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Rubem Valentim e a flecha da cultura

Por Maria Luiza de Meneses

Assisti esta semana a entrevista de Regina Duarte, atual secretária especial de Cultura
do atual governo, concedida à CNN Brasil, assim como milhões de brasileiros que agora têm
em suas memórias as imagens desse episódio. Quando penso em imagens, visualizo em minha
mente os caminhos e ramificações para os quais as imagens conseguem se expandir. Tento
desenhar possibilidades discursivas para uma única imagem, e me perco em meio a
matemática exponencial dos circuitos que as imagens alcançam. Com isso, quero dizer que
quando vistas por pessoas diferentes, em lugares, países, sociedades, condições sociais,
acessos, raças, gêneros, idades, sexualidades e em tempos diferentes, cada imagem alcança
caminhos de entendimento, interpretação e discursivos que podem ser multiplicados
incontavelmente. Nunca saberemos todos os caminhos que uma única imagem alcança. Tento
imaginar como a imagem de uma secretária de cultura, que canta, dança, atua e opina em
rede nacional, pode construir imaginário em tantos brasileiros que recebem a sua imagem
através de televisores, computadores ou celulares. Tento também, não aplicar julgamento
“partidário”, uma vez que meu interesse mais profundo é agarrar-me à imagem e juntamente
com ela descobrir o que nos diz.

Iniciei este texto falando sobre memória, e peço que não esqueça esta palavra, pois
toda imagem que recebemos se torna presente em nossa memória no instante que alcança
os olhos, e em seguida se conecta intimamente a uma memória que temos, que criamos ou
que criaram para nós. A tela transmitida pela CNN Brasil, apresentava dois quadros: um à
esquerda com a presença dos apresentadores Reinaldo Gottino e Daniela Lima; e outro à
direita com o repórter Daniel Adjuto e Regina Duarte. Falaremos do segundo quadro, que se
mantém igual durante grande parte da entrevista. Na imagem congelada, destacada e que
circula as redes sociais e jornais de todo o país, vemos no primeiro plano à esquerda Daniel
Adjuto, à direita Regina Duarte, e centralizada no segundo plano, dois quadros que foram
citados brevemente por Daniela Lima como sendo de autoria de Rubem Valentim.

Quando vi a cena, minha primeira impressão foi de surpresa, seguida de felicidade ao


ver o quadro de Rubem Valentim em rede nacional. Me lembrei da primeira vez que vi uma
obra do artista, sem ainda nem conhecer seu nome, numa feira de arte (uma bem famosa).
Fiquei paralisada com a beleza das cores em formatos geométricos, pensando ser o misto de
equilíbrio e tensão que o artista constrói na simetria bilateral um dos maiores picos de seu
trabalho. Pesquisei rapidamente seu nome na internet, que vinha seguido dos nomes
‘candomblé e umbanda’, e eu que conhecia muito pouco sobre as duas religiões continuava
adiando o início desses estudos. Cerca de um ano depois fui contratada para trabalhar como
arte educadora na exposição Ounjé – Alimentos dos Orixás, que apresentaria trabalhos que
discursam sobre religiões de matriz africana. Nesse contexto, conheci Alexandre Bispo,
antropólogo que coordenava a equipe educativa. Durante um dos encontros da formação do
educativo (período em que estudamos os artistas, as obras e o conceito, expandindo os
olhares críticos sobre a exposição), Bispo trouxe a obra de Rubem Valentim como referência
para pensar as religiões de matriz-africana na arte, através da geometrização e cores utilizadas
pelo artista para transpor as representações de orixás para além do figurativo. Reencontrar
Rubem Valentim num contexto de estudos e debates sobre o candomblé com outros
estudantes e pesquisadores, expandiu minhas perspectivas sobre o artista que produz uma
arte em defesa da cultura brasileira através da ancestralidade negra.

Ver Rubem Valentim em rede nacional me fez questionar qual a parcela da população
brasileira que poderia conhecer seu trabalho, e quantos sabiam que o artista foi um profundo
defensor da cultura. Ainda mais: quantos brasileiros sabem que em tempos normais, sem
pandemia, as obras do artista baiano podem ser vistas pessoalmente em preciosos acervos
públicos, como a Pinacoteca do Estado de São Paulo, ou então quantos milhões já cruzaram
sua escultura construída em 1985 na Praça da Sé, também em São Paulo? Segundo palavras
do artista, sua arte “busca as raízes e poderia reencontrá-las no espaço, como uma espécie de
ressocialização da arte, pertencendo ao povo”. Será que o povo sabe disso? A surpresa e a
felicidade cessaram.

A presença de Regina Duarte também me chamou a atenção. “Rainha da Sucata”,


“atriz global”, “Namoradinha do Brasil”. Eu que não assisto novelas fui acessada por essas
memórias vindas de imagens que vi pela internet ao longo dos últimos meses. Pesquisando, li
que a presença da atriz no imaginário popular brasileiro existe desde 1965, mais precisamente
a partir dos anos 70, com sua entrada na televisão. Fiquei imaginando o quanto as pessoas
que acompanham o trabalho da atriz poderiam associar sua imagem a personagens que ela já
representou – o que é evidente quando insistem em chama-la de “namoradinha do Brasil”,
papel interpretado em 1971 –, e o quanto possa ser confuso compreender o que é realidade
e o que é ficção. Regina Duarte, que durante décadas brilhou nas televisões nacionais,
novamente através de uma emissora, mas agora como Secretária Especial da Cultura e
durante a pandemia mundial de COVID-19, canta o hino ufanista da Copa de 70, música que
se tornou símbolo cadavérico da Ditadura Militar Brasileira. Neste período era comum que
artistas e o futebol brasileiro fossem ferramentas utilizadas pelo regime para manter a
população entretida, enquanto os militares criavam cemitérios clandestinos para enterrar as
pessoas que assassinavam por se oporem ao governo. “Comunistas”, “vagabundos”,
“baderneiros”, assim eram chamados aqueles com opiniões diferentes. Segundo o relatório
final da Comissão Nacional da Verdade (2011 – 2014), cerca de 434 pessoas foram mortas ou
desaparecidas durante o regime militar, entre estudantes, artistas e ativistas que se opunham
a ditadura. Se a comissão tivesse alcançado mais tempo para a continuidade das pesquisas,
este número poderia ser ainda maior. Assim como nunca saberemos quantas pessoas a
ditadura assassinou no Brasil, nunca saberemos quantas pessoas de fato morrem por COVID-
19. Devido a falta de testes, a comunicação turva e o descaso, quando a quarentena acabar,
chegaremos ao “novo mundo” caminhando sobre corpos. Se na opinião de Jair Bolsonaro, em
vídeo de 1999, para que ocorressem mudanças no Brasil era necessário “partirmos para uma
guerra civil, fazendo um trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil”, os
posicionamentos atuais como presidente mostram que Messias está cumprindo a própria
profecia. Ao passo que escrevo, a notícia diz que o “Brasil tem 10.627 mortes e 155.939 casos
confirmados de coronavírus”.
Enquanto Regina construía sua carreira de atriz durante o regime militar, Rubem
Valentim produzia a obra que aparece por inteiro na tela, em meados dos anos 80. No período
aclamado pela ex-atriz, as violências raciais tiveram grande aumento, como nos conta Lélia
Gonzalez em seu livro “Lugar de Negro”. O racismo presente em toda a estrutura da sociedade
foi piorado quando o militarismo estava em vigência. A escolha consciente de não falar sobre
coronavírus ao passo que pesquisas mostram que a atual pandemia tem feito mais mortes nas
periferias, principalmente entre negros e indígenas, torna ainda mais pulsante a presença de
uma obra que traz as flechas de Oxóssi, guerreiro protetor das matas, olhando de volta os
brasileiros que a observaram em seu protesto silencioso. Doadas para o Ministério da Cultura
na gestão de Gilberto Gil, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, as obras de Rubem
Valentim efervesceram em rede nacional duas narrativas terrivelmente disjuntas. Uma que
canta a vida das florestas, outra que entoava ao vivo os mortíferos cantos da ditadura. Sem
saber, o povo brasileiro estava sendo testemunha da disputa entre a barbárie e o apelo pela
cultura.

Estas duas narrativas caminham paralelamente no mesmo espaço de tempo e se


encontraram brevemente durante os 40 minutos de entrevista. Enquanto era proferido um
discurso anti-cultura e anti-memória dos artistas mortos por coronavírus através da fala da
secretária, o ativismo de Rubem Valentim em vida a favor da valorização das culturas
genuinamente brasileiras, afastando-se dos ideais europeus que buscavam enquadrar suas
obras como “construtivistas”, nos mostram, através das flechas de Oxóssi, que os caminhos
para a cultura são outros. A flecha da cultura precisa estar nas mãos do povo.

Rubem Valentim faleceu em 1991, e em 2020 sua obra ainda não possui o devido
reconhecimento que lhe é cabível. Em tempos onde o mínimo desejo da classe artística de
respeito aos artistas mortos em decorrência do descaso governamental em relação ao
coronavírus no Brasil, o trabalho mais doloroso e necessário é o de continuar escrevendo as
histórias das nossas artes. Enquanto escrevia, li a notícia de que Abraham Palatnik, artista
brasileiro pioneiro na Arte Cinética, foi mais uma vítima do vírus. Se para a secretária lembrar
a memória de artistas falecidos é tornar-se “um obituário”, informo que em outra realidade,
naquela em que vivo, estudo e trabalho, registrar a memória, organizar acontecimentos,
homenagear e rememorar artistas, obras, movimentos artísticos e a relação da arte com a
sociedade, é chamado de História da Arte.

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