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A ética e moral na pós-modernidade

Resumo: O artigo aborda a função da ética na sociedade contemporânea


e, ainda, questiona se é possível existir moralidade sem ética.

Infelizmente as promessas da modernidade1 fracassaram ou simplesmente


exauriram-se. O refugo humano se alastra vertiginosamente no planeta e,
não há como apenas ignorar e seguir o roteiro da individualidade. Há
outras possibilidades de convivência e, que não estão impressas em
códigos ou mandamentos afinal, não há um rol enumerativo e seguro a
elencar os deveres.

Com o Iluminismo esperava-se que prevalecesse a tolerância, o


humanismo e o respeito à natureza e, se afirmaria o direito à liberdade e à
igualdade entre os homens. Acreditava-se piamente no progresso
contínuo em benefício da humanidade graças ao desenvolvimento da
ciência e da tecnologia.

O Iluminismo correspondeu a uma ideologia que fora desenvolvida e


incorporada pela burguesia na Europa a partir de lutas revolucionárias
deflagradas no final do século XVIII, cujos temas gravitaram em torno da
liberdade, progresso e humanidade.
1
A “modernidade sem ilusões” é expressão inspirada na obra de Bauman. Se o reconhecimento da
dimensão trágica da existência colocava o homem grego diante do conflito proveniente do fato de ter
que fazer escolhas entre o exercício da liberdade na necessidade, ou da liberdade da contingência.
Agora, no pós-modernismo, há o reconhecimento da angústia trágica do homem contemporâneo que
oscila entre valores e situações opostas na busca uma felicidade liquefeita.
2

Visava corrigir as desigualdades da sociedade humana e garantir os


direitos considerados naturais do indivíduo, como as liberdades e a livre
posse de bens.

As teses políticas do Iluminismo fracassaram desde a Revolução Inglesa de


1640, a Revolução norte-americana (1776) e a Revolução Francesa (1789)
o que abriu caminho para a ideologia marxista em todo o mundo que se
propunha a dar fim a exploração do homem pelo homem, com a redução
de desigualdades econômicas entre as classes sociais e, no futuro,
conseguir sua completa abolição.

Enfim, fracassaram porque não cumpriram suas promessas históricas de


se conquistar a felicidade humana. Fracassaram os ideais iluministas mas
também fracassaram os ideais marxistas.

A modernidade, por sua vez, nasceu com a Revolução Industrial


significando um grande esforço intelectual dos iluministas para
desenvolver a ciência e a razão e, descobrir as leis universais para serem
postas a serviço da humanidade.

Com a Revolução Industrial a ciência e a tecnologia adquiriram relevância


fundamental para o progresso humano mediante as sucessivas e
contínuas inovações tecnológicas.

A modernidade geralmente associada à Segunda Revolução Industrial


ocorrida na segunda metade do século XIX e, representou o conjunto de
transformações socioeconômicas iniciadas por 1870 com a
industrialização da França, da Alemanha, da Itália, dos EUA e do Japão,
caracterizadas especialmente pelo desenvolvimento de novas fontes de
3

energia (como a eletricidade e petróleo), pela substituição do ferro pelo


aço, pelo surgimento de novas máquinas e ferramentas além de novos
produtos químicos (como o plástico).

Por sua vez, a pós-modernidade está relacionada mais propriamente com


a Terceira Revolução Industrial que corresponde ao conjunto de
transformações socioeconômicas iniciadas a partir da segunda metade do
século XX, com surgimento de complexos industriais e empresas
multinacionais, o desenvolvimento de indústrias química e eletrônica e os
avanços da automação, da informação, da engenharia genética e,
respectiva incorporação ao processo produtivo que passou a depender
cada vez mais de alta tecnologia e de mão de obra cada vez mais
especializada.

A razão preconizada pelo Iluminismo fora então substituída pela razão do


capitalismo de mercado que ao exercer seu controle sobre as forças da
natureza, estendeu sua dominação também sobre os seres humanos. O
capitalismo de mercado tornou-se a referência privilegiada dessa
modalidade de controle sobre a natureza e sobre os seres humanos.

Enfim, a complexidade e a diversidade das relações humanas não podem


ser contidas em regras. As regras e os comandos normativos não
conseguem mais abarcar toda filosofia moderna do dever-ser2.
2
O filósofo Aristóteles acreditava que a ética é caracterizada pela finalidade e pelo objetivo a ser
atingido, que seria viver bem, ter uma boa vida, juntamente e para os outros. O significado de
moralidade, que advém de moral que advém do latim mos ou mores e significa costumes. Em um
sentido mais simples, a noção de moralidade pode estar associada às noções de justiça, ação e dever: a
moralidade não se relaciona àquilo que cada um quer para si e sim às formas de agir com o outro. Ainda
que “moralidade” se refira a um código moral concreto (“a moralidade de determinado país” ou “a
moralidade de determinado período histórico”, por exemplo, expressões pelas quais determinamos o
que é moral ou imoral) pode ser usado como sinônimo de “O moral”. Quando se entende assim,
significa que mesmo havendo códigos morais distintos entre si, há aspectos que nos possibilitam
identificá-los como sendo “morais”. Entre esses aspectos estão a capacidade de se formar juízos morais:
quando dizemos que alguém está agindo de forma correta, estamos fazendo um juízo moral,
independente do código moral no qual nos baseamos. Se em uma sociedade imaginária as mulheres
fossem ensinadas a rasparem os cabelos, seria um juízo moral dizer que uma mulher de cabelos longos
se comportaria de forma incorreta. O oposto também válido: em uma sociedade em que as mulheres
fossem recomendadas a nunca cortar os cabelos, ao dizer de uma mulher com cabelos curtos se
4

O aparente vazio de valores que é nítido, particularmente, na passagem


da modernidade para a pós-modernidade e, que se apresenta por causa
do adiamento contínuo das consequências produzidas pelas ações de
todos para com todos.

Adia-se continuamente o futuro, postergando-se seus efeitos, tornando-se


cada vez mais árdua a tarefa de compreender o ser humano em sua
profunda complexidade cotidiana. As promessas da Idade Moderna se
eternizaram, vivemos delegando as responsabilidades de nossas escolhas
morais para experts3 da ética, a fim de que sejam determinados para cada
homem e mulher, quais são os fenômenos bons e maus, bem como prover
a avaliação estratégica de como realizar a escolha correta e adequada.
Não há garantia de se manter uma convivência infalível.

Zygmunt Bauman esclareceu sobre as distinções entre a “Era da Ética”


típica da modernidade e, a “Era da Moral”, peculiar da pós-modernidade.
Há de se entender mais sobre outras perspectivas de convivência humana
que não são tão novas e nem inéditas, mas, precisa-se do caráter
pedagógico para rememorar àqueles que não sabem se, diante do abismo,
atira-se para um caminho sem volta ou, ao observar sua profundidade
procura refletir sobre o significado de “ser-junto-com-o-outro” e,
finalmente, descobrir sua humanidade.

comporta de forma incorreta, fazemos um juízo moral.


3
Educação torna-se constituinte irremovível do poder. Os detentores do poder devem saber o que é o
bem comum, qual conduta humana melhor se ajusta a ele e como induzir os homens a atuarem de
acordo com ele. O poder passa a necessitar como nunca do saber; o saber emprestará legitimidade ao
poder. Secularização dos poderes pastoral e proselitista, amplamente praticados na era pré-moderna
pela Igreja. As suas técnicas, agora, estavam a serviço do Estado. "O Estado entrou numa guerra contra
todas as formas de vida que pudessem ser vistas como bolsões potencias de resistência contra o seu
domínio".
Há um novo papel para os intelectuais no mundo pós-moderno e plural, é de ser intérpretes, que se
tornam protagonistas já que deles depende a comunicação entre as tradições culturais diversas. E a
promoção da arte da conversação civilizada. Há, pois definitiva redescoberta hermenêutica.
5

A ética e a moral da pós-modernidade desvela-se na responsabilidade


moral incondicional na qual cada pessoa exerce por meio de suas atitudes
o “estar junto com o outro” na vida cotidiana.

A ética está para a filosofia enquanto que moral está para religiosidade.
Mesmo a ética menor também chamada de etiqueta4, existe para prover a
melhor convivência de diferentes pessoas que habitam o mesmo
contexto.

A Ética na dicção de Bauman não consegue tornar efetivo o seu projeto


racional de tudo prever e tudo prescrever. A expertise da ética em sua
função, foi o transformar o pecado (da Idade Medieval) na culpa esculpida
pela razão lógica e, procurar expiá-la. Assim, a promessa de vida livre do
pecado (doravante renomeada de culpa) traduziu-se apenas num projeto
de refazer o mundo à medida das necessidades e das capacidades
humanas, de acordo com o modo racional (Vide: Bauman, Z. A vida em
fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011).

Os mandamentos éticos conduzem a autoridade necessária para impor o


que deve ser feito, de modo igual e por todos. A ética da modernidade é
um projeto universalizável e, pode ser capaz de enunciar quais as
condutas são possíveis ou não, dentro de um grupo, a fim de manter sua
coesão e promover a convivência.

A Ética moderna é categoria que num esforço procura antever e


prescrever, com maior grau de certeza possível, a ocorrência de certos
4
O “Eu real” e o “eu virtual”. O meu eu real usa caneta e papel, enquanto que o eu virtual usa notebook
e redes sociais. O real é interessante enquanto que o virtual é interessante à enésima potência. Agora
algumas regras de etiqueta: o RSVP que é o famoso répondez s’il vous plait, significa responda por favor.
Significa confirmar a presença num evento para o qual fora convidado. Deve-se desligar o celular à
mesa. Você não precisa ser instantâneo e imediato. Ou seja, não é necessário responder imediatamente
a cada e-mail ou mensagem. Não use fones de ouvido quando estiver com outras pessoas. Modere o
uso de câmeras. Afinal, a vida não é um reality show. E sempre existe a privacidade de outrem a ser
respeitada.
6

fenômenos e procura diminuir ou até eliminar os conflitos, buscando as


alternativas de resolução e superação dessas dificuldades5.

Procura-se atender ao adágio: “na medida em que surge a dificuldade, ter-


se-á apenas uma resposta para sua solução”. Tal resposta precisa ser
enunciada senão, imposta pela autoridade ética e guiada pela razão
lógica.

A ética proposta pela modernidade elabora cada base a partir daquilo que
as suas autoridades prescrevem como verdades. O poder desses peritos
funciona como o legislativo e o judiciário6 ao mesmo tempo.

As condutas humanas serão julgadas aptas ou não, conforme a previsão


da norma ética. Os especialistas são capazes de tornar universais as
5
O sujeito humano, singular e responsável, é também um sujeito ético, individual e social. Somos
sujeitos pessoais, únicos, irrepetíveis e responsáveis por nossos atos; ao mesmo tempo, e no mesmo
nível de profundida. O sujeito pessoal comporta a dimensão social: somos ontológica e biologicamente
sociáveis, seres políticos, feitos para a convivência.
A ética, portanto, é individual e social ao mesmo tempo. Ninguém é ético para si mesmo. Somos éticos
em relação aos outros e em relação à distribuição e posse dos bens materiais.
Um questionamento nos assombra: qual é o centro da ética? E, Aristóteles nos informa que a justiça é a
virtude central da ética, posto que comande os atos de todas as virtudes.
Configura-se um tripé inseparável ser humano, ética e justiça quando estamos analisando a ética e as
relações sociais.
6
A visão tipicamente moderna do mundo é a de uma totalidade essencialmente ordenada, com a
presença de padrão desigual de probabilidades que possibilita a explicação dos fatos. Essa explicação é,
ao mesmo tempo, uma ferramenta de predição e de controle. Pressupõe um conhecimento adequado
da ordem natural, conhecimento que engloba a enunciação de critérios classificatórios publicamente
testáveis e demonstráveis. Há, pois a pretensão universalizante.
A visão pós-moderna do mundo é a de um número ilimitado de modelos de ordem, cada um gerado por
autônomo conjunto de práticas. A ordem não serve como medida externa de sua validade. Cada qual
dos muitos modelos de ordem só faz sentido em termos da prática que os validam. Assim os sistemas de
conhecimento só podem ser avaliados de dentro. Não se admitem testes de legitimidade. Há uma ótica
relativista, local. O relativismo é traço duradouro do mundo, e ocorre o abandono das pretensões
universalistas.
O papel dos intelectuais na modernidade funciona como legislador, pois faz afirmações autorizadas e
autoritárias. Solucionam controvérsias. E possui autoridade para arbitrar derivada do conhecimento
objetivo superior.
O papel do intelectual na pós-modernidade é de intérprete. De fazer tradução de afirmações feitas no
interior de uma tradição baseada em termos comuns, a fim de que sejam entendidas por integrantes de
outra tradição. Visa facilitar a comunicação entre os participantes autônomos, impedindo distorções de
significados e, não mais selecionar a melhor ordem social. Não implica na eliminação da estratégia
moderna.
7

condutas éticas porque dispõem de um conhecimento no qual a pessoa


comum não tem.

O homem da vida do cotidiano não tem capacidade intelectual para


orientar suas próprias ações. Enfim, não conhece o bom para disseminar o
bem. Tal depreciação dos deuses olímpicos sobre a incapacidade das
pessoas em escolherem o razoável para suas vidas tem significado, qual
seja, a de que os seus juízos éticos não sejam fundamentados, em outras
palavras, não sejam racionalmente demonstráveis, quantificáveis ou
mensuráveis.

A ausência da razão lógica a fim de tornar tudo sólido, oficial e obrigatória


uma conduta para todos, implica na necessidade de pessoas especialistas
para iluminar as mentes e direcioná-las a algo de “bom”.

Por esse motivo, conclama-se aos peritos: ”Salvem-nos da angústia e


ambivalência de nossas decisões pessoais. Apontem-nos o que é o “bom”
a partir da tabula rasa7 de nossas obrigações”. Desta forma, a impotência
ética dos leigos e a autoridade ética dos peritos explicam-se e justificam-
se mutuamente. E o postulado de uma ética devidamente fundamentada,
suporta-as.

O pretenso abandono sobre a escolha de nossas decisões e o delegar


dessa tarefa para as agências supraindividuais aos gestos éticos, já
produziu desastres históricos tais como a Segunda Guerra Mundial.

7
Tabula rasa é expressão latina que significa literalmente tábua raspada e tem o sentido de folha de
papel em branco. A palavra tabula, refere-se às tábuas cobertas com fina camada de cera, usada na
Antiga Roma, para escrever, fazendo-se incisões sobre a cera com uma espécie de estilete. Como
metáfora, o conceito de tabula rasa foi utilizado por Aristóteles em oposição a Platão e difundido
principalmente por Alexandre de Afrodísias, para indicar uma condição em que a consciência é
desprovida de qualquer conhecimento inato, tal como uma folha em branco, a ser preenchida.
8

Quando procedimentalizou-se racionalmente a indiferença taxando como


“normal” ou “racional”. Não havia espaço para reflexão pessoal sobre o
que se mostrava como razoável. Tal ação pertencia apenas aos peritos. A
eficiência, precisão das normas racionais e a especificação de seus papéis,
rememora Bauman, permitiu que a violência fosse autorizada e as vítimas
desumanizadas, especialmente por definições e doutrinas ideológicas. Eis
a negação de autoridade à consciência moral. Lembremos o
comportamento Ohlendorf8 na descrição de Bauman:

Quando instado a explicar, no julgamento de Nuremberg 9, por que não


renunciou ao comando cujas ações, ele pessoalmente desaprovava.
Ohlendorf invocou precisamente este senso de responsabilidade, pois se
expusesse as ações de sua unidade para se ver livre de obrigações que,
garantiu, o indignavam, estaria deixando seus homens fossem
erroneamente acusados.

8
Otto Ohlendorf (1907-1951) foi oficial alemão que serviu na SS nazista com a patente de
Gruppenführer e também foi chefe da Inland-SD (responsável pela inteligência e pela segurança
interna), uma subdivisão da Sicherheitsdienst (SD). Ohlendorf foi comandante da Einsatzgruppe D, que
perpetrou vários assassinatos e outras atrocidades na Moldávia, no sul da Ucrânia, na Crimeia e,
durante 1942, no norte do Cáucaso russo. Por estas ações, Otto Ohlendorf foi considerado uma das
figuras mais proeminentes do Holocausto. Em 1951, ele foi condenado e executado por crimes de
guerra e contra a humanidade cometidos durante a Segunda Guerra Mundial.
9
O julgamento de Nuremberg constituiu uma série de tribunais militares, realizado pelos Aliados que
venceram a Segunda Grande Guerra Mundial, conhecidos pelos processos contra os proeminentes
membros da liderança política, militar e econômica da Alemanha Nazista. Os julgamentos ocorreram na
cidade de Nuremberg, na Alemanha, e ocorrera entre 20 de novembro de 1945 e 1º de outubro de
1946. Oito juízes representaram os quatro países vencedores da referida guerra e compuseram a corte.
O presidente do tribunal era britânico, mas coube aos norte-americanos o papel mais relevante na
preparação do processo. Os países neutros não tiveram nenhuma participação. Os juristas têm suscitado
a questão das violações de direitos fundamentais com a realização de um tribunal ad hoc, um tribunal
de exceção, sem a escolha de advogados pelos réus. Segundo alguns doutrinadores, seria um tribunal de
exceção e não poderia punir com a pena capital, mas somente com a prisão, entre outras formas de
responsabilização. Porém, em Nuremberg, foram os vencedores que ditaram todas as regras e todo o
funcionamento do tribunal, mesmo em detrimento do respeito aos direitos fundamentais dos réus, bem
como o princípio do juiz natural tão conhecido pelos ingleses.
A aplicação da justiça dos vencedores poderia igualmente explicar porque jamais fora cogitada a
possibilidade de punição ou mesmo julgamento dos responsáveis pela morte de civis em decorrência de
inúmeros bombardeios aliados contra as cidades alemães como Dresden, Colônia, Darmstadt,
Hamburgo, Stuttgart e Konisberg entre outras ou mesmo pelo lançamento de bombas atômicas sobre
Hiroshima e Nagasaki.
9

“Obviamente, Ohlendorf esperava que a mesma responsabilidade


paternalística em relação aos seus homens, seria praticada por seus
superiores para com ele, e, isso o eximia da preocupação com a avaliação
moral de suas ações, que poderia com segurança deixar a cargo dos que
comandavam”.

Eis o paradoxo ressaltado por Bauman, não existe necessidade de orientar


o nosso modo de agir conforme padrões determinados. Afinal, os códigos
de ética nem sempre são lembrados porque a maioria se comporta e
decide seguindo o hábito e a rotina, desde que nenhuma pessoa dificulte
ou impeça de se fazer o usual.

Os especialistas em ética trazem sempre argumentos coerentes e


fundamentados racionalmente, além de garantias infalíveis a fim de
preservarem seu status dentro da dinâmica social.

Mas ainda se questiona: Tais peritos realmente entendem de modo


adequado à ética? E, se a ausência dos experts, se traduzisse na
incapacidade nossa em descobrir como devemos nos comportar perante o
Outro? E, quando finalmente nos definirmos como pessoas
verdadeiramente morais e decentes. (In: BAUMAN, Z., A vida em
fragmentos: sobre a ética pós-moderna10).
10
A pós-modernidade surge historicamente quando se vivia os ideais modernos trazidos para toda
sociedade com base nas teorias iluministas, e calcados nas experiências de um individualismo difundido
pelo niilismo. A verdade é que a pós-modernidade modifica principalmente a ótica moral sobre os
valores e sentimentos de dignidade e ética, e passa a vivenciar a preferência pela estética, velocidade e
pelo belo. Valora-se mais o mundo de fantasias e promessas de melhoras e avanços tecnocráticos,
assim, a ética se traduz na ilusão de viver baseado no que é mais conveniente, e não, propriamente no
que é correto.
A pós-modernidade ou era pós-industrial teve como um dos pioneiros no emprego do termo o francês
François Lyotard que in litteris: "A condição pós-modernidade caracteriza-se pelo fim da metanarrativas.
Os grandes esquemas explicativos teriam caído em descrédito e não haveria mais garantias, posto que
mesmo a ciência já não poderia ser considerada como fonte da verdade".
Já para marxista norte-americano Frederic Jameson, a pós-modernidade é a lógica cultural do
capitalismo tardio e que corresponde à terceira fase do capitalismo.
Já o filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman e um dos principais popularizadores do termo pós-
modernidade, prefere a expressão modernidade líquida, onde prevalece uma realidade ambígua e
multiforme.
10

A resposta ao questionamento de Bauman quando não observada pela


nossa responsabilidade, pode seguir a própria sugestão do filósofo. De
que cedo ou tarde começaremos a procurar intensamente em nossa
vontade, uma orientação confiável de “pessoas do saber”. Se deixarmos
de confiar em nosso julgamento, iremos se tornar sensíveis ao medo de
estarmos errados.

Receamos o pecado, a culpa ou vergonha, mas sentimos a necessidade da


mão útil do perito para nos trazer o conforto da segurança. Trata-se de
um medo que amplia a dependência de especialização. A necessidade de
uma especialização ética, torna-se autoevidente e, sobretudo
autorreproduzida. (In: BAUMAN, Z., Modernidade e Holocausto).

O fato de ser autorreproduzida revela uma preocupação aguda. Quando


se delega a decisão de nossas escolhas ao um perito em ética, por não se
saber lidar com a ambivalência, incerteza ou dúvida, desse tipo de ação,
da autoridade na qual está mais capacitada a decidir o destino do homem
comum.

Para Zygmunt Bauman, a ética pós-moderna é aquela que abandonou a


ilusão da universalidade para leis morais e, assume que é a competência
moral de seus membros que torna possível a existência contínua e o bem-
estar da sociedade.

Segundo Bauman, os sujeitos capazes de decisões próprias sem serem


coagidos por um sistema de normas11 elaboradas por legisladores que
Para o filósofo Jürgen Habermas relaciona o conceito de pós-modernidade a tendências políticas e
culturais neoconservadoras, determinadas a combater os ideais iluministas.
11
No entanto, a carência de normas gerais explicitamente assumidas por todos gerou insegurança e
instabilidade na convivência entre sujeitos que deveriam fazer parte do todo incipiente da nova ordem
burguesa. A tal semente feita de ausência gerou a crise ética que se estendeu ao longo de toda a era
moderna. Crise que se tentou superar com elaborações constantes de códigos éticos que tinham em
11

contam com a força para fazê-las cumprir, são sujeitos que desenvolvem o
senso de responsabilidade necessário para lidar com situações que exigem
consenso.

Eis o início da erosão nas relações humanas e a produção em massa da


indiferença na qual se instaura o chamado cenário “normal” da vida
cotidiana. Afinal, a Ética da Idade Moderna trouxe novos modos de criar a
ordem e segurança, diante de um passado expectante. Identifica-se a
ansiedade de se libertar dos grilhões impostos pelo Deus ditado pelo
cristianismo, a partir da razão e, que trazia a garantia sólida de um futuro
promissor.

A nova arquitetura ética prescreve novos modelos de atuação onde o


dever-ser se torna mais autoevidente, mas sem as bases que possam ser
demonstráveis, calculáveis e previstas. Enfim, a Ética seria tão-somente
mais uma opinião pessoal na qual sua autoridade seria destronada pela
objetividade e universalidade.

Surge ainda outro questionamento até mais incômodo: É possível que a


ética seja sempre fundamentada na razão? 12 Em caso positivo e sob
semelhante argumento, a moral poderia ser explicada a partir desses
comum a pretensão de dar conta da totalidade da convivência humana.
Os sucessivos fracassos parecem ter acentuado em vez de refreado a obsessão por leis uniabarcantes.
Obsessão que os óculos da modernidade faziam ser chamada de otimismo. Justo nome na visão de
quem havia experimentado diversos triunfos da razão por conta da evolução da ciência. O sucesso,
portanto, era uma questão de tempo, pois este sempre nos leva ao aperfeiçoamento. Assim justificou-se
a crença na possibilidade de um futuro conjunto sistêmico de leis morais que visem ao bem de todos e
de cada um.
12
É possível uma civilização sem ethos?. Essa interrogação verdadeiramente dramática para o futuro
humano de nossa civilização não pode ser encarada como um mero artifício retórico e não é difícil
apreender o seu significado prático na atual discussão acerca dos direitos humanos: devemos privilegiar
como valor fundamental da existência humana as condições concretas da felicidade como a segurança
material (comer, vestir, morar, etc.) ou os imperativos abstratos da liberdade como as prerrogativas
jurídicas da cidadania (direitos de expressão, locomoção, organização, etc.)?
A simples proclamação de um catálogo dos direitos humanos, conquista inegável da sociedade
moderna, não soluciona o impasse que contrapõe de um lado a garantia formal de liberdade de uma
humanidade mergulhada na miséria e agrilhoada aos injustos mecanismos que reproduzem a
desigualdade entre os povos e de outro o projeto de uma efetiva justiça social que, sem as salvaguardas
do direito formal, se degenera numa concretude inumana.
12

critérios capazes de controlar, ou ao menos, conter o mal e disseminar o


bem13?

Examinando o núcleo dos fenômenos éticos, a moral se revela ser o mais


caótico meio. Metaforicamente não seria mais aquela luz branca irradiada
pela beleza de sua estrutura lógica. Vivemos numa cegueira moral.

Quando utilizamos o conceito de insensibilidade moral para denotar


algum tipo de comportamento empedernido, desumano e implacável, ou
apenas, uma postura imperturbável e indiferente, assumida e manifestada
em relação aos problemas e atribulações de outras pessoas, sendo o tipo
de postura que se exemplifica no gesto de Pôncio Pilatos, ao lavar as mãos
diante do destino de Cristo.

Aliás, cogitamos em insensibilidade como metáfora, sua localização básica


fica na esfera dos fenômenos anatômicos e fisiológicos dos quais é
extraída seu significado fundamental que é a disfunção de alguns órgãos
dos sentidos, seja ela ótica, auditiva, olfativa ou táctil, resultando na
incapacidade de perceber estímulos que em condições normais evocariam
imagens, sons ou outras impressões (...).

A não percepção dos primeiros sinais de que algo pode dar ou já está
dando errado com nossa capacidade de conviver e, com a convivência
com a comunidade humana, e que, se nada for feito, as coisas poderão
piorar, significa que o perigo saiu de nossa vista e, tem sido subestimado
por tempo suficiente para desabilitar as interações humanas como fatores

13
Mas o que é o bem em si? Aristóteles tinha dito, a felicidade. Kant, contrapondo-se a essa velha
resposta, afirma que é a boa vontade. Para ele, todas as capacidades humanas podem causar resultados
daninhos, quando a pessoa que os maneja não é boa. E o poder, a honra, a alegria e tudo o mais que
ligamos à palavra felicidade não geram ações boas, senão quando elas são movidas por uma boa
vontade. Assim, embora negue a palavra aristotélica, Kant reforça a desvinculação aristotélica entre o
bem e o prazer.
13

potenciais de autodefesa comunal – tornando-as superficiais, frágeis e


díspares”. (...).

Com a dor moral sufocada antes de se tornar insuportável e preocupante,


a rede de vínculos humanos composta de fios morais se torna cada vez
mais débil e frágil, vindo mesmo a se esgarçar. Com cidadãos treinados a
buscar a salvação de seus contratempos e a solução de seus problemas
nos mercados de consumo, a política pode (ou é estimulada), pressionada
e, em última instância, coagida a interpelar seus súditos como cidadãos, e
a redefinir em primeiro lugar, o ardor consumista como virtude cívica e, a
atividade de consumo como a realização da principal tarefa de um
cidadão”.

A principal condição ética da modernidade era o fato de que tudo se


explicava, tudo era previsto, antevisto e controlado. Tal modo promoveu a
homogeneização de condutas humanas que se tornam universais e
descontextualizadas do tempo, espaço e cultura. Tal ética se destina a
salvar a todos de seus medos e angústias e, também criar novos medos 14,
os quais todos se tornam seus reféns.

A fundamentação racional da ética representa um terreno ambivalente


posto que tenha base caótica, não sendo explicada ou contida. E ser
caótico, é estar desprovido de estrutura. Pensando a estrutura como uma
distribuição assimétrica de probabilidades, uma não-aleatoriedade dos
eventos...
14
Em stricto sensu, o medo é entendido como uma emoção-choque devido à percepção de perigo
presente e urgente que ameaça a preservação do indivíduo. Provoca, então, uma série de efeitos no
organismo que o tomam apto a uma reação de defesa, como a fuga, por exemplo.
Portanto, constata-se que o medo é uma emoção básica, não só no sujeito, mas em diferentes formas
de vida, aproximando-se de uma reação biológica comum. Mas, o medo se torna mais complexo quando
transita na esfera humana.
Os tempos sombrios em que vivemos, de violência e globalização, que apresentam um quadro social em
constante mudança, sem garantias, geram um universo de insegurança e de medo. Podemos dizer que
nossa cultura ocidental, onde o individualismo e o consumismo são eleitos como valores pós-modernos,
intensifica os sentimentos de desamparo do sujeito.
14

“O caos é o que há de mais aterrador para as promessas acenadas pela


rotina do estabelecido. A sociedade é uma fuga do medo, mas também é
solo fértil desse medo e, dele se alimenta é dele a garra com que ela nós
detém e extrai sua força”. (...). (In: BAUMAN, Z., A vida em fragmentos
sobre a ética pós-moderna).

Conforme Bauman nos instigou, há uma outra indagação é feita: Por que
devo ser moral? E daí, surgiram outras questões: O que me torna
responsável pelo Outro? Esses questionamentos são cada vez mais
atormentantes por conta da liquefação da ética e a liquefação do mundo.

Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com


facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o
tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas
neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo
(resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos
não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e
propensos) a mudá-la; assim, para ele, o que conta é o tempo, mais do
que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas
“por um momento”.

Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao


contrário, o tempo é o que importa.

Ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao


descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro.

Descrições de líquidos são fatos instantâneas, que precisam ser datadas.


(In: Bauman, Z., Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001).
15

A liquefação15 da modernidade transforma-se no período histórico


também chamado de pós-modernidade. A modernidade demonstrava as
promessas estáveis, sólidas e que se tornaram líquidas. Havia um projeto
de vida elaborado pela razão instrumental que aos poucos foi se
saturando e, passa a demandar por outras viabilidades de conveniência.

Horkheimer16 rememora os efeitos produzidos pela expressão “lógica


instrumental”. Pois a redução da razão a um mero instrumento afeta
finalmente até mesmo seu caráter como instrumento. O espírito
antifilosófico que é inseparável do conceito subjetivo da razão e que na
Europa culminou a perseguição totalitária nos intelectuais fossem ou não
seus precursores, é sintomático da degradação da razão.

Os críticos tradicionais e conservadores cometem um erro fundamental


quando atacam a civilização moderna, sem atacarem ao mesmo tempo o
embrutecimento que é apenas um outro aspecto do mesmo processo.

O intelecto humano17 que tem origens biológicas e sociais, não é uma


15
Há divergências bem nítidas no discurso contemporâneo, pois o relativismo (historicismo) se opõe ao
absolutismo (transcendentalismo). A existência de múltiplas estruturas de referência, cada qual com os
respectivos esquemas de compreensão e critérios de racionalidade e que trazem coexistência de
posições comparáveis e rivais e irreconciliáveis. Afinal, se reconhece diferentes pessoas e grupos que
vivem literalmente em mundos diferentes. Assim não existe um sistema inconteste de definição da
realidade.
16
Max Horkheimer (1895-1973) foi filósofo e sociólogo alemão. Como grande parte de intelectuais da
Escola de Frankfurt, era judeu de origem, filho de um industrial chamado Moses Horkheimer, e estava
destinado a dar continuidade aos negócios paternos. Por intermédio de seu amigo Friedrich Pollock
Horkheimer associou-se em 1923 à criação do Instituto da Pesquisa Social, do qual foi diretor em 1931
sucedendo o historiador austríaco Carl Grunberg.
umas formulações, sobretudo aquelas acerca da razão Instrumental, junto com as teorias de Theodor
Adorno e Herbert Marcuse, compõem o núcleo fundamental daquilo que se conhece como Escola de
Frankfurt.
Em resumo, a teoria crítica de Horkheimer pretende que os homens protestem contra a aceitação
resignada da ordem total totalitária. A "razão polêmica" de Horkheimer, ao se opor à razão instrumental
e subjetiva dos positivistas, não evidencia somente uma divergência de ordem teórica. Ao tentar superar
a razão formal positivista, Horkheimer não visa suprimir a discórdia entre razão subjetiva e objetiva
através de um processo puramente teórico. Essa dissociação somente desaparecerá quando as relações
entre os seres humanos, e destes com a natureza, vierem á configurar-se de maneira diversa da que se
instaura na dominação. A união das duas razões exige o trabalho da totalidade social, ou seja, a práxis
histórica.
17
Enquanto os primeiros estoicos entendiam a natureza de modo unívoco e mais objetivo, ou seja,
referida indistintamente à ordem cósmica do homem e dos animais. Já os estoicos do último período
16

entidade absoluta, isolada e independente. Foi declarado ser assim


apenas como resultado da divisão social do trabalho a fim de justificar
esta última na base da constituição natural do homem (In: Horkheimer18,
Max. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2000).

Bauman com acerto chamou a Ética na Pós-Modernidade como a “Era da


Moral”. O referido fundamento nuclear dos fenômenos éticos não
consegue ser exaurido dentro de normas precisas calculáveis. A moral,
para Bauman, não pode ser demonstrada tampouco logicamente
deduzida. Moral é categoria contingente, ambivalente e incontível.

É a única autoridade capaz de orientar os seres humanos para


compreensão de si, pois flui na incerteza do desejo. Bauman advertiu
conforme in litteris:

“Se não houver essa força e essa autoridade, os seres humanos estarão
abandonados ao seu próprio juízo e à sua própria vontade. E, estes, como
os filósofos argumentam e os pregadores tentam fazer com que as
pessoas entendam, e podem dar à luz apenas o pecado e o mal; como os
teólogos nos explicaram de forma convincente, não se pode confiar neles
para produzir com comportamento correto ou fazer passar um julgamento
correto. Não pode haver algo como uma “moral eticamente infundada”, e
uma moralidade autofundada é, gritante e deploravelmente, algo
infundado do ponto de vista ético. De uma coisa podemos ter certeza: não
importa quanta moralidade haja ou possa haver numa sociedade que
tenha reconhecido estar sem chão, sem propósito e diante do abismo
atravessado apenas por uma frágil prancha feita por convenções, ela pode
apenas ser uma moral eticamente infundada. Como tal, é e continuará a
ser incontrolável, imprevisível. Ela se constrói da mesma maneira pode se

especificam o sentido da natureza e, introduzem ao lado de uma acepção física do termo, também uma
dimensão mais antropológica, à qual dão maior destaque. Na discussão contemporânea sobre a ética
há temas da vida humana sempre apresentada pelas possibilidades oferecidas pela ciência e pela
técnica de intervir sobre as estruturas da vida.
18
O pensamento de Horkheimer é um dos mais importantes da filosofia contemporânea. Ao enfrentar a
"razão instrumental" com sua "teoria crítica", ele denuncia essa razão como criadora de perigosos mitos,
situando-se em um marxismo não-ortodoxo, ligado também a certo humanismo individualista.
17

demonstrar e se reconstruir de outra forma no curso da sociabilidade


(...).”

Eis um novo confronto moral versus sociabilidade19. A moral pode ser


observada a partir de dois critérios, a saber: 1. A sua ambivalência; 2. Sua
responsabilidade e proximidade. Assim, a referida categoria torna-se o
fundamento não-fundado na qual se constata a ausência de qualquer
argumento primordial anterior à Moral.

Questiona-se que antes da moral20 aparece “o Ser” sob o ângulo da


Ontologia, porém, não é possível reduzir a existência alheia ao self moral
pela descrição indiferente e vazia do Ser.

19
O homem é, portanto, um ser que produz a si mesmo, natural e socialmente: (...) os indivíduos fazem-
se uns aos outros, tanto física quanto espiritualmente (...). Em outros termos, A produção da vida, tanto
da própria, no trabalho, como da alheia, na procriação, aparece agora como uma dupla relação: de um
lado, como relação natural, de outro, como relação social – social no sentido de que se entende por isso
a cooperação de vários indivíduos, quaisquer que sejam as condições, o modo e a finalidade.
O processo de autoconstrução dos seres humanos é ao mesmo tempo o processo de produção das
individualidades sociais e da própria sociabilidade.
20
Bauman denominou a Ética na Pós-Modernidade como a “Era da Moral”. Esse fundamento nuclear
dos fenômenos éticos não consegue ser exaurido dentro de normas precisas e calculáveis. A Moral, para
o referido autor, não pode ser demonstrada tampouco logicamente deduzida. A mencionada categoria é
contingente, ambivalente, incontível.
É a única autoridade capaz de orientar os seres humanos para a compreensão de si, pois flui na
incerteza do desejo.
A ambivalência retrata o caráter fragmentário da vida. É a incerteza produzida pelas nossas percepções
sobre o que é – ou venha a ser – razoável e irrazoável. Essas “conseqüências não-antecipadas ”mostram
a necessária ponderação na qual precisa ser realizada a fim de compreender o trânsito entre os aspectos
“dicotômicos” da vida.
18

“Numa moralidade21 que vem antes de o ser existir, não há nada para
justificar minha responsabilidade, e ainda, menos para determinar que eu
seja responsável e, que a responsabilidade é minha; a determinação e
justificação são traços do ser, do ser ontológico, o único ser que há, afinal.
E o leitor razoável estará certo ao apontar que “antes do ser” não existe
nada e mesmo se existisse, não saberíamos nada sobre ele de alguma
forma – não da forma – como sabemos sobre fatos (...) não existe nenhum
outro lugar para a moralidade senão antes do ser (...)”. (In: BAUMAN,
Zygmunt. Ética Pós-Moderna).

No momento em que o Outro surge diante do Eu, não existem os


fundamentos ou justificativas razoáveis que expliquem minha obrigação
de cuidado com Outrem.

É na relação com o desconhecido, no “ser-junto-com Outro” no qual se


desvela minha humanidade. O caminho da ambivalência desenha a
cartografia de minha responsabilidade e não exaure numa lista finita de
obrigações.

A ambivalência retrata o caráter o fragmentário da vida. É a incerteza


produzida pelas nossas percepções sobre o que é – ou venha a ser –
razoável e irrazoável. Essas consequências não-antecipadas mostram a
necessária ponderação na qual precisa ser realizada a fim de compreender
o trânsito entre os aspectos dicotômicos da vida.
21
A moralidade se refere a um código moral concreto, ou seja, de uma determinado país ou período
histórico e cultural. Situa-se na moralidade os juízos morais que se relaciona com a capacidade de julgar
o certo e o errado. A moralidade é fenômeno complexo que nos permite entender de formas distintas.
Assim, a moralidade se revela como dimensão do ser humano e os pensadores modernos como forma
de consciência. Há diferentes abordagens sobre a moralidade por parte da Filosofia que pode ser
chamada de Ética ou Filosofia Moral.
A mais interessante acepção de moralidade é aquela que é entendida como aptidão para resolver
conflitos, e para melhor entendimento é preciso compreender o conceito de reconhecimento recíproco
de George H. Mead: ao contrário dos enfoques que ancoram a noção de moralidade no indivíduo, nesta
concepção a moralidade não pode ser pensada fora do âmbito social. Assim, Mead situa o problema
moral em relação aos conflitos sejam estes individuais, sejam estes coletivos. Pela racionalidade, além
de estabelecer para si mesmo leis próprias, o homem deve ser capaz de decidir sobre elas por meio do
diálogo.
19

A ambivalência22 denota a ausência de uma resposta pronta, infalível para


que as nossas angústias e tormentos sejam eliminados e se retome ao
afago e segurança dos enunciados éticos propostos pelos códigos ou seus
especialistas.

O caminho a ser percorrido para se desenhar a Moral é tortuoso 23, não


existem atalhos os quais possibilitem um rápido percurso. Fechar os olhos
e se tornar indiferente diante da vida também não é uma opção
adequada.

A “Era da Moral” no pensamento de Zygmunt Bauman, não pode ser


descrita pelo modelo Marilyn Monroe (no qual o desapego às
consequências de nossas ações perpetua um futuro dionisíaco,
descompromissado e irresponsável). Refletindo sobre a imagem de Peter

22
Jurandir Freire Costa, citando Bauman e Ehrenberg, afirma que “o indivíduo incerto de hoje se tornou
um ‘colecionador de sensações’ e não mais um asceta dos sentimentos (...). Pouco a pouco, aprendemos
a querer dos ‘sentimentos’ o que esperamos das ‘sensações’. Ou seja, assim como na gramática das
sensações aprendemos a repudiar com veemência toda dor ou qualquer desprazer, também queremos
evitar sentimentos que nos façam sofrer. O autor assinala que “no presente, o comércio das imagens e
sensações é a âncora identificatória dos indivíduos. Saber quem ou o que se é significa tomar a) o que se
‘experimenta’ como sensações e b) o que é oferecido nos modelos publicitários como critério para saber
o que se deve ser. As drogas legais ou ilegais, os cuidados corporais, as imagens televisivas deixaram de
ser meios marginais na construção das identidades subjetivas; tornaram-se os instrumentos por
excelência do acesso ‘às verdades da nossa natureza’. Em função do poder de compra, temos acesso a
alguns deles ou a todos eles, mas nenhum grupo socioeconômico, pelo menos nas cidades, escapa de
sua ação”.
23
Afirmou Bauman que o postulado de universalidade sempre foi demanda sem endereço, ou um pouco
mais concretamente, espada com o gume voltado para grupo seleto. Sempre estavam na mira do
canhão da universalidade os costumes paroquianos, práticas comunais.
Nas tentativas de libertar o ser humano do jugo dos mitos, da religião e do despotismo acabou-se por
impor determinados limites que, à luz dos nossos dias, caminharam na direção oposta a seus propósitos.
O esforço desmedido da modernidade em conquistar um código que pudesse resolver tais diferenças e
ambiguidades resultou em uma ilusão. Por outro lado, o indivíduo viu-se obrigado a cumprir uma
moralidade determinada pelo Estado na sua legislação. O que significaria emancipação e autonomia das
práticas locais configurou-se determinantemente na heteronomia legalista da nação-Estado; a
moralidade passa a ser determinada nos códigos e, paulatinamente, torna-se a única obrigação moral
dos indivíduos. Desta forma, até o próprio Estado viu-se vítima de seu postulado, pois o postulado da
universalidade não só alui as prerrogativas morais das comunidades agora transformadas em unidades
administrativas da nação-Estado homogênea, mas também torna inteiramente insustentável a
pretensão de ser a única autoridade moral.
20

Parker24 – o Homem Aranha, onde se identificam a maturação, motivação,


angústia e a dificuldade de se tornar uma pessoa moral a cada escolha
feita. Esse é o início da caminhada perene e dúbia de se tornar
responsável.

O segundo aspecto sobre a moral conforme os argumentos da Bauman é a


responsabilidade. A referida categoria antes citada, revela a necessidade
de se repersonalizar a Moral e tirá-la da couraça rígida posta pelos códigos
de ética, isto é, trazê-la ao início do caminho ético e não promover apenas
a sua finalidade o que a faz ganhar nítidos contornos utilitaristas.

Não existe responsabilidade sem alteridade. “É na relação coma incerteza


chamada ouro no qual se tece a compreensão sobre “Ser Moral” 25. O
silêncio do Outro é insuportável. Será necessário provocar sua pre-sença a

24
O processo de identidades e culturas se reflete, por exemplo, no Homem Aranha o alter ego de Peter
Parker que pertence à galeia daqueles que adquiriram seus poderes em laboratório. Ele é Peter Parker,
um estudante, uma pessoa comum que adquire seus poderes após ter sido picado por uma aranha
radioativa. Seus poderes passaram a ser de aracnídeos e não de seu próprio corpo, de ser humano.
Assim, o herói vive o duplo e a mesma necessidade de se esconderem entre os comuns.
O personagem carrega em seu mito de criação os traços de americanismo que auxiliam na aproximação
do leitor para si e difusão de valores implícitos, que nos ensinam comportamentos e pensamentos
direcionados para o que sentir, pensar, acreditar, temer e desejar.
Peter Parker faz parte do proletariado e nem sempre se considera triunfante em suas missões, concebe
o jornal como uma metáfora da concentração burguesa dos meios de produção, trata os problemas
sociais como algo maior que os conflitos psicológicos de um indivíduo. O herói tem conflitos complexos
em relação aos seus papéis sociais.
25
O homem é ser moral porque é um ser de consciência, ou seja, que tem consciência, um ser de
convivência e um ser de liberdade. É necessário, antes de tudo, que o homem se assuma como um
sujeito, dotado de individualidade irredutível a outras individualidades, uma existência diferente e
diferenciada. O núcleo central da moralidade é o eu, mas não um eu encerrado sobre si mesmo, autista,
reduzido a uma prisão aquário, antes um eu aberto ao exterior, curioso e em trânsito.
Aquilo que faz com que se possa perceber-se como sujeito e, constituir-se como indivíduo é a
consciência. Este "eu" de que me apercebo através da consciência não se limita a um corpo ou um
conjunto de sensações, mas também não se reduz ao espírito.
Se não posso ou não devo considerar os sentidos e os sentimentos como ilusões também não posso
esquecer a importância do pensamento como instrumento precioso de investigação da realidade. Este
eu de que me apercebo através da consciência não é uma identidade estática, inalterável, mas uma
complexidade e um edifício em construção.
É pela consciência que o homem se distingue do animal, é pela consciência que o homem se define
como ser moral. É mediante a consciência que o homem se define como ser moral. É mediante a
consciência que alguns atos do homem se convertem em ações significativas e transformadoras do
próprio homem. É a consciência que possibilita quer uma visão retrospectiva quer projetiva da realidade
e das nossas ações e desta forma ultrapassar a sensação do imediato, tornando-nos seres de horizontes
amplos.
21

fim de sua voz tornar-se audível, mas nem sempre esse fenômeno é
possível.

O Outro pode optar por não se manifestar e, nesse não-fazer, precisa-se


encontrar o sentido infinito no qual destrona o “Império do Eu”. O outro é
horizonte moral no qual se persegue, mas que, a cada passo, se afasta.
Essa é o fundamento do “Eu Moral” (...) um eu sempre perseguido pela
suspeição de que ele não é suficientemente moral.

Fora do contexto social, não há moral. O sedimento da responsabilidade


pela alteridade surge com a proximidade. Bauman elucidou com clareza
solar, in litteris:

“(...) A proximidade está satisfeita com o ser que ela é – proximidade. E


está disposta a permanecer como tal: estado de permanente atenção 26,
venha o que vier. Responsabilidade nunca completa, nunca exaurida,
nunca passada. Esperar pelo Outro para que exerça o seu direito de
comandar, direito que nenhum comando já dado e obedecido pode
diminuir”. (In: Bauman, Z., Ética Pós-Moderna).

A proximidade revela minha responsabilidade incondicional através de


estar “junto com o outro”. Há de se esperar o desvelar do outro até que
sua voz seja audível e que sua mensagem seja compreensível. Mas essa
espera há de ser mediada conforme os parâmetros humanos.

26
O poder disciplinar segundo Bauman não pode mais ser exercido pela comunidade, por métodos
tradicionais, eu te observo e você me observa. Era necessário um agente novo, mais poderoso e capaz
de projetar, organizar, gerenciar e acompanhar conscientemente o novo problema criado que seria as
legiões de homens livres e as classes perigosas. Esse agente era o Estado. Assim nos séculos XVI e XVII
em França e Reino Unido, a atividade legislativa era voltada ao combate às classes perigosas.
Já na pós-modernidade há um aperfeiçoamento crescente dos mecanismos de controle, o
monitoramento através de câmeras e leituras e reconhecimentos ergométricos. O Estado-educador é
responsável de fazer os seres humanos ascenderem à perfeição exigida pela ordem social, da forma
adequada e renomeada de bem-comum.
22

Eis a aporia27 da proximidade: o outro se aproxima e se distancia, ao


mesmo tempo. A moral na perspectiva da responsabilidade e
proximidade, produz intensas antíteses, tais como o amor e ódio, cuidado
e indiferença, entre outras.

Essa é ambivalência, o conflito humano e original e que se tenta, todos os


dias, delegá-la ou eliminá-la para que os especialistas em Ética digam a
todos o que é bom, o que é mau.

Conforme enunciou Bauman, “Ser Moral” é legitimar novamente as


emoções, a responsabilidade e saber transitar com certa serenidade, no
pantanoso caminho de escolhas as quais revelam, com maior ou menor
grau – o nosso ir e vir entre a pluralidade de infinitos as quais se
manifestam nas relações humanas momentâneas e finitas.

Enfim, trata-se de uma mistura paradoxal, entre a apreensão e esperança.


“Ser moral” não significa ser bom ou mau, mas lidar com as consequências
produzidas pelas nossas ações diante de “junto com o outro”.

“Ser moral” significa tender a fazer certas escolhas sob condições de


aguda e dolorosa incerteza. Eis o desafio da Pós-modernidade, na qual
precisa ser insistente: fundar uma condição moral de vida na qual cada
pessoa se torna, de modo incondicional, responsável pelo Outro 28.
27
Aporia é a dificuldade ou dúvida decorrente da impossibilidade objetiva de obter resposta ou
conclusão para uma determinada indagação filosófica. Em grego a palavra significa caminho
inexpugnável, sem saída, impasse ou paradoxo, momento de contradição que impede que o sentido de
um texto ou de uma proposição seja determinado. O estudo de aporias designa-se de aporética.
Na mitologia grega, a Aporia também era conhecida como Amecania e personificava a impotência, a
dificuldade, o desamparo e falta de meios, sendo, portanto, odiada e marginalizada por todos os
homens. Era companheira de Penia, a pobreza, e Ptoqueia, a mendicidade, e suas divindades opostas
eram Oporia, a fartura e a Eutenia, a prosperidade. Aristóteles definiu a aporia como uma igualdade de
conclusões contraditórias.
28
Por ser refém do outro, eu me torno, pelo outro, responsável. Eu me torno, por intermédio do outro,
um sujeito responsável e me torno, por isso, um sujeito responsável pelo outro. Se a alteridade é
absoluta, se sou refém de meu próprio desejo, só que me resta é responder ao chamado dessa
alteridade e acolher o rosto de todo outro que se me apresenta - o que configuraria o segundo aspecto
23

Trata-se de uma moralidade sem a presença de códigos de ética. Trata-se


de uma moralidade sem a presença de códigos de ética. A presença do
Outro impõe à vontade do Eu ilimitado. Jamais cessa o caminhar 29 do ser
humano para se tornar mais moral. A condição de contínuo
aperfeiçoamento moral é perene e possui duas faces: guarda em si a
salvação ou maldição de todos.

Ainda questionou Bauman: Qual dessas imagens se tornará a mais


duradoura? A resposta depende de nossas escolhas morais de todos com
todos.

Mas por que devo ser moral? A resposta é complexa. A Moral não se
justifica, mas existe no momento em que há a pessoa.

Na relação com o Outro, desvenda-se minha responsabilidade


incondicional. Descobre-se o íntimo significado de humanidade. Esse é o
fundamento que precisa aparecer desde o início de uma elaboração ética
que não se exaure em mandamentos, mas se desenvolve nas incertezas
morais consolidadas pela responsabilidade e proximidade entre cada
horizonte infinito manifestado no terreno da existência.

O cenário contemporâneo mundial revela descrença frente ao ser


humano. Não existem mais esperanças capazes de animar as utopias do
devir. A escolha de minhas decisões é incerta e não pode ser controlada.

da justiça. Por isso que Lévinas afirmou que a relação com o outro é, ela mesma, justiça.
29
"Caminhante, são tuas pegadas
o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar".
Trecho da letra e música Antonio Machado,
Intitulada Cantares. Tradução de Maria Tereza Almeida Pina.
24

Questiona-se: será mesmo possível determinar, com precisão, o que é


bom e o mau? Toda escolha no qual se direciona para o bom, trará bons
resultados? Ser moral significa ser bom 30? Como é possível “Ser Moral”?
Como se diferencia a Ética da Moral31?

E, as perguntas não cessam e, segundo o cenário contemporâneo,


precisar-se-ia de especialista nessa vertente do conhecimento humano 32.

30
A relatividade não se coaduna com o uso moral da palavra bem, na medida em que o Bem moral deve
ser absoluto, no sentido de ser bom em si. Na República de Platão, Glaucon pergunta a Sócrates: “não te
parece que há uma espécie de bem em si mesmo, que gostaríamos de possuir, não por desejarmos as
suas consequências, mas por estimarmos por si mesmo”? (357ª.C). Este é o bem moral, que reivindica
para si uma espécie de incondicionalidade, o que faz ser bom independentemente de suas
consequências.
31
A palavra ética provém do grego ethos que significa morada, habitat, refúgio, ou seja, o lugar onde as
pessoas habitam. Aristóteles acreditava que a ética é caracterizada pela finalidade e pelo objetivo a ser
atingido, que seria viver bem, ter uma boa vida, juntamente e para os outros.
Também pode ser definida como um conjunto de conhecimentos extraídos da investigação do
comportamento humano na tentativa de explicar as regras morais de forma racional e fundamental.
A ética é parte da filosofia que estuda a moral, pois reflete e questiona sobre as regras morais.
Moral é originária do termo latino morus e se refere aos costumes, isto é, aquilo que se consolidou
como sendo verdadeiro do ponto de vista da ação. Moral é fruto de padrão cultural, social vigente e
engloba as regas tidas como necessárias para o bom convívio entre os membros que fazem parte de
determinada sociedade.
A moral é formada pelos valores previamente estabelecidos pela própria sociedade e os
comportamentos socialmente aceitos e passíveis de serem questionados pela ética.
No sentido prático, a finalidade da ética e da moral apesar de ser bastante semelhante, pois ambas são
responsáveis por construir as bases que guiarão a conduta do homem determinando o seu caráter e a
sua forma de se comportar em determinada sociedade.
Vásquez aponta que a Ética é teórica e reflexiva, enquanto a Moral é eminentemente prática. Uma
completa a outra, havendo um inter-relacionamento entre ambas, pois na ação humana, o conhecer e o
agir são indissociáveis.
32
Mas que disposição da alma é uma excelência moral?
Para Aristóteles, as deficiências morais são apresentadas como excessos, e a posição intermediária que
anula esses excessos é a medida adequada de uma ação moralmente adequada. Com relação ao medo,
por exemplo, uma pessoa pode ser covarde (quando o medo excessivo leva ao não enfrentamento dos
riscos) ou temerária (quando a excessiva falta de medo faz com que os riscos sejam simplesmente
desconsiderados).
No meio termo, está o corajoso, que tem a dimensão adequada da ação, assumindo os riscos
necessários.
Porém, o termo médio não é equidistante dos extremos, na medida em que a coragem se aproxima
muito mais da temeridade que da covardia. Uma ação temerária pode até ser confundida com uma
corajosa, mas uma ação covarde está muito distante desses dois pontos.
Do mesmo modo, a liberalidade pode às vezes ser confundida com a prodigalidade, mas nunca com
avareza. Assim, o homem excelente deve ser capaz de identificar em cada ação os extremos a que
levaria uma deficiência moral, e ter uma disposição moral que aponte para a realização do meio termo
justo, que se coloca entre eles.
25

A modernidade inaugurou a “Era da Ética”. A pluralidade de condutas, a


mescla de interesses, a ambivalência da vida de todos os dias, essas
características não fazem parte do projeto civilizador desenhado pelo
período histórico.

Precisa-se intensamente da História para garantir a infalibilidade do futuro


guiado pela razão. Imortaliza-se o futuro como condição de se antever os
efeitos benéficos criados pelo “mundo racional” no momento presente. O
controle do imprevisível e sua possível erradicação é o triunfo da razão
lógica.

A definição sobre o que seja bom, bem como os seus contrários, não pode
ser elaborada pela mistura de percepções do homem comum. A trilha
desenhada pelos seus interesses é confusa, ambígua e incerta.

A ausência de um fundamento sólido, estável e coerente no qual se


justifique a demonstração da proposição é descompassada com os ideais
do citado período histórico. Somente a autoridade do conhecimento pode
liderar o homem comum para sua plena emancipação.

A universalização das condutas a partir dos códigos de ética, torna-se


imperativo a caracterizar uma civilização como moderna. Com o passar do
tempo, a matéria prima para a composição da Ética, ou seja, conclui-se
que a moral esmoreceu. A angustiante tarefa de escolha moral não
pertence mais ao sujeito, o poder decisório migrou do espaço público para
o espaço privado.
26

O que determina o que é bom ou mau doravante é o mercado 33 e, não


mais, a consciência humana.

As escolhas morais denotam responsabilidade. E essa possibilidade


somente existe porque o Outro mostra, pela sua fragilidade do Ser, os
limites do Ego.

Frise-se que nenhuma ação moral existe fora do contexto social. Por esse
motivo, qualquer atitude é uma escolha moral. Envolve um juízo de
preferência na qual precisa fundamentado pela razão lógica.

Essa é a legitimidade das emoções – um sentir algo com o Outro -, um “ser


para” na qual justifica a responsabilidade moral por meio da alteridade e
proximidade.

A “Era da Moral” é uma aporia. Não há respostas simples e prontas


tampouco garantias infalíveis para seu aperfeiçoamento. Somente quando
se compreender a natureza ambivalente, dúbia e incerta da moral, a Ética
deixará de exigir a homogeneização das condutas como meio de se
garantir a ordem e segurança de todos. Há, pois, uma angústia e um alívio
na qual dignifica o “ser moral”.

Ética e Moral crescem no mesmo solo fértil no qual o húmus é a


responsabilidade que se inova e reinventa na relação infinita do Eu e Tu.
Esse é o horizonte utópico da Pós-modernidade na qual se sabe, com

33
Podemos intuir que as moralidades empresariais são pode demais frágeis para resistir aos princípios
de conduta fundantes que as regulam. Os próprios processos éticos dos agentes empresariais, dos
sócios ou dos acionistas, levando em conta as definições de ética que podem se opor a moralidade
empresarial.
A humanidade é moldada e contida pela moralidade dos mercados ou dos Estados, tornam-se rebanhos
domesticados que não escolhem nem o pasto para se alimentar ou o tempo de permanecer no campo e,
tudo isso, validado pelas religiões que são poderosos instrumentos de controle social, pois pregam a
submissão existencial e criam esperanças no porvir.
27

maturidade lidar com a responsabilidade incondicional de todos com


todos34.

Ao analisar detidamente a crise contemporânea podemos perscrutar o


passado, o que não significa uma homenagem aos mortos, mas deve nos
levar a venerar a história e justificar alguma esperança no futuro, onde
presenciamos a confluência das vertentes gregas e judaico-cristãs que
constituíram a identidade de nossa civilização e nos capacita a vencer a
inércia da modernidade que aprisionou o pensamento na estéril
abstração.

Referências:
34
Há diferentes propostas em relação do problema da modernidade e seu desdobramento na ética, a
saber:
a) A proposta modernizante liberal que implica na integral aceitação da modernidade, social e cultural,
na perspectiva da expansão e consolidação dos mecanismos de mercado, da democracia liberal e da
tecnociência. No plano da ética, o que se verifica é que a racionalidade sistêmica que caracteriza a
modernização social é insuficiente para fundamentar a moral, em consequência tende-se ao
irracionalismo moral e à hipertrofia da dimensão sistêmica da sociedade (produção-consumo) em
detrimento da dimensão interacional da existência (valor, sentido), o que Habermas designou como
"colonização do mundo da vida através dos imperativos dos sistemas funcionais".
2. A proposta modernizante neoconservadora que implica na aceitação da modernidade social e na
rejeição da modernidade cultural, na perspectiva de uma conciliação da economia de mercado e da
ciência com valores e concepções da sociedade tradicional pré-moderna. Essa posição neoconservadora
pressupõe que o conteúdo da moral seja a histórico e possa a ser transportado de uma época para
outra, mas o que se verifica é que essa dualidade entre sociedade (moderna) e cultura (pré-moderna) é
insustentável. A racionalidade sistêmica ou moderna inviabiliza culturalmente significativa a
racionalidade substancial (pré-moderna) típica das grandes concepções religiosas do passado.
3. A proposta pós-modernizante implica na rejeição integral da modernidade social e cultura, não a
perspectiva de um impossível retorno ao passado, mas visando uma desconstrução do projeto moderno
como projeto de unificação e homogeneização da história. Pretende-se, assim, possibilitar a emergência
de diferenças irredutíveis (étnicas, sexuais, individuais) que escapem da camisa-de-força normativa que
caracterizou até hoje o logocentrismo ocidental. O que se verifica, entretanto, é que a posição pós-
moderna parece debater-se entre a virulência do discurso que produz e a integração ao individualismo
necessário de uma sociedade que realimenta o consumo através da máxima diferenciação dos gostos,
dos estilos de vida e dos valores subjetivos.
4. A proposta dialetizante que implica na aceitação da modernidade cultural, isto é, de uma cultura
secular e diferenciada em esferas autônomas de racionalidade e numa crítica forte das patologias da
modernização social na perspectiva de uma dialética interna do projeto iluminista. Assim, as pretensões
funcionais da economia e da administração seriam contidas pelo dinamismo das interações
comunitárias, pelo vigor do mundo da vida (Lebenswelt). A racionalidade sistêmica não seria rejeitada,
mas subsumida numa nova forma de racionalidade, e comunicacional, capaz de fundar sem
reducionismo o discurso ético.
28

AQUINO, Sérgio. O desafio da Ética para os Profissionais do Direito na


Pós-Modernidade. Disponível em:
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SILVA, Paulo Fernando da. Conceito de ética na contemporaneidade


segundo Bauman. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013.

Observação: Gostaria de agradecer publicamente aos professores, amigos


e colegas a quem tanto estimo e considero e, que por razões alheias a
minha vontade, irei deixar de conviver mais amiúde: Edivaldo Alvarenga
Pereira, Eduardo Frias, Alexandre Camargo, Amanda Montenegro,
Raimunda Prazeres, Maria Regina Martins, Maria Helena Plácido, Cristina
Lobato, Elizabeth Reznik, Jane Santos, Maria Carlota Carvalho, Patrícia
Leite Carvão, Tereza Bittencourt, Vanda Almeida, Wania Ayres, Marco
Antônio Valério e Keila Soares. As professoras Márcia Calainho, Márcia
Rosa, Juan Carlos Vezulla, João Delfim Nadaes, Flávio Citro, Cesar Cury e
Luciana Moessa. Um abraço especial para a Coordenadora Ana Paula Del
Pretti.

Peço desculpas se não consegui lembrar de todos com quem passei bons
momentos de aprendizagem. Sinceramente espero que não percamos o
contato.

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