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Obra:
ARIÈS, Philippe
Um historiador diletante
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994
No prefácio, M. Winock faz uma ligeira apresentação do autor através de uma abordagem
equivocada atribuída ao mesmo; a classificação de “comerciante de bananas” e o título
provocativo da obra induzem o leitor a esboçar, precipitada e equívocadamente, um retrato
oblíquo da trajetória do autor que, pelos padrões da práxis historigráfica atual, não chega a ser
tão “oblíquo” assim.
A religião constituiu também, segundo P. Ariès, um elemento tanto de aglutinação social quanto
de conflito, no interior da rede familiar.
O advento da segmentação política na burguesia católica francesa, em grupos que inclinavam-
se, ou para uma orientação monarquista, ou para uma orientação mais moderada, refletiam as
idas e vindas do relacionamento da nação e da sociedade francesas com a Igreja Romana ao
longo do século XIX e começo do século XX; e a influência da mesma no comportamento
político interno da França (lembrando que, as intervenções culturais e religiosas do Governo
Revolucionário no século XVIII, abruptas intervenções na superestrutura, serviram mais para
polarizar ideológicamente a sociedade francesa, do que romper com a ingerência da Santa Sé
no Estado Francês). Na familia Ariès, esta segmentação traduziu-se no alinhamento do núcleo
familiar ao qual pertencia o autor às fileiras do partido reacionário Action Française (fundado
pelo intelectual conservador C. Maurras), ao passo que outros elementos da família alinhavam-
se a posições moderadas (resultantes da condenação, pelo Vaticano, do radicalismo da A F).
Através da descrição da rede de relacionamentos extra-familiares mantida por seus pais e
outros familiares (em particular, no trechos “Deus e rei”, “O comércio dos anciãos” e “A ciência
e a tradição”), P. Ariès expõe ao leitor os elementos contribuintes de sua formação pré-
universitária ocorrida no corte temporal do período entre-guerras; demonstrando ser o cotidiano
desta rede de relacionamentos e suas influências muito menos conservadoras e muito mais
ideológicamente abertas do que um observador externo (dotado de um ponto-de-vista filtrado
por clichês ideológicos) normalmente poderia considerar.
Como P. Ariès observa, a respeito de seu pai, engenheiro - eletricista, “Pertencia à geração
nascida na época dos fiacres e lampiões à óleo, e que viu, antes de morrer, homens andarem
na Lua. Ele e seus contemporâneos foram os criadores da nossa tecnologia – e não nós. (…).
Podemos rir dos ex-combatentes de 14 e de suas boinas; no entanto, são eles os autores do
mundo moderno, apesar de suas idéias arcaicas”. Através destas recordações, P. Ariès resume
as influências e o ambiente onde se processou a parte inicial de sua formação. “Nelas
reencontro o essencial de meu patrimônio, o amor pelo passado, o gosto pelo presente e pela
vida”.
A forte presença da Action Française na vida da familia Ariès resultou num caso que o autor
destaca com certo interesse para denotar o fanatismo que caracterizava as opções políticas
assumidas por indivíduos e grupos sociais na primeira metade do século XX; vivido por seu tio-
avô Jean Ariès, que posicionou-se contra a agremiação política defendida pela família e
afastou-se da mesma.
A morte Jean Ariès, na batalha de Verdun, e a subseqüente destruição de sua correspondência
pessoal mantida com o pai e a irmã, serviram para firmar no autor a convicção de que “é no
interior de uma mesma comunidade, espiritual ou carnal, que o ódio se torna mais violento”; ou
seja, uma guerra civil é potencialmente mais letal que um conflito com estrangeiros, o que pode
muito bem explicar o clima politico e as estruturas mentais que assolariam a França, nos anos
40 e depois.
O período da 2ª Guerra Mundial foi, para muitos povos europeus, mais uma guerra civil do que
outra coisa, com uma parte da população lamentando a violação de sua pátria, e a outra parte
considerando a presença alemã como uma oportunidade de manutenção da ordem pública,
abalada pelas leviandades da política interna.
A França não foi exceção à esta regra, e após a derrota do exército francês, em maio de 1940,
o país encontrava-se metade sob controle direto alemão, e metade sob controle do Governo do
Marechal Petáin, até hoje uma figura controversa no debate histórico e político francês.
Neste período, sob o impacto da rápida vitória alemã (P. Ariès, como muitos outros franceses,
na ocasião, acreditavam que o exército francês conseguiria deter o exército alemão, como em
1914. Não imaginavam que o exército francês seria esmagado em apenas 3 semanas…), P.
Ariès adquire uma percepção da superficialidade que caracterizava o debate político no qual
estava envolvido desde o ambiente familiar, e que continuara conduzindo durante os primórdios
de sua vida acadêmica.
Neste período, P. Ariès percebe, in loco, o impacto sócio-cultural e psicológico que uma guerra
provoca na população de um país, em particular uma guerra mundial, onde estavam sendo
implementados paradigmas totalmente inéditos (especialmente, no plano militar), que
anarquizavam com tudo que se acreditava até então (da mesma forma como ocorrera em 1870
e em 1914 - 18, de forma que se pode dizer que nem mesmo no espaço de uma geração se
aprende alguma coisa com a História…).
Após sua desmobilização do exército, P. Ariès retoma sua preparação para a Cátedra e toma
contato com as propostas do grupo dos Annales (neste ponto da narrativa, o autor insinua um
comentário mordaz, mas não destituído de razão, a respeito do atual desenvolvimento da
psicologia e da sociologia). Uma vez reprovado na prova para Cátedra, P. Ariès passa a
dedicar-se ao magistério num estabelecimento incomum (típico de tempos incomuns…).
"Certamente, Vichy conciliava, então, um lugar para a opção do regionalismo em sua ideologia,
estimulando, conseqüentemente, as idéias tradicionais e "reacionárias" de enraizamento e
permanência. (…) Com efeito, as particularidades regionais interessavam-me há muito tempo.
Quando eu ia, no verão, à casa de minhas tias, no campo, podia constatar a persistência da
vida local e de suas particularidades. (…) Redescobríamos velhos gêneros de vida que
acreditávamos em vias de extinção, e seu ressurgimento despertava a curiosidade e inspirava
a reflexão".
"Poderia ter-me interessado em mostrar a permanência dessa cultura por meio da
industrialização do século XIX. (…) Desse modo, acreditei na possibilidade de um compromisso
entre os conhecimentos do passado e as inevitáveis transformações técnicas do futuro. (…)
Não podia estar mais enganado: hoje, vemos que essa nova tecnologia destruiu
definitivamente o que imaginávamos que ela recuperaria". (…).
"Foi nesse estado de espírito que publiquei, em 1943, Les Traditions sociales dans les pays de
France. (…) Foi meu primeiro livro, a primeira vez que expressava livremente um pensamento
pessoal (…)".
Este trabalho de estréia, produzido fora do ambiente da Academia, proporcionou a P. Ariès
uma notoriedade embrionária que lhe permitiu ampliar sua rede de relacionamentos, através
dos contatos com D. Halévy e G. Marcel.
P. Ariès procurava, desta forma, ampliar o campo de atuação de sua pesquisa, focada na
cultura regional. "Então, conheci a demografia, e foi um desastre. (…) Na Escola dos Quadros,
a maioria dos jovens alunos, crianças dos suburbios operários de Paris, nada sabia a respeito
de seus avós, nem de suas origens. Seu mundo não tinha raízes". (nota: Pela ótica de um
licenciando brasileiro, trata-se de um problema MUITO pertinente.)
P. Ariès vislumbrava, através da análise deste ambiente, do cotidiano das classes populares da
periferia da grande metrópole parisiense, todo um universo sócio-cultural que lhe escapava;
que era uma peça do quebra-cabeças da história das mentalidades.
"Com essa intenção, tentei interpretar as estatísticas. (…) Consultei, então, a Estatística Geral
da França (…). Todas as operações eram feitas de cabeça ou com a ajuda de uma simples
régua de cálculo. Isso tomava tempo, e o risco de erro era grande. No entanto, nunca me
pareceu aborrecido, pois, por trás desses números ingratos, perfilavam segredos de alcova, as
ambições das famílias, o caminho das migrações. (…) Herdei dos estudos de geografia, das
férias de minha infância e de meu pequeno livro anterior, o gosto por situar os fatos sociais em
um local em que pudessemos observá-los e descrevê-los".
Desta forma, em meio à turbulência decorrente do recrudescimento do esforço de guerra
alemão e do avanço aliado sobre o território francês, além do doloroso impacto da morte de
seu irmão (após a libertação de Paris pelos aliados, em 1944, a atividade da Resistência
Francesa passa do plano subversivo para a atividade militar aberta; nesta conjuntura, o alferes
Jacques Ariès é morto em combate.), P. Ariès completa e publica, em 1947, sua Histoire des
populations françaises. No torvelinho das idas e vindas da política no final da 2ª Guerra
Mundial, o autor reflete a respeito da ação do Estado e das convicções e militâncias políticas
que interferem no destino do indivíduo. "Sim, existe uma relação entre minha aversão
crescente pela ação política e minha adesão definitiva a uma história que reduza o lugar do
Estado e das ideologias, em benefício de uma cultura mais etnográfica".
A morte de seu irmão Jacques, seu impacto emocional direto, inspiraria o desenvolvimento da
pesquisa que resultaria na publicação de L'Homme devant la mort; resultado das indagações a
respeito das atitudes das sociedades em relação ao fenômeno da morte.
Como já fora dito anteriormente, após a formação na Sorbonne, P. Ariès se vê obrigado, por
força das circunstâncias, a efetuar uma mudança de rumo, no curso de sua vida profissional.
"Meu trabalho consistia em armazenar e transmitir dados bibliográficos (…). Isso se resumiu a
administrar uma biblioteca e a preparar arquivos de referências segundo costumes que
datavam, no mínimo, do século XVIII!(…)".
A necessidade de se produzir referências informativas de acesso rápido e simplificado
impulsionam as decisões administrativas de P. Ariès no sentido de modernizar os métodos
empregados em seu trabalho; "(…) a miniaturização do documento, (…) artifícios de
codificação, de indicações, de montagem, de reprodução… enfim, o emprego de computadores
e da automatização".
Participando ativamente desta revolução metodológica, que afetava principalmente os campos
da biblioteconomia e da arquivística, P. Ariès se posiciona agora efetivamente como um
pioneiro, posição esta que o conduz ao contato com a comunidade acadêmica norte-
americana, onde esta mudança metodológica se impunha de maneira muito mais clara e
efetiva que na França.
Nos Estados Unidos, aparentemente, l'Enfant et la Vie familiale sous l'Ancien Régime produzira
pouco interesse entre os historiadores, sendo lido mais atentamente pelos sociólogos.
Apesar das dificuldades burocráticas enfrentadas durante a fase de implantação da informática
na instituição onde trabalhava, P. Ariès assinala enfáticamente a importância desta fase em
seu desenvolvimento profissional, além de destacar a importância de ser testemunha, em
primeira mão, do impacto sociológico do advento massivo da tecnologia da informação na
sociedade atual.
A respeito do período de P. Ariès como leitor de originais para a editora Plon, podemos
destacar que "Um belo dia, recebi um espesso manuscrito: uma tese de filosofia sobre as
relações entre a loucura e a demência na época clássica, de um autor que eu desconhecia".
Tratava-se do primeiro trabalho de Michel Foucault, Histoire de la Folie.
As impressões de P. Ariès a respeito dos "métodos" de publicação adotados pelos dirigentes
da editora Plon, induzem o leitor a não se surpreender com o fato da editora não mais existir.
A crise argelina gerou uma crise no seio da sociedade francesa; criando cisões que se
manifestariam de forma violenta (novamente, tal como uma guerra civil), onde P. Ariès
testemunharia a implosão de parte da sua "família espiritual". Nesta conjuntura, P. Ariès iria
verificar, in loco, a agressividade do Estado Francês e do jornal Nation Française (derivado da
militância da Action Française), do qual era colaborador. Desta experiência, o autor conclui que
"(…) o ódio resulta não de uma forte oposição, mas (…) de uma diferença muito pequena não
tolerada".
Conclusão:
Baseado nestes e em outros fatos e argumentos, o co-autor, M. Winock, classifica P. Ariès
como um "anarquista de direita"; um rótulo bizarro, se considerarmos os termos em seu estrito
senso; mas, talvez não haja razão para estranheza, se levarmos em consideração o fato de
que, devido ao seu distanciamento da Academia, o autor experimentou as peculiaridades da
pesquisa sem a necessidade de se submeter a cânones e "liturgias" típicas do processo
acadêmico, além de ser pioneiro na implementação de metodologias que atualmente fazem
parte do arsenal básico do pesquisador acadêmico. Via de regra, espera-se do historiador um
posicionamento político "coerente"; entretanto, as bases desta "coerência" jamais são
esclarecidas. Talvez, as lições mais evidentes que se pode extrair dos depoimentos de P.
Ariès, a respeito do desenvolvimento do ofício de historiador, sejam o respeito à realidade dos
fatos e; finalmente, a independência, base para uma verdadeira coerência.