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A SITUAÇÃO INCONGRUENTE

DA POESIA BRASILEIRA
ANGÉLICA FREITAS

dentadura perfeita, ouve-me bem:


não chegarás a lugar algum.
são tomates e cebolas que nos sustentam,
e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.
ah, sim, shakespeare é muito bom,
mas e beterrabas, chicória e agrião?
e arroz, couve e feijão?
dentinhos lindos, o boi que comes
ontem pastava no campo. e te queixaste
que a carne estava dura demais.
dura demais é a vida, dentadura perfeita.
mas come, come tudo que puderes,
e esquece este papo,
e me enfia os talheres.

Rilke Shake, 2007

  2  
FAMÍLIA VENDE TUDO

família vende tudo


um avô com muito uso
um limoeiro
um cachorro cego de um olho
família vende tudo
por bem pouco dinheiro
um sofá de três lugares
três molduras circulares
família vende tudo
um pai engravatado
depois desempregado
e uma mãe cada vez mais gorda
do seu lado
família vende tudo
um número de telefone
tantas vezes cortado
um carrinho de supermercado
família vende tudo
uma empregada batista
uma prima surrealista
uma ascendência italiana & golpista
família vende tudo
trinta carcaças de peru (de natal)
e a fitinha que amarraram no pé do júnior
no hospital
família vende tudo
as crianças se formaram
o pai faliu
deve grana para o banco do brasil
vai ser uma grande desova
a casa era do avô
>

  3  
mas o avô tá com o pé na cova
família vende tudo
então já viu
no fim dá quinhentos contos
pra cada um
o júnior vai reformar a piscina
o pai vai abrir um negócio escuso
e pagar a vila alpina
pro seu pai com muito uso
família vende tudo
preços abaixo do mercado

Rilke Shake, 2007

  4  
NA BANHEIRA COM GERTRUDE STEIN

gertrude stein tem um bundão chega pra lá gertrude


stein e quando ela chega pra lá faz um barulhão como
se alguém passasse um pano molhado na vidraça
enorme de um edifício público

gertrude stein daqui pra cá é você o paninho de lavar


atrás da orelha é todo seu daqui pra cá sou eu o patinho
de borracha é meu e assim ficamos satisfeitas

mas gertrude stein é cabotina acha graça em soltar pum


debaixo d’água eu hein gertrude stein? não é possível
que alguém goste tanto de fazer bolha

e aí como a banheira é dela ela puxa a rolha e me rouba


a toalha

e sai correndo pelada a bunda enorme descendo a


escada e ganhando as ruas de st.-germain-des-prés

Rilke Shake, 2007

  5  
RILKE SHAKE

salta um rilke shake


com amor & ovomaltine
quando passo a noite insone
e não há nada que ilumine
eu peço um rilke shake
e como um toasted blake
sunny side para cima
quando estou triste
& sozinha enquanto
o amor não cega
bebo um rilke shake
e roço um toasted blake
na epiderme da manteiga

nada bate um rilke shake


no quesito anti-heartache
nada supera a batida
de um rilke com sorvete
por mais que você se deite
se deleite e se divirta
tem noites que a lua é fraca
as estrelas somem no piche
e aí quando não há cigarro
não há cerveja que preste
eu peço um rilke shake
engulo um toasted blake
e danço que nem dervixe

Rilke Shake, 2007

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ESTATUTO DO DESMALLARMENTO

minha senhora, tem um mallarmé em casa?


você sabe quantas pessoas morrem por ano
em acidentes com o mallarmé?

estamos organizando uma consulta popular


para banir de vez o mallarmé dos nossos lares
as seleções do reader’s digest fornecerão

contêineres onde embarcaremos os exemplares,


no porto de santos, de volta pra frança.
seja patriota, entregue seu mallarmé. olê.

Rilke Shake, 2007

  7  
UMA CANÇÃO POPULAR (SÉC. XIX- XX):

uma mulher incomoda


é interditada
levada para o depósito
das mulheres que incomodam
loucas louquinhas
tantãs da cabeça
ataduras banhos frios
descargas elétricas
são porcas permanentes
mas como descobrem os maridos
enriquecidos subitamente
as porcas loucas trancafiadas
são muito convenientes
interna, enterra

Um útero é do tamanho de um punho, 2013

  8  
ÍTACA

se quiser empreender viagem a ítaca


ligue antes
porque parece que tudo em ítaca
está lotado
os bares os restaurantes
os hotéis baratos
os hotéis caros
já não se pode viajar sem reservas
ao mar jônico
e mesmo a viagem
de dez horas parece dez anos
escalas no egito?
nem pensar
e os freeshops estão cheios
de cheiros que você pode comprar
com cartão de crédito.
toda a vida você quis
visitar a grécia
era um sonho de infância
concebido na adultidade
itália, frança: adultério
(coisa de adultos?
não escuto resposta)
bem se quiser vá a ítaca
peça a um primo
que lhe empreste euros e vá a ítaca
é mais barato ir à ilha de comandatuba
mas dizem que o azul do mar
não é igual.
aproveite para mandar e-mails
dos cybercafés locais
>

  9  
quem manda postais?
mande fotos digitais
torre no sol
leve hipoglós
em ítaca compreenderá
para que serve
a hipoglós.

Um útero é do tamanho de um punho, 2013

  10  
3 POEMAS COM O AUXÍLIO DO GOOGLE

A MULHER VAI

a mulher vai ao cinema


a mulher vai aprontar
a mulher vai ovular
a mulher vai sentir prazer
a mulher vai implorar por mais
a mulher vai ficar louca por você
a mulher vai dormir
a mulher vai ao médico e se queixa
a mulher vai notando o crescimento do seu ventre
a mulher vai passar nove meses com uma criança na barriga
a mulher vai realizar o primeiro ultrassom
a mulher vai para a sala de cirurgia e recebe a anestesia
a mulher vai se casar ter filhos cuidar do marido e das crianças
a mulher vai a um curandeiro com um grave problema de hemorroidas
a mulher vai se sentindo abandonada
a mulher vai gastando seus folículos primários
a mulher vai se arrepender até a última lágrima
a mulher vai ao canil disposta a comprar um cachorro
a mulher vai para o fundo da camioneta e senta-se choramingando
a mulher vai colocar ordem na casa
a mulher vai ao supermercado comprar o que é necessário
a mulher vai para dentro de casa para preparar a mesa
a mulher vai desistir de tentar mudar um homem
a mulher vai mais cedo para a agência
a mulher vai pro trabalho e deixa o homem na cozinha
a mulher vai embora e deixa uma penca de filhos
a mulher vai no fim sair com outro
a mulher vai ganhar um lugar ao sol
a mulher vai poder dirigir no afeganistão

  11  
A MULHER PENSA

a mulher pensa com o coração


a mulher pensa de outra maneira
a mulher pensa em nada ou em algo muito semelhante
a mulher pensa será em compras talvez
a mulher pensa por metáforas
a mulher pensa sobre sexo
a mulher pensa mais em sexo
a mulher pensa: se fizer isso com ele, vai achar que faço com todos
a mulher pensa muito antes de fazer besteira
a mulher pensa em engravidar
a mulher pensa que pode se dedicar integralmente à carreira
a mulher pensa nisto, antes de engravidar
a mulher pensa imediatamente que pode estar grávida
a mulher pensa mais rápido, porém o homem não acredita
a mulher pensa que sabe sobre homens
a mulher pensa que deve ser uma “supermãe” perfeita
a mulher pensa primeiro nos outros
a mulher pensa em roupas, crianças, viagens, passeios
a mulher pensa não só na roupa, mas no cabelo, na maquiagem
a mulher pensa no que poderia ter acontecido
a mulher pensa que a culpa foi dela
a mulher pensa em tudo isso
a mulher pensa emocionalmente

  12  
A MULHER QUER

a mulher quer ser amada


a mulher quer um cara rico
a mulher quer conquistar um homem
a mulher quer um homem
a mulher quer sexo
a mulher quer tanto sexo quanto o homem
a mulher quer que a preparação para o sexo aconteça lentamente
a mulher quer ser possuída
a mulher quer um macho que a lidere
a mulher quer casar
a mulher quer que o marido seja seu companheiro
a mulher quer um cavalheiro que cuide dela
a mulher quer amar os filhos, o homem e o lar
a mulher quer conversar pra discutir a relação
a mulher quer conversa e o botafogo quer ganhar do flamengo
a mulher quer apenas que você escute
a mulher quer algo mais do que isso, quer amor, carinho
a mulher quer segurança
a mulher quer mexer no seu e-mail
a mulher quer ter estabilidade
a mulher quer nextel
a mulher quer ter um cartão de crédito
a mulher quer tudo
a mulher quer ser valorizada e respeitada
a mulher quer se separar
a mulher quer ganhar, decidir e consumir mais
a mulher quer se suicidar

Um útero é do tamanho de um punho, 2013

  13  
ANA MARTINS MARQUES (1977)

MARGEM

No final da página
como no final do mundo antigo
há um despenhadeiro.

Embora os que leem prosa em geral


se arrisquem mais
porque chegam quase à beira do abismo
cuidado ao chegar à borda do poema.

A vida submarina, 2009

  14  
LUGAR PARA PENSAR

Gosto de pensar no escuro


fumando
olhando os polvos no aquário
do restaurante chinês
ou com a cabeça encostada no vidro do ônibus.

Gosto de pensar com as mãos na água


de óculos escuros
na escada rolante
vendo a cidade fugir
pelo espelho retrovisor.

Gosto de tentar adivinhar


o pensamento das pessoas
gosto de pensar que o pensamento
é um inquilino incendiário.

Uma coisa que nunca entendi é por que


em geral se acredita que o poema
não é lugar para pensar.

A vida submarina, 2009

  15  
SEDA

É tão difícil amar


neste mundo imperfeito
é difícil dizer alguma coisa
que não seja um equívoco
é difícil encontrar
o peso correto
das coisas
saber nosso próprio tamanho
olhar alguns bichos nos olhos
pensar com doçura
aproveitar adequadamente a luz
desejar para o pássaro um destino de pássaro,
para a seda, um destino de seda.

A vida submarina, 2009

  16  
A QUEDA

As palavras
faltam
quando mais
se precisa
delas
são apenas
a sombrinha
do equilibrista
ajudam
talvez
mas não salvam
faltam
quando mais
se precisa delas
se você cair
de uma grande altura
por mais bonita
que seja a sua sombrinha
não conte com ela
para amortecer
a queda

Da arte das armadilhas, 2011

  17  
IDEAS PARA UM LIVRO

I
Uma antologia de poemas escritos
por personagens de romance

II
Uma antologia de poemas-
-epitáfios

III
Uma antologia de poemas que citem
o nome dos poetas que os escreveram

IV
Uma antologia de poemas
que atendam às condições II e III

V
Um livro de poemas
que sejam ideias para livros de poemas

VI
Este livro
de poemas

O livro das semelhanças, 2015

  18  
PRIMEIRO POEMA

O primeiro verso é o mais difícil


o leitor está à porta
não sabe ainda se entra
ou só espia
se se lança ao livro
ou finalmente encara
o dia

o dia: contas a pagar


correspondência atrasada
congestionamentos
xícaras sujas

aqui ao menos não encontrarás,


leitor,
xícaras sujas

O livro das semelhanças, 2015

  19  
SEGUNDO POEMA

para Paulo Henriques Britto

Agora supostamente é mais fácil


o pior já passou; já começamos
basta manter a máquina girando
pregar os olhos do leitor na página

como botões numa camisa ou um peixe


preso ao anzol, arrastando consigo
a embarcação que é este livro
torcendo pra que ele não o deixe

pra isso só contamos com palavras


estas mesmas que usamos todo dia
como uma mesa um prego uma bacia

escada que depois deitamos fora


aqui elas são tudo o que nos resta
e só com elas contamos agora

O livro das semelhanças, 2015

  20  
NUMA ENTREVISTA ANNE CARSON DIZ QUE
se a prosa é uma casa
a poesia é um homem em chamas
correndo rapidamente através dela
numa entrevista, quando lhe perguntaram
o que salvaria
se sua casa pegasse fogo
Jean Cocteau respondeu
que salvaria o fogo
no protocolo de incêndio
do condomínio do edifício JK
está escrito
não fique parado na janela sem nenhuma defesa
o fogo procura espaço para queimar
e irá buscá-lo se você não estiver protegido
e também: mantenha-se vestido e molhe suas roupas
e também: feche todas as portas atrás de você
e ainda: rasteje para a saída, pois o ar é mais puro
junto ao chão
e ainda: uma vez que tenha conseguido escapar,
não retorne

Um caramujo
como uma caixa de fósforos
que levasse nas costas
o incêndio da casa

Como se fosse a casa (uma correspondência), 2017

  21  
RICARDO DOMENECK (1977)

CIGARROS NA CAMA

1.

Sua pressa me legou um maço


de cigarros, com o qual agora
economizo, por vinte e quatro
horas, o preço do próximo.

  22  
3.

Comecei a fumar porque você fuma


e eu certamente não queria viver
mais do que você. Agora já sem
o seu hálito, suas bitucas e cinzas
na mesma cama, começo o dia
com um cigarro, exatamente
e ainda pelo mesmo motivo.

  23  
4.

Uma amiga impertinente


me pede, já que eu agora
estou passando pelo vale
da sombra onde a morte
vai bege pela passarela,
com ombreiras e calças
de cintura alta, que eu
diga o que é a tristeza,
que eu a poetize para uso
comunitário, que eu, ora,
entretenha,
feito um mico-leão bege,
a ela e a meus outros cinco
leitores com malabarismos
de vobaculário qualquer.

  24  
5.

Não sei, querida vaca,


companheira de pasto
e capim pisoteado
por machos, estes bois
com limiar de atenção
retardada e deficitária,
qual a imagem mais apta,
que analogia eu teceria
para esta tristeza
banalíssima, talvez
a única seja
a confissão do fato
de por dias não mais
poder masturbar-me
com a imaginação,
mas tão-somente
com a memória
do que já não pode
nem há-de repetir-se.

  25  
6.

Fumo na banheira
mas, com o cinzeiro
esquecido no quarto,
bato as cinzas na água
mesmo, pensando
que é simples
e é apropriado,
como se eu estivesse
me banhando nas águas
do Ganges
e os restos queimados
de mortos passassem,
descendo a correnteza
deste rio que confesso
mal saber onde
desemboca.

  26  
7.

Fumo contra o vento,


como se o mundo
oferecesse ajuda
para socar toda
a nicotina possível
mais rápido
nos meus pulmões
a caminho da falência
com este meu sangue
acelerado.

  27  
9.

Esperei por você no café


português para nossa última
conversa, queria estar lendo
e fumando
quando você chegasse,
com tranquilidade fingida
e estudada. Seu atraso
custou-me quatro cigarros
consecutivos, o que, segundo
as estatísticas,
significa 44 minutos menos
de expectativa
de vida. Unidos aos seus quinze
minutos de atraso, digamos
uma hora a menos no mundo.
Perda nenhuma. O vento
me descabelava
e eu lutava bravamente
contra mais esta desordem.
Você
chegou, obviamente,
no intervalo
entre o quarto e o quinto.

  28  
13.

Contra todos fui vingativo, contra meus pais,


meus irmãos, contra outros ex
e, no entanto, até o presente momento
não desejei sua morte uma única vez,
me contentei com a imaginação
do meu próprio velório, com você
contudo na sala, inconsolável.

  29  
15.

Você mora na Berlim Ocidental,


eu na Oriental, mas o Muro
caiu já há duas décadas. O que antes
era o motivo único
para minhas visitas a seu hemisfério
torna-se agora
um novo Muro
imaginário,
de um lado o seu território,
do outro o meu habitat,
e, como sempre, acabo
do lado onde mais uma vez tudo
é oferto e gratuito mas indesejado,
onde o que a população quer
é fugir para o outro lado,
onde a sua população preza
a liberdade individual das carreiras
solo e acumula
para si o que poderia, talvez,
quiçá num mundo apaixonado,
ser compartilhado,
comum.

  30  
18.

De agora em diante, apenas


contemporâneos exatos
ou sobreviventes, nunca
mais estes rapazes mal saídos
do cueiro e da província,
que nem capazes são
de se expressar em orações
subordinadas. Com sorte,
quando você os encontra,
já conseguem conversar
em sentenças completas,
em geral longas apenas
se os salva
a conjunção e.
Você
os ensina a comunicar-se
à mesa dos jantares
com mais de um interlocutor,
paralelos e simultâneos,
sem que eles percam o fio
de suas meadas e miados;
apresenta-os a Margo Channing
e Eve Harrington; explica
a diferença
entre o pound inglês
e o Pound americano
ou os momentos em que os dentes
devem ser cobertos pelos lábios,
e logo quando estão começando
a tornar-se ligeiramente
interessantes, levemente
>

  31  
estimulantes para o seu cérebro
cheio de cicatrizes, os moçoilos
chegam com as frases feitas
de um famoso discurso,
aquele que é tradicionalmente
intitulado “Vamos Ser Amigos”
na literatura secular
dos breakups.
Amigos? Criatura,
o que você
poderia me dizer que eu
já não saiba, que eu já não tenha
pensado em sentenças e proposições
muitíssimo mais elaboradas?
Tudo isso pensa o poeta
com um cigarro na mão esquerda
e a foto de um moço na direita,
chorando como uma solteirona
recalcada, uma criança mimada
que houvesse ouvido o advérbio
“não” pela primeira vez.

  32  
24.

Hoje, na caferia próxima


ao ponto de ônibus
onde você dispensou meus serviços,
na companhia leal de meus Gauloises
e de uma xícara gigante de café,
sentindo-me já ridículo suficiente
por ter acordado com a vontade urgente
de ler Sylvia Plath, um clown!, sim, um clown
parou diante de minha mesa
para fazer gracejos. Minha vida agora
é um filme ruim.

  33  
27.

Acordo de novo
com a briga do casal vizinho.
Num misto
de generosidade e ironia
talvez cruel, começo
a tocar em alto volume
a ária da Carmen de Bizet.
Preferiria esmurrar a parede,
gritando para o prédio
todo, como eles, “tolos,
não apressem
o inevitável.”

Berlim, de maio a julho de 2011

Cigarros na cama, 2002

  34  
VIDA LONGA À POESIA PURA

a Ezequiel Zaidenwerg

Escuta aqui, nós, poetas aguados,


caminhamos hoje
por entre plantas de nomes
mui bem catalogados,
mas os quais desconhecemos,
e assim confundimos muito
bem-me-queres e amores-dos-homens,
chamamos de taráxaco a calêndula,
e colhemos com frequência
a amargosa por malmequer.
Eu, por mim, preferiria
saber distinguir entre a hortelã
e a cidreira, esta e a camomila,
para salvar-me de ressacas quiçá
vindo de buracos e valas malsãs,
onde meninos esguios, longilíneos
feito enguias, seguram os limões
nada luminosos
de uma ex-caipirinha ou tequila.
Eis aqui minha ação
de graças,
poetas laureados, queridos
antepassados cosmopolitas
do último século,
vossa pureza de linguagem
salvou-nos
desses incômodos detalhes,
chegamos enfim ao universal,
e sabiá, busardo ou melro,
>

  35  
cantamos agora
apenas o pássaro
abstrato no galho
de uma árvore
que não sabemos nomear.

Ciclo do amante substituível, 2012

  36  
ANOTAÇÕES PARA UM PEQUENO TRATADO SOBRE O CÂNONE

Ao bom imputador, vazio de o


é letra. Os únicos veramente capazes
do discurso diacrônico são Deus
e Funes, o memorioso.
Nós, os de corpos degradáveis
e esquecimentos à ponta da língua,
somos condenados à seleção artificial
na arena dos gladiadores, teia
da aranha
que embalsama a ração
para sua futura geração.
Arca
de um Noé senil, inutilíssimo,
improfícuo e baldado,
quem dera fôssemos o trigo
do joio, mas suspeito
em tutano que o cânone,
esta morada de santos, indica
em seus índices apenas a cartilha
para castelos de cartas,
costelas de castas.

Ciclo do amante substituível, 2012

  37  
FABRÍCIO CORSALETTI (1978)

DESPEDIDA

o chão da cozinha
está de novo inundado
vou chamar o encanador

vou chamar o encanador


reciclar o lixo
e votar no candidato
menos escroto

farei o possível
pra não arrotar na mesa
nem ter um ataque de riso
na delegacia

de agora em diante
a civilização pode contar comigo

__
mas como despedida
só por um momento
quero pensar que sou um pato

  38  
um pato gordo
e libidinoso
à beira da lagoa
correndo atrás de uma pata

Esquimó, 2010

  39  
PENÚLTIMO POEMA

desde que meus pais pediram


que não escreva mais
sobre eles

ando à procura de temas


que justifiquem

minhas lágrimas
meus desejos
meus remorsos

mas a metafísica me deprime


as questões sociais me ultrapassam
e meu amor só quer me ver feliz

vou descongelar meu amigo esquimó


e ver o que ele acha
vou comprar uma garrafa de rum
e beber com ele

Esquimó, 2010

  40  
MARÍLIA GARCIA (1979)

AQUÁRIO

tem o pânico das algas marinhas


quando acorda de frente para o estádio.
o quarto é um aquário
com setas submersas de
sol e seu corpo filtrado
pela luz do insulfilm
tem o contorno
de um magnetismo
inverso. não que importassem

as horas. apenas não sabia como ali chegara. não


sabia quanto tempo tinha passado (um cão
lambia o pé, a mesma imagem
congelada)

e na saída: “vai me responder de novo com


uma pergunta?” “mas a configuração é
diferente.” e ela disse, não lembro o que ela disse.
o estádio é um buraco no tempo e de cima
suas guelras latejam os ecos da última partida.
você se encolhe atrás do vidro
redondo, luta para vencer
as pequenas pedras, como num oceano
violeta genciana

20 poemas para o seu walkman, 2007

  41  
INFERNO MUSICAL

I.
o que explicou sobre a melodia
de sistemas não fazia sentido pois
dessa vez não havia
som algum.
– é uma deformação, quase um inferno
musical que,
ao transbordar,
congela,
como o mármore, o tombo ou
o tapa. poucos usam a palavra anti-
harmonia ou anti-
densidade (nada se acopla
com nada aqui)
a vida se divide em
duas partes móveis e você pode
entrar numa melodia circular
atrás da configuração correta

II.
– ezeiza es um sitio que no
existe mas chegar é repetir o
gesto inexistente, como dizer uma
frase sem som ou se tornar o mesmo
uma semana depois no momento em que
a aeronave se desloca com
mais esforço.
no desenho tenso da esteira
a única mala – para tomar a estrada
de noite no deserto asfixiante
e escuro.

20 poemas para o seu walkman, 2007

  42  
BLIND LIGHT

poderia começar de muitas formas


e esse começo poderia ser um movimento ainda sem direção
que vai se definindo
durante o trajeto
poderia começar situando o tempo e o espaço
contexto hoje é quarta-feira dia 27 de novembro
e estamos no 3o andar do centro universitário maria antonia
também faria uma pergunta
nesse caso com quem estou falando aqui hoje?
poderia começar contando que me mudei pra são paulo
há exatos 3 meses
e que esse convite do mauricio
foi como um gesto de
delicadeza e acolhida
pensando bem poderia resumir
minha curta experiência nesta cidade
com a palavra delicadeza
poderia começar de muitas formas
mas escolhi começar com uma pergunta
que me fez a hilary kaplan
a hilary kaplan é uma tradutora e escritora americana
a hilary kaplan estava traduzindo um poema meu
e deparou com este verso
ela fica boiando com um walkman
e depois olha para os pés
a hilary kaplan me perguntou
para qual direção nossos olhos se dirigem
quando estamos boiando deitados e olhamos para os próprios pés?
olha-se para baixo ou para a frente?
a pergunta da hilary kaplan é uma pergunta
sobre o referencial se me refiro ao “ele” do poema
>

  43  
digo que o olhar se dirige para baixo
se me refiro a quem está de fora da configuração
deitado-boiando
ou se me refiro à nossa posição em relação à terra
o olhar se dirige para a frente
mas essa pergunta me interessa também
pela possibilidade de transformar o espaço
a partir de uma mínima decalagem da linguagem
um pequeno detalhe destaca a forma de ver as coisas
e faz pensar em conexões e relações
que não existiam ali antes
um pequeno detalhe redimensiona por exemplo
o espaço
e a nossa forma de entendê-lo
criando deslocamentos produtivos
mesmo que “produtivo” num sentido contrário
ao que se costuma usar
um produtivo só no plano pessoal
que me faça perceber o meu mundo de outro modo
o que eu queria
era me apropriar dessa possibilidade
de mudar de direção
e de refazer as conexões
levantada pela pergunta da hilary

há uma semana
participei do encontro autoria e teorias
no centro universitário maria antonia
a convite do mauricio salles vasconcelos
no primeiro dia do encontro
o agustín fernández mallo
contou sobre a trilogia nocilla dream
escrita quando ele estava com o quadril quebrado
>

  44  
deitado em uma cama na tailândia no segundo dia
o damián tabarovsky comentou seu ensaio
a literatura de esquerda e no terceiro dia li este texto
que começou com a pergunta da hilary
já citada
depois na mesma mesa
o roberto zular falou sobre as muitas vozes que existem hoje
e sobre as ficções performativas
depois na mesma mesa
foi a vez do paulo ricardo
alves o paulo ricardo alves analisou
a poesia do zular e a minha
por fim
conversamos com o público
depois mudei pequenas coisas no texto
inserindo comentários como este aqui
e incorporando a conversa que tivemos no dia

1.
no filme pierrot le fou de jean-luc godard
tem uma cena em que os amantes ferdinand e marianne
estão fugindo em um carro conversível vermelho
por uma estrada ensolarada
no litoral sul da
frança

nesta cena de pierrot le fou


a câmera filma os dois a partir do banco de trás do carro

nesta cena de pierrot le fou


o ponto de vista do espectador é de quem está de fora
porque os dois estão de costas para a câmera
apesar disso a estrada vai se abrindo à frente
e o movimento carrega todo mundo pra dentro da história

  45  
nesta cena de pierrot le fou
o diálogo que ocorre entre ferdinand e marianne
tem um tom bastante leve
para a gravidade do assunto
eles discutem o que farão agora
depois de fugirem juntos depois que ele largou mulher e filha
depois de se envolverem com tráfico de armas
com um assassinato e de roubarem este carro
ferdinand quer parar em alguma praia tranquila
e ficar com marianne por um tempo
ferdinand diz mais de uma vez que está apaixonado
mas marianne responde que eles precisam de dinheiro
ela sugere que procurem seu irmão para conseguirem grana
e poderem ir para um hotel chique se divertir

nesse momento ferdinand vira


olhando para trás na direção da câmera
e diz – estão vendo
ela só pensa em se divertir
marianne se vira também olhando para trás
na direção da câmera
e pergunta pra ele – com quem você está falando?
ao que ele responde – com o espectador

esse curto diálogo de pierrot le fou


contribui para dar ao filme sua dimensão de filme
de alguma modo essa menção ao espectador
fura o filme e insere nele uma espécie de
corte
interrupção que dá a ver mais concretamente
a dimensão da montagem no cinema
a mídia que poderia passar desapercebida
>

  46  
no produto final
irrompe no filme criando uma descontinuidade um furo
o que sinto ao pensar em você
ela disse
é um furo

se penso na poesia
quais recursos ao lado do corte
poderiam contribuir para tornar o poema
um poema?

2.
a poeta polonesa wislawa szymborska
começa um discurso sobre poesia
dizendo que o mais difícil de um discurso
é a primeira frase
mas que mesmo depois de ter começado
continuar o discurso será tão difícil quanto começar
pois ela vai falar de poesia
e por que é assim tão difícil falar
de poesia?
a poeta polonesa wislawa szymborska
foi publicada em livro no brasil em 2011
um dia conversando com o rafael montavani
ele disse que estava tentando escrever
usando o mesmo registro de escrita de wislawa szymborska
ao ler seu livro anterior
percebi que havia outra presença
percebi que havia a presença de adília lopes ali
adília lopes aparecia de forma mais sutil
em um tipo de humor nonsense
no uso da série no uso das paranomásias
ou ao tratar de algumas questões como o feminino
>

  47  
o diálogo com adília lopes atravessa
o livro de rafael em várias direções

3.
giorgio agamben diz que
no cinema
a montagem é feita de dois processos corte
e repetição
parece que o giorgio agamben
está falando de poesia
posso deslocar a leitura de giorgio agamben
(ou cortar)
e repetir para pensar na poesia
corte e repetição

gertrude stein diz


que não existe repetição
mas insistência

4.
a poeta portuguesa adília lopes
foi publicada em livro no brasil em 2002
desde então alguns escritores no brasil
dialogam com a adília lopes
citam a adília lopes
incorporam versos tom humor
da adília lopes
produzindo furos na própria escrita
por onde podemos ouvir a
adília lopes

  48  
5.
já falei da hilary kaplan
a hilary kaplan morou no rio de janeiro entre 2011 e 2012
a hilary kaplan está na capa da modo de usar & co. 3
agora a hilary kaplan mora em los angeles
a hilary kaplan traduziu alguns textos meus para o inglês
durante o processo conversei com a hilary kaplan
sobre tradução a hilary kaplan
fez perguntas sobre os poemas
depois a hilary kaplan partiu para casa
depois fiz um poema para a hilary kaplan
chamado “uma partida com hilary kaplan”
essa partida é um diálogo com hilary kaplan
essa partida é uma forma de partir com a hilary kaplan
para fazer esse texto
me apropriarei das perguntas da hilary kaplan
e coloquei em versos
usei o mesmo procedimento de charles bernstein
ao fazer “um teste de poesia”
o resultado é uma lista de perguntas sobre a linguagem
o resultado é uma lista de perguntas sobre os poemas
o resultado está na página 87 deste livro
muitas das perguntas da hilary kaplan
não consegui responder
porque exigiam que definisse questões no texto
onde eu queria manter a dúvida
por exemplo tem o caso dos pronomes
posso omitir os pronomes em português
e não dizer quem é o sujeito da ação
eu gosto de omitir os pronomes em português
e criar essa confusão
muitas vezes a gente não sabe quem é o responsável pelas coisas
e dizer isso com a linguagem
>

  49  
ajuda a pensar
se uso um verbo como “disse” sem pronome para definir
então
o sujeito da ação pode ser tanto ele disse
quanto você disse quanto ela disse
quanto eu disse
assim poderia manter uma suspensão
sobre quem disse o quê
e quem fez o quê
afinal
quem disse o quê? você pergunta
mas vai saber
é provável que todo mundo fuja pouco a pouco
o que é bem normal
discretamente tudo vai se eclipsando
ela disse
mas afinal quem foi o responsável?
de todo modo em inglês
era preciso definir os pronomes
em alguns casos a hilary kaplan
buscou maneiras de manter o discurso aberto
usando outros recursos
esta é uma forma de pensar nas possibilidades da língua
a partir de outra língua
esta é uma forma de pensar em si
a partir do outro

quanto aos pronomes


percebi que mesmo definindo e usando pronomes
podia fazer uma alternância com eles
para manter a indefinição
assim mesmo ditos
os pronomes podem deslizar
>

  50  
talvez o discurso possa seguir
circulando talvez importe fazer
perguntas e não definir quem fez
o quê

6.
o filme la jetée do chris marker
é todo feito a partir de fotografias imagens fixas
que vão passando pouco a pouco
como um filme antigo
o cinema hoje também é feito a partir de imagens fixas
mas são usadas 24 imagens por segundo
o que produz a ilusão do movimento
no filme de chris marker
ele usa a mesma imagem por vários segundos
deixando o espectador ver as imagens fixas
ele chama esse filme de fotonovela
uma linha aos olhos é uma sequência
de pontos

7.
quando traduzo um poema
escrevo um poema que não seria escrito
na minha língua
mas que ao ser traduzido acaba sendo escrito
na minha língua
quando traduzo um poema
penso em algumas questões que não seriam colocadas
por um poema na minha língua
mas que acabam sendo colocadas ao se traduzir este poema
quando escrevo um poema
já tendo traduzido outro poema
que não seria escrito na minha língua
>

  51  
será que esses dois gestos
se atravessam?

8.
o anthony gormley
fez uma instalação chamada
blind light
blind light parece um quadrado que cega
pois aqui a luz faz o contrário de
iluminar ele diz
que a arquitetura serviria para dar segurança e certeza
acerca do lugar onde estamos
a arquitetura deveria proteger
do clima do frio da incerteza
mas blind light mina as coisas
entrar no espaço interior equivale a sair
a estar no topo de uma montanha
ou na borda do mar

9.
em 1965 o escritor americano charles reznikoff
escreveu um livro chamado testemunho
ele usou tesoura e cola
charles reznikoff recortou e colou
depoimentos de testemunhas de crimes ocorridos
no final do século XIX nos estados unidos
charles reznikoff versificou e reordenou os textos
de acordo com alguns critérios como
região onde o crime ocorrera ou tipo de crime praticado

em 1925 oswald de andrade recortou


cartas e anotações de cronistas e viajantes portugueses
para escrever sua poesia pau-brasil

  52  
em 2006 o escritor argentino pablo katchadjian
colocou o poema “martín fierro”
em ordem alfabética e publicou o livro
o martín fierro ordenado alfabeticamente

esses são exemplares procedimentos de


corte e repetição
nesses exemplares
o processo é bem literal
porque recorta os enunciados
e leva para outro contexto
a fonte de duchamp faz isso também
ele diz
desloca o objeto
aqui importa o ponto de chegada

talvez em alguns casos


como no de martín fierro ordenado alfabeticamente
o procedimento funcione mais de forma conceitual
pois se visto como poema
o resultado beira algo quase ilegível
mas ele pode ser visto também de outra maneira
ele serve para repensar o martín fierro
para furar o martín fierro
serve para ler as coisas de outra maneira
serve para pensar por exemplo
que estamos repetindo muito esse gesto
ultimamente ao atravessar os vários suportes
e meios digitais digitando recortando
colando vivendo a
hiperinformação

  53  
o procedimento está presente em tudo
mesmo que não seja repetido tal e
qual mesmo que não seja repetido
tal e qual mesmo que não seja
repetido

10.
um dispositivo que produza repetição
pode produzir novas formas de
percepção?

11.
quando li este texto
há uma semana
lá no encontro no centro universitário maria antonia
o damián taborovsky me fez uma pergunta
acerca dos procedimentos de recorte e colagem
que eu estava citando
o damián tabarovsky disse que havia
um humor nesses textos
que não estava explícito na minha fala
o damián queria saber como eu lidava com isso
na hora em que respondi à pergunta do damián
me atrapalhei
na hora de responder às perguntas eu costumo me atrapalhar
acho que não escuto o que as pessoas estão dizendo
fico querendo resolver o problema em vez de manter
o diálogo e a escuta abertos
talvez eu não tenha escutado a pergunta
do damián
pensei
por quanto tempo você consegue prender a respiração
debaixo d’água?
>

  54  
vou tentar manter a escuta aberta
depois já em casa
conversando com o leo sobre a pergunta do damián
vi que faltou falar sobre os documentos
poéticos
faltou falar que esses textos podem ser lidos
como documentos poéticos os documentos poéticos
são textos que trabalham com um material preexistente
que carregam informação
de um lugar para outro
mudando a forma
dando a ver algo que não estava claro
na disposição inicial os documentos poéticos
são instrumentos de descrição e compreensão do mundo
e servem como ferramentas conceituais e perceptivas
para ler o que está ao redor
o poeta francês frank leibovici
escreveu um livro chamado documentos
poéticos
no qual descreve este procedimento na obra do
charles reznikoff e do artista plástico
mark lombardi
mark lombardi tentava montar diagramas
a partir das notícias que lia no jornal
sobre as redes internacionais
de crime e terrorismo
nesses diagramas mark lombardi dispunha as relações
entre figuras públicas países personalidades
buscando perceber algo que não existia na poética isolada
os desenhos de mark lombardi são usados pelo fbi
porque mostram relações que não estão evidentes
de outra forma
o frank leibovici
>

  55  
também escreveu seu livro achado o portraits chinois
onde recorta relatos e textos da internet
de reféns sobrevivientes das guerras
do iraque e do afeganistão
os documentos poéticos servem para repensar
o mundo
mas a poesia não serviria para isso
também? você pergunta
e eu não sei para que serve a poesia
e eu penso na resistência e nos resistores na eletricidade
na eletrônica nos chips nos codecs
e nos testes os testos todos os testes para sobreviver
e afinal quem disse o quê?

quanto aos documentos poéticos


o frank leibovici diz que
eles são documentos e não poemas
porque tratam de assuntos públicos
e podem estar em outros campos
que não só literário e ficcional
o frank leibovici deu sua definição:
entendo por esse termo
não um poema
nem mesmo textos com uma visada poética
mas um dispositivo destinado a produzir
um certo tipo de saber mais do que conteúdos específicos
são formas e formalizações de saberes de diferentes naturezas
que são buscados e talvez inventados
essas formas
resultantes de um contexto preciso
devem poder ser transportadas para outros contextos
e adaptadas às necessidades de então

  56  
eu não saberia definir o que são
os documentos poéticos
mas quando são documentos
poéticos
eu diria ao damián
que o martín fierro ordenado alfabeticamente
poderia ser um documento poético

mas e quanto ao humor daqueles


procedimentos? você pergunta

12.
em 1999 vi uma exposição no centro cultural hélio oiticica
lembro da luz que fazia naquela tarde
lembro da luz que entrava por uma janela no segundo andar
e transformava a sala de
exposição
lembro dos mapas atravessando toda a sala
os mapas espalhados sobre colchões
um colchão ao lado do outro colchão
lembro de sair de lá
e caminhar pelo centro do rio
rua luís de camões avenida passos
lembro da luz que fazia naquela tarde
blind light

13.
entrar no espaço interior equivale a sair?

14.
de que maneira uma tradução
quando entra na língua de chegada
>

  57  
pode deslocar o corpo do que se escreve ali
e refazer a roda de leitura e produção?
de que maneira um poeta escrevendo na mesma língua
como é o caso da adília lopes
pode entrar no corpo da literatura
e ser lido como tradução?

15.
eu acho que aqui em são paulo
as pessoas costumam atravessar a rua na faixa de pedestres
eu acho que aqui em são paulo
as pessoas não têm a mania
de atravessar a rua no meio dos carros
é o que tenho pensado aqui em são paulo
como é agradável a sucessão
de palavras
disse a gertrude stein
no dia em que fui falar no centro universitário maria antonia
tomei o metrô para chegar na vila buarque
entrei na estação ana rosa tomei a linha azul direção tucuruvi
desci na sé baldeei para a linha vermelha
direção palmeiras barra funda e desci na república
na república caminhei pela avenida ipiranga
depois pela consolação e cheguei na rua maria antonia
antes de pegar o metrô na estação ana rosa
atravessei a rua na conselheiro rodrigues alves
ao atravessar a rua estava fora da faixa de pedestre
olhei e não vinha carro
os carros estavam parados num sinal lá longe
então atravessei fora da faixa de pedestres na altura
do supermercado pão de açúcar
mesmo sem nenhum carro vindo
como estava fora da faixa de pedestre atravessei correndo
>

  58  
quando estava no meio da rua
já chegando na última pista
saiu um carro do estacionamento do supermercado
a motorista estava olhando na direção oposta
para ver se não vinha nenhum carro
para ver se ela podia entrar na última pista
e como estava olhando na direção oposta
não viu que eu estava entrando com toda pressa
na frente do carro dela
eu estava correndo e não tinha mais como parar
já tinha entrado na frente do carro dela

foi por um triz o pipoqueiro na calçada em frente


deu um grito eu fiquei com a perna bamba
porque senti o deslocamento
de ar
provocado pelo carro nas minhas costas
a motorista não viu nada
eu entrei no buraco do metrô
– então descemos para o centro do mundo
ele diz
então desci para o centro do mundo
pensando que ainda estava viva
por um instante esqueci mas depois lembrei
que estava indo para o centro universitário maria antonia
e tomei a linha azul na direção tucuruvi
uma linha aos olhos
é uma sequência de pontos

16.
em 1989 emmanuel hocquard escreveu um poema
longo chamado
“dois andares com terraço e vista para o estreito”
>

  59  
emmanuel hocquard é um poeta francês
que nasceu em 1941
no poema longo
“dois andares com terraço e vista para o estreito”
emmanuel hocquard narra uma viagem
que faz a tânger no marrocos
cidade onde passou a infância e adolescência
quando ele escreve este poema longo
estava há vinte anos sem ir a tânger

a viagem narrada começa na andaluzia


onde ele toma um barco pra cruzar o estreito de gibraltar
e depois percorre a cidade de tânger a pé e de carro
é uma viagem feita pelo espaço
mas também pelo tempo
já que ele traz à tona memórias da infância
e sobrepõe diversos mapas na narrativa
o mapa da infância o mapa que percorre
o mapa da escrita que se sobrepõe às linhas do seu texto
o poema é todo sem pontuação
tem uns versos mais longos e outros
curtos
e forma um desenho na página que lembra o
estreito
de gibraltar
como outros textos de emmanuel hocquard
esse poema é um híbrido
texto narrativo
que às vezes traz ecos dramáticos
com várias pessoas falando
e que usa também o corte o verso a elipse
a insistência
alguns desses furos que poderiam fazer a gente
ler um poema como poema

  60  
em 2007 traduzi esse poema longo
“dois andares com terraço e vista para o estreito”
em 2009 fui para a frança conhecer o emmanuel hocquard
e escrevi o engano geográfico
contando essa viagem
para a escrita do engano geográfico
me apropriei do poema
“dois andares com terraço e vista para o estreito”
citando versos e me aproximando do seu tom
minha viagem é feita pelo espaço
pois vou até lá e descrevo o percurso
mas também pelo tempo como no poema dele
com a sobreposição de mapas afetivos
e lembranças
com a repetição de frases e espaços

existe uma busca atravessando o poema em vários sentidos


espreito da janela dois ônibus amarelos
passando em direções opostas
um trem pode esconder outro trem
como uma linha esconde outra linha
listo os elementos que vou encontrando pelo caminho
existe uma busca
que não é pelo centro do mundo
como o poema parece pedir
pois aqui não há centro

ele diz que é muito importante que


dentro se encontro o fora
você entra
e percebe que saiu do outro
lado

  61  
17.
a poeta polonesa wislawa szymborska diz que sente dificuldade
de continuar um discurso depois de já ter começado
por causa do assunto que está tratando a poesia
por que é difícil falar de poesia?
quando escrevo um poema
procuro uma espécie de abertura de repetição de diálogo

para pensar o processo de escrita em termos práticos


enumero as ferramentas que tenho
à minha frente
enunciados filmes narrativas google
poemas recortados copiados à mão
traduções jornais um romance lembranças diversas
alguma chateação frases
que serão transportadas
um fone de ouvido tocando o que eu quiser ouvir e
alguma perplexidade diante de algo que fiz de errado
que disse que ouvi ou de uma cena que vivi

além disso
tento entender alguma coisa
talvez algo impreciso inicialmente
mas que no processo se torna mais claro
e tento dialogar
com um repertório de pessoas e objetos e situações
e textos listar essas ferramentas
e traçar um fio depois reordenar o discurso
de modo que isso possa ajudar a pensar
e a passar
os dias
com essas ferramentas
busco ideias que possam servir
>

  62  
para me levar por essa cartografia
ideias que são procedimentos
diante dessas ferramentas
o processo tem algo de permeável
que torna a escrita imprevisível
depois de pronto o texto estabeleceu suas conexões
tornou-se uma forma de leitura das coisas
talvez seja difícil falar de poesia
porque em geral tentamos falar desse processo
a partir de algo que não é processo
e o processo escapa porque
ao falar dele
já não estou nele estou do outro lado

falar é repetir
mas repetir depois e de outra forma
falar é insistir
assim ao repetir o processo
produzo outro processo
performatividade
ele diz
com quem você está falando?
ele pergunta
e eu tento descobrir quem é ele

18.
no filme pierrot le fou de jean-luc godard
quando marianne pergunta a ferdinand
“com quem você está falando?”
sua pergunta nomeia a ideia de destinatário
com quem você está falando?
quem está aí? quem está ouvindo?
é um diálogo?
>

  63  
posso perguntar também
quem está falando no filme
ferdinand? marianne?
godard se dirigindo ao espectador?
talvez importe fazer
perguntas

19.
em 2008
para participar de uma antologia
em homenagem a ana cristina cesar
fiz um poema chamado
“a garota de belfast
ordena a teus pés
alfabeticamente”
o poema partiu de uma brincadeira de leitura
peguei todos os versos do livro
a teus pés
e coloquei em ordem alfabética
foi uma maneira de ler o livro de ana c. de outra forma
de deslocar o contexto de onde tinham saído os versos
para poder perceber outras relações a partir
dos próprios versos
foi uma maneira de conhecer ana c. outra vez
parece que a gente está sempre buscando conhecer de novo
refazer o caminho até as coisas
percebi por exemplo que a palavra “atravessar”
se repete muitas vezes no início dos versos
ou então que o “agora” é o marcador temporal
mais frequente ocupando o início dos versos
o procedimento deixa a gente curioso
para ler por exemplo
quais são as linhas que começam com o pronome “eu”
>

  64  
nos poemas de ana c.
ou pelo “você”

a teus pés em ordem alfabética foi apenas um jogo de leitura


do qual partir para fazer o poema

há algumas semanas
para o lançamento da obra poética de ana c.
preparei um vídeo a partir desse poema
queria descrever concretamente o processo de feitura
de algum modo essa prática é como a da escrita
escolhi um filme da cineasta belga chantal akerman
je, tu, il, elle
e recortei quatro cenas
o filme parecia um banco de dados
queria pegar uma imagem
que dialogasse com o poema
uma imagem fora do contexto
mas trazendo dele rastros restos
uma imagem que pudesse estabelecer relações com o texto
escrever também pode ser assim
às vezes basta um verso uma fala solta
que possa se encaixar e transformar um poema
a fala não traz nada do seu contexto inicial?
ele pergunta
seleciono as cenas do filme para importar no adobe pro
depois importo o áudio com a leitura do poema
a partir daí
passo a recortar as cenas
montar repetir avançar
ouvir o ritmo do texto a voz da imagem
em movimento
então insiro texto sobre isso tudo
>

  65  
para dialogar com o que está acontecendo
de algum modo é como escrever
e o resultado imprevisto
o vídeo está aqui
https://www.youtube.com/watch?v=BA4UgPVVwIQ
e o texto na página 41

20.
em 2007 escrevi o livro 20 poemas para o seu walkman
tentando pensar em espaços e mapas
que não têm a escala habitual ou que podem ser
redimensionados que importam menos
como representações de lugares que existem
e mais como lugares que fazem conexões
dessas representações com outras coisas
o aníbal cristobo me disse uma vez
que pareciam paisajes visitados en extrañeza
nesses mapas
cabe a pergunta de hilary kaplan
quando olho para os pés boiando
olho para a frente ou para baixo?

escrevi o livro 20 poemas para o seu walkman


querendo que o leitor ouvisse os textos o ritmo o andar
daqueles poemas
queria que o leitor sentisse o deslocamento
o literal do walk-man
o homem andando
um fio que vai conduzindo as coisas
em cada cena estamos em um lugar diferente
os personagens
vão atravessando os poemas
e atualizando as narrativas que aparecem
>

  66  
as narrativas são entrecortadas
contadas só pela metade
aqui o país não é o mapa

21.
no dia do encontro
lá no centro universitário maria antonia
o paulo ricardo alves fez uma leitura dos meus livros
a partir da ideia do walkman
e do texto do iain chambers
the aural walk
a análise dele buscava pensar em como um dispositivo
por exemplo o walkman
pode mediar nossa experiência com o mundo
e transformar a percepção que temos das coisas
depois da mesa
alguém fez um comentário sobre a fala do paulo ricardo
e eu lembrei da pesquisa do rodolfo caesar sobre o
loop
o rodolfo caesar é um compositor o rodolfo caesar
compôs uma peça chamada círculos ceifados
o rodolfo caesar tem uma pesquisa sobre o
loop nessa pesquisa o rodolfo caesar
procura pensar na repercussão do loop
a partir da invenção do sillon fermé
sulco fechado risco do disco? você pergunta
o rodolfo caesar procura identificar
formas de loop no pensamento
antes da invenção do sulco do disco
um dispositivo que produza a repetição
como o sulco do disco
pode produzir novas formas de percepção?
talvez importe fazer perguntas
>

  67  
e saber dizer
sim
o rodolfo caesar fez uma peça musical
com um poema do meu livro chamado “aquário”
o rodolfo caesar pensava na ideia
do poema para tocar no walkman
como uma voz interna tocando
quando ele me explicou
pensei na voz girando dentro do loop do aquário
falei para ele que eu também pensava no walkman
com a possibilidade de um mundo em deslocamento
da escuta do mundo em deslocamento
lembrei do poeta argentino
oliverio girondo
em 1922
oliverio girondo escreveu um livro chamado
20 poemas para ser leídos en el tranvía
seus 20 poemas estão em movimento
seus 20 poemas carregam o leitor
pelas linhas do bonde
são apuntes callejeros
seus 20 poemas caminham com a escuta aberta
o rodolfo caesar propôs de sairmos na rua
com um gravador e a escuta aberta
um dia saímos na rua almirante alexandrino
era um fim de tarde de 2008
bonde alguns carros passando
e gravamos o poema caminhando
o rodolfo caesar me disse nesse dia
seu poema tem 15 passos e eu fico sempre pensando
em quantos passos tem cada poema que leio
depois o rodolfo caesar fez a peça musical “aquário”
usando os sons da almirante alexandrino
um loop do mahler de 1911

  68  
e a gravação que fizemos com a leitura do poema
a peça está aqui
sussurro.musica.ufrj.br/abcde/c/caesarrodolf/20082009/Aquario.mp3

depois que publiquei o livro


recebi uma mensagem de alguém dizendo que ele
o livro
já tinha nascido velho
porque os poemas deveriam ser para o ipod
afinal já estávamos em 2007
tive vontade de responder que se fossem poemas para o ipod
não seriam 20 poemas
mas centenas talvez milhares de poemas
esse número sim estaria no campo semântico do ipod
talvez o livro fosse velho e daí
mas acabei não respondendo nada na época
hoje gosto desse anacronismo que existe no
walkman
o walkman foi registrado pela sony
em 1979
o ano em que eu nasci

22.
o filme la jetée do chris marker
é todo feito a partir de fotografias imagens fixas
que são repetidas por vários segundos
e dão a ideia de uma fotonovela
há uma única cena em movimento no filme inteiro
nessa cena
a mulher do passado
a que aparece sorrindo na foto do terminal de orly
a que o protagonista volta para encontrar
>

  69  
está dormindo
aparecem várias imagens fixas dela em posições diferentes
sempre dormindo
até que nessa cena
a única cena do filme em que ocorre o movimento
ela acorda
e olha para a
câmera

23.
ao escrever o engano geográfico
tomo o poema de emmanuel hocquard
uma narrativa de viagem
como modelo para narrar a viagem que fiz até ele
faço minha viagem com um caderno
pensando no poema dele
escrevo a viagem
e ela acontece
a viagem de emmanuel hocquard
é uma viagem na direção do passado
já que ele se desloca em busca da memória
repito a viagem dele de outra maneira
pois não vou a tânger nem volto ao passado
sua viagem a tânger será aqui ele me disse um dia
será que a minha viagem seria
na direção do futuro?
estamos no futuro
diz o filme do chris marker
o procedimento de fazer uma viagem
me leva ao lugar me leva ao ter lugar
na leitura do outro
acabamos por chegar em nós mesmos
ele diz
>

  70  
e eu olho para a câmera
no livro 20 poemas para o seu walkman
depois de percorrer tantos caminhos
não encontrei o que eu buscava
eu nem sabia o que eu buscava
mas não encontrei
os personagens voltam em momentos diferentes do livro
tentando sobreviver em uma geografia estranha
se afogam se perdem não têm uma bússola
para achar os caminhos
nem um gps pensando no leitor do ipod
mas o caminho é feito
cruzando as linhas do poema
e atravessando
os furos

24.
em 1999 vi uma exposição no centro cultural hélio oiticica
do guillermo kuitca
lembro da luz que fazia naquela tarde
lembro da luz que entrava por uma janela no segundo andar
e transformava a sala com a exposição do guillermo kuitca
o guillermo kuitca é um artista plástico argentino
que trabalha com mapas o guillermo kuitca disse
que consegue ver no seu trabalho uma linha quase reta ligando
os mapas rodoviários os mapas de cidades
as plantas baixas e as pinturas para cenários teatrais
mas cada série de obras
começa mais como uma visão
do que como um projeto

Um teste de resistores, 2014

  71  
HOLA, SPLEEN

um dia
ela me disse
“hola, spleen”
e eu demorei mas depois
percebi que era uma
frase sobre
o tempo.

talvez
um jeito de dar
as boas-vindas,
mas a gente nunca sabe
o que vem depois.
um dia quis ler em voz alta
um poema chamado
“hola, spleen”,
mas quando chegou a hora
fiquei muito muito gripada,
e o que foi pior
o que me impediu de ler
foi que fiquei
sem voz.

se tivesse gravado
o poema antes,
podia ligar a voz
e tocar em vez de ler,
mas eu não tinha
uma voz gravada
e não havia como produzir
voz.

  72  
então, combinei
que faria a leitura outro dia
e ainda faltava um mês
para chegar a leitura que vou chamar
aqui de caixa-preta
e eu não tinha ideia
de como eu estaria no dia da caixa-preta
e pensei que se este mês
seguisse o ritmo acelerado
e catastrófico deste e do último ano
tanta coisa já teria
acontecido hoje,
que me dava medo
imaginar.

assim,
esta voz que fala aqui
é a voz de uma marília de um mês atrás
é a minha voz falando a partir do passado,
é a minha voz,
mas sem controle.

há um mês eu não tinha


como prever nada
e fiquei me
perguntando:
– como fazer para essas palavras escritas
há um mês dizerem algo
sobre estar aqui
agora?
e eu não soube responder.
então, fiquei me perguntando
se hoje estaria chovendo
>

  73  
ou fazendo sol,
se faria frio ou não,
e se haveria poeira no ar.
eu sempre me surpreendo
com a poeira que turva a vista:
de repente no meio do dia
uma poeira que se ergue,
uma nuvem
de poeira,
pode ser a poeira vinda das coisas quebradas
todos os dias na vida das pessoas
e eu fiquei pensando
se estaria muito seco nesse dia ou não
e pensei que talvez a gente pudesse
fazer silêncio
e deixar a escuta aberta
para ouvir.
talvez a gente pudesse fazer silêncio
e de repente neste silêncio
acontecer de ouvir algo por detrás
dos ruídos das máquinas voadoras que
cruzam o céu.

talvez não desse para ouvir as máquinas voadoras


neste dia,
foi o que pensei,
mas eu me enganei
porque hoje
desde cedo
os helicópteros estão voando.

– vocês estão ouvindo?


um som infernal
>

  74  
estrelas caindo do céu
em cima da cabeça
com as pontas viradas
para baixo.
o som está cada vez mais perto,
posso encostar a mão
se me viro vejo a sombra
em câmera lenta
sobre a cabeça.

imaginem que isso aqui é um quadrado


com drones volantes,
ou uma cena congelada
com o céu cheio de zepelins,
mas o som é um só:
barulho de máquinas
voadoras
pelo céu.

se a gente prestar atenção e fizer silêncio


– se a gente prestar atenção e fizer
silêncio –
pode ser que ouça
alguma mensagem
perdida no ar.

Câmera lenta, 2017

  75  
LEONARDO GANDOLFI (1981)

O ESPIÃO JANTA CONOSCO

Como os antigos mas sem sua elegância


a coisa começa bem na metade. Zé Ramalho
fez a canção que talvez seja a canção mais
Roberto Carlos que já ouvimos. Aquelas Ondas.
Quanto tempo temos antes de voltarem? Pelo sim
pelo não Roberto acabou deixando-a de lado.
O mesmo aconteceu com Gilberto Gil,
Se eu quiser falar com deus também não fez
a cabeça do rei – folgar os nós dos sapatos
e da gravata não acontece da noite para o dia.
1976, contracapa do disco San Remo 1968:
O Show Já Terminou da dupla Roberto e Erasmo
esconde uma historinha particular só agora
revelada por RC, diz Big Boy. Então sobre a que talvez
seja sua mais bela canção assim fala Roberto:
Sou fã incondicional de Tony Bennett – quando
fiz essa música eu já imaginei inclusive a versão
dela em inglês com Tony Bennett cantando – e
comecei a fazer a música especialmente para ele
– é lógico que depois eu cantei do meu jeito – mas
ela começou de uma ideia pensada na voz do Tony
que na minha opinião é o maior cantor do mundo.
Também acho Tony Bennett o maior cantor
do mundo. E embora bem menos do que gostaria
também acredito na possibilidade de uma ideia
>

  76  
pensada na voz do outro mesmo que do nosso jeito.
Não importa quem gravou o quê nem para quem
fazemos o que fazemos. Que bom que uma ideia
pensada na voz do outro ainda é uma ideia pensada
na voz do outro. Aliás uma vez me disseram
não lembro quem que vítima e carrasco disputam
o mesmo tempo. Pouco importa, queridos fantasmas,
dezembro está aí e evitar mal-entendidos é que é bom,
venho repetindo isso para mim mesmo todos os dias
embora eu ainda não consiga abrir mão de duas
ou três segundas intenções que até hoje, acho,
nunca fizeram mal a ninguém. Muito pelo contrário,
é justamente isso o que mais tem nos aproximado.

A morte de Tony Bennett, 2010

  77  
EFEITO DOMINÓ

Já há algum tempo venho resistindo à ideia de escrever


isso. Um pouco talvez pela relação estreita
que tenho com que vai contado, um pouco
pela indiferença e estranheza com que tenho lido
qualquer coisa minha depois de pronta. Não importa,
aqui está depois de tantas aventuras com espiões
e bandidos que arriscaram suas vidas por razões
às vezes suspeitas. Espero que o corte digamos
acidental dos versos ajude a criar uma sensação
de confiança nas palavras, torço também para que
o tom sugerido ajude a controlar o sentimentalismo
barato de que tenho ultimamente sido vítima regular.
Gosto do cenário, que poderia ter sido outro. Talvez
esta história comece durante o show de uma banda
cover dos Beatles ou mesmo antes. Todo mundo
gosta dos Beatles e a banda cover apesar
da desconfiança natural de qualquer um era boa.
Sintoma do duplo que afetaria toda uma vida ou
seu presságio, pensei. Minha mãe não sabia mas já
carregava consigo o aneurisma que só mais tarde
dois ou três meses depois descobriria ter. Por isso
mesmo sem saber não quis ficar e ouvir as canções
que todos gostavam, entre elas, Help Blackbird
Ticket to Ride. Ela chorou e disse querer
ir embora. Meu pai, minha irmã e eu concordamos.
Estavam lá também perto da música amigos
meus como Tiago Vanessa Fábio e Franklin.
Vanessa hoje é minha namorada, Franklin desistiu
dos livros, Tiago fez o mesmo com a música e Fábio
foi para Alemanha estudar no Arquivo Hegel. Eu
jamais dedicaria versos a eles, meus amigos,
>

  78  
ou à minha mãe. Isso não é coisa que se faça
sobretudo à minha mãe ou a meus amigos.
O que fariam com uma dedicatória? Ainda mais
com uma de gosto tão duvidoso. Par além daquilo
que aqui só a mim interessa este último poema talvez
se arrependa de algumas coisas mas não de todas. Por
causa disso tem consciência tanto da sua fragilidade
quanto da nossa. É que embora conheça de perto
a natureza da ficção errou por ter chegado muito
tempo depois, alguns anos, eu diria. Por isso
parece desconfiar do significado de tudo
aquilo que fizemos, melhor, de tudo aquilo
que um dia eu deveria ter feito. Não importa,
talvez não voltemos a encontrar por aqui tiros
perseguições ou coisas do gênero mas apenas
uma lembrança, a de que a poesia – inclusive
maus poemas assim – é feita de uma mesma
substância escura, distante e por isso nossa.

A morte de Tony Bennett, 2010

  79  
CRONOLOGIA

Tecnicamente não sou lá boa pessoa.


Amei e fui amado sem ter visto nisso
amor ou o que quer que seja. Em segredo
traí amigos mulheres e a memória alheia.
Cultivei a mentira o medo a covardia,
tudo em seu registro menos assertivo,
e só mais tarde fui aprender que ao melhor mal
coube a mim apenas a melhor resposta.
Pois se houve bem no mal do qual fiz parte
foi o de ver que as pedras que tenho no bolso
também estão no bolso daqueles que não
abracei nem dei a mão. Nossa canção
embora solitária e cheia de paz
é uma só canção e, cante o que cantar,
ouviremos apenas os ruídos deste
que tem sido apesar de tudo o nosso tempo.

A morte de Tony Bennett, 2010

  80  
DIAS COM CIMENTO

Existimos em relação a todos os pontos,


futuro passado etc. E custa caro à nossa atenção
saber qual a melhor hora para o bocejo.
Trazemos conosco a paixão de romances baratos
e mais mal-entendidos que toda literatura russa
de uma só vez, tudo em registro estival.
Reclamar é o que temos feito desde sempre
– colesterol juros etc. Hoje de manhã
em São Conrado estão enormes as ondas,
amendoeiras e coqueiros agitados pelo vento.
Alguns atletas de ocasião correm de lá pra cá
contra a perda de tonicidade muscular.
E vem da praia uma luz muito bonita.

Tão bonita que faz do sono um sentimento


e do cansaço esta espécie de talento secreto
com que vou calçando meus sapatos toda manhã
neste inesquecível mês de maio para uso do meu calendário.
Espero que ao topar com um dia como hoje
São Conrado e esta manhã lhe ofereçam
a mesma luz fina e cansada que vi mas espero
mesmo é que as ondas quando quebram lhe sejam
como para mim foram a mais bem acabada
imagem que já não procuramos nos antigos
do que seja a paciência, a melhor paciência
com que se vão fazendo os dias
os nossos entre os quais.

A morte de Tony Bennett, 2010

  81  
INSERT COIN1

Cinco ou seis minutos de espera


a contragosto, o tempo médio
para alguém perder a paciência
aprendi isso no Discovery Channel.
Faz meia hora, aguardo Isolda voltar
foi comprar uma sandália, com tanta ladeira
a dela arrebentou. Estou sentado aqui
sete mesas, todas ocupadas, falam alto.
O meu segundo café, o terceiro eu ainda
nem pedi, mas depois de dois goles
um fim terrível o aguarda. Ao meu lado
cinco sachês, todos de açúcar, quatro
deles abertos. Vou abrir o quinto agora.
Merda, derrubei o café na minha calça.

A morte de Tony Bennett, 2010

                                                                                                               
1“Insert coin” reúne uma série de poemas do livro Escala richter. Os poemas aqui reunidos até
a p. 91 fazem parte dessa série.

  82  
No ano em que você nasceu
a comemoração de 15 anos dos Trapalhões.
Seu pai trabalhava na Casa da Moeda
e ganhou uma das 60 moedas cunhadas
especialmente para a homenagem.
Num lado o aviso da efeméride
no outro à maneira de charge
quatro efígies e uma data abaixo.
Após 12 anos, o mesmo pai, testa
em frisos, chama o garoto, feliz aniversário.
Ele mostra a data na moeda e diz
abre a mão, segura, é da sua idade.

  83  
Mesa à esquerda
alguém de nome Flávia
conforme descobri há pouco
centraliza uma conversa
não só com alguém de nome
Bruno, mas também com alguém
de nome Letícia conforme também
descobri há pouco. Não sei quem
dorme com quem, sei apenas
que alguém dorme com alguém ali.
Enquanto isso, mesa à frente
uma criança de nome Paulo
conforme fico sabendo mais tarde
atira o primeiro dos sachês de açúcar.

  84  
Para fins de calendário
19 de abril, tanta coisa pode acontecer
e deixar de acontecer. Exemplo, 19 de abril
nasceram Roberto Carlos e Manuel Bandeira
19 de abril morreram Octavio Paz
e Charles Darwin. Pudera
morrem uns, nascem outros, pudera
quando Isolda chegar, abandonarei
meus vizinhos de mesa
seguirei para Mariana, lá
além de outras ladeiras visitaremos
mãos dadas e falta de ar
outras demonstrações públicas de talento do Iphan
para demolições a médio prazo.
Por ora ela não chegou, por ora nosso amigo
Paulinho, assim a mãe o chama, terá tempo
para mais duas ou três demonstrações de afeto
por seus pais ao berrar e arremessar
sachês de açúcar, fechados ou não, nas mesas ao redor.
Para fins de calendário, 19 de abril
por ora esqueci de mencionar
para além das idas e vindas neste dia
– Octavio Paz Roberto Carlos Charles
Darwin Manuel Bandeira – 19 de abril
foi dia em que fotografaram o monstro do Lago Ness.
Enquanto ele emerge preto e branco de gélidas
e escocesas águas, afundamos – eu os pais de Paulinho
e tantos outros personagens em marcha –
num pastoso e cinzento material de fabricação própria.

Você disse para um amigo


que estava preparando algo sobre
as férias em Ouro Preto, ele veio logo
>

  85  
falando que seria impossível passar sem
o Romanceiro da Inconfidência.
Você falou que não, que o verso era só
por praticidade e que já tinha até colocado
os Trapalhões, ele disse então que já era.
Sim já era e você nada pode fazer
a não ser ficar pensando também que sim
já era mas que os amigos sao sempre os amigos.

  86  
A viagem é breve, chegamos
à Mariana e, acho, Isolda fez um bom negócio.
Se o novo par de sandálias não é mais bonito
que o anterior, com certeza é mais resistente
terá maior sobrevida, em vez de um dia
em dois arrebentará. Tomara que não.
Depois do sorvete, o casal chega
ao lugar onde a partir de agora toda ação transcorrerá.
A igreja de São Francisco de Assis
não confundir com a de Ouro Preto
localizada numa espécie de praça ao lado
da igreja de Nossa Senhora do Carmo, o sol luzente
gente entrando e saindo mas
agora, parece, um senhor de plantão nos perguntará
querem visita guiada? histórias sobre
a igreja e o que fez-não-fez o Aleijadinho lá dentro
coisas do tipo. Esse circuito histórico
em ruínas gerou um profissional atípico
metade guia turístico metade pedinte.
Ele vai pedir uns R$ 30,00.
Deixa pedir, a gente finge que não ouviu.
Aí vem ele e agora?
Pergunta se pode tirar uma foto nossa.

  87  
O pai chama, mostra a data
para dizer que é também por conta dela
e não só dos Trapalhões que a moeda te pertence
mas a menor distância entre dois pontos
nem sempre é uma reta e você perde a moeda
como a dizer que sim, é só por conta dos Trapalhões
e não da data que a moeda te pertence.
A menor distância entre dois pontos
nem sempre é uma reta, pior, a maior distância
entre dois pontos pode ser justo uma reta
melhor dizendo, anos depois, o mesmo pai
um pouco mais gordo um pouco mais sozinho
devolve a moeda a quem a perdera, devolve
como se a única coisa que restasse a pais e filhos
fosse não perdê-la. Você olha a data e os rostos
cunhados de Didi Dedé Mussum Zacarias.
Se isso fosse mesmo sério, alguém perguntaria
cara ou coroa? mas não e você ainda está ali
olhando a data e os rostos cunhados de Didi Dedé
Mussum Zacarias, quase nada vem à sua cabeça
nem mesmo a data, só os rostos cunhados de Didi
Dedé Mussum Zacarias. É da sua idade, tinha dito.
Mais cuidado dessa vez, ele te diz agora e sorri.

  88  
Manuel da Costa Athayde nasceu
em Mariana, 1762, pintor do período colonial.
Sua obra-prima, o forro do teto da igreja
de São Francisco de Assis Ouro Preto
gostava de cores vivas, pouco contraste
com o escuro, grande predileção pelo azul
seus anjinhos guardam um quê de mulatos.
Sobretudo durante o período de 1781-1789
trabalhou com Antônio Francisco Lisboa
encarnando algumas de suas esculturas, morto
no ano da graça de 1830, o corpo está sepultado
aqui na igreja, bem ali em frente, querem ver?
Poderia ser essa a explicação vendida
pelo tal guia turístico e mendicante.
Não foi o caso, agora ele acompanha um casal
de meia-idade e seus três filhos, dois meninos
uma moça. Nessa hora me vêm à cabeça
Paulinho e seus sachês voadores, imagino-o
gritando e jogando açúcar por todo lado
principalmente no cabelo das imagens.

  89  
Não podendo
corresponder às indicações
bibliográficas do mencionado
amigo, você recorre
ao que costuma recorrer
quando faltam palavras
pensando que às vezes
até pode ser bom faltarem
palavras. Alguns anos depois
você saca da estante as últimas
aventuras segunda Tirésias.
Entre um e outro balãozinho
as letras se confundem
como então só costuma acontecer
com a melhor tradição oracular
there’s a crack in everything
that’s how the light gets in.

  90  
A atenção se esforça entre as marcas
de umidade na parede, uma ordem arbitrária
surge, tipo especial de verdade que rouba
ao invés de dar. Roubo, alguém grita
e é seguido por um segundo que confirma. Roubo.
Um terceiro aparece e não se faz de rogado.
Onde? Se pudesse haveria uma banda e ela
estaria tocando Stardust. A pergunta não muda
e a atenção se esforça, marcas de umidade
ordem arbitrária, parede, marcas, umidade.
Alguém grita. Roubo. Um instante, diz o segundo.
Onde? pergunta um terceiro. No adro
da igreja de São Francisco de Assis Mariana
ou no número um oito nove de uma rua remota
em um Rio de Janeiro mais remoto ainda? Ignoramos.
Respingos voam. Atingem a espessa superfície
escamosa. Respingos voam e é de 1934 a foto
do monstro do Lago Ness. Seu pescoço se vira
e, numa direção que poderia ser a minha, ele diz
obrigado por todos esses anos.

  91  
Duas horas antes, ainda
na pousada, a carteira rasgou
decidi que não ficaria muito abalado
e por ora transferi meus pertences
seis notas de 20 duas notas de 50
cartão de crédito e carteira de motorista
para a bolsa de Isolda, exceção feita
à moeda da sorte. Com meu retrospecto
achei melhor deixar no bolso esquerdo
da camisa. Afinal eu já estava decidido
a não me aborrecer. Meu melhor sorriso
para um forro decaído e suas imagens
cadentes, quando Isolda chateada
com o peso da bolsa pergunta
vamos almoçar? Nisso estou diante
de um Jesus Cristo de roca, roupa
de pano, cabelo humano.

  92  
Manuel Bandeira e Roberto Carlos
fazem aniversário no mesmo dia
hoje é 19 de abril e você se sente bem
com a viagem e melhor ainda com o acaso.
A Isolda não interessa tanto
esse acaso, mas ela também
se sente bem com a viagem.
Segundo fontes confiáveis
desde que soube, Roberto Carlos acha
bom o acaso envolvendo Bandeira e ele.
Quanto a Bandeira, não dá pra saber
e além disso o importante é você
se sentir bem com a viagem
porque hoje é 19 de abril
e chega mesmo a parecer
que se Bandeira e Roberto Carlos
não fizessem aniversário hoje
você e Isolda nem estariam aqui
ou melhor, chega mesmo a parecer
que se vocês não estivessem aqui
Bandeira e Roberto Carlos
nem fariam aniversário no mesmo dia
mas esse acaso não tem
a menor importância para Isolda.
Afinal de contas você não está pensando
só em Bandeira, Roberto Carlos
e no suposto aniversário
você está pensando sobretudo nela
que ela também se sente bem
com a viagem e que você se sente bem
por ela finalmente se sentir bem
mas também fica parecendo que não
e é assim mesmo, afinal de contas
>

  93  
isto é só uma versão, a mais recente,
do jogo dos sete erros que dedico
e ofereço aos meus defuntos prediletos
Roberto Carlos e Manuel Bandeira.

  94  
Os dois garotos
filhos do casal de meia-idade
são mais novos do que eu pensava
e correm pelo interior da igreja com muito
entusiasmo, cada passo deles
faz estalar as centenárias campas de madeira.
Ouvido atento aos estalidos
das centenárias campas de madeira
acabo esbarrando no pai dos atletas
boné azul e camisa sobre a nababescaa
barriga onde se pode ler
Abandonai Toda Esperança.
Antes que ele se desculpe
ou eu me desculpe, sou salvo pelo gongo.

  95  
A vida inteira seu pai disse
escrever uma música e o máximo
que ele fizera fora assobiar aqui e ali
trechos dessa canção que, você acha, só existia
quando ele assobiava. Era uma vez uma música
e uma vez ele não só assobiou como também
cantou para você alguns trechos dela
mas isso tem tanto tempo que hoje eles parecem
ser de Detalhes mas não dá para ter certeza.
E você acha curioso dizer isso agora
você acha muito curioso dizer isso agora
ainda mais pensando no que já vem pensando.
Para falar a verdade, mais do que curioso
você acha até engraçado dizer isso justo agora
ainda mais pensando no que já vem pensando.
E a esses pensamentos seus às vezes se juntam outros
entre eles, um súbito, o de que isso aqui é um poema
para o seu pai, sobre o seu pai mas sem o seu pai.

  96  
Vamos sim, digo a Isolda
concordando em antecipar o almoço.
Na rua de baixo, já tinha visto um restaurante
cujo prato do dia era tutu à mineira
novidade, quem engorda um quilo engorda dois.
Ainda perto do altar mas já rumo à saída
sigo pelo corredor central da nave
o chão de madeira guarda sepulturas anônimas
piso nos números 32 e 33 depois no 37.
Já no meio do caminho avançando
65 e 68 o passo é irregular, a ordenação delas
também, por isso o percurso sugere
um deslocamento quase sem padrão
77 e 80. Isolda já está na porta e espera
82 e 87 e 90 apresso o passo até que
ao lado do tapetinho da porta
piso finalmente sobre a campa de número
94. Olha quem está enterrado aqui, diz ela.
Ainda pensando no tutu à mineira
vejo entalhado em mal alinhadas letras
Mestre Athayde 1762-1830.
Isolda com dois passos já está fora da igreja.
Quanto a mim, parado na saída, reparo, na tal sepultura
há uma fenda na madeira por onde passariam dois dedos.
É para Athayde respirar melhor
teria dito ao passar por mim
a filha adolescente do casal de meia-idade
mas não tenho certeza, havia algum barulho
de modo que ela também poderia ter dito
é nas zonas escuras dos ciclos que decorrem as metamorfoses.
Parado na saída, enquanto meu espírito revisor se decide
entre uma frase e outra, nem percebo seus irmãos mais novos
os atletas vindo do fundo da igreja correm na minha direção.
>

  97  
Ao escapar do primeiro, não escapo do segundo.
Cara no chão, a moeda com as efígies de Didi Dedé
Mussum Zacarias e a data de 1981 corre
lentamente pela madeira carcomida, campa 94
igreja de São Francisco de Assis Mariana, corre
e gira em círculos progressivamente menores
Didi Dedé Mussum Zacarias, campa 94
madeira carcomida, a moeda gira
progressivamente em círculos
menores em cujo centro
último e vertical está
a fresta por onde
Athayde ainda
respira.

  98  
Você detesta fotos pela simples razão
de sempre parecer mais gordo do que realmente
acha que é e a que tiraram de vocês na frente
da igreja, ou melhor, a que o tal guia turístico
e pedinte tirou de vocês na frente da igreja
de São Francisco de Assis Mariana não é diferente.
Abraçados você e Isolda ocupam quase
o centro da imagem, uns cinco metros na frente
da construção, isso permite ver o portal
a parede com cal, os respingos e bem ao fundo figuras
que cantando avançam sem olhar para trás.
O tal guia turístico e pedinte tirou de vocês
uma foto na frente da igreja de São Francisco
de Assis Mariana, mas as novas sandálias de Isolda
não se veem, sobre os dois quilos a mais
do nosso protagonista não se pode dizer o mesmo.

Escala Richter, 2015


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

  99  
BRUNA BEBER (1984)

5 AM

debaixo dos olhos a mancha


negra das noites
em claro

não durmo
há vinte e dois anos
não durmo

há 22 sou ninada pelo disco


arranhado
do ventilador de teto.

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  100  
ADJ.

beibe
eu sou um blues nacional
cheio de exagero
e corações roubados
marginal nos 70’s
equivocado nos 80’s
insensível, burro
e raso como as preocupações do Posto 9
que não se chega de saudade
e dolorido de tristeza
mas original e animado
como toda a jovem guarda em si.

março de 84

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  101  
AP.

na minha casa você pode flagrar alguém


se escondendo da rotina num quarto escuro
e batendo a cinza do cigarro na janela
enquanto espia as roupas dançando em silêncio
no varal da área
às três da madrugada
você pode flagrar alguém preocupado
segurando uma caneca com vinho vagabundo
dormindo fora de hora
pensando demais na vida
e no tédio que é
essa falta de paixão.

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  102  
VIVO

disca de novo e diz


que é você o número estranho
que me ligou ontem no celular
diz qual é o seu novo número
que eu não sirvo mais
e que agora você me esconde atrás do amarelado
nas fotografias.

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  103  
BILHETE

queria saber se eu dissesse que


ia mergulhar daqui desse edifício
você ia dizer
mergulha, beibe
eu liguei pra perguntar
você não tava
e deixei um recado na secretária eletrônica
mas não consegui detalhar
porque sempre fico nervosa
com mensagens prontas.

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  104  
A NOVÍSSIMA LITERATURA

você quer um dia


ser estudado
numa sala de aula qualquer
por uma turma de pirralhos
que vão zoar suas roupas hoje modernas
falar que o que você escreveu é chato pra caralho
fazer chifrinho na sua foto
interrogação.

queira morrer antes


comendo caramelos
a estranha paixão de Hitler
caramelos.

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  105  
BEVERAGE

para uma paixão de aparelho fixo


esquecida no éter do laboratório de ciências
e no sangue contaminado das seringas
dos tratamentos dentários.

engarrafada por fabricantes de bebida alcoólica


para menores de 18 anos
e afogada nas banheiras
das festas sujas que frequento.

para uma paixão de bebedouro de colégio


solúvel em tinta de caneta
e prometida nos comerciais da Garoto
no dia dos namorados.

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  106  
NEIGHBORHOODS

se o mundo não fosse


esse aterro de
máquinas
barbas
pilhas

débitos
prazos
e canetas
marca-texto

medos
dúvidas
e embalagens
tetrapak

se o mundo não fosse


um aterro de babacas
ou se o mundo não fosse
um abrangente
e resumido
aterro de sinônimos

e se essa rua
se essa rua
fosse tua
eu ia me mudar pra lá.

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  107  
RAP

paixões são urgentes


explodem hecatombes
hiroshima césio 137
você olha e de repente
POW
você pisca e de repente
POW
eu finjo que não é comigo
finjo que estou distraído
e de repente POW.

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  108  
ZÁS-TRAS

estou aqui de pernas


para o ar agarrada
ao lustre
esperando sua visita

unicórnios e baratas
conversam na varanda
eu sinto sede bebo água
na infiltração da cozinha

você demora
está escuro não há luz
de poste vazando pelo vidro
trincado da janela

há horas atenta
aos gritos da campainha
quebrada minha perna cruzada
do lustre prepara um lindo colar.

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  109  
SANJA QUIET DOWN I NEED TO MAKE A SOUND

sanja mais uma cidade americana


esquecida entre a igreja
da praça da matriz
e um vagão abandonado

onde eu cresci
comendo danoninho roubado
de cargas tombadas
na Rodovia Presidente Dutra

hoje minha foto da classe de alfabetização


nos cartazes de PROCURA-SE
espalhados pelo Centro
da mesa da sala
da casa dos meus pais.

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  110  
FABÍOLO CRISTINA

cresci com os morcegos de uma antiga amendoeira do quintal


de ponta a cabeça da meia-noite em diante
observando o movimento das bocas de fumo
e dos pais de família voltando do trabalho
e com os mendigos no pátio duma clínica de reabilitação
abandonada na rua de trás eu brincava de fingir de morto
e de fugir do hospício pelos muros laterais
me chamavam bebê-tarzan
bebê-diabo
outros bebê-mascote
de uma quadrilha de tráfico de drogas da baixada fluminense
só porque eu brincava cos vendedores de cavaco-chinês
de cortina, panela e colcha de tergal
às sextas-feiras no portão da frente da casa da minha avó
que na verdade eram atravessadores de artesanato
do nordeste prum distante bairro curiosamente chamado Centenário
só porque eu era amiga dos malucos
das vagabundas e do dono da barraca de cheiro-verde
em frente ao Mercado Municipal
dos desajustados e dos desvalidos
d’a fila sem fim dos demônios descontentes no amor
duma pichação do Viaduto do Caju
em frente ao armazém 5
do Cais do Porto.

A fila sem fim dos demônios descontentes, 2006

  111  
ARTIGOS PARA PRESENTE

aos corações namorados


desejo uma forração de pneu
para tratores, é desnivelada
a estrada do amor

e o raro dom de transformar


as máquinas pesadas da convivência
em miniaturas de máquinas pesadas
da convivência

uma jaqueta corta-frio para distâncias


convenientes e forçadas, brigas de quarta
série primária e joguinhos de salão
ao relento. já aos corações devotados

aos seus corações namorados desejo,


sobretudo, o enrosco, aquele laço fatal
do nhenhenhem do carinho e o tempo
medido por um relógio de pulso quebrado.

Balés, 2009

  112  
DOTES

coleciono mas não leio


cartas antigas, anúncios de almanaque
em latas de goiabada nolasco

sei que estou em permanente mudança


porque todos os dias abro e fecho
gavetas e caixas

no entanto aprendi pouco sobre apostas


e temporais, só sei que levam
muito mais do que trazem.

Balés, 2009

  113  
FEVEREIRO

dou poucos dias


pra você voltar
pra mim, pro carnaval

te espero embaralhada
em retalhos de cetim
como benito di paula

a cidade vira um túmulo


quando a porta-bandeira sai
pra experimentar o vestido.

Balés, 2009

  114  
GANGORRA

era muito comum


ver as garotas grandes
queimando suas bonecas

o que correspondia
pras maiores ainda
queimar sutiãs

e ao que me cabia, as palavras,


uma cidade inteira
lambida pelo fogo

de fora a fora
pele sobre pele derretida
no cimento

um ‘não pude evitar’


e ainda que pudesse
sequer hesitaria

eu era muito pequena


as pipas no céu pareciam estar mais longe
do que realmente estavam.

Balés, 2009

  115  
RAMON MELLO (1984)

CARTILHA REMIX

literatura para ser


lida ao som de

arnaldo lenine zélia tom


zé calcanhotto renato
russo marina bethânia gal

assim se aprende a tocar


qualquer instrumento

sax violão guitarra


bateria piano cítara
e (por que não?)

a própria língua

Vinis mofados, 2009

  116  
POEMA DIGITAL

oi
quer tc?
tem webcam?

(...)

sexo virtual :-o


hummm?
só com o antivírus!

:-(

off line

Vinis mofados, 2009

  117  
LADO B

desculpa
mas essa música
não quero mais
ouvir

sua voz arranhada


já não convence
vira o lado do
disco

aproveita e dorme

Vinis mofados, 2009

  118  
INVENTÁRIO

faço questão:

uma imagem de preto velho da guiné


um cd do leo gandelman e outro da thaís gulin
um chaveiro colorido de boneca russa
alguns livros, 1968, 1984, o mundo não
é chato, flashbacks...
e uma garrafa de sagatiba pela metade

mas devolve meu sorriso

Vinis mofados, 2009

  119  
FAIXA 4

sempre tenho
mais preguiça da vida
aos domingos

leio jornal caminho


no calçadão tomo café
esqueço o dia

faixa quatro luz negra


a música repete nara
takai curto uma bossa

uma fossa
choro um teatro sem cor
com plateia vazia

Vinis mofados, 2009

  120  
POEMA ATRAVESSADO PELO MANIFESTO SAMPLER

para Frederico Coelho e Mauro Gaspar

invadir o corpo do mundo


aceitar
o
caos
atuar no esvaziamento das certezas
não copie e cole
se aproprie e recrie a realidade
use seu imaginário
carta de alforria para um primeiro
ato
nem todo início é um prólogo

II

acredite
você não é original
certo
apenas a pureza de um
mito
a pressão não
é
simples
pratique
sequestro saque captura
de palavras
>

  121  
não comunique aos pais
toda palavra é
órfã
não
existem palavras
finais
toda palavra
é
começo
pirata capitão buquineiro
promessa de geração
00
remix de ideias
souvenirs
alô wally
ah se você ainda estivesse por aqui
não escrever sobre
não descrever ou reproduzir
o mestre
produzir escrever produzir
eu
estou menino
em suas palavras
não chame meu nome em vão
salte a pedra
no caminho

III

seja atravessado pelos poetas que lê


aniquile as referências
um coletivo de enumerações
>

  122  
faça
literatura sem agradecer a raduan
ou adalgisa
faça
você seu retrato
enquanto jovem
encontre suas ideias
a partir de
apesar de
(lembra dela?)
apesar
de
invasor
ao combate
quais os limites
do texto?
autores originais
não mais
viva de uma forma política
crie assim
invada a cidade
invente
coloque tudo para dentro
para depois respirar
sentir e notar
você
eu estou colocando
pra dentro
o chocolate
de tanto olhar
ler

  123  
IV

propriedade coletiva
eu sou vocês
sou eu nos
reconhecemos nas palavras
lidas e não ditas e não lidas
também
percebe
posse-criação

os mentirosos
são dignos
do amor
deus
em latim é fingidor
da via
criação
escreva tudo
com essa mão nervosa
escreva escreva
as vozes que habitam
em ti
no papel
selvagem caótico
esse texto não é
seu nem meu
esse texto pertence
apenas
ataque
perigo ritmo
sem receio da autocrítica
se aproprie dos rótulos
>

  124  
para destruí-los
plagiador sabotador
coroe sua intimidade
perturbe
seus pares
não os deixem
presos
no século passado
o aprendizado
as vanguardas e a tradição
modos de usar
sua língua
esqueça os ismos
a divisão didática
atravesse
seja tático

cale
a boca de quem
não se posiciona
no espaço
torne seu o que é
do outro
provoque todas
as encenações institucionais
modo de fazer
aprender fazendo
seu trabalho
diário
manipule a história
>

  125  
alheia escreva a nossa
invente
seja autor inventor
o leitor
deve reconhecer seus passos
caminho percorrido
está
tudo no passado
o futuro se tropeça
com ele
a poesia se esfrega nas coisas
percebe?
ao acordar veja as coisas
como
as coisas todas
espalhadas livros jornais
mesquinhez de sua relação
amorosa
você pode abrir sulcos na escrita
fluxos
corpo é texto
é corpo
emancipe sua escrita
deixem falar mal
amanhã
estão todos lambendo seu rabo
discuta apenas sua
existência
na palavra
leia
escreva
como quem atravessa
o leitor
>

  126  
subverta
transforme o meio com a palavra
transtextual
células trans
transexual
exu contemporâneo se aloja no outro
passado tomando o presente
de cavalo

VI

ultrapasse
a si mesmo
não trapaceie é fatal
amadureça
a experiência
seja através
dos outros
a verdadeira história da literatura
uma história de ladrões
experiência
número infinito
o homem forte vive

lembre dos outros
entenda
as relações de força
você ouviu de um artista de plástico
vale tudo só não vale
qualquer
coisa
as coisas negras são
>

  127  
tão bonitas
menos o cavalo
beba
ice tea light
com limão e gelo
lipton com muita cafeína
no cafeína
não imite
escreva a partir
de
dobre a linha da folha
dobre-se
você sabe que o papel
só pode ser dobrado
sete vezes
hum
modo de
de experimentar
os espaços
nascemos com os mortos
sempre
o fim é o meio
novo desvio
novidade sem novidade
caminho literário cercado de música
ouça
não é preciso citar
não é
faça
teses para corrompê-las
o texto tem sentidos
não
sentido
>

  128  
fazer ao ler
a linguagem não indica sentido
mas possibilidades
as palavras
penetram em você
ou não
use todos os guardanapos
do café
com leite e biscoito de maisena
(compensando os 10% de mal atendimento)
ganhar força com as ideias
pense no tempo
em nosso tempo
tempo
tempo
tempo
tempo
silêncios
incorporados na escrita
esquecimento como aprendizado da escritura
invasão pela leitura
esse poema não tem
fim
é o meio

Poemas tirados de notícias de jornal, 2012

  129  
FOLHA CRÍTICA

a procura de um jovem autor


por sua dicção
recorre para isso à palavra
cantada aos cantores e compositores
de predileção

daí a profusão de referências


cartilha remix há exercícios de admiração adolescente
como libido tropicalista

a mpb teve papel importante


na trajetória de mello soam imaturos
pois não conseguem estabelecer diálogo
estético com as obras que cita

Poemas tirados de notícias de jornal, 2012

  130  
JORNAL DO COMMERCIO

500 colombianos trabalhavam


de escravos na venezuela
9 de novembro de 2010

Poemas tirados de notícias de jornal, 2012

  131  
ISMAR TIRELLI NETO (1985)

CARTA DE INTENÇÃO

qualquer coisa de longe


qualquer coisa de quieto
qualquer coisa de bastante
árido; paisagem
num repente outra
incomple
ta atalhada
qualquer coisa que não se consegue
despeitando tanto
olhar

as escolhas dos outros

os detetives;
os contratados

Synchronoscopio, 2008

  132  
RUFUS

você – como tantos outros – acabou


não morrendo. Nem aqui nem em Bruxelas
parte alguma. A questão do apartamento
permanece pendente (estar-se em
plena obra). Sem diploma não tem como.
Você passou sem cura de repouso você não contraiu
uma afecção misteriosa você não botou
os pulmões pra fora de tanto tossir
num banheiro de hotel cheio de flores. Você
segue com esse estranho hábito de não lembrar
em nada a Barbara Stanwyck, ah, que se há de fazer?
Eu me mudaria para uma fonte em Amsterdã
algemado aos clarões de água
entra dia, sai dia injuriando
assistentes sociais – mas pense bem
pense bem. Não dou corda no despertador
e é o próprio tempo que nega fogo.

Manhã – unguento geral – espalha


pelo Rio um brilho rouco – na frente do Edifício
Argentina me parece capital saber o nome das coisas –
precisamos de um plano. Um projeto. Um projétil

estou cheio de prédios


voltas hélices passarelas
o metrô corre atrás do próprio rabo
um tranco, não tem quem fique em pé
você me diz: nunca dês um nome a um trem
sempre é outro trem a passar
eu digo: ha. Ha ha
ha ha

  133  
você está de dieta ou desistiu, afinal, de descortinar
uma grande verdade interior? Teus olhos têm um ar
de perda,
pendem, como os seios de uma mãe antiga. Tanto
tempo passado
em ônibus que a gente aprende à força o prazer do
caminho
chegar lá é sempre um pouco
desorientante

precisamos de um plano. Um projeto. Um projétil

Synchronoscopio, 2008

  134  
POEMA DA TARDE

a Gabriel Bogossian

I.
nada contra
nada radicalmente a favor
numa palavra nada radicalmente

“você está ficando barrigudo devia fazer algo


a respeito você é jovem demais”
G. dixit,

precisamente como reparar pela primeira vez


que a fachada de dado edifício pelo qual passamos
todo santo dia
é toda azulejada
e incidindo o sol de certa maneira
fica bem bonito

como certos banheiros que se inflamam ficam muito


muito vermelhos ao entardecer

II.
(tableau: uma senhora idosa disputa banco de praça
com um menino surdo)

dei pra soltar gritinhos na rua


assim
estou andando de repente reflui:
AH
(ataque germânico)

  135  
somos pessoas interessantes
fazemos coisas interessantes
esperamos que um dia relevem
que divertido

se você realmente se fia na não-historicidade do signo


então você é um imbecil de marca maior

a bossa agora é a polissemia


preparar a massa do pão com Long Necks
(grandes possibilidades cômicas!)

abaixo a tirania da função


pra que serve como faz?
as coisas têm muito mais existência
como pormenor sociológico
& eu vou muito farto de mim
pra que serve como faz?

terá alguém no mundo


nesse vasto vasto vasto vasto mundo
morrido tão bruta a ressaca?

eu quero nome endereço e telefone


comissão benefícios plano odontológico
décimo terceiro festa da Zulmira do RH
um filho esperto um marido rico
& ainda o tempo de ser
agressivamente frívolo
pra que serve como faz?

  136  
que interessante!
(tudo isso sem sair
da minha zona vocal confortável)

Synchronoscopio, 2008

  137  
LAURA LIUZZI (1985)

ESCRITA X ESCRITO

A letra que aqui


se inscreve
não captura o sopro
sem intervalos
do pensamento
que antes
a provocou, mas
procura a forma
e a fôrma
precisa e traçada
dando existência
no pasmo da folha
ao mesmo tempo
que apaga e resolve
a cada palavra
escrita um antigo
pedaço de mim.

Calcanhar, 2010

  138  
CRIANÇA

Eu era menor – pequena


sempre fui desde
esse corpo.
O maior desejo
era o passo
sem o
peso
mas os pés
pressupunham
o chão.
O desejo era
não
e ser em vento.
Sombra e reflexo
são os quilos
do corpo.
Ser outra e eu mesma.
Ensaiar a liberdade
sem o quilate
da palavra.
Ser uma morte
viva. Em alto
sem carne
suspensa
anti-História.
Ser rio com o
rio
noite com a
noite.
>

  139  
E abandonar a matéria
inanimada
no sofá,

Calcanhar, 2010

  140  
VÃO

Tem dias como hoje


me equilibro no metrô
com o livro nas mãos
como se minha estação
nunca fosse a próxima.

Então de súbito
salto do trem
tudo calculado
para intrigar os passageiros
que veem sempre repetida
a velocidade do escuro
e o mantra no alto-falante

observe o espaço entre o trem e a plataforma

e tento distrair seus pensamentos


com minha ação premeditada
e dissimulada
preenchendo com a imaginação
o vão
entre o trem e a plataforma.

Calcanhar, 2010

  141  
VONTADE

Entrar em casa sem que a porta


rangesse, sem que o cachorro
da vizinha farejasse minha vinda
sem que o sofá conservasse as
formas do meu corpo, sem que
eu precisasse tomar aquele copo
de água que toca o azulejo e emite
um som rouco, sem que houvesse
corpo. Entrar em casa como
a música entra nos ouvidos.

Desalinho, 2014.

  142  
ALICE SANT’ANNA (1988)

RETRATO

a flor nos cabelos


é vaidade que não abre mão
oferecendo o pescoço com a timidez
dos ombros curvados, sabe-se

que as extremidades destoam


do corpo infantil: mãos
e pés grandes demais, apenas notados
em tropeços e tremeliques (não
raros). mas há também
os cotovelos em mil lanças que
espantam quando apontam
as quinas
e, é claro, as unhas redondinhas
roídas até o sabugo, que desmascaram
a aflição de menina, sardas
nas costas. sem esquecer
das pernas cruzadas crispadas
em joelhos e preguiça
de deixar esse domingo
e essa doçura

Dobradura, 2008

  143  
UM ENORME RABO DE BALEIA
cruzaria a sala neste momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia, e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela

Rabo de baleia, 2013

  144  
OS SETE NOVOS (2006)2

IN MC WE TRUST (POR 7A)

Dia e noite o Mc Donald’s hasteia sua bandeira norte-americana, contrariando


as leis de seu país original que diz que somente nas instituições nacionais a
bandeira estado-unidense pode tremular depois do pôr do sol. Mas talvez seja
isso, talvez o Mc Donald’s esteja para muito além de qualquer pôr do sol.
Talvez este seja o descontrole controlado de seu clown onipresente. Não é à toa
que Ronald é fruto da televisão. A multidão solitária clama por esta
intranquilidade instantânea. A ordem é que os clientes se emocionem antes de
estacionar. Esta é a ciência do hambúrguer; procure pelos seus arcos dourados.
Pense na América transmutada em Iracema. Depois de meia-noite a América é
Iracema de ressaca.

Luzes e cores valorizam o espanto. A cidade agora é mero pano de fundo para
este laboratório de metáforas visuais. Com seus sorrisos antissépticos os
atendentes te oferecem simulacros de refrigerantes. Aquários humanos se
transformam em grandes avenidas de brilho e de alegria. A fúria da máquina
também é saber que também precisa reluzir a todo instante, como quem sempre
tivesse que soltar espasmos pulsantes na obrigação de explodir seus pontos de
exclamação por onde quer que se passe. Fundos luminosos defendem que o
sucesso está no excesso. De que o ketchup utilizado pela empresa poderiam
encher o lago Michigan, de que os bilhões de hambúrgueres vendidos poderiam
cobrir por várias e várias vezes a distância da Terra à Lua. Este é o real sem
avesso, de deriva em deriva; até os ossos. Para os americanos estar na imagem é
existir. O país Marlboro está no ar. Que Deus salve a América e a torta de
maçã.
                                                                                                               
2 Os Sete Novos foi um coletivo de poetas formado por Augusto de Guimaraens Cavalcanti
(1985), Domingos Guimarens (1979) e Mariano Marovatto (1982).

  145  
Blog d’Os Sete Novos, 2010

  146  
BIBLIOGRAFIA

BEBER, Bruna. A fila sem fim dos demônios descontentes. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.
Coleção Língua Real.
______. Balés. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.
DOMENECK, Ricardo. Cigarros na cama. 2a edição. São Paulo: Luna Parque, 2016.
FREITAS, Angélica. Rilke shake. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. Coleção Ás de
Colete, 15.
______. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.
GANDOLFI, Leonardo. A morte de Tony Bennett. São Paulo: Lumme Editor, 2010.
______. Escala Richter. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.
GARCIA, Marília. 20 poemas para o seu walkman. Rio de Janeiro; São Paulo: 7Letras;
Cosac & Naify, 2007. Coleção Ás de Colete, 17.
______. Um teste de resistores. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.
______. Câmera lenta. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
LIUZZI, Laura. Calcanhar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.
______. Desalinho. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.
MARQUES, Ana Martins. A vida submarina. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.
______. Da arte das armadilhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
______; JORGE, Eduardo. Como se fosse a casa (uma correspondência). Belo Horizonte:
Relicário Edições, 2017.
MELLO, Ramon. Vinis mofados. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009. Coleção Língua
Real.
______. Poemas tirados de notícias de jornal. Rio de Janeiro: Móbile Editorial, 2012.
OS SETE NOVOS. Blog Os Sete Novos. Disponível em:
<http://ossetenovos.blogspot.com/>. Acesso em: 10 jun. 2018.
SANT’ANNA, Alice. Dobradura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
______. Rabo de baleia. São Paulo: Cosac & Naify, 2013.
TIRELLI NETO, Ismar. Synchronoscopio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.  

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