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Antropologia e Educação Origens de Um Dialogo
Antropologia e Educação Origens de Um Dialogo
O diálogo entre antropologia e educação, percebido por muitos como uma "novidade"
que se instaura com as transformações da década de 1970, neste século, é mais antigo
que isso e reporta-se a um momento crucial da história da ciência antropológica. No
âmbito deste artigo, não se poderá dar conta da totalidade dessa história; pretende-se,
no entanto, chamar a atenção para alguns pontos fundamentais. Antes de mais nada, é
necessário que se adentre no pensamento antropológico, em suas bases
epistemológicas como ciência e como ciência aplicada, com seus alinhamentos teóricos,
avanços e limites. Aqui parece residir a importância do passado para nosso presente,
pois somente nesse percurso parece ser possível vencer uma certa instrumentalização
da antropologia pela educação, propiciadora de muitos equívocos, e onde, certamente,
se terá, como ganho, a superação de estigmas e preconceitos que grassam de ambos
os lados dessa fronteira ou desse divisor de águas - a antropologia como ciência, a
pedagogia como prática.
Avaliar a questão das diferenças, tão cara à antropologia e tão desafiadora no campo
pedagógico justamente por sua característica institucional homogeneizadora, não é
uma tarefa simples. Desde sempre, a antropologia e a educação têm se defrontado com
universos raciais, étnicos, econômicos, sociais e de genêro, entre tantos outros, como
desafios que limitam ou impedem que se atinjam metas, engendrando processos mais
universalizantes e democráticos. No tempo presente, com tantas mudanças numa
sociedade que se globaliza, estas questões não só não se encontram resolvidas, como
renascem com intensidade perante os contextos em transformação.
Por que ser discípulo de Franz Boas importa? Antes de mais nada, por ser ele mesmo
um aluno de Morgan - outra referência axial na antropologia -, que, rompendo com o
mestre, abre as portas para a fecundidade e as multiplicidades de pensamentos que
orientarão novas abordagens teóricas que alimentam a antropologia do século XX. Os
discípulos de Boas, neste início de século, dão continuidade ao próprio Boas, quando
este nos alertava para o fato de que tínhamos um modelo pedagógico ocidental que iria
nos conduzir a uma pedagogia da violência.
Hoje, quando vemos as dificuldades das escolas, em particular, das escolas públicas de
periferia, o fato de a escola como valor não fazer eco entre os estudantes, a indisciplina
violenta, a evasão escolar e sua face mais cruel, a exclusão social, só para citar alguns
problemas de nosso tempo, cabe perguntar qual a natureza dos riscos de que falava
Boas. Qual a natureza dos riscos de hoje? Para ele, a realidade de seu tempo apontava
um risco para os povos do futuro e para o futuro da própria civilização. A razão era
que, historicamente, a nossa sociedade e a escola que lhe é própria não desenvolviam -
e não desenvolvem - mecanismos democráticos, perante as diversidades social e
cultural.
O fato mais curioso nesse encontro de culturas de que resultou a conquista da América
foi provavelmente a surpresa de ambos, espanhóis e indígenas, ao se depararem. Uns
jamais suspeitaram da existência dos outros. Para se livrarem do incômodo desse
assombro, ambas as partes mergulharam nas suas tradições míticas, a fim de
encontrarem indícios reveladores ou presságios que os ajudassem a identificar e
esconjurar os espectros com que haviam topado. Que estranha tribo desgarrada dos
filhos de Israel seriam esses gentios, perguntavam os espanhóis? Que pavorosos
deuses vingadores eram aquela gente barbada, toda revestida de metal e montada em
veados gigantes, clamavam os indígenas? (Nicolau Scevcenko. Folha de S.
Paulo/Ilustrada, domingo 2/2/1985, p. 53)
O que tem a ver com antropologia e educação o texto acima? O texto conta a história
do contato entre espanhóis e indígenas (astecas, maias, incas) na conquista da
América. É um fato real, histórico e concreto, em que dois povos e duas culturas
distintas mostram o espanto do olhar - do europeu e do indígena, ambos envolvendo
de imediato a percepção de um sobre o outro. Trata-se de um olhar etnocêntrico, fruto,
como diz Azcona (1989), da experiência do agir humano, segundo um modelo
explicativo do conhecimento e também como realidade da cultura, entendida como o
sentir, o pensar, o agir do homem em coletividade. Qualquer experiência vivida,
referida a objetos, situações, fatos, são, diz o autor, intersubjetivos, porque vivemos no
mundo da cultura "como homens entre outros homens, ligados a eles por influências e
trabalhos comuns, compreendendo os outros e sendo objeto de compreensão para
outros" (p. 49).
Como diz Scevcenko, "os europeus representando uma civilização mais pragmática e
que lançava nesse momento as bases da ciência positiva moderna, logo passaram a
utilizar-se dos mitos indígenas a seu favor (...) os espanhóis não tiveram escrúpulos em
se aproveitar das crenças indígenas (...) para depois da conquista destruir os seus
deuses e impor-lhes o cristianismo a ferro e fogo" (op. cit., p. 53). A partir daí,
segundo o autor, o que se tem é um trágico processo de invasão, conquista e extinção
da cultura indígena.
O que é o saber? Segundo Galli, é uma dimensão social holística3 que vai do caos à
ordem, para outra ordem; que se desconstrói com bases em pressupostos construtivos,
postos em movimento pela experiência e pela vivência. Trata-se da fruição da cultura,
que gera um fazer reflexivo e crítico, por vezes chamado educação.
Este e outros exemplos entre grupos tribais como os Arapesh, estudados por Mead, ou
os japoneses, estudados por Ruth Benedict, revelam a existência de um sistema de
interpretação de um modo de vida, mas também uma pedagogia, como diz Galli, que
se formaliza como técnica e ritual educativo, criando sistemas especializados nessas
técnicas e ritos. Nesse sentido, cultura e educação são termos que se invocam e se
concitam mutuamente, como afirmam Cazanga M. e Meza (1993). Segundo esses
autores, "permanentemente envolvido no processo educativo e pelo simples fato de
estar vivendo, o homem está aprendendo na sociedade pela cultura; a sociedade é o
meio educativo próprio do homem, ainda que a todo momento não tenha consciência
disso" (p. 82).4
Isto não quer dizer que os indivíduos sejam produtos mecânicos de uma linha de
montagem. O homem como ser variável, mutável no temperamento e no
comportamento, não fica à mercê de sua natureza e de sua cultura, mas sim está
sujeito a condições históricas determinadas e determinantes do universo em que está
inserido.
É comum entre antropologia e educação, portanto, tal como afirma Galli, a existência
real e concreta de diferentes grupos humanos. Uma existência que, segundo Lara
(1990), mostra o mundo cultural marcado por uma luta de interesses, com tudo o que
ela implica: a dominação, a espoliação, entre outras coisas. Para esse autor, os
caminhos da produção cultural de um povo foram, muitas vezes, obstruídos, "enquanto
memória negada ou recalcada, enquanto memória distorcida ou mesmo completamente
deturpada por aqueles que têm a força para se impor. A história cultural de um povo,
na maioria dos casos, fica sendo a história das dimensões hegemônicas dessa cultura"
(p. 104).
Retomando pois, o caso dos espanhóis e dos indígenas, fica clara a imposição das
crenças dos valores dos conquistadores em nome de um domínio que nega ao outro a
própria existência de seu mundo. Diziam alguns sábios astecas: "Somos gente simples/
somos perecíveis, somos mortais,/ deixai-nos, pois, morrer,/ deixai-nos perecer,/ pois
nossos deuses já estão mortos" (Scevcenko op. cit., p. 53). O processo político que
impõe a cultura do outro à revelia dos sujeitos sociais conduz à violência que mata o
corpo (genocídio), como também mata a alma, preservando o corpo físico (etnocídio).
Os indígenas não são, assim, indiferentes às condições vividas, aprendem com elas, e
se os espanhóis foram: "adorados inicialmente como deuses, temidos depois como
demônios e desprezados por fim apenas como bárbaros", é porque os indígenas
perceberam a "cupidez dos europeus e na sua obsessão proselitista, a raiz de todo o
sofrimento em que submergiram (...) esse sentimento (...) transformou-se numa
pulsação de resistência e é até os nossos dias revivido cerimonialmente como na
periódica dramatização da morte de Atahualpa" (idem; ibidem).
Assim, num processo inverso ao da homogeneização proposta pelo campo político das
relações entre povos e culturas distintas, renasce a diferença, celebra-se a alteridade. A
realidade vivida implica um fazer e refazer constantes, via processos culturais que, no
dizer de Lara, produzem e veiculam projetos de vida humana, com propostas tidas
como válidas e como tais transmitidas. Daí que o processo de ver-se e ver a outros
homens, só pode ocorrer em contextos históricos concretos, seja em termos do senso
comum, seja em termos do conhecimento científico.
A primeira dessas teorias, que nasce junto com a própria ciência antropológica, foi o
evolucionismo. As idéias de evolução e progresso, inspirados em princípios da biologia
e, portanto, das ciências naturais do século XIX, conduzem a que se pensem as
diferenças entre grupos e sociedades numa escala evolutiva que toma o mundo
europeu como modelo único de humanidade. A concepção etnocêntrica de mundo vê o
"outro" a partir de si mesma e estabelece um fazer científico de base discriminatória e
racista, já que entende que branco, europeu e cristão constituem a superioridade da
condição humana, enquanto os demais povos e culturas representam um atraso, uma
sobrevivência do passado do homem e, como tal, uma condição inferior da própria
humanidade. Um evolucionista importante, no século XIX, foi L. Morgan, inspirador de
muitos pensadores, entre eles seu aluno Franz Boas.
Franz Boas vivencia todas as descobertas de seu tempo e chega ao presente século
trazendo para debate, agora, através de seus próprios alunos, importantes
antropólogos da primeira metade do século XX, uma crítica contundente ao
pensamento de seu mestre L. Morgan. Boas considera a idéia de que cada grupo, cada
cultura têm uma história singular, própria, que depende do que é a vida do grupo, no
aqui e agora de sua existência. Não se trata, portanto, de olhar as diferenças próprias
do modo de ser do "outro" como sobrevivência de um momento já superado pela
evolução da humanidade e, como tal, exemplo vivo de atraso social e cultural. A
possibilidade de que a história da humanidade não tenha seguido um único caminho e
direção faz do pensamento de Boas uma condição revolucionária na compreensão das
realidades humanas. Como história múltipla e variada, elimina o viés do pensamento
evolucionista etnocêntrico. Com este princípio, Boas mostra a imensa riqueza do social
humano e a natureza da cultura como não determinada biologicamente. A cultura, e
não a biologia, torna-se referência para pensar as diferenças e compreendê-las em
suas bases constitutivas. O pensamento de Boas, ao investir contra o evolucionismo de
Morgan, possibilita também a crítica aos valores liberais e de igualdade postos pelo
campo político do século XIX, como modelo autocentrado para as sociedades humanas
e suas instituições, entre elas, a escola e seu modelo pedagógico ocidental.
Outros antropólogos que também discutem a escola e a educação nesse período são M.
Herskovits, R. Redfield e C. Kluckholn, que apontam para a questão da escolha cultural,
do papel da cultura e das experiências vividas que marcam e constituem um universo
centrado no relativismo. São parte da discussão: a negação dos chamados "testes de
inteligência", tão em voga nos anos 30/40; as dificuldades de integração cultural do
diferente, em face da visão etnocêntrica da organização escolar; a questão da tarefa do
educador perante as experiências pessoais e a herança cultural e, ainda, a questão dos
valores de cada grupo em face dos conflitos entre grupos e perante as diferenças. A
relativização dos saberes e as conexões entre saberes diversos só se fizeram possíveis
em razão das experiências vividas e da integração no mundo e na cultura de cada um.
A exigência, portanto, de se pensar um saber e uma aprendizagem diversa, porém de
igual valor, coloca em vigência uma ética no fazer antropológico e lhe dá uma dimensão
política afinada com seu tempo.
Por sua vez, o funcionalismo dos anos 20/30 baseava-se no fato de que as
necessidades de um povo, grupo ou indivíduo, dadas pela vida em sociedade,
encontram na cultura os caminhos de sua satisfação e conduzem às respostas originais,
singulares e coletivas, que demarcam e estruturam formas próprias de ser e de pensar
o mundo, diferentes para cada povo ou grupo, já que são dependentes da dinâmica de
diversos sistemas sociais e de seu funcionamento. Como conseqüência, a melhor forma
de compreender os diferentes povos é estar com eles, viver em profundidade o
universo de suas práticas, entendendo-as como práticas "encarnadas", como diria
Malinowski, ou seja, como práticas que possuem um sentido e um significado. A
perspectiva de que o homem não apenas vive, mas que, ao viver, questiona, cria
sentidos, valores, mitos, artes e ideologias que ordenam sua compreensão de mundo,
revoluciona o fazer etnográfico, pois impõe o trabalho empírico, de campo, como
fundamental na compreensão de outros povos e de nós mesmos.
Segundo Ruth Cardoso (1986), no campo das ciências humanas o desafio atual é o de
conciliar a conquista do trabalho de campo, sistematizada pelo positivismo e, ao
mesmo tempo, dar conta de esquemas explicativos de outra natureza, centrados na
questão das sociedades complexas, as sociedades de classe, revelada pelas teorias
mais críticas e menos positivistas, tais como o estruturalismo e o marxismo. Diante do
trabalho de campo e do desafio da interpretação, a antropologia e a educação se
debatem com o fato de que sempre existiu "um modelo positivista de sociedade (...) e
uma tendência interpretativa ou compreensiva" das mesmas (Lovisolo 1984, p. 66).
Para este autor, a antropologia interpretativa é aquela que hoje é aceita, tanto no
campo das ciências humanas como na educação, e nisso consiste o desafio de agora.
Em debate, o questionamento das práticas científicas e das práticas educativas no
tocante ao trabalho de campo e ao fazer etnográfico que, desenvolvidos na trajetória
da antropologia como ciência, são hoje, década de 1990, campos comuns e conflitivos
no diálogo entre antropologia e educação.
Notas
2. Deste ponto em diante, intercruzo, com outros autores, o trabalho de Matilde C.Galli,
"Antropologia Culturale e Processi Educativi", editado pela La Nuova Italia, Scandice,
Firenze, 1993, e tomo por roteiro parcial o curso de antropologia e educação que
ministrei em 1996, na Faculdade de Educação da Unicamp. Agradeço à professora
doutora Ana Lúcia G. de Faria por ter me apresentado à obra de Galli e ter, assim,
desencadeado um processo de reflexão de que participaram também meus alunos, aos
quais agradeço pelo incentivo e pela discussão.
Bibliografia
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