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O REGRESSO DO JORGE
"O que eu desejo é uma esquerda que também seja portadora de uma mensagem
espiritual, que vá além da política quotidiana e dos factos brutos, atingindo os corações
dos seres humanos"
1. O romance "O Nome da Rosa" (1984) de Umberto Eco foi um livro de culto nos anos
oitenta. Um cientista contemporâneo recebe por acaso as notas de Adso de Melk, um
monge do século XIV, e começa a traduzi-las. Adso partiu com o seu mestre, o
franciscano Guilherme de Baskerville, a fim de preparar um encontro entre as partes
desavindas, os minoritas e os enviados do papa, num mosteiro do Norte de Itália. Ali
deparam com uma misteriosa sucessão de assassínios; Guilherme e o seu noviço são
encarregues pelo abade de esclarecer o assunto, o que faz com que os preparativos do
encontro passem para segundo plano. Guilherme tenta resolver o caso com
racionalidade e argúcia. Por último, porém, todas as suas inteligentes construções e
combinações se revelam erróneas. Os assassínios não obedecem a nenhuma lógica, não
se lhes vislumbra qualquer sentido intrínseco: " (…) mas quando ele finalmente
encontra o assassino, já é tarde. Como o mundo não tem nenhuma ordem, o
esclarecimento do caso só pode apresentar uma ordem apenas aparente (literária), não
podendo evitar de qualquer maneira que apesar do esclarecimento (ou como sua
consequência?) ao sétimo dia viesse o Anticristo com fogo e fumo, conforme a profecia,
e ‘graças a um excesso de virtude, as forças do inferno’" (Eco, 1994, texto de badana).
Este romance de Eco pode ser considerado tipicamente pós-moderno; com múltiplos
planos, níveis de significação, referências e citações da história da literatura. Não cabe
aqui aprofundar estas características em toda a sua complexidade. Para nós é decisiva a
mensagem pós-moderna do romance, nomeadamente que a verdade não existe ou que,
quando muito, há uma "verdade do riso" (cf. de Lauretis, 1986, em especial p. 253 s.).
Neste contexto interessa sobretudo a figura do Jorge, que talvez possa ser considerada a
personagem mais negativa da acção e o ponto de repulsa em Eco. Assim, por exemplo,
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Eco fá-lo dizer: "Ouvi pessoas rirem sobre coisas ridículas e recordei-lhes um princípio
da nossa regra. É que, como diz o salmista: se o Homem tem de se abster das boas falas,
devido ao voto de silêncio, tanto mais tem de evitar as falas ruins. E, tal como existem
falas ruins, também há imagens ruins. E assim são as que espalham mentiras sobre as
formas da criação, representando o mundo do avesso, como o contrário daquilo que é e
tem de ser e permanecerá pelos séculos dos séculos até ao fim dos tempos..." (Eco,
1984, p. 106). E mais: "Os caminhos do Anticristo são longos e retorcidos (…) Ele já
vem aí! Não percais os vossos últimos dias com o riso sobre os monstrinhos tolos de
pêlo malhado e rabos enrolados! Aproveitai os últimos sete dias!" (Eco, 1984, p. 111). É
com estas palavras que o beneditino Jorge se dirige ao franciscano Guilherme: "Mas vós
vindes de uma ordem diferente, onde (...) até a alegria mais despropositada é encarada
com indulgência". Estas palavras eram uma referência às "opiniões correntes entre
beneditinos sobre os grilos de São Francisco de Assis, como explica Adso (…)" (Eco,
1984, p. 106).
Dito isto, o romance de Eco não deixa de visar a sociedade moderna: "Quem piscar um
olho e olhar o livro como num espelho distante, facilmente confundirá os hábitos dos
monges e os chapéus dos cardeais do tempo de Guilherme com as insígnias partidárias e
as fardas dos coronéis de data mais recente" (Eco, 1984, texto de badana). Segundo
Zima também poderíamos dizer por Eco e com Roland Barthes: "Não é a verdade que
conduz a minha mão, mas sim o jogo, a verdade do jogo " (Barthes, cit. seg. Zima, p.
337).
A meu ver, o grande êxito deste romance de Eco não pode ser explicado pelo simples
facto de apresentar sob muitos aspectos – com e apesar de toda a sua erudição –
elementos pop (cf. de Lauretis, 1986), mas por ter tocado num nervo da sua época. Na
segunda metade dos anos setenta / início dos anos oitenta o capitalismo entrou num
novo estádio. É o tempo da revolução microelectrónica e da transição do fordismo para
o pós-fordismo, neoliberalismo e capitalismo de casino. Iniciou-se uma computorização
e mediatização abrangentes da sociedade. É nos anos oitenta que começa a loucura
bolsista e a caça ao dinheiro fácil. Na sociologia falava-se da individualização e
pluralização dos projectos de vida e dos mundos da vida. Era a época de uma "nova
superficialidade" (Frederic Jameson). A sociedade, com o chão a fugir-lhe cada vez
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mais debaixo dos pés, sofreu então mutações sucessivas, para uma sociedade da
vivência e do divertimento. Era só rir nos anos oitenta, e sobretudo nos anos noventa!
Foi o tempo da Loveparade, da Techno, dos eternos jogos de sorte (não só na televisão),
do humorista Guido Horn, da banda "Die Doofen" [Os Parvos] (quem é que se
recorda?), dos políticos em traje de design etc. Ao jogo da bolsa correspondia o jogo
dos signos nas teorias culturalistas pós-modernas.
Simultaneamente, porém, Eco talvez também tivesse correspondido, até certo ponto, a
uma necessidade pós-moderna e ocidental de segurança na insegurança, ao tornar
possível o mergulho na história cristã e ocidental: em mais nenhuma ocasião o mundo
dos monges eruditos medievais, como geralmente o imaginamos enquanto "real", deve
ter sido construído de modo tão autêntico e palpável; desde o alguidar de sangue de
porco, passando pelo roubo de um coração de boi cru, pouco apreciado pelos monges,
até às cenas de sexo entre noviço e mestre na abadia, como igualmente todos os
envolvimentos homossexuais possíveis entre os doutos monges no seu todo e outras
coisas que tais. E talvez resida aqui também o segredo do sucesso de Eco,
nomeadamente no "Regresso do Jorge" subrepticiamente já preparado pelo próprio Eco,
como entretanto se torna visível; e isso apesar de o romance pretender pôr em questão
toda e qualquer autenticidade e, de resto, por exemplo de Lauretis não dever andar
muito longe da realidade, quando escreve sobre o título: "O termo ‘Rosa’, (…)
escolhido por Eco, está de tal modo sobrecarregado de alusões literárias, remissões e
conotações que já nem as tem, e parece remeter para algo que Baudrillard designou por
‘implosão’ do significado: uma rosa é uma rosa é uma rosa é um buraco negro" (de
Lauretis, 1986, p. 259 s.). " Am I That Name", perguntava Denis Rylie referindo-se à
identidade feminina, e a irrelevância do nome tornou-se, pelo menos daí em diante, um
programa de desconstrução no seio do feminismo (Riley, 1988). As mulheres ou, com
elas, a sexualidade, de resto têm em Eco uma existência extremamente marginal; e,
quando aparece, a mulher é construída pelos dogmáticos como impulsiva, semelhante a
bruxa e pervertida, o que, em Eco, precisamente ao tornar transparente uma tabuização
da heterossexualidade, talvez remeta para uma crítica das normas da heterossexualidade
compulsiva.
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contra o dogmatismo do total e do totalitário, na perspectiva central de redes sistémicas
abertas e recorrentes. Ao mesmo tempo, a capacidade para a diferença torna-se o ponto
decisivo para a sobrevivência (…) Sob a perspectiva da história mundial não existe
alternativa à política de diferenciação e abertura (…) Assim, na confrontação dos
sistemas globais, está ditada uma sentença que não deixa margem para dúvidas. O Leste
não foi capaz de apresentar realizações comparáveis às do Ocidente, resume Lyotard.
Ao mesmo tempo a abertura de um dos sistemas exclui por princípio que o outro se
relacione consigo mesmo. Ela implica, no confronto das diferenças, o desmoronamento
(sangrento ou não) das formas de organização fechadas" (Rauschenbach, 1993, p. 71). É
o tempo em que, também com recurso a reflexões desta índole, o capitalismo é
definitivamente elevado a princípio ontológico e até, de modo nada disfarçado, a quase-
religião.
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3. Se, em especial na primeira metade dos anos noventa, ainda tudo parecia indicar que
vivíamos numa época de guerras civis mundiais e incontroláveis, ao mesmo tempo
manifesta-se entretanto a tendência oposta e ainda assim complementar, que por
princípio é sempre inerente ao pensamento moderno: onde reina o caos, tem de ser
imposta a ordem, com o que se cria ainda mais caos (veja-se por exemplo o Iraque)! No
fundo há muito que era previsível: o triunvirato de Carl Schmitt de estado de excepção –
soberania – decisão renasce alegremente das cinzas. Tal expressa-se nas "guerras de
ordenamento mundial" (Kurz, 2003) contra a Somália, a Jugoslávia, o Afeganistão, o
Iraque etc., tal como também em espaços sem lei, com Guantanamo em posição
proeminente. Para os que ali estão não existe fundamento nem controlo legal, eles
encontram-se simplesmente expostos à "dominação fáctica" (Giorgio Agamben).
Assim, também Niels Werber escreve sobre o novo livro de Joschka Fischer, "O
Regresso da História": "No 11 de Setembro de 2001 finda o fim da História, uma vez
que esta teria ‘atacado como um relâmpago, soterrando todos esses sonhos de um
mundo mais pacífico após o fim da guerra fria, todas as esperanças de um dividendo de
paz e todas essas belas ilusões do fim da política, da retirada do Estado, sob os
escombros das torres gémeas derrubadas em Nova Iorque’. A História é interessante
quando ataca como um relâmpago. Carl Schmitt falaria aqui do kairos, da ocorrência
súbita de um acontecimento no tempo linear do cronos. O fraquinho de Fischer pelos
relâmpagos da decisão de Zeus caracteriza-o como pensador político que se inscreve na
tradição do decisionismo" (Niels Werber in: Frankfurter Rundschau de 15.6.2005).
Embora Fischer exija que os USA, "na sua missão, não rebentem a escala de valores que
propagam" – fundamentalmente o que está em causa para ele é uma "nova ordem
mundial" e a questão de como esta deverá parecer: "A resposta a esta questão dependerá
muito decisivamente da perspicácia e da coragem das decisões estratégicas do
Ocidente" (Fischer, cit. seg. Werber, ibidem).
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Oskar Negt diz a propósito, e com inegável acerto: "No seio da esquerda está virulenta
esta mentalidade de exclusão e com ela um potencial de extrema-direita, porque os
problemas da sociedade do trabalho não são encarados na sua dimensão fundamental...
Exigem-se ‘decisões claras’ e define-se, em alinhamento perfeito com Carl Schmitt, um
culpado, o inimigo. Pretende-se que esta imagem do inimigo reforce a coesão social. E
precisamente esta definição do inimigo é segundo Schmitt – e agora também segundo
Lafontaine – um elemento essencial da política. Mas, mesmo que seja um antigo
esquerdista a defender esta posição, tal em nada afecta o substrato de extrema-direita da
mesma" (entrevista com Oskar Negt in Die Zeit 26/2005). No entanto Negt não vê ou
não quer ver que Schröder, com a sua concepção do "estado activador" e o pacote de
reformas Hartz IV, no fundo, mais ainda operou uma intervenção na linha de Schmitt.
Assim se quer obviar ao "estado de excepção" da precarização do trabalho assalariado,
não só em termos ideológicos, mas também na prática da administração do estado de
emergência, pondo-se termo ao riso (em muitos casos apenas suposto) dos
"desempregados felizes" (cf. Rentschler, 2004).
Também na área da "segurança interna" a ordem deve ser estabelecida a um novo nível,
pelo menos desde o 11 de Setembro, invocando-se ameaças de terror do islamismo
radical e actos de terror de facto na maioria das grandes cidades ocidentais. Uma
suspeita já deverá ser motivo suficiente para o internamento do suspeito; esta é, no
fundo, uma medida da legislação para o estado de emergência, que já pressupõe
implicitamente um estado de excepção. No Reino Unido, a seguir aos atentados
terroristas no metro de Londres, a polícia não tardou em balear zelosamente um turista
brasileiro, com base em suspeitas sem fundamento. Em França, o governo, no âmbito
dos riots de migrantes de Outubro e Novembro de 2005, foi ao ponto de proclamar o
estado de emergência manifesto. Aliás, e não em último lugar, a "segurança interna"
também é sacrossanta no cerne do interior. Há muito que serviços de segurança
(privados) vigiam empresas e outras instituições; também o medo da criminalidade do
dia-a-dia está a aumentar a olhos vistos. Agora também se pretende banir esta
criminalidade do dia-a-dia, que deverá banalizar-se ainda mais em consequência das
crescentes dificuldades de reprodução que se fazem sentir na sociedade, com recurso a
meios autoritários, quer isso traga algum alívio ou não. Precisamente por é assim e em
última análise cada um está ameaçado, o resultado da assimilação ideológica irracional
cada vez mais é a exclamação: há que acabar com eles! Assim sendo, há muitas
indicações de estarmos a caminho de uma era anarco-autoritária. O "direito do cidadão à
tortura", que desde sempre é estruturalmente inerente ao direito (civil, burguês), no
fundo também é agora reclamado em relação à própria pessoa, sob uma forma à medida
dos tempos que correm (Haarmann, 2005).
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"coragem para educar", da segunda metade dos anos setenta e início dos anos oitenta,
uma catolicização do espírito do tempo no que diz respeito à educação; e não sob a
forma de uma insistência conservadora na personalidade disciplinada do fordismo, mas
como reacção à percepção de que vivemos numa "era do narcisismo" (Christopher
Lash) ou da personalidade-borderline (cf. Hanzig-Bätzing/Bätzing, 2005). A
personalidade tornada anárquica tornou-se um problema. Assim sendo, terapias
familiares, no sentido de um psico-guru autoritário como Bert Hellinger
("Familienaufstellung"), que fazem uma propaganda aberta às hierarquias, condizem
plenamente com os tempos que correm.
No entanto seria um erro supor que o sujeito individualizado do bem-estar (por exemplo
da proveniência de Beck), que nada tem senão a tormenta da escolha, tenha sido tornado
livre (nem que fosse para ser caçado [vogelfrei]) pura e simplesmente num sentido
agradável, saciado pelo consumo. Jörg Ulrich demonstra que já em Beck o enunciado de
Schmitt sobre a decisão do soberano foi simplesmente deslocado para o indivíduo. A
propósito ele cita Beck/Beck-Gernsheim: "O que acaba por se anunciar no decurso do
desenvolvimento é o fim das imagens do ser humano fixas e preestabelecidas. O ser
humano torna-se (no sentido radicalizado de Sartre) uma escolha das suas
possibilidades, um homo optionis. A vida, a morte, o sexo, a corporalidade, a
identidade, a religião, o casamento, a parentalidade, os laços sociais – tudo passa a estar
sujeito a decisão, por assim dizer até às letras miudinhas, tudo tem de ser decidido, uma
vez despedaçado em opções" (Beck/Beck-Gernsheim, 1994, p. 16 s.).
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Muito no sentido de Beck, ainda no final dos anos noventa foram anunciadas uma
"mentalidade de bobo" e uma verdade jocosa correspondente. Assim o autor do livro
"Os Bobos. O estilo de vida da nova elite", David Brooks, escreve: "Eles são a nova
elite da era da informação (…) A sua vida combina o que até à data tinha sido
considerado inconciliável – o bem-estar e o carreirismo da burguesia com a atitude
pouco convencional e o individualismo dos boémios" (Brooks, 2001, texto de badana).
"Os homens de negócios Bobos", prossegue, "introduziram um estilo de trabalho que
aposta na criatividade, nas hierarquias horizontais, na flexibilidade e na abertura. O
êxito incomparável das (…) tecnologias da informação a que se assistiu na última
década é pura e simplesmente uma evidência. Também a vida intelectual sofreu alguns
melhoramentos. Certamente que se perdeu uma certa intensidade (…) Em contrapartida,
os intelectuais de carreira de hoje têm os dois pé assentes na terra, e esta ‘ligação à
terra’ acarreta terem ideias sobre o mundo menos despropositadas que os seus colegas
do passado. Já são poucos os que se deixam iludir por utopias, como por exemplo o
marxismo, ou veneram revolucionários como Che Guevara. Em termos genéricos,
intelectuais sensatos e cosmopolitas deverão ser melhores que intelectuais apaixonados,
mas destrutivos " (Brooks, 2001, p. 192f.).
O Yuppie (e não apenas o teutónico) passou aqui, portanto, por uma metamorfose
"quase como um relâmpago" (cf. a este respeito já: Scholz, 1995). O indivíduo
decisionista de Beck pelos vistos não está bem consigo próprio e agora, com a situação
socio-económica a tornar-se crítica, exige espontaneamente "decisões" e uma "ordem"
renovada de um "superior", que afinal volta a ser pensado como masculino,
contrastando em certa medida com uma Angela Merkel, cuja eleição como híbrido
feminino de Helmut Kohl por alguma razão já tinha sido questionada, não por acaso nas
suas próprias fileiras, mesmo antes da tomada de posse do seu governo.
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(Detlef Clausen), volta-se cada vez mais a procurar segurança na comunidade e numa
perspectiva centralista e monista. Neste contexto, a ‘papamania’ provavelmente não se
deve apenas ao carácter de evento mediático, mas tem a sua razão de ser em
necessidades pós-modernas fundamentais de amparo, que entretanto já apresentam um
carácter universal, como mostra por exemplo também o fundamentalismo islâmico.
"Santo, santo, santo", é o brado bárbaro que se eleva de todos os cantos do mundo,
incluindo o próprio Ocidente. E é neste contexto que também Gayatri Charakvorty
Spivak, no fundo uma representante do híbrido pensamento da miscigenação, de repente
redescobre o puro dualismo do "the west and the rest" [o Ocidente e o resto], no
seguimento do 11 de Setembro. Também nesta perspectiva e no sentido de um
pensamento terceiro-mundista, voltam a ser introduzidas imagens claras do inimigo,
sobretudo dos USA (cf. Wolter, 2003).
5. Se, sobretudo nos anos noventa, quase tudo tinha que ser apalhaçado, agora muitas/os
contemporâneas/os engasgam-se com o seu próprio riso; também e não em último lugar
devido ao medo omnipresente da queda material. A "Loveparade" converte-se agora
num dia mundial da juventude de cariz religioso, mesmo que deixe atrás de si um rasto
de preservativos. Jorge está de volta. E é assim que hoje em dia, se se pretende que um
texto suscite interesse, é recomendável introduzir nele de qualquer modo o bom Deus,
independentemente do tema e do conteúdo. Se, no início dos anos noventa, uma pessoa,
antes de mais nada, tinha de contemporizar com o novo jargão (des)construtivista, hoje
começa a ser exigido que se participe na discussão de "Pentateuco", "Katechon",
"demora da parusia" etc.. Ai cabeça coberta de sangue e chagas! - é o que se exclama
sem querer. Evidentemente o que aqui se pretende não é pôr em causa um estudo sério
da teologia com propósitos de crítica social, mas sim uma reinterpretação cristã e
messiânica da crítica social, seja qual for a sua forma.
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simultâneo, deve substituir o proletariado tradicional como "salvador". Todo o livro
"Empire" está escrito numa linguagem profundamente missionária.
E assim não admira que o livro acabe, cheio de pompa kitsch, com uma referência a S.
Francisco de Assis: "Em oposição ao capitalismo que então despontava, Francisco de
Assis negou-se a qualquer tipo de disciplina instrumental, e à mortificação da carne (na
pobreza e na ordem constituída) ele contrapôs uma vida feliz, que congregou todo o Ser
e toda a natureza, os animais, a irmã Lua, o irmão Sol, as aves no campo, as pessoas
pobres e exploradas contra a vontade do poder e da corrupção. Na pós-modernidade
encontramo-nos novamente na mesma situação que Francisco de Assis, e contrapomos à
miséria a alegria do Ser. Nenhum poder conseguirá controlar esta revolução – porque o
biopoder e o comunismo, a cooperação e a revolução, permanecem unidos no amor, na
simplicidade e também na inocência. Aí se revela a facilidade irreprimível e a felicidade
de ser comunista" (Hardt/Negri, 2002, p. 420). Claus Leggewie comenta a propósito:
"Com estas palavras a igreja católica é brilhantemente reabilitada como primeiro
movimento global " (Leggewie, 2003, p. 78). Este autor até diz aperceber-se de um
"exacerbamento católico" do conceito por Hardt/Negri. Assim "se abriu, sob a forma
das igrejas cristãs (…) um novo local de crítica da globalização que, no âmbito da (…)
sistemática subjacente, oscila entre as opções ‘saída’ e ‘lealdade’. Ambas as igrejas
cristãs guardam as suas distâncias para com o complexo económico-científico;
subordinam o mundo do deve e do haver, que gravita em torno de si próprio, a normas
‘do além’, o princípio condutor da maximização de lucros é acoplado a obrigações
sociais" (Leggewie, 2003, p. 84).
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6. Neste contexto, entretanto, também se pode reconhecer no pensamento pós-moderno
uma viragem tendencialmente autoritária para o apóstolo Paulo, que agora por assim
dizer é apresentado como solução tipo deus-ex-machina na peça de teatro da realidade
pós-moderna. Doris Akrap constata no seu texto "Os rebeldes do faz-de-conta": "Na
mesma medida em que minga a consciência política, cresce a necessidade de perceber a
sociedade teologicamente. Por outro lado, este suposto ‘regresso’ da dimensão religiosa
é acompanhado por um decidido interesse da crítica social por uma teologia política que
deverá mobilizar o potencial crítico da ideologia do cristianismo. Para este projecto
trabalha-se sobretudo na reabilitação do apóstolo Paulo, o qual é celebrado como
primeiro teórico do universal. Com o slogan do ‘regresso da política’ pretende-se
realçar precisamente os elementos messiânicos do marxismo. Os adeptos desta corrente,
desta nova teoria da verdade, representam uma espécie de pós-modernidade auto-
reflexiva. Julgam poder formular uma verdade que na sua universalidade contenha todo
o particular. Ao mesmo tempo atêm-se à ideia-base pós-moderna de que qualquer forma
de representação, seja ela um nome, o estado ou o capitalismo, é terrorista, devido às
imanentes inclusões e exclusões arbitrárias, ou à falsa universalidade da abstracção
monetária (!), como o formula o filósofo francês Alain Badiou" (Akrap, 2005).
Akrap detecta esta nova moda de Paulo não só no pensamento de Badiou, mas também
em trabalhos mais recentes de Slavoj Zizek e Giorgio Agamben. Não é aqui o lugar para
nos debruçarmos pormenorizadamente sobre as diferenças entre estes pensadores. O que
nos interessa é o "cerne da ocupação da esquerda com S. Paulo", como Akrap constata
partindo do pensamento de Agamben: nomeadamente "a sua dialéctica da lei e a
resposta niilista à mesma. Paulo declara na Epístola aos Romanos que só devido à
proibição do desejo tinha tido a ideia de desejar, tendo assim já prevaricado contra a lei
do ‘não desejarás’, tornando-se pecador e dando deste modo à lei a possibilidade de se
legitimar. O objectivo da lei consistiria então única e exclusivamente em justificar a sua
própria dominação (!) e em assegurar as relações vigentes. Por isso mesmo, ela também
poderia ser abolida por completo. Tirando esta última consequência, a acepção pauliana
da lei corresponde à definição de Carl Schmitt, segundo a qual o soberano é aquele que
decide sobre o estado de excepção" (Akrap, 2005).
É neste contexto que Badiou reclama agora um "novo Lenine", do qual, a seu ver, o
apóstolo Paulo representa um protótipo. Acresce, diz ele, que o "gesto pauliano" deixa
antever a perspectiva de Che Guevara, nomeadamente a "de que um outro mundo é
possível". Do mesmo modo, também Slavoy Zizek intitula o seu novo livro "A
revolução vem aí". Akrap comenta o feito: "Também poderia ter-lhe chamado ‘O
modelo Paulo com barbicha à Lenine’" (Akrap, 2005). A este propósito também são de
algum interesse os comentários de Anke Deuber-Mankowsky à ideia de Agamben de
"Homo sacer": "Schmittiana é (…) também a interpretação da coincidência do interior
com o exterior, como irrupção da catástrofe, que segundo Schmitt equivale à catástrofe
da vinda do Anticristo (!). Assim, segundo Agamben, a catástrofe da Modernidade é a
consequência da anulação da diferença entre a existência política (bios) e a vida nua
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(zoe) pelo facto de a vida nua – em vez de se distinguir da dimensão política – se tornar
o fundamento da dimensão política no campo" (Deuber-Mankowsky, 2001, p. 107).
Como vemos, Jorge regressa com todo o seu potencial autoritário, precisamente num
pensamento pós-moderno "tornado auto-reflexivo", e não só na figura de um Lenine-
Che Guevara-Paulo pós-moderno, mas também na de um Carl Schmitt, que na negação
e anulação da lei "antiga" cria outra "nova", devendo assim, uma vez mais, instaurar a
ordem – agora no novo nível de derrocada de uma pós-modernidade avançada, que já
não tem nada para rir. Torna-se visível um novo saudosismo de "insígnias partidárias e
fardas de coronel" (Eco, 1984, texto de badana; ver acima). Ao mesmo tempo ocorre
tanto uma salvação paradoxal como – e aqui a minha perspectiva distingue-se da de
Akrap – ao mesmo tempo uma negação autoritária do "faz-de-conta" pós-moderno, da
simulação, do jogo, tratando-se agora do pouco especificado estabelecimento de uma
nova lei, de uma nova verdade/ordem. Carl Schmitt já não é o do contexto fordista e
nacional-socialista, mas actualiza-se. Ao mesmo tempo, Jorge também regressa na
medida em que, depois dos anos 80 e 90 perdidos na brincadeira, agora as questões
existenciais e materiais voltam à ribalta.
7. Quando a "vida nua", em virtude de uma precariedade que se estende por toda a
parte, se torna o foco da consciência e da própria vida, não admira que a economia
política fique de novo "in" e que não se fique assim tão avesso a uma aceitação da
verdade (materialista) como ainda há pouco tempo. Assim, trata-se novamente de
elaborar para si um "conceito" da "coisa"; ao mesmo tempo, porém, deve voltar a haver
ordem onde reina o caos. Procura-se ganhar espaço de manobra a qualquer preço; não
em último lugar na classe média em queda, que, após uma longa ascensão no século
XX, tinha ganho mais forma na senda das tendências de individualização pós-modernas,
para agora ela própria ser posta radicalmente em causa pelo capitalismo de crise.
Precisamente por isso se procura desesperadamente comprimir as novas relações de
crise num velho esquema de classes, mesmo quando as circunstâncias obrigam a que se
pense em modificá-lo. Também aqui se torna visível um momento de afirmação de
identidade autoritária.
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A situação não melhora nada quando os representantes de uma crítica do valor, que
pretensamente transcende este velho esquema, mas é ela própria redutora, tentam
transformar de modo grosseiramente simplificador o trabalho abstracto em inimigo
principal imediato e objectivo, sem determinar criticamente o valor (e muito menos o
valor-dissociação) em toda a complexidade, como categoria da totalidade. Aqui se torna
claro que uma crítica do valor androcêntrica desde sempre trata as contingências,
diferenças etc. apenas como epifenómenos, por oposição à "forma vazia", e castiga
precisamente a consideração dos conteúdos como pensamento positivista (assim por
exemplo em Wedel, 2003). Também isto significa querer "instaurar a ordem", no pleno
sentido de um novo reducionismo do universalismo conceptual, na teoria e na prática.
Pretende-se atingir deste modo novamente os "corações dos seres humanos" (ver a
citação inicial de Konstantin Wecker). Assim sendo, também não admira que, ao lado
da eterna nostalgia marxo-keynesiana, uma "crítica do trabalho" correspondentemente
reducionista entretanto esteja em alta, como esquema de ordem, em manuais científicos
populares e em suplementos culturais burgueses.
O problema, o rigor e a verdade das diferenças ficam agora para trás. Tudo deve ser
medido por uma qualquer bitola, de modo que uma pessoa possa voltar a conhecer a
extensão, sem as conversas fúteis da complexidade. Se já não se pode brincar com as
diferenças (não em último lugar porque vão escasseando as oportunidades de consumo),
ignoram-se, ou então, no contexto da queda da "nova classe média" e por conta do
perigo do terrorismo etc., elas são providas de um augúrio negativo. Neste contexto
também as disparidades sociais, "raça" e sexo têm tendência a desaparecer de novo por
detrás da "questão social", que se pretende tematizar em simplificações esquemáticas da
ordem.
Dito isto também já se pode constatar uma ignorância das diferenças no "Homo sacer"
de Agamben, como refere Anke Deuber-Mankowsky, ainda que ela, como mera
apologista do pensamento do iluminismo, não queira ver que mesmo as posições do
iluminismo também podem acabar à maneira de Carl-Schmitt, veja-se Guantanamo e
outras manifestações da actual administração de emergência democrática. Pressupostas
estas crítica e correcção, Deuber-Mankowsky está certa quando chega à seguinte
conclusão a respeito da argumentação de Agamben: "Com a sua vénia ao poder da
soberania, ao qual como ‘poder supremo’ adjudica a capacidade de ‘se constituir a si e
aos outros como vidas mortais e não vitimáveis’, Agamben reinstala o soberano, que
permanece ominoso, como actor solitário e como motor da história – até que na
modernidade o próprio campo se erga em soberano e apague todas as diferenças!"
(Deuber-Mankowsky, 2003, p. 209).
É sabido que para Agamben o nomos da modernidade não é a prisão, mas o campo,
particularmente o campo de concentração. Sobre isso comenta Deuber-Mankowsky:
"Neste estado de emergência perpetuado segundo Agamben todos nós somos ‘homines
sacri’ virtuais. Todos somos potenciais judias e judeus, que o autor aponta simplesmente
como representação e quase como símbolo da ‘vida nua’, que ‘a modernidade produz
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forçosamente no seu interior’" (Deuber-Mankowsky, 2003, p. 107). A este propósito,
Deuber-Mankowsky constata com todo o acerto que aqui se mostra "mais uma vez
claramente como o pensamento funciona no caso de emergência e para onde conduz.
Assim, a orientação pelo extremo promete a mais alta concreção e ainda assim, como é
claro na generalização banalizante segundo a qual seríamos todos homines sacri em
potência, conduz à abstracção pura e vazia. Como tal, ela não é só uma afronta aos
sofrimentos concretos das vítimas e dos seus parentes. Não só nivela as diferenças entre
as vítimas e os criminosos, entre as testemunhas e os que nasceram depois. Apaga
também as diferenças existentes e que se agravam no âmbito da imposição da
globalização e das tecnologias de reprodução (...) entre pobres e ricos, entre norte e sul,
entre os seres humanos que correspondem à norma e os que se desviam da norma"
(Deuber-Mankowsky, 2003, p. 106). Portanto uma óptima oportunidade para a classe
média em queda, até aos seus elementos precarizados, se estilizar como vítima por
excelência, abstraindo de todas as diferenças históricas e actuais, e transformar esta
imaginação de vítima humana precisamente numa viragem à Carl-Schmitt, para o
estabelecimento da ordem pauliana.
Por isso, o que faz falta, e aqui mais uma vez me refiro à argumentação do meu livro "O
sexo do Capitalismo", é um entendimento não universalista da totalidade do valor-
dissociação, "que (possa) suportar as diferenças (...). A meu ver é só com esta expressão
que se pode abarcar a realidade patriarcal pós-moderna fragmentada, em que de certo
modo a irregularidade se torna regra, as relações tradicionais sofrem erosão, a dimensão
espaço-tempo se altera e, em paralelo a tudo isto, a existência material se vai tornando
cada vez mais insegura. Sem um tal entendimento crítico não-totalitário da totalidade
patriarcal pós-moderna que – de modo aparentemente paradoxal – é necessário
precisamente na época de decadência do patriarcado produtor de mercadorias,
presentemente não se pode esclarecer, nem o que "se passa" no plano do princípio da
forma social, nem o que "se passa" em termos empíricos; e muito menos quais são as
possibilidades de uma (...) superação da socialização negativa do valor-dissociação,
incluindo a dominância heterossexual que lhe está associada. Por outras palavras: para
fazer jus à realidade do patriarcado pós-moderno é necessária uma perspectiva como a
da teoria do valor-dissociação, no sentido de uma categoria histórico-dinâmica que
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deixe espaço ao ‘não-idêntico’, que precisamente hoje quase que volta a ser palpável
também de forma empírica, fazendo neste contexto também jus aos processos pós-
modernos de globalização, sem simultaneamente duplicar uma vez mais sem conceito a
situação caótica pós-moderna, numa elaboração teórica que, nesse caso, ela própria se
asselvaja". Escrevi isto há alguns anos (Scholz, 2000, p. 182). Com "elaboração teórica
que se asselvaja" referia-me a abordagens teóricas fenomenologicamente limitadas, que
de certa maneira permaneciam a pairar à superfície em termos metodológicos e
metódicos, como por exemplo a da sociedade da vivência, do risco, da opção múltipla e
outras que tais, mas igualmente a abordagens pós-modernas e pós-estruturalistas, que,
na esteira da "linguistic turn" [viragem linguística] da esquerda, legitimavam as
contingências, as contradições, as ambivalências, as diferenças etc., ontologizando-as já
por completo no dogmatismo e na afirmação autoritariamente sorridentes de uma falta
de nexo.
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político" – mais ainda num pensamento de direita arqui-reaccionária e entretanto
também até num pensamento de esquerda pós-moderna.
E não há aqui mesmo nada para rir, no sentido do apalhaçamento dos anos noventa. A
forma e o conteúdo não podem ser assim tão simplesmente jogadas uma contra o outro.
"O fun* é um banho de aço", como Adorno já sabia nas "Minima Moralia", o que, no
contexto capitalista, desde sempre remete para uma dialéctica realmente existente e
nada boa entre o jogo e o rigor, entre o laissez faire e o autoritarismo. É precisamente
isso que se torna hoje de novo notório. É a isso que se trata de nos opormos, se
quisermos combater as grandes tendências de barbárie, na linha de um crescente
carregamento de autoridade anárquica da sociedade (mundial).
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