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E828
748 p.
CDD 791.43
SUMÁRIO
Resumo:
A partir da investigação sobre o gesto em Flusser, propomos um diálogo introdutório entre as obras
fotográficas A Nebulosa e a série Combate de Pentesileia (1938) de Raoul Ubac com os filmes Mues e Esquisse
(2015) de Frédérique Ménant. Ambos artistas - que desenvolveram seu método através da manipulação
direta da matéria pelas técnicas fotográficas em prata e celuloide - trabalham na subversão da forma
como propulsora do pensamento desencadeado pelo que chamamos de gesto químico no cinema.
Palavras-chave:
Gesto, Vilém Flusser, cinematografia, Raoul Ubac.
Abstract:
Starting from Flusser’s considerations on the gestures, we propose an introductory dialogue between the
photographic works The Nebula and the series Combat of Penthesilea (1938) by Raoul Ubac with the films
Mues e Esquisse (2015) by Frédérique Ménant. Both artists - who developed their methods through the
direct manipulation of matter by photographic techniques in silver and celluloid - work in the subversion
of form to propel the thought triggered by what we call a chemical gesture in Cinema.
Keywords:
Gesture, Vilém Flusser, cinematography, Raoul Ubac.
para além do conteúdo referencial e figurativo que preenche nossos olhos através de sua incontornável
visibilidade. Ela guarda peculiaridades em sua forma que são, muitas das vezes, independentes dos
propósitos de seu autor e que se fazem presentes, quer tenhamos consciência delas ou não. Algo
semelhante ao que o senso comum considera um gesto. Aquele toque irremediavelmente pessoal,
indescritível e que transcende o simples ato planeado. Como o caminhar de uma pessoa. Há um modo
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O gesto químico: uma subversão da forma no cinema
O toque dos pés no chão. A leveza ou o rastejo, a diligência ou o desânimo. A cadência dos braços, a
envergadura das pernas. A cada passo o caminhar se constrói. Como se o gesto só pudesse se manifestar
junto ao tempo, imprimindo sua presença através de seu sutil trajeto. Mas como pensar o gesto sendo
ele tão instintivo, involuntário e fugaz? Seria ele da mesma natureza da imagem? Se assim indagamos, é
porque parece-nos genuíno aproximarmos os dois: imagem e gesto. Não apenas para refletirmos sobre
de representação dos gestos através da imagem. Algo que, a nosso ver, é empreendido pelo cinema nas
mais variadas formas. Formas essas que também podem ser entendidas como gestos. Uma outra sorte
de gesto, um outro caminhar. Aquele dado pela convergência de muitos passos. Passos dos atores e dos
e, dentro dos propósitos específicos para este artigo, os passos inscritos na matéria fílmica: seus gestos
químicos. Nesse amplo espaço de convergência de gestos na imagem cinematográfica, faz-se necessário
compreender um pouco mais a fundo o que entendemos por este termo, certamente inesgotável, e do
Ao longo de décadas, a reflexão sobre o gesto aos moldes de uma teoria se faz presente na obra
de Vilém Flusser (1920-1991). Ela é elaborada em textos esporádicos que culminam em seu último livro
lançado ainda em vida - Gestos (Gesten: Versuch einer Phänomenologie, 1991) -, do qual fazem parte análises
de gestos específicos como o gesto de escrever, o gesto de amar, o gesto de barbear, o gesto de destruir,
o gesto de buscar, entre outros. Para além do empenho em esmiuçar os diversificados gestos humanos,
como o conhecido capítulo “O gesto de fotografar”, publicado pela primeira vez no livro A filosofia da
caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia3 (1985), Flusser nos convida a transpor o sentido
superficial que possamos depreender do termo, ao colocar em perspectiva seu caráter plural. Um dos
passos nessa direção se dá em 1975, quando o fundador e editor da revista ArTitudes4, François Pluchart,
ao que Flusser responde com um curto e inspirado texto. O trabalho, escrito originalmente em inglês sob
o título “Gesture and Sentimentality”, é acompanhado de uma versão francesa feita pelo próprio autor. É
neste artigo que está, a nosso ver, uma das discussões mais estimulantes sobre a natureza do gesto. E,
se expomos aqui a origem bilíngue de sua criação é porque seu título guarda a chave da complexidade
de seu próprio conteúdo. Vejamos como. Flusser, ao reescrever o texto em alemão, escolhe a palavra
Gestimmtheit para substituir sentimentalidade, um vocábulo de difícil tradução e que é objeto de várias
notas de rodapé em todas as obras que o citam. Este capítulo, Gesten und Gestimmtheit, ao ser traduzido
para outros idiomas recebe versões das mais variadas e com significados razoavelmente diferentes
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como Gesto e afeto, Gesto e afinação, Gesto e concordância, Gesto e consentimento, Gesto e disposição5. A
abertura para a possibilidade de múltiplas interpretações faz eco no próprio conceito que não restringe
o pensamento a sentidos conclusivos, afastando-se da hermenêutica para dar lugar a uma outra forma
O caráter enigmático dos gestos deriva provavelmente de sua qualidade fronteiriça. Entre
natureza e cultura, entre ação intencional e mera reação, Flusser associa os gestos aos
misteriosos termos “Gestimmtheit” e “Stimmung”. Este último, como veremos adiante,
também irá ocupar papel fundamental na recente proposta de Hans Ulrich Gumbrecht
de um novo modo de ‘leitura’ para os produtos culturais (Cf. Gumbrecht, 2011). [...] O
intrigante na noção de Stimmung é que ela recobre tanto aspectos físicos e corporais
quanto psíquicos. Ou seja, dissolve a tradicional barreira estabelecida entre corpo e
espírito, entre material e imaterial (FELINTO, 2016, p. 23-24).
Abordar o gesto através de seu caráter fronteiriço serve-nos como ferramenta para examinar as
barreiras necessariamente borradas da fotografia cinematográfica - essa atividade mestiça [meio técnica,
meio arte; meio razão, meio emoção] que transita livremente entre vários campos do saber. Ao longo de
seus parágrafos, o filósofo empenha-se em fazer uma fenomenologia do gesto e esboça uma definição,
manifestamente inconclusa, com a qual podemos nos aproximar do gesto do [e no] cinema. Para ele, os
gestos podem ser compreendidos como movimentos do corpo, e/ou dos instrumentos e ferramentas unidos
a este, que expressam uma intenção diferente da razão (FLUSSER, 2014a, p. 249-254, grifo nosso). Mas o que
seria a expressão de “uma intenção diferente da razão”? O caminho percorrido por Flusser para chegar a
[...] E no que diz respeito ao termo “sentimento”, eu posso não conhecer o seu significado,
mas eu sei que ele significa algo diferente da “razão”. E já que eu sei aproximadamente
o que significa “razão”, esse entendimento negativo do “sentimento” é o suficiente.
Portanto, posso dar continuidade na consideração da sentimentalidade como sentimentos
gesticulados (FLUSSER, 1975 pp 4-5).
“representação simbólica dos sentimentos através dos gestos”] é da ordem da forma, da estética. Pois
se a expressão dos sentimentos pode se dar através de movimentos dos mais variados, é na maneira
com a qual eles se apresentam que reside sua potência em expressar aquilo que não pertence à razão.
Aquilo que não passa por uma interpretação racional. Aquilo que é compreendido pelos sentidos. Não
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pensar o cinema como uma expressão emancipada da razão. O que não seria nenhuma novidade,
pois isso vale para as artes como um todo [como aponta o próprio Flusser]. Porém, para além de seu
apartamento da razão, temos a articulação de sentimentos através de sua expressão. Como pensar a
expressão dos sentimentos do [e no] cinema? Através de quais dispositivos ela se manifesta?
Poderíamos tomar emprestado a inconclusa definição de gesto de Flusser e nela fazer uma
rápida [talvez leviana] adaptação: o cinema pode ser compreendido como movimentos do corpo, e/ou dos
instrumentos e ferramentas unidos a este, que expressam uma intenção diferente da razão. Assim sendo, a
operação dos corpos humanos - obrigatoriamente vinculados e processados por inúmeros artefatos -,
concebem os gestos cinematográficos. Sua expressão se dará sempre pela articulação entre imagens,
movimentos e sons e será fruto de uma infinidade de gestos individuas combinados. Cada gesto [do
gestos afinados sendo processados pelo gesto químico na inscrição em sua matéria.
Ao olharmos para as possibilidades de manipulação direta da matéria fílmica, este gesto raro que
se atreve a corromper a integridade da película, somos induzidos a logo pensar no chamado cinema
experimental. Não somos ingênuos em acreditar que o gesto químico seja algo exclusivo de experiências
visivelmente radicais. Pois não há filme sem gesto químico, ainda que estes gestos sejam padronizados para
tornarem-se invisíveis pelo desejo da indústria cinematográfica. O gesto químico está permanentemente
presente e encontra-se, muitas das vezes, escamoteado em uma disfarçada representatividade figural do
objeto filmado. Ou, nas palavras de Jacques Aumont (2004, p. 208) “a matéria fílmica está sempre contida
pela representação, ela nunca é autorizada a se exibir sozinha, mesmo que seus vestígios apareçam
às vezes”. No entanto, a subversão da forma no cinema, a explicitação de sua matéria, de sua carne,
alguns cineastas. Um momento clássico é aquele em que Alma (Bibi Andersson) resolve se vingar da
traição de Elizabeth Vogler (Liv Ullmann) em Persona (1966), [direção de Ingmar Bergman e fotografia
de Sven Nykvist]. Em casos como este, a intervenção explícita na película é protegida e legitimada pela
diegese. Portanto, não será no cinema narrativo que a matéria fará sua insurreição. A rara exploração
artística das camadas de composição do negativo e da cópia cinematográfica encontra seus pares na
história da fotografia.
Um claro exemplo disso é o artista [gravurista, escultor, pintor e fotógrafo] belga Raoul Ubac
(Rudolf Gustav Maria Ernst Ubach -1910-1985) participante do grupo vanguardista europeu Cobra de
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Christian Dotremont e editor, junto a Magritte, da revista L’invention collective (1940). Em sua permanência
na França durante a década de 1930 ele inicia uma série de fotografias sobre o Combate de Pentesileia
[a guerreira rainha das Amazonas morta em Troia pelas mãos de Aquiles]. A combinação técnica de
sobreimpressões nos fragmentos dos corpos femininos nus, subvertem a lógica bidimensional da
fotografia para tratá-la como uma construção de diversos materiais combinados no espaço a serem
entalhados pela luz na solarização. O resultado visual final, a nosso ver, está mais próximo dos painéis
em alto relevo esculpidos em mármore, como o Amazonmachy (batalha das amazonas) [obra feita entre
230-250 exposta no museu do Vaticano]. Em outras obras, como La Nébuleuse (1938), Ubac aposta menos
na sobreposição de retalhos da matéria e mais na dissolução física da emulsão fotográfica que se funde
à sua base, dando visibilidade às suas camadas constitutivas. Através do aquecimento [queima], num
verdadeiro derretimento do negativo [brûlage], ele revela a anatomia dos corpos expostos à dissolução
Algo de grande semelhança técnica e estética ocorre nos filmes Mues e Esquisse. Ambos são
resultado da pesquisa proposta por Nathalie Ménant a sua irmã Frédérique Ménant durante uma
residência artística em 2015. A primeira sendo artista plástica e a segunda cineasta. Seu projeto Mues
[troca de pele, troca de penas, muda, transformação] convida mulheres vinculadas à casa Joséphine [um
local de apoio feminino a mulheres em situação de risco] para que sejam modelos numa experiência bem
particular. Nathalie Ménant envolve os corpos dessas mulheres em gesso, não apenas para depois criar
estátuas vivas dessas molduras, mas principalmente para oferecer uma dimensão quase terapêutica de
“troca de pele”. Desta forma, esta carapaça, criada artificialmente pelos emplastros aplicados aos corpos
nus, servem como uma metáfora da própria rigidez corporal [e emocional] das mulheres com as quais ela
está trabalhando. Ao retirar estas cascas, o corpo fica desprotegido, sua fragilidade é exacerbada [como
em qualquer animal que tenha que passar por este ritual]. E este recolhimento em si, sem carapaças, a
nosso ver traz uma dimensão muito singular para o ato artístico. É como se pudéssemos olhar “de fora”
Nathalie chama sua irmã, Frédérique, não apenas para registrar esta experiência, mas para fazer
parte da exposição dos resultados com imagens em movimento projetadas por vezes sobre o gesso e
por outras em tela plana comum. Desta parceria surgem dois filmes Mues [ecdise, muda, troca de pele/
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O gesto químico: uma subversão da forma no cinema
pena] e Esquisse [esboço] , ambos filmados em 16mm e processados de forma artesanal pelo laboratório
película, por processos similares aos utilizados por Ubac, que Frédérique constrói sua leitura destes
corpos. A explicitação das camadas da matéria fílmica faze com que o próprio cinema se dispa de sua
em evidência a maleabilidade criativa da emulsão fotográfica e seu paradoxal apelo indicial; sublinha a
potência sensorial do cinema ao expor sua familiar estranheza, sua ambiguidade; corrompe os corpos
corpo humano e o corpo fílmico transformam-se em laboratório da matéria numa delicada liberação do
vestígio. “A poética da matéria e a exploração sensorial dos elementos formam um dos capítulos mais
belos da invenção cinematográfica [...], o cinema nos ensina ou nos lembra que a matéria é o tecido do
mundo. [...] Descobrimos através do cinema quão profundamente a assinatura plástica do mundo [...]
Referências
AUMONT, J. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
FELINTO, E. “Flusser e Warburg: gesto, imagem, comunicação” in Revista Eco Pós, 19, n. 1, 2016, p. 20-28.
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