoas para elas voltarem a querer. Sabemos, no
entanto, que uma parcela inevitável do público vai apenas nos consumir.” 15 “Brecht não
tem nada a ver com toda uma visão de teatro político de catecismo e catequese, de povo
ingênuo e fodido que os clichês do chamado teatro social anda divulgando por aí. Brecht
é dialético, mágico! O teatro dele é a própria contradição posta a nu. [...] Quando uma
sociedade está em luta, aí é que é a hora mesmo de Brecht. [...] É como macumba para a
cultura dominada. Uma força! [...] Arrebenta com quem está mentindo, com quem não
quer o movimento, o movimento de massas. E é na luta, na pauleira, que é o seu lugar, a
sua hora e a sua vez.”16
Concordando ou não, está claro que por trás de tais declarações havia um bocado
de reflexão sobre a prática teatral, sobre a relação desta com a sociedade etc., e não
simplesmente reposição de clichês. O Oficina atual parece-nos um tanto mais básico,
como se houvessem desaparecido as contradições que nutriam e animavam sua estética
nos anos 60 e 70. Como dito, o teatro feito pelo grupo hoje atende a uma faixa de
mercado cuja demanda é relativamente alta, contando com um público cativo e
vendendo relativamente bem: rebeldia como brand, jouir sans entraves como lifestyle,
anarchy for sale etc. Cabe então ressaltar alguns traços e elementos que distinguem
14 José Celso Martinez Corrêa, “Um jovem Brecht desmunhecado e enfurecido...” (1969), in Primeiro Ato.
Cadernos, depoimentos, entrevistas (1958-1974), org. A. H. Camargo de Staal, São Paulo, Ed. 34, 1998,
p. 141.
15 José Celso Martinez Corrêa, “Lição de voltar a querer” (1972), in Primeiro Ato, op. cit., p. 213.
16 José Celso Martinez Corrêa, “Apêndice: Passando a limpo” (1980), in Primeiro Ato, op. cit., pp. 313-14.
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17 Cf. Ítala Nandi, Teatro Oficina. Onde a arte não dormia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989, p. 135.
18 Bertolt Brecht, “Notas sôbre ‘Mahagonny’” (1930), trad. A. Conrado, in Teatro dialético, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1967, p. 59.
19 Cf. Peter Bürger, Teoria da vanguarda (1974), trad. J. P. Antunes, São Paulo, Cosac Naify, 2012, p. 158:
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21 Franco Moretti, Signos e estilos da modernidade. Ensaios sobre a sociologia das formas literárias
(1988), trad. M. B. de Medina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 282.
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22 Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, in Seqüências brasileiras, São Paulo,
Companhia das Letras, 1999, p. 124.
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personalidade: em sua primeira peça, Baal (1918), por exemplo, este tinha um viés
negativo (de luta contra o individualismo burguês) e um viés positivo (de reconciliação
com a natureza); em Um homem é um homem (1926), que data de um período em que
começava a estudar Marx, a despersonalização aparecia para o dramaturgo como um
requisito indispensável para a sobrevivência; nas principais peças didáticas, em
contrapartida, a renúncia de si mesmo vinha associada à luta anticapitalista, por isso
mesmo era assumida como condição e prelúdio de uma ressurreição social positiva 23. A
partir do final dos anos 20, mais precisamente, a ruptura com o individualismo e o
utilitarismo burgueses, com a forma isolada e abstrata do sujeito burguês – mas jamais
com o sujeito em geral –, dava-se no interior de um movimento coletivo de
transformação social. Por aí tem-se uma ideia do quanto os significados das noções
mobilizadas no teatro brechtiano, tais que liberdade, ajuda, justiça, bondade,
compaixão, crueldade, violência, disciplina, ou sacrifício, são indissociáveis das
situações e do contexto material em que se encontram inseridas, o que fica novamente
muito claro noutras peças do período, tais que O declínio do egoísta Johann Fatzer
(1927-29), A exceção e a regra (1929-30) e A Santa Joana dos Matadouros (1929-31),
ou ainda naquelas compostas no exílio, como Mãe Coragem e seus filhos (1939), A alma
boa de Setsuan (1943), O círculo de giz caucasiano (1944), entre outras.
Note-se ademais o quanto um tema como o da identificação humanista abstrata
com o próximo é descorticado no nível da própria forma com que é a cada vez tratado. A
respeito de outra de suas peças didáticas, A decisão (1930), que caracteriza seu período
mais radical, experimental e inovador – a ponto de literalmente abolir o público das
representações (e não simplesmente abolir a distância entre palco e plateia, como o
quer Zé Celso) –, Brecht nota que nela a tomada de consciência do jovem camarada,
cujo idealismo – isto é, o fato de simpatizar abstratamente com o sofrimento alheio – o
leva inexoravelmente a falhar ao cabo de cada nova missão que lhe é confiada, ocorre
demasiado tarde, o que não somente prejudica o andamento da luta coletiva como
também leva o personagem à morte, coisas que segundo o dramaturgo poderiam ser
evitadas na vida real através da prática de exercícios cênicos como os propostos naquela
23 Cf. Frédéric Ewen, Bertolt Brecht. Sa vie, son art, son temps (1967), trad. É. Gille, Paris, Seuil, 1973, p.
191.
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24 Cf. Bertolt Brecht, “Nachwort für Spiel- und Agitpropgruppen”, in Die Maßnahme. Kritische Ausgabe,
Frankfurt/M., Suhrkamp, 1972, p. 483.
25 Cf. Bertolt Brecht, “Die Musik zur ‘Maßnahme’”, in Gesammelte Werke, vol. 2, Prag/London, Malik,
1938, p. 362.
26 Bertolt Brecht, A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo, trad. F. Peixoto, in Teatro completo,
Mutatis mutandis, era basicamente o mesmo quadro no Brasil nos anos 1960,
principalmente no pré-golpe, claro, mas de certo modo até o AI-5, vale dizer, “um tempo
em que se vislumbrava a possibilidade de mudança profunda de nossas estruturas
sociais e do efetivo engajamento do país no movimento revolucionário mundial que
acendia as esperanças de que seria possível dar outra face ao mundo”28. Ora, não é
preciso ser gênio para entender que nem de longe é esse o caso atualmente, ou desde
que ficou clara a vitória esmagadora da contrarrevolução em todo o mundo: “Hoje a
expectativa não é mais a de ruptura (o que dirá utópica, como é o caso da gravitação
modernista em torno de uma outra civilização), não há sequer ‘horizonte’, obliterado
numa queda euforizante no Presente, no presente de um capitalismo de novo em
marcha forçada, como nos tempos do Milagre.” 29 Note-se que com o eclipse total das
expectativas de transformação qualitativa radical, vale dizer, na ausência manifesta de
“forças transformadoras capazes de oferecer um horizonte menos sombrio para a
sociedade”30, a própria metáfora oswaldiana da antropofagia, tomada com sinal
positivo, torna-se conservadora, uma vez que reforça de forma ingênua a adesão ao
existente, no caso, ao “darwinismo social” dominante. Por outras palavras, com tal
metáfora, hipostasia-se a lei geral da assimilação do outro a si e de si ao outro, mais
precisamente a luta de morte de todos contra todos pela sobrevivência no mercado e por
um lugar ao sol do consumo massificado, ou ainda a vocação predatória das classes
dirigentes, a descaracterização e o desperdício ligados ao universo do consumo sem
peias, a capacidade da indústria cultural de absorver, neutralizar e comercializar
aspirações libertárias e conteúdos subversivos ou contestatórios, e assim por diante 31.
Nada disso, por certo, parece tirar o sono da pseudovanguardista turma do
desbunde. No final da peça, a “multidão” presente é intimada a se juntar aos artistas
28 Maria Elisa Cevasco, “Para que serve o teatro político?”, in F. Desgranges & M. Lepique (orgs.), Teatro e
vida pública. O fomento e os coletivos teatrais de São Paulo, São Paulo, Hucitec/Cooperativa Paulista
de Teatro, 2012, p. 129.
29 Paulo Eduardo Arantes, “A lei do tormento”, in F. Desgranges & M. Lepique (orgs.), Teatro e vida
Xavier no livro citado, pp. 230-62. Veja-se igualmente Roberto Schwarz, “Nacional por subtração”
(1986), in Que horas são?, op. cit., p. 38: “O que [em Oswald] era liberdade em face do catolicismo, da
burguesia e do deslumbramento diante da Europa é hoje […] um álibi desajeitado e rombudo para lidar
acriticamente com as ambigüidades da cultura de massa, que pedem lucidez.”
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(dezembro/2012–janeiro/2013)
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Marcelo Mari *
* Doutor em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (2006). Mestre em Arte e Produção Simbólica pela Escola de Comunicações e Artes da USP (2001).
Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (1997).
Atualmente é professor da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.
1 Em 1937, ocorreu o estreitamento conjuntural da aliança entre o Partido Comunista e a política do New
Deal. Cf. SEATON, E. G. Federal prints and democratic culture: the Graphic Arts Division of the Works
Progress Administration Federal Art Project, 1935-1943. Tese de Doutorado. Northwestem University,
Illinois, 2000, p. 157. (Parênteses nossos).
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2 GUILBAUT, S. How New York stole the idea of the modem art - Abstract Expressionism, Freedom, and
the Cold War. Chicago: The University of Chicago Press, 1985, p. 21.
3 ARANTES, Paulo Eduardo. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004, p. 204.
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passagem pela França, Pedrosa viajou para os Estados Unidos e passou a residir em
Nova York no final de 1938. Ali, ele travou contato com militantes trotskistas norte-
americanos e com muitos artistas, literatos e críticos de arte que se aproximaram do
trotskismo, entre os quais Alexander Calder, Clement Greenberg e Meyer Schapiro.
Quando voltou ao Brasil em 1945, Pedrosa decidiu batalhar a favor tanto de suas
convicções artísticas como políticas. Ao contrário de seu confrade norte-americano
Greenberg, Pedrosa apostava na arte de Calder e nos desdobramentos artísticos
construtivos para prosseguimento da tendência de mesmo nome da arte moderna.
A fundação da Bienal de São Paulo coincidiu com a iniciativa de Pedrosa em
promover a arte de tendência construtiva no Brasil nos anos de 1950. Difundida na
época, a famosa afirmação de Mário Pedrosa de que “o Brasil está condenado ao
moderno”4, explicava-se pela conformação das relações estabelecidas entre plano local e
plano internacional desde o período da colônia até os dias de hoje. Segundo Pedrosa, a
substituição de modelos estabelecidos na periferia do capitalismo se fazia segundo a
lógica da tentativa de atualização pela importação. Essa importação acentua a tensão de
duas condições de inserção do Brasil nas novas relações internacionais: arcaísmo e
modernização. A tônica desse processo era irremediavelmente o desenvolvimento
desigual, ou “desenvolvimento desigual e combinado” na acepção de Trotski 5, e as
atualizações promovidas no conjunto das atividades sociais ofereciam possibilidade de
integração e de autonomia no curso das mudanças internacionais. Entretanto, como
toda atualização, sua inserção poderia ou não superar as condições preexistentes.
Pedrosa assinalava que o advento da Bienal de São Paulo promoveu não só a
formação do gosto pelo moderno, mas também propiciou um debate sobre
provincianismo local e sobre renitência da arte internacional, produzindo rupturas
locais que não foram definitivas e demarcando muita vez continuidades na reafirmação
da ordem internacional. Ainda que a mostra brasileira fosse símbolo de modernização,
ela passou a ser de fato parte da modernização contraditória que não superou as
condições sociais preexistentes; modernização que estabeleceu tanto a manutenção das
relações de dominação como o predomínio e a acentuação das desigualdades.
4 PEDROSA, Mário. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p.
321.
5 Cf. TROTSKI, L. A revolução permanente. Lisboa: Antídoto, 1977.
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6 PEDROSA, Mário. Mundo, Homem, Arte em Crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 257.
7 CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 88.
8 Cf. RAMONET, Ignacio. Geopolítica do caos. Petrópolis: Vozes, 1998.
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9 PEDROSA, M. Dos murais de Washington aos espaços de Brasília, op. cit., p. 306.
10 MARQUES NETO, José Castilho (Org.) Mário Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2000, p. 70. Cf. também ARANTES, O. B. F. Mário Pedrosa: itinerário crítico. São Paulo: Scritta
Editorial, 1991, p. 92 e seguintes.
11 WU, Chin-Tao. Privatização da cultura. São Paulo: Boitempo & SESC-SP, 2006.
12 PEDROSA, M. Política das artes. São Paulo: EDUSP, 1995, p. 322.
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sociedade capitalista: “A arte moderna, a arte abstrata, a pop art, a minimal art, a body
art, a conceptual art, etc. são todas produtos de consumo conspícuo, ainda que nem
mesmo a burguesia entenda verdadeiramente todos esses novos ismos, mas os aceite na
medida em que vendem. Nesse sentido, a arte (...) é uma forma de mistificação cultural.
Sobretudo, na medida em que reproduz e projeta essa mistificação como os bens
supremos que os grandes monopólios das multi, ou melhor, transnacionais levam para
todo o mundo, principalmente para os países da periferia, como os emblemas, os
símbolos da civilização cosmopolita do global shopping center a que os sumo-
sacerdotes das gigantescas empresas monopolistas querem reduzir o planeta.” 13
Paulo Herkenhoff, em seu ensaio “Pum e cuspe no museu”,14 questiona o campo
estético. Seu ensaio tenta encontrar aquele espaço e aquele instante de tempo muita vez
despercebidos no confronto entre público e obra, que caracteriza o que chamamos de
experiência estética. Herkenhoff identifica a arte com os pequenos gestos, com as
pequenas coisas que se colocam entre a consciência do público e o espaço onde a obra de
arte se encontra. Como mensurar o valor estético de uma obra de arte? As experiências
estéticas propostas por Hélio Oiticica e Lygia Clark nos anos sessenta parecem apontar
para uma solução de resistência contra a aniquilação da arte na era do deus-mercado,
pois a experiência aberta por um Parangolé não se identifica com sua propriedade e
comércio. Medida urgente contra aquilo que Pedrosa tinha constatado: “as leis do
mercado capitalista não perdoam”. De certa forma, Herkenhoff assinala os interstícios
da dimensão estética como grande barreira contra a simples mercantilização das coisas
presentes no mundo. O que há de novo nisso? Vivemos um impasse contemporâneo de
falta de alternativa que possibilitem vislumbrar a transformação efetiva do que está aí.
Cláudio R. Duarte
1 Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, as visitas que hoje estamos. São Paulo: Iluminuras, 2012.
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2 Cf. Cláudio R. Duarte, “O capitalismo como estado de exceção permanente”. Sinal de Menos, nº 8, 2011 e
Carlos Fuentes, Valiente mundo nuevo. México: FCE, 1990, p. 109 e ss.
3 “A logicidade paratática da arte consiste no equilíbrio dos elementos coordenados por ela, naquela
homeostase em cujo conceito a harmonia estética sublima-se como último recurso. Tal harmonia
estética é, face aos seus elementos, algo de negativo, de dissonante em relação a eles (...) Assim, a
harmonia estética qualifica-se também a si mesma como momento. A estética tradicional engana-se ao
exagerar esse momento, a relação do todo às partes, como um todo absoluto, erigindo-o em totalidade.
Mediante essa confusão, a harmonia converte-se no triunfo sobre o heterogêneo, emblema de uma
positividade ilusória.” (Theodor W. Adorno, Ästhetische Theorie in:__. Gesammelte Schriften, Band 7.
Frankfurt: Suhrkamp, 1970, p. 236. Trad.: Artur Morão: Teoria estética [1970]. Lisboa: Ed. 70, 1993, p.
180.)
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uma “capelinha dos santos anônimos”, fotograficamente registrada pelo autor (em “?”,
p. 25). É a elaboração desse tipo de material peculiar que dá ao romance uma densidade
histórica difícil de encontrar na literatura contemporânea.
Enquanto na Europa o romance foi a expressão do modo de vida burguês – com
os seus pressupostos na secularização da cultura urbana, no individualismo e na livre
circulação de mercadorias – no Brasil, os pressupostos eram algo diferentes:
escravismo, clientelismo e dependência direta patriarcal e religiosa conviviam com a
lógica universal do mercado e da acumulação brutal do capital. Aqui, a dominação
indireta e quase-objetiva do mercado se entrelaça, ou melhor, talvez, se realiza por meio
de formas de dominação direta ou quase-direta, fortemente baseadas na coação e na
violência, na hierarquia de classes, na corrupção e no favor político paternalista, mas
também através da cultura e das ideologias de matriz mítico-religiosa. O resultado é
uma sociedade capitalista ao mesmo tempo “cordial” e “selvagem” – o caldeirão
diabólico em que ferve até hoje a massa informal e sem direitos assegurados,
reproduzindo ainda as estruturas arcaicas da Colônia – tal como a velha personagem do
incipit da obra, guardada qual um papel na gaveta direita da cômoda: a velha mãe
colonial “inteira, mesmo que aos pedaços” (p. 21).
O recuo relativo do fetiche religioso gera a luta entre o número e o drama. No
declínio do deus e da religião, forçado pela instauração da Era do Vazio fetichista do
dinheiro, resta dramatizar o inexistente – ou o efêmero movimento negativo que parece
às vezes sacudir a superfície do texto; quando a Igreja e o Supermercado (o templo das
mercadorias), presos juntos, juntos devem ser enforcados. Nesta altura já fechamos o
livro: o sujeito ou sua possibilidade só surgem no fim desse processo negativo, ou no
reinício da leitura da obra, que nos revela então mais claramente a essência de seu
ponto de vista. É a dramatização ensaiada por Antonio Geraldo, desde a introdução em
versos, estabelecendo o “ponto de vista da morte” da (de)composição6:
Palavras que correm no espaço vazio em direção ao outro (ao velho e ao novo, por
6 Conforme a caracterização de José Antonio Pasta, na orelha do livro. Cf. também o seu “Volubilidade e
ideia fixa (o outro no romance brasileiro)”. Sinal de menos, nº 4, 2010.
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suposto),
“pelas trilhas escuras de mim mesmo/ até imaginar o outro, e sê-lo/ neste passeio inútil, sem ter
sido/ aquele outro eu mesmo, mas eu mesmo/ sei que pedalo para o atropelo” (“do autor para o
autor”, p. 9).
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7 “O Chiste, onde quer que se encontre, é a forma que desata coisas, que desfaz nós (...) Cada vez que essa
tensão e contenção ameaçam converter-se em hipertensão, procuramos diminuí-la, descarregá-la."
(André Jolles, Formas simples [1930]. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 206 e 212.)
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8 Cf. Henri Lefebvre, A revolução urbana [1970]. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009, caps. I e II.
9 Cf. a ideia de um “pseudocampo” na atual dispersão e rarefação da vida urbana de Guy Debord, A
Sociedade do espetáculo [1967]. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, § 177. Cf. também: Claudio R.
Duarte, Estilhaços da experiência urbana moderna. São Paulo: FFLCH-USP, 2002 (dissertação de
mestrado).
10 Cf. Rodrigo Naves, “Anonimato e singularidade em Volpi” in:__. A forma difícil. (Ensaios sobre arte
“negócios que carregam a gente pra baixo e mais embaixo, do mato pra cidade, da cidade pra
capital, e, na capital, pra onde deus quiser, de moquiço em moquiço, rodopiando pelas beiradas
em volta da falta de dinheiro, isso quando o diabo não atalha e põe a gente pra correr de volta, em
tudo de novo, mato adentro, mas dando de cara, isso sim, com os descampados secos, os
desmatados passados falsamente verdes em nós, como dizia meu finado pai (...)” (“a hora certa”,
pp. 27-8).
“já virou ritual de fim de ano, sempre convido uns empregados da firma, digo que foram
escolhidos a dedo (...) você não está nem aí com ninguém e poderia exigir com toda a naturalidade
do mundo que a cambada lambesse seus sapatos, o que muitos fariam, diga-se en passant, com
enorme gosto (...) (“com espírito”, pp. 281-2).
Não seriam estas então as duas vozes mais “típicas” e “características” do texto,
no sentido clássico do romance realista (evidentemente sem a sua forma)? De um lado,
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“não é assim, não, doutor, o pelourinho já foi faz tempo, não calo, não, vou embora não é porque o
senhor mandou, não, vou porque quero e quero meus direitos, eu não sou sujo, não, minha cor é
essa, mesmo, acabou, passo fome mas acabou, não sou mais capacho de ninguém, não tá vendo?”
(“isso, benedito, não se rebaixa mais não”, pp. 164-5).
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Três fragmentos de
Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira
as visitas que hoje estamos. São Paulo: Iluminuras, 2012.
a hora certa
apontam um rumo, é pelejar nessa direção, a pé, de ônibus, o que for que toque a gente
pra frente, que os desprevenidos de hoje, mesmo a um passo da mendicância, pelo
menos não têm de ralar tanta sola e remendar alpercatas, um nike de camelô anda bem
e gostoso, às vezes é mike, pouco importa, a gente labuta até que muito alinhado, outros
tempos, nova canga, não menos pesada, mas mais bonita, de grife, ou quase de grife, o
que é um consolo moderno, não é?, monte santo de minas fica aqui ao lado, cidadezinha
tranquila, você sabe, o velho isidoro vem de lá, vender bananas, e confirmou a fama de
dona matilde, fui decidido, bati palmas, apertei campainha, ela não estava, então era
esperar, mas ela deveria saber, se era tão boa, que vinha cliente, ou não?, benzedeira
também tem as suas necessidades, pensei, o fusca na garagem era a prova, com a
ferrugem desbeiçando a lataria, uma boa porção do para-lama comida, me abanquei na
sarjeta e fui fazendo espera, tinha todo o tempo do mundo, ela talvez soubesse disso, ou
não?, não demorou e ela apareceu arrastando um sujeito pela mão, meio abilolado de
nascença, parecia, se não por seu todo inteiro, coitado, babava um pouco, dona matilde,
vim em consulta, disse, ela manquitolava, quebrei a perna, 84 anos é peso demais,
revelou, no que me pareceu exagero de vetustez para melhor propaganda do ofício, mas
vou sarando como deus quer, vamos entrando, seu moço, eu não queria dizer logo o
motivo da consulta, ela que adivinhasse e me livrasse de ouvir de mim a lamentação que
me latejava, moço, não precisa dizer, eu enxergo além, quer ver?, o seu caso é este, você
faz assim assado, evite o malpassado, e pronto, paga o que deus mandar que pague,
muito obrigada, vai com deus, mas nada no mundo é como deveria de ser, ela me
mandou sentar numa velha poltrona, rasgada no tecido gobelino, aberta no corvim dos
braços, uns cuspidos chumaços de algodão arrancados talvez pelo desmiolado, é meu
filho, aquele, o último que restou, ela queria só principiar conversa, me desentalar do
meu silêncio, a senhora é casada?, viúva, meu marido morreu do coração, mal que
carregava de menino, passou pros filhos, perdi três, duas moças, uma bem casada,
tadinha, morreu na gravidez, carregando com ela o fruto, sabe lá se de coraçãozinho
podre, também, ficou esse aí, filho de deus, doente da cabeça, mas muito bom de
coração e de coração bom, valha-me deus, que sabe o peso da cruz que nos destina, não
é?, concordei, ela esperava que já fosse expondo meu lenho, percebi, mas o doidinho já
se achegava, você me dá um relógio, moço?, o relógio que ele usava não tinha ponteiros,
dona matilde pediu licença e me deixou com ele, que insistia no presente, eu tenho um
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tantão, falou, e, de fato, trouxe uma caixa de papelão com pelo menos uns 200 relógios
de todo jeito, acho que nenhum funcionando, então ele se esquecia um pouco de mim,
trocava de relógio, pegava outro, abotoava com dificuldade um em cada braço, remexia
na caixa, fingia que acertava a hora, moço, você me dá um relógio?, acabei perdendo a
paciência, dona matilde não voltava, seu relógio não funciona, falei, não tem ponteiros,
está quebrado, não vale nada, está tudo quebrado, repisei, a caixa inteira, ele ficou
quieto, redobrou no apalermado, olhou o braço, bateu com os dedos na máquina,
encostou no ouvido e apertou os olhinhos enrugados, que ficaram ainda mais repuxados
de tristeza, e saiu da sala chutando a caixa, eu e minha língua, pensei, mas a velha não
devia fazer isso, deixar a gente assim, com o filho amalucado, será que ela espiava,
mesmo sem ver?, então pude olhar melhor a sala, que não era escura na enganação de
falsos sortilégios, paredes sujas, com marcas de dedos, reboco esfarelando farofa, verniz
da estante pegando o encardido de sebo do uso, bibelôs diversos espalhados,
elefantinhos de louça em escadinha de tamanho, virados de bunda pra porta, uma
cabeça grande de cavalo, de louça, também, mas enfrentando quem entrasse,
carrancuda, vasos com flores plásticas cagadas e recagadas por mosquitos, que
balangavam sem parar o seu pesinho na gangorra dos galhos, uns assustando os outros,
talvez só pelo gosto do pouso pendulando, até mosquito pode ter sorte e nascer por
perto sem querer da alegria, pensei, em relâmpago de sorriso, um bom agouro?, havia
ainda velhos retratos retocados à mão, daqueles antigos, em contorno falso dos olhos,
gravata sublinhada, muita vez até inventada, em artes de retratista, na vontade de um
terno impossível, o marido, os filhos, todos de cara cor-de-rosa pastel, como que
gritando mudos e embaçados, eu morri faz anos, nós morremos há muito, aquilo
arrepiou meu cangote, juro, e fechou de novo o tempo aos poucos da minha esperança,
desviei os olhos para a estampa mal encaixilhada de um anjo da guarda, guardando em
vão, disse pra mim mesmo, 4 crianças até que bonitas, não se adivinhava nelas doença
do peito ou da cabeça, continuei observando, um aperto maior no coração, o poder da
velha?, uma figura de são jorge e um desenho de pai josé pendiam tortos na outra
parede, aliás, embaixo, uma boneca nova, dessas pretas que fazem agora, mudando
somente a cor da borracha, que as negrinhas devem saber o seu lugar e ir brincando de
vida de verdade, acho, ficava acomodada sentadinha num canto da mesa, com um
chapeuzinho de palha arrancado talvez de um chaveiro, brinde de algum político da
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capital pra caipirada daqui, onde judas já perdeu até o couro da sola dos pés, imaginei,
puxa, pode ser um filho josé, na cabeça de dona matilde, alguma promessa em nome do
menino doente, quem sabe?, havia também um santo expedito, em santinho de quem
alcança graça e manda imprimir 3 milheiros, preso no dente da moldura de um espelho
velho, cariado, que pendia muito alto, próximo do forro verde de madeira, repasto de
cupins, porque as bosticas redondinhas aqui e ali, em montinhos, com asas de aleluia
rebrilhando transparências, então ela ressurgiu, dona matilde, e levei um baita de um
susto, arrancado de repente daquele inventário, vem ver uma coisa, e me arrastou pela
cozinha, saímos da casa, ela devagar demais, até o fundo do quintal muito sujo, a
jabuticabeira carregada, deu água na boca, entramos num quartinho imundo, mal
iluminado, olha aqui na caixa, vê?, umas pedras redondas, grandes, outras tantas
miúdas, o que é isso?, é minha criação de pedras, não pode comprar, não pode dar,
troquei lá na bahia, com um feiticeiro que ficou com meu anel de brilhante, perto da
igreja de são félix, agora moram aqui em casa, frutificadas como o moço pode ver, pra
que servem?, inquiri, não posso contar, mas é bom demais, bebem água uma vez por
semana e comem pó de ferro, a caixa estava mesmo cheia de limalha, ela continuou, tem
macho, tem fêmea, dão cria, olha as pedrinhas aí espalhadas, e vão crescendo, tão bom,
tanto bem, você quer?, mas tem de querer com vontade, então o moço me dá em troca o
que quiser e leva um casal, faz um bem danado, são as únicas que prestam, frisou,
estremeci, a visagem do meu amuleto?, coloquei a mão no bolso e tateei a minha de
família sempre carregada pedra de topázio, e o frio subiu de novo a barriga com os seus
dedos de supetão no susto, não, não, a minha pedra não era a mesma que dava cria,
bebia água e comia ferro, a minha era outra, de outra espécie, mais triste, ou não?,
vamos voltar, ela disse, e tornamos para a sala, vou benzer porque sei que é preciso, qual
o seu nome, seu moço?, valdomiro, então descruza as pernas, filho, põe o pensamento
em deus, ela fechou os olhos e principiou uma reza engrolada, só entendia que o negócio
era com o menino jesus, riscava no ar muitas pequenas cruzes, arregalava os olhos, se
aquietava e virava a cabeça pro lado, olhando pra cima, depois se repetia, rabiscando as
cruzinhas no vento com o polegar perto da minha cabeça, das minhas mãos, dos meus
pés, até que parou, gemeu e sentenciou que eu precisava de 3 benzeduras seguidas e
carreadas, tinha de voltar por 3 dias, o trabalho, seu moço, foi bem feito, tem um preto
nas suas costas, meu filho, uma mulher bonita, mas bonita mesmo, que encomendou,
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ela gosta muito de você, ama, você não quer nada com ela, e ela trabalhou com um
negrão beiçudo assim, e alicatou com os dedos a boca murcha de velha, fazendo
carantonha, um negrão assim, feioso de carvão, na sua sombra, guiando escondido em
você os seus passos errados, seu moço, coisa forte, mas tem uma porção graúda de
mulher boa no seu pé, também, você vai ficar bem de vida, ouviu?, escolhe a moça certa,
não vai se amasiar com pobretona, não, tem moça rica curtindo paixão em seu sossego,
não vai ser bobo, não, ela disse, me olhando medido, eu, a mim, que só queria saber de
um emprego, de um serviço certo e assalariado, com registro em carteira, um homem
sem ocupação, hoje, despossuído, é homem pela metade, e, por maior pedaço de si que
ostente, em gabolice, não passa de um naco de gente, vagabundo aos olhos da
parentalha, um encostado, sem valia, sem ambição, a minha mulher não tem culpa de
ter cultivado o desamor, essa raiva seca que brota de seu homem empacado na
existência, vivendo de bicos e biscates, esmolando auxílio de parentes e amigos que vão
se acoitando de toda ligação, primeiro aos poucos, depois em correria desembestada,
mas ato reflexo, sem malvadeza, eu sei, o pulo de quem pisou em tábua com prego,
medo de que um desgraçado como eu se agarre com muita força no barrado de suas
calças, arrastando tudo e todos pro fundo do poço daqueles afogados em dívidas, e, pra
salvar quem já perdeu as forças de boiar, o melhor é deixar que se afogue um bocado,
antes, por precaução, dizem, esse o medo, e medo não tem instrução, não tem amor de
sangue, menos ainda de afinidade, e a mulher esposa fica sendo o homem da casa,
exigindo o fim de um viciozinho bom, cigarro depois do café, cobrando uma atitude,
sabe-se lá qual, e o homem de verdade se cala em si e não suporta a própria voz, nem a
do pensamento, martelando a angústia, repetindo a golpes secos, no coco da cabeça, que
a vida é de mentira, que falhou, então fui procurar dona matilde, seu moço, de aqui por
diante o caminho é esse, queria ouvir, o rumo da vida é noutra direção, seu moço, é virar
o corpo e apertar o passo, o resto se ajeita, voltam os amigos, a mulher requenta à noite
seu prato de comida, depois de uma sinuca no bar, às sextas-feiras, com os amigos do
serviço, o merecimento reconhecido de ser de novo o homem da casa, obrigado, dona
matilde, a vida às vezes se escancara tanto que você volta o rosto pro outro lado, e tudo
se perde na neblina, a cara na parede do dia a dia, sem saída, por isso também se engana
quem dá murro em cabo de faca, disfarce do pior em tão ruim quanto, porque sem o
aguilhão da dor, sem o sangue do acume na lâmina, vida largada por fazer, dona
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matilde, a senhora é mesmo batuta, é pra lá, então?, a senhora sabe que volto depois,
com o merecido e muito mais, dado de gosto, até um relógio de metal, de marca, pro
filho muito coitado, ia por esse engano da vontade como quem arrisca a fé no jogo do
bicho, a esperança de uma nota de 50 reais perdida no chão, o recado para comparecer à
firma tal, tal hora, levando os documentos, com beijo e sorriso da esposa, aquela para
quem não tive a coragem de dar a merecida minha pedra de topázio dela, o costume em
suspenso, a única herança restada, e, enfim, pois quem quer não deve querer pelas
metades, ela de novo minha mulher, todos esses bons engodos que construímos no
sonho da vigília, mas então a vida com seu ei, oi, moço, me dá um relógio?, e a sala cai
inteira em você, e você pensa, meu deus, o que estou fazendo aqui?, é brincadeira,
nenhuma porção graúda de mulher, não uso aliança, empenhada e perdida, a marca
antiga já apagada pelo sol das andanças sem chegada, ela falou o que eu talvez gostasse
de ouvir?, alguma moça arranjada na vida me fizesse a pouca cortesia, que fosse, eu
mandaria a minha mulher praquele lugar, como mando um sujeito ordinário que pensa
que é mais que eu porque sabe abaixar a cabeça pro doutor fulaninho, acho que um
olhar, um convite de outra moça, qualquer uma, de uma velha que precisasse desejosa
dos serviços de homem, até, eu bateria a porta de casa, sem bilhete, sem levar camisa
remendada, sem levar ovo de madeira pra costurar as meias dessa maldita procura, que
não acaba, ah, dona matilde, até posso crer que fique bem de vida, que possa um dia me
sentar sossegado num fim de tarde, eu acreditaria em tudo isso, em carro, em emprego,
em carteira no bolso, mas não existe, dona matilde, nenhuma moça apaixonada,
nenhuma mulher, nem a minha, nenhum amor de gozo pra cansaço feliz, não, dona
matilde, a cabeça girando, as respostas não dadas engolidas com a decepção,
atravessadas na garganta, até logo, volto amanhã, então, no mesmo horário, acerto tudo
depois, as poucas palavras, e ela riu e sorriu, concordada, não adivinhava, não via, não
sabia que era mentira, que eu mentia, moço, me dá um relógio?, a mão suada segurando
a minha, amanhã mesmo eu volto e você vai ganhar um relógio novo, meu amigo, com
ponteiros que brilham no escuro, disse, pulseira de corvim, ele não falou nada, não
moveu um músculo da cara feia, ele também não acreditou nem um pouco, sabia que
tudo era mentira, como tudo, tudo
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a lição
time, sem estádio, ficava feito besta lambendo os dedos na geral de minha pobreza,
assistência banguela, rindo da alegria dos outros com os amigos desvalidos que também
não tinham as credenciais da infância, por assim dizer, inclusive, o gosto do chico-
capeta era correr e pegar a bolinha que algum daqueles moleques atirava longe, errando
o gol com um leivinha, com um ademir da guia, precisava ver que beleza, eu não,
gandula de jogo de botão?, era demais, concorda?, hoje o chico-capeta continua aí,
ferrado, biscateando a pouca coisa dos afazeres menores, ou excursionando pelo centro
da cidade mendigando esmolas, é isso, quando um moleque consegue limpar o próprio
nariz sozinho, quando tira as melecas do salão sem ajuda adulta, já é possível perceber
nele o homem embutido em si, pois o chico-capeta era assim, desses que enfiam o
indicador no buraco fundo das narinas e ainda fazem pinça com a unha, pra melhor
fisgar a caca, e, depois, felizes com a manobra, enfiam a meleca na boca, chupando os
dedos, então deu no que poderia dar, um chico-capeta, mas não era só isso, não, um
moleque tinha uma bicicleta com pneus de câmara, o dimas, ele não gostava de mim, o
safado, nem uma voltinha, pedi uma vez só, ele riu, disse que não era bicicleta de
rodinha, não, que eu fosse peidar n’água pra fazer borbulha, mas não tem nada, não,
olhe, hoje eu bem, ele na merda, merda de mandar a pessoa errada peidar onde quer
que fosse, peidar na cara dele, isso sim, tudo dado, tudo perdido, por isso obrigo você a
trabalhar, pra dar valor, não vê?, é aí que um pai enfia no filho, nem que seja na marra,
o homem que a criança deve encarnar na vida adulta, bom, eu pedia pra minha mãe
esses brinquedos todos, mas ela só com esse negócio de bola de meia costurada, eu
chutando feito besta os retalhos de nossas roupas desmanchadas, arrancando o tampo
dos dedos com aquele troço vindo de nossa casa, de dentro das gavetas da cômoda, era
como chutar minha avó, entende?, ora, ora, o mundo não é desse jeito, o melhor das
coisas vem de fora, das europas, dos states, das chinas e cochinchinas, fabricadas sabe-
se lá como, não é?, e, mesmo assim, e até por isso, era obrigado a chamar apenas os
molequinhos menores pra jogar, coisa sem graça, então metia o pé neles, de raiva, pra
me divertir um pouco, mas nem isso, em pouco tempo era uma luta achar adversário
disposto a tomar pontapés, o que resolvia distribuindo uns chutes antes do jogo, pra
mostrar a eles que era melhor apanhar jogando, pelo menos, claro que a escolha desses
meninos era criteriosa, nenhum com irmão maior pra tirar satisfação, depois, bom, aí
uma liçãozinha menor que acho que você já sabe, brigar, sempre, só com a certeza de
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bater, isso vale pra tudo, até no amor, mulher não gosta de homem bobão e babão, não,
põe isso na cabeça desde agora, pra não sofrer escorrido à toa depois, cuspindo sangue,
assoando o nariz nas costas da mão, secando os olhos com a gola da camisa, certo?, de
vez em quando minha mãe aparecia com uma bola de plástico, no fim do ano, quando a
prefeitura distribuía uma brinquedada vagabunda, com pirulitos e balas, tudo porcaria,
chutada com força, a bola variava sem direção, estourava no mesmo dia e virava um
gorro legal, pelo menos, um dia chorei mais, vomitei de vontade, queria porque queria
uma bicicleta, no outro dia ela apareceu com um carrinho de rolimã, peguei e joguei
pela janela, apanhei bastante, mandei minha mãe praquele lugar, ela me arrebentou a
boca, fui dormir sem bicicleta, sem carrinho de rolimã, o gosto de sangue na saliva, um
dente meio mole, pra eu aprender, e olha, eu aprendi, se não for do jeito que a gente
quer, melhor deitar tudo janela a fora, pra não se acostumar com a esmola da vida,
saber dizer não, não quero, e virar as costas pro agasalho remendado, mesmo se o frio
estiver de rachar, é assim que se vence na vida, entendeu?, nunca mais fiz gorro de bola
vagabunda, hoje sei que sua avó, sozinha, já fazia demais, coitada, bom, eu ali na cama,
chorando e gemendo mais alto pra ela ouvir, bom, não adiantaria nada, mas da próxima
vez, quem sabe, a mão pesasse menos, lembrando da amolação do choro esticado, chora
bem quem chora pra depois, e não pro que já se perdeu, percebe?, então, ali chorando,
assoei o ranho da raiva nas mãos, fiquei brincando peguento com o muco entre os
dedos, foi secando, fiz uma bolinha, deslizando redondo a obra na pele dos dedos,
tateando a tristeza, me deu uma coisa boa, sabia?, tanto que guardei a bolinha debaixo
da cama, no estrado, dormi bem, como nunca, estava calor, os pés pra fora, balançando,
refrescavam o sono, os sonhos, penso que senti que começava a colocar as coisas no
lugar certo pela primeira vez na vida, sensação que não mais me abandonou, à custa,
claro, da perseverança dos pequenos atos, entende?, o que se configura como o controle
de um sistema em seu todo, a partir do que seria, pros desavisados, apenas perda de
tempo, artesanato de inutilidades, você já vai entender, calma, na noite seguinte peguei
a bichinha escondida, aumentei seu volume com mais meleca, guardei, foi indo, chegava
a tirar sangue do nariz, mas toda noite ela ia aumentando, ganhando corpo, ninguém
mais me viu com o dedo no nariz, hoje também entendo o por baixo dos panos da
etiqueta, conjunto de comportamentos regrados pelos cidadãos educados que escapa
totalmente ao dia a dia dos pobres, não em sua aparência, trejeitos facilmente imitáveis,
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o que não significa nada, mas em sua substância, naquilo que as boas maneiras têm de
direção, de espírito, percebe?, esqueci bicicleta, bola, só eu, decerto, com um segredo
inventado que ia rendendo segundo minha exclusiva vontade, de acordo com meu
comportamento, toda noite tinha que umedecer meu brinquedo, minha construção, que
pegou de esfarelar, jogando fora o esforço de dois, de três dias, o que se configurava
também como um passo seguinte da lição, no começo punha guspe, depois descobri a
cera do ouvido e vi que podia aumentar ainda mais rápido meu negócio, de dia ficava
pensando nele em casa, na escola, onde estivesse, nada, nenhuma ação que desviasse de
alguma forma minha intenção de melhorar e progredir, jogava bola?, lá estava minha
bolinha, o prato de arroz?, amassava a comida com o garfo e via promessas de um futuro
melhor, crescente, minha vida era minha bolinha, na fresta do estrado da cama, que tive
de aumentar com um canivetinho, que o investimento já ia gordo, meu filho, a vida foi
ficando mais feliz, ganhei coragem de meter a mão na cara do dimas, tudo se ajeitando,
dando certo, pegando liga, entende?, às vezes o medo de ser descoberto, medo de que
sua avó jogasse fora aqueles meses todos, os dedos tão acostumados, antes de dormir,
amaciando a bolota sempre maior, amassando de novo um naco despegado, ressequido,
então passava as unhas na cabeça, tirando as casquinhas que ia juntando, raspava atrás
das orelhas, o sebo dos vãos, até do saco, a unha do dedão do pé seria uma fábrica
formidável, não fosse o cheiro, o que me ensinou a desdizer o falso ditado de que todos
os caminhos levariam a roma, rematada imbecilidade aqui no brasil, concorda?,
acordava mais cedo pra aproveitar com calma a remela dos olhos, será que eu era o
único no mundo?, não desperdiçava nada, nem um cravo do nariz, a caspa, uma casca
mole de ferida, tudo de mim nessa empresa, pra mim, em meu benefício, tudo colocado
em ordem em seu lugar, me ensinaram a bater punheta naquela época, mas infelizmente
ainda não tinha porra, que os meninos maiores diziam ser uma cola, fazer o quê?, era
esperar os momentos certos, que muitas vezes independem de nossa vontade, entende?,
nem adianta fazer essa cara, sei que você já toca sua punhetinha, por isso falo sem
pudor, de homem para o homem que você tem aí em você, bom, como ia dizendo,
contentava-me com um líquido pegajoso que aparecia em muito pequena quantidade,
na primeira semana cheguei a esfolar o pau, acredita?, você se lembra, também, de que
a questão da liga era das mais problemáticas, certo?, bem, é preciso planejar os passos,
mas não se faz caminhos por antecipação, abrir uma picada pra ser percorrida no ano
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que vem é desperdiçar suor, o mato fecha de novo, com mais força, isso na melhor das
hipóteses, quando você não trabalha desavisadamente pra um desconhecido qualquer
que, sem saber a direção, topa sem querer com sua trilha e desembesta por ela, largando
você longe, percebe?, bom, minha mãe trabalhava muito, você sabe, quando limpava o
quarto, eu ficava vigiando, o coração nas mãos, o que era inevitável, com o tempo, no
entanto, fui relaxando, senhor de mim, percebi que não tinha por que ter medo, ela só
chacoalhava o lençol e passava uma vassoura no chão, cansada demais pra detalhes de
quem tem tempo pras minúcias, ela nunca teve, só depois que progredi, veja que hoje o
gosto dela é não fazer absolutamente merda nenhuma, no que está muito certa, não é?,
enfim, a troca do lençol era mais perigosa, claro, mas a bolota não ficava mais na beira
do estrado, como no começo, fui obrigado a fabricar uma nova loca, mais protegida,
mais pro meio das tábuas, é preciso ir sempre além, aperfeiçoando o que a natureza e o
trabalho reservaram pro sujeito que faz mira além, como eu, como você, bom, agora que
está ganhando de mão beijada a direção dos alvos, olha lá, hein, não vai comer seu pai
pela perna, hein, quando virar o cano pro lado de seu pai, tira o dedo do gatilho, sempre,
entendeu?, bom, um dia, num sábado à tarde, cheguei da rua e não vi minha caminha,
minha mãe foi e trocou por outra maior, note que ela fez isso por amor, pensando no
filho encolhido nas noites frias, mãe, por quê?, gostava tanto dela, mãe, no calor, era o
que eu tinha de mais gostoso nessa casa, mãe, por quê?, você devia ter perguntado se eu
queria, mãe, ah, mãe, bem, foi isso, chorei bastante escondido, bobagem, era no fundo
minha formatura, meu filho, hoje eu sei, porque naquele momento eu tinha aprendido
tudo, de a a z
com espírito
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contarem pros outros, é, isso mesmo, quem não ostenta é como se não tivesse, e esse
negócio, vou ser sincero com você, vale inclusive pra quem não tem, mas quer ter, eu?,
posudo?, até na frente do espelho, rapaz, vai dizer que você também não treina um ar,
um sorriso superior, uma gargalhada escrachada pra mostrar que às vezes, dependendo
da rodinha em que esteja, você não está nem aí com ninguém e poderia exigir com toda
a naturalidade do mundo que a cambada lambesse seus sapatos, o que muitos fariam,
diga-se en passant, com enorme gosto, espalhando inclusive, a passos largos, a notícia
de que sua sola é de couro legítimo, sapato italiano, cromo alemão, o que fosse, fala que
não, ainda mais você, fresco pra caralho com essa coisa de moda, grife, perfume, como
assim?, alta roda?, você vem me falar em vicissitudes de se frequentar a alta roda?, já
notou que até no palavreado você quer aparecer mais que os outros?, essa é boa, você
finge que não está me entendendo, ora, ora, ora, eu manjo você, daqueles ricos que
perdem a hora mas fazem de volta todo o caminho pra ver se encontram um níquel que
caiu das algibeiras, al, gi, bei, ras, gostou do meu troco em nota de cem?, você é foda,
cara, sabe de tudo melhor do que eu, sabe tudo tim-tim por tim-tim, mas não perde a
chance de escutar de novo, só pra ficar no lucro, porra, alta roda?, tudo bem, um termo
às vezes fica démodé de caso pensado, pro povão não atinar com o clássico dele que,
desse modo, integra verdadeiramente apenas o patrimônio refinado de quem pode falar
grosso, é ou não é?, fazia tempo que não ouvia, alta roda, alta roda, bom, se tem quem a
segure lá em cima, essa tal de alta roda, girando sobre a cabeça de muita gente, são eles
todos, querendo ou não, eles, os despossuídos, cacete, então exatamente por isso, sei
disso muito bem, não se pode tirar o mérito daqueles que se equilibram com elegância
nas alturas, claro, tampouco dos pés-rapados, com todos os olhos gordos voltados
miseravelmente pra cima, entorcicolados de inveja, porque todo mundo quer é subir na
vida, e, nessa tentativa generalizada, bíblica, atávica, onde a porrada come solta, mesmo
sem querer os fracassados contribuem, com a massa falida de seus corpos, no mínimo,
para a manutenção, lá nos cumes, dessa alta roda sobre a qual alguns poucos fingem que
brincam de roda, dando-se as mãos desconfiados uns dos outros, temendo o empurrão
de uma concorrência disfarçada que os atirasse na vala comum daqueles tantos que os
alicerçam, é, meu amigo, é esta a alta roda, lugar onde vamos solando desafinados
nossas vidas, cada um por si, sapateado pesado no coco dessa cambada desvalida, eles
que se fodam, é, sei que você está entendendo tudo, tudinho, não adianta fazer cara feia,
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não, o trabalho social de que você conta tanto papo não passa de travesseiro ortopédico
para as noites barulhentas e insones, quando aquele nosso rodopio dançante provoca
uma enxaquecazinha, uma tontura besta, labirintite de alta roda, ui, ui, ui, vertigem
autocomplacente de ter dinheiro saindo pelo ladrão, ai, ai, ai, o ritmo do mundo sempre
foi esse, quem discorda fica fora do baile, passando vontade, o nome disso é antigo, o
nome disso é poder, não seja hipócrita, então você, eu e os outros mais que choram
menos, ou nem choram, porque podem mais e demais, é que estamos no alto dessa alta
roda, caramba, porra, você ficou queimado à toa, não é pra mim que você tem que se
justificar, aliás, não tem que se justificar com ninguém, nem com você mesmo, esta é a
questão, a nossa questão, pros outros lá de baixo isso é resposta, e ponto-final, entendeu
a diferença?, para a maioria, portanto, a pose é o rosto invertido do desejo, para outros é
a própria face no espelho do mundo, presta atenção nisso, a pose, meu caro, é sempre o
rosto de uma verdade deslavada, e, em nosso caso, é a cara de quem está cagando e
andando, percebe?, melhor dizendo, dançando e cagando lá pra baixo, quem recebe
merda na cabeça que levante as mãos pro céu, isso sim, tanto é que muitos que
chegaram lá, lá que é aqui, em nosso caso, faço questão de repetir, dão num certo ponto
de ostentar ao contrário, às avessas, ocasião em que o sujeito obrigatoriamente tem que
estar nadando de braçada, de vento em popa, fornido, sem ter que fazer biquinho e
soprar as velas, coisa que muitas vezes é conveniente quando a corda bambeia, na
calmaria brava dos negócios, e o sujeito se desequilibra lá em cima, aproveitando pela
última vez a imagem giratória de seu clichê, de sua alta roda, como?, porra, você já viu
isso, o sujeito não tem mais onde enfiar o dinheiro e fica chorando as pitangas
amontoadas, e aí mesmo é que a fama de podre de rico se instala de vez, ele pode se dar
ao luxo de andar em carro popular, por exemplo, sem que sua pose sofra um arranhão
na lataria, pelo contrário, o que chega a ser perverso e engraçado, não acha?, mas não
era isso que eu estava contando, o que era, mesmo?, ah, bom, dizia que costumo levar
uns empregados da firma lá em casa, no réveillon, lógico que eles ficam meio
deslocados, deslocados por inteiro e um pouco mais, mas dou a maior atenção,
igualzinha à que destino aos outros convidados, é, é isso mesmo, a mesma pose refletida
de modos diferentes pra cada lado, boa, boa, essa foi boa, eu falo, você é um filho da
puta que entende disso mais do que qualquer um e fica aí fingindo sonsice, bom, mas o
melhor de tudo vem agora, ouve só, não os deixo ir embora de jeito nenhum, digo que
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ficaria muito ofendido, que faço questão de amanhecer o dia com eles, e coisa e tal, eles
ficam, é lógico, pra puxar o saco, claro, então, depois da festa, de manhã, saio de carro
com eles, invento qualquer troço, em casa todo mundo já sabe, minha família também
se diverte depois, quando conto os detalhes do episódio, chego a encenar, mudo a voz,
meu filho até filma, todo mundo caga de rir, bom, você está curioso, né?, os empregados
me acompanham, paro numa rua de um bairro qualquer, com as características
suburbanas ideais, vamos dar uma voltinha a pé?, dar uma espairecida, comi demais, e
vocês?, aí, meu caro, eu é que procuro aqueles moleques na rua, primeiro dia do ano, é
muito engraçado, ando na frente como quem não quer nada, eles vêm correndo, moço,
moço, me dá boas festas?, digo, claro, chego perto, pego a mãozinha deles e falo, boas
festas, deus te abençoe, precisa ver a carinha que fazem, uns não sabem o que dizer,
outros escondem a mão, enfezados, fugindo ao cumprimento seco, essas eu não quero,
falam na lata que é dinheiro, mesmo, eu, então, digo que ele pediu boas festas e estas eu
já dei, de coração, que mané dinheiro, o quê?, pra ganhar dinheiro tem que trabalhar,
suar no batente, pegar no pesado, do jeito que fiz desde criança, quem pede esmola é
mendigo, vagabundo, uns xingam, eu dou risada na cara deles, eu ia te dar dez reais,
agora fodeu, moleque, some da minha frente, vai, trombadinha, senão te meto a mão na
cara, vai chispando, vai, vai pedir pra tua mãe, agora, e continuo a caminhada, o
moleque com cara de choro, ou xingando desaforado, meus empregados ficam
escandalizados, não sabem onde enfiar a cara, com o rabo no meio das pernas,
engraçado demais, fico até meio perdido, sem saber se observo o moleque ou os meus
convidados se entreolhando mudos, mas tem os saidinhos que ameaçam dar alguma
coisa, é o que é mais gostoso de tudo, então fico mais puto ainda, brusco, proíbo em
cima da pinta, grosso, até hoje nenhum me peitou, então enfiam o dinheiro miúdo de
novo nas calças, os trocadinhos, é bonito de ver, os sujeitinhos transformados em
moedinha se enfiando no bolso das próprias calças, obedecidos na sem-graceza de
correr o risco inútil de ficarem plantados na rua da amargura do desemprego, esta sim a
rua em que se dão conta de repente de estarem, rua de endereço em qualquer que seja o
bairro desgraçado onde moram, transmudados para lá pelo medo da voz do patrão, vejo
isso muito bem na cara deles, nos olhos perdidos, na gagueira dos gestos, na vergonha
dos outros amigos infelizes ali perto, vivenciando aquilo, cara, você não imagina como
me divirto com isso, sei que acham maldade, falam mal de mim, depois, por trás, e é
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exatamente isso que quero, falam por trás, porque na hora não têm coragem de abrir a
boca
(FERREIRA, Antonio Geraldo Figueiredo. as visitas que hoje estamos. São Paulo:
Iluminuras, 2012, pp. 27-35; 191-197; 281-286.)
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SINAL de MENOS
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