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Universidade Federal da Paraíba

Avaliação para a disciplina Tópicos Especiais em Filosofia – T04


Prof. Dr. Abrahão Costa Andrade
Euclides Barbosa Ramos de Souza

Análise argumentativo-conceitual do tópico “Sartre e a subjetividade: um


individualismo universalista” do texto “Posições antropológicas para introduzir
em filosofia o conceito de povo infinitamente pequeno”

Na busca filosófica para responder a pergunta “que é o ser humano?”, o


professor Abrahão neste texto nos indaga se contemporaneamente ainda faria sentido a
investigação denominada “antropologia filosófica”. Para tal, irá procurar conciliar duas
estratégias metodológicas as quais se mostram igualmente poderosas, a saber, o pensar
o homem a partir de si em relação a um todo (individualismo), sendo este não um ser
abstrato nem, como diria Immanuel Kant, um sujeito transcendental, assim como a
perspectiva contrária do partir de um todo para o homem (holismo), fazendo-o ter
consciência de sua individualidade a qual advém de uma fonte externa (que o inclui).
No presente texto, será analisado criticamente o tópico “Sartre e a subjetividade:
um individualismo universalista”, onde discutiremos os conceitos e as técnicas
argumentativas utilizadas para nos convencer da perspectiva individualista de Jean Paul
Sartre através das palavras do professor Abrahão.
A partir do texto O existencialismo é um humanismo Sartre quer nos demonstrar
duas teses principais. A primeira afirma que a existência precede a essência, isto é, que
seria necessário que houvesse algo para que esse algo fosse algo (o que se diz desse
algo), isto é, ter algum tipo de constituição bem definida que o caracteriza como um
objeto singular.
A primeira reflexão que podemos fazer a partir daí seria realizando um diálogo
do autor com o pensador antigo Aristóteles, cuja diferença essência/acidente,
apresentada principalmente nas obras Metafísica, Categorias e Física, pode ser
facilmente comparada ao que Sartre tenta nos convencer. Aristóteles nos diz que é
necessária uma “substância” essencial na qual tudo que pode vir a acontecer e interagir
com ela imprime em sua estrutura suas “marcas” para, enfim, lhe dar uma nova
configuração. Porém, se essa impressão mudou de alguma forma a substância, então não
se tratava de uma substância, pois esta deve ser a base imutável para a aquisição de
propriedades adicionais, formando assim um ser complexo. Será que para Sartre deve
haver uma substância a qual, ao interagir com o mundo, teria impressa em si acidentes
e, só assim, haveria o que ele chama de essência (ou seja, o que se diz dessa
substância)? Mas, como diz Aristóteles, a substância já deveria ser a essência e o que
lhe acontece depois seriam apenas acidentes os quais seriam irrelevantes para a precisão
do ser acerca do qual se quer falar. Se, por exemplo, um carro é um “veículo automotivo
que se locomove em cima de rodas”, para Aristóteles, o fato de ele ter sofrido um
arranhão, um acidente, não deveria ser levado em consideração para mudar o que se
entende essencialmente por “carro”, que é a descrição acima. Todavia, Sartre toma uma
posição diferente, embora problemática, pois afirma que a essência do carro só seria
mesmo obtida depois de tudo que ele já passou (arranhões, quilômetros rodados,
pessoas que entraram, etc.), ainda que, de alguma forma, existisse “um algo” que viria a
se tornar o tal carro essencial depois de tudo (até o fim da própria existência). Não seria,
inclusive, absurdo dizer que o homem, dessa maneira, nunca pudesse ter consciência
(enquanto vivo) da própria essência.
Se, para sua defesa, ele queira dizer que há uma existência, de modo geral, que
passa a ser as diferentes coisas que conhecemos (carro, casa, ventilador, ser humano),
encaramos dois problemas. Primeiro, um problema lógico, pois ele teria que supor que
“existe uma existência”, o que revela um ciclo vicioso de petição de princípio. O
segundo, mesmo ignorando esse impasse anterior, seria nos explicar como pode haver
um algo genérico sem que possamos dizer qualquer coisa acerca dele (capacidade esta
que só adquiriríamos após os acidentes que a existência sofresse para adquirir uma
essência). O próprio Aristóteles argumenta que se é possível falar acerca de algo, é
porque ele existe e, também, que algo só existe porque é possível falar dele (Fx →
Ex). Ele era essencialmente discordante de Platão, o qual considerava que as coisas (e
suas ideias) existissem por si mesmas num plano suprassensível. O ser humano deveria
dar condição de compreensão do mundo através da linguagem.
De qualquer maneira, se Sartre discorda de Aristóteles também nisso (ou seja, de
que seja possível uma existência sem que se fale algo sobre ela), ele estaria dizendo que
a existência genérica, enquanto unicamente existência (sem qualquer descrição), seria a
única existência possível, uma vez que os acidentes precisariam ser algo de distinto, isto
é, algo com alguma descrição (alguma essência), para poder imprimir na existência
propriedades que gerariam sua essência. Ou seja, considerar esse “limbo” existencial (a
“pura indeterminação” enfatizada por Abrahão) que precede a essência seria impossível,
principalmente se ele quiser que exista algo de distinto, isto é, uma posterior essência.
Do nada, só o nada surge. No fim, não se diria mais do que “a existência é a existência”.
Há quem possa considerar isso como algo que se diga da existência, mas essa posição
tautológica boicota a própria teoria de Sartre quando este de fato não considera que essa
é a constituição efetiva do mundo, pois, afinal, ele diz que existem muitas coisas sobre
as quais é possível falar muitas coisas.
Ainda sobre a primeira tese de Sartre, poderíamos dizer também que a expressão
“a existência precede a essência” não deixa de ser uma essência acerca da existência,
isto é, algo de cunho universal que se fala sobre a existência (que ela precede a
essência). Mais uma vez, Aristóteles procurou ser mais cauteloso quando diz que a
essência das coisas se trata de uma descrição empírica e resumida acerca do objeto em
questão (como no exemplo do carro acima), compreendendo, inclusive, que não seja
possível uma ideia perfeita do objeto, como afirmava Platão, principalmente porque
haveria uma lista infinita de propriedades para caracterizá-lo. Aristóteles como um dos
primeiros cientistas afirmava que depender de uma indeterminação dessas não nos
levaria a conclusões úteis à prática humana. O que nos parece é que Sartre tem a
pretensão ideal de Platão, mas com os propósitos práticos de Aristóteles, revelando as
inconsistências apontadas.
A segunda tese de Sartre diz que o ser humano é responsável por si mesmo, isto
é, pelo o que lhe acontece e pelo o que faz. Para ele, mesmo alguém que nasceu como
escravo teria condições para se libertar. É realmente difícil estabelecer o escopo de
capacidades imaginado por Sartre, visto que dificilmente se suporia que o homem é
responsável pelo vento que colide em sua face. Sabe-se que ele certamente não se refere
aos fenômenos involuntários do corpo (respiração, batimento cardíaco ou mesmo a
fome) nem tampouco a fenômenos naturais nos quais o homem está inserido (como o
fato deste perder átomos do próprio corpo constantemente). Sartre provavelmente se
restringiu às atitudes éticas que dizem respeito à liberdade do homem enquanto sujeito
social, isto é, suas decisões acerca de valores humanos e como ele deve se
responsabilizar (também, como em toda filosofia, de uma certa forma preconceituosa
ele certamente não está considerando como “humanos” aqueles que nasceram com
alguma deficiência mental suficiente para ser incapaz de abstrair um sistema ético de
regras).
Daí decorre duas consequências sobre as quais iremos comentar. A primeira
seria o fato de que se o homem é responsável por todos os acontecimentos (do tipo
mencionado acima) que o afetam (tem-se, portanto, a subjetividade humana), então a
ideia de um ser supremo, Deus, que pudesse interferir e molda seu destino seria
inconcebível. Se a restrição dos acontecimentos fosse realmente dentro do escopo das
próprias leis humanas, de certa forma faria sentido encarar o mundo desta maneira, pois,
afinal, os atos do discurso são feitos por humanos para humanos. O problema disso é
que Deus não poderia se submeter a tal restrição (supõe-se que ele seja onipotente) e,
portanto, Sartre não poderia ser um ateu completo. Além disso, Deus enquanto ideia e
entidade metafísica é a própria necessidade e existência. Dessa maneira, Sartre ainda
teria que lidar com essa noção para sustentar qualquer não existência daquilo que
necessariamente existe (embora o próprio Deus seja contraditório quando, uma vez
sendo tudo que há, deveria também incluir o nada, que faz parte do tudo).
Outra consequência diz respeito à tese de que, dada a ideia do parágrafo anterior,
não poderia haver alguma “moral geral” que estabelecesse exatamente o que é certo e o
errado. Immanuel Kant discordaria, uma vez que na sua obra A Metafísica dos
costumes, sagazmente não traz exatamente uma lista de regras sob as quais os seres
humanos deveriam agir (uma ética), mas afirma que essencialmente (aqui a primeira
discordância com Sartre) nós seríamos regidos por um princípio racional o qual move
nossas decisões através de um imperativo do tipo categórico. Devemos sempre agir
supondo que tal ação se tratasse de uma regra universal. Ou seja, não façamos aos
outros o que não queremos que nos façam. Agir contrário a isso seria irracional e,
portanto, até mesmo não humano.
Em suma, a segunda tese de Sartre dá nome ao livro, a saber, “o existencialismo
é um humanismo”, pois, como diz Abrahão, “não há outro universo senão o universo da
subjetividade humana”. Ou seja, não haveria como conceber qualquer existência que
não fosse aquela que adquire uma essência através das próprias decisões humanas.
Do ponto de vista lógico, Sartre, segundo o professor Abrahão, afirma que essa
segunda tese decorre da primeira. Analisemos: 1. “a existência precede a essência” e 2.
“o existencialismo é um humanismo”. De fato, ao supormos que o conceito de ser
humano é de alguma forma indeterminado (o que não parece fazer muito sentido),
enquanto pura indeterminação, seria quase um sinônimo de existência neste contexto e,
através de suas ações e ações dos outros, compor (precedendo) sua essência (“o ser
humano precede a essência”).
No que concerne ao conceito de liberdade, seria a própria subjetividade do
homem condição para a sua liberdade. É estranho, porém, o trecho do texto que diz “não
posso evitar a possibilidade de a minha escolha ser também a escolha de outros”. Essa
expressão, mesmo enfatizando a importância do indivíduo como condição para a
existência de outros indivíduos (numa relação mútua), traz ao mesmo tempo uma ideia
contrária ao que inicialmente se propunha, pois faz parecer que um indivíduo também
escolhe pelo outro (inclusive, que todo ato de liberdade influencia sempre os outros. Por
causa dessa influência, faz parecer que ao mesmo tempo o indivíduo livre não é livre). É
difícil dizer que a tal postura “individualismo holístico” na verdade não contradiz a tese
que se pretendia sustentar.
Por último poderíamos estabelecer um compartilhamento de pressupostos que
Sigmund Freud, na obra O mal-estar da civilização, faz com Sartre na obra analisada
aqui, que é a de que o ser humano é incapaz de se abster de uma angústia inerente. Mais
uma vez, Sartre parece aderir a mais uma essência do homem. Abrahão até escreve que
“Antes da decisão sou agarrado por um sentimento (...) a angústia”. Ora, se a decisão é
condição necessária e suficiente para se estabelecer uma essência, não poderia haver
algo antes senão a existência (sem levar em conta os problemas acima). Por que então a
angústia estaria antes?
Freud nos diz que a angústia surge quando em algum momento de nossa infância
sentimos a primeira carência, isto é, algum “erro” do cuidador que nos faz perceber a
realidade ao nosso redor (Princípio da Realidade). Da mesma forma, Sartre concorda
que ela surge quando se percebe que não só desejamos, mas somos responsáveis pelo
nosso próprio bem-estar (Princípio do Prazer) e não mais podemos contar, embora
quiséssemos, com as decisões de quem cuidava de nós. Freud, inclusive, afirma que
essa é a origem da ilusão da religião, isto é, a procura de alguém que se responsabilize
por nós. Tal ilusão é exatamente o que diz Sartre e a condena afirmando a não
existência de Deus no que concerne, pelo menos, à influência dele nos fatos que nos
circundam.

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