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Resenha de bibliografia

Obra:
ARIÈS, Philippe
Um historiador diletante
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994

No prefácio, M. Winock faz uma ligeira apresentação do autor através de uma abordagem
equivocada atribuída ao mesmo; a classificação de “comerciante de bananas” e o título
provocativo da obra induzem o leitor a esboçar, precipitada e equívocadamente, um retrato
oblíquo da trajetória do autor que, pelos padrões da práxis historigráfica atual, não chega a ser
tão “oblíquo” assim.

Inicialmente, P. Ariès traça um resumo bem-humorado de sua história familiar, relacionando-a


com os contextos históricos e sociais da história francesa colonial e metropolitana dos últimos
dois séculos. Em primeiro lugar, o autor observa a importância dada por seus antepassados e
parentes mais velhos à condição étnica de sua familia (“creole”, nascidos no Ultramar, mas
brancos; tal como Josephine Beauharnais) e à todo um inventário de usos e costumes
cotidianos resultantes da fusão cultural de elementos europeus e afro-americanos, numa
combinação que de forma alguma pareceria estranha à um observador brasileiro.
O fato de parte da familia Ariès ser oriunda da Martinica e de ter escapado por um fio da
grande tragédia que se abateu sobre esta província, em 1902, abre margem para o autor fazer
um comentário político ligeiramente ácido; em seguida comenta o ocorrido como o fator
determinante para o translado definitivo de sua família para a França.
Os elementos de maior destaque neste inventário sócio - cultural são a religião católica
romana, e a grande rede de relacionamentos formada por uma zelosa consangüinidade, ou
seja, uma parentela tão vasta quanto unida (mesmo quando estendida e dispersa através de
distâncias oceânicas); uma manifestação da sobrevivência do que, grosso modo, poderíamos
considerar como um “ethos” do “Antigo Regime”, numa era marcada pelas considerações
demográficas de Malthus.
Seja lá como for, P. Ariès considera esta vasta rede de relacionamentos como um fator de
socialização de grande importância no processo de desenvolvimento comportamental humano,
e lamenta que a atual tendência ao individualismo e à hipernuclearização familiar possa ter
privado as gerações posteriores de um recurso de apoio ao seu desenvolvimento psicossocial.

A religião constituiu também, segundo P. Ariès, um elemento tanto de aglutinação social quanto
de conflito, no interior da rede familiar.
O advento da segmentação política na burguesia católica francesa, em grupos que inclinavam-
se, ou para uma orientação monarquista, ou para uma orientação mais moderada, refletiam as
idas e vindas do relacionamento da nação e da sociedade francesas com a Igreja Romana ao
longo do século XIX e começo do século XX; e a influência da mesma no comportamento
político interno da França (lembrando que, as intervenções culturais e religiosas do Governo
Revolucionário no século XVIII, abruptas intervenções na superestrutura, serviram mais para
polarizar ideológicamente a sociedade francesa, do que romper com a ingerência da Santa Sé
no Estado Francês). Na familia Ariès, esta segmentação traduziu-se no alinhamento do núcleo
familiar ao qual pertencia o autor às fileiras do partido reacionário Action Française (fundado
pelo intelectual conservador C. Maurras), ao passo que outros elementos da família alinhavam-
se a posições moderadas (resultantes da condenação, pelo Vaticano, do radicalismo da A F).
Através da descrição da rede de relacionamentos extra-familiares mantida por seus pais e
outros familiares (em particular, no trechos “Deus e rei”, “O comércio dos anciãos” e “A ciência
e a tradição”), P. Ariès expõe ao leitor os elementos contribuintes de sua formação pré-
universitária ocorrida no corte temporal do período entre-guerras; demonstrando ser o cotidiano
desta rede de relacionamentos e suas influências muito menos conservadoras e muito mais
ideológicamente abertas do que um observador externo (dotado de um ponto-de-vista filtrado
por clichês ideológicos) normalmente poderia considerar.
Como P. Ariès observa, a respeito de seu pai, engenheiro - eletricista, “Pertencia à geração
nascida na época dos fiacres e lampiões à óleo, e que viu, antes de morrer, homens andarem
na Lua. Ele e seus contemporâneos foram os criadores da nossa tecnologia – e não nós. (…).
Podemos rir dos ex-combatentes de 14 e de suas boinas; no entanto, são eles os autores do
mundo moderno, apesar de suas idéias arcaicas”. Através destas recordações, P. Ariès resume
as influências e o ambiente onde se processou a parte inicial de sua formação. “Nelas
reencontro o essencial de meu patrimônio, o amor pelo passado, o gosto pelo presente e pela
vida”.

A forte presença da Action Française na vida da familia Ariès resultou num caso que o autor
destaca com certo interesse para denotar o fanatismo que caracterizava as opções políticas
assumidas por indivíduos e grupos sociais na primeira metade do século XX; vivido por seu tio-
avô Jean Ariès, que posicionou-se contra a agremiação política defendida pela família e
afastou-se da mesma.
A morte Jean Ariès, na batalha de Verdun, e a subseqüente destruição de sua correspondência
pessoal mantida com o pai e a irmã, serviram para firmar no autor a convicção de que “é no
interior de uma mesma comunidade, espiritual ou carnal, que o ódio se torna mais violento”; ou
seja, uma guerra civil é potencialmente mais letal que um conflito com estrangeiros, o que pode
muito bem explicar o clima politico e as estruturas mentais que assolariam a França, nos anos
40 e depois.

Após um ano de estudos preparatórios em Grenoble, P. Ariès ingressa na Sorbonne; neste


período anterior à 2ª Guerra Mundial, o ambiente acadêmico encontra-se dominado pela
chamada “Escola Metódica” e por uma visão “positivista” da história. Mesmo no interior da AF,
C. Maurras pregava o culto à uma erudição racionalista.
Aproximadamente, na mesma época em que o grupo da Universidade de Estrasburgo
desenvolvia suas teses (e o autor ainda não havia tido contato com elas), o jovem P. Ariès
começava a considerar a importância das “questões de superestrutura” no processo de
desenvolvimento da produção historiográfica. “Se eu não discernia a oposição entre o lendário
e a história “capetiana”, senti claramente, desde minha entrada na Sorbonne, a oposição entre
a história “capetiana” e a de meus professores universitários; um choque muito forte”.
Entretanto, por força justamente de seu patrimônio intelectual católico e monarquista, baseado
em práticas cotidianas e em todo um acervo de tradições, P. Ariès inclinava-se para busca do
método historiográfico que, atualmente, poderíamos chamar de “História das mentalidades”.
“(…). Por isso, quando jovem estudante, bem antes de ter lido Marc Bloch, eu estava muito
atento ao conteúdo mágico da realeza, à cerimônia da sagração (…) – sem me dar conta de
que esse elemento primitivo e selvagem era estranho ao positivismo maurrassiano, que o
sacrificava a uma concepção mais racional e moderna do Estado – Nação”.
Apesar do choque, P. Ariès também percebe no ambiente acadêmico a importância do rigor
científico e do “respeito às fontes” preconizado pela “Escola Metódica”, principalmente pelo fato
da mesma dispor de sistemas disciplinares e ferramentas intelectuais muito mais eficientes,
para elucidar as lacunas geradas por uma historiografia “literária”.
“De início, gerava um tédio que era preciso superar, mas esse tédio era como uma prova de
iniciação e se atenuava à medida que o conhecimento se tornava mais denso, e o
encadeamento dos fatos, mais familiar”.
P. Ariès observa que, neste período, temos o lento início do uso da sociologia com ferramenta
de análise historiográfica; para o autor, pessoalmente, tratava-se de um momento de dupla
transição – por um lado, o jovem P. Ariès percebia as falhas da “história capetiana”, no mesmo
momento em que começava a se introduzir na Academia uma revolução de métodos e
abordagens da qual ele próprio, inadvertidamente e num momento posterior, seria um dos
pioneiros.
O autor vivia, no momento exato de sua formação acadêmica, o advento do uso da sociologia,
da estatística e da geografia; entre várias outras ciências, como ferramentas para o historiador.
Neste período, autor assinala a formação do que ele chamaria de "família espiritual", composta
por amizades travadas com colegas das mais variadas áreas das ciências humanas; este
grupo viria a ter uma grande importância ao longo do desenvolvimento posterior de sua obra e
mesmo de seu ethos pessoal.

O período da 2ª Guerra Mundial foi, para muitos povos europeus, mais uma guerra civil do que
outra coisa, com uma parte da população lamentando a violação de sua pátria, e a outra parte
considerando a presença alemã como uma oportunidade de manutenção da ordem pública,
abalada pelas leviandades da política interna.
A França não foi exceção à esta regra, e após a derrota do exército francês, em maio de 1940,
o país encontrava-se metade sob controle direto alemão, e metade sob controle do Governo do
Marechal Petáin, até hoje uma figura controversa no debate histórico e político francês.
Neste período, sob o impacto da rápida vitória alemã (P. Ariès, como muitos outros franceses,
na ocasião, acreditavam que o exército francês conseguiria deter o exército alemão, como em
1914. Não imaginavam que o exército francês seria esmagado em apenas 3 semanas…), P.
Ariès adquire uma percepção da superficialidade que caracterizava o debate político no qual
estava envolvido desde o ambiente familiar, e que continuara conduzindo durante os primórdios
de sua vida acadêmica.
Neste período, P. Ariès percebe, in loco, o impacto sócio-cultural e psicológico que uma guerra
provoca na população de um país, em particular uma guerra mundial, onde estavam sendo
implementados paradigmas totalmente inéditos (especialmente, no plano militar), que
anarquizavam com tudo que se acreditava até então (da mesma forma como ocorrera em 1870
e em 1914 - 18, de forma que se pode dizer que nem mesmo no espaço de uma geração se
aprende alguma coisa com a História…).
Após sua desmobilização do exército, P. Ariès retoma sua preparação para a Cátedra e toma
contato com as propostas do grupo dos Annales (neste ponto da narrativa, o autor insinua um
comentário mordaz, mas não destituído de razão, a respeito do atual desenvolvimento da
psicologia e da sociologia). Uma vez reprovado na prova para Cátedra, P. Ariès passa a
dedicar-se ao magistério num estabelecimento incomum (típico de tempos incomuns…).

O impacto sócio-político da guerra e da ocupação, na política interna francesa, radicalizou


diversos posicionamentos ideológicos e, para o autor, a confrontação com os posicionamentos
de antigos correligionários da AF estabeleceu um marco pessoal, principalmente de
rompimento com a militância política. P. Ariès assinala este fato como seu marco de
independência intelectual.
Neste período, pouco antes do fim da Guerra, P. Ariès ingressa na ocupação que irá garantir-
lhe o sustento pelas próximas décadas, e irá lhe proporcionar o irônico (e totalmente fora de
contexto) rótulo de "comerciante de bananas"; "Entrei, então, para um dos institutos de
pesquisa que foram criados, na época, por uma equipe notável de homens de negócios,
grandes fundadores de plantações no Extremo Oriente. (…) Foi a origem dos institutos
franceses de assistência a países em desenvolvimento. (…) foram reconhecidos e adotados
pela IV República, talvez porque existisse a mesma coisa na União Soviética".
"Devo-lhe muito do historiador que sou. (…) em 1943, minha vida profissional tinha diminuído
sua atividade e não me absorvia muito. Era diretor do serviço de documentação de um instituto
consagrado específicamente às frutas tropicais. (…) Minha atividade se resumia a constituir um
fundo de biblioteca, a criar e conservar arquivos, a preparar publicações".
Ou seja, neste ponto P. Ariès expõe o argumento-chave para compreender sua trajetória como
historiador; ao mesmo tempo que se afastava, por força das circunstâncias, da Academia,
militava numa atividade que lhe proporcionava, ao mesmo tempo, a disciplina necessária para
o exercício da atividade de pesquisa (classificação e organização de dados procedentes de
uma atividade que, direta ou indiretamente, tinha conexões econômicas, políticas e culturais; e
sua subseqüente publicação) e um contato mais intenso com o ambiente extramuros da
Academia (o que poderíamos classificar, grosso modo, como o "Mundo real"), onde as teses do
grupo dos Annales poderiam "ser testadas na prática".

"Certamente, Vichy conciliava, então, um lugar para a opção do regionalismo em sua ideologia,
estimulando, conseqüentemente, as idéias tradicionais e "reacionárias" de enraizamento e
permanência. (…) Com efeito, as particularidades regionais interessavam-me há muito tempo.
Quando eu ia, no verão, à casa de minhas tias, no campo, podia constatar a persistência da
vida local e de suas particularidades. (…) Redescobríamos velhos gêneros de vida que
acreditávamos em vias de extinção, e seu ressurgimento despertava a curiosidade e inspirava
a reflexão".
"Poderia ter-me interessado em mostrar a permanência dessa cultura por meio da
industrialização do século XIX. (…) Desse modo, acreditei na possibilidade de um compromisso
entre os conhecimentos do passado e as inevitáveis transformações técnicas do futuro. (…)
Não podia estar mais enganado: hoje, vemos que essa nova tecnologia destruiu
definitivamente o que imaginávamos que ela recuperaria". (…).
"Foi nesse estado de espírito que publiquei, em 1943, Les Traditions sociales dans les pays de
France. (…) Foi meu primeiro livro, a primeira vez que expressava livremente um pensamento
pessoal (…)".
Este trabalho de estréia, produzido fora do ambiente da Academia, proporcionou a P. Ariès
uma notoriedade embrionária que lhe permitiu ampliar sua rede de relacionamentos, através
dos contatos com D. Halévy e G. Marcel.
P. Ariès procurava, desta forma, ampliar o campo de atuação de sua pesquisa, focada na
cultura regional. "Então, conheci a demografia, e foi um desastre. (…) Na Escola dos Quadros,
a maioria dos jovens alunos, crianças dos suburbios operários de Paris, nada sabia a respeito
de seus avós, nem de suas origens. Seu mundo não tinha raízes". (nota: Pela ótica de um
licenciando brasileiro, trata-se de um problema MUITO pertinente.)
P. Ariès vislumbrava, através da análise deste ambiente, do cotidiano das classes populares da
periferia da grande metrópole parisiense, todo um universo sócio-cultural que lhe escapava;
que era uma peça do quebra-cabeças da história das mentalidades.
"Com essa intenção, tentei interpretar as estatísticas. (…) Consultei, então, a Estatística Geral
da França (…). Todas as operações eram feitas de cabeça ou com a ajuda de uma simples
régua de cálculo. Isso tomava tempo, e o risco de erro era grande. No entanto, nunca me
pareceu aborrecido, pois, por trás desses números ingratos, perfilavam segredos de alcova, as
ambições das famílias, o caminho das migrações. (…) Herdei dos estudos de geografia, das
férias de minha infância e de meu pequeno livro anterior, o gosto por situar os fatos sociais em
um local em que pudessemos observá-los e descrevê-los".
Desta forma, em meio à turbulência decorrente do recrudescimento do esforço de guerra
alemão e do avanço aliado sobre o território francês, além do doloroso impacto da morte de
seu irmão (após a libertação de Paris pelos aliados, em 1944, a atividade da Resistência
Francesa passa do plano subversivo para a atividade militar aberta; nesta conjuntura, o alferes
Jacques Ariès é morto em combate.), P. Ariès completa e publica, em 1947, sua Histoire des
populations françaises. No torvelinho das idas e vindas da política no final da 2ª Guerra
Mundial, o autor reflete a respeito da ação do Estado e das convicções e militâncias políticas
que interferem no destino do indivíduo. "Sim, existe uma relação entre minha aversão
crescente pela ação política e minha adesão definitiva a uma história que reduza o lugar do
Estado e das ideologias, em benefício de uma cultura mais etnográfica".
A morte de seu irmão Jacques, seu impacto emocional direto, inspiraria o desenvolvimento da
pesquisa que resultaria na publicação de L'Homme devant la mort; resultado das indagações a
respeito das atitudes das sociedades em relação ao fenômeno da morte.

No pós-guerra, verificamos a passagem de P. Ariès pelo jornalismo, como colaborador do


Paroles Françaises, um semanário de propriedade de um deputado; a linha editorial, segundo o
autor, consistia em defender as vítimas do "resistencialismo", quando a exasperação
proporcionada pela liberação serviu de pretexto para acertos de contas pessoais. 1945 e o
restante dos anos 40 seriam, de fato, revolucionários em França (e no restante da Europa).
O ponto alto das atividades do Paroles Françaises seria a denúncia do massacre de milhares
de oficiais do exército polonês, perpetrado pelo exército soviético, no bosque de Katyn, em
1939.
Aparentemente, P. Ariès constata que os arrebatamentos ideológicos que caracterizaram as
militâncias políticas no século XX, se baseiam numa filosofia da história que eventualmente
sustentaria e justificaria suas implementações. "O sucesso do marxismo deveu-se, sem dúvida,
por mais de um decênio, à força e à extensão dos fenômenos econômicos, mas me parece ter
sido estimulado, depois da guerra, por um espírito de aventura e de proselitismo quase
indiferente ao seu conteúdo". Entretanto, P. Ariès constata que "Mesmo heróicos, esses
defensores leais de uma moral abandonada não tiveram sorte. Estão sempre esperando sua
reabilitação".
Baseado neste tipo de constatação, que P. Ariès dedica-se à confecção de Temps de l'Histoire;
trata-se de uma reflexão a respeito das forças que mobilizam a História e como tais forças
afetam a sociedade e a percepção do historiador.
P. Ariès observa que, a partir dos anos 40, o binômio "ciência e tecnologia" passa a determinar
cada vez mais a percepção sobre o conceito de "modernidade", afetando de forma cada vez
mais intensa o cotidiano da sociedade humana nos seus mais variados aspectos e tornando-se
um fator, cuja presença o historiador já não tinha mais autorização (epistemológica) para
ignorar.
A presença cada vez mais impactante da tecnologia (não confundir com ciência) no cotidiano
das sociedades produzia efeitos culturais que P. Ariès, não sem razão, avaliava com um olhar
crítico. "Achávamos que era possível enontrar equilíbrio entre as conquistas da técnica mderna
e a lentidão da Natureza e da História. (…) Era mordaz ouvir os supostos reacionários,
tradicionalistas e integristas afrontarem o mundo moderno e, na vida cotidiana, utilizarem, sem
remorsos, suas técnicas, sempre à espreita da última novidade. (…) Desde então, pensei, o
mundo antigo da diversidade não teve outro refúgio senão a História. Ele reviveria no que
chamei de história existencial e que hoje é chamada de história etnográfica ou história das
mentalidades". Desta forma, em Temps de l'Histoire (publicado em 1951), P. Ariès afirma seu
pioneirismo metodológico.
"Os dois livros obtiveram meio sucesso, mas clandestino. No entanto, l'Histoire des populations
recebeu elogios inesperados em um artigo de Latreille no Le Monde! As grandes revistas de
história, ignoraram-no completamente".
Não tão completamente, porém; para elementos de vanguarda na Academia, como H.
Lefebvre, o trabalho de P. Ariès não passava desapercebido.
"Sempre me reprovou a ruptura antropológica estabelecida entre o Ancien Régime e a França
contemporânea. (…) um marxismo de luxo, (…) poderoso na América, censura-me por
superestimar o passado à custa de um presente mais esclarecido e de trair, assim, um
comportamento típicamente reacionário".
A partir dos anos 60, P. Ariès começou tornar-se uma personalidade impossível de ignorar
(muito menos, de se respeitar!) no cenário historiográfico, a despeito de sua falta de vínculos
com a Cátedra. Seus trabalhos começaram a ser citados em artigos e livros, e sua presença
passou a ser solicitada em seminários e conferências. "Não se imaginava, na França, que um
não-universitário pudesse ser convidado para uma universidade (…). Não acho que realmente
sofri com a longa reserva dos historiadores profissionais, embora sua apreciação me
importasse. (…)
Fui mais suscetível aos sinais de indiferença ou de desconfiança quando eles provinham de
minha própria família espiritual; gostaria de, aí, ter encontrado mais entusiasmo".
Nesse aspecto, P. Ariès insinua ter recebido mais incentivo e apoio de sua esposa, com a qual
compartilhava gostos, costumes e opiniões; do que de qualquer outra pessoa.
Graças a este apoio (enriquecido pelos conhecimentos de história da arte de Mme. Ariès), o
autor inicia o trabalho de pesquisa destinado à redação de l'Enfant et la Vie familiale sous
l'Ancien Régime.

Como já fora dito anteriormente, após a formação na Sorbonne, P. Ariès se vê obrigado, por
força das circunstâncias, a efetuar uma mudança de rumo, no curso de sua vida profissional.
"Meu trabalho consistia em armazenar e transmitir dados bibliográficos (…). Isso se resumiu a
administrar uma biblioteca e a preparar arquivos de referências segundo costumes que
datavam, no mínimo, do século XVIII!(…)".
A necessidade de se produzir referências informativas de acesso rápido e simplificado
impulsionam as decisões administrativas de P. Ariès no sentido de modernizar os métodos
empregados em seu trabalho; "(…) a miniaturização do documento, (…) artifícios de
codificação, de indicações, de montagem, de reprodução… enfim, o emprego de computadores
e da automatização".
Participando ativamente desta revolução metodológica, que afetava principalmente os campos
da biblioteconomia e da arquivística, P. Ariès se posiciona agora efetivamente como um
pioneiro, posição esta que o conduz ao contato com a comunidade acadêmica norte-
americana, onde esta mudança metodológica se impunha de maneira muito mais clara e
efetiva que na França.
Nos Estados Unidos, aparentemente, l'Enfant et la Vie familiale sous l'Ancien Régime produzira
pouco interesse entre os historiadores, sendo lido mais atentamente pelos sociólogos.
Apesar das dificuldades burocráticas enfrentadas durante a fase de implantação da informática
na instituição onde trabalhava, P. Ariès assinala enfáticamente a importância desta fase em
seu desenvolvimento profissional, além de destacar a importância de ser testemunha, em
primeira mão, do impacto sociológico do advento massivo da tecnologia da informação na
sociedade atual.

Na constatação a respeito do paradoxo entre a crítica à modernidade e o paralelo entusiasmo


pelas tecnologias de informação, P. Ariès infere que "Na realidade, não existe (…) oposição
entre os interesses, até mesmo paixões, experimentados pelo passado e pelo presente ao
mesmo tempo. Ambos se complementam mais do que se contradizem, contanto que se admita
a mobilidade perpétua da história humana (grifo meu). (…) A arte do historiador consiste em
medir a velocidade dessa corrente e suas variações. (…) Minha hostilidade em relação à
modernidade (…), não significava recusa da mudança, mas da ideologia que a ela se acrescia
e de seu parasitismo, a recusa de uma inovação confundida com uma liquidação sumária e
brutal do passado (grifo meu)" (nota: fenômenos análogos parecem ser comuns, na história
sócio-política brasileira…).

Ao analisar, em retrospecto, o impacto inicial de L'Enfant et la Vie familiale sous l'Ancien


Régime e de L'Homme devant la mort, P. Ariès observa que (naquele momento) "(…) a
contestação da sociedade industrial estava na moda e, ao mesmo tempo, mudava de campo:
passava de uma direita reacionária, a partir de então adepta do culto da sociedade rica, a uma
esquerda que o marxismo já não satisfazia".
Como já foi comentado antes, L'Enfant et la Vie familiale sous l'Ancien Régime despertou mais
interesse entre os sociólogos (e psicólogos), o que despertou na comunidade acadêmica norte-
americana um interesse na temática da história da família que posteriormente seria abordado
pelos historiadores.
Nesta conjuntura, P. Ariès via-se, por sua independência de julgamento e análise, sob suspeita
tanto por intelectuais militantes de direita quanto de esquerda.

A respeito do período de P. Ariès como leitor de originais para a editora Plon, podemos
destacar que "Um belo dia, recebi um espesso manuscrito: uma tese de filosofia sobre as
relações entre a loucura e a demência na época clássica, de um autor que eu desconhecia".
Tratava-se do primeiro trabalho de Michel Foucault, Histoire de la Folie.
As impressões de P. Ariès a respeito dos "métodos" de publicação adotados pelos dirigentes
da editora Plon, induzem o leitor a não se surpreender com o fato da editora não mais existir.

A crise argelina gerou uma crise no seio da sociedade francesa; criando cisões que se
manifestariam de forma violenta (novamente, tal como uma guerra civil), onde P. Ariès
testemunharia a implosão de parte da sua "família espiritual". Nesta conjuntura, P. Ariès iria
verificar, in loco, a agressividade do Estado Francês e do jornal Nation Française (derivado da
militância da Action Française), do qual era colaborador. Desta experiência, o autor conclui que
"(…) o ódio resulta não de uma forte oposição, mas (…) de uma diferença muito pequena não
tolerada".

Além das aquisições de conhecimentos no campo da informática e do retorno gradual ao


contato com o mundo acadêmico, pode-se dizer que o contato do autor com a comunidade
acadêmica norte-americana deve-se principalmente ao impacto da edição americana de
L'Homme devant la mort.
Além da experiência norte-americana, é necessário citar, antes de uma conclusão, o
envolvimento de P. Ariès com a geração de acadêmicos de 1968 (responsáveis pelos choques
de Maio), que baseou-se numa série de coincidências a respeito de opiniões críticas comuns
sobre o ambiente tecnocrático gerado pelo desenvolvimento econômico do pós-guerra, que
proporcionaria uma aparente prosperidade material, sem nenhum ganho sócio-cultural real.

Conclusão:
Baseado nestes e em outros fatos e argumentos, o co-autor, M. Winock, classifica P. Ariès
como um "anarquista de direita"; um rótulo bizarro, se considerarmos os termos em seu estrito
senso; mas, talvez não haja razão para estranheza, se levarmos em consideração o fato de
que, devido ao seu distanciamento da Academia, o autor experimentou as peculiaridades da
pesquisa sem a necessidade de se submeter a cânones e "liturgias" típicas do processo
acadêmico, além de ser pioneiro na implementação de metodologias que atualmente fazem
parte do arsenal básico do pesquisador acadêmico. Via de regra, espera-se do historiador um
posicionamento político "coerente"; entretanto, as bases desta "coerência" jamais são
esclarecidas. Talvez, as lições mais evidentes que se pode extrair dos depoimentos de P.
Ariès, a respeito do desenvolvimento do ofício de historiador, sejam o respeito à realidade dos
fatos e; finalmente, a independência, base para uma verdadeira coerência.

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