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DESIGUALDADE BRASILEIRA*
Jessé Souza
um fenômeno de massa em países periféricos de gia comparada das religiões à perspectiva de duas
modernização recente como o Brasil, pode ser mais das mais promissoras abordagens críticas surgidas
adequadamente percebida como conseqüência, na sociologia da segunda metade do século passa-
não de uma suposta herança pré-moderna e perso- do, a saber, a teoria crítica do reconhecimento,
nalista, mas precisamente do fato contrário, ou cujo expoente principal é o filósofo social cana-
seja, como resultante de um efetivo processo de dense Charles Taylor, e a sociologia de Pierre
modernização de grandes proporções que se im- Bourdieu. Essas duas abordagens trazem concep-
planta paulatinamente no país a partir de inícios do ções complementares interessantes, que podem
século XIX. Nesse sentido, meu argumento implica ser utilizadas, com muito proveito, para a análise
que nossa desigualdade e sua naturalização na vida da modernidade periférica.
cotidiana é moderna posto que vinculada à eficácia Na sua monumental sociologia das grandes
de valores e instituições modernas a partir de sua religiões mundiais, Weber interessa-se primaria-
bem-sucedida importação “de fora para dentro”.2 mente por uma análise comparativa do racionalis-
Assim, ao contrário de ser “personalista”, ela retira mo ocidental com as grandes religiões orientais, de
sua eficácia da “impessoalidade” típica dos valores modo a esclarecer por que, apenas no Ocidente,
e instituições modernas. É isso que a faz tão opaca surgiu, impondo transformações estruturais em to-
das as esferas da vida social, uma sociedade que de-
e de tão difícil percepção na vida cotidiana.
nominamos capitalista, moderna e ocidental. Como
A importância de uma mudança de paradig-
a “revolução de consciências” do protestantismo as-
ma nesse campo não tem apenas repercussões
cético foi considerado um momento importante na
teóricas. A ausência de perspectivas de futuro em
explicação desse desenvolvimento singular do Oci-
países periféricos como o Brasil tem a ver com a
dente, a sociologia comparativa neo-weberiana foi
obsolescência dos antigos projetos políticos, pau-
marcada pela procura de “substitutos da ética pro-
tados em análises tradicionais criticadas acima. A
testante” para identificar tanto os processos de mo-
tendência a se criar o que poderíamos chamar de
dernização com chances de sucesso como os fada-
“fetichismo da economia” – como se o crescimen- dos ao fracasso na hipótese contrária.
to econômico por si só pudesse resolver proble- Um pressuposto implícito dessa estratégia
mas como desigualdade excludente e marginali- analítica era o fato de que se mantinha não ape-
zação3 –, o hábito de se estabelecer clivagens nas as premissas do “culturalismo essencialista”,
regionais entre partes modernas e tradicionais mencionado anteriormente, mas também a noção
dentro do país ou ainda as cruzadas populistas “etapista” da sociologia tradicional da moderniza-
contra a corrupção são legitimados por essa su- ção, uma vez que se assumia que as sociedades
posta herança pré-moderna e personalista, idéias não-ocidentais ou bem repetiriam os passos das
que servem como máscara ideológica contra a ar- sociedades ocidentais centrais por meio de sími-
ticulação teórica e política dos conflitos específi- les da revolução protestante – o caso do Japão é
cos de classe na periferia. o mais eloqüente nesse contexto4 –, ou estariam
A dificuldade teórica de avançar uma hipóte- condenadas à égide da pré-modernidade. Apenas
se construtiva nesse terreno exige a articulação de a repetição do processo contingente de “moderni-
dois passos subseqüentes: 1) reconstruir a confi- zação espontânea” ocidental garantiria o passa-
guração valorativa subjacente ao racionalismo oci- porte para relações modernas na economia, na
dental ao seu ancoramento institucional, ou seja, política e na cultura. Uma grande parte da socio-
reconstruir uma versão sociocultural do tema mar- logia culturalista e institucionalista que se deteve
xista da “ideologia espontânea do capitalismo”; no estudo da América Latina, escrita tanto por au-
em seguida 2) refletir acerca de sua aplicação no tores latino-americanos como por não latino-ame-
contexto da “modernidade periférica”. Para isso, ricanos, estava e ainda está marcada explícita ou
em primeiro lugar, acredito que seja proveitoso implicitamente por essa pressuposição.
confrontar um insight não completamente desen- Para Max Weber, no entanto, parecia claro
volvido por Max Weber no âmbito de sua sociolo- que a explicação do surgimento “espontâneo” do
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racionalismo ocidental na Europa e na América do ta”, típico das abordagens que articulam persona-
Norte diferia da explicação do desenvolvimento ul- lismo, familismo e patrimonialismo, as quais des-
terior do arcabouço valorativo e institucional desse curam da articulação entre valores e seu necessá-
racionalismo como conseqüência da expansão da rio ancoramento institucional, único vínculo que
sociedade ocidental para todo o mundo. Funda- poderia explicar de que modo valores influenciam
mentalmente, essa expansão dar-se-ia pela expor- o comportamento efetivo dos agentes.
tação, sob a forma de “artefatos prontos” – fertigen Para este desiderato, no entanto, as contribui-
Gebildes als Artefakt (Weber, 1998, p. 251) –, das ções dos clássicos da sociologia são precárias. Karl
principais instituições do racionalismo ocidental: o Marx, inventor da expressão “ideologia espontâ-
mercado capitalista com seu arcabouço técnico e nea” como a marca específica da dominação social
material e o Estado racional centralizado com seu no capitalismo, “apenas” descreveu a descontinui-
monopólio da violência e poder disciplinador. dade entre produção e circulação de mercadorias,
A dificuldade em se discutir esse tema tem a o que faz com que a mercadoria “força de traba-
ver com a concepção necessariamente naturaliza- lho” apareça à consciência dos envolvidos como
da que temos da eficácia social do mercado e do vendida efetivamente pelo seu justo valor, tornan-
Estado. Às gerações que nascem sob a égide das do, desse modo, não transparente o processo de
práticas disciplinarizadoras já consolidadas nessas exploração da força de trabalho. Falta em Marx
instituições, a hierarquia valorativa implícita, opa- uma articulação explícita da “hierarquia valorativa”
ca e contingente que as perpassa de maneira ins- que se atualiza na ação do mercado. De outro
transparente e oculta assume a forma naturalizada lado, o ponto de partida weberiano, por estar pre-
de uma realidade tácita, que dispensa, por isso so às categorias da “filosofia da consciência”, que
mesmo, justificação. Responder aos imperativos forçava Weber a perceber no sujeito a fonte de
empíricos do Estado e do mercado passou a ser todo sentido e moralidade,7 não dá conta, em toda
tão evidente quanto respirar ou andar. Somos con- sua dimensão, da extensão do horizonte valorati-
tinuamente modelados para atender a esses impe- vo, moral e simbólico presente nessas configura-
rativos. Essa realidade permite e confere credibili- ções institucionais exportadas do centro para a pe-
dade às concepções científicas que desconhecem riferia como “artefatos prontos”, segundo sua
a lógica normativa contingente desses subsiste- própria formulação.
mas. Ela assume a forma de qualquer outra limita- É precisamente para esclarecer esse aspecto
ção natural da existência, como a lei de gravidade, fundamental da hierarquia valorativa que perpassa
por exemplo, contra a qual nada podemos fazer.5 a eficácia institucional do mercado e do Estado que
Para avançar em direção a uma concepção gostaria de incorporar as reflexões de Charles Tay-
alternativa acerca da lógica implícita ao funciona- lor acerca das fontes do self moderno (Taylor,
mento dessas instituições, portanto, é necessário 1989). Aqui não me interessa o uso que Taylor faz
reconstruir o que gostaria de chamar, lembrando de suas investigações no contexto do debate sobre
Karl Marx, de “ideologia espontânea do capitalis- o multiculturalismo ou sobre a querela entre libe-
mo”. Uso o termo “ideologia” pois tanto o merca- rais e comunitaristas, mas a idéia comunitarista
do como o Estado são perpassados por hierar- como uma hermenêutica do espaço social quando
quias valorativas implícitas e opacas à consciência critica o “naturalismo” da prática científica e da
cotidiana, cuja naturalização, que a transveste de vida cotidiana, como meio de articular precisa-
“neutra” e “meritocrática”, é responsável pela legi- mente a configuração valorativa implícita ao racio-
timação da ordem social que essas instituições nalismo ocidental, que dá ensejo, como veremos,
atualizam. A compreensão dessa “ideologia espon- a um tipo específico de hierarquia social e a uma
tânea” é fundamental para que possamos perceber noção singular de reconhecimento social baseada
a importância do componente simbólico e cultural nela. Sua crítica à concepção reificada de Estado e
na produção social da desigualdade e da subcida- mercado como grandezas sistêmicas, como vemos
dania, sem apelar para o “essencialismo culturalis- em Jürgen Habermas por exemplo, parece-me cer-
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teira e decisiva para uma compreensão mais ade- gem da interioridade irresistível. O vínculo entre
quada do processo de expansão do racionalismo as idéias dominantes no Ocidente e sua eficácia é
ocidental do centro para a periferia, o qual se rea- percebido – em uma evidente correspondência
liza pela exportação dessas instituições como arte- com Max Weber – como um processo interno à
fatos prontos no sentido weberiano do termo. A racionalização religiosa ocidental. Desse modo, as
negação do caráter simbólico e cultural contingen- concepções do bem estão presas a interesses
te dessas materializações institucionais – causada ideais específicos por meio do “prêmio” religioso
por sua percepção como grandezas regidas segun- da salvação. Isso explica o lugar paradigmático de
do critérios de eficácia formal – equivaleria a re- Santo Agostinho na obra tayloriana.
duplicar, na dimensão conceitual, o efeito do “na- O processo de interiorização iniciado por
turalismo” na vida prática. Santo Agostinho foi radicalizado por Descartes. A
Fundamental na empreitada tayloriana, e o partir daí, mudaram-se os termos e a forma como
que leva Taylor, neste particular, muito além da re- a virtude era concebida (Taylor, 1989, pp. 159-
flexão weberiana, é que ele consegue reconstruir a 176). Houve uma inversão da noção de virtude e
hierarquia valorativa que se materializa nas duas de bem que imperava até então. A ética da hon-
instituições centrais do mundo moderno – merca- ra na Antigüidade é reinterpretada em termos do
do e Estado –, que comanda de maneira quase ideal cartesiano de controle racional. A racionali-
sempre irrefletida e inconsciente nossas disposi- dade deixa também de ser substantiva, tornando-
ções e nosso comportamento cotidiano. A recons- se procedural. “Racional” passa a significar pensar
trução da “história das idéias” não é um fim em si de acordo com certos cânones. É esse novo sujei-
na reflexão tayloriana, e isso suscita seu interesse to moral que Taylor chama de “self pontual”. Loc-
para as ciências sociais. Sua estratégia é compreen- ke sistematizará o novo ideal de independência e
der a gênese ou a arqueologia das concepções de auto-responsabilidade, interpretado como algo li-
bem e de como elas evoluíram e adquiriram eficá- vre do costume e da autoridade local, transfor-
cia social. Este ponto é crucial. Não interessa a Tay- mando o self pontual no fundamento de uma teo-
lor uma mera história das idéias, mas como e por ria política sistemática.
que elas lograram tomar os corações e as mentes O self é pontual, porque desprendido de con-
das pessoas comuns. Daí sua empresa ser sociolo- textos particulares e, portanto, remodelável por
gicamente relevante. Em primeiro lugar, ele se in- meio da ação metódica e disciplinada. Dessa nova
teressa pela eficácia das idéias, e não por seu con- maneira de ver o sujeito, desenvolveram-se teorias
teúdo, o qual só é importante na medida em que no campo da filosofia, da ciência, da administração,
explica as razões da sua aceitação coletiva. das técnicas organizacionais, todas destinadas a as-
A obra de Platão é central nesse contexto. segurar seu controle e disciplina. A noção de self
Ele sistematizou uma idéia fundamental para a desprendido, por estar arraigada em práticas sociais
concepção moral do Ocidente, qual seja, a idéia e institucionais, é naturalizada. Essas idéias, germi-
de que o “eu” é ameaçado pelo desejo (em si in- nadas durante séculos de razão calculadora e dis-
saciável), devendo, portanto, ser subordinado e tanciada e da vontade como auto-responsabilidade,
regido pela razão. O cristianismo adotou a pers- não lograram dominar a vida prática dos homens
pectiva platônica da dominância da razão sobre até a grande revolução da reforma protestante. Tan-
as paixões, uma vez que a santidade e o “cami- to para Max Weber, como para Taylor, a reforma
nho da salvação” passaram a ser expressos nos trouxe à tona a singularidade cultural e a moral do
termos da pureza platônica. Santo Agostinho, por Ocidente. A revolução protestante impôs no espa-
seu turno, ao se apropriar da tradição platônica, ço do senso comum e da vida cotidiana essa nova
engendrou uma idéia radical nessa concepção, e noção de virtude ocidental. Daí que, para Taylor, à
essencial para a sociedade ocidental: a noção de noção de self pontual deve ser acrescida a idéia de
interioridade. Foi essa vinculação com a necessi- “vida cotidiana”, no sentido de compreender me-
dade motivada pela religião que tornou a lingua- lhor a configuração moral dominante hoje.
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O tema da vida cotidiana opõe-se à concepção liberal constitucional como tipo de governo). Em
platônica ou aristotélica de exaltação da vida con- linguagem política, essa nova visão de mundo con-
templativa por oposição à vida prática. A revolução sagrar-se-á sob a forma de direitos subjetivos e, de
de que fala Taylor é aquela que redefine a hierar- acordo com a tendência igualitária, definidos uni-
quia social a tal ponto que as esferas práticas do tra- versalmente. Taylor chama o conjunto de ideais
balho e da família, precisamente esferas nas quais que se articulam nesse contexto de princípio da
todos, sem exceção, participam, passam a definir o “dignidade”; por exemplo, a possibilidade de efi-
lugar das atividades superiores e mais importantes. ciência igualitária no que diz respeito aos direitos
Em contrapartida, observa-se o desprestígio das ati- individuais potencialmente universalizáveis. Em
vidades contemplativas e aristocráticas de outrora. A vez da “honra” pré-moderna, que pressupõe distin-
sacralização do trabalho, sobretudo do trabalho ma- ção e privilégio, a dignidade pressupõe o reconhe-
nual e simples, de origem luterana e, depois, gene- cimento universal entre iguais (Taylor, 1994).
ricamente protestante, ilustra a transformação histó- Nesse contexto, interessa-nos menos a ten-
rica de grandes proporções que redefiniu a são tayloriana entre a razão disciplinadora homo-
hierarquia social, fio condutor deste texto. geneizante e a razão expressiva singularizadora
Taylor percebeu que as bases sociais para como o conflito existencial e político por excelên-
uma revolução desse porte tiveram a motivação re- cia da modernidade tardia,7 e mais as repercussões
ligiosa do espírito reformador. Ao rejeitar a noção da discussão acerca dos princípios que regulam a
do sagrado mediado, os protestantes rejeitaram nossa atribuição de respeito e deferência, isto é, a
também toda a hierarquia social ligada a ela. Isso atribuição de reconhecimento social como base da
foi decisivo naquele momento. Como as gradações noção moderna de cidadania jurídica e política. A
da maior ou da menor sacralidade de certas fun- localização e a explicitação desses princípios po-
ções são a base da hierarquia religiosa das socie- dem ajudar a identificar os mecanismos que ope-
dades tradicionais, desvalorizar essa ordem é reti- ram de maneira opaca e implícita na distinção so-
rar os fundamentos da hierarquia social como um cial entre classes e grupos distintos. Pode ainda
todo, tanto na esfera religiosa em sentido estrito ajudar a identificar os “operadores simbólicos” que
como nas outras esferas sob sua influência. Desse permitem a cada indivíduo na vida cotidiana clas-
modo, dado seu potencial equalizador e igualitário, sificar os outros como mais ou menos dignos de
abriu-se espaço para uma nova e revolucionária, seu apreço ou desprezo.
noção de hierarquia social, baseada no self pontual Assim, ao contrário do critério classificatório
tayloriano, ou seja, em uma concepção contingente da civilização hindu, por exemplo, em que o prin-
e historicamente específica de ser humano, presidi- cípio da pureza hierarquiza as castas sociais (We-
da pela noção de cálculo, raciocínio prospectivo, ber, 1998, pp. 1-97), no Ocidente passa a ser o
auto-controle e trabalho produtivo como fundamen- compartilhamento de uma determinada estrutura
tos implícitos tanto da auto-estima como do reco- psicossocial o fundamento implícito do reconheci-
nhecimento social dos indivíduos. mento social. É essa estrutura psicossocial o pres-
Os suportes sociais dessa nova concepção de suposto da consolidação de sistemas racionais-for-
mundo, para Taylor, são as classes burguesas da mais como mercado e Estado e, depois, produto
Inglaterra, dos Estados Unidos e da França, disse- principal da eficácia combinada dessas institui-
minando-se em seguida pelas classes subordinadas ções. A generalização dessas precondições torna
desses países e, mais tarde, por diversos países possível a concepção de “cidadania”, ou seja, um
com desvios e singularidades relevantes (Taylor, conjunto de direitos e deveres no contexto do Es-
1989, pp. 289-290). A concepção do trabalho nes- tado-nação compartilhado por todos numa pressu-
se contexto vai enfatizar não o que se faz mas posição de efetiva igualdade. As considerações de
como se faz (Deus ama advérbios). O vínculo so- Taylor sobre a “dignidade”, como fundamento da
cial adequado às relações interpessoais passa a ser auto-estima e do reconhecimento social do indiví-
de tipo contratual (e, por extensão, a democracia duo, remetem, portanto, à relação entre o compar-
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tilhamento de uma economia emocional e moral de articulação de suas lutas políticas,8 temos em
contingente à possibilidade de reconhecimento Bourdieu uma sofisticada análise da forma opaca
social para indivíduos e grupos: para que haja efi- e refratada que a dominação ideológica, masca-
cácia legal da regra de igualdade é necessário que rando seu caráter de classe, assume na moderni-
a percepção da igualdade na dimensão da vida dade tardia. A perspectiva de Bourdieu permite,
cotidiana esteja efetivamente internalizada. acredito, ir além de um conceito de reconheci-
No entanto, neste nível de abstração, não mento que assume, pelo menos tendencialmente,
fica claro na reflexão de Taylor de que modo essa como realidade efetiva a ideologia da igualdade
nova hierarquia se torna eficaz como base da clas- prevalecente nas sociedades centrais do Ociden-
sificação social e do valor diferencial entre indiví- te. Esse ponto de partida parece-me também fun-
duos e classes sociais. Portanto, para adensar a damental, ainda que com modificações importan-
discussão deste ponto específico, as investigações tes no seu instrumental teórico, para uma análise
de Pierre Bourdieu são, a meu ver, imprescindíveis da modernidade periférica.
no sentido de pensar o reconhecimento social, pro- Em contrapartida, a genealogia da hierarquia
duzido e implementado institucionalmente como implícita que comanda nosso cotidiano, desenvol-
núcleo mesmo de possibilidade do estabelecimen- vida de forma soberana por Taylor, ajuda a escla-
to de distinções sociais a partir de signos sociais recer o calcanhar de Aquiles de todo o argumen-
opacos perceptíveis por todos de maneira pré-refle- to de Bourdieu. Afinal, Bourdieu, ao se concentrar
xiva. Para ambos os autores, a singularidade da apenas no aspecto instrumental da disputa por po-
sociedade moderna se dá precisamente pela pro- der relativo entre as classes em luta por recursos
dução de uma configuração formada por ilusões escassos, não percebe que essa mesma luta se dá
do sentido imediato e cotidiano, que Taylor deno- em um contexto intersubjetivamente produzido, o
mina “naturalismo”, e Bourdieu, doxa. Tais ilusões que mantém sua contingência e, com isso, a ne-
produzem um “desconhecimento específico” dos cessidade de seu aperfeiçoamento crítico, mas re-
atores acerca de suas próprias condições de vida. tira, ao mesmo tempo, o dado arbitrário de mera
Apenas uma perspectiva hermenêutica, genética e imposição de poder do mais forte. A teoria do re-
reconstrutiva, ainda de acordo com eles, poderia conhecimento pode, nesse sentido, dar conta do
restabelecer as efetivas, ainda que não transparen- mecanismo generativo do “consenso normativo
tes, precondições da vida social na sociedade mo- mínimo” compartilhado intersubjetivamente e que,
derna. No entanto, o desafio aqui é o de articular, na realidade, contextualiza e filtra as chances rela-
sistematicamente, também as unilateralidades de tivas de monopólio legítimo na distribuição dos
cada uma das perspectivas estudadas, de modo a recursos escassos pelas diversas classes sociais em
torná-las operacionais no sentido de permitir com- disputa em uma determinada sociedade; mecanis-
preender a maneira peculiar de como moralidade mo esse secundarizado e não devidamente tema-
e poder se vinculam no mundo moderno, e sobre- tizado por Bourdieu. Apesar da sua unilateralida-
tudo no contexto periférico. de, no entanto, a contribuição deste autor para
A união das perspectivas de Taylor e Bour- uma compreensão da forma ideológica específica
dieu parece-me sob vários aspectos interessante. à modernidade tardia, seja central, seja periférica,
Diria mesmo que elas se completam ao desenvol- parece-me fundamental.
verem aspectos que suprem deficiências impor- O próprio Taylor, em seu texto “To follow a
tantes de uma e outra. Se falta a Taylor uma teo- rule” (1993), oferece uma interessante visão da
ria contemporânea da luta de classes, uma vez aproximação entre as duas perspectivas que pre-
que o autor mantém o ponto de vista de um inte- tendemos conjugar aqui. Ele, na realidade, aproxi-
lectual norte-americano ou europeu do final do ma Bourdieu e Wittgenstein tendo em vista um as-
século XX, quando as sociedades centrais, supos- pecto essencial de sua própria teoria, a saber, a
tamente pacificadas dos conflitos de classe mais noção de “articulação”. Taylor afirma: “Se Wittgens-
virulentos, estariam entrando em uma nova fase tein nos ajudou a quebrar a servidão filosófica do
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riadas maneiras. A idéia de criar um tipo transclas- como tal por Bourdieu. Isso permite que ele pense
sista foi um desiderato perseguido de forma cons- as relações entre as classes dominantes e domina-
ciente e decidida, e não deixado a uma suposta das como relações especulares, reativas e de soma
ação automática do progresso econômico. Assim, zero. A radical contextualidade de seu argumento o
esse gigantesco processo histórico homogeneiza- impede de perceber a importância de conquistas
dor, aprofundado posteriormente pelas conquis- históricas desse tipo de sociedade, como a france-
tas sociais e políticas da própria classe trabalhado- sa, as quais se tornam evidentes em comparação
ra, pode ser entendido como um processo em com sociedades periféricas, como a brasileira, em
larga escala de aprendizado moral e político de que tal consenso inexiste. Portanto, quando chamo
profundas conseqüências. Evidentemente, não a generalização das precondições sociais, econômi-
equalizou as classes sociais em todas as esferas da cas e políticas do sujeito útil, “digno” e cidadão, no
vida, mas sem dúvida generalizou e expandiu sentido tayloriano de ser reconhecido intersubjeti-
concepções fundamentais em torno do ideal de vamente como tal, de habitus primário, é para dife-
igualdade para as esferas civis, políticas e sociais, renciá-lo analiticamente de duas outras realidades
como analisou Marshall em seu célebre texto. também fundamentais: o habitus precário e o que
Precisamente esse processo histórico de gostaria de denominar habitus secundário.
aprendizado coletivo não foi adequadamente te- O habitus precário seria o limite do habitus
matizado por Bourdieu no seu estudo empírico primário em sentido descendente, ou seja, aquele
acerca da sociedade francesa. Ele representa o que tipo de personalidade e de disposição de compor-
gostaria de denominar consolidação de um “habi- tamento que não atende às demandas objetivas
tus primário”, de modo a chamar atenção a esque- para que um indivíduo ou um grupo social possa
mas avaliativos e disposições de comportamento ser considerado produtivo e útil em uma socieda-
objetivamente internalizados e incorporados, no de moderna e competitiva, podendo gozar de re-
sentido bourdieusiano do termo, que permitem o conhecimento social com todas as dramáticas
compartilhamento da noção de “dignidade” no conseqüências existenciais e políticas aí implica-
sentido tayloriano. É essa “dignidade”, efetivamen- das. Para alguns autores, mesmo em sociedades
te compartilhada por classes que lograram homo- afluentes como a alemã, já se observam hoje seg-
geneizar a economia emocional de todos os seus mentos de trabalhadores e de indivíduos de bai-
membros numa medida significativa, que me pa- xa renda que vivem do seguro social, apresentan-
rece ser o fundamento do reconhecimento social do justamente os traços de um habitus precário
infra e ultra jurídico, o qual, por sua vez, permite (Bittlingmayer, 2002, pp. 225-254), uma vez que o
a eficácia social da regra jurídica da igualdade, e, habitus primário tende a ser redefinido segundo
portanto, da noção moderna de cidadania. É esta novos patamares adequados às recentes transfor-
dimensão da “dignidade” compartilhada, no senti- mações da sociedade globalizada e da nova im-
do não-jurídico de “levar o outro em considera- portância do conhecimento. Contudo, como ana-
ção”, denominado por Taylor (1986, p. 15) de res- lisarei adiante, essa definição só adquire o
peito atitudinal, que tem de estar disseminada de estatuto de um fenômeno de massa permanente
forma efetiva na sociedade para que se possa vis- em países periféricos como o Brasil.
lumbrar concretamente a dimensão jurídica da ci- O que denomino habitus secundário tem a
dadania e da igualdade garantida pela lei. Vale a ver com o limite do habitus primário em sentido
pena reiterar: Para que haja eficácia legal da re- ascendente, ou seja, com uma fonte de reconheci-
gra de igualdade é necessário que a percepção da mento e respeito social que pressupõe, no sentido
igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja forte do termo, a generalização do habitus primá-
efetivamente internalizada. rio para extensas camadas da população de uma
É essa dimensão, a qual exige, portanto, um determinada sociedade. Nesse sentido, o habitus
efetivo consenso valorativo transclassista como secundário já parte da homogeneização dos prin-
condição de existência, que não foi percebida cípios operantes na determinação do habitus pri-
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mário e institue, por sua vez, critérios classificató- premia a capacidade de desempenho objetiva,
rios de distinção social a partir do que Bourdieu mas também legitima o acesso diferencial perma-
chama de “gosto”. Porém, para uma problematiza- nente a oportunidades na vida e à apropriação de
ção mais adequada, a determinação conceitual bens escassos (Kreckel, 1982, p. 98). Apenas a
dessa diferenciação triádica da noção de habitus combinação da tríade torna o indivíduo um “cida-
deve ser acoplada à discussão tayloriana das fon- dão completo” (Vollbürger) e também reconhecí-
tes morais ancoradas institucionalmente no mun- vel, pois somente por meio da categoria do “tra-
do moderno, seja no centro, seja na periferia. balho” é possível assegurar sua identidade,
Como a categoria de habitus primário é a mais bá- auto-estima e legitimação social. Nesse sentido, o
sica, pois é a partir dela que se torna compreensí- desempenho diferencial no trabalho tem de se re-
vel seus limites “para baixo” e “para cima”, deve- ferir a um indivíduo e só pode ser conquistado
mos nos deter ainda na sua determinação. Afinal, por ele próprio. Apenas quando essas precondi-
as pessoas não são aquinhoadas eqüitativamente ções estão dadas é que o indivíduo pode obter sua
com o mesmo reconhecimento social por sua “dig- identidade pessoal e social de forma completa.
nidade de agente racional”. Essa dimensão não é Isso explica por que uma dona de casa, por
tão “rasa” quanto sugere a simples dimensão polí- exemplo, passa a ter um status social objetivamen-
tica dos direitos subjetivos universalizáveis e inter- te “derivado”, ou seja, sua importância e reconheci-
cambiáveis. A esfera jurídica da proteção legal é mento sociais dependem de seu pertencimento a
apenas uma das dimensões – apesar de funda- uma família ou a um “marido”. Ela se torna, nesse
mental – desse processo de reconhecimento. sentido, dependente de critérios adscritivos, já que
Se é o trabalho útil, produtivo e disciplinado no contexto meritocrático da “ideologia do desem-
que parece estar por trás da “avaliação objetiva do penho” não possuiria valor autônomo (Kreckel,
valor relativo” de cada indivíduo nesta dimensão, 1982, p. 100). A atribuição de respeito social nos
então aquilo que camufla as desigualdades e que papéis de produtor e cidadão passa a ser mediada
subjaz à noção de “dignidade” do agente racional pela abstração real já produzida pelo mercado e
deve se manifestar mais facilmente nesta mesma pelo Estado nos indivíduos pensados como “supor-
dimensão. Reinhard Kreckel (1992) chama de te de distinções” que estabelecem seu valor relati-
“ideologia do desempenho” a tentativa de elabo- vo. A explicitação de Kreckel acerca dessas precon-
rar um princípio único, para além da mera pro- dições é essencial, pois é necessário não apenas
priedade econômica, a partir do qual se constitue fazer referência ao mundo do mercado e da distri-
a mais importante forma de legitimação da desi- buição de recursos escassos como perpassado por
gualdade no mundo contemporâneo. A idéia sub- valores (cf., por exemplo, Nancy Fraser, 1997a),
jacente a esse argumento é a necessidade de um mas também explicitar que valores são esses.
“pano de fundo consensual” (Hintergrundkon- Afinal, o poder legitimador do que Kreckel
sens) acerca do valor diferencial dos seres huma- denomina “ideologia do desempenho” irá determi-
nos, de tal modo que possa existir uma efetiva – nar aos sujeitos e aos grupos sociais excluídos de
ainda que subliminarmente produzida – legitima- imediato da dimensão competitiva pelo desempe-
ção da desigualdade. Sem isso o caráter violento e nho diferencial, em virtude da falta de pressupos-
injusto da desigualdade social se manifestaria de tos mínimos para uma competição bem-sucedida,
forma clara, a olho nu. a ausência de reconhecimento social e auto-esti-
Para Kreckel, a ideologia do desempenho ma. A “ideologia do desempenho” funcionaria, as-
baseia-se na “tríade meritocrática” – qualificação, sim, como uma espécie de legitimação subpolítica
posição e salário. A qualificação, que reflete a im- incrustada no cotidiano, refletindo a eficácia de
portância do conhecimento com o desenvolvi- princípios funcionais ancorados em insituições
mento do capitalismo, é o aspecto mais relevante não transparentes, como é o caso do mercado e
que condiciona os outros dois. Trata-se de uma do Estado. Ela é intransparente posto que aparece
ideologia, uma vez que não apenas estimula e à consciência dos indivíduos no dia-a-dia como se
A GRAMÁTICA SOCIAL DA DESIGUALDADE BRASILEIRA 89
fosse um efeito de princípios universais e neutros, cala. A linha divisória passou a ser traçada entre
abertos à competição meritocrática. Creio que essa os setores “europeizados” – aqueles que conse-
idéia ajuda a conferir concretude ao conceito de guiram se adaptar às novas demandas produtivas
“fonte moral”, elaborado por Taylor a partir da no- e sociais, lembrando que esse processo implica a
ção de self pontual, embora seu poder ideológico importação de instituições européias como “artefa-
e produtor de distinções não tenha sido explicita- tos prontos”, no sentido weberiano, e, portanto, a
mente tematizado por este autor. importação da visão de mundo subjacente a elas –
Na reconstrução que estou propondo, ao de- e os setores “precarizados”, os quais tenderam,
finir a ideologia do desempenho como um meca- por seu abandono, a uma cada vez maior e per-
nismo legitimador dos papéis de produtor e cida- manente marginalização.
dão, o que se equivale ao conteúdo do habitus Com a designação do termo “europeu”, eu
primário, é possível compreender melhor seu limi- não estou me referindo, vale a pena esclarecer, à
te “para baixo”, ou seja, o habitus precário. Assim, entidade concreta “Europa”, nem muito menos a
em uma sociedade capitalista moderna se o habi- um fenótipo ou tipo físico, mas ao lugar e à fonte
tus primário implica um conjunto de predisposi- histórica de uma concepção de ser humano cultu-
ções psicossociais que reflete, na esfera da perso- ralmente determinada e cristalizada na ação empí-
nalidade, a presença da economia emocional e rica de instituições, como o mercado competitivo
das precondições cognitivas para um desempenho e o Estado racional centralizado, as quais, a partir
adequado ao atendimento das demandas (variá- da Europa, se expandiram por todo o mundo, em
veis no tempo e no espaço) do papel de produtor, todos os seus rincões e cantos, inclusive a Améri-
com reflexos diretos no papel do cidadão, a au- ca Latina. A “europeidade”, mais uma vez, está
sência dessas precondições implica a constituição sendo usada aqui como referência empírica de
de um habitus marcado pela precariedade. uma hierarquia valorativa peculiar, que pode, por
Nesse sentido, habitus precário pode se refe- exemplo, como no caso do Rio de Janeiro do sé-
rir tanto a setores mais tradicionais da classe traba- culo XIX, ser personificada por um “mulato”. Esse
lhadora de países desenvolvidos e afluentes (Ale- critério transformar-se-á na linha divisória que se-
manha, por exemplo), como aponta Uwe para o cidadão (habitus primário) do “subcidadão”
Bittlingmayer (2002, p. 233) – incapazes de aten- (habitus precário). Em sociedades periféricas mo-
der as novas demandas por contínua formação e dernizadas de maneira exógena, como a brasilei-
flexibilidade da assim chamada “sociedade do co- ra, é o atributo da “europeidade” que se constitui-
nhecimento” (Wissensgesellschaft), a qual exige, rá no critério por excelência de segmentação
atualmente, uma ativa acomodação aos novos im- social entre indivíduos e classes sociais classifica-
perativos econômicos –, como à secular “ralé” ru- dos e desclassificados.9
ral e urbana brasileira. Nos dois casos, a formação Como vimos, o princípio básico do consenso
de todo um segmento de indivíduos inadaptados – transclassista é o do desempenho e da disciplina
fenômeno marginal, em sociedades desenvolvidas; (fonte moral do self pontual para Taylor); portanto
fenômeno de massa, em sociedades periféricas – é a aceitação e a internalização generalizada desse
resultado de mudanças históricas, implicando a re- princípio fazem com que a inadaptação e a margi-
definição do que estou chamando habitus primá- nalização de certos setores sejam percebidas como
rio. No caso alemão, a disparidade entre habitus um “fracasso pessoal”, tanto por aqueles que se en-
primário e habitus precário é causada pelo au- contram incluídos, como pelas próprias vítimas da
mento de demandas por flexibilização, o que exi- exclusão. É também a centralidade universal do
ge uma economia emocional peculiar. princípio do desempenho, com sua conseqüente
No caso brasileiro, o abismo foi criado já no incorporação pré-reflexiva, que faz com que a rea-
limiar do século XIX, com a re-europeização do ção dos inadaptados ocorra num campo de forças
país, e se intensificou a partir de 1930, com o iní- que se articula precisamente em relação ao tema
cio do processo de modernização em grande es- do desempenho: positivamente, pelo reconheci-
90 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 54
ca (Idem, p. 384). Nesta dimensão do habitus se- lidade, punido de acordo com a lei. Se essa cena
cundário não me parece existir qualquer diferença fosse transposta para a realidade brasileira, as
relevante entre as sociedades modernas do centro chances de a lei ser efetivamente aplicada neste
e as da periferia. Nessa dimensão da produção de caso seria, ao contrário, baixíssima.11 Isso não sig-
desigualdades, ao contrário do que proclama a nifica que as pessoas não se importem de alguma
ideologia da igualdade de oportunidades nos paí- maneira com o ocorrido. O procedimento policial
ses avançados, os dois tipos de sociedade encon- é geralmente aberto e segue seu trâmite burocrá-
tram-se no mesmo patamar. tico, mas o resultado é, na grande maioria dos ca-
A distinção fundamental entre esses dois ti- sos, a simples absolvição ou o estabelecimento de
pos de sociedade parece-me localizar-se na ausên- penas dignas de mera contravenção.
cia de generalização do habitus primário, ou seja, Com certeza, na dimensão infra e ultra jurídi-
do componente responsável pela universalização ca do respeito social compartilhado socialmente, o
efetiva da categoria de produtor útil e de cidadão. valor do brasileiro pobre “não-europeizado” – ou
Em todas as sociedades que lograram homogenei- seja, aquele que não compartilha da economia
zar de maneira transclassista, este aspecto funda- emocional do self pontual, criação cultural contin-
mental, tratou-se de um objetivo perseguido e es- gente da Europa e América do Norte – é compa-
tabelecido na forma de uma reforma política, rável ao que se confere a um animal doméstico, o
moral e religiosa de grandes proproções, não dei- que caracteriza objetivamente seu status subhu-
xada ao encargo do “progresso econômico”. Os mano. Existe, em países periféricos como o Bra-
great Awakenings dos séculos XVIII e XIX nos Es- sil, toda uma classe de pessoas excluídas e des-
tados Unidos conseguiram levar à fronteira e ao classificadas, posto que não participam do
Sul escravista a mesma semente moral e fervoro- contexto valorativo de fundo – o que Taylor cha-
samente religiosa das treze colônias originais (Bel- ma de “dignidade” do agente racional –, primeira
lah, 1975). As poor laws inglesas podem também condição de possibilidade para o efetivo compar-
ser compreendidas como uma forma autoritária de tilhamento, por todos, da idéia de igualdade nes-
forçar os inadaptados da revolução industrial à sa dimensão fundamental para a constituição de
adoção dos requisitos psicossociais da sociedade um habitus que, por incorporar as características
que então se criava. Também na França, como disciplinarizadoras, plásticas e adaptativas básicas
mostra de modo exemplar o livro clássico de Eu- para o exercício das funções produtivas no con-
gen Weber, cujo título Peaseants into Frenchmen texto do capitalismo moderno, podemos denomi-
(1976) já denota o processo de transformação so- nar habitus primário.
cial de homogeneização, que é o pressuposto da Permitam-me tentar precisar ainda melhor
eficácia social da noção de cidadania. essa idéia central para meu argumento neste en-
Um exemplo concreto talvez ajude a esclare- saio. Falo de habitus primário, já que se trata efe-
cer o que tenho em mente quando procuro ressal- tivamente de um habitus no sentido que essa no-
tar a importância desse aspecto para uma percep- ção adquire em Bourdieu. São esquemas
ção adequada daquilo que é específico nas avaliativos compartilhados objetivamente, embora
sociedades modernas central e periférica. Desse opacos e insconscientes, que guiam nossa ação e
modo, se estou certo, seria a efetiva existência de nosso comportamento efetivo no mundo. É ape-
um consenso básico e transclassista – representa- nas esse tipo de consenso, como que corporal,
do pela generalização das precondições sociais pré-reflexivo e naturalizado, que pode permitir,
que possibilitam o compartilhamento efetivo, nas para além da eficácia jurídica, uma espécie de acor-
sociedades avançadas, do que estou chamando de do implícito, em que alguns estão acima da lei,
habitus primário – que faz com que, por exemplo, como sugere o desenrolar daquela cena de atro-
um cidadão alemão ou francês de classe média ao pelamento no Brasil. Existe uma espécie de rede
atropelar por negligência um compatriota prove- invisível que une desde o policial na abertura do
niente da classe baixa seja, com altíssima probabi- inquérito até o juiz na sentença final, passando
92 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 54
qualificam os indivíduos e os grupos sociais pre- bora de forma subliminar e não transparente,
carizados como subprodutores e subcidadãos, e como a forma peculiar com que esses signos opa-
isso, sob a forma de uma evidência social insofis- cos adquirem visibilidade social, ainda que de
mável tanto para os privilegiados como para as modo pré-reflexivo. Esse ponto de vista permite
próprias vítimas da exclusão – é um fenômeno de ainda discutir a especificidade das sociedades pe-
massa e justifica minha tese de que a produção so- riféricas, ao analisar a desigualdade, a complexida-
cial de uma “ralé estrutural” é o que diferencia de e a dinâmica que lhes são peculiares, sem ape-
substancialmente esses dois tipos de sociedades. lar para essencialismos culturalistas ou explicações
Essa circunstância não elimina a existência, personalistas, algumas de nova roupagem como as
nos dois tipos de sociedade, da luta pela distinção, abordagens “hibridistas”, que são obrigadas a de-
baseada no que chamo de habitus secundário. fender a existência de um núcleo pré-moderno
Isso diz respeito à apropriação seletiva de bens e quando analisam as causas das mazelas sociais
recursos escassos, e constitue contextos cristaliza- nessas sociedades. O anacronismo desse tipo de
dos e tendencialmente permanentes de desigual- análise, que nunca enfrenta teoricamente a ques-
dade. Mas a consolidação efetiva, em grau signifi- tão central de explicitar de que modo os princí-
cativo, das precondições sociais que permitem a pios “híbridos” se articulam, parece-me evidente.13
generalização de um habitus primário nas socieda- No entanto, o Estado e o mercado não são as
des centrais torna a subcidadania, como fenôme- únicas instituições fundamentais das sociedades
no de massa, circunscrita apenas às sociedades modernas. Habermas (1975) apresenta a esfera
periféricas, o que marca sua singularidade e cha- pública como a terceira grande instituição da mo-
ma a atenção para o conflito de classes específico dernidade, destinada precisamente a desenvolver
da periferia do capitalismo. a crítica reflexiva e as possibilidades de aprendiza-
O esforço dessa construção múltipla de ha- do coletivo. No entanto, como o próprio Haber-
bitus serve para ultrapassar as concepções subje- mas aponta, uma esfera pública efetiva pressupõe,
tivistas da realidade, que a reduzem a interações entre outras coisas, um mundo da vida “racionali-
face a face. A situação descrita a propósito do zado”, ou seja, uma efetiva generalização do habi-
exemplo do atropelmento seria explicada, dessa tus primário em suas virtualidades de comporta-
perspectiva, pelo paradigma personalista hibridis- mentos público e político. Isso implica que, no
ta.12 Em outras palavras, as “relações pessoais” do caso do Brasil, por exemplo, a esfera pública seria
infrator de classe média constituiriam o suporte tão segmentada internamente quanto o Estado e o
para sua impunidade. Esse é um exemplo típico mercado. Esse aspecto vai de encontro a certas
do despropósito subjetivista de interpretar socie- análises excessivamente otimistas acerca das vir-
dades periféricas, complexas e dinâmicas, como a tualidades dessa instituição fundamental entre nós.
brasileira, como se o papel estruturante coubesse Porém, as sociedades modernas, mais uma
a princípios pré-modernos – por exemplo, o capi- vez, sejam centrais ou periféricas, também desen-
tal social em relações pessoais. Nesse terreno, não volvem “imaginários sociais” mais ou menos explí-
há qualquer diferença entre países centrais e pe- citos e refletidos, para além da eficácia subliminar
riféricos. Relações pessoais são importantes na do aparato institucional típico do que denomino
definição de carreiras e chances individuais de as- “ideologia espontânea do capitalismo”. Certamen-
cenção social tanto num caso, como no outro. En- te, esses imaginários possibilitam a produção de
tretanto, nos dois tipos de sociedade, os capitais identidades coletivas e individuais a cada contex-
econômico e cultural são estruturantes, o que não to cultural ou nacional (Taylor, 2003). Quando
é válido para o capital social de relações pessoais. pensamos no imaginário social da sociedade bra-
Se minha análise estiver correta, o esquema sileira, constatamos que sua versão mais definitiva
interpretativo que proponho permite explicitar e duradoura se formou com a consolidação de
tanto a hierarquia valorativa e normativa subjacen- uma nation building sedimentada pelo Estado
te ao funcionamento do mercado e do Estado, em- corporativo e arregimentador de 1930. Nesse sen-
94 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 54
tido, a ideologia explícita apenas corrobora e jus- de ser gente humana, que tem sua vertente tanto in-
tifica a dimensão implícita da “ideologia espontâ- tersubjetiva, na noção de personalismo, como insti-
nea”, constituindo as condições específicas do tucional, na noção de patrimonialismo.
imaginário social brasileiro. Gilberto Freyre, que Para os meus objetivos, no entanto, o funda-
se não foi certamente o iniciador, já que muito an- mental é que essa ideologia explícita se articula com
tes dele essa construção simbólica vinha se cons- o componente implícito da “ideologia espontânea”
tituindo e ganhando contornos mais ou menos das práticas institucionais importadas e operantes
claros, foi o grande formulador da versão definiti- também na modernidade periférica, construindo um
va dessa ideologia explícita, que se tornou a dou- contexto extraordinário de obscurecimento das cau-
trina de Estado, passando a ser ensinada nas esco- sas da desigualdade, seja para os privilegiados, seja,
las e disseminada nas mais diversas formas de e muito especialmente, para as vítimas desse proces-
propaganda estatal e privada, a partir de 1930. so, com conseqüências para a reflexão teórica e para
14
Segundo Freyre, a singularidade de nossa cul- a prática política. Este, parece-me, é o ponto central
tura é a propensão para o encontro cultural, para a quando se discute a questão da naturalização da
síntese das diferenças, para a unidade na multipli- desigualdade, abissal como ela é, entre nós.
cidade. É por isso que somos únicos e especiais no
mundo. Devemos, portanto, ter orgulho e não ver-
gonha de sermos “mestiços”; o tipo físico funciona- Notas
ria como um referente de igualdade social e de um
tipo peculiar de “democracia”. Uma maior afinida- 1 Uma excelente exposição da pré-história, desenvol-
de com a doutrina corporativa que passa a imperar vimento e contradições internas ao paradigma da
a partir de 1930, em substituição ao liberalismo an- teoria da modernização pode ser encontrada em
Wolfgang Knöbl (2001).
terior, é difícil de ser imaginada. Essa visão hoje faz
parte de nossa identidade individual e coletiva. To- 2 A interpretação dominante considera o processo de
dos nós “gostamos” de nos ver dessa forma; a ideo- modernização brasileiro como endógeno, tendo
logia adquire, assim, um aspecto emocional incom- São Paulo como núcleo. Confunde-se aqui causa e
resultado. Para uma crítica em detalhe a esse respei-
patível com uma ponderação mais racional, o que
to, ver Souza (2003)
cria dificuldade para quem se propõe a problema-
tizar essa verdade tão agradável aos nossos ouvi- 3 O fato de o Brasil ter sido o país de maior cresci-
dos. O poder de influência desse imaginário coleti- mento econômico do mundo entre 1930 e 1980,
sem que as taxas de desigualdade, marginalização e
vo é impressionante.
subcidadania tivessem sido alteradas significativa-
A partir de Freyre, essa maneira de entender a mente, deveria ser um indicativo evidente do enga-
sociedade brasileira tem uma história de glória. Pelo no dessa pressuposição.
conceito de “plasticidade”, importado diretamente de
4 Ver sobre esse tema o clássico trabalho de Bellah
Freyre, tal concepção passa a ser central em todo o
(1985) e a coletânea de Eisenstadt (1968).
argumento do homem cordial de Sérgio Buarque de
Holanda, alicerce de sua visão do personalismo e do 5 Não admira que até uma teoria crítica como a ha-
patrimonialismo, que representam a singularidade bermasiana, que admite esse tipo de construção,
perceba os conflitos sociais preferencialmente ape-
valorativa e institucional da formação social brasilei-
nas no front entre sistema e mundo da vida, e não
ra. Sérgio Buarque torna-se o criador da auto-inter- mais no interior das realidades sistêmicas. Ver a crí-
pretação dominante dos brasileiros no século XX. No tica de Joahannes Berger (1986).
contexto deste ensaio, convém destacar a idéia do
6 O mesmo acontece com a noção, meramente descri-
homem cordial reproduzindo a essencialização e in-
tiva, de “carisma”. Como não existe a pressuposição
diferenciação características da noção de hibridismo de “sentidos coletivos” inarticulados, os quais cabe-
e de singularidade cultural como uma unidade subs- ria ao líder articular e conferir uma direção própria,
tancializada. O homem cordial é definido como o o vínculo do líder com seus seguidores torna-se
brasileiro de todas as classes, uma forma específica “misterioso” e passa a depender da suposição de
A GRAMÁTICA SOCIAL DA DESIGUALDADE BRASILEIRA 95
existência, por parte da população, em atributos ex- 13 A esse respeito, ver Souza (2000, esp. pp. 183-204).
tracotidianos ou mágicos da personalidade do líder.
14 Ele explica, também, o fato de que o potencial de in-
7 Esse aspecto foi desenvolvido de forma polêmica e surreição da ralé durante todo o século XIX até hoje
estimulante, servindo de pano de fundo para uma se reduza a rebeliões localizadas e passageiras – que-
gramática das lutas políticas contemporâneas a par- bradeiras, arrastões e violência pré-política – em
tir dos pólos de distribuição e reconhecimento, em que a articulação consciente de seus objetivos ja-
Fraser (1997b). Para os aspectos problemáticos en- mais chega a ocorrer.
tre as dimensões individuais e coletivas do tema do
reconhecimento, ver Benhabib (1999, pp. 39-46).
8 Para uma crítica das posições de Taylor e de Fraser, BIBLIOGRAFIA
ver Honneth (2001, pp. 52-53).
BELLAH, Robert. (1992), The broken covenant:
9 A discussão acerca da especificidade da moderniza-
American civil religion in time of trial.
ção brasileira, levada a cabo em detalhe em Souza
(2003), não poderia ser feita no espaço restrito des-
Chicago, University of Chicago Press.
te ensaio. _________. (1985), Tokugawa religion: the cultu-
10 Axel Honneth, em sua interessante crítica a Bour- ral roots of modern Japan. Nova York,
dieu, tende a rejeitar in toto o conceito de habitus, Free Press
dado o componente instrumental e utilitário que o
BENHABIB, Seyla. (1999), Kulturelle Vielfalt und
perpassa. Ao fazer isso, no entanto, Honneth corre
Demokratische Gleichheit. Frankfurt,
o risco de “jogar a criança fora junto com a água
suja do balde”, como os alemães gostam de dizer Fischer.
em um provérbio popular, pois o que me parece BERGER, Joahannes. (1986), “Die Versprachli-
importante é, precisamente, reconectar o conceito chung des Sakralen und die Entsprach-
de habitus a uma instância moral que permita ilu-
lichung der Ökonomie”, in Hans Joas e
minar, nas dimensões individual e coletiva, além do
Axel Honneth (orgs.), Kommunikatives
dado instrumental que é irrenunciável, o tema do
aprendizado moral. Ver Honneth (1990). Handelns: Beiträge zu Jürgen Haber-
mas, Theorie des kommunikativen han-
11 Este exemplo poderia ser, no caso brasileiro, facil- delns, Frankfurt, Suhrkamp.
mente multiplicado. Há, inclusive, casos notórios de
discriminação de classe amparados por estatuto le- BITTLINGMAYER, Uwe. (2000), “Transformation der
gal – como no caso da prisão especial para os por- Notwendigkeit: prekarisierte habitusfor-
tadores de diploma universitário – e não apenas men als Kehrseite der Wissensgesells-
exemplos retirados efetivamente do cotidiano, e chaft”, in Uwe H. Bittlingmayer, Rolf Eic-
que se impõem apesar da regra legal inclusiva. O kelpasch et. al., Theorie als Kampf? Zur
objetivo principal deste texto é precisamente escla-
politischen Soziologie Pierre Bourdieus,
recer o por quê e como se dá a sobreposição da re-
Opladen, Leske und Budrich, pp. 225-254.
gra social da desigualdade em relação à regra legal
da igualdade no caso brasileiro. BOURDIEU, Pierre. (1984), Distinction: a social
12 Na versão, por exemplo, de DaMatta (1978). Cabe critique of the judgement of taste. Cam-
esclarecer – o que talvez não tenha feito em outros bridge, Mass., Harvard University Press.
momentos – que em minha polêmica contra o per-
_________. (1990), The logic of praxis. Stanford,
sonalismo assumo como interlocutor principal Ro-
Stanford University Press.
berto DaMatta porque reconheço a importância de
sua obra e o considero nosso intérprete mais sofis- DAMATTA, Roberto. (1978), Carnavais, malan-
ticado e sistemático das últimas décadas. Sua atua- dros e heróis. Rio de Janeiro, Zahar.
lização do ponto de partida personalista articula fa-
tos observáveis com uma explicação dos EISENSTADT, Shmuel. (1968), The protestant ethic
mecanismos societários profundos que a explicam, and modernization: a comparative
o que é um desempenho raro. view. Nova York, Basic Books.
96 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 54
Este artigo pretende fundamentar This article aims at establishing a Cet article propose une nouvelle
uma alternativa teórica acerca dos theoretical alternative on the themes approche théorique de la construc-
temas da construção social da subci- of the social construction of the so- tion sociale de la sous citoyenneté et
dadania e da naturalização da called sub-citizenship as well as the de la naturalisation de l’inégalité dans
desigualdade no contexto de naturalization of unevenness in le contexte de sociétés périphériques,
sociedades periféricas como a peripheral societies such as the comme c’est le cas de la société
brasileira. Para isso, são aproveitadas Brazilian one. Both the discussions brésilienne. Pour cela, l’auteur se
de maneira seletiva e pessoal, no about social recognition and the fonde, de façon subjective et person-
contexto do debate sociológico e theories about unevenness that nelle, dans le contexte du débat soci-
filosófico-social contemporâneo, as emphasize its social and cultural ologique, philosophique et social
discussões acerca do reconhecimen- components are used in a selective contemporain, sur les discussions à
to social e de teorias sobre a and personal way in the context of propos de la reconnaissance sociale
desigualdade que enfatizam seu the sociological and contemporary et des théories sur l’inégalité qui met-
componente sociocultural. O objeti- social-philosophical debate. The tent l’accent sur la composante socio-
vo é elaborar uma concepção teórica objective is the elaboration of an culturelle. L’objectif est de proposer
alternativa, tanto em relação às abor- alternative theoretical conception une conception théorique alternative
dagens personalistas, patrimonialistas related to the personalist, patrimona- de ces phénomènes, aussi bien en ce
e “hibridistas” desses fenômenos, list, and hybrid approaches to such qui concerne les abordages person-
paradigmas intimamente relaciona- phenomena, paradigms intimately nalistes, ceux fondés sur le patri-
dos entre si e ainda dominantes entre related to one another and still pre- moine ou, encore, ceux qui sont
nós, como em relação às percepções eminent among us, as well as to the hybrides, c’est-à-dire, qui prennent
conjunturais e pragmáticas que per- conjunctural and pragmatic percep- en compte ces deux systèmes. Ces
dem o vínculo com qualquer reali- tions that have lost connection to any phénomènes constituent des para-
dade mais ampla e totalizadora. other wider and totalizing reality. digmes intimement liés entre eux et
toujours dominants entre nous
comme, par exemple, par rapport
aux perceptions conjoncturelles et
pragmatiques qui perdent le lien avec
toute réalité plus ample et
englobante.