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ANTITRUSTE

Economia comportamental e análise antitruste


O Homo economicus de cara com o Homo sapiens

VINICIUS MARQUES DE CARVALHO


VITOR JARDIM M. BARBOSA
PAULA PEDIGONI PONCE

02/02/2018 17:15

Crédito: Pixabay

“Um problema importante na teoria econômica tradicional é que os economistas descartam qualquer fator
que não in uenciaria o pensamento de uma pessoa racional. Mas infelizmente para a teoria, muitos
fatores considerados irrelevantes importam. Os economistas criaram um problema para eles mesmos ao
insistir em criaturas míticas conhecidas como Homo economicus. (…) Um Econ não compraria uma
porção maior do que quer que seja que ele irá jantar na terça-feira porque estava com fome no domingo
enquanto fazia as compras. A fome no domingo não deveria ser relevante para a escolha do tamanho da
sua refeição na terça-feira. (…) Para um Econ, o preço pago em um item no passado não é relevante para a
decisão de quanto comer hoje. Um Econ não esperaria ganhar um presente no dia em que, por acaso,
nasceu ou se casou. Qual a diferença de uma data arbitrária? Na realidade, os Econs cariam perplexos
com a própria ideia de presentes, pois saberiam que dinheiro é o melhor presente possível, já que permite
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que a pessoa que recebe compre o que lhe é mais e ciente”.
No último ano, o norte-americano Richard Thaler foi premiado com o Nobel da Economia por suas
contribuições no campo da economia comportamental. Sendo o direito da concorrência um dos
campos com maior in uência – senão o com maior – de conceitos econômicos no arranjo jurídico e
aplicação de normas legais, quais contribuições esse campo de estudo econômico pode trazer ao
antitruste? Como destacado por Stucke há mais de 10 anos, apesar de ser um dos temas mais
discutidos no âmbito do law and economics, poucos artigos sobre economia comportamental se
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relacionavam com o antitruste. Buscaremos aqui fazer alguns apontamentos sobre possíveis
contribuições da economia comportamental para a prática do direito concorrencial.

Em primeiro lugar, é necessário destacar que a teoria econômica clássica parte de pressupostos
básicos, quais sejam: que as pessoas são racionais e tomam as melhores decisões para si com base
nas melhores informações disponíveis. Nessa linha, os indivíduos agiriam de maneira racional ao (i)
estabelecer coerência entre os meios e os ns por ele utilizados e (ii) buscarem o autointeresse de
maneira exclusiva ou (iii) agem de maneira racional considerando todas as variáveis relevantes para as
escolhas econômicas. Em suma, essa teoria assume que os agentes econômicos são (i) atores
racionais com (ii) força de vontade e (iii) interesse próprio.

A economia comportamental expande os limites da análise tradicional e introduz novos elementos para
a compreensão do comportamento dos agentes econômicos, ainda que não seja a única teoria a
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demonstrar as limitações do conceito de racionalidade perfeita atribuído à Escola de Chicago. Em
relação aos três elementos mencionados acima sobre a teoria de racionalidade tradicional, a economia
comportamental desenvolve pelo menos três conceitos: (i) o de racionalidade limitada (bounded
rationality), que trata dos erros de julgamento, (ii) o de força de vontade limitada (bounded willpower), que
trata da falta de paciência e das decisões equivocadas, e (iii) o de autointeresse limitado (bounded self-
interest), que trata dos diferentes objetivos e senso de justiça de cada indivíduo.

A partir desses conceitos, é possível notar como a economia comportamental também pode fornecer
insights que permitam expandir a análise antitruste. A doutrina antitruste tem a difícil tarefa de analisar o
tradeoff entre adotar suposições tradicionais simpli cadas, que podem estar descoladas das
verdadeiras condições do mercado e dos seus agentes, e suposições mais realistas que podem, por seu
turno, tornar a análise antitruste mais complexa e imprevisível, com exames mais casuísticos.

Ao introduzir os conceitos de racionalidade, força de vontade e autointeresse limitados, a teoria


econômica comportamental modi ca a imagem do indivíduo racional, o que afeta a análise do
comportamento de preços – variável central em boa parte das análises antitruste – e dos mercados
relevantes: ao invés de indivíduos estritamente racionais, os agentes possuem particularidades que
afetam suas decisões econômicas, como concepções prévias, conceitos de justiça e incapacidade de
avaliar condições futuras, entre outros. Para que essas variáveis sejam incorporadas na prática
antitruste, Stucke e Reeves sugerem atenção especial a alguns temas tradicionais do direito
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concorrencial.

A análise de barreiras à entrada no contexto de exercício de poder de mercado é um dos campos que
podem ser in uenciados pelos avanços da economia comportamental. A doutrina antitruste neoclássica
pressupõe que mercados com barreiras à entrada reduzidas não são suscetíveis ao exercício de poder
de mercado de maneira prolongada, pois preços supracompetitivos atrairiam agentes racionais visando
à maximização do lucro, que recolocariam o mercado em seu nível de produção e, desse modo, os
preços retornariam a níveis padrão (próximos ao custo marginal). A economia comportamental aponta
dois possíveis problemas dessa interpretação tradicional: excesso de entradas e entradas esparsas. A
primeira ocorreria em mercados em que a entrada é economicamente irracional, mas ocorre mesmo
assim e geralmente vem acompanhada de insucesso. Um exemplo concreto poderia ser a “onda de
doces”, como as paletas, que tiveram um boom de entrada e, posteriormente, níveis elevados de
insucesso. A segunda, por outro lado, ocorreria em situações em que a entrada é economicamente
racional, mas ocorre em níveis reduzidos, em um determinado período de tempo. Interessante notar,
neste ponto, que a autoridade brasileira de defesa da concorrência (“Cade”) confere centralidade às
considerações sobre barreiras à entrada e sobre o histórico de entradas e saídas do mercado.

Outro tema mencionado pelos autores diz respeito à lógica tradicional que justi caria os processos de
concentração econômica, ou seja, que faria com que empresas em busca de maximização de lucros se
unam para gerar e ciências e/ou ganhar poder de mercado. A economia comportamental, por seu turno,
sustenta que muitas fusões falham em alcançar as expectativas que as motivaram. Isso pode tanto
decorrer de informações incompletas e eventos não antecipados (como uma recessão imprevisível),
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como também de biases que distorcem as racionalidades dos agentes.

Um último ponto, porém igualmente relevante, trata do processo de compreensão do comportamento de


consumidores, especialmente quando nos referimos aos mercados de novas tecnologias com uso
intensivo de dados. Além de observações da economia comportamental em relação às formas de
competição não baseada em preço, dados permitem que empresas registrem e analisem a chamada
racionalidade limitada do consumidor e a use em seu favor. Um exemplo seriam empresas de transporte
individual de passageiros que, em razão do volume de dados que dispõem, poderiam, em tese, avaliar a
disposição de determinados consumidores a pagar determinados preços em determinadas
circunstâncias. Isso, por sua vez, pode representar um aumento de barreiras à entrada para os agentes
econômicos sem capacidade de obtenção e processamentos desses dados, e sem capacidade de
predições sobre o comportamento do consumidor (por exemplo, marketing direcionado e compras
impulsivas decorrentes dele).

É necessário destacar que a economia comportamental não se propõe a substituir de maneira integral a
análise antitruste empreendida com base na teoria econômica tradicional. Ainda que a aplicação da
economia comportamental possa ser uma condição necessária para conclusões mais apuradas,
especialmente em mercados novos e dinâmicos, a complexidade de suas ferramentas impõe um
tradeoff entre previsibilidade na análise e aderência a condições mais verdadeiras do mercado que não
deve ser ignorado do ponto de vista da política pública concorrencial. Se a análise caso a caso reduz o
risco de conclusões falso-positivas e falso-negativas, ela também aumenta consideravelmente os
custos para a autoridade.

A despeito da utilização de um ferramental concebido sob a perspectiva econômica tradicional, a prática


concorrencial já superou uma análise pautada exclusivamente em concepções neoclássicas. A
economia comportamental, neste contexto, pode ajudar as autoridades na análise de condutas e
operações de modo a tornar a intervenção antitruste mais precisa. Como bem resumido por Stucke, ao
entender melhor como erramos, talvez possamos encontrar maneiras de melhorar a nós mesmos e a
maneira como interagimos com os outros e, ao fazê-lo, criar regras legais que re itam com mais
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precisão essa compreensão aprimorada.

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1 Artigo do economista Richard Thaler, de 8 de maio de 2015, disponível em:

https://www.nytimes.com/2015/05/10/upshot/unless-you-are-spock-irrelevant-things-matter-in-
economic-behavior.html
2 Maurice E. Stucke. Behavioral Economists at the Gate: Antitrust in the Twenty-First Century, 38 Loy. U.

Chi. L. J. 513, p. 515 (2007).

3 Maurice E. Stucke, Money, Is That What I Want: Competition Policy and the Role of Behavioral

Economics, 50 Santa Clara L. Rev. pp. 893-894 (2010). Disponível em:


http://digitalcommons.law.scu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1052&context=lawreview

4 Reeves, Amanda P. and Stucke, Maurice E. (2011) “Behavioral Antitrust,” Indiana Law Journal: Vol. 86 :

Iss. 4 , Article 7. p. 1553. Disponível em: https://www.repository.law.indiana.edu/cgi/viewcontent.cgi?


article=1005&context=ilj

5 A tradução literal para o português desse termo seria “viés” ou “enviesamento”. Como o termo em

inglês possui um signi cado especí co no estudo da economia comportamental, optou-se por manter a
palavra original em inglês.

6 Reeves, Amanda P. and Stucke, Maurice E. (2011) “Behavioral Antitrust,” Indiana Law Journal: Vol. 86 :

Iss. 4 , Article 7.  P. 1586. “In understanding better how we err, we perhaps can nd ways to improve
ourselves and the way we interact with others and, in doing so, instill rules of law that more accurately
re ect this enhanced understanding.” Disponível em:
https://www.repository.law.indiana.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1005&context=ilj

VINICIUS MARQUES DE CARVALHO – Advogado e professor de direito comercial da USP. Ex-presidente do Cade
VITOR JARDIM M. BARBOSA – Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogado associado
do escritório Vinicius Marques de Carvalho Advogados (VMCA)
PAULA PEDIGONI PONCE – Doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP e advogada do VMCA

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