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MIRIAN THEYLA RIBEIRO GARCIA

Exercícios de ser humano


A poesia e a infância na obra de Manoel de Barros

Brasília
2006
MIRIAN THEYLA RIBEIRO GARCIA

Exercícios de ser humano


A poesia e a infância na obra de Manoel de Barros

Dissertação apresentada ao
Curso de Mestrado em Teoria
Literária e Literaturas, da
Universidade de Brasília – UnB,
como requisito para a obtenção
do grau de Mestre em Literatura
Brasileira, elaborada sob a
orientação do Professor Doutor
Robson Coelho Tinoco.

Universidade de Brasília
Instituto de Letras
2006

2
Para Mariana, Erinaldo, Madalena e Milton.
Faróis, bússolas e porto da minha existência e
cujo apoio,
imprescindível, dá razão ao meu viver.
Para meus alunos que, mesmo sem saber, dão lições de vida a cada dia.
Em nome de todas as crianças que sofrem, dia após dia, com a
brutalidade, negligência e violência de adultos cujo dever principal
deveria ser o de resguardá-las de todo o mal.
A Manoel de Barros.

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AGRADECIMENTOS

A realização deste Mestrado não contou com apoio institucional de


nenhum tipo, nem da Universidade de Brasília e nem da Secretaria de
Educação, onde trabalho como professora, com carga horária semanal de
40 horas.

Desta forma, o apoio de algumas pessoas foi essencial para a conclusão de


mais essa etapa.

Ao meu orientador, professor Doutor Robson Coelho Tinoco, pela


orientação e paciência com as quais, já há alguns anos, tenho contado.

À Dora e Nívea, funcionárias do Departamento de Teoria Literária e


Literaturas da Universidade de Brasília, e amigas do coração, cuja
paciência, dedicação e doçura deixam marcas e fazem a diferença.

Aos meus colegas de trabalho na Secretaria de Educação que, em maior ou


menor grau, torceram pelo meu sucesso e me apoiaram com seu incentivo,
exemplo e companhia. Espero que vocês também possam buscar um algo
mais para contrapor o desestímulo, cansaço e desânimo que, por vezes,
nos assombram em nossa jornada de educadores em um país que não
prioriza a educação.

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RESUMO

O presente trabalho realiza um estudo dos poemas que compõem os


livros Exercícios de ser criança e O Fazedor de amanhecer do poeta
brasileiro Manoel de Barros. Esses poemas são considerados a partir da
principal temática que os aproxima, a da infância. Neste sentido, são
evidenciados pontos de aproximação entre a poesia e a infância enquanto
dimensões tipicamente humanas. Como suporte para a análise do tema
proposto buscou-se identificar características que aproximam a infância e
a poesia, como um todo, e formas como a infância é apresentada nos
poemas de Manoel de Barros. Para tanto, serão consideradas questões
como a da importância da imagem, da imaginação, historicamente
considerada, e da imaginação dinâmica e criadora, proposta por Gaston
Bachelard. As análises dos poemas que compõem os livros selecionados
buscam evidenciar o destaque que a infância — em toda a obra, mas de
forma mais acentuada nos mais recentes títulos — assume na poética de
Manoel de Barros.

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ABSTRACT

This work does a study about the poems from the books Exercícios
de ser criança and Fazedor de amanhecer by the brazilian poet Manoel de
Barros. These poems were considered from the mainly subject that bring
them closer: the childhood. In that sense, the points that bring closer
childhood and Poetry will be considered as typical human subjects. This
work quests to recognize characteristics that bring closer childhood and
Poetry and the ways as the childhood is displayed in the Manoel de
Barros’ poems. With that intent, it will be considered the importance of
the image, the imagination (in a historical context) and the dynamic and
creative dimensions of the imagination proposed by Gustav Bachelard.
The analyses of the selected poems quest to evidence the highlight that
childhood take on the Manoel de Barros’ Poetry.

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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................... pág. 09

CAPÍTULO I: A poesia e a infância........................................................ pág. 20

1.1 Poesia e infância: uma ligação primitiva ......................................... pág. 21

1.2 Imagem: linguagem comum à poesia e à infância ............................ pág. 26

1.3 Imaginação: resistência histórica .....................................................pág. 33

1.4 Bachelard: a imaginação (criadora, dinâmica e poética)

e a infância ............................................................................................ pág. 39

1.5 Falar de, falar para: a poesia e a criança .......................................... pág. 47

CAPÍTULO II: O poeta: vida e obra ...................................................... pág. 52

2.1 Breve apanhado bibliográfico ......................................................... pág. 53

2.2 Características poéticas ................................................................... pág. 55

CAPÍTULO III: A infância na poesia ..................................................... pág. 61

3.1 Exercícios de ser criança, exercícios de ser poeta............................. pág. 62

3.2 A menina avoada ............................................................................. pág. 73

3.3 O fazedor de amanhecer .................................................................. pág. 81

4. CONCLUSÃO ................................................................................ pág. 106

5. Bibliografia..................................................................................... pág. 109

6. Anexo 1 – Referência à obra de Saul Steinberg feita

por Ziraldo na capa do livro O fazedor de amanhecer........................... pág. 121

7. Anexo 2 – Introdução a um caderno de apontamentos..................... pág. 122

8. Anexo 3 – Reprodução da pintura “Auto retrato”, de Van Gogh..... pág. 125

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Há um menino, há um moleque
que vive dentro do meu coração.
Toda vez que o adulto balança
ele vem para me dar a mão.
(Bola de meia, Milton Nascimento)

Creio que as pessoas estão precisadas de poesia.


Ela tem o dom de humanecer. É por isso que o
fazendeiro de versos [Manoel de Barros] continua
plantando suas palavras.

Luciete Bastos (Fazendeiro de poesias, s/d)

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INTRODUÇÃO

No Ensaio intitulado Do esbarro entre poesia e pensamento (Pucheu,


s/d), a respeito da obra poética de Manoel de Barros, Alberto Pucheu diz que há
grande dificuldade em tentar-se interpretar a obra deste poeta. Essa
“dificuldade” é igualmente referida por Renato Suttana (s/d), que afirma:

A poesia de Manoel de Barros (...) tende a ser uma poesia de sentido precário,
no que diz respeito à possibilidade de veicular “mensagens” suscetíveis de
interpretação ou paráfrase. (...) Afastemos, portanto, qualquer pretensão de
aplicar rótulos à sua poesia. (s/p)

A complicação que advém da tentativa de interpretar a obra poética de


Manoel de Barros, entretanto, não se deve ao hermetismo dos textos em questão
— que, em sua maioria, utilizam elementos nos quais há valorização de temas
elementares, como os relativos à natureza. A dificuldade de abordagem, que
Pucheu gentilmente chama de “aproximação”, reside não no objeto, mas nos
métodos com que se tenta interpretá-lo. Ainda mais se for levado em
consideração que alguns destes métodos apresentam-se pouco sutis e com
pretensão de tentar reduzir obras poéticas de grande envergadura, como é a de
Manoel de Barros, a análises que se resumem, de acordo com o ensaísta, ao
“esquartejamento de conceitos já conhecidos e gastos, tornando estéril o que
antes era vitalizado.” (PUCHEU, s/d). Para Müller JR. (2003, p. 279), os
críticos da obra de Manoel de Barros agem como investigadores de polícia que
analisam e decompõem matematicamente os poemas e nada encontram. Desta
forma, consoante Muller JR., na obra de Barros nem tudo é como aparentemente
possa parecer:

Será preciso talvez começar a olhar para a obra de Manoel de Barros como um
todo articulado em torno de um projeto tenaz e insistente, mas cujas fronteiras
(semânticas, discursivas) se movem e se deslocam constantemente, obrigando
o leitor a um processo também constante de rememoração e ressignificação.
(MULLER JR., 2003, p. 279)

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Com efeito, a obra poética é um tipo de obra que, devido a seu caráter
artístico, obriga o leitor a constantemente renovar sua forma de perceber, pois,
normalmente, apresenta estrutura complexa onde podem se relacionar, por
paradoxais que sejam, elementos que à primeira análise seriam contraditórios,
tais como: a razão e a emoção, a objetividade e a subjetividade, o intelecto e a
emoção, dentre outros. Tais elementos coexistem no objeto artístico e o
enriquecem, de forma a permitir ao artista compor e recompor a realidade de
acordo com sua sensibilidade e sua forma de perceber as coisas. Mas esta
pluralidade impede que estudos de caráter mais normativo (por vezes
caracterizados por descrições de caráter restritivo) alcancem o objeto artístico
em sua essência.
Especificamente no caso da poesia, o processo é ainda mais peculiar já
que esse tipo de produção repele, por sua própria natureza intimamente
relacionada à sensibilidade e criatividade humanas, esquemas padronizados que
tentem diminuí-la sob o argumento de interpretá-la. Além disso, é importante
ressaltar que a poesia apresenta um dinamismo interno muito grande,
caracterizado, sobretudo, por sua capacidade plurissignificativa. Este
dinamismo impede até mesmo a concepção de analogia da obra aos signos que a
veiculam, pois o poema transcende o discurso. Consoante Khéde (1986, p.128),
o poema nasce da palavra, mas a transcende.
Mas, ainda que a poesia seja complexa e não possa ser reduzida a
formulações que busquem exprimir por conceitos intelectuais aquilo que possui
natureza predominantemente subjetiva, as abordagens interpretativas são
válidas. Principalmente se funcionarem como instrumentos que permitam que as
pessoas se aproximem da obra poética, buscando evidenciar, à luz da razão,
quais elementos caracterizam uma obra como objeto artístico ou não. Nesse
sentido, em geral, as teorias proporcionam as categorias básicas, enquanto “os
métodos fornecem instrumentos dos procedimentos interpretativos.” (Lima,
2002, p. 933).
Não se trata, é importante referir, de tentar substituir por artimanhas do
pensamento o espaço da poesia, mas de aproximar-se dela, como afirma Pucheu,
pelo “esbarro”, tentando captar pontos de iluminação que constituem sua
grandiosidade enquanto expressão artística. Ou ainda, de acordo com Alfredo

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Bosi (2000, p.164), é importante contextualizar o poema, inserir as suas
imagens e pensamentos em uma trama já em si mesma multidimensional.
As reflexões que serão propostas na presente dissertação partem deste
pressuposto de entendimento da obra literária pela aproximação, pela
contemplação de uma das — conforme diz Drummond, no poema Procura da
poesia — “mil faces secretas” que esta possa apresentar. Assim, será feita uma
abordagem da poesia de Manoel de Barros nos livros Exercícios de ser criança
(1998) e O Fazedor de amanhecer (2000).
Estas duas obras foram escolhidas por tematizarem, essencialmente, a
questão da infância, tema que está presente em toda a obra de Manoel de Barros
e que tem ganhado um destaque crescente muito grande na obra deste poeta.
Esta relevância pode ser comprovada pela recorrência do tema em seus mais
recentes trabalhos, como é o caso dos já citados Exercícios de ser criança e O
Fazedor de amanhecer e, ainda, nos livros Poeminhas pescados numa fala de
João (2001) e Cantigas por um passarinho à toa (2005) que, por estarem
intimamente relacionados à infância, são classificados, no mercado editorial,
como poesia infantil. Vale ressaltar que a validade deste tipo de classificação
não será discutida nesta dissertação. Há ainda duas obras de Manoel de Barros
em que o tema da infância está presente. Trata-se dos dois mais recentes livros
deste poeta, Memórias inventadas: a infância (2003) e Memórias inventadas: a
segunda infância (2006), livros que, se fogem à rotulação editorial de poesia
infantil devido a seu cunho mais memorialístico, têm igualmente a infância
como tema basilar.
Neste sentido, a proposta de trabalho a ser desenvolvido buscará
compreender em que sentido a infância, principal temática representada nos
títulos selecionados para compor o corpus de estudo desta dissertação, se
aproxima da poesia a ponto de ser reiteradamente utilizada por Manoel de
Barros em seus mais recentes livros em um nível mais explícito e recorrente que
em suas demais obras.
A constatação de que a infância, a criança e o faz de conta infantil são
temas comuns na obra desse poeta não é inédita. Conforme afirma Bernardina
Leal (apud Kohan, 2004, p. 26), a poesia de Barros procede da infância. A
infância apresentada em seus poemas não é apenas figurativa, como um cenário,
mas sim representada como uma dimensão muito rica de significação e

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ressignificação do mundo e do ser humano. Neste sentido, a infância nos
poemas deste autor transcende sua própria condição cronológica, e permanece
atuante na sensibilidade do poeta que, mesmo já octogenário, se reporta à
infância não como vivência passada e finita, mas como uma dimensão subjetiva
que acompanha o adulto em toda a sua existência. Assim, Manoel de Barros não
apenas remete-se ao passado em busca de sua infância, ele a mantém consigo
em sua adultez.
Assim sendo, a presente dissertação irá focar uma produção artística que
associa dois temas muito importantes para o ser humano: a infância e a poesia.
Sendo a infância, mais do que mera fase biológica, considerada um momento em
que a criatividade e a subjetividade apresentam-se muito explícitas, resgatando
potencialidades muito positivas do ser humano, conforme argumenta Silva (s/d):

Esta nossa condição infantil, marcada pela curiosidade, pela paixão, pelo
sonho, pela imaginação, pela criação, pela transgressão que tem possibilitado a
nós humanos construirmos a História, e acredito ser ela que nos possibilitará
resgatar nossa humanidade, tão esquecida nos dias atuais, resgatar nosso
direito de “ser mais”, de ser sujeito e não objeto, de encontrarmos um sentido
para a vida, para a existência humana. (s/p)

Na presente dissertação, não apenas a condição humana infantil será


considerada como responsável pelo resgate de um “sentido para a vida”. Todas
as reflexões levarão em conta que também a poesia pode realizar tal resgate,
uma vez que se trata de expressão da subjetividade humana, importante, dentre
outras coisas, por ser um exercício espiritual, “um método de liberação interior”
(PAZ, apud COELHO, 1981, p. 147). Além disso,

(...) não é apenas das crianças que tratamos quando tratamos das crianças.
Este esforço, que é, simultaneamente, analítico e crítico, na interpretação dos
mundos sociais e culturais da infância nos permitirá rever nosso próprio
mundo, globalmente considerado. (SARMENTO, s/d, s/p)

A liberação/libertação interior citada por Paz pode ser compreendida, por


exemplo, com relação ao rompimento que o discurso poético propicia em
relação à ordem e à linearidade do pensamento racional. A poesia permite
acrescentar uma lógica muito peculiar e multidimensional à linguagem. Tal
capacidade de significar e ressignificar o mundo circundante e de expressar pela
linguagem este processo é algo muito importante, pois, como afirma Bosi
(2000), permite conduzir as coisas à sua verdadeira natureza. E este, de acordo

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com o Bosi, seria o fundamento da poesia. Esta capacidade, entretanto, foi
substituída no mundo moderno (ou pós-moderno) pelo senso comum e pela
veiculação de ideologias.
A desautomatização do discurso e do pensamento pode ser compreendida
como a principal característica que aproxima a infância — isto é, da forma
como a criança percebe o mundo — do discurso poético. Tanto o pensamento
infantil quanto o discurso poético possuem uma lógica de funcionamento
caracterizada, principalmente, pelo rompimento, e decorrente recriação, dos
padrões de compreensão e significação do mundo. A capacidade
perceptiva/subjetiva que as crianças naturalmente apresentam permite a elas
perceber o mundo de forma muito diferente da apresentada pelo adulto. De
forma similar está o poeta, que percebe seu estar no mundo de forma diferente
da experimentada pelas outras pessoas.
A proximidade existe, principalmente, porque o pensamento infantil e a
lógica de criação poética compartilham características importantes de
funcionamento, dentre as quais se destaca o uso de imagens. Dufrenne (1969, p.
88) afirma que a poesia diz o mundo por meio de imagens, característica que
permitiria ao pensamento infantil identificar-se com este discurso, pois,
conforme afirma Pondé (apud BELINKY, 1990, p. 124), a poesia, assim como o
pensamento infantil, tem uma lógica metafórica onde é privilegiada a imagem
(não apenas pictórica, mas também musical, fonética, mítica, dentre outras).
Neste sentido, tanto no discurso poético quanto na forma como a criança
percebe o mundo, é atribuída uma força maior à palavra, que se torna concreta e
mágica, pois retoma o sentido originário da coisa que representa.
SILVA (2004, 795), no artigo “Intertextualidade: a poesia de Rosa em
Manoel de Barros”, alerta para o fato de as imagens poéticas serem compostas
por uma semântica inovadora que “subverte os padrões das normas
estabelecidas, extravasa os limites do dizível e transforma realidades díspares
em substância poética”. Essa semântica, consoante Silva (2004, 792), possibilita
novas formas de ver e de compreender a realidade que confunde “o globo
ocular, viciado e acostumado com as formas de ver do cotidiano.” (Id., ib.)
Desta forma, é possível afirmar que, ao resgatar a infância em seus
poemas, Manoel de Barros promove o encontro de potências criativas
fundamentais para o ser humano. Além disso, a forma como a ligação natural

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existente entre criança e poesia é apresentada nos livros do poeta permite
vislumbrar o enriquecimento mútuo que pode advir da convivência destas duas
dimensões.
Este tipo de combinação envolve o emprego de variáveis tais como o uso
da imaginação. Uso que é facilmente articulado, pois requer muita sensibilidade
e competência literária. Caso contrário não haverá o que DUFRENNE (op. cit.,
p.168) chama de universalidade da poesia, mas tão somente um amontoado
amorfo de imagens que, por não estabelecerem um diálogo com o leitor, não
criam sentido poético, que é o diferencial dos grandes autores.
Assim sendo, poetizar acerca do universo infantil é um desafio que
requer do autor autonomia para desvencilhar-se dos clichês que possam
diminuir a qualidade da obra. Esta autonomia é aparentemente simples de ser
alcançada, mas apenas aparentemente. A representação da infância, seja na
poesia ou na prosa, pode sempre esbarrar na redução que advém de ser o adulto
um indivíduo completamente dissociado da infância ou, de maneira oposta, a
idealização da infância como uma dimensão idealizada e inalcançável.
Sobretudo em se tratando da poesia de Manoel de Barros, como dito
anteriormente, é preciso tomar cuidado com as aparências, pois ao representar a
infância, com o auxílio de suas memórias pessoais, o poeta dialoga com a
subjetividade de seu leitor, com sua sensibilidade e criatividade, características
do ser humano e não apenas do poeta ou da criança.
Este jogo entre o que é visível e que é essencial na poesia de Manoel de
Barros é muito condizente com a figura deste poeta, cuja aparente simplicidade
disfarça a existência de um homem muito culto e sensível. CASTELLO (1997,
p. 1) afirma que “Manoel de Barros dispõe de uma simplicidade altamente
elaborada”.
Como representativo da capacidade que Manoel de Barros tem de
confundir sua imagem e sua própria intimidade, vale mencionar o relato que o já
citado jornalista José Castello (do jornal O Estado de São Paulo) fez em 1997,
após um encontro com o poeta. Encontro que demorou cerca de três meses para
acontecer, já que Barros pratica uma espécie de “reclusão”, voluntária e notória,
evitando, sempre que possível, badalações ou lisonjas de qualquer tipo. Suas
entrevistas, por exemplo, normalmente são feitas por telefone ou por escrito
mediante envio prévio das perguntas que, após apreciação metódica do poeta,

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são respondidas e reenviadas ao seu interlocutor. Este tipo de postura alimenta a
imagem construída pela mídia de ser Manoel de Barros uma espécie de ermitão
isolado em seu próprio mundo, imagem que não condiz com sua verdadeira
forma de ser.
Castello resolveu testar a veracidade da imagem de isolamento atribuída
a Manoel de Barros e partiu em busca de um contato mais pessoal com o poeta,
tendo a impressão de que encontraria um tipo interiorano, arredio e ingênuo.
Para sua surpresa, entretanto, Manoel de Barros se apresentou como homem
enérgico e culto. O jornalista imaginava que iria encontrar um homem ingênuo,
“que passasse os dias entre cachorros e passarinhos”. Mas, ainda que passe boa
parte de seu tempo imerso na natureza — seu ambiente preferido —, Manoel de
Barros mostrou ao visitante não ser ele um matuto, mas sim um homem sensível
que, nas palavras do próprio Castello, “ouve concertos clássicos, lê Kant,
Benjamim e Roland Barthes e toma “cerveja com psicanalistas. “Caí na
armadilha de seus poemas” (CASTELLO, 1997, p. 3).
O universo de Manoel de Barros assemelha-se muito ao ditado popular
águas paradas são profundas, ainda que suas águas não sejam tão paradas
assim, pois o dinamismo interno de sua poética é inquestionável. De acordo com
Ponty (2001, s/p), o poeta nos propõe um mergulho em nossas próprias águas
para entrarmos em contato com aquilo que somos na verdade, com nossas
origens, nossa pureza que sobrevive escondida.
Seja uma imagem construída ou não, a aparente singeleza na vida e na
obra de Manoel de Barros não pode ser confundida com ignorância ou
ingenuidade. A adoção da simplicidade pelo poeta, tanto em seus textos quanto
em sua vida, é uma postura voluntária e reflete uma escolha pessoal do poeta e
não diz respeito a limitações que eventualmente atribuam a seu trabalho. Para
Ramoneda (s/d):

A poesia de Manoel de Barros é essencial não apenas para aqueles interessados


em estudar rios, mas também, e principalmente, para aqueles que atropelados
pelos excessos — de trabalho, de informação, de desejos — sentem uma
necessidade vital de delicadeza e de simplicidade. (s/p)

A simplicidade adotada por Barros disfarça uma agudeza de raciocínio de


um homem que é, como definiu Pucheu, sobretudo um “poeta-pensador”,
preocupado com seu tempo, seus semelhantes e sua própria condição humana. O

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que pode ser comprovado, por exemplo, pelos temas presentes em sua obra,
como a busca pela origem das coisas, que é um tema clássico de reflexão
filosófica.
A presença deste tema na obra de Manoel de Barros permite perceber que
o poeta, um homem simples, mas em nada tolo, empreende uma cruzada pessoal
em busca de uma melhor compreensão acerca do Homem e seu estar no mundo.
A busca pela origem dos seres e das coisas é um tema recorrente na obra
de Manoel de Barros e dele se desdobram muitos outros, dentre os quais o apego
à natureza, a simplicidade de hábitos e de assuntos, além da valorização da
criança e da infância — tema particularmente importante para a realização do
presente trabalho. Sua mitologia pessoal dialoga profundamente com o
imaginário humano coletivo, compondo uma poética expressiva muito rica.
O já citado Castello acerta ao admitir que “caiu em uma armadilha”.
Desvendar o universo — pessoal ou poético — de Manoel de Barros é percorrer
um caminho cheio de armadilhas, sobretudo aos que tentam fazê-lo com base
em preconceitos ou idéias prontas.
Mas, para aqueles que admiram o trabalho deste poeta, há uma orientação
básica muito útil: não se trata de um caminho hermético, reservado apenas a uns
poucos iniciados. A poesia de Manoel de Barros trata, sobretudo, do ser
humano, o que é uma vantagem para o leitor comum, mesmo que jovem. Seus
poemas estabelecem diálogo com o que temos de mais característico: nossa
sensibilidade. De acordo com Castro:

O drama de Manoel de Barros tem a profundidade do próprio ser, de seu


existir ante a realidade exuberante, indômita, da palavra de um lado e, do
outro, o próprio poeta, ser frágil, necessitado, que tenta a apropriação das
palavras existentes ou das palavras imaginadas . (1991, p.98)

A ponte que Manoel de Barros estabelece com a sensibilidade de seus


leitores talvez seja um dos mais fascinantes aspectos de sua obra poética. Ao
exercitar sua poesia, falando das formigas e cigarras que habitam seu quintal,
fala sobre a existência humana, o que está de acordo com o que propõe
STAIGER (1975, p.197) ao afirmar que a essência do homem aparece nos
domínios da criação poética. Seu exercício poético é o próprio exercício do ser
humano em suas ponderações mais íntimas.

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Uma das formas como o poeta busca alcançar, pelo exercício da poesia, o
ser humano em sua essência é a busca pelo estado primordial anterior à
maldade, onde homens e animais comungavam com a vida que os animava e se
valiam da linguagem e pensamento com orientação mais mítica, caracterizados,
sobretudo, pelo uso metafórico de compreensão e expressão do mundo.
Este tipo de percepção tem, de certa forma, se perdido com a evolução do
homem. Mas, como se trata de um processo muito subjetivo da cognição
humana, é natural que não tenha se apagado completamente e que ainda possa
ser detectado em momentos de liberdade da expressão subjetiva, como, por
exemplo, nas artes ou nos momentos de descompromisso com a realidade, como
é caso dos sonhos e da infância. No caso específico da poesia e da infância, a
ocorrência de vestígios dessa forma arcaica de pensamento fica mais evidente.
Como dito anteriormente, aliar infância e poesia não é algo novo na
poética de Manoel de Barros, já que sua obra apresenta-se inteiramente
perpassada pela presença desta temática. Conforme explica Ribeiro (2005), a
infância de Manoel de Barros predomina sempre, “pois ele é um eterno menino
que interpreta os códigos da natureza” (s/p). Sua obra poética apresenta a
infância como um tema importante para a poesia e para o ser humano. O próprio
Barros, a este respeito, assim se expressa: “com certeza, a liberdade e a poesia a
gente aprende com as crianças” (BARROS, 1999, s/p), ao que o poeta
acrescenta que os poetas precisam desaprender tudo o que sabem com as
crianças.
Esta visão rompe com o paradigma de ser a infância um estágio de
dependência e incompletude. O reconhecimento (e valorização) da criança é um
processo recente que surgiu com o advento da Idade Moderna e que vem se
consolidando na pós-modernidade. Manoel de Barros apresenta-se consonante
com essa forma de compreender a criança ao resgatar a infância em seus poemas
como uma dimensão criativa e essencialmente relacionada à natureza subjetiva
do ser humano.
Tal orientação pode ser percebida no título proposto para o trabalho
(Exercícios de ser humano), que resgata o nome da primeira obra infantil de
Manoel de Barros (Exercícios de ser criança) justamente por acreditar que os
exercícios de ser criança são os constantes exercícios de transgredir a lógica
vigente e, em muitos casos, limitante, proposta pela código linguístico, ou

17
mesmo pelo pensamento cartesiano. O exercício de ser criança, neste contexto,
pode ser compreendido como o próprio exercício de ser humano, que é um ser
limitado, mortal, mas capaz de superar-se e realizar coisas admiráveis, tais
como amar e sensibilizar-se. Consoante Carvalho (1985, p.246), “a linguagem
poética é a linguagem da criança; e só através dessa linguagem se pode
encontrar o Homem, em sua verdadeira dimensão”. A incompletude da criança
pode servir como inspiração ao homem adulto na medida em que aceita, com
naturalidade, aprender a cada dia. Para Manoel de Barros:

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.


Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.
Não agüento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas. (BARROS, 1998, p. 79)

Com relação à estrutura de composição desta dissertação, é importante


deixar claro que as reflexões serão ordenadas sob a orientação de duas
proposições básicas, de forma a constituírem agrupamentos temáticos definidos.
Na parte inicial (compreendido pelo capítulo 1) constarão os elementos que
permitirão compreender a infância e a poesia como campos intimamente
ligados.
Em seguida (capítulo 2) será apresentada, de forma breve, a trajetória
poética de Manoel de Barros, com ênfase nos livros Exercícios de ser criança e
O Fazedor de amanhecer. Na seqüência (capítulo 3) buscar-se-á compreender
de que maneira (ou maneiras) a poesia se aproxima da infância. Para tanto,
serão utilizadas as idéias apresentadas no capítulo inicial desta dissertação, que
servirão como paradigmas que orientarão a leitura dos poemas selecionados.
Neste momento serão buscados elementos que atestem a existência de diálogo
entre poesia e infância e elementos que permitam identificar de que forma a
infância é representada neste discurso poético.
Desta forma espera-se, com o presente trabalho, evidenciar a
aproximação, proposta na poética de Manoel de Barros, entre a infância e a
poesia enquanto dimensões em recíproca relação de complementação e
engrandecimento.

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Além disso, o estudo da poesia de Manoel de Barros pode ser
compreendido, também, como forma de reconhecimento da obra deste poeta,
cuja contribuição ao panorama da literatura nacional é relevante. Como afirma o
Pe. Afonso de Castro (2005), profundo conhecedor da poesia de Barros:

Auguramos que o apreço e carinho pela obra de Manoel possibilitem várias


leituras e sempre suscitem expressões artísticas da suada caminhada dos
estudiosos que se tornam ótimos interlocutores com o mundo, com as pessoas,
a partir dos poemas do nosso grande poeta. Ele merece o nosso
reconhecimento e muitos trabalhos sobre suas obras. (s/p)

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CAPÍTULO I: A poesia e a infância

Não pretendo que a poesia seja um antídoto


para a tecnocracia atual. Mas sim um alívio.
Como quem se livra de vez em quando de um sapato
apertado e passeia descalço sobre a relva, ficando
assim mais próximo da natureza, mais por dentro da
vida.
Por que as máquinas um dia viram sucata.
A poesia, nunca.

Mário Quintana (A vaca e o hipogrifo , 1977, p.


58)

20
1.1- Poesia e infância: uma ligação primitiva

O que justifica essa radical analogia


entre nascimento humano e poético?

Harold Bloom (A angústia da


influência, 2002, p. 106)

Nas palavras iniciais do livro Poesia infantil: o abraço mágico, Bocheco


(2002, p.16) deixa transparecer seu desapontamento com o que acredita ser um
empobrecimento da linguagem frente ao atual utilitarismo com que esta estaria
sendo empregada. Consoante a autora, no cotidiano as palavras estão de “asas
quebradas”, padronizadas, afastadas de seu potencial criativo e imaginativo. O
que, segundo a autora, é um empobrecimento das potencialidades que a palavra
possui.
Considerando-se esta postura defendida por Bocheco (2002) como
verídica, uma das formas de se alcançar a revitalização da linguagem, o que
viria resgatar grande parte de seu potencial significativo, pode ser alcançado
pelo uso da palavra poética, cujo discurso, ainda consoante Bocheco (2002,
p.16), teria compromisso com a beleza, a emoção e a criação no campo da
linguagem e que libertaria a palavra de sua relação convencional com a
expressão discursiva.
Este raciocínio é desenvolvido de forma muito similar por Bosi (2000, p.
163) que afirma ter a poesia o poder de reconhecer sentidos da natureza íntima
das coisas e dos seres. Segundo ele, “o poeta é doador de sentido”. Neste
contexto, a poesia estaria muito relacionada à intimidade do ser humano.
Seguindo a linha de pensamento proposta por Bocheco e por Bosi, é
possível compreender que a matéria prima da poesia não se resume à
representação da realidade tangível — ainda que dela se utilize — pois ela
compõe em seu discurso uma realidade híbrida, permeada de estados e
sensações que normalmente só podem ser desencadeados pela emoção e pela
subjetividade. Esta nova realidade, também presente no discurso poético,
permite uma significação muito densa e complexa do mundo. Ela possibilita
complementar o juízo analítico humano de forma a permitir que as pessoas
façam-se entender de maneira universal, já que, de acordo com Bosi, a

21
substância poética encontra eco “no coração de todos os homens” (2000, p.
167). Consoante Pondé (apud Bellinky , 1990), a linguagem, quando tocada pela
poesia, deixa de ser apenas um conjunto de signos móveis e significantes,
eliminando a distância entre o eu o objeto.
A linguagem poética, por sua natureza metafórica, de referenciação
simbólica, foi eleita como a mais adequada para expressar os pensamentos e as
emoções do homem primitivo (“infante do gênero humano” segundo GUIDO,
1999, p. 25). Este processo se justifica, conforme alerta Bosi (2000, p.165),
porque o poema talvez seja uma expressão vestigial de esquemas corporais
antiqüíssimos. “O que já exerceu uma função coesiva nas comunidades arcaicas
reproduz-se, com funções análogas, no produto poético individual”.
De acordo com Nelly Novaes Coelho (1981, p.68), desde os primórdios,
a linguagem metafórica tem sido utilizada como uma das formas de
comunicação de valores entre os homens, quer seja na área religiosa, quer seja
na área poética (ou literária em geral).
Tal adequação se deve ao fato de que o homem primitivo não dispunha
de um conhecimento científico, estabelecido pelo pensamento racional. Para
compreender o mundo e os fenômenos que estavam à sua volta o homem criou,
consoante a definição proposta por Coelho (1981, p. 31), um sistema de
pensamento mágico (ou mítico), que inseria o homem em um mundo de
realidades simbólicas — sua cosmogonia:

Por um longo tempo, a humanidade sentiu necessidade de dialogar com os


deuses — que eram tomados pelas mais variadas paixões —, criando mitos e
lendas (...) que expressam suas esperanças, ansiedades e necessidade de
explicar o cosmos composto, naquela época, por deuses, natureza e homem.
Para fazer isso, o homem lançou mão de projeções emocionais. Nesse sentido,
os deuses animam ou personificam uma galeria imensa de sentimentos
humanos. (...) O homem se sentia mais seguro ao criar mitos que explicassem
a origem das coisas e o funcionamento do mundo. (FICHTNER apud
CECCANTINI, 2004, p. 260)

A partir deste sistema de pensamento, o homem arcaico constituía o


modo pelo qual ele via e se relacionava com o mundo. Este modo de pensar e
sentir acompanhou o homem durante todo a sua evolução de forma paralela ao
desenvolvimento de um pensamento racional e lógico de conhecimento cujo
surgimento não fez desaparecer o pensamento mítico. Ele ainda está presente no
ser humano, e sua permanência prova não se tratar de uma forma de pensar

22
inútil, errônea, como pensam alguns. Se fosse tão equivocado ou ingênuo, a
humanidade teria sucumbido e este tipo de pensamento não estaria presente, até
hoje, em todos nós. O fato é que ele permanece presente, intuitivo e profundo,
sendo mais perfeitamente percebido por indivíduos mais sensíveis a seus apelos,
como é o caso da criança e do poeta.
A este respeito se expressa Ferreira (1983, s/p) ao afirmar que o
pensamento primitivo, comum ao desenvolvimento onto e filogenético
experimentado pelas crianças e pelos povos primitivos, não separa de forma
sistemática e excludente dimensões tais como o real e o imaginário, e esta forma
de pensar, ou perceber o mundo, ainda é perceptível de forma vestigial no
pensamento do homem moderno.
Miguez (2003, p. 34) compartilha da linha de pensamento desenvolvida
por Ferreira e afirma que os vestígios do “saber primitivo” são perceptíveis na
poesia e na infância, que se caracterizariam, segundo a autora citada, pela forma
diferenciada, mais intuitiva, de olhar as coisas. Para a autora, “criança e poeta
se encontram no universo da criação, onde brincar e criar têm um significado
sério, de letras profundas.” (Id., ib.)
Perceber que a infância possui uma sabedoria intrínseca, muito próxima
do pensamento do homem primitivo, é uma postura que rompe com o
estereótipo que vê a criança exclusivamente como um ser limitado, carente de
instrução e de orientação por parte do adulto. Esta visão, muito comum até
pouco tempo atrás (e, ainda que em menor grau, ainda vigente hodiernamente),
pode ser per percebida pelo emprego de termos tais como “a-luno” e “in-fante”,
que significam, em sua etimologia latina, respectivamente, “aquele que não tem
luz” e “aquele que não tem voz”.
Este tipo de concepção não se justifica, sobretudo se for levado em conta
que a ausência de voz, necessariamente, não implica em falta de inteligência ou
de sensibilidade. Para Neto (2005, s/p), embora seja a linguagem que defina a
constituição do sujeito, o homem não nasce sabendo falar, há um determinado
momento em que ele é não-falante, infante. O que não quer dizer que não tenha
sensibilidade ou inteligência.
O momento em que o ser humano passa a adquirir a linguagem, e
também os códigos culturais e sociais veiculados por ela, é a infância. A partir
de então, comumente, ocorre a substituição do conhecimento intuitivo e

23
imaginativo da criança pelo conhecimento pragmático e objetivo que a
sociedade exige. Neste processo, o conhecimento intuitivo que a criança possui,
e que segue um padrão/lógica particular de funcionamento é sistematicamente
desestimulado.
Entretanto, não é possível ao ser humano anular o conhecimento de
cunho intuitivo. Este permanece operante e, mesmo modernamente, pode ser
identificado, por exemplo, na poesia, já que esta, para Pondé (apud Khéde,
1986), tem uma lógica metafórica que privilegia a imagem e atribui à palavra
um sentido mais forte, que transcende a mera codificação. Consoante esta
autora, a lógica metafórica, presente no pensamento infantil e na poesia,
“retoma o sentido originário da coisa que representa.” (Id., ib., p. 126)
O “sentido originário”, que remeteria ao próprio conhecimento mítico
dos homens primitivos, possui potencial libertador bem definido, pois rompe
com esquemas prévios de expressão e de raciocínio e reaproxima o homem pós-
moderno do “plano mais primitivo e originário a que pertencem a criança, o
animal, o selvagem, o visionário, na região do sonho, do encantamento, do
êxtase, do riso.” (HUIZINGA apud BOCHECO, 2002, p. 33). Ademais,
conforme explica Ponde (apud Belinky, 1990), “a poesia seria um dos meios de
a criança escapar do domínio do adulto, centrado na razão e na linearidade, para
atingir outros processos de leitura” (Id., ib.,p. 125). Estes novos “processos de
leitura” são referidos por Huizinga (apud Bocheco, 2002):

A experiência com o poético envolve outro tipo de mediação simbólica a qual


encaminha para uma leitura sensível da experiência. Convida a buscar os
segredos, os mistérios, os silêncios por trás das paisagens, das faces, dos
objetos. O mergulho no tempo do poético, na plenitude da palavra, traz de
volta os elos mágicos entre palavras e seres. A imagem poética exalta a
riqueza das palavras, imanta-as através da corrente metafórica e promove um
retorno ao verbo original. No princípio era a palavra mágica. Falar era recriar,
invocar o objeto mencionado. A primeira atitude do homem diante da
linguagem foi de confiança: o signo e o objeto representado eram a mesma
coisa. O homem primitivo pensa por imagem, é um imaginativo puro (...) O
pensamento primitivo e o infantil utilizam o pensar metafórico e, nesse
sentido, se aproximam do mito, que é a fonte onde bebe a linguagem das
origens. (Id., ib., pp. 35 e 36)

De fato, a linguagem e a palavra são os instrumentos por meio dos quais


o poeta expressa sua emoção, suas idéias. Para tanto, utiliza-se do potencial
imagético da criação poética, experiência muito próxima do que o homem
primitivo experimentava na fase mítica (ou mágica) do pensamento. Neste uso,

24
a palavra recupera seu vigor original, sua força primitiva, e transmuta-se em
“semente germinando a poesia” (MIGUEZ, 2002, pg. 34). Para a autora, o
universo mágico da palavra poética e do brinquedo aproxima o poeta da criança
e, paralelamente, a criança do poeta. Ainda de acordo com Miguez, a poesia se
caracteriza pelo brincar com as palavras. “E assim, poetas e crianças
manifestam suas aventuras e venturas, seus desejos e suas fantasias através da
poesia, da brincadeira.” (id., ib, p. 35)
A poesia, segundo a linha de pensamento apresentada, pode ser
compreendida como expressão essencialmente associada ao pensar primitivo —
imagético, com lógica eminentemente metafórica e que busca retomar o sentido
originário das coisas que representa. E a criança, por sua vez, também se
aproxima desta forma de pensar, pois ela “assim como o homem primitivo,
pensou e pensa, por imagens e não por raciocínios” (GOÉS, 1984, p. 178).
Neste sentido, “não é paradoxo afirmar que o poeta é como as crianças, os
primitivos, em suma, como todos os homens quando dão rédea solta à sua
tendência mais profunda e natural” (DAVID, 2005, p. 22):
A ligação entre poesia e a infância origina-se a partir do elo existente
entre palavra e imagem que, como poderemos perceber mais adiante, é
fundamental para a configuração da linguagem poética e para o pensamento
infantil.
A associação entre imagem e palavra promove um diálogo imemorial
entre o pensamento do homem primitivo e do homem pós-moderno que “une o
presente e a origem, de modo a abolir a própria noção de temporalidade, devido
à força da palavra e da imagem” (PONDÉ, apud BELINKY, 1990, p. 126). Esta
aproximação cria, ao ligar significante e significado, o campo multisignificativo
da poesia, “reino onde nomear é ser.” (idem, ibidem, p. 127)
Este diálogo, nas palavras de Bosi, “só resiste porque ainda é, ao menos
para a infância e, em outro nível, para o poeta, uma fonte de conhecimento”
(2000, p. 184). A validade desta afirmação poderá ser percebida, a partir de
agora, com a apreciação dos conceitos de imagem, imaginação e imaginário.
Estes conceitos são importantes porque se relacionam com a estruturação e o
funcionamento do pensamento infantil e primitivo humanos em sua essência, a
de dar (tanto no sentido de permitir quanto no sentido de promover) sentido à
existência humana.

25
1.2 – Imagem: linguagem comum à poesia e à infância

A mim a criança ensinou-me tudo.


Ensinou-me a olhar para as coisas. (...)
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que
houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistérios no mundo
E que tudo vale a pena..

Alberto Caeiro (in PESSOA, 1992, pp. 210


e 211)

Nelly Novaes Coelho (2000, p.221) explica que a poesia pode ser
caracterizada como um “certo modo de ver as coisas”. A partir da forma como o
poeta percebe e interage com o mundo, ele cria sua poesia. Para a autora, o
poema deve nascer de um olhar inaugural, de uma forma de ver diferente da já
conhecida e praticada, descobrindo formas novas de perceber o que é conhecido.
Esta consideração é particularmente pertinente porque evidencia a
experiência visual como importante fator para a compreensão humana. A mesma
idéia é desenvolvida por Dufrénne (1969, p. 173) que afirma,“a natureza se nos
oferece como mundo através das coisas. Desse modo, podemos dizer que as
coisas se dão a nós em imagens”.
É pela observação que o ser humano capta a realidade em que está
inserido e passa a compreender, a partir do contato de seus limites físicos com o
espaço que está à sua volta, o mundo e a si próprio. É pela observação que
acontecem os primeiros contatos do homem com o mundo que o cerca. A
observação permite à criança interagir e compreender a realidade em que está
inserida e, por toda a vida, mesmo já adulta, a pessoa pode contar com a
observação para reagir a ambientes e situações novas. “Antes de tudo, somente
vê quem quer ver. Pode-se olhar para tudo e a nada e se fixar ou adquirir uma
ciência que passa pelos olhos para se enxergar e perceber as diversas dimensões
da vida.” (CASTRO, 2005, p. 28)

26
A experiência visual é fundamental, de forma especial, para a criança,
cujo pensamento, segundo Richter (2002, p. 8) é “imagético e metafórico.”
Evolutivamente, a experiência visual tem sido um processo fundamental
para a sobrevivência e para o desenvolvimento do ser humano, mesmo em
épocas arcaicas de existência. Bosi (2000, p. 19) afirma que “a experiência da
imagem (é) anterior à da palavra” . Para Nova (1999):

Existe, em algum lugar dentro de nós, uma instância produtora de imagens,


uma espécie de cinematógrafo interior de onde emergem imagens mentais que
configuram, em boa medida, o nosso pensar, sentir e agir. Não é por acaso que
as primeiras manifestações da criatividade humana foram exteriorizadas em
formas imagéticas. As imagens registradas nas cavernas de Lascaux, na
França, e em Altamira, na Espanha, são os primeiros exemplos detectados pela
arqueologia histórica e datam de quase 20 mil anos. De lá para cá, as formas
imagéticas de representação se desenvolveram e se multiplicaram bastante, até
a chegada das imagens digitais. (Id., ib.,p.29)

A importância da experiência visual para o ser humano pode ser


explicada tanto pela extrema sensibilidade desta percepção quanto por sua
proximidade com a constituição de esquemas cognitivos que, na mente humana,
compõem-se por imagens. Para Santaella e Nöth (1998, p.15), o mundo das
imagens se divide em dois domínios. O primeiro seria o das imagens, composto
por representações visuais (desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e as
imagens cinematográficas, televisivas, holo e infográficas). Ao segundo
domínio pertenceriam as imagens imateriais presentes em nossa mente que
apareceriam como representações mentais. Para os autores citados, os domínios
da imagem não existem separados, pois estão intimamente ligados. (Id., ib.)
No mesmo sentido se expressa Ferreira (1983, s/p) ao advertir que a
palavra “imagem” não deve ser compreendida exclusivamente como sinônimo
de imagens visuais. Consoante o autor referido, o conceito de “imagem” é mais
amplo e inclui outros tipos de estímulos capturados pela percepção humana que,
a partir destes estímulos, compõem os campos significativos da consciência
humana. Desta forma, o conceito de imagem estaria mais relacionado às
representações mentais do que às exclusivamente visuais. Não se pode negar,
entretanto, a prevalência dos estímulos visuais na configuração e funcionamento
do pensar e sentir. Como explica Ferreira (1983, s/p), as imagens podem ser
sonoras ou visuais, tácteis, gustativas ou olfativas, mas são predominantemente
visuais. Ferreira alerta para o fato de freqüentemente acreditar-se que o

27
pensamento não é feito apenas de imagens, que é constituído também por
palavras e por símbolos abstratos, não imagéticos. Sem se levar em conta o fato
de que tanto as palavras como os outros símbolos serem, eles próprios, imagens.
O próprio conceito de imagem, quando aplicado no contexto de sua
aplicabilidade no conhecimento, é um conceito dialógico. Esta natureza
duplamente articulada, conforme explicam com Santaella & Nöth (1998, p. 36),
“se encontra profundamente arraigada no pensamento ocidental”.
O uso de imagens na contemporaneidade é muito forte. Hodiernamente
os estímulos visuais são veiculados frenética e exaustivamente por mídias
eletrônicas que, a exemplo da televisão, do cinema e da internet (dentre outras)
exploram a facilidade e a velocidade de propagação de conteúdos ideológicos
por intermédio de estímulos visuais. Este uso maciço, contudo, não constitui um
processo isento a críticas. De acordo com Coelho (2000, p.221), modernamente,
as imagens comandam a todos, adultos ou crianças.
Ainda que a mediação eletrônica de veiculação de imagens constitua um
sistema mais dinâmico de acesso à informação, é importante ressaltar que, como
alerta Nova (1999, p.27), “a decodificação das imagens é, na maior parte das
vezes, quase automática e não exige dos espectadores um ato de reflexão em
profundidade” e o processo que foi criado, por ser dinâmico, torna-se
“hegemonicamente poluidor”. Esta “poluição” transforma as pessoas em meros
espectadores da vida, “assistindo, como diria Guy Debord, ao espetáculo da
sociedade que os marginaliza. O ser humano ficou assim supérfluo no próprio
mundo” (MILOVIC, 2004, p.63). Desta forma, as pessoas, por verem demais,
têm seus sentidos embotados e passam a não ver nada:

Diante de tantos estímulos visuais e de informações generalizadas, os homens


acabam se enxergando como imagens sem referente, perdendo o elo consigo
mesmo e com os outros. Os indivíduos sentem-se desestruturados,
esmigalhados, reduzidos à condição de bits que, a qualquer momento, podem
ser transformados, reconstruídos ou simplesmente deletados, da memória ou da
vida social. (Id., ib., p. 27)

Reduzida desta forma, a relação do ser humano com as imagens —


sobretudo contemporaneamente — parece um processo fadado ao fracasso
devido à sua permeabilidade à manipulação. Mas, ainda que possua esta
vertente, a utilização de imagens não pode ser irrestritamente identificada com

28
tal esquema proposto. A essência do processo é positiva. Para Nova (1999),
“faz-se urgente o reconhecimento das imagens enquanto imagens estruturantes”
(p. 31) e não apenas como fragmentos esquizofrênicos que confundem o
homem. Consoante a autora, o processo significativo estruturado por imagens é
fundamental para que o homem construa a sua subjetividade.
A exploração dos estímulos visuais na contemporaneidade pode ser
compreendida como uma vertente de uma experiência maior que, recuperando a
reflexão de Bosi, é “anterior”. Anterior à utilização de seu potencial
manipulativo e, de certa forma, mais forte do que ele. Para Serra (s/d, s/p), “as
novas tecnologias não fizeram desaparecer aquele primeiro gesto de desenhar do
homem das cavernas. Ele (o gesto) continua vivo”. A experiência visual permite
ao ser humano realizar operações vitais, tais como sentir, perceber, interpretar e
interagir com o mundo.
A relação com as imagens enquanto experiência significativa se
apresenta de forma muito clara no trabalho das pessoas que se valem de uma
sensibilização mais acentuada em seus cotidianos, tais como os artistas e demais
pessoas que, segundo Serra (s/d, s/p), “nesta permanente busca de registrar a
vida, se sobressaem ao fazê-lo de forma própria, original, diferente dos outros”.
Consoante a autora, a contribuição destas pessoas pode ser compreendida
principalmente por possibilitar “aquela experiência perturbadora, emocionante,
que nos faz despertar para o que não estava sendo percebido antes”.
A experiência “perturbadora” estaria relacionada com a significação
transcendente à utilização empírica das imagens. Experiência que pode ser
deflagrada, como referido na seção anterior, pela “configuração da linguagem
poética”, onde as imagens propostas pelas palavras rompem com a
funcionalidade habitual, resgatando um potencial profundo de significação:

A palavra, apesar de seu caráter fundador, não é capaz de dar conta de todas as
possibilidades de trazer à tona o mundo em sua completude, o que, no entanto,
não esgota a extensão do seu a priori. A forma lingüística pode ser sempre a
mesma, repetida infinitamente, contudo, só existirá “palavra poética”, a
“palavra viva”, quando ela, como presença material/objetiva nas páginas do
texto, trouxer aos olhos do leitor as ausências (pre)sentidas, presentificando-as
e atribuindo-lhes um significado não apenas empírico e extrínseco à vida, mas
também transcendental. (SANTOS, 2001, p.3)

No campo da poesia, a ligação entre palavra e imagem é ainda maior. De


acordo com Santaella & Nöth (1998, p. 71), “a imagem está introjetada a tal

29
ponto na palavra poética que a mera menção do tema — palavra e imagem —
parece conduzir o pensamento inexoravelmente para a poesia” . Os estímulos
visuais são utilizados na constituição da mensagem pela exploração de seu
potencial expressivo, quer no nível exterior pela exploração consciente do
tamanho, cor e forma das letras (ou mesmo dos espaços em branco), quer no
nível imanente de significação semântica, onde o inconsciente se manifesta.
Para Silva (2004, p. 793), “o engendramento poético, ao referencializar o
mundo por meio da imagem (transfiguração, tropos, metáfora), desautomatiza os
laços com a realidade empírica e cria o improvável”.
Para Salzedas (apud Ceccantini, 2004, p. 346), “imagem e textos não são
vistos separados, mas imbricados um ao outro”. Na poesia (e na literatura como
um todo) “ou a imagem está explícita no texto, ou implícita verbalmente; ou o
texto está subordinado à imagem ou a imagem subordinada ao texto” (id., ib.).
O vínculo entre a palavra e a imagem é proposta por Manoel de Barros no
poema Despalavra:

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra (...)


Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo
Com suas metáforas.
Que os poetas podem ser pré-coisas,
pré-vermes,
podem ser pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender
o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens,
por eflúvios,
por afeto. (BARROS, 2000, p. 23)

Tanto no nível verbal quanto no imanente, ainda que em diferentes graus,


o trânsito de imagens permite o “reavivamento da relação sensível com o
mundo, ao encontro do que é profundo e original nos seres e nas coisas”
(BOCHECO, 2002, p.33). Isto seria possível por que, conforme alerta Grisoli
(s/d, s/p), antes de seu estágio escritural, o poético determinaria a construção de
um olhar, de uma sensibilidade que pode retransformar o mundo e construir uma
dimensão mais saborosa da realidade à medida que a sensibilidade humana se
livrasse de sua passividade.

Nelly Novaes Coelho (2000, p. 221), a propósito da citação referida


anteriormente na seção 1.2, afirma que a poesia é uma “visão que vai além do

30
visível ou do aparente, para captar algo que nele não se mostra de imediato, mas
que lhe é essencial”. Este poder, consoante a autora, acompanha o ser humano
“desde a origem dos tempos” (id., ib.). Para Pondé (apud Belinky, 1990, p.124),
a poesia, assim como o pensamento infantil, possui uma lógica metafórica que
privilegia a imagem, atribuindo uma força maior à palavra, retomando o sentido
originário da coisa que representa.
A importância do estímulo visual para a poesia é também referida pelo
escritor Rubem Alves que, em seu texto “O Deus menino”, afirma:

Quem primeiro percebe são os poetas. Isso se deve ao fato de que os seus
olhos são diferentes. Por isso eles vêem as coisas ao revés. Poesia são as
coisas vistas ao contrário. Não é a coisa de pensamento, é coisa de visão.
Quando as pessoas, ao ouvir um poema, dizem que não entenderam e pedirem
explicações, é porque elas puseram o poema no lugar errado, no lugar onde
moram os pensamentos. Mas um poema não é para ser pensado na cabeça. É
para ser visto com os olhos. (2002, p. 74)

Bocheco (2002, p. 34) vai um pouco mais além e afirma que a poesia se
oferece como um canal de contato sensível com o mundo, de encontro com o
que é essencial e profundo nos seres e nas coisas. Reflexão igualmente
desenvolvida por BOSI (2000), que diz: “a atividade poética busca uma relação
intensa com o “mundo-da-vida”, tal como Husserl definia o estado pré-
categorial da existência” (p.132). A este respeito, Manoel de Barros se expressa
de maneira mais categórica: “O olho vê, a lembrança revê. O poeta transfigura o
real e isso é o mais importante” (apud RIBAS, 2003. p. 69).
A relação é possível por que, segundo Koshyama (apud Bosi, 2003, p.
82), a poesia é um canal que comunica seres humanos e não apenas vozes. A
poesia seria, ela própria, um canal, uma voz, da natureza humana, que ligaria
todas as pessoas: “acolher a poesia é dar abrigo a esta voz, e a uma relação entre
o Eu e o Mundo”.
Para Dufrénne (1969, p.169) “a imaginação é a mais primitiva
consciência do mundo”, idéia igualmente desenvolvida por Carvalho (1985, p.
245) ao afirmar que a poesia é a “linguagem de todos os tempos, nascida do
jogo livre do primitivo, em seu estado de encantamento e perplexidade, a que
pertencem a criança, o poeta, o visionário. Ela está além da linguagem
convencional; além de qualquer condicionamento”. Neste sentido, a
comunicação que se estabelece entre os seres a partir da experiência poética

31
pode ser compreendida como uma ligação primitiva, intuitiva e, em certo
aspecto, mágica (ou simbólica), pois recriaria todas as possibilidades de força
transfiguradora e representativa.
A permeabilidade infantil ao canal expressivo da poesia é muito grande.
A própria figura da criança é comumente associada à do poeta e, com efeito,
“toda criança é um poeta que constrói o seu mundo interior fazendo o jogo da
sua realidade, como o poeta faz” (CARVALHO, 1985, p.223). De fato, a
linguagem poética aproxima-se muito da linguagem da criança. Esta
aproximação pode ser justificada, principalmente, pelo fato de a criança possuir
o que Carvalho (1985, p. 224) chama de sabedoria mítica, que permite perceber
a natureza íntima das coisas e seres (tal como é referido na seção 1.1 deste
trabalho). Além disso, tanto a poesia quanto a criança constroem suas
linguagens a partir do uso sistemático de imagens. Para com Góes (1984, p.
178), “A criança vive em um mundo de imaginação, em um mundo com
predomínio de imagens”. Cunha (1991, p. 120) afirma que o mundo infantil é
cheio de imagens, como o campo da poesia. A fantasia e a sensibilidade
caracterizam a ambos. “A primeira forma de expressão do homem em sua
história é a primeira a encontrar ressonância na alma infantil”. Além disso,
como explica Caetano (2002, s/p), a percepção do mundo por imagens
sensoriais dispensa o uso da racionalidade.
Neste contexto, mais do que maturidade lingüística, a interação com o
mundo das imagens implica em uso da subjetividade, característica muito forte
no poeta e na criança. O uso de imagens, tanto pela criança quanto pelo poeta,
não se limita à representação estática da realidade circundante. A palavra
poética, por exemplo, não apenas representa as coisas, ela as apresenta,
insuflando um novo sopro de vida por intermédio das imagens que, de acordo
com Fichtener (apud Ceccantini, 2004, p.259), produzem instantânea
reconciliação entre o nome e o objeto.
Para Letria (s/d, s/p), neste processo “físico-mágico” de reconciliação
ocorre a transcendência do discurso, a partir de então mito e linguagem
comungam e compartilham sentidos. Esta comunhão seria facilmente percebida
pela criança, uma vez que, conforme argumenta Bocheco (2002, p. 36), as
crianças conservam essa visão da palavra encarnada até o momento em que são
apresentadas aos “processos racionais de leitura”, momento em que vão se

32
afastando do dizer original, metafórico, da leitura sensível do mundo, que era
uma leitura, em sua essência, poética.
Os referidos “processos racionais de leitura” são progressivamente
incutidos na cabeça da criança a partir do momento em que esta entra na escola
e passa a reproduzir o modo de pensar, empobrecido e linear, que é praticado
neste ambiente de uma maneira geral. Para Maia (2001, p. 22), “a sociedade
moderna não é favorável à subjetividade, apesar de se propagar o contrário”.
Consoante esta autora, neste tipo de ambiente é muito comum a valorização de
faculdades que, normalmente, compartimentalizam o indivíduo, e a
desvalorização de outras formas de conhecimento, ainda que intrínsecos às
crianças, como é o caso da imaginação — forma dinâmica de perceber o mundo
a partir do arranjo e rearranjo das imagens percebidas pelos sentidos e recriadas
pela subjetividade. Para Held (1980):

O que é grave, na formação da criança, não é ensinar-lhe a linguagem-


instrumento que, com efeito, é necessária e corresponde a certas necessidades.
O que é grave é a confusão, a perpétua passagem, geralmente no espírito dos
próprios formadores, de uma linguagem para a outra. Donde decorre que,
mesmo quando pretendemos à criança para criar, para se exprimir, para ser ela
mesma, a aprisionamos numa rede de clichês, de modelos fixos extraídos da
língua “clássica” já esclerosada, em defasagem com relação à vida de hoje, às
preocupações e necessidades da criança. (pp. 204, 205 e 224)

A imaginação, a despeito de sua relevância para o desenvolvimento da


inteligência humana (sendo, ela própria, considerada uma forma de
inteligência), vem sofrendo uma resistência histórica baseada, principalmente,
na suposta oposição que faria à razão. Segundo Murcho (2004, s/p), “a
imaginação é uma condição necessária do ensino e investigação de qualidade.
Mas entende-se por vezes a imaginação de um modo tão errado, que mais parece
um obstáculo à qualidade escolar e acadêmica”.

1.3- Imaginação: resistência histórica

Todos sabemos que há em cada


criança um poeta, como há em todo
poeta uma criança. Aliás, não só o
poeta, mas cada adulto tem, quase
sempre, dentro de si, uma criança,
mais ou menos sufocada pela
vigilância da censura.

Bárbara Carvalho (Literatura Infantil,


1985, p.47)

33
Santos (s/d, p. 16) explica que os termos imagem, imaginação e
imaginário etimologicamente derivam do termo phantasia que, por sua vez,
remete aos verbos gregos phantázo e phainestai, que significam aparecer. De
acordo com esta etimologia, segundo o autor, a palavra imaginação diria
respeito tanto ao processo mental de representar a imagem de uma coisa que foi
percebida, quanto ao de reprodução mental de uma imagem que surge após o
processo de percepção sensorial. Para Held (1980):

Se o fantástico é a fantasia no sentido mais etimológico do termo, a “fantasia”


dos gregos, a criação de um espírito fantástico, a imago entendida em sua
acepção mais dinâmica, a imagem colocada, inventada por um espírito que se
desvia dos processos normais de visão comum. (pp.24 e 25)

Nesse sentido, a imaginação é proposta como uma função mental com


duas dimensões bem definidas. Haveria a imaginação relacionada às sensações
comuns, estando diretamente relacionada à percepção sensório-motora; e
haveria também a imaginação como processo mental de criação e recriação de
imagens, esta mais ligada à memória. Com base nesta ambivalência, o autor
propõe que a imaginação é um processo mental importante, sobretudo por
estabelecer uma ponte entre o racional (que é percebido física e cientificamente)
e o sensível (que diz respeito ao irreal/imaginado e, por extensão, ao poético).
No mesmo sentido se expressa Moreira (2002, p. 17) ao afirmar que
Ciência e poesia pertencem à mesma busca imaginativa humana, embora
pertençam a domínios diferentes de conhecimento e valor. A visão poética
cresce da intuição criativa, da experiência humana singular e do conhecimento
do poeta. A Ciência gira em torno do fazer concreto, da construção de imagens
comuns, da experiência compartilhada e da edificação do conhecimento coletivo
sobre as experiências observadas no mundo circundante.
No processo de constituição do conhecimento humano, o campo sensível
de conhecimento seria o responsável pela configuração de campos específicos
de significação para além da compreensão habitualmente utilizada no cotidiano,
já que, como afirma Turchi (2003, p. 13), “a imaginação humana — energia
vital inalienável das configurações de sentido — transcende e ordena todas as
outras atividades da consciência”. A linguagem poética pode ser citada como
uma destas atividades, pois a mera decodificação dos signos não esgota sua

34
capacidade de compor outros níveis de significações que “imantadas através da
corrente metafórica promovem um retorno ao verbo original” (BOCHECO,
2002, p.35).
Neste contexto, a imaginação seria uma força dinâmica pela qual o ser
humano conseguiria criar e recriar mundos e dar sentido à vida. No caso
específico da criança, o processo de criação imaginativa, como uma poesia, por
exemplo, é igualmente incentivador do desenvolvimento de uma dimensão mais
abrangente de conhecimento. Esta dimensão permite à criança, consoante Held
(1980, p. 50) tornar-se mais lúcida e mais flexível ao manipular o real e o
imaginário.
Segundo este raciocínio, não parece haver elementos que ponham em
dúvida a importância da imaginação para o ser humano. Entretanto, a aceitação
da imaginação como uma função cognitiva válida não foi, e nem é, um processo
isento de conflitos. Historicamente, a imaginação tem passado por um processo
de desestímulo e desvalorização baseado na oposição imaginação/razão. Este
tipo de pensamento foi mais comum no passado, mas que pode ser percebido
modernamente, sobretudo após o advento do pensamento positivista que,
conforme argumenta Serbena (2003, pp. 3 e 4) instituiu a idéia da conquista do
mundo pela razão e pela Ciência. Alguns reflexos da concepção da supremacia
do pensamento empiricista permanecem em uso até hoje, e a poesia, a exemplo
de outras manifestações criativas, é sistematicamente desestimulada por não ser
considerada útil. Para Silva (s/d):

Implícita nesta visão parece estar a idéia de que só se pode chegar a conhecer
uma realidade através da razão, representada pelo pensamento, enquanto que a
poesia restringe-se ao universo da fantasia, este totalmente desvinculado da
realidade e da possibilidade de contribuir para o conhecimento dessa realidade.
Descarta-se, assim, a atividade do poeta como resultado de esforço, de
elaboração, do mesmo modo que não se admite ao pensador incorporar a
imaginação à sua atividade. (s/p)

Este tipo de concepção, estruturada exclusivamente em torno da


valorização de conhecimentos de cunho racional, incentiva a substituição da
imaginação e da criatividade por conhecimentos de cunho mais pragmático. A
este respeito se expressa Maia (2001, p.24) ao afirmar que a partir do momento
em que a criança entra na escola, ela desenvolverá atividades eleitas como
importante para a sociedade. Neste contexto as horas de descontração serão

35
substituídas pelas atividades puramente acadêmicas, sendo a brincadeira
colocada em segundo plano. Para este autor, fica evidente que a escola defende
como concepção que o lúdico exige que os sujeitos implicados se comportem de
maneira desarticulada com a aprendizagem, como ocorre na “hora do recreio”
por exemplo. “No caso da poesia, essas estratégias tratam, às vezes, o texto
poético como um amontoado de palavras apenas para brincar, sem buscar
significado.” (Id., ib., pp. 18, 19 e 23)
O pragmatismo que implica na sobrevalorização no ambiente escolar de
conhecimentos empiricistas, desvinculados da imaginação e da fantasia,
responde, em parte, à célebre questão postulada por Carlos Drummond de
Andrade, por que motivos as crianças de modo geral são poetas e, com o tempo
deixam de sê-lo? (ANDRADE, 1974, p. 54), já que, segundo Paul (2000, s/p):

A história das ciências mostra uma contradição flagrante no conceito da


imaginação. Se até o século XVI ela era uma ferramenta do conhecimento que
funcionava baseando-se no princípio da semelhança, a partir do século XVII
transformou-se, segundo M. Foucault (1966), na expressão da loucura, da
fantasia e da ilusão. Esta contradição sobrevive ainda hoje, pois o conceito do
imaginário é valorizado nas sociedades não ocidentais, enquanto é
desvalorizado na nossa.

Entretanto, não fica suficientemente claro qual a justificativa para a


radical separação entre a razão e a imaginação que, mesmo que sejam campos
diferentes de compreensão, não são, necessariamente, excludentes. Segundo
Murcho (2004, s/p), “sem a imaginação não teríamos ciência, filosofia ou artes”.
No entanto, conforme o argumento proposto por Held (1980, p. 51), parece que
o adulto teme o universo imaginário, como se este fosse mais perigoso do que a
realidade a que se está acostumado. Consoante a autora, há uma contradição
muito clara neste tipo de postura, pois os pais ao mesmo tempo em que
desestimulam o exercício da imaginação permitem que seus filhos passem muito
tempo em frente à televisão, muitas vezes sendo bombardeados com imagens
pornográficas e violentas que são, para a autora, mais perigosas que as
atividades que envolvem o imaginário.
Para Maia (2001, p. 24), ainda que haja predominância da razão ou da
imaginação em determinadas pessoas ou contextos, a dissociação é impossível,
já que ambas são faces de uma mesma moeda, a do psiquismo humano. Para
Santos (s/d, s/p), nutrição, reprodução, sensação, imaginação, memória, desejo e

36
pensamento seriam “movimentos próprios da alma”, cada qual com sua
finalidade própria e que, no homem, se reúne numa única finalidade: realizar
sua natureza ou sua forma humana enquanto ser.
Esta realização, mais plena, do ser humano justifica que as pessoas mais
sensíveis à questão da relação dialógica entre o racional e o sensível. Dentre
essas pessoas foram citadas neste trabalho o poeta Carlos Drummond de
Andrade, por ocasião das reflexões que propôs frente ao que é proposto por
mentalidades que acreditam na supremacia da razão sobre a imaginação (ou
vice-versa) e Nelly Novaes Coelho (1981, p. 170), que defende a necessidade de
as novas gerações redescobrirem o mundo. Consoante a autora, crianças e
jovens, paralelamente à assimilação da herança cultural de seus maiores,
precisam aprender a “ver” as coisas e os seres tais como são e não apenas como
foram explicados até hoje pelas fórmulas convencionais da razão instituída.
Tanto a imaginação quanto a razão são processos mentais muito
importantes para a subjetividade humana. A relação existente entre estas duas
dimensões — distintas, mas complementares —, pode ser compreendida a partir
do conceito junguiano de animus e anima, realidades opostas em sua
constituição, mas integradas em uma só existência, constituindo uma
“androginia necessária para expressar a realidade do psiquismo humano”
(LYRA, 2005, s/p). Para Dufrénne (1969, p. 166), o conhecimento mais
formalizado talvez nunca rompa completamente com o cordão umbilical que o
liga às origens. A relação obrigatória que a Ciência tem com a percepção “é
também uma relação com a imaginação, isto é, com a Natureza. Nem o erudito,
nem o técnico conseguem matar completamente o poeta originário que há
neles”.
Em consonância ao pensamento de Dufrénne, é possível citar Ribeiro
(s/d, s/p), que afirma ser a imaginação a responsável por injetar dinamismo à
atividade intelectual. Neste sentido, a imaginação, conforme propõe a autora,
seria a matéria originária (ou “primária”) do pensamento que se consolida por
meio da razão e da objetividade e caracteriza o ser humano enquanto ser que
pensa e percebe, conforme expõe com este autor, “de primeiro imagina-se. Ao
depois, chega-se à objetividade. (...) Entretanto, nem tudo que é sonhado pode
ser concretizado. Esse “algo” somente vai chegar à realidade após passar pelo
crivo da razão.” (Id., ib.)

37
A predominância excludente da razão ou da imaginação na forma de
pensar é potencialmente danosa para o ser humano e leva, segundo Cestari (s/d),
“ao colapso da razão”. Tal colapso ocorreria porque as formas de conhecimento,
ainda que relacionadas à subjetividade, são manifestações da inteligência
humana tanto quanto as formas tradicionais, mais relacionadas à lógica
cartesiana e ao empirismo.
Para Ribeiro (s/d, s/p), necessariamente, uma vertente não é mais
relevante que outra. Consoante a autora, as duas dimensões se complementam e,
para o ser humano, é tão importante a razão quanto a imaginação, pois é através
delas que ele vê a possibilidade de superar-se a si mesmo. Portanto, conceber a
razão como única dimensão válida de conhecimento é uma idéia que restringe
muito a abrangente estrutura de funcionamento do cognitismo humano. Para
Nelly Novaes Coelho (2000, p. 267), haveria duas formas de conhecer: a que se
dá pela razão (pela objetividade da lógica e do raciocínio) e a que resulta da
intuição (da subjetividade do sujeito, de sua imaginação). Desta forma:

A imaginação não é apenas um detalhe em nossas vidas e nem um mero


recurso metodológico. Ela é a própria essência do que somos. Geralmente nos
vemos como animais pensantes, homo sapiens. O “penso, logo existo”, de
Descartes está impresso de forma indelével em nosso código genético e
cultural. No entanto, (...) a mais próxima palavra em hebraico para “humano”,
ou latim “homo”, é “adam”. A palavra “adam” provém do radical hebraico que
significa imaginação (d’ mayon). A surpreendente implicação disso é que o
ser humano não é basicamente homo sapiens, mas sim o que chamarei de
homo imaginus. (GAFNI, s/d, s/p)

Este pensamento, mais do que uma orientação místico-religiosa, remete a


uma forma de pensamento que considera a importância da imaginação para o ser
humano. Esta linha de raciocínio é estudada com mais profundidade por
estudiosos do imaginário, dentre os quais se destaca a figura de Bachelard,
epistemólogo célebre por desenvolver uma doutrina de pensamento justamente
baseada na concepção de que conceitos aparentemente opostos, a exemplo da
razão e da imaginação, são conciliáveis na construção do pensamento humano.
Bachelard demonstra, com sua doutrina, a fragilidade e a incerteza de um
pensamento predominantemente racional. Para Simões (1999, p. 6), “o
conhecimento científico é um corracionalismo. Bachelard substitui o cogito
cartesiano por um cogitamos: a verdade científica é estabelecida pelo trabalho
cooperativo e pela intersubjetividade”.

38
1.4 – Bachelard: a imaginação (criadora, dinâmica e poética) e a infância

A criança que não encontrar ao seu


alcance as vias sãs da imaginação que
são oferecidas pelo conto, pela poesia,
pela pintura, pela música e por
qualquer forma de arte em geral,
correrá o risco de tornar-se o adulto
que investe sua necessidade, sua
capacidade de sonho e a satisfaz nos
horóscopos ou na loteria federal.

Jacqueline Held, (O imaginário no


poder, 1980, p. 174)

Simões (1999, p. 7) afirma que a imaginação é um processo cognitivo


que tem sido descrito na filosofia como um conceito dialógico. Sua primeira
dimensão estaria relacionada à faculdade mental de evocar, sob a forma de
imagens, objetos captados pela percepção. A outra dimensão estaria relacionada
com a forma pela qual a mente cria e recria imagens. Conforme explica este
autor, a imaginação reprodutora é meramente evocativa e depende,
substancialmente, das nossas sensações e da memória. Já no caso da imaginação
produtora ocorre a emancipação do sensível, sendo essa dimensão
essencialmente criadora, simbolizante, poetificante, inventora de novas imagens
ou sínteses originais de imagens.
A divisão, proposta por Simões (1999), da coexistência de duas
dimensões da imaginação, sobretudo o conceito relativo à imaginação enquanto
instância psíquica produtiva, é desenvolvida de forma mais aprofundada por
Gaston Bachelard (1884-1962) ao propor sua célebre teoria da Imaginação
Material, onde, consoante Felício (1994, p. xii), Bachelard propõe a idéia de
existência de um imaginário autônomo, opondo-se à concepção de que a
imaginação é secundária em relação à percepção. Neste pormenor, é proposto
“fazer um percurso que vá da imaginação ao real, e não o contrário.”
Esta teoria, dentre outras postuladas por Bachelard, forneceu substrato
suficiente para que este epistemólogo rompesse com a “tradição ocularista” da
filosofia ocidental que associa a visão ao próprio pensar humano. Nesse sentido,
Bachelard avançou nas questões relacionadas ao conhecimento ao propor que o
homem não permanece passivo diante do que se passa frente a seus olhos.

39
Consoante o filósofo, a relação das pessoas com as imagens que as cercam não é
uma relação de simples contemplação, pois a mente humana contaria com uma
formidável capacidade de arranjar e rearranjar sua própria realidade, a
imaginação. De acordo com esta perspectiva, as imagens seriam importantes
para a cognição humana, mas não tão importantes quanto a capacidade de operar
com elas, já que esta capacidade permitiria ao ser humano não ser dominado por
imagens e pelos conceitos que elas veiculam:

Como nos diz Gaston Bachelar, imaginar sempre será mais que viver, pois
envolve ensaiar diferentes modos de viver, inventando e instaurando outras
realidades, extraindo de nós mesmos a força demiúrgica que nos faz plural.
Força alimentada por um pensamento dinâmico, onde razão e imaginação
caracterizam-se como criadoras, ativas, abertas e realizantes. (RICHTER,
2002, p. 1, com grifo do autor )

Desta forma, fica mais fácil compreender porque, para este filósofo, a
imaginação seria fundamental ao conhecimento, assimilação e transformação da
realidade. Conforme alerta Guimarães (2000, p. 2), imaginar para Bachelard
significa ver, ouvir, sentir por meio de uma imaginação que liberta os eventos
de sua compreensão literal. É suspeitar do que está sendo dado como certo,
objetivo, oficial. Neste sentido, ainda consoante Guimarães, o imaginário
nasceria da conexão entre as imagens que vêm de fora (mundo exterior) e as
imagens criadas pela imaginação do homem.

A concepção bachelardiana da imaginação como uma faculdade cognitiva


criadora, isto é, como uma categoria subjetiva capaz de receber, reviver e
manipular imagens, surgiu no Romantismo, onde a imaginação era considerada
como um conceito “mágico-metafísico, que transportava a fantasia para um
plano transcendente e trans-humano” (SIMÕES, 1999, p.13). Para Turchi (2003,
p. 20), tanto na estética quanto na filosofia românticas, o símbolo e o mito têm
importância-chave na concepção de que o infinito só aparece no finito através
de manifestações do imaginário. Ao imaginário abrir-se-iam, assim, duas
atividades distintas em sua vertente criadora: a literária e a científica.
Ao retomar o conceito romântico de imaginação, Bachelard ficou
conhecido como “herdeiro da tradição romântica” (SIMÕES, 1999, p. 13). Mas,
ao invés de repetir os preceitos românticos, o filósofo francês construiu sua

40
doutrina própria, cuja base seria o conceito da imaginação enquanto dinamismo
essencialmente humano.
Se a imaginação foi muitas vezes considerada como potência secundária,
sabemos presentemente que ela é a função dinâmica importante do psiquismo
humano. A imaginação gera a ação e a cognição. Consoante Paul (2000, s/p),
“para agir é preciso antes imaginar”. Neste sentido é construído todo o
arcabouço do pensamento bachelardiano acerca da imaginação, pois, para ele, o
ser humano pertenceria de forma mais intensa ao mundo das imagens do que ao
mundo das idéias.
A descrição deste potencial criador da imaginação material permitiu a
Bachelard combater as críticas dos que concebiam a imaginação como mera
faculdade mental responsável exclusivamente por formar imagens da realidade
na qual o ser humano está inserido. De forma contrária a essa perspectiva,
Bachelard defende a idéia de que a imaginação equivale no psiquismo humano a
uma mobilidade espiritual, a uma experiência da abertura, que nos conduz ao
abandono do curso ordinário das coisas, e que nos faz ultrapassar as formas
percebidas. “A imaginação deve ultrapassar a faculdade de reproduzir o
perceptível, deve ir além dos fenômenos apreendidos pelo prisma da percepção
visual.” (PAIVA, 1997, pp. 89 e 90)
A partir da distinção entre imaginação material e formal, Bachelard
destacará em sua teoria a importância das imagens poéticas. De acordo com o
filósofo, “estes últimos conceitos, expressos de forma abreviada, parecem-nos
efetivamente indispensáveis a um estudo filosófico completo da criação
poética” (BACHELARD, 1998, p.1). A existência destas duas dimensões
imaginativas permite, por seu dinamismo, a configuração de um campo mais
amplo de compreensão, o da imaginação dinâmica onde, segundo as idéias
propostas por Bachelard, a imaginação atua sobre as imagens de forma
dinâmica, construindo sentidos que remetem a compreensões tão profundas que
se julgavam apagadas pelo tempo. A imaginação, desta forma, nos remeteria
“para realidades inauditas, destituídas de qualquer vínculo com a realidade vista
ou percebida” (id., ib., p. 94).
Neste ponto da doutrina bachelardiana, é proposto o conceito do
imaginário. “Em virtude desse caráter primevo, indômito e irracional que
posteriormente é traduzido em imagens objetivas, Bachelard sustenta que mais

41
apropriado que o termo imagem seria o vocábulo imaginário” (PAIVA, 1997, p.
89). Conforme é exposto nesta concepção, o imaginário poderia ser
compreendido como um sistema funcional, responsável pela articulação
significativa de imagens. Este sistema operaria com regras próprias de
funcionamento, diferentes das utilizadas na lógica racional. Seria responsável,
além disso, pela “dinamização da totalidade das imagens produzidas pelo
homem” (TURCHI, 2003, p.24).
É importante referir que os conceitos de imagem (proposto por
Bachelard) e de símbolo (utilizado pela psicanálise tradicional) não são
sinônimos. Para Bachelard, as imagens não se bastam sendo universalmente
significantes, mesmo que inseridas em um processo universal que é o de
imaginar. As imagens bachelardianas são formas cuja autonomia e mobilidade
impedem uma decifração conceitual que, na psicanálise tradicional, é
normalmente associada a abstrações de impulsos sexuais.
Mas as teorias propostas por Bachelard demonstram que as causalidades
ou explicações psicológicas não podem, jamais, nos conduzir ao sentido
emergente que a imagem propõe. Apesar da importância da psicanálise para
elucidar o assédio do inconsciente sobre as produções da consciência — e cuja
relevância Bachelard admite e reconhece —, é preciso distinguir os processos
do psiquismo e os processos da imaginação, nos quais os símbolos possuem a
sua autonomia. Assim sendo, ao associar as imagens que surgem pelo exercício
da imaginação a um recalque socialmente produzido, a psicanálise atrela a
imagem a um significado heterônomo, negligenciando a própria natureza da
psique, cuja fecundidade é vislumbrada pelas teorias bachelardianas.
Em seu estudo sobre a imaginação, Bachelard prioriza a análise das
imagens literárias em detrimento das demais, tais como as pictóricas, por
exemplo. Para ele, as imagens literárias impulsionam o fluxo de criação e
recriação de sentidos da imaginação em movimento. Na teoria, ou poética,
bachelardiana, o papel da imaginação consiste em criar, a partir das pulsões
imaginárias, representações absolutamente abertas para um devir indeterminado.
Essa força criadora reflete-se de forma indefectível na imagem literária, que
transcende as imagens apreendidas pela percepção. Consoante essa perspectiva,
a imagem literária seria móvel e dinâmica, não ficando circunscrita a nenhuma
forma visual ou auditiva, ainda que delas se origine.

42
O fascínio que o imaginário poético despertou em Bachelard o fez
conceber esta dimensão significativa como um campo propício ao
desenvolvimento da criatividade humana. Para Turchi (2003, p. 47), “pelo
caminho da teoria do imaginário, chegou-se à conclusão de que a essência dos
gêneros literários conduz, automaticamente, à essência do homem”. As imagens
suscitadas pelo texto poético permitiriam, graças ao imaginário, criar um canal
de intersubjetividade entre o poeta e o leitor. Este canal seria estabelecido não
pela reprodução corriqueira das imagens captadas pela percepção e nem pela
representação simbólica de sofrimentos tal qual sugere a Psicanálise. A ligação
ocorreria no campo da fenomenologia, caracterizada pelo instante da criação em
que as imagens poéticas são construídas e dialogam com as impressões pessoais
do leitor:

O poeta não me confia o passado de sua imagem e, no entanto, sua imagem se


enraíza, de imediato, em mim. (...) Para esclarecer filosoficamente o problema
da imaginação poética é preciso voltar a uma fenomenologia da imaginação.
Esta seria um estudo do fenômeno da imagem poética no momento em que ela
emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser
humano tomado na sua atualidade. (BACHELARD, 1978, p. 184)

Desta forma, Bachelard propõe a compreensão das imagens poéticas


como instâncias significativas singulares, como uma faculdade cognitiva própria
da criatividade humana e não mera representação psíquica:

Quando, no decorrer das nossas observações, tivermos que mencionar a


relação de uma imagem poética nova com um arquétipo adormecido no
inconsciente, será necessário compreendermos que essa relação não é
propriamente causal. A imagem poética não está submetida a um impulso. Não
é o eco de um passado. É antes o inverso: pela expressão de uma imagem, o
passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses
ecos vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem
poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma
ontologia direta. É com essa ontologia que desejamos trabalhar. (Id., ib., p.
183)

Para Bachelard a imagem poética é dinâmica, oposta ao símbolo fixo, e


esta mobilidade, de acordo com o filósofo e a despeito da teoria psicanalítica,
representa com mais fidedignidade o psiquismo humano. “O estudo dos
movimentos da imaginação deve, assim, conduzir-nos a uma abertura integral,
do infinito que, na linguagem dos poetas, corresponde à imaginação pura”
(PAIVA, 1997, p.103). Neste sentido, as representações imagéticas que surgem
nos poemas desautomatizam a linguagem ao possibilitar a ocorrência de

43
múltiplos significados, “segundo Bachelard, a imagem poética, ao deflagrar o
novo, remete-nos à força criadora do ser” (PAIVA, id., ib.). Desta forma, o
papel do sujeito que interage com a reverberação poética de sentidos é maior do
que habitualmente considerado, e isto ocorreria graças à imaginação, que
permitiria ao leitor manter-se aberto ao futuro, ao sentido novo, ainda não
vivido, aberto à experiência. Tal qual a criança.
Neste contexto, a teoria da imaginação proposta por Bachelard aponta
para a necessidade de o ser humano despertar sua atenção diante de outros
homens, do mundo em que vive e de si próprio. Conforme defende Rodrigues
(2005, p. 34), Bachelard aproxima-se dos poetas por perceber os limites da
ciência e da razão para dar uma explicação ainda mais completa sobre a
realidade, bem como para falar do desconhecido. Ele admite que estabelecer um
limite é já ultrapassá-lo. Por isso, partindo do estudo da poesia, compreende
melhor as possibilidades experimentais, indo além da razão filosófica e
científica, que representam as afinidades entre experiência poética e estética do
homem com seu mundo.
A doutrina de Bachelard, ainda que não criada originalmente neste
sentido, fornece elementos importantes à compreensão da proximidade entre a
poesia e a infância. Muitos dos conceitos propostos por este epistemólogo
justificam a concepção da poesia como uma expressão da criatividade,
curiosidade e auto-superação humanas. A idéia de imaginação dinâmica, por
exemplo, aproxima-se muito da natureza de pensamento infantil. Mas é,
sobretudo, a concepção dialógica que a imaginação poética possibilita uma das
idéias que mais justificam a identificação de características comuns que
aproximam a criança do poeta, pois há, em ambos, o pleno exercício da
subjetividade característica da natureza humana. Para Bachelard, a infância
seria uma potência do ser em permanente devir e transformação. Consoante
Benmasour (2004, s/p), a poesia estaria enraizada na infância.
Para Santana (2004, p. 36), Gaston Bachelard defende a existência um
núcleo de infância na alma humana. Assim, acontecimentos e valores, que
emolduram nosso presente de pessoas adultas, manteriam contato com aquela
fase na qual podíamos assumir variadas facetas comportamentais, antes dos
fragmentos existenciais serem forçados a ficar coesos e exclusivos em torno de
uma forma singular, que pensamos ser nossa pessoalidade única. Neste sentido,

44
a infância seria, mais do que uma fase biológica, também uma dimensão
ontológica atuante na construção do ser humano. Esta dimensão seria tão
determinante que influenciaria as pessoas por toda a sua vida.
Como é argumentado por Castro (1991, p. 137), a presença da infância,
em sua ludicidade, não se restringe à cronologia dos primeiros anos de vida de
uma pessoa. O jogo de ser, de existir e de inteirar-se com o mundo perdura por
toda a vida de uma pessoa. O lúdico, como gratuidade do acontecer no mundo,
das coisas e das pessoas, une-se ao espírito libertário da infância como
arquétipo mediador do conhecimento e vivência humana. “A presença da
infância na vida de uma pessoa, segundo Bachelard, confere-lhe dimensões de
uma totalidade da vida nem sempre percebida.” (Id., ib.)
De forma similar se expressa Richter (2002, p.5) ao afirmar que
Bachelard apresenta em suas teorias uma filosofia ontológica da infância onde
destaca o seu caráter permanente. Para o pensador francês, é necessário resgatar
a criança que fomos, pois ela nos fornece uma forma de consciência primitiva.
E, neste resgate, os poetas são essenciais, pois ajudarão a reencontrar em nós
essa infância viva, essa infância permanente, durável.
Ainda consoante Castro (1991, p. 140), a infância proposta por Bachelard
pode ser entendida como força dinamizadora da vida. Tal dinamismo seria
devido, consoante o autor, ao caráter lúdico inerente a este estado. A ludicidade
da infância permitiria ao indivíduo o pleno exercício da liberdade pelo constante
uso da imaginação, cuja maior manifestação na criança se concretizaria por
intermédio do jogo, da brincadeira. Para Richter (1998, p.10), a criança reúne
todas as possibilidades criadoras e inventivas quando constantemente desafiada
pela matéria a agir e reagir. Este momento intenso de investigações
materialistas, que acontece através dos jogos infantis de ficção, ainda que em
grande parte inconscientes, é o tempo da construção da imaginação, do
armazenamento das imagens primeiras.
Neste contexto, “a infância lúdica representada nos poemas de Manoel de
Barros não difere das descrições de infância reportadas por Bachelard” (Idem,
ibidem, p. 140). Esta concepção de infância enquanto dimensão lúdica é
apresentada por Castro (1991, p. 141) como instância triplamente caracterizada
enquanto tempo idealizado da vida, como matriz da linguagem, que pode estar

45
ao lado da anterior e, até, numa infância lúdica ontológica, presente na essência
de todos os seres.
Neste contexto, e como defendido por Bachelard, a imaginação poética
permite que a dimensão humana aflore na obra e crie sentidos, que fazem
dialogar a sensibilidade do autor e do leitor. Este diálogo parece ainda mais
importante nos tempos atuais, já que, conforme oriente Held (1980, p. 139),
vivemos numa sociedade em que as crianças se sentem cada vez mais
condenadas ao silêncio, à solidão, oriundas de um ritmo de vida vertiginoso,
onde estamos sempre correndo, e substituindo o contato familiar pela televisão
ou outro canal midiático. Neste sentido,

A literatura poética é, antes de tudo e indissociavelmente, fonte de


maravilhamento e de reflexão pessoal, fontes de espírito crítico, porque toda
descoberta de beleza nos torna exigentes e, pois, mais críticos diante do
mundo. E porque quebra clichês e estereótipos, porque é essa re-criação que
desbloqueia e fertiliza o imaginário pessoal do leitor, é que é indispensável
para a construção de uma criança que, amanhã, saiba inventar o homem (Id.,
p.234)

Com base neste contexto, o diálogo decorrente da interação leitor/escritor


deve ser o mais profícuo possível, isento, tanto quanto possível, de preconceitos
baseados na idéia de ser a criança um leitor ingênuo, uma tabula rasa em que o
escritor deve, a partir do discurso veiculado pelo texto poético, inscrever seus
ensinamentos morais.
É importante referir que, nesta dissertação, a busca pela compreensão
mais aprofundada das características da imaginação é realizada por ser
importante para o estudo da poesia de Manoel de Barros. A poesia e a
imaginação são instâncias intimamente imbricadas nos textos desse poeta, quer
tratem da infância ou não. A associação entre a poesia e imaginação implica no
uso, característico na poética de Barros, de dimensões expressivas, como a do
olhar, dimensão igualmente importante, e referida neste trabalho, para a análise
de seus poemas:

a relação entre poesia e imaginação funcionaria de duas formas em Barros.


Primeiro coloca-se em dúvida a sinceridade romântica atribuída ao eu-lírico, e
que em vez de ratificada é abalada pela aproximação ao olhar imaginativo da
criança. Segundo inaugura-se um novo entendimento do ver. Esse valor
atribuído ao olhar imaginativo já fora expresso anteriormente, num poema do
Livro sobre nada dedicado ao pintor boliviano Rômulo Quiroga, em que
podemos perceber a relação entre o ver e o imaginar. Nele, o poeta diz: "O

46
olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê./ É preciso transver o
mundo." Assim, o ver na poesia manoelina se afasta da visão empirista da
realidade, que se vincula à crença perceptiva do olhar. Em poesia é preciso ver
com a imaginação, o que para o poeta é uma forma de trans-ver. (Júnior, s/d,
s/p)

1.5- Falar de, falar para: a poesia e a criança

Se, ao contrário, escutássemos um


pouco mais a criança, não seríamos,
nós mesmos, mais abertos ao novo, ao
imprevisível, e menos presos a normas
e padrões? Pois, ao falarmos de
infância, ao invés de estarmos lidando
com debilidade e incapacidade não
estamos justamente falando de
invenção? E isso não diz respeito
também à literatura?

Ana Maria Clark Peres (Anais da VI


Jornada Nacional de Literatura, 1997,
p. 06)

As considerações que serão propostas nesta seção buscarão compor um


panorama das possíveis interpretações da infância na poesia de Manoel de
Barros. A dimensão de análise proposta para esta seção objetiva completar o
panorama de reflexões desenvolvidas, até agora, no sentido de finalizar a
identificação de elementos que permitam argumentar a favor da aproximação do
discurso poético deste autor com o tema da infância.
Recuperando o que foi dito até agora, inicialmente foi proposto que a
relação de proximidade entre a poesia e a infância configura-se pela apreensão
sensível e imagética que caracteriza tanto a linguagem poética quanto a lógica
de pensamento infantil. Esta apreensão, presente em qualquer pessoa, mas, de
forma mais amplificada, no universo subjetivo do poeta e da criança, seria
construída com base em unidades básicas de sentido, as imagens. As imagens,
independentemente de se originarem da percepção ou da criação cognitiva,
seriam articuladas de maneira significativa pela imaginação. Neste contexto, a
imaginação foi descrita como um processo de conhecimento que apresenta
características e dinamismo próprios.
Como exemplo de teoria de imaginação, enquanto fenômeno criador e
recriador de significados subjetivos, foi citada a doutrina de Gaston Bachelard.

47
Para este epistemólogo, a imaginação seria constituída por dimensões
específicas, dentre as quais se destaca a dimensão material que, por seu
dinamismo, seria a mais próxima do psiquismo humano e da qual se originaria o
discurso literário — sobretudo o poético.
Em todos os níveis de argumentação desenvolvidos, buscou-se orientar as
reflexões pelo tema da humanidade. Isto foi feito porque tanto a infância quanto
a poesia foram (e serão em todo o decorrer deste trabalho) consideradas como
instâncias intimamente relacionadas no que dizem respeito à condição humana.
Tanto no sentido de estarem ligadas à intimidade do ser humano quanto no de
permitirem a expressão de sua subjetividade.
Este tipo de abordagem é particularmente importante para o
desenvolvimento do trabalho proposto porque exprime a relação entre a infância
e a poesia como uma relação duplamente articulada, o que permite compreende-
las em termos de complementação mútua. No caso da poesia, ao mesmo tempo
em que retrata a criança e seu universo (por vezes orientada pela experiência
pessoal do autor), o poeta recupera uma infância a-histórica, mais direcionada a
uma dimensão sensível da existência.
Esta dupla dimensão se aproxima do conceito, proposto por Kohan (2004,
pp. 62 e 63), ao defender que as distinções existentes entre história e devir
(chrónos e aión) podem ajudar a (re)pensar a infância. Com base nesse
pressuposto, de acordo com ele, há duas infâncias. Uma seria a infância da
continuidade cronológica, da história, das etapas do desenvolvimento: é a
infância que, pelo menos desde Platão, se educa conforme um modelo. Essa
infância seguiria o tempo da progressão seqüencial: seremos primeiro bebês,
depois crianças, adolescentes, jovens, adultos, velhos. Ela ocupa uma série de
espaços molares: as políticas públicas, os estatutos, os parâmetros da educação
infantil, as escolas, os conselhos tutelares.
A outra infância, segundo a divisão proposta por Kohan (2004),
permitiria visualizar o alcance da poesia de Manoel de Barros, pois vislumbra a
existência de uma infância de maneira plena, não restrita apenas a uma fase
biológica socialmente marcada, mas sim como uma dimensão que deve estar
sempre presente na subjetividade humana, independentemente da idade do
leitor, uma vez que esta utiliza-se de elementos como a imaginação, a fantasia e
o olhar inaugural/desautomatizado, despertando-os de seu estado de latência.

48
Esta concepção, dialógica, da infância contraria a noção, comum até
algum tempo atrás, sobre a criança e a infância serem compreendidas como
sinônimos de falta (no sentido de necessidade de formação) e de inferioridade
(relativa à imaturidade). A este respeito se expressa Silva (2005, s/p) ao
argumentar que diferentes concepções de infância foram sendo construídas no
decorrer da História e trazem ainda a marca de um discurso dominante sobre o
ser criança. Consoante o autor, embora a modernidade tenha colocado as
crianças e a infância como centro das atenções das famílias, legisladores,
educadores e demais profissionais, exigindo destes cuidados para com elas,
trouxe consigo também uma imagem de desqualificação das mesmas,
colocando-as no lugar daqueles que nada sabem, que nada pensam, que nada
produzem, contrapondo-as ao adulto que tudo sabe, tudo pensa, tudo produz.
Este tipo de concepção, referida por Silva (2005, s/p), tem naturezas
diversas — históricas, sociais e ideológicas —, mas são baseadas em uma única
fonte, a da visão adultocêntrica de mundo. Tal visão não fica restrita ao
convívio social e afloram no discurso literário que, como defende Arnold
Hauser (apud Ceccantini, 2004, p.271), “é uma construção dialética, conversa
que se estabelece entre o autor e o público mediante uma ação recíproca”. O
diálogo que se estabelece, quando composto por este tipo de noção, inviabiliza a
dialética entre os interlocutores e traz, em sua essência, o germe da perpetuação
do preconceito contra a criança e a infância. Conforme alerta Held (1980, p.
229), “a criança, torna-se aquilo que fazemos dela, evolui em função do
alimento que lhe propomos. Seguramente, o adulto que despreza a criança
valendo-se de uma visão simplista, torná-la-à tal como a vê”.
Felizmente, este tipo de concepção tem sido gradualmente substituída por
noções menos estereotipadas de mundo e, como sugerido por Hauser, o reflexo
destas mudanças surge de forma indelével nos textos literários, sobretudo os
contemporâneos, nos quais se insere o trabalho de Manoel de Barros. Nestes
textos a criança deixa de ser compreendida como ser incompleto e passa a ser
visto “como um ser em formação, mas orientado no sentido de alcançar total
plenitude em sua realização” (COELHO, 2000, p. 27). E a infância deixa de ser
percebida como estágio inferior de desenvolvimento e passa a ser valorizada por
seu potencial de renovação e criatividade, fornecendo, assim, uma lição a ser
seguida pelos adultos.

49
Para Silva (2005, s/p), se há infância é porque há inacabamento. Talvez
aí esteja a mais positiva característica da infância: o inacabamento, que torna os
indivíduos abertos ao mundo, curiosos, inquietos, criativos, capazes de pensar
uma outra realidade, de construir uma outra História, de serem sujeitos da
experiência. Experiência compreendida como aquela na qual os seres são
tocados pelas coisas do mundo, afetados por elas, e de onde saem
transformados.
A imagem da criança representada na poesia de Manoel de Barros integra
este novo panorama de concepção da criança e da infância. Em sua poesia,
muitas das tradicionais noções baseadas na supremacia do adulto sobre a criança
são relativizadas e a sua poética opera com dimensões, social e humana, bem
definidas: “o poeta tem um compromisso social: não é só o menino que ele foi
que pretende reencontrar, mas a infância coletiva” (SCOTTON, s/d, p.10). Neste
contexto, é possível perceber o valor da infância no discurso poético de Manoel
de Barros:

Assim, vale ressaltar que (na poesia de Manoel de Barros) as identidades


construídas (...) são em primeiro lugar a do poeta como um ser equilibrado em
harmonia com o meio, criativo; há também a identidade da natureza
representada pelas aves, passarinhos e outros que representam o mundo da
natureza; mas não podemos nos esquecer que a criança também tem identidade
marcada nos textos.
(...) É possível notar nas poesias manoelinas a presença da criança e do ser
humano natural. (BETONI, 2005, pp. 45 e 57)

Com efeito, a infância é um tema freqüente e fundamental na obra de


Barros, o que pode ser comprovado pela constatação de Afonso de Castro (1991,
p. 57), em seu estudo A poética de Manoel de Barros. Neste estudo, Castro
(1991) afirma que para se entender a poesia deste poeta acerta quem fala “da
infância, da imagem, e da palavra como elementos fundamentais”. Leal (apud
Kohan, 2004, p.26) complementa a reflexão: “a poesia de Barros procede da
infância, de um núcleo de experiência decisiva, espécie de fonte primordial à
qual outros elementos foram juntando-se”.
O poeta, já octogenário, reconhece a importância de manter viva a
dimensão infantil de percepção e pensamento, dimensão que, em conjunto com a
racionalidade adulta, permite estabelecer um ponto de equilíbrio muito saudável
no psiquismo humano. Para Zuben (1993, s/p)

50
A criança viva, que não pode ser morta sem gerar o colapso final da psique,
recoloca o sujeito adulto no limiar de variadas escolhas que não trarão um
produto final, como seria aquele da fase de maturidade pessoal definitiva.
Assim, um entrecruzar de infantilidade e de comportamento adulto seria o
campo de respostas para o sinal de alerta que, por vezes, soa no adulto envolto
em melancolia e sentimento de solidão.

Neste sentido, a infância presente na poesia de Manoel é retratada não


apenas como referencial temático, mas como uma profícua dimensão de
existência. Em seus poemas, a infância é apresentada como um dinamismo que
conflui para a busca de sentidos fundamentais do ser humano. E, ao aproximar
sua poética da infância, Manoel de Barros reavalia toda a existência humana,
que passa a ter sua fase produtiva/criativa percebida também, e não apenas no
meio, na idade adulta, como costuma ser considerado. Não parece tratar-se de
mero saudosismo, mas, sim, de valorização de tudo o que o adulto “considera
desrazão, absurdo e insensatez na infância e que o poeta percebe como
sabedoria” (SCOTTON, s/d, p.5).
Neste sentido, como argumenta Silva (2004, p.792), aprender com as
histórias infantis, aprender com as crianças, com a infância, é um desafio.
Desafio que, como ilustra o poeta Manoel de Barros, transforma a todos nós em
caçadores de “achadouros” de infância. Infância compreendida aqui como
condição da existência humana, e que independe da idade, infância como
experiência ôntica e não apenas biológica.

51
CAPÍTULO II: O poeta: vida e obra

“Tenho um lastro da infância, tudo o que a


gente é mais tarde vem da infância”.

(Manoel de Barros, In: O tema da minha


poesia sou eu mesmo. BARROS, (s/d))

52
2.1- Breve apanhado bibliográfico

Há sempre um lastro de
ancestralidade que nos situa no
espaço.

Manoel de Barros (apud Castello,


1997, p. 3)

O poeta Manoel de Barros, cujo nome completo é Manoel Wenceslau


Leite de Barros, nasceu em 19 de dezembro de 1916, em Cuiabá (MT). Viveu
por muito tempo em Corumbá (MS), onde atualmente se localiza a fazenda em
que passa grande parte de seu tempo quando não está em sua residência urbana,
que se localiza na cidade de Campo Grande (MS).
Desde criança, Barros foi criado em meio à fauna e flora do Pantanal e
esta convivência com a natureza foi determinante para sua obra: “a esta altura
não se pode deixar de fazer referência à região onde o poeta nasceu e vive. É a
natureza não como simples cenário ou elemento exótico, mas como algo
incorporado ao próprio texto” (SÁVIO, 2004, p. 69). Conforme explica
Camargo (2004, p.104), embora não goste da alcunha de poeta pantaneiro,
Manoel de Barros tem no pantanal a força arquetípica e telúrica da sua criação
poética.
Aos oito anos, Manoel de Barros foi enviado para estudar em um colégio
interno em Campo Grande e, depois, ao Rio de Janeiro, cidade onde concluiu
seus estudos básicos — no Colégio São José dos Irmãos Maristas — e se
graduou, como Bacharel em Direito, no ano de 1941.
Em sua juventude, entre os anos de 1935 e 1937, Barros integrou o
movimento da Juventude Comunista, do qual se desligou após a decepcionante
audição de um discurso proferido por Luiz Carlos Prestes (seu líder político) em
favor de Getúlio Vargas. Esta frustração fez o poeta desencantar-se da política
partidária e o levou a praticar uma espécie de exílio voluntário, o que lhe
possibilitou conhecer lugares como Bolívia, Peru e Nova York.
Em Nova York, Manoel de Barros conviveu com a renovação estética
proposta por obras de grandes artistas, tais como Picasso, Chagall, Miró e Van
Gogh, que inspiraram ainda mais sua vocação poética. Para Filho (s/d):

53
A poesia de Manoel de Barros é enriquecida pela alma criadora de seus
predecessores, os quais rompem com os cânones ultrapassados para
estabelecer traços definidores da poesia moderna. Como a subversão da
linguagem, o desregramento do sentido, a desumanização e dispersão do eu-
empírico. Traços fundamentais na construção da novidade poética desse cantor
efetivo das coisas do Pantanal. (FILHO, s/d)

Após conhecer o mundo, Manoel de Barros fixou-se de vez no Brasil,


onde possui duas residências. A primeira é a da cidade de Campo Grande, onde
fica seu escritório. A segunda é a Fazenda Santa Cruz, localizada no município
de Corumbá. Nesta fazenda — que, segundo Castello (1997, p. 2), “na época da
cheia fica completamente isolada do mundo” — o poeta cria gado e fica mais
próximo de seu ambiente preferido: o pantanal matogrossense.
O poeta é casado com a mineira Stella Leite de Barros, com quem tem
três filhos, Pedro, João e Martha, esta, uma bem conceituada artista plástica,
cujo trabalho vem sendo utilizado na ilustração dos livros de seu pai.
O primeiro livro publicado do poeta foi Poemas concebidos sem pecado,
no ano de 1937, com uma tiragem artesanal de apenas 20 exemplares. Contudo,
o livro que primeiro escreveu chamava-se Nossa Senhora de minha escuridão,
do qual a versão original foi confiscada pela polícia por ocasião da ditadura
militar, impossibilitando sua publicação comercial.
A despeito da publicação de seu primeiro livro ter ocorrido no fim da
década de 30, foi somente nos anos 80 que Manoel de Barros teve seu trabalho
reconhecido pela crítica especializada, sendo comentada e recomendada por
críticos e estudiosos como Antônio Houaiss (dentre outros). A partir de então,
sua poesia adquire notoriedade e reconhecimento, nacional e internacional, e
passa a ser objeto de estudos nos mais variados níveis culturais e acadêmicos.
Dentre os prêmios que Manoel de Barros recebeu estão o “Prêmio
Orlando Dantas” (conferido pela Academia Brasileira de Letras), em 1960; o
“Prêmio Cecília Meireles” (concedido pelo Ministério da Cultura); o “Prêmio
Nestlé de literatura”, em 1997 e o “Prêmio Jabuti” (concedido pela Câmara
Brasileira do Livro), que recebeu duas vezes, na edição de 1990 e de 2004
(pelos livros O guardador de águas e O fazedor de amanhecer,
respectivamente). Ademais, o poeta foi agraciado com o título de Doutor
Honoris Causa pela Universidade Católica Dom Bosco de Campo Grande (MS),
no ano 2000.

54
O conjunto de sua obra inclui: Poemas concebidos sem pecado (1937),
Face imóvel: poemas (1942), Poesias (1956), Compêndio para uso dos pássaros
(1961), Gramática expositiva do chão (1969), Matéria de poesia (1974),
Arranjos para assobio (1982), Livro de pré-coisas (1985), O guardador das
águas (1989), Gramática expositiva do chão: poesia quase toda (1990),
Concerto a céu aberto para solos de aves (1991), O Livro das ignorãças (1993),
Livro sobre nada (1996), Retrato do artista quando coisa (1998), Ensaios
fotográficos (2000). Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001) e Poemas
rupestres (2004).
Sua produção mais recente em que o tema prevalente é o da infância
compreende: Exercícios de ser criança (1998), O fazedor de amanhecer (2000),
Poeminhas pescados numa fala de João (2001) — sendo, este último, um
apanhado de poemas publicados anteriormente em Compêndio para uso dos
pássaros (de 1961) —, Cantigas por um passarinho à toa (2005), Memórias
inventadas (a infância) (2003) e Memórias inventadas (a segunda infância)
(2006).

2.2- Características poéticas

O que eu queria era fazer brinquedos


com as palavras.
Fazer coisas desúteis. O nada mesmo.
Tudo que use o abandono por dentro e
por fora.

Manoel de Barros (Livro sobre nada,


1996, p.7)

As dimensões significativas atribuídas à poesia de Manoel de Barros são


múltiplas. A originalidade com que este poeta compõe seus poemas reflete-se
em uma cosmovisão que transcende o sentido tradicional das palavras e das
convenções em que, normalmente, o ser humano se encontra inserido. De acordo
com Bastos (2003, s/p), a poética de Manoel de Barros não é de fácil acesso
devido às construções sinuosas e enormidade de imagens que nos oferece, “por
isso mesmo a penetração exige paciência. É preciso estar desarmado da lógica,
conhecer um pouco a língua e estar aberto às emoções.”

55
Nessa perspectiva, é possível perceber a poesia de Manoel Barros como
expressão desvinculada (mas não isenta) da lógica de expressão, de pensamento
e do lugar-comum, e visceralmente ligada à natureza e à criação, dos seres, das
coisas e do próprio homem. Para Marinho (2002, p. 13):

Tal como uma estação chuvosa que pode reverter o fluxo dos rios, a poesia de
Manoel de Barros resulta numa verdadeira reversão do fluxo sintático e
semântico do discurso: o fluxo habitual e corriqueiro é entrevisto como uma
forma de represamento de idéias por intermédio do adestramento cotidiano,
lógico e servil do discurso. Em Manoel de Barros, somente o estado rústico,
ilógico ou selvagem das palavras podem revelar novas formas de se conceber o
universo.
Nesse novo universo, reconstruído por meio do discurso poético, (...) os seres
humanos irmanam-se a bichos, plantas, liquens e pedras, assim como, em meio
aos versos, substantivos, adjetivos, verbos e advérbios dançam loucamente ao
ritmo veloz e alucinante de um rasqueado bem pantaneiro.

Cronologicamente, a poesia de Manoel de Barros estaria inserida na


geração modernista de 1945 e, com efeito, seus poemas seguem parâmetros
proposto pela vanguarda, sobretudo européia, do século XX — da qual Barros é
profundo conhecedor e admirador. Esta característica pode ser percebida,
principalmente, por sua orientação anti-retórica e anti-erudita, que se
concretizam, segundo Larrosa (apud SCOTTON, s/d, p.2), em “rebeldia
lingüística, ironia, gosto pela surpresa verbal, pelo lúdico, pelo coloquial e pelo
exercício poético de fazer insólito o cotidiano e cotidiano o insólito.”
Contudo, a influência modernista não pode ser compreendida como único
parâmetro para a caracterização da poesia de Manoel de Barros. Resgatando a
reflexão — citada na introdução deste trabalho — proposta por Pucheu (s/d),
não é possível enquadrar o universo poético deste autor sem incorrer em
reducionismo, pois, como alerta Menezes (s/d, s/p), “a poética de Manoel de
Barros distancia-se do padrão estético e estilístico da literatura moderna e
contemporânea (...) por intermédio de uma linguagem que se desvela em
imagens inusitadas.”
A referência de Menezes à imagem é muito pertinente, pois o uso de
imagens é uma das principais características existentes no universo poético de
Manoel de Barros (tanto na vertente “adulta”, quanto na “infantil”), conforme
argumenta Filho (s/d), Barros elege uma linguagem onírica, fragmentada, rica
em nuances surrealistas, que escandaliza pela vivacidade das suas imagens.

56
Além da “vivacidade”, há de se notar também a abundância de uso de
imagens em seus poemas, sobretudo as relacionadas à natureza. Os cenários, dos
quais surge a voz do poeta, são o mato, os rios, os passarinhos e demais
habitantes do pantanal. “Tudo se mistura num processo de troca e sinestesia, a
ponto de não diferenciarmos a natureza do homem” (CARPINEJAR, s/d, s/p).
Se o uso de imagens é importante para a poesia (como referido na seção 1.2), na
poesia de Manoel de Barros ele constitui uma categoria fundamental.
Nos cenários compostos pelo poeta, nos quais se destaca a natureza,
surge a “teologia do traste”, expressão utilizada por Carpinejar — e batizada
com o mesmo nome de um poema do livro Poemas Rupestres (2004) — para
designar o fenômeno de valorização, nos poemas de Barros, dos seres e coisas
considerados insignificantes em sua existência. Diz o poema:

As coisas jogadas fora por motivo de traste


são alvo da minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as idéias.
Porque as idéias, sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as idéias, por ser um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.
Idéias são a luz do espírito — a gente sabe.
Há idéias luminosas — a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
atômica, a bomba atôm.................................
........................................................... Agora
eu queria que os vermes iluminassem.
Que os trastes iluminassem. (BARROS, 2004, s/p)

De acordo com a “teologia do traste”, os elementos/pessoas comuns são


valorizados e percebidos de forma hiperbólica, figurando em situações e lugares
impensáveis usualmente. As “miudezas”, expressão usada pelo próprio Manoel
de Barros, têm seu estar no mundo amplificado pelo olhar do poeta, que deseja
atrair atenção para o valor e importância que possuem. Para Carpinejar (op.
cit.), Manoel de Barros introduz elementos como se fossem conhecidos.

57
Trabalha com certezas que não são usuais, nem racionais, mas de fundo
emocional. Certezas imaginárias que fixam relações psicossomáticas entre
elementos díspares: formigas-homens-vaga-lumes. O autor visualiza as formigas
como contempladoras, transfigurando sua condição inata. Ele desconstrói para
construir. Desautomatiza o vocábulo em busca de um arranjo inédito, que segue
o rastro verbal originário.
Os seres e as coisas que são considerados inferiores ou insignificantes
são reconhecidos assim porque existe uma forma preconceituosa de notá-los, um
olhar pretensamente superior, cuja existência não se justifica. Neste conjunto de
elementos “ínfimos” se inclui a criança que, conforme apresentado na seção 1.3
deste trabalho, a despeito desta visão limitante, possui valor subjetivo intenso.
Para Scotton (s/d, s/p), na obra poética de Manoel de Barros a infância não é um
paraíso perdido, mas uma dimensão que pode se fazer sempre presente na vida
adulta, uma vez que elementos como a imaginação, a fantasia, a criação e um
olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas. Este olhar, de acordo com
a autora, subverte a lógica vigente e contribui para a unidade e a totalidade do
ser humano.
A valorização dos excluídos, proposta pelo poeta, busca recuperar a
relação original do homem com o mundo que o cerca, independentemente do
valor (mercadológico ou ideológico) imediato que as coisas e seres apresentem.
Para Scotton (s/d, s/p), Manoel de Barros não se importa com os ditames do
mercado editorial, sua poesia é orientada para a inversão da escala de valores do
válido e do inválido. O que é considerado desprezível pela sociedade de
consumo é valorizado em seu poema, e vice-versa. Manoel de Barros, em sua
poética, não parece estar interessado em reproduzir o cotidiano, mas sim recriá-
lo. Seus poemas celebram a gratuidade, quer possuam natureza sonora, visual ou
semântica.
A poética de Manoel de Barros apresenta, ainda, uma outra dimensão
reflexiva, a do próprio fazer poético, caracterizado pelo uso da metalinguagem.
Esta dimensão é associada à valorização das coisas e seres ínfimos porque
reflete a preocupação do poeta com o esforço do emissor na luta com o código
(MENEZES, s/d, s/p). Esforço que é uma das implicações enfrentadas pelo ser
humano em seu estar no mundo. Na poesia de Manoel de Barros a palavra
retorna à fonte original e recupera a linguagem perdida. (Id., ib.).

58
Para tanto, as palavras são despertadas de seu estado cotidiano de inércia
propiciado pela rigidez das regras do sistema de articulação do discurso. Este
despertar ocorre por intermédio do poeta que, no caso de Manoel de Barros, é
consciente de seu papel:

No poema, o poeta é o filtro que desagrega e fragmenta o universo. Assim, em


seu trajeto de fragmentação do universo pela palavra, o poeta quer retroceder
até o início, a uma época que ele diz que é “o antesmente verbal: a despalavra
mesmo” (Retrato do artista quando coisa, p. 53) (...) Portanto, o poeta
pretende retornar ao antes do verbo, ou seja, voltar ao estado anterior àquele
descrito pelo verbo cotidiano. E o retorno torna-se possível pelo rompimento
da palavra habitual, como indica o prefixo “des”, cujo sentido é negação.
Assim, “despalavra” é a palavra primitiva, o murmúrio, o gungunar (som
emitido pelos recém-nascidos), é o som puro, livre das contaminações do
vocabulário. Assim, o verso, ao sugerir seu processo de retorno a um tempo
anterior ao princípio, revela-se como linguagem. (MENEZES, s/d, s/p)

A lida com a palavra original busca atingir um mundo novo, “um mundo
no qual as coisas possuem sentido e deixam emanar a essência vital do
universo” (MENENEZES, op. cit.). Este “mundo novo” aproxima-se muito de
uma dimensão mágica de significação — referida na seção 1.2 —, em que o
poeta manuseia a palavra, assim como a criança manuseia seus brinquedos.
Ambos realizando suas atividades de forma despreocupada, mas não insensata,
pois tanto o poeta quanto a criança, ao por em funcionamento sua imaginação,
estão, na verdade, ampliando o conhecimento da realidade em que estão
inseridos.
A criação de sentidos inusitados, pelo poeta em seus versos e pela
criança em suas brincadeiras, permite ao indivíduo inserir-se em uma dimensão
de abstração pura, transcendendo sua visão da realidade. A partir do contato
com o irreal, ou imaginário, o ser humano se fortalece psiquicamente para lidar
com o real que o circunda, e essa experiência é vivenciada nos poemas de
Manoel de Barros, ao convidar o leitor a abandonar as regras impostas
cotidianamente. Neste pormenor a poesia deste autor se aproxima muito da
natureza intrínseca da infância no que esta tem de ludicidade e liberdade de
conceitos. As crianças aceitam como possível a ocorrência de alterações
inverossímeis da realidade, como, por exemplo, os verbos e trastes iluminarem,
a exemplo do que é proposto no poema “Teologia do traste”.
Nesse contexto, o universo poético de Manoel de Barros pode ser
compreendido como dimensão significativa muito próxima do universo infantil.

59
A infância, em sua poética, é representada como uma dimensão anterior às
características limitadas e limitantes do mundo racional, um campo de
criatividade e de renovação. E a criança, enquanto ser imerso na infância, é
representada de forma renovada, não como indivíduo a ser doutrinado, mas
como pessoa de imenso potencial criativo, com quem o poeta dialoga sem
maiores melindres ou intenções sub-reptícias. Assim, nota-se que o sentimento
que Manoel de Barros busca é o contato livre, sem barreiras e sem preconceitos,
entre a infância e o adulto. (SCOTTON, s/d, p. 13)
Assim sendo, a partir de agora, serão considerados os poemas que
compõem os livros Exercícios de ser criança e O Fazedor de amanhecer,
poemas que são inteiramente perpassados pela presença da infância e que
atestam a validade dos conceitos já referidos, tais como o uso em larga escala de
imagens, a representação inverossímel da realidade, o desautomatismo lúdico
das imagens e da linguagem, além da anteriormente referida “Teologia do
traste”.

60
CAPÍTULO III: A infância na poesia

Sou hoje um caçador de achadouros da


infância. Vou meio dementado e enxada às
costas cavar no meu quintal vestígios dos
meninos que fomos. (BARROS, Memórias
inventadas: a infância, 2003, p. XIX)

61
3.1 - Exercícios de ser criança, exercícios de ser poeta:

Eu queria avançar para o começo.


Chegar ao criançamento das palavras.

Manoel de Barros (“Pretexto”, in:


Livro sobre nada, 1996, p.47)

O primeiro livro de poesias a ser estudado nesta dissertação chama-se


Exercícios de ser criança e foi lançado no ano de 1999. No mesmo ano esta
obra recebeu o prêmio "O melhor da literatura infantil" da ABL (Academia
Brasileira de Letras) e o prêmio "O melhor livro de poesia para crianças", da
FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil).
Esta obra é composta por três poemas e duas histórias. A primeira retrata
um menino que, com suas peraltagens e despropósitos, descobre-se poeta. No
segundo poema é narrada a história de um casal de irmãos, de 2 e 9 anos, que
passa o dia no quintal de casa criando uma viagem na qual um caixote com
rodas de lata de goiabada assume o papel de carroça puxada por dois bois
imaginários. Nesses dois últimos poemas as aventuras são protagonizadas por
personagens infantis não identificados por nomes próprios, apenas por
designações constantes nos títulos dos poemas, a saber, “o menino que
carregava água na peneira” e “a menina avoada”. A respeito deste último poema
convém referir tratar-se de um poema homônimo a um texto que Manoel de
Barros escreveu para sua filha Martha, e que faz parte do livro Compêndio para
uso dos pássaros, publicado em 1961.
Nos poemas que compõem a obra, é possível identificar o espaço
geográfico do quintal, espaço frequentemente referido nos poemas deste autor.
Além disso, observa-se que o transcurso das ações é acompanhado pela
presença de integrantes da família. Esta presença funciona como elemento
facilitador da identificação do leitor infantil com o texto poético e é, também,
uma característica comum na obra de Manoel de Barros. Dos dois primeiros
poemas, já citados, são representados a mãe, o pai e o menino que, ainda que
seja depreensível pelo contexto, não é referido como filho em nenhum
momento. Do poema “A menina avoada” participa um casal de irmãos, um

62
menino e uma menina, além do pai — que é apenas referido no início do poema,
não participando diretamente dos eventos descritos.
Dos três poemas, o primeiro é o único que não apresenta título, uma
característica comum na poesia contemporânea e que, eventualmente é adotada
por Manoel de Barros. Os dois poemas seguintes, ao contrário, possuem títulos
que se harmonizam com os temas desenvolvidos nos textos. A rigor, os temas
são constituídos como representações de situações típicas do universo infantil
— os próprios “exercícios de ser criança”, citados no título da obra — que são
concretizadas pela brincadeira, pelo questionamento acerca do porquê das coisas
e pelo exercício da fantasia, ou, como preferem alguns, do “faz de conta”.
Essas representações constituem mais um elemento que facilita a
identificação do leitor infantil com o texto. Martha (2004, s/p) explica que ao
priorizar conteúdos existenciais infantis, próprios da criança, o eu poético o faz
segundo o ângulo de visão do sujeito representado, o que resulta em uma poesia
mais próxima e valorizadora de seu destinatário.
Estruturalmente, observa-se que o primeiro poema é constituído por 15
versos que não apresentam estrutura formal rígida. Os poemas, inclusive,
possuem constituição híbrida que aproxima a narrativa e a poesia, uma
característica comum na obra de Manoel de Barros conforme expõe:

Os textos poéticos manuelinos não apresentam uma nítida separação entre


poesia e prosa. Seus versos se realizam de forma fragmentada, por meio de
cortes e montagens, através de recorte e reorganização sintática de seus
elementos. Se por um lado seus textos são melódicos, rítmicos, apresenta um
impressionante desfile de elementos onomatopaicos e metonímicos, além do
emprego de metáforas insólitas e imagens inusitadas, o que é próprio do
poema; por outro,, em seus textos perambulam personagens, compondo seus
alter-egos, entrelaçando-se em narrativas, o que é próprio da prosa.
(BARROS, 2003, s/p.)

A combinação de estruturas fônicas não é rigorosa, ainda que apresente


características que contribuam para a constituição do ritmo interno do texto.
Como exemplo destas características cita-se a predominância da vogal/fonema
/o/ e a ocorrência da vogal/fonema /u/ no final de alguns versos.
Observa-se ainda que não ocorre o emprego, comum na obra de Manoel
de Barros, de estruturas sintáticas incomuns ou complexas. As únicas
expressões que exploram a expressividade da sintaxe são “ficou sendo” e
“tropicar” (forma popularizada, coloquial, de “tropeçar”). Levando-se em

63
consideração o contexto em que tais expressões são utilizadas, um livro
orientado também para a leitura do público infantil, é possível compreender este
uso como mais associado a uma aproximação ao discurso da criança (menos
normativo que o do adulto) do que, necessariamente, como elaboração sintática
com fins estilísticos.
Uma leitura possível dos três poemas que compõem o livro Exercícios de
ser criança baseia-se na importância atribuída à questão do olhar: o olhar
infantil, inusitado e independente de (pré) conceitos, surpreende, sobretudo ao
adulto, pela forma anticonvencional como a criança percebe as coisas. Ao olhar
a criança, e conduzir o leitor a fazer o mesmo, o poeta reflete sobre a natureza
criativa da criança, do poeta e do próprio ser humano.
Silva (2004, p.793), em seu estudo sobre a importância da infância na
formação humana, afirma que a melhor forma de perceber as coisas que estão
inseridas no mundo é manter sobre elas o olhar inaugural, de quem olha algo
pela primeira vez, sem pretensões ou preconceitos. Tal como a criança olha o
mundo, de forma curiosa, brincalhona e, sobretudo, desinteressada em
categorizar. No mesmo sentido, se expressa Morenno (2005):

Ninguém consegue viver sem meninos e meninas fazendo peraltagens por


dentro. Jesus — de quem tudo o que sabemos da infância é “crescia em
sabedoria, estatura e graça” — põe a chave de entrada ao Reino dos Céus no
coração infantil. Não me parece adequada a interpretação por ingenuidade ou
inocência. Os meninos do reino são benditos por exercitar esperanças. (...) Só
mesmo meninos e meninas para resgatar exercícios de esperança”. (s/p)

Esta forma de olhar é incentivada pelo poeta francês Charles Baudelaire,


para quem o grande artista seria aquele que usa a razão para buscar o novo, mas
que, sobretudo, mantém vivo o olhar curioso e criativo da criança. Para
Baudelaire:

O gênio é somente a infância redescoberta sem limites; a infância agora


dotada, para expressar-se, de órgãos viris e do espírito analítico que lhe
permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulada. É a
curiosidade profunda e alegre que se deve atribuir o olhar fixo e animalmente
estático das crianças diante do novo... (BAUDELAIRE, 1996, p.169)

Tal concepção está presente no livro Exercícios de ser criança, mas


também transpassa toda a obra poética de Manoel de Barros. Neste livro em

64
particular, a forma não usual como a criança percebe o mundo é apresentada já
nas primeiras linhas:

No aeroporto o menino perguntou:


— E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
— E se o avião tropicar num
Passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores
virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais
Carregados de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente
Aprende com as crianças.
E ficou sendo1. (1998, s/p)

O poema citado, sem título, é apropriadamente apresentado como


primeiro do primeiro livro de poesias infantis que Manoel de Barros escreveu.
Neste poema é retrata a questão do estranhamento que a imaginação da criança
causa aos adultos. Neste contexto, o poema apresenta como tema a forma não-
ortodoxa como o pensamento infantil opera e sua proximidade com a dimensão
poética de expressão/significação.
Ao perguntar sobre a espantosa possibilidade de um avião “tropicar” em
um passarinho, o menino — que é assim mesmo, um menino sem nome próprio,
representando toda e qualquer criança plena de curiosidade e criatividade —
desperta a surpresa do pai. Este tem sua maneira de pensar testada a ponto de,
no primeiro momento, calar-se, estarrecido, ficando no “sufoco”, expressão
utilizada para dar uma noção do incômodo que a observação proposta pelo
menino causou no, já estabelecido, modo de pensar do adulto.
O estranhamento causado pela pergunta reflete o funcionamento do
pensamento infantil que, com sua lógica particular de pensamento, desafia e
relativiza a pretensa sabedoria do adulto, baseada na racionalidade e
previsibilidade. O questionamento proposto faz o pai concluir que o jeito como
o menino percebe a realidade assemelha-se à maneira como a poesia funciona,
já que tanto a poesia quanto a infância apresentam-se imunes às limitações
propostas pela realidade empírica — limitações que, na maior parte das vezes,

1
Todos os poemas sob análise serão transcritos de forma a preservar, tanto quanto possível, sua
disposição original.

65
são propostas por nossa própria forma de perceber a realidade — e plenas de
liberdade, pois esses valores da infância podem ser chamados de valores da
liberdade. (DAVID, 2005, p. 23)
Este plano de reflexão é reforçado pelo uso de imagens relacionadas ao
ato de voar: aeroporto, avião e passarinho. O campo semântico ao qual estes
elementos pertencem é frequentemente associado ao tema da liberdade, o que
pode ser comprovado por expressões como “voar livre como um pássaro” e
“voar nas asas da imaginação”, que constatam a validade da significação
referida.
Percebe-se que o poema inicial do livro “Exercícios de ser criança”
apresenta a idéia-chave que será desenvolvida nos dois poemas seguintes, a
proximidade da infância com a poesia e a liberdade que caracteriza estas duas
dimensões e que é potencializada neste contato.
O poema “O menino que carregava água na peneira” relata a história de
um menino que, tal qual o menino citado no poema anterior, apresenta uma
forma muito particular de perceber o mundo:

Tenho um livro sobre águas e meninos.


Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse
que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que


catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino


gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino


que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu


que era capaz de ser

66
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprender a usar as palavras.


Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro


botando ponto no final da frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.


O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.

Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os


vazios com as suas
Peraltagens
E algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos. (BARROS, op. cit.)

Esta percepção possibilita ao menino captar os elementos da realidade de


forma globalizante, animizadora e emocional — de forma muito similar ao
processo referido na conceituação da dimensão mágica, apresentada na seção
1.2 desta dissertação. Sua existência no mundo permite a comunicação entre os
elementos de realidade e os conceitos imaginários. “Montar alicerces de uma
casa sobre orvalhos”, fazer “uma pedra dar flor” (dentre outras “peraltagens”)
só são eventos possíveis porque o menino não apenas percebe, capta pelos
sentidos, as coisas do mundo. Seu conhecimento da realidade está intimamente
relacionado com as experiências vivenciadas, mesmo que pelo viés da
imaginação. Este processo diz respeito à própria natureza humana, já que

no sentido antropológico, o homem se concebe antes de tudo como ser- no-


mundo e o mundo como mundo humano e simbólico. Homem e mundo não são
exteriores um ao outro. Não há homem sem mundo, nem mundo sem homem.
Para entender o ser humano, é preciso vê-lo como ser-no-mundo, isto é , como
implicando ser e mundo, existência e significado.(RAMOS, s/d, s/p)

O poema é composto por 43 versos distribuídos em um conjunto de 13


estrofes. Da mesma forma que o anterior, este poema não apresenta

67
características tradicionalmente associadas às formas fixas de composição e
nem uso estilístico (ou complexo) das estruturas sintáticas.
A exemplo do poema constante na abertura da obra, o poema “O menino
que carregava água na peneira” explora a utilização elaborada dos campos
semânticos. O uso da locução “carregar água na peneira”, por exemplo, resgata
uma expressão popular, muito comum em regiões rurais, que significa, de
acordo com Garcia (2005), fazer algo muito difícil, impossível ou inútil. Mas
também representa bem o conjunto de feitos incomuns, que serão realizados
pelo menino a partir de seu contato com a poesia, já que, racionalmente, não é
possível o uso de um objeto como uma peneira para carregar água, expressão
que pode ser interpretada, ainda, como metáfora do próprio fazer poético.
É importante mencionar ainda que no poema existem vários elementos
que se referem à água: “carregar água na peneira”, “livro sobre águas e
meninos”, “peixes no bolso”, “orvalhos” e “chuva”. Imagens cuja simbologia
dialoga profundamente com o projeto poético do autor. Segundo Chevalier &
Gheerbrant (1991, p. 15), “as significações simbólicas da água podem reduzir-se
a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação e centro de
regenerescência”. A imagem da água, e a força semântica de sua simbologia, é
frequentemente explorada pelo poeta. Para Castro (1991, p.41), “água para
Manoel de Barros é um dos elementos primordiais de seu universo, agente
catalizador, propulsor e simbólico da metamorfose, a transfazeção da natureza a
que o poeta se dedica”.
É importante perceber ainda que a imagem da água recupera também o
próprio sentido da liberdade. O próprio Manoel de Barros afirma que “os limites
me incomodam. As regras de gramática me agridem, me trancam. Quero ser
livre como as águas” (SILVA, 2003, p. 23). Além disso, os elementos relativos
à água referem-se, por sua própria natureza, à origem da vida, surgimento dos
seres e coisas. Nesta acepção em particular, a simbologia da água aproxima-se
da simbologia da criança:

No estudo dos poemas de Barros, a origem (a perfeição) está na criança e, por


isso, ela torna-se o exemplo mítico para o poeta. Convém apontar que, além da
imagem da criança, há outros símbolos associados ao retorno à origem tais
como a terra, a água, a pedra e a larva. (DAVID, 2005, p. 19)

68
A proximidade existente entre a simbologia da água e da criança,
existente nos poemas de Manoel de Barros, é também referida por Rubem Alves
(2002, p. 74), que afirma que, de forma similar aos salmões que deixam o mar e
voltam às nascentes de águas cristalinas onde nasceram, os poetas desejam
voltar às suas origens. “É lá que mora a verdade que os adultos esqueceram.
Fogem da loucura da vida adulta. Buscam reencontrar a simplicidade da
infância.”.
Observa-se, no poema “O menino que carregava água na peneira”, de
forma idêntica ao poema anterior, a referência à figura da família a qual, neste
poema, se concretiza pela figura da mãe, cuja presença é referida em todo o
texto. O pai, ao contrário, e diferentemente do poema anterior, não é sequer
mencionado.
Percebe-se, ainda, a presença da voz poética do eu-lírico, que é
apresentada, de forma explícita, já na primeira estrofe, conferindo à abertura do
poema um tom de reflexão: “Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei
mais de um menino que carregava água na peneira”. O fato de o eu-lírico
“gostar mais” de um menino em particular pode ser compreendido pela
identificação do poeta com o personagem. Sobretudo pelo fato de o menino ser
prodigioso, capaz de realizar feitos inconcebíveis pelo pensamento comum, o
que só é possível por que a forma de pensar do menino (tal como a dos poetas)
não opera por esquemas tradicionais do pensamento racional. Sua compreensão
não se limita por conceitos estanques baseados na noção de incomunicabilidade
entre o possível (real) e o impossível (imaginário/irreal).
A sensibilidade do menino, expressa em sua habilidade poética, capacita-
o a conceber e realizar, no discurso poético, atos como “interromper o vôo de
um pássaro botando ponto no final da frase”, “modificar a tarde botando uma
chuva nela” e fazer uma pedra dar flor, ações inusitadas, mas, plausíveis no
universo de concepções do poeta:

As imagens são genuínas visões e experiência que cada poeta tem do mundo.
Realidade re-criada com palavras. Enquanto o homem comum vê uma coisa, o
poeta, no dizer de Jorge de Lima, sendo “míope”, diante do mesmo espetáculo,
vê o mundo com olhos da arte. Ou, como poeticamente se expressa Manoel de
Barros, o olho anômalo é capaz de “enxergar as coisas sem feitio” e de
“aumentar o poente”. (SILVA, 2003, p.24)

69
Após sua expressão de simpatia e admiração, a voz do eu-lírico é
substituída pela voz da mãe, que se faz presente em todo o decorrer do poema.
Ao se dar conta que o menino “carregava água na peneira”, isto é, era mais
interessado em realizações incomuns, inconcebíveis a mentes com
funcionamento mediano, a mãe tenta dissuadi-lo de seu intento. Para tanto, ela
argumenta que “carregar água na peneira” seria o mesmo que “catar espinhos na
água” e “criar peixes no bolso”. Mesmo no final do poema, a mãe adverte que a
postura adotada pelo menino irá despertar o amor de “alguns”. Não de “todos” e
nem da “maioria”.
“Carregar água na peneira” é uma expressão utilizada pelo poeta para
designar a habilidade poética apresentada pelo menino. Esta constatação é feita
de maneira gradual: primeiro o menino descobre a importância do “escrever”,
na seqüência aprende a “usar as palavras”, ao que a mãe conclui, “vai ser
poeta”. O processo de descoberta da habilidade poética do menino surge a partir
da predileção do menino por coisas incomuns, ou “despropósitos”, de acordo
com o texto.
Se for levado em conta o desenvolvimento do primeiro poema, é possível
entender o contato do menino com os despropósitos como fruto de sua forma de
ver as coisas, que, recuperando a referência feita a Rubem Alves na seção 1.2, é
uma poética, diferente de perceber. Esta percepção, conforme defendido por
Nelly Novaes Coelho (referida na seção 1.2), é uma forma de ver o que está
além do aparente, o que só pode ser alcançado por intermédio da imaginação.
A habilidade incomum do menino-poeta, ainda que permita conceber e
criar “prodígios”, implica em certo grau de sofrimento, já que nem todas as
pessoas compartilham de sua forma de pensar. Neste sentido é proposto o termo
“despropósito”, expressão associada à noção de coisa inútil, inadequada. A
palavra despropósito apresenta em sua estrutura morfológica o afixo “des”, que
significa, segundo Cunha (1997, pp.249 e 640), “cessação de algum estado”, e a
palavra “propósito”, que significa “intento”. Ou seja, despropósito é tudo aquilo
que não tem objetivo aparente. Como a imaginação é considerada uma faculdade
mental sem função prática definida, seria uma espécie de despropósito. Neste
contexto, é possível perceber o menino-poeta como uma pessoa de atitudes
“despropositadas”, isto é, sem intenção prática, inútil.

70
Ao começar a se “ligar” nos despropósitos que estavam à sua volta e que
existem em abundância no mundo, o menino passa a ser estigmatizado por quem
não via sentido algum em suas predileções, sendo rotulado como “cismado e
esquisito”. A característica mais dramática desta situação, contudo, reside no
fato de o menino estar sempre sozinho, não contando com a companhia de
outros meninos que são citados no poema (“Tenho um livro sobre águas e
meninos” e “roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos
irmãos”).
O trajeto do menino que carregava água na peneira não é fácil. Uma
leitura possível do poema permite identificar sua figura como alegoria do
próprio poeta que, por ver (e expressar) as coisas de uma forma diferente,
normalmente, questiona e incomoda o status quo. Conforme argumenta Moisés
(2003, p. 27), a poesia nos ensina a ver como se víssemos pela primeira vez.
Poesia é insubmissão. O poeta foi expulso da República não por ser inútil, mas
por ser perigoso.
A rejeição à figura do poeta revela a importância do pensamento deste
como crítico de sua realidade e de seu tempo, caso contrário, suas criações
passariam despercebidas. Entretanto, observa-se em poetas de todos os tempos
uma clarividência aguda, seus questionamentos rebelam-se ao estado de coisas
em que normalmente está inserido. Esta habilidade está intimamente relacionada
à sua sensibilidade e subjetividade aguçadas. Nesse sentido:

a prática poética, essa poesia que se pode escrever com maiúsculas, POESIA, é
isso ou não é nada. Um projeto de vida, o esforço para definir-se num espaço
próprio, a recusa da existência dada, a refeitura contínua do ser. A poética não
é meia dúzia de versos alinhados numa folha, nem o romance mais bem
elaborado da história da literatura, nem um filme feito com cuidado e com
objetivo. A poética não é a literatura, nem a poesia, o cinema ou o teatro. A
poética é a minha construção, minha construção outra, diversa da vida morna,
regrada, de todos os dias, distinta dessa vida pneumática apenas sonhada pelas
pessoas, num pesadelo, por essas mesmas que dizem que o sonhador é o
artista. O artista até pode ser um sonhador. O homem poético, não. Ele faz,
quer dizer, ele vive. (NETO, 1982, pp. 15 e 16)

A maneira diferente de o menino compreender o mundo e perceber, de


forma inovadora, as situações comuns é uma característica comum aos poetas e
às crianças. Esta característica é potencializada no poema “O menino que
carregava água na peneira” pela figura de um personagem que é, ao mesmo
tempo, criança e poeta.

71
O estigma de elemento incômodo ao estado de coisas vigente que é
causado pelo menino-poeta o afasta do convívio social comum, o que pode ser
depreendido pelo fato de a única companhia a acompanhar o menino se
presentificar na figura da mãe, que, afetuosa, admira-se e “repara” o menino em
sua trajetória de poeta.
A utilização do verbo “reparar” é sintomática. Sua semântica permite
depreender os sentidos de “notar” e de “consertar”. O que, neste contexto,
permite imaginar a mãe não só como integrante do pequeno grupo de pessoas
que irão amar os despropósitos do menino, mas, também, permite supor ser ela,
por sua condição solidária e previdente, a tradução de uma voz poética que
busca incentivar a perseverança do menino — reforçando a alegoria do próprio
poeta, já que, como argumenta Sales (s/d, sp), o menino é o símbolo do próprio
autor, de sua concepção da poesia e do labor poético. Consequentemente, o
poeta identifica-se com a criança e sua poesia com o non sense e especialmente
com o imaginário da criança.
A reflexão proposta no poema “O menino que carregava água na peneira”
possui conotações, metapoética e filosófica, intensas, a despeito de ser um
poema voltado ao leitor infantil. Neste poema, Manoel de Barros não evita os
grandes temas presentes em sua produção orientada ao público adulto. Ao olhar
para a criança, o poeta reflete sobre sua própria condição, cuja natureza se
aproxima muito da que possui a criança a qual, com seu olhar inaugural,
incomoda o estado de coisas imposto pela conformação que deforma o olhar do
adulto. Para Junior (s/d):

Relacionando-a à questão do olhar infantil, podemos dizer que (...) a forte


presença da relação entre poesia e visualidade tem a ver com a multiplicidade
do visível, das inúmeras maneiras de ver o mesmo objeto e de imaginá-lo. A
imagem poética não é a experiência comum do ver, o que interessa em poesia
são as incontinências. O desregramento, o desrespeito à ordem comum das
coisas é representado pela visão infantil que não conhece, ou finge não
conhecer o habitual, criando situações surpreendentes, ora sem querer, ora por
molecagem... A linguagem da poesia, que atualiza essas relações com o
visível, também se constitui como um "descomportamento lingüístico"
neológico — marca da poesia manoelina. (s/p)

O encontro entre o menino e as palavras poéticas não é suavizado por


Manoel de Barros. A força dramática deste encontro pode ser percebida em todo
o transcorrer do poema e pode ser notado, principalmente, pelo fato de o menino

72
ser estigmatizado e solitário, preço que o menino pagará enquanto se dispuser a
“carregar água na peneira”.
Neste sentido, o poema “O menino que carregava água na peneira” pode
ser compreendido pela semântica decorrente da significação dos verbos ver e
olhar, relativos à mesma percepção, mas com diferença de sentido no que diz
respeito ao maior ou menor grau de atenção utilizado. O poema é composto com
base na forma como o poeta vê (reflete sobre) o olhar (percepção) do menino,
reforçando a idéia, apresentada no início da obra, de que o olhar da criança é um
olhar válido. Sua fantasia instaura novos padrões de significação da realidade.
Sua “criancice” concretiza-se na dimensão poética, pelo exercício de ser poeta.
Esta capacidade de ressignificar os sentidos, tal como proposto por Bachelard,
reflete a própria condição do ser humano no embate entre sua subjetividade e a
realidade em que se está inserido, fato percebido pelo poeta. Quanto a isso, para
Castro (1991):

o drama de Manoel de Barros tem a profundidade do próprio ser, de seu existir


ante a realidade exuberante, indômita, de palavra de um lado e, do outro, o
próprio poeta, ser frágil, necessitado, que tenta a apropriação das palavras
existentes ou das palavras imaginadas. O poeta e a palavra vêem-se no embate
de dois mundos fortes ou de duas necessidades à espera de uma fecundação ou
de um gesto originário. O encontro tem características de desafio, de afronta
ou de entrega, ou ainda, de doação recíproca, total, cujo fruto é a chancela do
poema, expressão do poder criador do poeta, de sua linguagem instauradora.
(p.98)

3.2- A menina avoada

Poesia é voar fora da asa.

Manoel de Barros (O livro das


ignorãças, 1997)

O segundo, e último, poema que integra o livro Exercícios de ser criança


chama-se “A menina avoada” e, a exemplo dos poemas anteriores, apresenta
estrutura narrativa com características de prosa poética.
O poema é composto por 35 versos dispostos em 9 estrofes. Não há
presença de rimas. Nele é contada, em tom de reminiscência, a aventura vivida

73
por uma menina e seu irmão mais velho, que, à época da memória relata teriam
dois e nove anos, respectivamente:

Foi na fazenda de meu pai antigamente.


Eu teria dois anos; meu irmão, nove.

Meu irmão pregava no caixote


duas rodas de lata de goiabada.
A gente ia viajar.

As rodas ficavam cambaias debaixo do caixote:


Uma olhava para a outra.
Na hora de caminhar
as rodas se abriam para o lado de fora.
De forma que o carro se arrastava no chão.
Eu ia pousada dentro do caixote
com as perninhas encolhidas.
Imitava estar viajando.

Meu irmão puxava o caixote


por uma corda de embira.
Mas o carro era diz-que puxado por dois bois.

Eu comandava os bois:
— Puxa, Maravilha!
— Avança, Redomão!

Meu irmão falava


que eu tomasse cuidado
porque Redomão era coiceiro.

As cigarras derretiam a tarde com seus cantos.


Meu irmão desejava alcançar logo a cidade —
Porque ele tinha uma namorada lá.
A namorada do meu irmão dava febre no corpo dele.
Isso ele contava.

No caminho, antes, a gente precisava


de atravessar um rio inventado.
Na travessia o carro afundou
e os bois morreram afogados.
Eu não morri porque o rio era inventado.

Sempre a gente só chegava no fim do quintal.


E meu irmão nunca via a namorada dele —
Que diz-que dava febre em seu corpo. (2001, s/p)

Neste poema, a voz do eu-lírico confunde-se com a voz da menina que


resgata um momento de brincadeira com o irmão no quintal da fazenda de seu
pai. O único momento em que é possível identificar-se a voz do eu-lírico é na
apresentação do título, quando a menina é apresentada como “avoada”. O ponto
de vista da criança sobrepõe-se ao do eu-lírico de forma a predominar no

74
poema. Esta permuta permite identificar uma característica da obra de Manoel
de Barros, a questão da busca da origem e:

o ponto de vista infantil permite posicionar os poemas de Barros na fase


arquequetípica (...). Nesse movimento cíclico em que se reencontra com a
infância, o poeta resgata a origem do ser e do poético. Uma vez que o símbolo
criança indica a inocência, o momento anterior ao pecado, o “estado edênico”
(Chevalier & Gheerbrant, 1995: 302). (...) Nesse sentido, no estudo dos
poemas de Barros, a origem (a perfeição) está na criança e, por isso, ela torna-
se o exemplo mítico para o poeta. (DAVID, 2005, pp. 18 e 19)

O adjetivo “avoada” possui dupla semântica. O primeiro sentido relaciona-


se ao significado conotativo da palavra, que expressa a idéia de “distraída”. O
segundo estaria mais relacionado ao significado conotativo do termo,
relacionando o vocábulo ao sentido de “aéreo”. Este último significado se
aproxima do campo semântico apresentado no primeiro poema do livro e
referidos na seção anterior, que agrupa elementos relacionados ao ato de voar,
que se relaciona com a menina no sentido de ser ela uma pessoa que exercita
plenamente sua imaginação. Neste contexto, é possível considerar que a menina
vive “com a cabeça nas nuvens”. Para Castro (1991, p. 24), “a menina é avoada,
de visão fantástica e sonhadora, vê o mundo pela mobilidade e fertilidade de sua
fantasia.”
Percebe-se, a partir desta observação, que Manoel de Barros reforça a o
campo simbólico que traduz o sentido da liberdade. Esta percepção, apresentada
nos poemas, realça a identificação da liberdade como uma das características
infantis mais fascinantes para o poeta, o que pode ser percebido pela expressão,
feita no poema inicial do livro, “a liberdade e a poesia a gente aprende com as
crianças”. Para Manoel de Barros:

A infância é um lugar onde é preciso sempre pisar na grama quando houver


uma tabuleta escrito “não pisar na grama”. Sobre isso alertou certa vez o poeta
Rubem Braga: não aceitar as proibições. O gosto pela liberdade se manifesta
nas desobediência. Andar de costas na chuva é sinal de liberdade. Fugir do
mesmal é preceito de criança e poesia. (VASSALO, 1999, p. 8)

Observa-se que o poema apresenta elementos que permitem situar a ação


apresentada como ação já ocorrida: os verbos estão conjugados em tempos de
valor de imperfectivo (“foi”, “pregava”, “ia”, “ficava” etc.). Mas, há, também,
um elemento que indica que a ação compõe uma memória. Esta constatação é
possível pelo uso do verbo “imitava”, que traduz um juízo de valor da pessoa

75
que vivenciou a brincadeira e que, tempo depois — não é possível precisar se o
passado representado no poema é remoto ou recente — reflete sobre aquele ato,
associando-o a uma imitação, simulacro do real. Esta configuração temporal cria
uma atmosfera que permite situar o evento em uma espécie de memória mítica
mediante a rememoração, quem consegue recordar possui uma força mágico-
religiosa que é ainda mais preciosa do que aquele que conhece a origem das
coisas. (DAVID, 2005, p.20)
A importância de se identificar no poema o intercruzamento destas duas
dimensões temporais, o instante passado e o instante rememorado (mítico),
refere-se ao fato de que só retemos na memória aquilo que, bem ou mal, marcou
nossa existência. Nesse sentido, pode se compreender que o evento narrado no
poema só constitui matéria de memória porque possui intensa carga subjetiva.
Esta carga subjetiva fixou o evento na memória da menina, permitindo que ela,
mesmo algum/muito tempo depois, relembre o que viveu na fazenda de seu pai
“antigamente”.
A lembrança deste evento em especial, o de brincar com seu irmão, atesta
a importância da imaginação para o ser humano. Se o momento vivido no
passado não apresentasse nenhuma característica especial, dificilmente seria
conservado na memória da menina. Aquela brincadeira ficou marcada em sua
intimidade. A força subjetiva do brincar suspende a passagem do tempo que se
cristaliza no instante permanentemente revivido pela lembrança. Isso seria
possível, de acordo com Bachelard (1988) porque:

horas há, na infância, em que toda criança é o ser admirável, o ser que realiza
a admiração de ser. Descobrimos assim em nós uma infância imóvel, uma
infância sem devir, liberta da engrenagem do calendário. Então, já não é o
tempo dos homens eu reina sobre a memória. (...) A lembrança pura não tem
data. Tem uma estação. É a estação que constitui a marca fundamental das
lembranças... As lembranças tornam-se então grandes imagens, imagens
engrandecidas, engradecedoras. (p. 111)

Mas, além da memória, a imaginação é uma capacidade que também é


enfocada no poema. Sua importância neste poema pode ser compreendida no
que tem de relevante para a própria infância. Como referido anteriormente, a
imaginação é importante porque permite ampliar e atribuir sentidos às
experiências vividas. Conforme se expressa Bachelard, “simplificar é sacrificar”
(apud JEAN, 1989, p. 107). Ademais, consoante explica Richter (2002, p. 10),

76
para Bachelard, imaginar sempre será mais que viver, pois envolve ensaiar
diferentes modos de viver, inventando e instaurando outras realidades, extraindo
de nós mesmos a força demiúrgica que nos irmana. Força alimentada por um
pensamento dinâmico, onde razão e imaginação caracterizam-se como criadoras,
ativas, abertas e realizantes.
No entanto, para alguns adultos, a brincadeira infantil, prática em que a
imaginação se concretiza, constitui um mundo de “mentirinha”, sem maior
importância. Esta idéia restringe o potencial da imaginação para a criança e
mesmo para o ser humano: “a visão dos fatos vividos e relatados fabrica o
mundo, lido e sabido, a partir de novas perspectivas, mostrando um outro viés
da realidade” (SILVA, s/d, p. 23). Para Capparelli, Kasprzak & Meurer (1999):

Os conteúdos irreais propostos pelos instrumentos que cada cultura apresenta


às suas crianças devem ser tomados como matéria-prima da construção
psíquica (Freud, 1908). As propostas, ideais, valores e conceitos presentes nos
brinquedos, nas histórias infantis, nos contos de fadas e mais recentemente nos
desenhos animados e jogos de vídeo game, formam o universo simbólico que a
cultura oferece para a criança se constituir. Concordamos com Freud (1908)
quando sublinha que o brincar é diferente do real mas não do sério; a seriedade
do faz de conta na infância protagoniza a construção da realidade psíquica.
(p.6)

Ademais, a brincadeira não impede que a criança tenha noção, mesmo


que inconsciente, da dimensão de realidade em que está inserida. O brincar,
expressão máxima da subjetividade infantil, é composto por elementos
imaginários (bois inventados, rio inventado) que se associam à dimensão do real
(a lata de goiaba e o caixote) e dissolve as limitações que normalmente a
caracterizam (o caixote vira carro e as latas viram rodas do carro). No faz-de-
conta infantil, realidade e fantasia não se excluem, antes, se complementam,
dando origem a uma vivência mais significativa, sem as limitações impostas
pelo real e sem a abstração pura da imaginação:

A relativa independência do perceptual-imediato é uma característica


definidora do jogo imaginário. Porém, não se pode supor, por isso, que a
atividade esteja, desde o início, isenta das restrições da realidade. As regras do
real se fazem presentes de forma marcante, em termos do que é apropriado ao
agir com as coisas e de como os acontecimentos podem se organizar. Desse
modo, o jogo de faz-de-conta é caracterizado pela dimensão imaginária, mas
esta tem um vínculo genético com o real. No espaço das ações lúdicas, a
criança reelabora suas vivências cotidianas. (GOÉS, 2002, p. 3)

77
As “regras do real” se apresentam no poema quando os irmãos têm que
fazer a travessia do rio inventado e somente os bois se afogam. A menina diz
que não morreu porque o rio “era inventado”, isto é, era de brincadeira. Este
trecho corrobora a idéia de que a atividade lúdica envolve o imaginário, mas
não é, em última análise, insensata, absurda. O brincar envolve as dimensões de
realidade e de imaginação, que, neste tipo de atividade, associam-se e
instrumentalizam a pessoa a compreender melhor seu estar no mundo e sua
convivência com outras pessoas. Segundo Antonio Candido, para alguém ter
equilíbrio interior é preciso dosar muito sabiamente a proporção de real e a
proporção de fantasia que fazem parte da existência de cada um de nós. (apud
CARDOSO, 2001, p. 79)
A importância do brincar para o ser humano pode ser percebida ainda no
que diz respeito à constituição do sujeito em um mundo socialmente
configurado. Segundo Almeida & Casarin (2002, p. 37), a brincadeira faz com
que a criança construa a sua realidade, e perceba a possibilidade de mudança da
sociedade, na qual ela faz parte. Existe uma compreensão do mundo e das
atitudes humanas.
Nesse contexto, a imaginação infantil e a poesia se aproximariam no que
diz respeito à contribuição que ambas fornecem para a constituição de formas
diferentes, inovadoras, de se perceber a realidade. Isto seria possível, conforme
argumentado na seção 1.4, porque a imaginação, essência do ato de brincar e de
poetizar, permite ao ser humano perceber e relacionar-se com o mundo em que
está inserido. Consoante Bachelard (1998, p.18), “a imaginação inventa mais
que coisas e dramas, inventa vida nova, inventa mente nova; abre os olhos que
têm novos tipos de visão”.
Esta habilidade, que é compartilhada pela menina avoada e pelo menino
que carregava água na peneira, permite que a percepção da realidade e a
construção de sentidos não se restrinja à sensorialidade física. A ressignificação
do real a partir da imaginação, como é comumente feito pela criança e pelo
poeta, permite que ocorra a aproximação entre o real (o empírico) e o irreal (o
imaginado), gerando uma experiência subjetiva positiva para o ser humano,
tanto do ponto de vista psicológico quanto sócio-cultural, pois, como alerta
Góes (2002, p. 83), um aspecto instigante do funcionamento lúdico-imaginário
estaria, justamente, nas instâncias em que a criança, ao recriar suas vivências,

78
matizadas pelo afeto, pode ultrapassar a “lógica do real” e, com a
complexificação das brincadeiras, imaginar um plano de ocorrências virtuais
que transgridem esta lógica.
Desta forma, e ainda consoante Góes (2002, p. 84), ao mesmo tempo em
que o brincar faz parte do processo de socialização, em que a criança se
apropria de códigos culturais, a criança apropria-se de códigos e, no entanto,
não o faz passivamente, ela situa-se diante deles e também os transforma,
acrescentando-lhes inovações.
No mesmo sentido se expressa Paulo Freire (1996, p. 85):

O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente,


interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel
no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem
intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas
seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato
não para me adaptar mas para mudar.

O percurso desenvolvido tanto pela menina avoada quanto pelo menino


que carregava água na peneira permite perceber que o simples ato de brincar —
com brinquedos de sua imaginação e não com produtos industrializados —
possibilita o surgimento de descobertas, sonhos e fantasias, fundamentais para o
ser humano. Segundo Almeida & Casarin (2002, p. 47), “a criança interage,
através do brinquedo, desde cedo, com a cultura em que está inserida”. . A forma
como a imaginação/fantasia infantil é enfocada no poema “A menina avoada”
possibilita depreender a idéia de que a imaginação permite ao ser humano
transcender sua própria realidade:

Esta menina avoada nos ensina que se inventarmos o modo de chegar ao nosso
intento poderemos ter um curso móvel e mutante. Seremos capazes de alterá-lo
quando julgarmos necessário e criarmos maneiras de continuá-lo sempre que
quisermos. Não teremos que nos submeter a uma forma, afinal seremos os
inventores do percurso. Se ler, bem como escrever, caracteriza-se pela
construção de sentidos, então, poderemos elaborar um modo diferente de
pensar a infância e descreve-la a nós mesmos. (LEAL apud KOHAN,
2004, p.28)

De fato, o percurso dos dois meninos assemelha-se muito ao próprio


percurso do ser humano, sobretudo no que diz respeito à perseverança em seguir
em frente, a despeito das adversidades e, ainda, à importância da jornada
interior, de desenvolvimento da subjetividade. A travessia do rio pela qual

79
deveria passar a menina avoada e seu irmão, metaforicamente, recupera o
sentido da própria vida que, “usando o simbolismo grego, é uma navegação
arriscada” (ZOUEIN, 2004, p. 2). Os perigos de tal empreitada podem ser
propostos no que possuem de contraditórios: viver é sempre tentar conciliar
opostos. O ser humano, permanentemente, convive com conceitos como vida e
morte, razão e emoção, real e irreal (dentre outros).
Observa-se, ainda, que tanto no poema “O menino que carregava água na
peneira” quanto no “A menina avoada” existem características comuns à
“teologia do traste” (mencionada na seção 2.2). Nestes poemas a criança, que
normalmente não tem voz própria, sendo comumente conduzida pela mão do
adulto, é retrata em primeiro plano. Os significados contidos na “teologia do
traste” se apresentam mais marcados no poema “A menina avoada”, pois a
protagonista concentra em si a figura da criança e da mulher, sujeitos
desvalorizados historicamente, característica que, na poesia de Manoel de
Barros, representa uma postura muito clara do poeta com relação ao estar no
mundo do poeta e do próprio ser humano:

A qualidade de uma poesia objetiva e precisa afirmam a modernidade de


Manoel de Barros, sua ironia, a de negar através do silêncio e na eleição do
pequeno aparentemente sem valor, põe o poeta num caráter de necessidade e
aliviamento, para que repensemos nosso convívio com o mundo e as coisas que
devemos priorizar como fundamentais e substancialmente humanas, sendo uma
delas a poesia. (TRINDADE, 1999, s/p)

Uma das principais mensagens transmitidas no livro “Exercícios de ser


criança” é a de que a criança é capaz de realizações importantes. Mais do que
meros personagens de ficção, “a menina avoada” e “o menino que carregava
água na peneira” indicam que a concepção da infância proposta nos textos
infantis de Manoel de Barros é uma concepção positiva, que reconhece e
valoriza as peculiaridades e virtudes das crianças. Conforme argumentam
Ramos & Tasca (s/d), a imagem da infância como fonte de felicidade é, de certa
forma, bastante recorrente. Mas tal sentimento não se construiria apenas em
virtude dos aspectos lúdico e onírico que caracterizam esta fase. Intimamente
associado à idéia de infância está o sentimento de esperança nela depositado
pelos adultos, que esperam que a vida que ali brota, vingue em todas as suas
potencialidades positivas e traga a transformação renovadora.

80
Esta concepção se coaduna com os ideais que compõem o campo da
“Teologia do traste”, pois subverte o padrão, solidificado culturalmente, de que
o herói da criança vem do céu, vem de outro planeta, é um animal ou ente
sobrenatural, tem superpoderes, enfim, é outro que não a própria. Nos poemas
de Manoel de Barros não são apenas as coisas e seres que são libertos da rigidez
de sua função. Nestes poemas também a criança deixa de ser passiva, sempre
sonhando com um herói com quem possa viver aventuras e salvá-la de seus
apuros para se tornar sujeito de suas próprias ações. A ascensão da criança, que
passa da posição de passividade e assume um papel mais participante e ativo,
pode ser compreendida, nos poemas de Manoel de Barros, como uma vertente
da “Teologia do traste”, concepção típica da poética deste autor.

3.3 - O fazedor de amanhecer

Um homem estava anoitecido.


Se sentia por dentro de um trapo social.
Igual se, por fora, usasse um casaco
rasgado
e sujo.
Tentou sair da angústia
Isto ser:
Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo
no
Lixo.
Ele queria amanhecer.

Manoel de Barros (“O casaco”, in: Poemas


rupestres, 2004)

Cronologicamente, O fazedor de amanhecer (2000) sucede Exercícios de


ser criança (1998). Seguindo o padrão inaugurado pela obra anterior, O fazedor
de amanhecer apresenta produção gráfica elaborada, seguindo uma tendência já
apresentada em Exercícios de ser criança, cujas ilustrações são fotografias de
bordados feitos à mão pela família Diniz Dumont.
Os desenhos que ilustram os poemas de O fazedor de amanhecer foram
feitos pelo cartunista Ziraldo que, além dos desenhos exclusivamente
relacionados aos temas desenvolvidos, referencia artistas renomados: o
cartunista norte-americano Saul Steinberg (cuja obra é homenageada na capa do
livro — conferir anexo I deste trabalho), o pintor holandês Vincent Van Gogh,

81
além do próprio Manoel de Barros, que é representado em cinco das vinte
ilustrações que compõem a obra.
O apuro gráfico e literário que compõe o livro rendeu a Manoel de
Barros o “Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira”, no ano de 2002, na categoria
“melhor livro de ficção”.
O fazedor de amanhecer é composto por poemas que apresentam temas
comuns na poética de Barros, tais como memórias pessoais, destaque ao
processo de criação de seres e coisas, reflexão sobre o próprio idioma,
convivência integrada entre seres e elementos da natureza, além da já referida
“Teologia do traste”.
Com relação à linguagem adotada, também não são observadas
manipulações no sentido de “facilitar” a leitura das crianças (mesmo as mais
pequenas que, ocasionalmente, possam ler o livro). O trato com a linguagem em
O Fazedor de amanhecer desenvolve uma tendência usual de Manoel de Barros
em manusear o léxico e a sintaxe com o objetivo de aproximar tema e forma de
seus poemas. Esta tendência é avaliada por Caetano (2002) como uma
transposição de experiências:

O poeta tenta transpor o vivido da experiência (dimensão sensitiva) pelo


vivido lingüístico (dimensão pragmática, do fazer do sujeito enunciador),
discursivizando uma experiência que além de retratar as coisas do mundo
remete à dimensão afetiva do sujeito (....) possibilitando ao enunciatário
colocar-se no mesmo lugar de seu ponto de vista para apreender os seus
inúmeros significados e efeitos de sentido. (Id., ib., p. 12)

Um desses inúmeros significados é claramente referido por Manoel de


Barros no poema “Pretexto” (de O livro sobre nada), em que o eu-lírico afirma:
“o que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis”
(1996, p.7).
De fato, o processo do contato que o poeta tem com as palavras, em um
labor que se assemelha ao lúdico infantil, e o exercício da invenção/criação são
os temas básicos de O fazedor de amanhecer e desses dois temas se desdobram
todos os outros que são apresentados. A relevância do processo de criação é
indicada no título da obra com o emprego do vocábulo “fazedor”, sinônimo de
“executor, realizador” (HOUAISS & VILLAR, 2001, p. 198). “Fazedor”,
portanto, remete ao sentido de “aquele que faz” e “aquele que cria”. A

82
expressividade que advém do uso deste termo permite resgatar, em seu
significado conotativo, a figura do próprio poeta.
Mencionar as possíveis idéias contidas no título dos livros é um processo
importante quando são estudados os poemas de Manoel de Barros. Os títulos de
suas obras normalmente são expressões semanticamente tão significativas
quanto os poemas que contêm. Para Sales (s/d, s/p), os títulos dos livros de
Manoel de Barros, por si só, já dão muito o que pensar quando nos propomos a
refletir sobre a sua poética. Invariavelmente, nonsense e intertextualidade
formam um intricado de signos.
No título de O fazedor de amanhecer, além da palavra “fazedor” está
presente a palavra “amanhecer”, uma das metáforas mais poéticas na literatura.
Esta imagem recupera a dimensão cíclica deste fenômeno e alegoriza, com sua
força simbólica, o eterno processo de renovação pelo qual o ser humano passa
em sua vida.
Ademais, a simbologia veiculada pelo uso da imagem do amanhecer pode
ser ainda percebida como metáfora da infância, como classicamente veiculado
na literatura pelo mito da esfinge de Tebas, referida por Sófocles em Édipo Rei.
De acordo com este mito, a cidade grega de Tebas estava sendo aterrorizada por
um monstro, uma esfinge, que propunha um enigma baseado no questionamento
de qual animal andaria com quatro pés de manhã, dois à tarde e três à noite.
Édipo solucionou o enigma ao perceber que os períodos do dia referiam-se aos
estágios vitais do homem: a infância seria a manhã, a idade adulta
corresponderia à tarde e a velhice seria o anoitecer.
Nesse contexto, o campo simbólico de “amanhecer”, no livro O fazedor
de amanhecer, potencializa o sentido de infância enquanto estágio inicial de
vida, estando relacionado, sobretudo, à origem do ser humano. Esta concepção é
defendida por Bachelard, para quem “a infância é um princípio de vida
relacionada à possibilidade de recomeçar” (apud DAVID, 2005, p. 19).
O livro O fazedor de amanhecer é composto por quinze poemas curtos de
versos livres, dos quais nove são intitulados e mais longos que os que não
possuem nome. O primeiro poema, chamado “O amor”, trata da importância
deste sentimento no momento da geração dos indivíduos. Ainda que seja
possível, e isto é reconhecido no texto, gerar-se uma pessoa pelo uso da
tecnologia científica, de forma a prescindir do contato humano tradicional, o

83
poema sugere que a essência do ser humano é o amor, ingrediente especial com
que Deus presenteou nossa espécie no momento da concepção:

Fazer pessoas no frasco não é fácil


Mas se eu estudar ciência eu faço.

Sendo que não é melhor do que fazer


pessoas na cama
Nem na rede
Nem mesmo no jirau como os índios fazem.
(no jirau é coisa primitiva, eu sei,
mas é bastante proveitosa)

Para fazer pessoas ninguém ainda não


Inventou nada melhor que o amor.
Deus ajeitou isso para nós de presente.
De forma que não é aconselhável trocar
o amor por vidro. (2001, s/p)

Este poema apresenta uma reflexão sobre o altíssimo grau de


desenvolvimento a que chegou a tecnologia, nos mais variados campos e com
seus mais variados instrumentos. Desenvolvimento técnico tão vertiginoso que
chega ao extremo de substituir, pelo uso de condições artificialmente
reproduzidas em laboratório, o contato pessoal entre o homem e a mulher para a
geração de um novo ser — contato que, há milhões de anos, vem sendo
realizado pelas pessoas com vistas a perpetuar a raça humana. Tais como os
índios que, em seus primitivos jiraus, vêm repetindo há muitas gerações as
práticas ancestrais de perpetuação da vida e, a despeito de toda a inovação e
substituição de fenômenos por processos artificialmente criados, permanecem
com suas antigas práticas. Fica evidente, portanto, que este poema apresenta
uma perspectiva humanista frente ao desenvolvimento tecnológico. Para
Ferreira (2004),

A perspectiva humanista é, de longe, a mais praticada atualmente. Com ela,


vemos como a tecnologia está ameaçando o humano, desvirtuando-o,
corrompendo a sua essência, etc. É uma perspectiva que vê o homem como
uma espécie natural, distinta, caracterizada pela razão, pelas técnicas e pela
cultura, cujas obras, a partir de um certo momento histórico, passaram a
ameaçá-lo. O homem é então visto como um ser natural que cria artifícios e
que, a partir de um certo momento, passa a ter sua natureza corrompida por
estes mesmos artifícios. A máquina começa a vencer o homem e o homem
passa a se tornar escravo da máquina. (p. 3)

84
O segundo poema apresentado em O fazedor de amanhecer não possui
título. A exemplo do poema anterior, este parte do tema da criação, que agora é
compreendida em sua acepção de invenção, labor criativo. O eu-lírico adverte:

Quem não tem


Ferramentas de pensar,
Inventa. (2001, s/p)

Este poema antecipa o tema que será desenvolvido no próximo,


sobretudo no que diz respeito à relevância que o ato de inventar tem para o
poeta. Para tanto, o poema “O fazedor de amanhecer” inicia-se apresentando
uma situação de reconhecimento da incompetência/incompatibilidade, por parte
do eu-lírico, com relação às máquinas de utilidade imediata, ou “prestável”.
Este tipo de aparato não desperta o interesse do eu-lírico e o leva ao extremo de
considerar-se “leso”, bobo, idiota, no contato (ou “tratagem”, de acordo com o
poema) com este tipo de ferramenta cuja razão de ser estaria na utilidade prática
de suas funções:

Sou leso em tratagens com máquina.


Tenho desapetite para inventar coisas
prestáveis
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um
Fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
Automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência. (2001, s/p)

A leitura deste poema permite identificar o próprio fazer poético. A


enumeração das invenções que o eu-lírico “engenhou” (outro dos neologismos
de Manoel de Barros) apresenta criações sem utilidade pragmática, mas que
possuem expressividade poética. Afinal, qual a justificativa prática para a
criação de um platinado de mandioca ou de um fazedor de amanhecer? Uma das
respostas possíveis a esta pergunta remete a uma característica muito peculiar
na obra poética de Manoel de Barros, a desconstrução da realidade:

85
A poesia do des em Manoel de Barros é a poesia que busca o originário, que
subverte radicalmente a linguagem para apresentar o real, pois é construída a
partir da negação. Desconstruir as coisas do seu significado mais habitual,
desconstruir para construir, fazer delirar, como afirma o próprio poeta, o
verbo, descoisificar a realidade. E quando ele descoisifica o real ele constrói
uma gama de significados inexistentes. (...) a poesia é linguagem que quer
deslocar ao máximo a representação da realidade, para que esta possa de fato
se revelar n seu sentido mais originário. (AZEVEDO, s/d, s/p)

No poema “O fazedor de amanhecer” a subversão é proposta na


descoisificação dos objetos que assumem funções até então impensáveis e
inviáveis normalmente. Tais desconstruções/criações se assemelham às
realizadas pelo “menino que carregava água na peneira”, onde as coisas e seres
compartilham funções e geram sensações sinestésicas. Assim, conforme
argumenta Camargo (2004, p. 110), uma força vital, pulsante, esvazia a palavra
de sua carga cultural e instala a infidelidade do sentido, escrevendo por imagens
que corrompem o entendimento da realidade tal qual se conhece, e abre caminho
para o desconhecido, o invisível, o inaudível, a um mundo sinestésico inovador.
Consoante a autora citada, ao proceder desta forma, Manoel de Barros
cria um sistema de pensamento de cunho ético, caracterizado, sobretudo, pelo
profundo respeito e valor a todas as coisas e seres que habitam o mundo, já que,
para o poeta, tudo tem uma razão de ser, “todas as coisas são servíveis mesmo
dentro de sua inservitude” (id., ib.). No contexto de sua poética, o inútil é
emancipado de sua condição inferiorizada. Nesse sentido,

O poeta inutiliza o objeto percebendo nele uma outra nuance, combinando-o


com o que corrompe e lhe rouba a praticidade. A imagem é veementemente
corrosiva e bela. Em sua instantaneidade, apreende-se o poético, a
instabilidade dos significados, ao mesmo tempo em que se vislumbra uma
nova linguagem, uma nova relação transfiguradora do real. Essa é a comunhão
da poesia barreana com o inútil. Das coisas humildes (...) é que o poeta
constrói uma teoria poética dentro da própria poesia. (CAMARGO, 2004,
p.112)

A hipervalorização dos objetos e das coisas ínfimas, na poética de


Manoel de Barros, apresenta duas características muito claras. A primeira delas
corresponde à “Teologia do traste”, já referida neste trabalho. Sendo “Teologia
do traste” compreendida como representação de hipervalorização de seres e
objetos comuns do cotidiano (uma postura comum na obra adulta de Manoel de
Barros, e, como é constatável pela leitura deste poema, é igualmente

86
desenvolvido em sua produção infantil). Conforme o próprio Manoel afirma em
seu livro Memórias inventadas: a infância:

Sou um apanhador de desperdícios:


Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática. (2003, s/p)

De fato, a “invencionática” é a palavra-chave para a composição da


segunda característica da “Teologia do traste”. A “invencionática”, capacidade
de inventar, permite ao poeta compor representações insólitas, pouco usuais, dos
seres e coisas “desimportantes”. Por meio dela a lógica cotidiana é invertida e
as criaturas são retratadas de forma incomum, em situações diferentes das
habitualmente esperadas. Esta inversão sugere a reelaboração de toda a
conjuntura social. Para Camargo (2004, p. 104), na poesia da Manoel de Barros
as figuras que não têm uma função social ou heróica, tais como as crianças,
animais, mendigos (dentre outros) são alçados a condição de destaque. (Id., ib.,
p.137)
Este tipo de característica, de cunho intrinsecamente social, está presente
em toda a obra de Manoel de Barros, e expõe a tensão que existe entre a lógica
da razão e a percepção que o poeta tem da vida e de suas convenções:

A percepção poética da vida inaugura um mundo oposto ou de valores oposto


ao da instrução racional; vale para o poeta ser desinstruído racionalmente e
sábio no que ”não acontecia”. O mundo inaugurado pelo poeta é a percepção
do des(acontecer), aquilo que não é suscetível de entendimento racionalmente;
todo esse conhecimento provém da imaginação, da fantasia e da sensibilidade.
(...) Dessa forma, instruídos racionalmente é estar aprisionado pela lógica e
pelas seqüências em tudo na vida. Ao passo que instruídos pelo des (acontecer)
indica que a pessoa goza de pura liberdade do inaugurar, do perceber e sentir.
Liberdade para criar outras relações que encantam e dão prazer pelo sensorial
e pelo imaginário. (CASTRO, 2005, p.5)

Ainda de acordo com Castro, o sentido do “inaugurar” na obra poética de


Manoel de Barros está muito ligado ao estado lúdico, tipicamente infantil, de
perceber o mundo. O lúdico, por não sofrer influência predominante do
racionalismo, é referido como condição capaz de reinventar a vida, pois permite
ao indivíduo perceber o mundo das coisas inominadas e entrar em profundo

87
contato com o mundo da natureza em estado puro, comungando com seus
paradigmas de verdade e realidade.
Ao tomar contato íntimo, transcendental com as coisas e seres, o
indivíduo “torna-se poeta e inaugura”. Conforme expõe o autor citado,
“inaugurar é sair da lógica e do sentido fixado. (...) O poeta inaugura quando se
volta para o estado coisal, para a linguagem livre e virgem das coisas e das
palavras” (id. ib., pp.2 e 3). Estado apresentado ao leitor no poema “O fazedor
de amanhecer”.
O “estado coisal”, original, similar ao próprio gênesis, é referido, com
certa nostalgia, no poema seguinte, “Eras”. Neste poema a criação se confunde
com uma brincadeira de faz-de-conta infantil:

Antes a gente falava: faz de conta que


este sapo é pedra.
E o sapo eras.
Faz de conta que o menino é um tatu
E o menino era um tatu.
A gente agora parou de fazer comunhão de
pessoas com bicho, de entes com coisas.
A gente hoje faz imagens.
Tipo assim:
Encostado na Porta da Tarde estava um
Caramujo.
Estavas um caramujo — disse o menino
Porque a Tarde é oca e não pode ter porta.
A porta eras.
Então é tudo faz de conta como antes? (2001, s/p)

Em “Eras” o ambiente criado pelo poeta refere-se ao momento da criação


do mundo, tempo imemorial, primitivo. O momento em que ocorrem as ações,
assim como a própria origem do mundo, é incerto, indefinidamente situado no
passado. É o momento da cosmogonia, que independe de explicações religiosas,
é um conceito mítico. Esta referência temporal conflui para o tema da busca da
origem, sempre presente na obra de Manoel de Barros, já que “o mito de origem
está imbricado no mito cosmogônico” (DAVID, 2005, p. 19). O lapso temporal,
recuperado pelo poema, permite destacar a importância da palavra para a
criação de tudo o que há no mundo:

A linguagem mítica de criação do mundo é um “vazio sem tempo”, anterior à


própria criação, anterior ou fora da História. (...) Com efeito, o mundo só
começa a ser mundo quando ele é objeto de uma narrativa. E essa narrativa
seria o fóton originário do “faça-se luz” que inaugura a História e o tempo

88
humano. (...) O mundo e o tempo foram criados pelo verbo, pelo saber, pela
narrativa . (ARAÚJO, 2004, p. 244)

Para reproduzir este momento, o eu-lírico utiliza como primeira palavra o


advérbio “antes”, indicando um momento anterior ao que este se encontra,
referido no poema pelo advérbio “agora” e pelo advérbio “hoje”. O poema
realiza um diálogo entre o tempo presente e o atual, comparando os dois no que
diz respeito à criação dos seres e das coisas.
Assim como grande parte dos poemas de Manoel de Barros, “Eras” é
composto por versos livres e curtos. Os efeitos poéticos ocorrem pelo uso
elaborado da semântica e da sintaxe.
O primeiro efeito poético observável é o da alternância entre as formas
verbais “é”, “eras” e “estavas” que, a exemplo de outras brincadeiras que o
poeta faz com as palavras, gera uma expressividade semântica muito marcada.
Além de se aproximar da linguagem infantil, alheia às regras de funcionamento
da gramática, sobretudo as relacionadas às variadas formas lexicais de
representar os paradigmas temporais definidos pela gramática. Para a criança, se
há a forma verbal “eras”, é perfeitamente possível que exista “estavas”.
Inspirado por esta lógica, o poeta brinca com a semântica do substantivo “eras”
(relativo à divisão de tempo) e “eras”, conjugação do verbo “ser”.
A temática do ser — referente aos sujeitos que habitam o mundo —, ou
melhor, da criação dos seres, é o tema principal deste poema e um dos
principais objetos de reflexão na obra de Manoel de Barros. No poema “Eras”,
essa temática ocorre quando o eu-lírico cria um paralelismo entre o tempo atual
e o tempo mítico da criação para expor uma nostalgia/crítica às criações que não
são fruto da interação entre os seres. Neste contexto, o eu-lírico ressente-se da
época em que “a gente falava: faz de conta que este sapo é pedra. E o sapo
eras”, tempo melhor que o atual, em que tudo o que “a gente faz é imagem”.
Para ele, o tempo anterior promovia “a comunhão de pessoas com bichos” e de
“entes com coisas”, atribuindo-lhes a própria essência de ser, ao contrario das
“imagens de hoje” que, segundo esta leitura, estariam mais relacionadas à forma
que à essência.
É importante ressaltar que o poeta utiliza a expressão “ente” para referir
uma categoria que não se enquadraria nos campos “gente”, “bichos” e “coisas”.

89
Este uso é pertinente, pois também indica uma reflexão que remete ao
questionamento do próprio ser, recuperando conceitos da “Teologia do traste”.
“Ente”, de acordo com Houaiss (op. cit., p. 167), refere-se a “tudo que
existe ou se supõe existir”. Ao utilizar a expressão “se supõe existir”, o filólogo
aproxima-se dos conceitos desenvolvidos por Manoel de Barros ao alçar os
objetos e integrantes dos reinos animal, vegetal e mineral à condição de seres,
fazendo-os existir a partir da suposição, criação, do poeta:

O problema é muito complexo e sério por muitas razões e nos remete à


possibilidade, ou não, de integrar o eventual hiato entre as assim chamadas
duas naturezas no humano numa eventual síntese capaz de dar conta, tanto no
pensamento como na ação, de uma provável ruptura entre o que supostamente
é (...) e o que se dá a nós em nosso estar num mundo de entes e seres que se
relacionam com coisas e outros seres, vivenciados como “objetos” e nunca
como coisas e seres em si, independente da relação que nós estabelecemos.
(SCHRAMM, 2005, s/p)

A comunhão dos seres, referida no poema como prática comum no


passado, pode ser percebida quando o sapo, por um simples ordenamento,
transforma-se em pedra. Da mesma forma, pelo uso do verbo, o menino torna-se
tatu e um caracol se “encosta na Porta da Tarde” que, por ser oca, deixa de ter
porta. Todas as criações ocorrem por intermédio do verbo, expressão
responsável transcendental, divina, por meio da qual é criado o ser humano, seu
conhecimento e o próprio mundo em que vive. A força assumida pela palavra
resgata o conceito, do evangelho cristão, “No princípio era o verbo e o verbo era
Deus” e, ainda:

Deus empregou a Palavra como forma de expressão e como instrumento de


criação. Isso significa que, em todas as cosmogonias míticas, por mais longe
que se remonte a sua história, sempre se volve a depara com a posição
suprema da Palavra. (...) Dessa forma, ao apresentar o que se pode chamar de
cosmogonia da poesia, Barros enfatiza a supremacia da Palavra. (DAVID,
2005, p. 20)

Ademais, o poeta enfatiza a importância do faz-de-conta infantil para a


comunhão entre as criaturas. Por intermédio da fantasia/imaginação da criança é
criado um universo paralelo ao que esta se encontra. Neste universo as barreiras
são abolidas e seres e coisas se irmanam, resgatando a prática comum de
“antes”. O poema é concluído com a pergunta “então é tudo faz de conta como
antes?”. Este questionamento permite interpretar o faz-de-conta como a forma

90
como ocorriam as coisas “antes”, isto é, no início, momento anterior à criação,
quando as coisas e seres ainda não haviam recebido nomes e funções.
O poema seguinte, “Meu avô”, também resgata um momento pretérito,
mas, desta vez, a referência é a um momento definível, e não mítico, como o
anterior. Nesse poema, o eu-lírico apresenta seu passado, quando seu avô se
sentava no quintal (ambiente frequentemente utilizado na obra de Manoel de
Barros) e convivia com ventos, animais e insetos:

Meu avô dava grandeza ao abandono.


Era com ele que vinham os ventos a conversar
Sentava-se o velho sobre uma pedra nos fundos
do quintal
E vinham as pombas e vinham as moscas a
conversar.
Saía do fundo do quintal para dentro da
casa
E vinham os gatos a conversar com ele.
Tenho certeza que o meu avô enriquecia
a palavra abandono.
Ele ampliava a solidão dessa palavra. (2001, s/p)

E as borboletas se aproveitam dessa


Amplidão para voar mais longe. (op. cit.)

Os dois poemas citados compõem uma unidade significativa e descrevem


a nostalgia que o eu-lírico sente de sua infância, nostalgia que é representada no
poema quando é retratada a admiração do neto pela figura, quase mítica, de seu
avô, figura simbólica muito forte, pois, como alerta David (2005, p. 26), “o avô
age como a criança, como o homem natural e primitivo”.
Convém referir que nestes poemas a expressividade é construída pelo uso
incomum da semântica. Sintaticamente não ocorrem construções elaboradas, as
expressividades se apresentam no campo da semântica, identificáveis em
expressões tais como “conversar” com os gatos, moscas e pombas e “o silêncio”
fazendo “rumor” no vôo das borboletas sugerem a poeticidade do discurso.
Nesse sentido, “o poeta quebra todos os estatutos normais para brincar com os
sentidos e com as palavras, expressando a beleza do mundo a serviço das
crianças, bem mais normal que o mundo adulto, onde nada acontece de
extraordinário.” (CASTRO,1991, p. 24)
“Extraordinário” é uma palavra que resume bem a temática do poema
“Meu avô”. A atmosfera lírica criada no texto reflete o grau de encantamento

91
despertado pelo avô, que é retratado como um tipo exótico. Este personagem é
associado, no texto, com a palavra “abandono”, “ampliando” o seu sentido. Os
significados desta ampliação são fundamentais para a compreensão deste
poema. Para tentar compreender um pouco da forma como o avô “amplia” os
sentidos da palavra “abandono”, convém recuperar os sentidos originais deste
termo que, segundo Barbosa (s/d, p. 11), indicam “desamparo” e “solidão,
isolamento”. Estes sentidos que se apresentam no poema “Meu avô”, contudo,
não são ainda suficientes para a compreensão da forma como estes são
ampliados no poema. Para tanto, é pertinente analisar como esta personagem,
que é recorrente na obra de Manoel de Barros, é representada.
Um destes poemas em que é referida a figura do avô é “Introdução a um
caderno de apontamentos 2”, que inicia o livro Concerto a céu aberto para solo
de aves (1991). O referido poema é particularmente importante à análise do
texto “Meu avô” porque, segundo Castro (1991, p. 168), “há um relação entre
este poema inicial e os subseqüentes”. Isto se deve ao fato de este poema
retratar um momento marcante da convivência do avô com seu neto, o próprio
eu-lírico do poema.
Em “Introdução a um caderno de apontamentos”, o avô é apresentado
como indivíduo que passa a morar em uma árvore que brotou no porão da casa
onde vivia e, doze dias antes de sua morte, entrega um caderno de apontamentos
pessoais para seu neto. Este gesto é fundamental para despertar no neto sua
habilidade poética adormecida e, além disso, para consolidar sua admiração com
relação a seu antepassado.
No momento reportado pelo poema, o avô é referido como alguém que
estava “sofrendo do moral”, mal que pode ser interpretado como uma demência
senil, comum em pessoas de idade avançada. Tal moléstia justificaria o
isolamento em que vive o avô, tanto neste quanto no poema “Meu avô”.
Entretanto, no poema “Meu avô”, fica claro que a visão que o menino,
eu-lírico do poema, tem do avô não expressa vergonha, medo ou desconfiança
por este familiar. Contrariando uma atitude que seria, até certo ponto,
compreensível pelo contexto, a existência do avô é referida com admiração e
poeticidade. “A simplicidade da criança que enfoca o poema torna todo o

2
A transcrição completa deste poema é feita no anexo II deste trabalho.

92
transcurso do avô numa fantástica, feliz transfiguração da vida e do mundo”
(CASTRO, 1991, p. 169).
Esta transfiguração é a responsável pela ampliação de sentido da palavra
abandono, que define o avô: se o avô é o abandono em pessoa (aquele que é
desamparado, isolado), pelo olhar do neto, ele transfigura-se em símbolo de
descoberta de outros horizontes, no caso, o poético. O universo da poesia chega
ao menino através do legado deixado por seu avô, o caderno com os
apontamentos onde estavam registrados “delírios ônticos” e “sedição de
palavras”, uma clara alusão à poesia. O avô, em vida, estava isolado, mas a
ponte criada entre eles a partir da poesia os aproxima de forma muito forte. Para
Castro (1991, p. 170), as relações avô/neto recebem conotações tão brilhantes
em relação à vida que a morte do avô deixa de ser um sofrimento ou uma perda
para ser assumida como a realização poética de um grande desejo de
transfiguração e descoberta de outros horizontes.
Outro poema importante para a compreensão do texto “O avô” é o de nº.
6 3 no Livro sobre o nada (1996). Esse poema é citado não apenas por apresentar
a figura do avô, mas, sobretudo, por conter uma característica peculiar,
interessante: o poema inclui em seu texto o verso “Meu avô ampliava a
solidão”, que é retomado e desenvolvido no poema “Meu avô”, de O fazedor de
amanhecer. A interpretação deste verso concentra os possíveis significados de
todos os demais poemas onde figura esta personagem. Um destes significados
possíveis refere-se ao fato de ser a imagem do avô uma representação que
conduz ao tema da busca da origem que, como referido anteriormente, é um
tema importante na obra poética de Manoel de Barros. De acordo com David
(2005, p. 26): “(..) o avô simboliza o pensamento primitivo”.
Ademais, ainda consoante David (2005, p. 27), o avô se distingue
marcadamente das figuras que o cercam. Ele aparece como um ser livre sempre
incorporado pela natureza, tornando-se, à maneira do mito, um “provedor de
poesia”, um modelo seguido pelo eu-lírico. Neste sentido, “o canto do avô,
segundo o eu-lírico, é repleto de êxtase. Ele quer reintegrar a condição humana
à condição do homem primitivo, que não conhecia o trabalho, nem a dor e vivia
em paz com os animais” (Id., ib., p.28). Deseja abolir a catástrofe que

3
A transcrição completa deste poema consta no anexo II deste trabalho.

93
interrompeu as comunicações entre o Céu e a Terra e que gerou a atual condição
do homem, definida pela temporalidade, o sofrimento e a morte. Desta forma:

a simbologia da criança relacionada a alegoria do avô fazem de Manoel de


Barros um Sísifo. Assim, tem-se a impressão de que Barros rola o bloco de
pedra (poema) montanha acima e ao chegar no topo (avô) não é vencido,
reinventa o mito: ele mesmo volta-se e começa a empurrar a pedra para o
momento inicial (criança), de onde vem volta a rolar o bloco... Num constante
repetir, em que o passado e o futuro se presentificam, tudo se eterniza em
grandes momentos poéticos. (...) É como se existisse uma roda que vai da
criança para o avô e deste para aquela: o ponto de intersecção entre eles é o
poeta. Por meio deste, desvendam-se a criança-avô e o avô-criança, busca-se a
origem. (DAVID, 2005, p. 30)

Esta leitura do poema “Meu avô” permite perceber certa nostalgia que o
poeta sente de seu passado. Sua realização pessoal ocorre no momento em que
rememora os antigos momentos, cheios de poesia e ternura, em que convivia
com a extraordinária figura de seu avô. Se, pela leitura dos poemas citados, não
é possível identificar na família um relacionamento tão intenso com relação ao
avô, no que diz respeito à relação deste e de seu neto, a ligação é intensa e
inesquecível.
Em sua infância, ressignificada por sua imaginação, o eu-lírico integra
um mundo espiritualizado, mais rico que o mundo em que vive em seu momento
histórico. Neste mundo, revivido pela infância, a existência ampla e poética do
avô deixa marcas em todos, sobretudo na natureza, o que pode ser percebido nos
versos “e as borboletas se aproveitavam dessa amplidão para voar mais longe”.
Mas é sobretudo no neto que as marcas ficam mais evidentes, já que, assim
como seu avô, o neto/eu-lírico, é poeta.
A reflexão suscitada pelo poema “Meu avô” é tão forte que os poemas
seguintes possuem temática mais amena, não tratando, de imediato, de nenhum
tema tão profundamente relacionado à subjetividade do eu-lírico quanto o
apresentado em “Meu avô”. Os próximos poemas caracterizam-se por
apresentarem reflexões mais leves:

Só o silêncio
faz rumor
no vôo das borboletas. (2001, s/p)

Na estrada,
ponho meu corpo
a ventos.

94
Aves me reconhecem
pelo andar. (op. cit.)

Estes pequenos poemas permitem que o eu-lírico saia do estado de


“êxtase”, referido por DAVID (2005, p. 23), e retorne à sua cotidianidade. Em
sua próxima reflexão poética, o eu-lírico — ainda utilizando suas próprias
memórias como pano de fundo — retoma o tema, fundamental na poesia de
Manoel de Barros, da relação que o poeta tem com as palavras:

Não sinto o mesmo gosto nas palavras:


oiseau e pássaro.
Embora elas tenham o mesmo sentido.
Será pelo gosto que vem da mãe? de língua mãe?
Seria porque eu não tenha amor pela língua
de Flaubert?
Mas eu tenho.
(Faço este registro
porque tenho a estupefação
de não sentir com a mesma riqueza as
palavras oiseau e pássaro)
Penso que seja porque a palavra pássaro em
mim repercute a infância
E oiseau não repercute.
Penso que a palavra pássaro carrega até hoje
Nela o menino que ia de tarde pra
debaixo das árvores a ouvir pássaros.
Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseau
Só tinha pássaros.
É o que me ocorre sobre a língua mãe. (op. cit)

Este poema, intitulado “A língua mãe”, apresenta as sensações e as


reflexões que ocorrem ao eu-lírico quando pensa a respeito da primeira língua
que conheceu, com a qual ele cresceu e descobriu-se poeta.
Estruturalmente, observa-se que o texto é composto por 20 versos
agrupados em duas estrofes, sendo o mais extenso em O fazedor de amanhecer,
e seus versos, como os demais, são livres. O poema é apresentado em tom de
reminiscência reflexiva, em 1ª pessoa. As ações descritas ocorrem a partir do
momento em que o eu-lírico compara a palavra pássaro e sua correspondente,
em francês, “oiseau”. Esta comparação desperta no eu-lírico sentimentos
íntimos de alegria que demonstram a relação, sentimental, para com seu idioma
nativo.
A ligação entre a língua e o eu-lírico, como é possível perceber pelo uso
dos termos “gosto” e “amor”, é uma relação sinestésica, com características de

95
contato íntimo, sensual. Tal relação é percebida em toda a poética de Manoel de
Barros. O próprio poeta, em entrevista a Kelcilene Silva, afirma ter uma “forma
erótica de estar com as palavras” (SILVA, 2003, p. 32). De acordo com Barros,
“eu só tenho vadiagens com letras. Já imaginou amar o corpo fônico das
palavras? Não é uma doce inocência? Pois eu costumo adoecer desta inocência.
Minha poesia é uma forma erótica de estar com as palavras.” (Id., ib.)
Em “A língua mãe” fica evidente o carinho que o poeta tem com as
palavras, seu instrumento de trabalho. A relação entre ambos transcende o
pragmatismo da relação “falante-idioma”. Neste sentido é possível identificar
uma postura do poeta em não conceber a palavra como mero instrumento de seu
labor. Sua força imanente ultrapassa esta função inicial. Esta percepção fica
evidente no poema quando o vocábulo “pássaro” é apresentado como detonador,
no eu-lírico, de um gosto subjetivo e nostálgico que o uso da palavra “oiseau”
— que tem o mesmo significado, mas provém de outro idioma — não realiza.
De acordo com a leitura do poema, as palavras são apresentadas como
capazes de “repercutir” sentidos, transportando o eu-lírico para sua infância,
época em que a natureza estabelecia um contato muito especial com o menino
que, à tarde, ia para debaixo das árvores ouvir a música dos pássaros. Este
contato aprazia o menino e gera no eu-lírico um estado de nostalgia.
Ainda que reconheça ter amor pela língua de Flaubert, o que é de se
esperar em um poeta que reconhece o valor de outro artista da palavra, é na
língua mãe que os sentimentos fluem, repercutindo em vivências íntimas. Neste
contexto, palavras e natureza fundem-se na capacidade de recriar uma imagem
de extrema intensidade, onde o passado e o futuro se misturam e despertam a
sensibilidade do eu-lírico.
A relação do poeta com a palavra “pássaro”, e, por extensão, com todas
as palavras, é, acima de tudo, uma relação de amor, sensualidade e erotismo.
Erotismo sendo compreendido aqui em sua acepção relacionada à pulsão e
vitalidade:

Como se sabe, o termo “erotismo” deriva-se de Eros, deus do amor para os


gregos e, na teoria freudiana, símbolo da pulsão de vida, em oposição a
Tanatos, pulsão de morte. Na arte, Eros (popularmente conhecido como
Cupido) também representa o amor e, por extensão, a sexualidade humana.
Para distinguir “erotismo” e “obscenidade”, o crítico francês Alexandrian
afirma, em seu livro A história da literatura erótica, que o erotismo “é tudo o
que torna a carne desejável, tudo o que a mostra em seu brilho ou em seu

96
desabrochar, tudo o que desperta uma impressão de saúde, de beleza, de jogo
deleitável”, lembrando que a obscenidade rebaixa a carne, associa a ela
sujeira, as doenças, as brincadeiras escatológicas, as palavras imundas.”
(MARINHO, 2002, p. 15)

Este sentido de erotismo é perceptível no poema “Língua mãe”, pois


apresenta uma relação pulsante e vitalizada entre o eu-lírico e seu idioma. Neste
sentido, o uso da palavra “mãe” é bastante apropriado, pois resgata a figura da
mãe enquanto aquela que desperta a primeira pulsão erótica na criança, mas que
não é fruída em termos de sexualidade propriamente dita. O erotismo da criança,
sobretudo do menino com a mãe, é uma relação de amor intenso, mas não
sexualizado.
Este representação da figura da mãe enquanto balizadora da relação
sensual que o menino tem com as palavras é uma dimensão mais suavizada da
relação erótica que o poeta tem com as palavras. Relação que é apresentada, por
exemplo, no poema “Pêssego” (de Poemas rupestres, 2004, s/p), onde o eu-
lírico afirma que “o olhar do voyeur tem condições de phalo (possui o que vê)”,
o erotismo se concretiza em sexualidade. Neste sentido, a palavra é a amante, o
contato com o poeta é sexualizado. Consoante Muller Jr. (2003, p.279), “assim
como erotiza o verbo, e se erotiza nele e com ele. Manoel de Barros erotiza a
natureza com suas imagens”.
No poema “Língua mãe”, contudo, o erotismo é canalizado para a
concepção do amor ágape, que prescinde do contato sexual para ocorrer. Ainda
que a sensualidade seja explicitamente referida, “o gosto que vem da mãe”
transcende o sentido de sexualidade, caracterizando-se como amor fraternal.
O tema da relação do poeta com as palavras é também desenvolvido no
poema “Palavras”, no qual, de forma similar à apresentada em a “Língua mãe”,
o uso das palavras desperta sensações profundas no eu-lírico:

Palavra dentro da qual estou a milhões


de anos é árvore.
Pedra também.
Eu tenho precedências para pedra.
Pássaro também.
Não posso ver nenhuma dessas palavras que
Não leve um susto.

Andarilho também.
Não posso ver a palavra andarilho que
Eu não tenha vontade de dormir debaixo
de uma árvore.

97
Que eu não tenha vontade de olhar com
Espanto, de novo, aquele homem do saco
a passar como um rei de andrajos nos
arruados de minha aldeia.

E tem mais uma: as andorinhas,


pelo que sei, consideram os andarilhos
como árvores. (2001, s/p)

As relações do eu-lírico com as palavras, neste poema, refletem uma


intrincada existência em que poeta e palavras partilham significações,
repercutem sentidos. O poeta se aproxima tanto das palavras que chega ao
extremo de estar “dentro” delas. Palavras e poeta, imbuídos do sentido poético
da vida, se equivalem e a relação de instrumento e de utilizador é transcendida.
A referência a elementos telúricos reforça ainda mais esta alternância
existencial já que, como referido anteriormente, nas eras primitivas, todos os
seres, coisas e entes partilhavam uma convivência mútua, caracterizada pela
profunda comunhão. O eu-lírico do poeta ainda apresenta em si algo desta
convivência mitológica e toma “um susto” quando o estado primordial é
despertado pelo contato com algumas palavras.
Sua subjetividade é ainda mais estimulada pelos sentidos despertados
pelo uso da palavra “andarilho”. Esta figura gera no eu-lírico fascínio e
admiração, constituindo-se um símbolo de encantamento: “Não posso ver a
palavra andarilho que eu não tenha vontade de dormir debaixo de uma árvore.
Que eu não tenha vontade de olhar com espanto, de novo, aquele homem (...)”
(op. cit).
Para caracterizar a figura do andarilho é utilizada a expressão “rei de
andrajos”. Esta expressão apresenta ambigüidade semântica: rei (vestido) de
andrajos e rei dos andrajos, das coisas sem valor, soberano do traste. Esta
caracterização está de acordo com a “Teologia do traste”, pois uma figura
marginalizada socialmente é representada em sua glória de ser,
independentemente de sua condição. Sua grandiosidade reside em sua essência,
em seu íntimo.
O andarilho é apresentado como ser tão essencial, tão próximo da
natureza que as andorinhas o consideram como árvore, ponto de descanso e
abrigo: “as andorinhas, pelo que sei, consideram os andarilhos como árvores”

98
(op.cit.). Seu valor não está associado à suas posses, sua dignidade é a
dignidade do ser e não do ter.
A apoteose de sua existência é sugerida no poema no nível da
representação simbólica. O andarilho normalmente representa o abandono, a
insignificância e a marginalização. Sua casa é o caminho que trilha e o chão
onde dorme. Contudo, as andorinhas, figuras relacionadas ao céu, plano de
superioridade (é relevante lembrar que “céu”, normalmente, é referido como o
lugar onde habitam os anjos, santos e o próprio Deus) consideram o andarilho
como árvore, ponto de segurança e abrigo e, ainda, elemento de ligação entre a
terra e o céu. O uso destas imagens permite ao eu-lírico sugerir que até mesmo
um andarilho possui grandiosidade e ligação com a dimensão superior de
existência. A comunhão dele com as andorinhas, ainda que improvável, é
repleta de lirismo e poeticidade.
Este sentido possível do poema “Palavras”, enquanto interação entre
seres e exaltação da figura marginalizada, pode ser percebida no pequeno texto
que antecede este poema:

Com as palavras
se podem multiplicar
os silêncios. (2001, s/p)

Neste pequeno poema é antecipado o tema que irá ser apresentado, o das
palavras em sua relação com o poeta. Mas, além disso, o poema parece indicar,
com a contradição existente no corpo do texto — palavras multiplicando
silêncios ao invés de significados —, a reflexão desenvolvida a respeito da
figura do andarilho: a valorização do indigente, do excluído, dos que não têm
voz nem lugar em um mundo de racionalidade e pouca fraternidade, onde a
valorização de bens é maior que a própria valorização do ser humano. Neste
mundo não natural (tanto no sentido de refutar o contato com a natureza quanto
de não ser justificável) algumas pessoas são consideradas como imprestáveis,
como se fossem objetos que, sem serventia prática, não têm importância nem
espaço.
Para o poeta, contudo, esta realidade é mais insólita do que a existência
de palavras que multiplicam silêncios.

99
Na seqüência de poemas que compõem o livro O fazedor de amanhecer
está “Bernardo”, composto por 14 versos livres (tais como os demais que
compõem este livro):

Bernardo já estava uma árvore quando


Eu o conheci.
Passarinhos já construíam casas na palha
do seu chapéu.
Brisas carregavam borboletas para o seu paletó.
E os cachorros usavam fazer de poste as suas
pernas.
Quando estávamos todos acostumados com aquele
bernardo-árvore
Ele bateu asas e avoou.
Virou passarinho.
Foi para o meio do cerrado se um araquã.
Sempre ele dizia que o seu maior sonho era
Ser um araquã para compor o amanhecer.
(2001, s/p)

O poema refere-se a um personagem recorrente na obra de Manoel de


Barros, Bernardo. Este personagem é inspirado na figura de um peão que há
mais de meio século trabalha na fazenda do poeta e cuja existência lhe causa
fascínio e admiração por materializar características essenciais de seu projeto
poético: um homem simples e completamente imerso no ambiente natural.
Bernardo é “a figura polarizadora que reúne todos os elementos caros a Manoel
de Barros: ele é o guardador de águas, íntimo da natureza, quase bruto, quase
árvore, louco sábio” (SÁVIO, 2004, p. 68). Ademais, é possível perceber ainda
que o personagem Bernardo funciona como uma figura que resgata o conceito
de homem primitivo venerado por Manoel de Barros. Conforme explica Castro
(1991):

Bernardo é o personagem típico do pantanal. (...) Tem alto grau de


convivência com todas as coisas e animais. (...) Poder-se-ia dizer que Bernardo
é uma espécie de homem adamítico-pantaneiro, pois vive em estado de graça,
em comunhão com a vida efervescente e transmutante, que pulsa em qualquer
região do pantanal. (p. 39)

Ainda consoante Castro (1991), o perfil de Bernardo apresentado na obra


poética de Manoel de Barros descreve este personagem como dono de uma
trajetória singular: de um homem comum, e se transformou em árvore e, depois
(como relatado em O fazedor de amanhecer) tornou-se ave. Além disso,
Bernardo é descrito como um homem com íntimo de criança:

100
O grande luxo de Bernardo é ser ninguém.
Por fora é um galalau.
Por dentro não arredou de criança.
É ser que não conhece ter.
Tanto que inveja não se acopla nele. (BARROS, 1985, p. 46)

O fato de possuir íntimo de criança possibilita a Bernardo ignorar as


regras que o prendem à realidade. Bernardo é livre de convenções, sua própria
existência segue regras flexíveis: de homem tornou-se árvore e, quando já
estava envolto na atmosfera de cotidianidade (quando estávamos todos
acostumados com aquele bernardo-árvore), tornou-se ave e “avoou”.Ao realizar
esta façanha, Bernardo demonstra possuir a mesma capacidade que as crianças e
os poetas têm de perceber o mundo de forma diferente, incomum, e conceber
realizações insólitas, mas perfeitamente ajustada as suas imaginações criativas e
dinâmicas.
Esta capacidade aproxima Bernardo de uma condição mais universal de
existência, o que pode ser notado no poema pela marcação lexical feita pelo
poeta. No início do poema, Bernardo é referido como substantivo próprio, tendo
seu nome grafado com letra maiúscula (o que não acontece por acaso, Manoel
de Barros não segue, em seus poemas, convenções rígidas, como as de uso de
letra maiúscula no início de frase). Esta marcação pode ser compreendida como
uma forma de o poeta referir esse personagem como sujeito de sua identidade. A
grafia do nome do personagem muda quando ele é apresentado como um
substantivo comum (com letra minúscula) e composto, marcando sua nova
condição de ser, duplo, híbrido com outra forma de vida. De Bernardo, passa a
ser bernardo-árvore e concretiza em sua personalidade a comunhão entre os
seres e as coisas, tão cara a Manoel de Barros. Esta comunhão é descrita por
Caetano (2002) como centrada

na percepção do universo como forma de comunhão sensível e não nos


instrumentos da razão, da individualidade ou das subjetividades. Plena de
fusões, nela raramente se dissocia o eu do outro, o homem dos animais, os
seres vivos das pedras. Sua veia heraclitana já foi várias vezes mencionada,
pelo próprio poeta e por seus leitores. Pela poética manoelina em geral, puro
deleite, não se buscam mensagens, sentidos ocultos, tendências históricas (...) .
Ler é simplesmente ser...uma lesma, um pedaço de pau; ou sentir um calor
profundo e a regeneração dos homens e bichos com a chuva que cai no
pantanal. (CAETANO, 2002, pp. 4 e 5)

101
Observa-se ainda, em uma leitura possível do poema “Bernardo”, que a
trajetória do personagem-título recupera também a temática, recorrente na
poética de Manoel de Barros, da busca às origens. Bernardo deixa sua condição
de árvore e torna-se um passarinho, no caso um araquã (ave comum no
pantanal), quando todos estavam acostumados à sua existência. A permanência
neste estado parece coincidir, ou estimular, sua metamorfose. De acordo com o
poema, o maior sonho de Bernardo era tornar-se e partir para o meio do cerrado
“para compor o amanhecer”. Esta referência ao “maior sonho” de Bernardo
indica que seus planos não eram o de se estabelecer, mas sim de continuar
renovando-se, tal qual o amanhecer, que ele sonhava compor.
É importante a referência feita no verso “Sempre ele dizia que o seu
maior sonho era ser um araquã para compor o amanhecer” ao verbo “sonhar”.
Este verbo, o que é identificável pelo contexto apresentado no poema, pode ser
compreendido como duplamente significativo. Em primeiro lugar, a palavra
sonho pode ser compreendida em sua semântica como sinônima de “projeto para
o futuro” ou, posteriormente, como estado de consciência alternativa, diferente
da que usualmente utilizamos no cotidiano. No momento do devaneio do sonho,
a imaginação se liberta das convenções e permite criar e recriar novas realidades
que, algumas vezes, inspira a mudança, sugere alternativas que a razão, por si
só, não vislumbra.
Um fato pertinente à leitura de “Bernardo”, ainda que não estritamente
relacionado ao objetivo deste trabalho, é o da relevância da ilustração feita para
este poema. Tal ilustração (reproduzida no anexo III deste trabalho) baseia-se na
pintura “auto-retrato4” de Vincent Van Gogh. A diferença principal entre as
duas obras reside no fato de o homem ilustrado por Ziraldo apresentar um
semblante onde se misturam o riso e a satisfação, ao passo que no quadro de
Van Gogh, o homem representado está taciturno. A serenidade do homem, que
se supõe representar Bernardo, esboçada na ilustração, reforça o sentido de
satisfação pessoal deste personagem representado ao relacionar-se com aves que
lhe fazem ninho no chapéu e com borboletas que voejam próximas a sua cabeça.

4
A reprodução desta obra de Van Gogh consta no anexo III desta dissertação para que possa ser
comparada com a ilustração feita por Ziraldo.

102
De acordo com a seqüência de poemas apresentados no livro O fazedor
de amanhecer, aparece um pequeno poema, sem título, de apenas cinco versos.
Nele é reiterada a valorização, referida neste trabalho como “Teologia do
traste”, que Manoel de Barros faz dos seres a quem é atribuída menor
importância. Nesse breve texto é feita uma reflexão bem-humorada a respeito da
existência e importância de um inseto muito comum, um grilo:

Um grilo é mais importante


que um navio.
(isso
Do ponto de vista
dos grilos)
(2001, s/p)

Seguindo a seqüência de abordagem, chega a vez de levar-se em


consideração o poema “Campeonato”, em que uma memória vivida pelo poeta é
retratada em um momento em que era realizado pelos meninos uma competição
bem incomum e que despertava a curiosidade das meninas:

Nos jardins da Praça da Matriz, os meninos


urinavam socialmente.
A gente fazia campeonato pra ver quem
mandava urina mais longe.
O menino que mandasse mais longe.
O menino que mandasse mais longe era
campeão.
Mas não havia taça nem medalha.
Umas gurias iam ver por trás dos muros
a competição.
Acho que elas tinham alguma curiosidade
ou inveja porque não podiam participar
do campeonato.
Os meninos ficavam sérios como se estivessem
defendendo a pátria naquele momento.
As meninas cochichavam entre elas e
corriam de lá pra cá, rindo.
O campeonato só era diferente da Fórmula Um
Porque a gente não tinha patrocinadores.
(op. cit, s/p)

O tema deste poema é o da brincadeira entre crianças, sem malícia e sem


rivalidade, ainda que se tratasse de um campeonato. A força do poema reside na
ingenuidade e pureza com que aqueles meninos disputavam para ver quem
urinava mais alto. Mesmo as meninas, que não participavam ativamente da ação,
apenas espiavam o que ocorria, não demonstram interpretar maldosamente o que

103
viam, pelo contrário, nutriam certa inveja “porque não podiam participar do
campeonato”.
Esta memória foi tão marcante para o poeta que ele deseja partilhá-la
com seus jovens leitores, tão afastados e tão próximos dele. Afastados porque
alheios às antigas brincadeiras, como a referida no poema, em decorrência das
“novas” brincadeiras, sobretudo as eletrônicas. O poeta parece depor a favor
daquele velho tipo de diversão que, ainda que não esteja mais em moda,
promove uma integração maior entre as crianças que, neste poema, aparecem em
grupos, socializando o “exercício de ser criança”. Exercício que aproxima as
crianças e que, simultaneamente, as aproxima do poeta, criança-adulta que,
mesmo depois de velha, ainda brinca com seu brinquedo predileto, as palavras.
Para encerrar o livro O fazedor de amanhecer há ainda mais dois poemas
que, pela temática que apresentam, se relacionam. Trata-se de um pequeno
poema sem título que, a exemplo dos demais poemetos do livro, antecipa a
temática do poema que o sucede. O poema mais longo recebe o título de “As
bênçãos” e, nele, o eu-lírico propõe um agradecimento bem humorado a Deus:
As coisas,
Muito claras
Me noturnam
(2001, s/p)

Não tenho a anatomia de uma garça pra receber


Em mim os perfumes do azul.
mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho uma tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma bênção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma bênção.
Até alguém já chegou de me ver passar
A mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.
(op. cit)

O conjunto de temas que ocorrem em O fazedor de amanhecer conflui


para uma mesma questão central, a da valorização das coisas e seres, cuja
criação é um fenômeno maravilhoso, admirável. Levando-se em consideração
tal direcionamento, não é de se espantar que o poeta encerre a obra agradecendo

104
e referindo o contato com os seres como bênçãos. Menos surpreendente ainda é
o fato de o agradecimento, dirigido a Deus, Criador de todas as coisas, assumir
um caráter altamente informal.
Para expressar seu reconhecimento, o poeta afaga os cabelos do ser que
representa o responsável pela criação das magníficas formas de vida existentes e
que o amparam em seu estar no mundo. Este afago, feito nos cabelos de Deus,
comprova que o poeta não diferencia os seres segundo uma hierarquia de
importância, sendo todas as criaturas valiosas em sua essência. Este contato
reflete, mais do que uma reverência distanciada e cerimoniosa, uma atitude
carinhosa e estima cordial como a que se usa com um amigo.
Tal postura de Manoel de Barros é muito condizente com os valores
propostos em seus poemas. Sua veneração é voltada aos seres e coisas, ainda
que ínfimos em sua existência. No poema, esta veneração é comprovada no
momento em que o eu-lírico dá “aos caracóis ornamentos de ouro para que se
tornem peregrinos do chão”. Em seus poemas, as criaturas dialogam com sua
essência e não é de espantar que as andorinhas lhe inspirem sentimentos que
dissipam a tristeza que “às vezes” sente. Para o poeta, a “anatomia das garças" é
tão sublime que recebem “os perfumes do azul”. O eu-lírico reconhece não
possuir a mesma anatomia das garças, isto é, ser um ser diferente delas, mas, tal
qual as garças, ele recebe estes perfumes, talvez por ser sensível a este
fenômeno. A epifania que surge do contato com as criaturas é referida ainda
quando se enamora das andorinhas e ornamenta os caracóis para que estes
deixem de rastejar e se tornem peregrinos do chão.
São tantas as bênçãos vivenciadas pelo eu-lírico em seu contato com a
natureza que só resta e ele agradecer ao Deus que criou tão admiráveis criaturas.
Estas são excepcionais porque possui, a exemplo das pessoas (como referido no
primeiro poema do livro), um ingrediente muito especial, o amor do Criador.
Este pormenor as habilita a comungar com a essência, cuja interpretação
possível do poema, é uma essência onde prevalece o amor.

105
4. CONCLUSÃO

O estudo realizado nesta dissertação sobre os poemas que compõem os


livros Exercícios de ser criança e O Fazedor de amanhecer permite identificar
nessas obras um projeto literário evidente no que diz respeito à importância da
infância para a poética de Manoel de Barros.
Conforme argumenta o jornalista Ubiratan Brasil em entrevista feita com
o poeta em abril de 2006, momento em que o jornalista cobria o lançamento do
mais recente livro de Barros, Memórias inventadas — A segunda infância
(Editora Planeta do Brasil), “o poeta Manoel de Barros completa 90 anos em
dezembro, mas, a cada dia, garante viver uma nova ascensão para a infância.
(...) Infância que é a forma como o poeta trata de sua maturidade” (BRASIL,
2006, p. 1). De fato, a infância e a criança são dimensões absolutamente
relevantes na obra de Manoel de Barros.
Esta relevância é muito adequadamente demonstrada por ocasião de sua
maturidade, biológica e artística, pois reflete uma progressão de todo o seu
projeto poético que se caracteriza, sobretudo, pela permeabilidade às vivências e
alteridades que transformam o discurso poético em uma linguagem universal e
que fala diretamente ao coração dos indivíduos. De acordo com Scotton (s/d):

Para Manoel, a infância é o lugar privilegiado de reencontro do homem pós-


moderno consigo mesmo, o homem que se encontra diante de valores
enfraquecidos como conseqüência da opressão de uma economia flexível, da
instantaneidade da informação e da linguagem unívoca dos meios de
comunicação de massa. Por isso, teima em se poeta, aquele que não produz
mercadoria de valor, não é remunerado, considerado até “demente” e diz
“Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios dos
meninos que fomos”. Trabalho de poeta que tem um compromisso social: não
é só o menino que ele foi que pretende reencontrar, mas a infância coletiva.
(p.7)

A universalidade que advém da maturidade permite a Manoel de Barros


reviver sua infância e partilhá-la com seus leitores, compartilhando com eles
experiências em um exercício lúdico de troca subjetiva, consciente e desejada.
Esta forma de lidar com a infância contribui para a identificação, na obra de
Barros, de uma poética com orientação humana, social e existencial muito clara.
Poética alicerçada no conceito ontológico de infância proposto por Gaston

106
Bachelard, cuja epistemologia, estruturada a partir do imaginário poético,
identifica a poesia oriunda da vivência da infância como autêntica expressão da
imaginação criativa.
Manoel de Barros, ao manter diálogo com a infância, dá voz e amplifica
o discurso da criança, que já foi considerada como indivíduo infante, isto é,
“que não tem voz”. Na poética de Barros, principalmente nos livros estudados
neste trabalho, o poeta (não apenas o adulto) e a criança se projetam
mutuamente, enriquecendo suas próprias existências. O que é visto com
satisfação e naturalidade pelo autor: “tenho esse tesouro de permanecer na
infância. Minhas palavras gostam do lugar, gostam de brincar. Eu nunca fiz
nenhum esforço para estar neste estado. Penso que eu seja acrescentado de
criança.” (CALDAS, 2006, p. 3)
Neste sentido, ao escavar seus pessoais “achadouros da infância”,
Manoel de Barros permite que as vozes da infância provoquem no poeta um
alheamento à sisudez e seriedade tipicamente adultas e compõe um universo de
vivências singulares, onde o tom de brincadeira impera.
A brincadeira em Exercícios de ser criança e O Fazedor de amanhecer é
perceptível pelas imagens e pelo uso do léxico que, em alguns momentos, são
utilizados de forma não-convencional, como, por exemplo, quando o avião
“tropica” ou o eu-lírico sente “desapetite”, ou ainda, quando “as coisas muito
claras noturnam”. A brincadeira permite ao poeta dar prosseguimento a uma
estética muito particular que já caracteriza seu projeto poético.
A brincadeira permite, ainda, ao poeta forçar os limites do convencional
e testar suas limitações. Neste sentido, “o menino que carregava água na
peneira”, “a menina avoada”, “Bernardo” (que virou passarinho) — dentre
outros apresentados ao leitor — concretizam nos poemas a grande fertilidade
que a infância faz surgir, permitindo ao poeta vislumbrar outras perspectivas
que o instrumentalizam a rever o mundo em que está inserido.
Não é à toa que nos dois livros estudados surja a figura da criança que,
com sua lógica particular de pensamento e percepção (o que, para alguns, seria
ilogicidade), desarticula os sentido e escapa da mesmice e da utilidade
pragmática cotidiana.
É importante referir, entretanto, que ainda que seja tematicamente muito
destacada a presença da infância, não é apenas sobre a criança, ou para ela, que

107
os poemas contidos nos livros estudados dizem respeito. O alcance da poesia de
Manoel de Barros é amplo e, como dito na introdução deste trabalho, fala,
sobretudo, sobre o ser humano.
Neste sentido, ainda que a valorização ontológica dos seres e coisas
ordinárias permita ao poeta identificar na figura da criança um ser pleno de
poesia em sua essência, e que nos livros Exercícios de ser criança e O Fazedor
de amanhecer seja proposto um encontro marcado entre a maturidade e a
infância — que são propostas não como experiências distintas que dificilmente
se reconhecem, mas como subjetividades que podem articular um acordo onde a
troca sensível impera—, a temática essencial, nos dois livros, é a do ser
humano.
O acordo entre as subjetividades do adulto e da criança pode ser
interpretado como “inútil”, assim como muitas das coisas que as crianças e os
poetas pensam e falam são consideradas como inúteis. Contudo, este acordo
pode fazer a diferença nos eternos exercícios de ser humano aos quais o próprio
Manoel de Barros parece referir-se quando afirma, “ acho que há outros
segredos. Mas o meu há de ser esse. Manter a criança interior.” (CALDAS,
2006, p. 3)

108
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120
6. ANEXO I
1. Referência à obra de Saul Steinberg feita por Ziraldo na capa do livro O
fazedor de amanhecer:
Quanto às ilustrações, Ziraldo quer lembrar que o desenho da capa é uma homenagem
a Saul Steinberg, que Millôr, Fortuna, Claudius, Jaguar e o próprio Ziraldo
consideram o maior cartunista do século.
Steinberg considerava esse desenho um de seus trabalhos mais importantes e, se além
de gênio ele fosse um poeta, teria intitulado seu trabalho de “O fazedor de
amanhecer”. (BARROS, 2001, s/p)

2. Capa do livro de Manoel de Barros:

3. Ilustração, referida por Ziraldo, de Saul Steinberg:

Sem título, 1948. Galeria da Universidade Yale/Eua.

121
7. ANEXO II
Introdução a um caderno de apontamentos

Meu avô ainda não estava morando na árvore.


Se arrastava sobre um couro encroado no assoalho
da sala.
O vidro do olho do avô não virava mais e nem re-
verberava.
Uma parte estava com oco e outra com arame.
Quando arrancaram das mãos do Tenente Cunha e Cruz
a bandeira do Brasil, na retomada de Corumbá, na
Guerra do Paraguai —
Meu avô escorregou pelo couro, com a sua pouca
força, pegou do Gramofone, que estava na sala, e
o escondeu no porão da casa.
Todos sabiam que Gramofone estava escondido
No porão da casa, desde o episódio.
Durante anos e anos raros desceram mais àquele
porão da casa, salvo uns morcegos frementes.
Em 1913, uma árvore começou a crescer no porão
por baixo do Gramofone.
(os morcegos de certo levaram a semente)
Um guri viu o caso e não contou pra ninguém.
Toda a manhã ele ia regar aquele início de planta.
O início estava crescendo entrelaçado aos pedaços
de ferro d Gramofone.
Dizem que as árvores crescem mais rápido de noite,
quando é menos vista, e o escuro do porão com
certeza favorecia o crescer.
Com menos de 2 anos, as primeirasfolhas da árvore
já empurravam o teto do porão.
O menino começou a ficar preocupado
O avô foi acordado de repente com os esforços
da árvore para irromper no assoalho da sala.
Escutavam-se também uns barulhos de ferro —
Deviam de ser partes do Gramofone que estertoravam.
No Pentecoste a árvore e o Gramofone apareceram
na sala.
O avô ergueu a mão.
Depois apalpou aquele estrupício e pôde recolhe-
ser, com os dedos, algumas reentrâncias do
Gramofone.
A árvore frondeara no salão.
Meu avô subiu também, preso nas folhas e nas
ferragens do Gramofone.
Pareceu-nos, a todos da família, que ele estava
feliz.
Chegou a nos saudar com as mãos.
O pé direito da sala era de 2 metros e a telha era vã.
Meu avô flutuava no espaço da sala, entrelaçado

122
aos galhos da árvore e segurando seu Gramofone.
Todos olhavam para o alto na hora das refeições
e víamos o avô lá em cima, flutuando no espaço
da sala e com o rosto alegre de quem estava em-
captando uma viagem.
Tornava-se difícil para mim levar alimentos para
o meu avô.
Eu tinha que trepar na árvore que agora começava
a forçar o teto da sala
Havia medo entre nós que as telhas ferissem de
alguma forma o meu avô —
Ou então que o sufocassem entre os galhos e o
Gramofone.
Eu estaria com 7 anos quando a árvore furou o
telhado da sala e foi frondear no azul do céu.
Meu avô agora estava bem sorrindo de pura líber-
da de, pousado nas frondes da árvore, ao ar livre
com o seu Gramofone.
Eu tinha medo que o meu avô ali pegasse um ris-
fria do.
Tornou-se mais difícil levar comida para ele
algumas formigas e alguns pássaros roubavam
arroz de seu prato.
Aqueles passarinhos pousavam do mesmo jeito nos
galhos e nos braços do meu avô.
Todos ficavam admirados de ver o avô morando na árvore.
Aquele Gramofone, como eu imaginara não deveria
mais tocar música, pois estava todo embirro-
geado e bofeteado de arara.
Quatro dias depois de um novo Pentecostes, caiu
sobre o assoalho da sala, onde viviam os outros
membros da família, um ovo! pluft e se quebrou.
Era um ovo de anhuma.
(O Anhuma é um pássaro grande que muda de proso-
dia quando alguma chuva está por vir.)
De forma que quando a prosódia da anhuma mudava,
eu corria a levar um agasalho para o meu avô.
Aquela ave, o Anhuma, depois nós descobrimos,
fizer seu ninho justamente no tubo do Gramofone.
E por ali o ovo escapou e desceu (pelo tudo
furado) e pluft se quebrou no assoalho da sala.
Meu avô percebeu o barulho do ovo que se quebrou
lá em baixo.
Parte do olho dele estava como oco e parte com
arame, como já disse.
Doze dias antes de sua morte meu avô me entregou
um CADERNO DE APONTAMENTOS.
Os pássaros iam carregando os trapos esgarçados
do corpo do meu avô.
Ele morreu nu.

123
Falavam que meu avô, nos últimos anos, estava
sofrendo do moral.
Por tudo que leio nestes apontamentos, pela ruptura
de certas frases, fico em dúvida se estes escritos
são meros delírios ônticos ou mera sedição de
palavras.
Metade das frases não pude copiar por inteligíveis. (BARROS, 2004, s/p)

6
Depois de ter entrado para rã, para árvore, para pedra
meu avô começou a dar germínios.
Queria ter filhos com uma árvore.
Sonhava de pegar um casal de lobisomem para ir
vender na cidade.
Meu avô ampliava a solidão.
No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do
quintal: Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra
dentro.
Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato.
Se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou. (BARROS, 1996, p. 21)

124
8. ANEXO III
Reprodução da pintura “Auto retrato”, de Van Gogh

Ilustração, feita por Ziraldo, para ilustrar o poema “Bernardo”

125

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