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Curso Lacan

Aula 4

Na aula de hoje, gostaria de terminar o comentário da tese de doutorado de Lacan.


Vimos como ela trazia uma perspectiva que insistia na irredutibilidade de um certo
quadro de distúrbios mentais a toda e qualquer explicação causal de natureza orgânica
ou funcional. Quadro no qual encontraríamos, de maneira privilegiada, o que a
psicanálise ainda hoje compreende por psicose paranóica.
Vimos também como esta perspectiva psicogenética transformava a
compreensão do processo de formação da personalidade como solo para a determinação
da inteligibilidade da psicose paranóica. Uma personalidade que não poderia ser
analisada tal como analisamos um objeto físico que decompomos em várias
propriedades separadas. A personalidade a que Lacan se referia seria, na verdade, uma
totalidade indivisível cujas funções e faculdades estariam organicamente relacionadas,
até porque cada ato do indivíduo, cada percepção de objeto atualizaria uma estrutura
global de conduta e de inteligibilidade que visa um meio ambiente. Daí porque a
definição correta de personalidade é: “a totalidade constituída pelo indivíduo e sem
meio ambiente próprio”1.
Este processo de formação da personalidade ao qual se referia Lacan teria uma
certa coerência, algo que Lacan alude ao falar do “desenvolvimento regular e
compreensível” da personalidade. Tal desenvolvimento seria, fundamentalmente, o
resultado de dinâmicas de socialização visando a individuação. Este seria o campo da
objetividade, por exemplo, dos fatos mentais ligados aos distúrbios da síntese psíquica.
Mas ao nos perguntarmos como Lacan compreendia este desenvolvimento da
personalidade, vimos que ele já operava com um quadro bastante próximo da
psicanálise freudiana. A socialização dos sujeitos seria feita através de identificações,
ou seja, internalização de modelos ideais de conduta socialmente reconhecidos e
encarnados em certos indivíduos. Modelos que podem aparecer nas figuras familiares
do irmão, dos pais, ou em qualquer outra figura de autoridade.
Vimos como Lacan mobilizava esta dinâmica de identificações para dar conta da
natureza dos motivos delirantes do caso que ele apresentara em sua tese, o famoso caso
Aimée. Lacan insiste na centralidade do conflito de agressividade e identificação de
Aimée com seus tipos ideais (em especial a irmã mais velha). È a partir daí que Lacan
encontrará o acontecimento traumático capaz de responder pela produção dos delírios
psicóticos. Ele explicará então como: “a permanência do conflito, ao qual se reportam
os acontecimentos traumáticos, dá conta da permanência e do desenvolvimento do
delírio, ainda mais que seus sintomas parecem refletir a estrutura de tal conflito”2.
Mas vimos também como Lacan precisava explicar como a ambigüidade de um
processo de identificação que concerne todo e qualquer sujeito é vivenciado de maneira
tão traumática pelo paranóico. Neste contexto, Lacan traz a noção de fixação do
desenvolvimento da personalidade. Lacan faz apelo a Freud a fim de compreender o
desenvolvimento da personalidade através dos estágios de maturação da libido,
servindo-se então da teoria das fases (ou estágios) de organização da libido
desenvolvida pelo psicanalista Karl Abraham. A paranóia seria assim o resultado da
fixação em uma fase de desenvolvimento social de uma personalidade pensada a partir
das exigências de maturação da libido. Por fixar-se em uma fase arcaica, o sujeito é

1
LACAN, De la psychose paranoïaque ..., p. 337
2
LACAN, De la psychose paranoïaque ..., p. 244
incapaz de desenvolver as estruturas que permitiriam que tais conflitos próprios aos
processos identificatórios fossem agenciados de outra forma.
Veremos a partir da aula que vem como Lacan irá partir desta reflexão sobre a
teoria da personalidade, mas para reconstruí-la, agora através de empréstimos maciços
vindos da filosofia, da etologia animal e da psicologia do desenvolvimento. Notemos
apenas que em sua tese, Lacan está mesmo disposto a afirmar que o desejo instaura um
ciclo de comportamento marcado por exigências de satisfação. A compreensão deste
ciclo fornece a chave compreensiva para as patologias, já que mesmo a psicose se
apresente “como um ciclo de comportamento”.

Uma questão de método

Na aula de hoje, gostaria, na verdade, de comentar aquilo que aparece a Lacan


como saldo de sua tese. Uma saldo que aparece na terceira parte do livro, intitulada:
“Exposição crítica, reduzida em forma de apêndice, do método de uma ciência da
personalidade e de sua extensão no estudo da psicose”. De fato, a idéia não poderia ser
mais clara. O que Lacan procura, no fundo, é fundar algo novo em relação ao quadro da
psiquiatria e da clínica das doenças mentais. Ele quer fundar uma “ciência da
personalidade”. Daí porque ele afirmará: “Nossa tese é antes de tudo uma tese de
doutrina”3. Ciência esta que teria por objeto: “o estudo genético das funções
intencionais no qual se integram as relações humanas de ordem social” 4. Lacan ainda
falará de “fenomenologia da personalidade”.
Durante toda a tese, Lacan recusou–se a compreender a psicose como resultado
de uma constituição mórbida ou de uma causalidade orgânica. Ele afirmar ter
procurado fornecer o caráter “concreto” do quadro clínico analisado. O termo
“concreto”, tão utilizado por filósofos e psicólogos à época, indica aqui simplesmente o
campo da experiência sócio-histórica nos quais indivíduos estão inseridos. Ele é a chave
para entender o que Lacan tem em mente quando utiliza a distinção jasperiana entre
explicação e compreensão a fim de dizer: “Compreender, nós entendemos por isto dar
seu sentido humano às condutas que observamos nos doentes, aos fenômenos mentais
que eles nos apresentam”5. Mas dar o sentido humano não implica produzir uma certa
projeção afetiva de sentimentos e intenções em direção ao doente. Para Lacan, há
critérios “puramente objetivos”, “relações significativas” que o médico pode apelar para
se orientar. Daí esta réplica absolutamente central que visa defender a solidez da
perspectiva metodológica apresentada:

De resto, quem merece mais o reproche de acabar caindo na ‘psicologia’? É o


observador preocupado com a compreensão, que só aprecia os distúrbios
mentais subjetivos, mais ou menos veementemente acusados pelo doente, em
função de todo o comportamento objetivo de que eles são apenas os
epifenômenos. Ou então, de preferência, não seria o suposto organicista?
Vemos, com efeito, este tratar as alucinações, os distúrbios ‘sutis’ dos
‘sentimentos intelectuais’, as auto-representações aperceptivas e as próprias
interpretações, como se tratassem de fenômenos independentes da conduta e da
consciência do sujeito que as sofre, e, inconsciente do seu erro, fazer desses
eventos objetos em si. Se ele supõe nesses delitos o corpo de alguma lesão, aliás
puramente mítica, sem dúvida esse doutrinário acredita haver assim mostrado a

3
LACAN, idem, p. 307
4
Idem, o. 315
5
Idem, p. 308
nulidade da ‘psicologia’ mas ele de fato erige seus conceitos em ídolos. As
abstrações da análise se tornam para ele realidade concreta6.

Réplica de uma astúcia indiscutível por devolver o conteúdo da crítica àquele


que a faz. A acusação de ‘abstracionismo’ recai sobre o materialismo vulgar da postura
organicista que prefere coisificar o fenômeno mental, tratando-o como um objeto em si,
à recolocá-lo em uma cadeia causal que nos possibilitaria compreender seu sentido.
Um sentido fundamentalmente social porque fenômenos sociais nos fornecem uma
“armadura conceitual comunicável” e “fatos que têm todas as propriedades do
quantificável” (melhor seria dizer “comparável”). Lacan aproveitava o momento para
introduzir uma noção de objetividade na qual as relações de objeto estavam
subordinadas às relações intersubjetivas. Esta concepção permitiu Lacan sair, desde
cedo, das vias um realismo ingênuo, como podemos ver, de forma mais clara, nesta
afirmação: “a questão que se coloca é a de saber se todo conhecimento não é de início
conhecimento de uma pessoa antes de ser conhecimento de um objeto, e se a própria
noção de objeto não é, para a humanidade, uma aquisição secundária”7.
Todas estas escolhas metodológicas expõem claramente a absorção lacaniana de uma
proposta de refundação radical do campo da psicologia esboçada por Georges Politzer.
Eis o que Lacan tem em mente ao insistir nas relações entre psicose paranóica e
desenvolvimento da personalidade; isto a ponto de defender que a verdadeira psiquiatria
só poderia ser uma “ciência da personalidade”. O que demonstra como, contra o
materialismo organicista, Lacan não temia em sugerir algo como um materialismo
histórico aplicado às clínicas dos fatos mentais.
Exemplo maior deste materialismo é ainda a maneira com que Lacan
compreende a noção freudiana de supereu. Ele dirá que Freud a concebe como a
reincorporação de uma parte do mundo exterior pelo Eu. Tal reincoporação porte sobre
objetos cujo valor pessoal é fundamental, já que eles resumem as obrigações e
imposições exercidas pela sociedade sobre o sujeito, sejam os pais ou seus substitutos.
Esta reintegração seria explicada a partir de uma perspectiva puramente
econômica, ou seja, vinculada ao cálculo de prazer e desprazer. As primeiras pulsões
parciais estavam ligadas à escolha de objetos parentais. Os pais, ou aos objetos que
estão sob sua órbita, são as primeiras escolhas libidinais feitas pelo sujeito. A
impossibilidade de permanecer com estas escolhas, devido à exigências sociais de
organização do núcleo familiar, é suplementada através da identificação com tais
objetos e da introjeção de suas representações fantasmáticas. Assim, o sujeito reproduz
os objetos perdidos e a eles obedece.
A conclusão de Lacan não deixa de ser surpreendente pela sua radicalidade: “Tal
processo não esclarece de maneira evidente a gênese econômica das funções ditas
intencionais? Aqui, nós as vemos nascerem a partir de tensões energéticas que criam a
repressão social das pulsões orgânicas inassimiláveis à vida do grupo” 8. Ele chega
então a se perguntar sobre a possibilidade de todas funções intencionais do Eu se
engendrarem de maneira análoga.

Breve nota sobre o surrealismo

Por fim, vale lembrar o sentido de uma certa relação entre Lacan e o surrealismo
a respeito do problema da paranóia. Salvador Dali escrevera, em 1930, algumas

6
Idém, pag. 316
7
idém, pag. 334
8
LACAN, idem, p. 325
considerações sobre a paranóia e intentava dar suporte teórico à suas concepções
estéticas através do desenvolvimento de um método designado por ele de “paranóia-
crítica”. Para o pintor catalão, a paranóia era uma interpretação delirante da realidade,
uma atividade criadora lógica que, longe de basear-se em um “erro” de julgamento,
estava apenas em desacordo com a realidade socialmente compartilhada 9. Era, assim,
uma forma de conhecimento muito mais capacitada a apreender a realidade absoluta
proposta na noção de surrealidade, a este realismo bruto que o surrealismo procurava
através da crítica da realidade como construção aparente. Pois lembremos como o
surrealismo se via como “materialista”, “uma feliz reação contra as tendências irrisórias
do espiritualismo”.
A idéia converge com tese de Lacan, para quem a psicose paranóica estava
fundada no desconhecimento que o doente tinha de sua própria diferença.
Desconhecimento da dissimetria entre sua forma delirante de conhecimento e o
conhecimento verdadeiro que “aí se define, com efeito, por uma objetividade da qual o
critério de assentimento social, próprio a cada grupo não está de resto ausente” 10. A
psicose, ao ser apreendida em sua racionalidade lógica interna, expunha uma sintaxe
original cuja produção simbólica, em muitos pontos, assemelhava-se às manifestações
estéticas do estilo. Daí a conclusão:

O conhecimento desta sintaxe nos parece uma introdução indispensável à


compreensão dos valores simbólicos da arte e, muito particularmente, aos
problemas do estilo (...) problemas sempre insolúveis para toda antropologia
que não estiver liberada do realismo ingênuo do objeto11

Por estas conclusões já dá para imaginar porque, no meio médico, somente seu
amigo Henri Ey rompeu com o silêncio sobre a tese fazendo a sua defesa através de um
artigo para a revista de psiquiatria L’Encéphale. O fato é que a leitura de Politzer
permitiu a Lacan abordar a obra de Freud a partir de uma perspectiva até então estranha
ao meio psiquiátrico francês e muito mais próxima ao espírito dos surrealistas.

9
Dali definirá a paranóia como: “delírio de associação interpretativa que comporta uma estrutura
sistemática” (DALI, Salvador; La conquete de l’irrationnel in Oui: pour une révolution paranoïaque-
critique, Denöel: Paris, pag.19).
10
LACAN, Jacques; Da psicose paranóica, pag. 346.
11
LACAN, Jacques; O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranóicas da
experiência, pag. 380.

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