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DA POESIA BRASILEIRA
ANGÉLICA FREITAS
2
FAMÍLIA VENDE TUDO
3
mas o avô tá com o pé na cova
família vende tudo
então já viu
no fim dá quinhentos contos
pra cada um
o júnior vai reformar a piscina
o pai vai abrir um negócio escuso
e pagar a vila alpina
pro seu pai com muito uso
família vende tudo
preços abaixo do mercado
4
NA BANHEIRA COM GERTRUDE STEIN
5
RILKE SHAKE
6
ESTATUTO DO DESMALLARMENTO
7
UMA CANÇÃO POPULAR (SÉC. XIX- XX):
8
ÍTACA
9
quem manda postais?
mande fotos digitais
torre no sol
leve hipoglós
em ítaca compreenderá
para que serve
a hipoglós.
10
3 POEMAS COM O AUXÍLIO DO GOOGLE
A MULHER VAI
11
A MULHER PENSA
12
A MULHER QUER
13
ANA MARTINS MARQUES (1977)
MARGEM
No final da página
como no final do mundo antigo
há um despenhadeiro.
14
LUGAR PARA PENSAR
15
SEDA
16
A QUEDA
As palavras
faltam
quando mais
se precisa
delas
são apenas
a sombrinha
do equilibrista
ajudam
talvez
mas não salvam
faltam
quando mais
se precisa delas
se você cair
de uma grande altura
por mais bonita
que seja a sua sombrinha
não conte com ela
para amortecer
a queda
17
IDEAS PARA UM LIVRO
I
Uma antologia de poemas escritos
por personagens de romance
II
Uma antologia de poemas-
-epitáfios
III
Uma antologia de poemas que citem
o nome dos poetas que os escreveram
IV
Uma antologia de poemas
que atendam às condições II e III
V
Um livro de poemas
que sejam ideias para livros de poemas
VI
Este livro
de poemas
18
PRIMEIRO POEMA
19
SEGUNDO POEMA
20
NUMA ENTREVISTA ANNE CARSON DIZ QUE
se a prosa é uma casa
a poesia é um homem em chamas
correndo rapidamente através dela
numa entrevista, quando lhe perguntaram
o que salvaria
se sua casa pegasse fogo
Jean Cocteau respondeu
que salvaria o fogo
no protocolo de incêndio
do condomínio do edifício JK
está escrito
não fique parado na janela sem nenhuma defesa
o fogo procura espaço para queimar
e irá buscá-lo se você não estiver protegido
e também: mantenha-se vestido e molhe suas roupas
e também: feche todas as portas atrás de você
e ainda: rasteje para a saída, pois o ar é mais puro
junto ao chão
e ainda: uma vez que tenha conseguido escapar,
não retorne
Um caramujo
como uma caixa de fósforos
que levasse nas costas
o incêndio da casa
21
RICARDO DOMENECK (1977)
CIGARROS NA CAMA
1.
22
3.
23
4.
24
5.
25
6.
Fumo na banheira
mas, com o cinzeiro
esquecido no quarto,
bato as cinzas na água
mesmo, pensando
que é simples
e é apropriado,
como se eu estivesse
me banhando nas águas
do Ganges
e os restos queimados
de mortos passassem,
descendo a correnteza
deste rio que confesso
mal saber onde
desemboca.
26
7.
27
9.
28
13.
29
15.
30
18.
31
estimulantes para o seu cérebro
cheio de cicatrizes, os moçoilos
chegam com as frases feitas
de um famoso discurso,
aquele que é tradicionalmente
intitulado “Vamos Ser Amigos”
na literatura secular
dos breakups.
Amigos? Criatura,
o que você
poderia me dizer que eu
já não saiba, que eu já não tenha
pensado em sentenças e proposições
muitíssimo mais elaboradas?
Tudo isso pensa o poeta
com um cigarro na mão esquerda
e a foto de um moço na direita,
chorando como uma solteirona
recalcada, uma criança mimada
que houvesse ouvido o advérbio
“não” pela primeira vez.
32
24.
33
27.
Acordo de novo
com a briga do casal vizinho.
Num misto
de generosidade e ironia
talvez cruel, começo
a tocar em alto volume
a ária da Carmen de Bizet.
Preferiria esmurrar a parede,
gritando para o prédio
todo, como eles, “tolos,
não apressem
o inevitável.”
34
VIDA LONGA À POESIA PURA
a Ezequiel Zaidenwerg
35
cantamos agora
apenas o pássaro
abstrato no galho
de uma árvore
que não sabemos nomear.
36
ANOTAÇÕES PARA UM PEQUENO TRATADO SOBRE O CÂNONE
37
FABRÍCIO CORSALETTI (1978)
DESPEDIDA
o chão da cozinha
está de novo inundado
vou chamar o encanador
farei o possível
pra não arrotar na mesa
nem ter um ataque de riso
na delegacia
de agora em diante
a civilização pode contar comigo
__
mas como despedida
só por um momento
quero pensar que sou um pato
38
um pato gordo
e libidinoso
à beira da lagoa
correndo atrás de uma pata
Esquimó, 2010
39
PENÚLTIMO POEMA
minhas lágrimas
meus desejos
meus remorsos
Esquimó, 2010
40
MARÍLIA GARCIA (1979)
AQUÁRIO
41
INFERNO MUSICAL
I.
o que explicou sobre a melodia
de sistemas não fazia sentido pois
dessa vez não havia
som algum.
– é uma deformação, quase um inferno
musical que,
ao transbordar,
congela,
como o mármore, o tombo ou
o tapa. poucos usam a palavra anti-
harmonia ou anti-
densidade (nada se acopla
com nada aqui)
a vida se divide em
duas partes móveis e você pode
entrar numa melodia circular
atrás da configuração correta
II.
– ezeiza es um sitio que no
existe mas chegar é repetir o
gesto inexistente, como dizer uma
frase sem som ou se tornar o mesmo
uma semana depois no momento em que
a aeronave se desloca com
mais esforço.
no desenho tenso da esteira
a única mala – para tomar a estrada
de noite no deserto asfixiante
e escuro.
42
BLIND LIGHT
43
digo que o olhar se dirige para baixo
se me refiro a quem está de fora da configuração
deitado-boiando
ou se me refiro à nossa posição em relação à terra
o olhar se dirige para a frente
mas essa pergunta me interessa também
pela possibilidade de transformar o espaço
a partir de uma mínima decalagem da linguagem
um pequeno detalhe destaca a forma de ver as coisas
e faz pensar em conexões e relações
que não existiam ali antes
um pequeno detalhe redimensiona por exemplo
o espaço
e a nossa forma de entendê-lo
criando deslocamentos produtivos
mesmo que “produtivo” num sentido contrário
ao que se costuma usar
um produtivo só no plano pessoal
que me faça perceber o meu mundo de outro modo
o que eu queria
era me apropriar dessa possibilidade
de mudar de direção
e de refazer as conexões
levantada pela pergunta da hilary
há uma semana
participei do encontro autoria e teorias
no centro universitário maria antonia
a convite do mauricio salles vasconcelos
no primeiro dia do encontro
o agustín fernández mallo
contou sobre a trilogia nocilla dream
escrita quando ele estava com o quadril quebrado
>
44
deitado em uma cama na tailândia no segundo dia
o damián tabarovsky comentou seu ensaio
a literatura de esquerda e no terceiro dia li este texto
que começou com a pergunta da hilary
já citada
depois na mesma mesa
o roberto zular falou sobre as muitas vozes que existem hoje
e sobre as ficções performativas
depois na mesma mesa
foi a vez do paulo ricardo
alves o paulo ricardo alves analisou
a poesia do zular e a minha
por fim
conversamos com o público
depois mudei pequenas coisas no texto
inserindo comentários como este aqui
e incorporando a conversa que tivemos no dia
1.
no filme pierrot le fou de jean-luc godard
tem uma cena em que os amantes ferdinand e marianne
estão fugindo em um carro conversível vermelho
por uma estrada ensolarada
no litoral sul da
frança
45
nesta cena de pierrot le fou
o diálogo que ocorre entre ferdinand e marianne
tem um tom bastante leve
para a gravidade do assunto
eles discutem o que farão agora
depois de fugirem juntos depois que ele largou mulher e filha
depois de se envolverem com tráfico de armas
com um assassinato e de roubarem este carro
ferdinand quer parar em alguma praia tranquila
e ficar com marianne por um tempo
ferdinand diz mais de uma vez que está apaixonado
mas marianne responde que eles precisam de dinheiro
ela sugere que procurem seu irmão para conseguirem grana
e poderem ir para um hotel chique se divertir
46
no produto final
irrompe no filme criando uma descontinuidade um furo
o que sinto ao pensar em você
ela disse
é um furo
se penso na poesia
quais recursos ao lado do corte
poderiam contribuir para tornar o poema
um poema?
2.
a poeta polonesa wislawa szymborska
começa um discurso sobre poesia
dizendo que o mais difícil de um discurso
é a primeira frase
mas que mesmo depois de ter começado
continuar o discurso será tão difícil quanto começar
pois ela vai falar de poesia
e por que é assim tão difícil falar
de poesia?
a poeta polonesa wislawa szymborska
foi publicada em livro no brasil em 2011
um dia conversando com o rafael montavani
ele disse que estava tentando escrever
usando o mesmo registro de escrita de wislawa szymborska
ao ler seu livro anterior
percebi que havia outra presença
percebi que havia a presença de adília lopes ali
adília lopes aparecia de forma mais sutil
em um tipo de humor nonsense
no uso da série no uso das paranomásias
ou ao tratar de algumas questões como o feminino
>
47
o diálogo com adília lopes atravessa
o livro de rafael em várias direções
3.
giorgio agamben diz que
no cinema
a montagem é feita de dois processos corte
e repetição
parece que o giorgio agamben
está falando de poesia
posso deslocar a leitura de giorgio agamben
(ou cortar)
e repetir para pensar na poesia
corte e repetição
4.
a poeta portuguesa adília lopes
foi publicada em livro no brasil em 2002
desde então alguns escritores no brasil
dialogam com a adília lopes
citam a adília lopes
incorporam versos tom humor
da adília lopes
produzindo furos na própria escrita
por onde podemos ouvir a
adília lopes
48
5.
já falei da hilary kaplan
a hilary kaplan morou no rio de janeiro entre 2011 e 2012
a hilary kaplan está na capa da modo de usar & co. 3
agora a hilary kaplan mora em los angeles
a hilary kaplan traduziu alguns textos meus para o inglês
durante o processo conversei com a hilary kaplan
sobre tradução a hilary kaplan
fez perguntas sobre os poemas
depois a hilary kaplan partiu para casa
depois fiz um poema para a hilary kaplan
chamado “uma partida com hilary kaplan”
essa partida é um diálogo com hilary kaplan
essa partida é uma forma de partir com a hilary kaplan
para fazer esse texto
me apropriarei das perguntas da hilary kaplan
e coloquei em versos
usei o mesmo procedimento de charles bernstein
ao fazer “um teste de poesia”
o resultado é uma lista de perguntas sobre a linguagem
o resultado é uma lista de perguntas sobre os poemas
o resultado está na página 87 deste livro
muitas das perguntas da hilary kaplan
não consegui responder
porque exigiam que definisse questões no texto
onde eu queria manter a dúvida
por exemplo tem o caso dos pronomes
posso omitir os pronomes em português
e não dizer quem é o sujeito da ação
eu gosto de omitir os pronomes em português
e criar essa confusão
muitas vezes a gente não sabe quem é o responsável pelas coisas
e dizer isso com a linguagem
>
49
ajuda a pensar
se uso um verbo como “disse” sem pronome para definir
então
o sujeito da ação pode ser tanto ele disse
quanto você disse quanto ela disse
quanto eu disse
assim poderia manter uma suspensão
sobre quem disse o quê
e quem fez o quê
afinal
quem disse o quê? você pergunta
mas vai saber
é provável que todo mundo fuja pouco a pouco
o que é bem normal
discretamente tudo vai se eclipsando
ela disse
mas afinal quem foi o responsável?
de todo modo em inglês
era preciso definir os pronomes
em alguns casos a hilary kaplan
buscou maneiras de manter o discurso aberto
usando outros recursos
esta é uma forma de pensar nas possibilidades da língua
a partir de outra língua
esta é uma forma de pensar em si
a partir do outro
50
talvez o discurso possa seguir
circulando talvez importe fazer
perguntas e não definir quem fez
o quê
6.
o filme la jetée do chris marker
é todo feito a partir de fotografias imagens fixas
que vão passando pouco a pouco
como um filme antigo
o cinema hoje também é feito a partir de imagens fixas
mas são usadas 24 imagens por segundo
o que produz a ilusão do movimento
no filme de chris marker
ele usa a mesma imagem por vários segundos
deixando o espectador ver as imagens fixas
ele chama esse filme de fotonovela
uma linha aos olhos é uma sequência
de pontos
7.
quando traduzo um poema
escrevo um poema que não seria escrito
na minha língua
mas que ao ser traduzido acaba sendo escrito
na minha língua
quando traduzo um poema
penso em algumas questões que não seriam colocadas
por um poema na minha língua
mas que acabam sendo colocadas ao se traduzir este poema
quando escrevo um poema
já tendo traduzido outro poema
que não seria escrito na minha língua
>
51
será que esses dois gestos
se atravessam?
8.
o anthony gormley
fez uma instalação chamada
blind light
blind light parece um quadrado que cega
pois aqui a luz faz o contrário de
iluminar ele diz
que a arquitetura serviria para dar segurança e certeza
acerca do lugar onde estamos
a arquitetura deveria proteger
do clima do frio da incerteza
mas blind light mina as coisas
entrar no espaço interior equivale a sair
a estar no topo de uma montanha
ou na borda do mar
9.
em 1965 o escritor americano charles reznikoff
escreveu um livro chamado testemunho
ele usou tesoura e cola
charles reznikoff recortou e colou
depoimentos de testemunhas de crimes ocorridos
no final do século XIX nos estados unidos
charles reznikoff versificou e reordenou os textos
de acordo com alguns critérios como
região onde o crime ocorrera ou tipo de crime praticado
52
em 2006 o escritor argentino pablo katchadjian
colocou o poema “martín fierro”
em ordem alfabética e publicou o livro
o martín fierro ordenado alfabeticamente
53
o procedimento está presente em tudo
mesmo que não seja repetido tal e
qual mesmo que não seja repetido
tal e qual mesmo que não seja
repetido
10.
um dispositivo que produza repetição
pode produzir novas formas de
percepção?
11.
quando li este texto
há uma semana
lá no encontro no centro universitário maria antonia
o damián taborovsky me fez uma pergunta
acerca dos procedimentos de recorte e colagem
que eu estava citando
o damián tabarovsky disse que havia
um humor nesses textos
que não estava explícito na minha fala
o damián queria saber como eu lidava com isso
na hora em que respondi à pergunta do damián
me atrapalhei
na hora de responder às perguntas eu costumo me atrapalhar
acho que não escuto o que as pessoas estão dizendo
fico querendo resolver o problema em vez de manter
o diálogo e a escuta abertos
talvez eu não tenha escutado a pergunta
do damián
pensei
por quanto tempo você consegue prender a respiração
debaixo d’água?
>
54
vou tentar manter a escuta aberta
depois já em casa
conversando com o leo sobre a pergunta do damián
vi que faltou falar sobre os documentos
poéticos
faltou falar que esses textos podem ser lidos
como documentos poéticos os documentos poéticos
são textos que trabalham com um material preexistente
que carregam informação
de um lugar para outro
mudando a forma
dando a ver algo que não estava claro
na disposição inicial os documentos poéticos
são instrumentos de descrição e compreensão do mundo
e servem como ferramentas conceituais e perceptivas
para ler o que está ao redor
o poeta francês frank leibovici
escreveu um livro chamado documentos
poéticos
no qual descreve este procedimento na obra do
charles reznikoff e do artista plástico
mark lombardi
mark lombardi tentava montar diagramas
a partir das notícias que lia no jornal
sobre as redes internacionais
de crime e terrorismo
nesses diagramas mark lombardi dispunha as relações
entre figuras públicas países personalidades
buscando perceber algo que não existia na poética isolada
os desenhos de mark lombardi são usados pelo fbi
porque mostram relações que não estão evidentes
de outra forma
o frank leibovici
>
55
também escreveu seu livro achado o portraits chinois
onde recorta relatos e textos da internet
de reféns sobrevivientes das guerras
do iraque e do afeganistão
os documentos poéticos servem para repensar
o mundo
mas a poesia não serviria para isso
também? você pergunta
e eu não sei para que serve a poesia
e eu penso na resistência e nos resistores na eletricidade
na eletrônica nos chips nos codecs
e nos testes os testos todos os testes para sobreviver
e afinal quem disse o quê?
56
eu não saberia definir o que são
os documentos poéticos
mas quando são documentos
poéticos
eu diria ao damián
que o martín fierro ordenado alfabeticamente
poderia ser um documento poético
12.
em 1999 vi uma exposição no centro cultural hélio oiticica
lembro da luz que fazia naquela tarde
lembro da luz que entrava por uma janela no segundo andar
e transformava a sala de
exposição
lembro dos mapas atravessando toda a sala
os mapas espalhados sobre colchões
um colchão ao lado do outro colchão
lembro de sair de lá
e caminhar pelo centro do rio
rua luís de camões avenida passos
lembro da luz que fazia naquela tarde
blind light
13.
entrar no espaço interior equivale a sair?
14.
de que maneira uma tradução
quando entra na língua de chegada
>
57
pode deslocar o corpo do que se escreve ali
e refazer a roda de leitura e produção?
de que maneira um poeta escrevendo na mesma língua
como é o caso da adília lopes
pode entrar no corpo da literatura
e ser lido como tradução?
15.
eu acho que aqui em são paulo
as pessoas costumam atravessar a rua na faixa de pedestres
eu acho que aqui em são paulo
as pessoas não têm a mania
de atravessar a rua no meio dos carros
é o que tenho pensado aqui em são paulo
como é agradável a sucessão
de palavras
disse a gertrude stein
no dia em que fui falar no centro universitário maria antonia
tomei o metrô para chegar na vila buarque
entrei na estação ana rosa tomei a linha azul direção tucuruvi
desci na sé baldeei para a linha vermelha
direção palmeiras barra funda e desci na república
na república caminhei pela avenida ipiranga
depois pela consolação e cheguei na rua maria antonia
antes de pegar o metrô na estação ana rosa
atravessei a rua na conselheiro rodrigues alves
ao atravessar a rua estava fora da faixa de pedestre
olhei e não vinha carro
os carros estavam parados num sinal lá longe
então atravessei fora da faixa de pedestres na altura
do supermercado pão de açúcar
mesmo sem nenhum carro vindo
como estava fora da faixa de pedestre atravessei correndo
>
58
quando estava no meio da rua
já chegando na última pista
saiu um carro do estacionamento do supermercado
a motorista estava olhando na direção oposta
para ver se não vinha nenhum carro
para ver se ela podia entrar na última pista
e como estava olhando na direção oposta
não viu que eu estava entrando com toda pressa
na frente do carro dela
eu estava correndo e não tinha mais como parar
já tinha entrado na frente do carro dela
16.
em 1989 emmanuel hocquard escreveu um poema
longo chamado
“dois andares com terraço e vista para o estreito”
>
59
emmanuel hocquard é um poeta francês
que nasceu em 1941
no poema longo
“dois andares com terraço e vista para o estreito”
emmanuel hocquard narra uma viagem
que faz a tânger no marrocos
cidade onde passou a infância e adolescência
quando ele escreve este poema longo
estava há vinte anos sem ir a tânger
60
em 2007 traduzi esse poema longo
“dois andares com terraço e vista para o estreito”
em 2009 fui para a frança conhecer o emmanuel hocquard
e escrevi o engano geográfico
contando essa viagem
para a escrita do engano geográfico
me apropriei do poema
“dois andares com terraço e vista para o estreito”
citando versos e me aproximando do seu tom
minha viagem é feita pelo espaço
pois vou até lá e descrevo o percurso
mas também pelo tempo como no poema dele
com a sobreposição de mapas afetivos
e lembranças
com a repetição de frases e espaços
61
17.
a poeta polonesa wislawa szymborska diz que sente dificuldade
de continuar um discurso depois de já ter começado
por causa do assunto que está tratando a poesia
por que é difícil falar de poesia?
quando escrevo um poema
procuro uma espécie de abertura de repetição de diálogo
além disso
tento entender alguma coisa
talvez algo impreciso inicialmente
mas que no processo se torna mais claro
e tento dialogar
com um repertório de pessoas e objetos e situações
e textos listar essas ferramentas
e traçar um fio depois reordenar o discurso
de modo que isso possa ajudar a pensar
e a passar
os dias
com essas ferramentas
busco ideias que possam servir
>
62
para me levar por essa cartografia
ideias que são procedimentos
diante dessas ferramentas
o processo tem algo de permeável
que torna a escrita imprevisível
depois de pronto o texto estabeleceu suas conexões
tornou-se uma forma de leitura das coisas
talvez seja difícil falar de poesia
porque em geral tentamos falar desse processo
a partir de algo que não é processo
e o processo escapa porque
ao falar dele
já não estou nele estou do outro lado
falar é repetir
mas repetir depois e de outra forma
falar é insistir
assim ao repetir o processo
produzo outro processo
performatividade
ele diz
com quem você está falando?
ele pergunta
e eu tento descobrir quem é ele
18.
no filme pierrot le fou de jean-luc godard
quando marianne pergunta a ferdinand
“com quem você está falando?”
sua pergunta nomeia a ideia de destinatário
com quem você está falando?
quem está aí? quem está ouvindo?
é um diálogo?
>
63
posso perguntar também
quem está falando no filme
ferdinand? marianne?
godard se dirigindo ao espectador?
talvez importe fazer
perguntas
19.
em 2008
para participar de uma antologia
em homenagem a ana cristina cesar
fiz um poema chamado
“a garota de belfast
ordena a teus pés
alfabeticamente”
o poema partiu de uma brincadeira de leitura
peguei todos os versos do livro
a teus pés
e coloquei em ordem alfabética
foi uma maneira de ler o livro de ana c. de outra forma
de deslocar o contexto de onde tinham saído os versos
para poder perceber outras relações a partir
dos próprios versos
foi uma maneira de conhecer ana c. outra vez
parece que a gente está sempre buscando conhecer de novo
refazer o caminho até as coisas
percebi por exemplo que a palavra “atravessar”
se repete muitas vezes no início dos versos
ou então que o “agora” é o marcador temporal
mais frequente ocupando o início dos versos
o procedimento deixa a gente curioso
para ler por exemplo
quais são as linhas que começam com o pronome “eu”
>
64
nos poemas de ana c.
ou pelo “você”
há algumas semanas
para o lançamento da obra poética de ana c.
preparei um vídeo a partir desse poema
queria descrever concretamente o processo de feitura
de algum modo essa prática é como a da escrita
escolhi um filme da cineasta belga chantal akerman
je, tu, il, elle
e recortei quatro cenas
o filme parecia um banco de dados
queria pegar uma imagem
que dialogasse com o poema
uma imagem fora do contexto
mas trazendo dele rastros restos
uma imagem que pudesse estabelecer relações com o texto
escrever também pode ser assim
às vezes basta um verso uma fala solta
que possa se encaixar e transformar um poema
a fala não traz nada do seu contexto inicial?
ele pergunta
seleciono as cenas do filme para importar no adobe pro
depois importo o áudio com a leitura do poema
a partir daí
passo a recortar as cenas
montar repetir avançar
ouvir o ritmo do texto a voz da imagem
em movimento
então insiro texto sobre isso tudo
>
65
para dialogar com o que está acontecendo
de algum modo é como escrever
e o resultado imprevisto
o vídeo está aqui
https://www.youtube.com/watch?v=BA4UgPVVwIQ
e o texto na página 41
20.
em 2007 escrevi o livro 20 poemas para o seu walkman
tentando pensar em espaços e mapas
que não têm a escala habitual ou que podem ser
redimensionados que importam menos
como representações de lugares que existem
e mais como lugares que fazem conexões
dessas representações com outras coisas
o aníbal cristobo me disse uma vez
que pareciam paisajes visitados en extrañeza
nesses mapas
cabe a pergunta de hilary kaplan
quando olho para os pés boiando
olho para a frente ou para baixo?
66
as narrativas são entrecortadas
contadas só pela metade
aqui o país não é o mapa
21.
no dia do encontro
lá no centro universitário maria antonia
o paulo ricardo alves fez uma leitura dos meus livros
a partir da ideia do walkman
e do texto do iain chambers
the aural walk
a análise dele buscava pensar em como um dispositivo
por exemplo o walkman
pode mediar nossa experiência com o mundo
e transformar a percepção que temos das coisas
depois da mesa
alguém fez um comentário sobre a fala do paulo ricardo
e eu lembrei da pesquisa do rodolfo caesar sobre o
loop
o rodolfo caesar é um compositor o rodolfo caesar
compôs uma peça chamada círculos ceifados
o rodolfo caesar tem uma pesquisa sobre o
loop nessa pesquisa o rodolfo caesar
procura pensar na repercussão do loop
a partir da invenção do sillon fermé
sulco fechado risco do disco? você pergunta
o rodolfo caesar procura identificar
formas de loop no pensamento
antes da invenção do sulco do disco
um dispositivo que produza a repetição
como o sulco do disco
pode produzir novas formas de percepção?
talvez importe fazer perguntas
>
67
e saber dizer
sim
o rodolfo caesar fez uma peça musical
com um poema do meu livro chamado “aquário”
o rodolfo caesar pensava na ideia
do poema para tocar no walkman
como uma voz interna tocando
quando ele me explicou
pensei na voz girando dentro do loop do aquário
falei para ele que eu também pensava no walkman
com a possibilidade de um mundo em deslocamento
da escuta do mundo em deslocamento
lembrei do poeta argentino
oliverio girondo
em 1922
oliverio girondo escreveu um livro chamado
20 poemas para ser leídos en el tranvía
seus 20 poemas estão em movimento
seus 20 poemas carregam o leitor
pelas linhas do bonde
são apuntes callejeros
seus 20 poemas caminham com a escuta aberta
o rodolfo caesar propôs de sairmos na rua
com um gravador e a escuta aberta
um dia saímos na rua almirante alexandrino
era um fim de tarde de 2008
bonde alguns carros passando
e gravamos o poema caminhando
o rodolfo caesar me disse nesse dia
seu poema tem 15 passos e eu fico sempre pensando
em quantos passos tem cada poema que leio
depois o rodolfo caesar fez a peça musical “aquário”
usando os sons da almirante alexandrino
um loop do mahler de 1911
68
e a gravação que fizemos com a leitura do poema
a peça está aqui
sussurro.musica.ufrj.br/abcde/c/caesarrodolf/20082009/Aquario.mp3
22.
o filme la jetée do chris marker
é todo feito a partir de fotografias imagens fixas
que são repetidas por vários segundos
e dão a ideia de uma fotonovela
há uma única cena em movimento no filme inteiro
nessa cena
a mulher do passado
a que aparece sorrindo na foto do terminal de orly
a que o protagonista volta para encontrar
>
69
está dormindo
aparecem várias imagens fixas dela em posições diferentes
sempre dormindo
até que nessa cena
a única cena do filme em que ocorre o movimento
ela acorda
e olha para a
câmera
23.
ao escrever o engano geográfico
tomo o poema de emmanuel hocquard
uma narrativa de viagem
como modelo para narrar a viagem que fiz até ele
faço minha viagem com um caderno
pensando no poema dele
escrevo a viagem
e ela acontece
a viagem de emmanuel hocquard
é uma viagem na direção do passado
já que ele se desloca em busca da memória
repito a viagem dele de outra maneira
pois não vou a tânger nem volto ao passado
sua viagem a tânger será aqui ele me disse um dia
será que a minha viagem seria
na direção do futuro?
estamos no futuro
diz o filme do chris marker
o procedimento de fazer uma viagem
me leva ao lugar me leva ao ter lugar
na leitura do outro
acabamos por chegar em nós mesmos
ele diz
>
70
e eu olho para a câmera
no livro 20 poemas para o seu walkman
depois de percorrer tantos caminhos
não encontrei o que eu buscava
eu nem sabia o que eu buscava
mas não encontrei
os personagens voltam em momentos diferentes do livro
tentando sobreviver em uma geografia estranha
se afogam se perdem não têm uma bússola
para achar os caminhos
nem um gps pensando no leitor do ipod
mas o caminho é feito
cruzando as linhas do poema
e atravessando
os furos
24.
em 1999 vi uma exposição no centro cultural hélio oiticica
do guillermo kuitca
lembro da luz que fazia naquela tarde
lembro da luz que entrava por uma janela no segundo andar
e transformava a sala com a exposição do guillermo kuitca
o guillermo kuitca é um artista plástico argentino
que trabalha com mapas o guillermo kuitca disse
que consegue ver no seu trabalho uma linha quase reta ligando
os mapas rodoviários os mapas de cidades
as plantas baixas e as pinturas para cenários teatrais
mas cada série de obras
começa mais como uma visão
do que como um projeto
71
HOLA, SPLEEN
um dia
ela me disse
“hola, spleen”
e eu demorei mas depois
percebi que era uma
frase sobre
o tempo.
talvez
um jeito de dar
as boas-vindas,
mas a gente nunca sabe
o que vem depois.
um dia quis ler em voz alta
um poema chamado
“hola, spleen”,
mas quando chegou a hora
fiquei muito muito gripada,
e o que foi pior
o que me impediu de ler
foi que fiquei
sem voz.
se tivesse gravado
o poema antes,
podia ligar a voz
e tocar em vez de ler,
mas eu não tinha
uma voz gravada
e não havia como produzir
voz.
72
então, combinei
que faria a leitura outro dia
e ainda faltava um mês
para chegar a leitura que vou chamar
aqui de caixa-preta
e eu não tinha ideia
de como eu estaria no dia da caixa-preta
e pensei que se este mês
seguisse o ritmo acelerado
e catastrófico deste e do último ano
tanta coisa já teria
acontecido hoje,
que me dava medo
imaginar.
assim,
esta voz que fala aqui
é a voz de uma marília de um mês atrás
é a minha voz falando a partir do passado,
é a minha voz,
mas sem controle.
73
ou fazendo sol,
se faria frio ou não,
e se haveria poeira no ar.
eu sempre me surpreendo
com a poeira que turva a vista:
de repente no meio do dia
uma poeira que se ergue,
uma nuvem
de poeira,
pode ser a poeira vinda das coisas quebradas
todos os dias na vida das pessoas
e eu fiquei pensando
se estaria muito seco nesse dia ou não
e pensei que talvez a gente pudesse
fazer silêncio
e deixar a escuta aberta
para ouvir.
talvez a gente pudesse fazer silêncio
e de repente neste silêncio
acontecer de ouvir algo por detrás
dos ruídos das máquinas voadoras que
cruzam o céu.
74
estrelas caindo do céu
em cima da cabeça
com as pontas viradas
para baixo.
o som está cada vez mais perto,
posso encostar a mão
se me viro vejo a sombra
em câmera lenta
sobre a cabeça.
75
LEONARDO GANDOLFI (1981)
76
pensada na voz do outro mesmo que do nosso jeito.
Não importa quem gravou o quê nem para quem
fazemos o que fazemos. Que bom que uma ideia
pensada na voz do outro ainda é uma ideia pensada
na voz do outro. Aliás uma vez me disseram
não lembro quem que vítima e carrasco disputam
o mesmo tempo. Pouco importa, queridos fantasmas,
dezembro está aí e evitar mal-entendidos é que é bom,
venho repetindo isso para mim mesmo todos os dias
embora eu ainda não consiga abrir mão de duas
ou três segundas intenções que até hoje, acho,
nunca fizeram mal a ninguém. Muito pelo contrário,
é justamente isso o que mais tem nos aproximado.
77
EFEITO DOMINÓ
78
ou à minha mãe. Isso não é coisa que se faça
sobretudo à minha mãe ou a meus amigos.
O que fariam com uma dedicatória? Ainda mais
com uma de gosto tão duvidoso. Par além daquilo
que aqui só a mim interessa este último poema talvez
se arrependa de algumas coisas mas não de todas. Por
causa disso tem consciência tanto da sua fragilidade
quanto da nossa. É que embora conheça de perto
a natureza da ficção errou por ter chegado muito
tempo depois, alguns anos, eu diria. Por isso
parece desconfiar do significado de tudo
aquilo que fizemos, melhor, de tudo aquilo
que um dia eu deveria ter feito. Não importa,
talvez não voltemos a encontrar por aqui tiros
perseguições ou coisas do gênero mas apenas
uma lembrança, a de que a poesia – inclusive
maus poemas assim – é feita de uma mesma
substância escura, distante e por isso nossa.
79
CRONOLOGIA
80
DIAS COM CIMENTO
81
INSERT COIN1
1“Insert coin” reúne uma série de poemas do livro Escala richter. Os poemas aqui reunidos até
a p. 91 fazem parte dessa série.
82
No ano em que você nasceu
a comemoração de 15 anos dos Trapalhões.
Seu pai trabalhava na Casa da Moeda
e ganhou uma das 60 moedas cunhadas
especialmente para a homenagem.
Num lado o aviso da efeméride
no outro à maneira de charge
quatro efígies e uma data abaixo.
Após 12 anos, o mesmo pai, testa
em frisos, chama o garoto, feliz aniversário.
Ele mostra a data na moeda e diz
abre a mão, segura, é da sua idade.
83
Mesa à esquerda
alguém de nome Flávia
conforme descobri há pouco
centraliza uma conversa
não só com alguém de nome
Bruno, mas também com alguém
de nome Letícia conforme também
descobri há pouco. Não sei quem
dorme com quem, sei apenas
que alguém dorme com alguém ali.
Enquanto isso, mesa à frente
uma criança de nome Paulo
conforme fico sabendo mais tarde
atira o primeiro dos sachês de açúcar.
84
Para fins de calendário
19 de abril, tanta coisa pode acontecer
e deixar de acontecer. Exemplo, 19 de abril
nasceram Roberto Carlos e Manuel Bandeira
19 de abril morreram Octavio Paz
e Charles Darwin. Pudera
morrem uns, nascem outros, pudera
quando Isolda chegar, abandonarei
meus vizinhos de mesa
seguirei para Mariana, lá
além de outras ladeiras visitaremos
mãos dadas e falta de ar
outras demonstrações públicas de talento do Iphan
para demolições a médio prazo.
Por ora ela não chegou, por ora nosso amigo
Paulinho, assim a mãe o chama, terá tempo
para mais duas ou três demonstrações de afeto
por seus pais ao berrar e arremessar
sachês de açúcar, fechados ou não, nas mesas ao redor.
Para fins de calendário, 19 de abril
por ora esqueci de mencionar
para além das idas e vindas neste dia
– Octavio Paz Roberto Carlos Charles
Darwin Manuel Bandeira – 19 de abril
foi dia em que fotografaram o monstro do Lago Ness.
Enquanto ele emerge preto e branco de gélidas
e escocesas águas, afundamos – eu os pais de Paulinho
e tantos outros personagens em marcha –
num pastoso e cinzento material de fabricação própria.
85
falando que seria impossível passar sem
o Romanceiro da Inconfidência.
Você falou que não, que o verso era só
por praticidade e que já tinha até colocado
os Trapalhões, ele disse então que já era.
Sim já era e você nada pode fazer
a não ser ficar pensando também que sim
já era mas que os amigos sao sempre os amigos.
86
A viagem é breve, chegamos
à Mariana e, acho, Isolda fez um bom negócio.
Se o novo par de sandálias não é mais bonito
que o anterior, com certeza é mais resistente
terá maior sobrevida, em vez de um dia
em dois arrebentará. Tomara que não.
Depois do sorvete, o casal chega
ao lugar onde a partir de agora toda ação transcorrerá.
A igreja de São Francisco de Assis
não confundir com a de Ouro Preto
localizada numa espécie de praça ao lado
da igreja de Nossa Senhora do Carmo, o sol luzente
gente entrando e saindo mas
agora, parece, um senhor de plantão nos perguntará
querem visita guiada? histórias sobre
a igreja e o que fez-não-fez o Aleijadinho lá dentro
coisas do tipo. Esse circuito histórico
em ruínas gerou um profissional atípico
metade guia turístico metade pedinte.
Ele vai pedir uns R$ 30,00.
Deixa pedir, a gente finge que não ouviu.
Aí vem ele e agora?
Pergunta se pode tirar uma foto nossa.
87
O pai chama, mostra a data
para dizer que é também por conta dela
e não só dos Trapalhões que a moeda te pertence
mas a menor distância entre dois pontos
nem sempre é uma reta e você perde a moeda
como a dizer que sim, é só por conta dos Trapalhões
e não da data que a moeda te pertence.
A menor distância entre dois pontos
nem sempre é uma reta, pior, a maior distância
entre dois pontos pode ser justo uma reta
melhor dizendo, anos depois, o mesmo pai
um pouco mais gordo um pouco mais sozinho
devolve a moeda a quem a perdera, devolve
como se a única coisa que restasse a pais e filhos
fosse não perdê-la. Você olha a data e os rostos
cunhados de Didi Dedé Mussum Zacarias.
Se isso fosse mesmo sério, alguém perguntaria
cara ou coroa? mas não e você ainda está ali
olhando a data e os rostos cunhados de Didi Dedé
Mussum Zacarias, quase nada vem à sua cabeça
nem mesmo a data, só os rostos cunhados de Didi
Dedé Mussum Zacarias. É da sua idade, tinha dito.
Mais cuidado dessa vez, ele te diz agora e sorri.
88
Manuel da Costa Athayde nasceu
em Mariana, 1762, pintor do período colonial.
Sua obra-prima, o forro do teto da igreja
de São Francisco de Assis Ouro Preto
gostava de cores vivas, pouco contraste
com o escuro, grande predileção pelo azul
seus anjinhos guardam um quê de mulatos.
Sobretudo durante o período de 1781-1789
trabalhou com Antônio Francisco Lisboa
encarnando algumas de suas esculturas, morto
no ano da graça de 1830, o corpo está sepultado
aqui na igreja, bem ali em frente, querem ver?
Poderia ser essa a explicação vendida
pelo tal guia turístico e mendicante.
Não foi o caso, agora ele acompanha um casal
de meia-idade e seus três filhos, dois meninos
uma moça. Nessa hora me vêm à cabeça
Paulinho e seus sachês voadores, imagino-o
gritando e jogando açúcar por todo lado
principalmente no cabelo das imagens.
89
Não podendo
corresponder às indicações
bibliográficas do mencionado
amigo, você recorre
ao que costuma recorrer
quando faltam palavras
pensando que às vezes
até pode ser bom faltarem
palavras. Alguns anos depois
você saca da estante as últimas
aventuras segunda Tirésias.
Entre um e outro balãozinho
as letras se confundem
como então só costuma acontecer
com a melhor tradição oracular
there’s a crack in everything
that’s how the light gets in.
90
A atenção se esforça entre as marcas
de umidade na parede, uma ordem arbitrária
surge, tipo especial de verdade que rouba
ao invés de dar. Roubo, alguém grita
e é seguido por um segundo que confirma. Roubo.
Um terceiro aparece e não se faz de rogado.
Onde? Se pudesse haveria uma banda e ela
estaria tocando Stardust. A pergunta não muda
e a atenção se esforça, marcas de umidade
ordem arbitrária, parede, marcas, umidade.
Alguém grita. Roubo. Um instante, diz o segundo.
Onde? pergunta um terceiro. No adro
da igreja de São Francisco de Assis Mariana
ou no número um oito nove de uma rua remota
em um Rio de Janeiro mais remoto ainda? Ignoramos.
Respingos voam. Atingem a espessa superfície
escamosa. Respingos voam e é de 1934 a foto
do monstro do Lago Ness. Seu pescoço se vira
e, numa direção que poderia ser a minha, ele diz
obrigado por todos esses anos.
91
Duas horas antes, ainda
na pousada, a carteira rasgou
decidi que não ficaria muito abalado
e por ora transferi meus pertences
seis notas de 20 duas notas de 50
cartão de crédito e carteira de motorista
para a bolsa de Isolda, exceção feita
à moeda da sorte. Com meu retrospecto
achei melhor deixar no bolso esquerdo
da camisa. Afinal eu já estava decidido
a não me aborrecer. Meu melhor sorriso
para um forro decaído e suas imagens
cadentes, quando Isolda chateada
com o peso da bolsa pergunta
vamos almoçar? Nisso estou diante
de um Jesus Cristo de roca, roupa
de pano, cabelo humano.
92
Manuel Bandeira e Roberto Carlos
fazem aniversário no mesmo dia
hoje é 19 de abril e você se sente bem
com a viagem e melhor ainda com o acaso.
A Isolda não interessa tanto
esse acaso, mas ela também
se sente bem com a viagem.
Segundo fontes confiáveis
desde que soube, Roberto Carlos acha
bom o acaso envolvendo Bandeira e ele.
Quanto a Bandeira, não dá pra saber
e além disso o importante é você
se sentir bem com a viagem
porque hoje é 19 de abril
e chega mesmo a parecer
que se Bandeira e Roberto Carlos
não fizessem aniversário hoje
você e Isolda nem estariam aqui
ou melhor, chega mesmo a parecer
que se vocês não estivessem aqui
Bandeira e Roberto Carlos
nem fariam aniversário no mesmo dia
mas esse acaso não tem
a menor importância para Isolda.
Afinal de contas você não está pensando
só em Bandeira, Roberto Carlos
e no suposto aniversário
você está pensando sobretudo nela
que ela também se sente bem
com a viagem e que você se sente bem
por ela finalmente se sentir bem
mas também fica parecendo que não
e é assim mesmo, afinal de contas
>
93
isto é só uma versão, a mais recente,
do jogo dos sete erros que dedico
e ofereço aos meus defuntos prediletos
Roberto Carlos e Manuel Bandeira.
94
Os dois garotos
filhos do casal de meia-idade
são mais novos do que eu pensava
e correm pelo interior da igreja com muito
entusiasmo, cada passo deles
faz estalar as centenárias campas de madeira.
Ouvido atento aos estalidos
das centenárias campas de madeira
acabo esbarrando no pai dos atletas
boné azul e camisa sobre a nababescaa
barriga onde se pode ler
Abandonai Toda Esperança.
Antes que ele se desculpe
ou eu me desculpe, sou salvo pelo gongo.
95
A vida inteira seu pai disse
escrever uma música e o máximo
que ele fizera fora assobiar aqui e ali
trechos dessa canção que, você acha, só existia
quando ele assobiava. Era uma vez uma música
e uma vez ele não só assobiou como também
cantou para você alguns trechos dela
mas isso tem tanto tempo que hoje eles parecem
ser de Detalhes mas não dá para ter certeza.
E você acha curioso dizer isso agora
você acha muito curioso dizer isso agora
ainda mais pensando no que já vem pensando.
Para falar a verdade, mais do que curioso
você acha até engraçado dizer isso justo agora
ainda mais pensando no que já vem pensando.
E a esses pensamentos seus às vezes se juntam outros
entre eles, um súbito, o de que isso aqui é um poema
para o seu pai, sobre o seu pai mas sem o seu pai.
96
Vamos sim, digo a Isolda
concordando em antecipar o almoço.
Na rua de baixo, já tinha visto um restaurante
cujo prato do dia era tutu à mineira
novidade, quem engorda um quilo engorda dois.
Ainda perto do altar mas já rumo à saída
sigo pelo corredor central da nave
o chão de madeira guarda sepulturas anônimas
piso nos números 32 e 33 depois no 37.
Já no meio do caminho avançando
65 e 68 o passo é irregular, a ordenação delas
também, por isso o percurso sugere
um deslocamento quase sem padrão
77 e 80. Isolda já está na porta e espera
82 e 87 e 90 apresso o passo até que
ao lado do tapetinho da porta
piso finalmente sobre a campa de número
94. Olha quem está enterrado aqui, diz ela.
Ainda pensando no tutu à mineira
vejo entalhado em mal alinhadas letras
Mestre Athayde 1762-1830.
Isolda com dois passos já está fora da igreja.
Quanto a mim, parado na saída, reparo, na tal sepultura
há uma fenda na madeira por onde passariam dois dedos.
É para Athayde respirar melhor
teria dito ao passar por mim
a filha adolescente do casal de meia-idade
mas não tenho certeza, havia algum barulho
de modo que ela também poderia ter dito
é nas zonas escuras dos ciclos que decorrem as metamorfoses.
Parado na saída, enquanto meu espírito revisor se decide
entre uma frase e outra, nem percebo seus irmãos mais novos
os atletas vindo do fundo da igreja correm na minha direção.
>
97
Ao escapar do primeiro, não escapo do segundo.
Cara no chão, a moeda com as efígies de Didi Dedé
Mussum Zacarias e a data de 1981 corre
lentamente pela madeira carcomida, campa 94
igreja de São Francisco de Assis Mariana, corre
e gira em círculos progressivamente menores
Didi Dedé Mussum Zacarias, campa 94
madeira carcomida, a moeda gira
progressivamente em círculos
menores em cujo centro
último e vertical está
a fresta por onde
Athayde ainda
respira.
98
Você detesta fotos pela simples razão
de sempre parecer mais gordo do que realmente
acha que é e a que tiraram de vocês na frente
da igreja, ou melhor, a que o tal guia turístico
e pedinte tirou de vocês na frente da igreja
de São Francisco de Assis Mariana não é diferente.
Abraçados você e Isolda ocupam quase
o centro da imagem, uns cinco metros na frente
da construção, isso permite ver o portal
a parede com cal, os respingos e bem ao fundo figuras
que cantando avançam sem olhar para trás.
O tal guia turístico e pedinte tirou de vocês
uma foto na frente da igreja de São Francisco
de Assis Mariana, mas as novas sandálias de Isolda
não se veem, sobre os dois quilos a mais
do nosso protagonista não se pode dizer o mesmo.
99
BRUNA BEBER (1984)
5 AM
não durmo
há vinte e dois anos
não durmo
100
ADJ.
beibe
eu sou um blues nacional
cheio de exagero
e corações roubados
marginal nos 70’s
equivocado nos 80’s
insensível, burro
e raso como as preocupações do Posto 9
que não se chega de saudade
e dolorido de tristeza
mas original e animado
como toda a jovem guarda em si.
março de 84
101
AP.
102
VIVO
103
BILHETE
104
A NOVÍSSIMA LITERATURA
105
BEVERAGE
106
NEIGHBORHOODS
débitos
prazos
e canetas
marca-texto
medos
dúvidas
e embalagens
tetrapak
e se essa rua
se essa rua
fosse tua
eu ia me mudar pra lá.
107
RAP
108
ZÁS-TRAS
unicórnios e baratas
conversam na varanda
eu sinto sede bebo água
na infiltração da cozinha
você demora
está escuro não há luz
de poste vazando pelo vidro
trincado da janela
há horas atenta
aos gritos da campainha
quebrada minha perna cruzada
do lustre prepara um lindo colar.
109
SANJA QUIET DOWN I NEED TO MAKE A SOUND
onde eu cresci
comendo danoninho roubado
de cargas tombadas
na Rodovia Presidente Dutra
110
FABÍOLO CRISTINA
111
ARTIGOS PARA PRESENTE
Balés, 2009
112
DOTES
Balés, 2009
113
FEVEREIRO
te espero embaralhada
em retalhos de cetim
como benito di paula
Balés, 2009
114
GANGORRA
o que correspondia
pras maiores ainda
queimar sutiãs
de fora a fora
pele sobre pele derretida
no cimento
Balés, 2009
115
RAMON MELLO (1984)
CARTILHA REMIX
a própria língua
116
POEMA DIGITAL
oi
quer tc?
tem webcam?
(...)
:-(
off line
117
LADO B
desculpa
mas essa música
não quero mais
ouvir
aproveita e dorme
118
INVENTÁRIO
faço questão:
119
FAIXA 4
sempre tenho
mais preguiça da vida
aos domingos
uma fossa
choro um teatro sem cor
com plateia vazia
120
POEMA ATRAVESSADO PELO MANIFESTO SAMPLER
II
acredite
você não é original
certo
apenas a pureza de um
mito
a pressão não
é
simples
pratique
sequestro saque captura
de palavras
>
121
não comunique aos pais
toda palavra é
órfã
não
existem palavras
finais
toda palavra
é
começo
pirata capitão buquineiro
promessa de geração
00
remix de ideias
souvenirs
alô wally
ah se você ainda estivesse por aqui
não escrever sobre
não descrever ou reproduzir
o mestre
produzir escrever produzir
eu
estou menino
em suas palavras
não chame meu nome em vão
salte a pedra
no caminho
III
122
faça
literatura sem agradecer a raduan
ou adalgisa
faça
você seu retrato
enquanto jovem
encontre suas ideias
a partir de
apesar de
(lembra dela?)
apesar
de
invasor
ao combate
quais os limites
do texto?
autores originais
não mais
viva de uma forma política
crie assim
invada a cidade
invente
coloque tudo para dentro
para depois respirar
sentir e notar
você
eu estou colocando
pra dentro
o chocolate
de tanto olhar
ler
123
IV
propriedade coletiva
eu sou vocês
sou eu nos
reconhecemos nas palavras
lidas e não ditas e não lidas
também
percebe
posse-criação
só
os mentirosos
são dignos
do amor
deus
em latim é fingidor
da via
criação
escreva tudo
com essa mão nervosa
escreva escreva
as vozes que habitam
em ti
no papel
selvagem caótico
esse texto não é
seu nem meu
esse texto pertence
apenas
ataque
perigo ritmo
sem receio da autocrítica
se aproprie dos rótulos
>
124
para destruí-los
plagiador sabotador
coroe sua intimidade
perturbe
seus pares
não os deixem
presos
no século passado
o aprendizado
as vanguardas e a tradição
modos de usar
sua língua
esqueça os ismos
a divisão didática
atravesse
seja tático
cale
a boca de quem
não se posiciona
no espaço
torne seu o que é
do outro
provoque todas
as encenações institucionais
modo de fazer
aprender fazendo
seu trabalho
diário
manipule a história
>
125
alheia escreva a nossa
invente
seja autor inventor
o leitor
deve reconhecer seus passos
caminho percorrido
está
tudo no passado
o futuro se tropeça
com ele
a poesia se esfrega nas coisas
percebe?
ao acordar veja as coisas
como
as coisas todas
espalhadas livros jornais
mesquinhez de sua relação
amorosa
você pode abrir sulcos na escrita
fluxos
corpo é texto
é corpo
emancipe sua escrita
deixem falar mal
amanhã
estão todos lambendo seu rabo
discuta apenas sua
existência
na palavra
leia
escreva
como quem atravessa
o leitor
>
126
subverta
transforme o meio com a palavra
transtextual
células trans
transexual
exu contemporâneo se aloja no outro
passado tomando o presente
de cavalo
VI
ultrapasse
a si mesmo
não trapaceie é fatal
amadureça
a experiência
seja através
dos outros
a verdadeira história da literatura
uma história de ladrões
experiência
número infinito
o homem forte vive
só
lembre dos outros
entenda
as relações de força
você ouviu de um artista de plástico
vale tudo só não vale
qualquer
coisa
as coisas negras são
>
127
tão bonitas
menos o cavalo
beba
ice tea light
com limão e gelo
lipton com muita cafeína
no cafeína
não imite
escreva a partir
de
dobre a linha da folha
dobre-se
você sabe que o papel
só pode ser dobrado
sete vezes
hum
modo de
de experimentar
os espaços
nascemos com os mortos
sempre
o fim é o meio
novo desvio
novidade sem novidade
caminho literário cercado de música
ouça
não é preciso citar
não é
faça
teses para corrompê-las
o texto tem sentidos
não
sentido
>
128
fazer ao ler
a linguagem não indica sentido
mas possibilidades
as palavras
penetram em você
ou não
use todos os guardanapos
do café
com leite e biscoito de maisena
(compensando os 10% de mal atendimento)
ganhar força com as ideias
pense no tempo
em nosso tempo
tempo
tempo
tempo
tempo
silêncios
incorporados na escrita
esquecimento como aprendizado da escritura
invasão pela leitura
esse poema não tem
fim
é o meio
129
FOLHA CRÍTICA
130
JORNAL DO COMMERCIO
131
ISMAR TIRELLI NETO (1985)
CARTA DE INTENÇÃO
os detetives;
os contratados
Synchronoscopio, 2008
132
RUFUS
133
você está de dieta ou desistiu, afinal, de descortinar
uma grande verdade interior? Teus olhos têm um ar
de perda,
pendem, como os seios de uma mãe antiga. Tanto
tempo passado
em ônibus que a gente aprende à força o prazer do
caminho
chegar lá é sempre um pouco
desorientante
Synchronoscopio, 2008
134
POEMA DA TARDE
a Gabriel Bogossian
I.
nada contra
nada radicalmente a favor
numa palavra nada radicalmente
II.
(tableau: uma senhora idosa disputa banco de praça
com um menino surdo)
135
somos pessoas interessantes
fazemos coisas interessantes
esperamos que um dia relevem
que divertido
136
que interessante!
(tudo isso sem sair
da minha zona vocal confortável)
Synchronoscopio, 2008
137
LAURA LIUZZI (1985)
ESCRITA X ESCRITO
Calcanhar, 2010
138
CRIANÇA
139
E abandonar a matéria
inanimada
no sofá,
Calcanhar, 2010
140
VÃO
Então de súbito
salto do trem
tudo calculado
para intrigar os passageiros
que veem sempre repetida
a velocidade do escuro
e o mantra no alto-falante
Calcanhar, 2010
141
VONTADE
Desalinho, 2014.
142
ALICE SANT’ANNA (1988)
RETRATO
Dobradura, 2008
143
UM ENORME RABO DE BALEIA
cruzaria a sala neste momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia, e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela
144
OS SETE NOVOS (2006)2
Luzes e cores valorizam o espanto. A cidade agora é mero pano de fundo para
este laboratório de metáforas visuais. Com seus sorrisos antissépticos os
atendentes te oferecem simulacros de refrigerantes. Aquários humanos se
transformam em grandes avenidas de brilho e de alegria. A fúria da máquina
também é saber que também precisa reluzir a todo instante, como quem sempre
tivesse que soltar espasmos pulsantes na obrigação de explodir seus pontos de
exclamação por onde quer que se passe. Fundos luminosos defendem que o
sucesso está no excesso. De que o ketchup utilizado pela empresa poderiam
encher o lago Michigan, de que os bilhões de hambúrgueres vendidos poderiam
cobrir por várias e várias vezes a distância da Terra à Lua. Este é o real sem
avesso, de deriva em deriva; até os ossos. Para os americanos estar na imagem é
existir. O país Marlboro está no ar. Que Deus salve a América e a torta de
maçã.
2 Os Sete Novos foi um coletivo de poetas formado por Augusto de Guimaraens Cavalcanti
(1985), Domingos Guimarens (1979) e Mariano Marovatto (1982).
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Blog d’Os Sete Novos, 2010
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