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Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia
Primeiro Semestre de 2014

Erotismo, sexualidade e gênero:


Curso ministrado por
Vladimir Safatle

Composto por 12 aulas


Textos base das aulas
2

Erotismo, sexualidade e gênero


Aula 1

Nesta história da doença (...) discute-se francamente as relações sexuais, os órgãos


e funções sexuais são chamadas por seu nome correto. Com isto, o leitor poderá se
convencer, após minha exposição, que não recuei da discussão de tais assuntos em
tal linguagem com uma garota. Devo então também me justificar desta acusação?
Eu reivindico simplesmente os direitos do ginecologista ou ainda direitos muito
mais modestos. Seria índice de estranha e perversa lubricidade supor que conversas
parecidas seriam um bom meio de excitação sexual 1.

Estas são algumas afirmações do psicanalista Sigmund Freud que vocês poderão
encontrar na páginas introdutórias à apresentação de um caso de histeria escrito em 1905 e
conhecido como “o caso Dora”. Tais afirmações são interessantes por expor uma
transformação a respeito do ato de falar sobre sexo que irá marcar todo o século XX.
Enquanto médico, Freud pede a si mesmo o direito de discutir francamente as relações
sexuais, os órgãos, chamando as funções sexuais por seu nome correto. Esse falar franco não
é, no entanto, o falar franco que, por exemplo, os libertinos do século XVIII conheceram, com
sua crença de que o que é da ordem do sexual deveria habitar todos os poros do discurso a fim
de que o desejo seja incitado por sua revelação discursiva. Qualquer um que já leu Sade sabe
que o ato de falar e descrever é, neste caso, o principalmente movimento capaz de excitar o
desejo. Os libertinos do século XVIII, animados à sua maneira pela crença no esclarecimento
produzido pela razão, não gozam em silêncio.
Mas, como disse, o falar franco de Freud é outro. Ele não é animado pela descoberta
de formas de incitação aos prazeres. Não, Freud prefere ficar ao lado dos ginecologistas a ser
confundindo com alguém que suporta essa estranha e perversa lubricidade dos que usam da
descrição direta da atividade sexual para seduzir uma garota. Ele prefere uma fala “seca e
direta”, capaz de dar aos órgãos sexuais seus nomes técnicos e comunicar seus nomes quando
estes são desconhecidos pela paciente. Uma fala que descreve as perversões “sem
indignação”. Ou seja, como já disse Foucault, esta fala é uma vontade de saber baseada na
submissão da sexualidade ao modo de descrição de uma ciência, uma scientia sexualis. Esta
talvez fosse uma das mais impressionantes invenções da modernidade: uma ciência da
sexualidade, um discurso científico sobre o que devo fazer para não ter uma sexualidade
patológica.

1
FREUD, Sigumnd. “Brichstuck einer Hysterie-Analyse”. In: Gesammelte Werke Vol. V, Frankfurt: Fischer,
1999, p. 186.
3

Mas aqui começa um problema importante. Pois o que precisa acontecer à experiência
dos nossos desejos para que ela possa ser objeto de uma ciência? Não de uma literatura (que é
um regime de explicitação discursiva próprio), não de uma arte erótica, mas de uma ciência.
Pois ser objeto de uma ciência significa assumir uma certa metamorfose. Como os objetos da
físicas, a sexualidade deverá poder ser mensurada, quantificada, calculada. Poderei então
dizer, por exemplo, que o transtorno de interesse sexual por parte de mulheres terá, como
alguns de seus critérios diagnósticos, como lemos no mais recente manual de psiquiatria (o
DSM-V): ausência ou redução de excitação sexual durante a atividade sexual em
aproximadamente 75% a 100% dos encontros. Da mesma forma, no transtorno de desejo
sexual masculino hipoativo, encontraremos uma persistente ou recorrente deficiência de
pensamentos, fantasias e desejos por atividade sexual durante, no mínimo, seis meses.
Transtornos de ejaculação precoce serão divididos em três grupos: suave (se a ejaculação
ocorrer entre 30 segundos ou 1 minutos após a penetração), moderado (entre 15 e 30
segundos) severo (quando ocorre antes da penetração ou em até 15 segundos após a
penetração). Foi pensando na generalização desse modo de saber sobre a sexualidade que
alguém como Georges Bataille escreveu:

Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a dar


números, medidas, classificações de acordo com a idade ou a cor dos olhos? O que
o homem significa a nossas olhos se coloca sem dúvida para além dessas noções:
estas se impõem à atenção, mas não acrescentam a um conhecimento já dado senão
aspectos inessenciais2.

É muito provável que Freud, quando falava com sua garota histérica sobre sexo, não
pensasse em um modelo de saber desta natureza, o que talvez explique a natureza quase
literária de seus relatos de caso. Mas sua posição expressa outra importante ideia presente no
desejo de transformar o que é da ordem do sexual em objeto de um discurso científico, a
saber, a crença de que o falar franco sobre sexo implicaria, por um lado, lançar luz sobre o
que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos
relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência de si mesmo
como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de sua auto-determinação.
É pelas vias da sexualidade que eu me constituiria como sujeito dotado de uma história (a
história do meu desejo), de um corpo (o regime de prazeres próprio ao meu corpo) e,
principalmente, de uma identidade. Isto talvez nos explique porque nossas sociedades
ocidentais precisam tanto defender a existência, como dirá Michel Foucault: “de um discurso
2
BATAILLE, Georges. A parte maldita, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 180.
4

no qual o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um outro dia
e a promessa de uma certa felicidade estão ligados” 3. Se Freud pode se vangloriar de não ter
recuado diante de assuntos desta natureza com uma garota de não mais do que quinze anos, é
porque ele já faz parte de uma época na qual falar de sexo é talvez a forma privilegiada de
revelar a verdade sobre os sujeitos e suas posições existenciais, prometer uma certa felicidade
através da constituição de uma relação autônoma consigo mesmo.
Notem uma inflexão importante. Não se trata de afirmar que pelas vias da sexualidade
nós poderíamos descobrir uma história, um corpo e uma identidade. Trata-se de dizer algo
mais forte, a saber, que constituiríamos um corpo, uma história e uma identidade.
Compreender-se como sujeito de uma sexualidade equivaleria a uma construção que não seria
simplesmente fruto de, digamos, um projeto individual, mas da internalização das categorias
do discurso de uma ciência. Uma ciência que não apenas descreve, mas que também, e
principalmente, produz. Uma ciência que, de forma muito peculiar, produz seus objetos: “O
que acabamos por chamar de ‘sexualidade’ é o produto de um sistema do conhecimento
psiquiátrico que tem seu estilo muito particular de raciocínio e argumentação” 4. Ou seja,
assim o problema da sexualidade não se encontra na identificação de uma espécie de libido
natural que deve se fazer sentir. O problema da sexualidade se transforma na descrição de
modos de produção de corpos, histórias e identidades a partir das categorias de um discurso
social fortemente normativo como a ciência.
O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a invenção da
homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre apenas em meados do século
XIX com o estabelecimento do quadro das perversões através destes grandes tratados
psiquiátricos como o Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nós
podemos dizer que não era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nós
podemos mesmo dizer que não havia homossexuais antes de meados do século XIX. Claro
que práticas homossexuais existiram antes e sempre existirão, mas não a concepção, tão
evidente para nós, de que elas, por si só, definem uma identidade social em toda sua extensão,
fazendo com que o conjunto dos atos, de modos de percepção sejam atos de um homossexual,
modo de perceber de um homossexual. Por exemplo, haviam práticas homossexuais na Grécia
antiga, mas elas não eram uma questão em si, não estávamos em um mundo no qual
classificava-se o comportamento de alguém a partir de suas preferências por pessoas do
mesmo sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questão definidora na Grécia era se alguém

3
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité – vol. I, Paris: Gallimard, 1976, p. 15.
4
DAVIDSON, Arnold. The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32.
5

desempenhava ou não o papel de um agente passivo, se alguém era ou não capaz de ser
senhor de seus desejos. Daí porque alguém como Foucault dirá:

O que opunha um homem com temperança e senhor de si mesmo a outro que se


consagrava aos prazeres era, do ponto de vista moral, muito mais importante do
que aquilo que, entre eles, distinguia as categorias de prazeres aos quais se poderia
abandonar voluntariamente5.

Isto significa que, em última instância, a homossexualidade como identidade é uma


invenção que só aparecerá no século XIX. Ela é uma construção produzida por uma forma de
circulação do discurso psiquiátrico e médico que tem na ideia de “sexualidade” seu
dispositivo principal.

Sexo e filosofia

Bem, até agora, o que fiz foi apresentar para vocês uma forma de pensar o problema a
experiência sexual produzida no interior de um projeto filosófico específico, a saber, este
animado por Michel Foucault. A partir de certo momento, como veremos no decorrer deste
curso, Foucault entenderá que todos aqueles que gostariam de compreender melhor como as
estruturas de poder funcionam na sociedade ocidental moderna deviam se dedicar a pensar a
emergência da sexualidade. Eles deveriam tentar entender melhor porque, a partir de certo
momento, nos pareceu fundamental não apenas dizer que fazemos sexo, mas que temos uma
sexualidade e que afirmar tal sexualidade no espaço público, se fazer reconhecer a partir dela,
era um problema político da mais alta importância.
Mas vocês poderiam se perguntar: desde quando e por que pensar sobre sexo seria um
problema filosófico? Por que sexo e os discursos que o envolvem seriam objetos de
investigação propriamente filosófica? Ou seja, não um problema ligado à psicologia e a
reflexão sobre seus modos de intervenção clínica, não um problema sociológico ligado a
práticas sociais de codificação de comportamentos de interação, não um problema biológico
ligado a modos de reprodução, mas um problema filosófico. Porque vocês poderiam se
perguntar se não seria melhor deixar um objeto dessa natureza a outras áreas de saber, ao
invés de discuti-lo em um curso de filosofia.
“A filosofia é uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha serve, ou diríamos
mesmo para a qual só serve a matéria que lhe for estranha” 6. Esta frase é de um filósofo da

5
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244.
6
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense editora, 2000, p. 12.
6

ciência chamado Georges Canguilhem, orientador de Michel Foucault. Talvez ela seja a
melhor frase para aqueles que começam um curso de filosofia. Pois ela fornece uma boa
resposta ao problema do objeto próprio à filosofia. Se descartarmos a visão historiográfica
que dirá ser a filosofia a reflexão sobre os textos que definem o campo da tradição filosófica,
definição ruim não apenas devido a sua circularidade mas devido à incompreensão da gênese
da chamada “tradição filosófica” (gênese que admite textos até então completamente fora do
dito debate intratextual da tradição filosófica), então ficamos com uma questão central. Ela se
enuncia da seguinte forma: haveria de fato um conjunto de objetos que poderíamos chamar de
“objetos filosóficos”, assim como falamos que existem objetos e fenômenos próprios à
economia, à teoria literária e à sociologia? Mas se existir tal conjunto de objetos, poderia um
filósofo falar de um texto literário, fazer considerações sobre um problema econômico ou
discorrer sobre, por exemplo, a natureza dos papéis sociais? Ao fazer isto, ele deixaria de ser
filósofo?
Quando Canguilhem afirma que só serve à filosofia a matéria que lhe for estranha é
para lembrar que há uma especificidade do discurso filosófico: ele não tem objetos que lhe
sejam próprios. De certa forma, podemos dizer que a filosofia é um discurso vazio pois não há
objetos propriamente filosóficos, o que talvez nos explique porque não pode haver, por
exemplo, teoria do conhecimento sem reflexões aprofundadas sobre o funcionamento de, ao
menos, uma ciência empírica, não há estética sem crítica de arte, filosofia política sem ciência
política, mesmo ontologia sem lógica. Em todos estes casos a filosofia toma de empréstimo
objetos que lhe vem do exterior, absorve saberes cujo desenvolvimento não lhe compete
diretamente.
Mas não haver objetos propriamente filosóficos não significa afirmar inexistir
questões propriamente filosóficos. Há um modo de construir questões que é próprio da
filosofia e este modo admite praticamente todo e qualquer objeto. Tal modelo filosófico de
construção de questões nos permite identificar e pensar certos problemas que não poderiam
ser pensados de maneira adequada fora do campo da filosofia. De modo operativo, diria que a
caraterística maior de uma questão filosófica é sua forma de se perguntar sobre como um
fenômeno ou um objeto é um evento. Ou seja, não se trata simplesmente de descrever
funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razões de
existência a partir de uma reflexão sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia tenta
compreender como o aparecimento de certos objetos e fenômenos produzem modificações em
nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo possível. Pois um evento não é apenas uma
mera ocorrência. Um evento é o que problematiza a continuidade do tempo, exigindo o
7

aparecimento de outra forma de agir, de desejar e de julgar. Um evento é sempre uma ruptura
que reconfigura o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguração em nossas formas de
vida que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um mundo
totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a filosofia trata. Por isto,
não seria incorreto dizer que toda questão filosófica é necessariamente vinculada a um evento
histórico, ela é a ressonância filosófica de um evento. Assim, a filosofia cartesiana é solidária
do impacto filosófico da física moderna. Ela é a elaboração, até as últimas consequências, da
dissolução do mundo fechado pré-Galileu e do advento de um universo infinito de espaço
homogêneo e a-qualitativa. A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como fruto das
aspirações emancipadoras da Revolução Francesa.
Neste sentido, “sexo” será objeto do discurso filosófico quando ele aparecer como um
evento. E a boa questão talvez seja: em que condições “sexo” e, principalmente, falar de sexo
pode aparecer como um evento, como um acontecimento capaz de produzir reconfigurações
profundas em nossa forma de vida?

A continuidade do erotismo

Podemos dizer que a filosofia do século XX conheceu três maneira diferentes de ver
no sexo uma forma de evento. A primeira está nesta forma de centrar as discussões sobre sexo
em uma genealogia da sexualidade. Assim, ao falarmos sobre sexo, perguntaremos sobre
como tal fala produz individualidades a partir de discursos sociais que procuram legitimar
formas diversas de intervenção. Procuraremos entender como tais discursos foram formados,
como eles demonstram a natureza produtiva do poder. Isto nos permitirá pensar o poder não
apenas como uma forma de coerção imposta que nos coage de fora, mas principalmente como
um modo de produzir formas de vida, de dar forma a nossos desejos, sejam nossos desejos de
normas, sejam nossos desejos de transgressões. Nesta chave, mostraremos como o
aparecimento da sexualidade com sua ciência nos expõe as verdadeiras artimanhas do que
significa falar de sexo para alguém, principalmente para alguém que se coloca na posição de
detentor de um saber.
Voltemos, por exemplo, ao caso de Freud e Dora. Ao falar francamente sobre sexo
com uma garota, Freud não apenas escuta. Ele a ensina como falar, em que condições seu
desejo pode ser colocado em discurso, qual história ele deve contar, qual conflito ele deve
assumir. Falar não é apenas liberar. Falar é também internalizar uma gramática do desejo. Por
isto, o simples atos de falar de sexo dentro de um quadro discursivo marcado pelos eixos de
8

uma ciência já é uma forma do poder operar, não este poder que se expressaria através de uma
pretensa submissão da minha vontade à vontade do médico. Mas o poder como o que opera
em nós dois, seja através do desejo de falar, seja através do desejo de escutar, como o que
define as condições do que significa falar e escutar.
Mas o século XX conheceu também outras duas formas de compreender sexo como
evento. Cada uma delas operou a partir de um conceito. Assim, ao falar sobre sexo não nos
focaremos mais na genealogia da sexualidade mas, por exemplo, na força explosiva do que
devemos entender por “erotismo”. Esta é a estratégia que vocês encontrarão em outro filósofo
francês, de uma geração anterior à Foucault, a saber, Georges Bataille. É dele definições
como:

O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas.
Repito-o: dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua
das individualidades definidas que somos (...) Trata-se de introduzir, no interior de
um mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade que esse mundo é
capaz (...) A própria paixão feliz acarreta uma desordem tão violenta que a
felicidade de que se trata, antes de ser uma felicidade de que seja possível gozar, é
tão grande que se compara a seu contrário, ao sofrimento 7.

Não é difícil perceber como estamos longe do conceito foucaultiano de sexualidade.


Não procuraremos mais saber como, através da assunção de uma sexualidade, constituímos
formas, definindo nossa individualidade e nossa identidade. Individualidade que funda um
mundo descontínuo, pois mundo composto por esses átomos sociais que são os indivíduos
modernos com seus sistemas particulares de interesses que procuram mediar seus conflitos de
interesses através de contratos, de limites, de cálculos. Interesses, por sua vez, submetidos à
lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer.
Bataille acredita que é tarefa filosófica fundamental fornecer as coordenadas para uma
crítica da modernidade capaz de demonstrar como o advento do sujeito moderno se realiza,
necessariamente, através da organização de uma sociedade composta por indivíduos. Os
indivíduos são a unidade mínima da vida social e tais indivíduos se relacionam a coisas a
partir de sua utilidade suposta. O mundo da sociedade dos indivíduos é o mundo das coisas
úteis ou inúteis, mundo das coisas que produzem prazer ou desprazer. Mas, principalmente,
mundo no qual as relações entre pessoas segue a mesma lógica que as relações às coisas.
Mundo de pessoas úteis ou inúteis, mundo de pessoas que produzem prazer ou desprazer.
Mundo no qual posso avaliar relações entre pessoas da mesma forma que avalio processos
financeiros baseados em investimentos (“É, eu investi muito”) e rentabilidade (“Não tive
7
BATAILLE, Georges. O erotismo, op. cit., p. 42-43.
9

nenhum retorno”). Ou seja, mundo no qual a lógica calculadora do trabalho no interior da


indústria capitalista fornece o fundamento para todas as formas de experiência social.
Este mundo, dirá Bataille, desconhece duas experiências fundamentais, que tecem
entre si relações profundas: o erotismo e o sagrado. Pois o erotismo e o sagrado seriam
fenômenos sociais capazes de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a
descontinuidade, toda a continuidade de que esse mundo é capaz. Isso significa que
estaríamos diante de fenômenos irracionais a partir da lógica utilitarista que guia os
indivíduos e suas relações. Vale para o sagrado, o que Bataille diz sobre o erotismo:

O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em


questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas
então o sujeito se identifica com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer,
no erotismo: EU me perco8.

Veremos nas nossas próximas aulas o que pode significar uma experiência do erotismo
e do sagrado pensada desta forma. Por enquanto, vale a pena insistir em um ponto. Através da
construção de uma noção de “erotismo” desta natureza, Bataille quer pensar com o sexo pode
produzir um evento impensável no interior de nossas sociedades capitalistas, nessas mesmas
sociedades que mais de um crítica descreveu como sociedades hedonistas. Ele quer mostrar
como as sociedades capitalistas não são apenas economicamente injustas, mas principalmente
elas organizam nossas formas de vida a partir da exclusão de experiências que retiram da vida
sua mobilidade e força.
Notemos como há, aqui, ao mesmo tempo, uma tentativa de retornar à experiências
pré-modernas do sagrado e do erotismo para fornecer o fundamento da crítica social no
capitalismo avançado. Mas este retorno é animado por um evento histórico preciso. Como
veremos, a experiência pré-moderna só aparece à Bataille desta forma porque ela é vista a
partir dos olhos de alguém animado por uma profunda experiência estética de ruptura ligada
ao modernismo, em especial ao surrealismo. O mesmo surrealismo do qual Bataille
representava a versão não-oficial, em conflito contínuo com aquela representada por André
Breton.
Neste sentido, através da reflexão filosófica sobre o sexo, Bataille procura pensar um
evento que teria a força de, ao mesmo tempo, fornecer a explicação sobre porque sofremos no
interior das formas de vida hegemônica do capitalismo e abrir a vida social para o impacto de
experiências estéticas maiores da primeira metade do século XX.

8
Idem, p. 55.
10

Gênero

A terceira maneira que veremos nesse curso de falar sobre sexo, e ela só ganha força
nas últimas décadas do século XX e no início do nosso século, passa pelo uso do conceito de
“gênero”. Foi a filósofa norte-americana Judith Butler quem se responsabilizou pela
transformação de um conceito psiquiátrico em forte conceito de orientação para práticas de
transformação social. Seu verdadeiro inventor foi o psiquiatra Robert Stoller em um livro de
(vejam só vocês) 1968 intitulado Sexo e gênero. Nele, Stoller procurava descrever os
processos de construção de identidades de gênero através da articulação entre processos
sociais, nomeação familiar e questões biológicas.
Judith Butler, por sua vez, irá levar às últimas às últimas consequências a distinção
entre sexo (configuração determinada biologicamente) e gênero (construção culturalmente
determinada). No seu caso, não se trata de fornecer uma nova versão da distinção clássica
entre natureza e cultura, até porque gênero, segundo Butler: “é o aparato discursivo/cultural
através do qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são produzidos e estabelecidos como ‘pré-
discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual a cultura
age”9. Tal noção de gênero como ante-câmara de produção da ‘natureza sexual’ permite a
Butler, entre outras coisas, defender o caráter ideológico de uma noção binária de gênero
(masculino/feminino), já que: “a pressuposição de um sistema binário de gênero depende da
crença em uma relação mimética entre gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por
outro lado, restringido por ele”10.
Diferentemente da noção foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de tudo um
conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está carregada de uma teoria da ação
política, teoria que procura entender a maneira com que sujeitos lidam com normas,
subvertem tais normas, encontram espaço produzindo novas formas, não apenas como eles
são sujeitados às normas e completamente constituído por elas. Por isto, pelas mãos de Butler,
a teoria de gênero não será apenas uma teoria da produção de identidades. Ela será uma astuta
teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo que não se submete
integralmente às normas e identidades, descubro que ter um gênero é um “modo de ser
despossuido”11, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz no outro. Daí uma afirmação
como:

9
BUTLER, Judith. Gender trouble. New York: Routledge, 1999, p. 11.
10
idem, p. 10.
11
Idem, Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19.
11

A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao ato de


tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo sentido, tornar-
se gênero para outros) estabelece um campo de enredamento ético com outros e
um sentido de desorientação para a primeira pessoa, para a perspectiva do Eu.
Como corpos, nós somos sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos 12.

Aqui, mais uma vez, sexo aparece como o nome de um evento marcado pelo advento
das exigências de reconhecimento do que, até então, estava expulso do universo do humano.
Do que era visto como patológico, doentio e, por isto, sem direito à existência, como
inumano, pois sem identidade fixa e definida. A modificação da sensibilidade social e da
sensibilidade médica para problemas de gênero foi um acontecimento de forte ressonância
filosófica, pois nos colocaria diante da compreensão de como nossa humanidade depende do
reconhecimento de alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano.
Notem então como no caso do uso desses três conceitos (erotismo, sexualidade e
gênero) por três filósofos (Georges Bataille, Michel Foucault, Judith Butler) em três
momentos intelectuais distintos vemos três estratégias diferentes, embora não completamente
divergentes, da filosofia se voltar para uma matéria que lhe é exterior, problematizando
aspectos de um mesmo fenômeno: o espanto diante da experiência sexual. Por isto, este curso
será organizado através da leitura de três livros. Esta é a leitura obrigatória de vocês: “O
erotismo”, de Georges Bataille, o primeiro volume de “História da sexualidade”, de Michel
Foucault e “Problemas de gênero”, de Judith Butler. O curso será, em larga medida, uma
apresentação comentada desses três livros, ou de trechos deles. Mas é fundamental que vocês
os leiam integralmente para que a experiência do comentário possa funcionar.
Ao ler tais livros, lembrem como esses três filósofos tecem, ainda, relações profundas
de proximidade. Foucault escreveu sobre Bataille e conhecia bem sua obra, o mesmo vale
para Judith Butler sobre Foucault. Há, entre os três, uma interessante circulação de
pensamento que não se dá sobre a forma tradicional da influência ou da continuidade. Há uma
circulação de pensamento por exploração de possibilidades não trilhadas, como se uma
experiência de pensamento fosse sempre algo que deve ficar incompleto, que deve deixar
alguns fios descosidos que poderão entrar em tramas completamente diferentes. Esses que
leem procurando o ponto no qual os textos de descosem podem não ser os leitores mais fieis,
mas são certamente os melhores, os únicos que compreendem o texto filosófico como um
processo aberto de invenção. As vezes, a infidelidade é a maneira que o pensamento tem de
afirmar sua produtividade. Fidelidade nunca foi uma virtude filosófica, embora a pura e

12
Idem, p. 25.
12

simples incapacidade de entrar nos textos de maneira rigorosa esteja também longe de ser
algo a se vangloriar.
Por isto, sugiro que vocês vejam este curso como a exposição uma forma de fazer
comentário filosófico que não é apenas a imersão na textualidade interna de certos textos da
tradição, mas que seja a capacidade de identificar e constituir problemas filosóficos. De fato,
vocês aprenderão técnicas fundamentais para todo e qualquer processo filosófico de leitura de
textos da tradição : saber identificar o tempo lógico que nos ensina a reconstituir a ordem das
razões internas a um sistema filosófico, pensar duas vezes antes de separar as teses de uma
obra dos movimentos internos que as produziram, compreender como o método se encontra
em ato no próprio movimento estrutural do pensamento filosófico, entre outros. Trata-se de
um ensinamento fundamental para a constituição daquilo que chamamos de “rigor
interpretativo” que respeita a autonomia do texto filosófico enquanto sistema de proposições e
não se apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato de
“compreender” está sempre subordinado ao exercício de “explicar”. Mas ele não define o
campo geral dos modos filosóficos de leitura. Ele define, isto sim, procedimentos
constitutivos da formação de todo e qualquer pesquisador em filosofia. Ele é o início
irredutível de todo fazer filosófico mas, por mais que isto possa parecer óbvio, o fazer
filosófico vai além do seu início. Por isto, talvez seja interessante aproveitar o início do curso
de vocês e mostrar algo diferente do que normalmente nos mostraríamos.
Esta é uma maneira de fazer uma aposta na capacidade especulativa de boa parte de
vocês. Tenho certeza de que este é o melhor caminho.
13

Erotismo, sexualidade e gênero


Aula 2

Na aula de hoje, vamos começar nosso módulo dedicado ao conceito de “erotismo” a


partir de Georges Bataille. Gostaria de, inicialmente, apresentar Bataille e, em um segundo
momento, tecer algumas considerações gerais sobre sua experiência intelectual.
“Eu sou um filósofo... até certo ponto”. Talvez essa frase de Bataille (1897-1962) seja
uma boa maneira de começarmos a nos introduzir a sua obra multifacetada. Composta de
vários livros de literatura (como, por exemplo, A história do olho e Madame Edwarda, livros
que passaram à história da literatura devido a sua maneira explícita de falar de sexo e que
parecem se colocar na linha direta de produções como as de Sade, dos libertinos franceses,
entre outros), sua obra não é, no entanto, a obra de um escritor. Seus romances são a
elaboração literária de uma problematização filosófica, um pouco como os romances de
Sartre, de Diderot e Rousseau. Há algo de “romance de tese” em sua obra literária, já que a
literatura aparece quase como um regime discursivo de explicitação de proposições
filosóficas.
No entanto, sua produção filosófica também não parece se enquadrar claramente no
modelo de produção que poderíamos esperar de textos filosóficos. Por exemplo, a parte
alguns escritos sobre Nietzsche e dois artigos sobre Hegel, não encontraremos textos
diretamente dedicados ao comentário da obra de outros filósofos. Sua formação não foi típica
de um filósofo. Ela se deu na Ecole des Chartes, de Paris, de onde saiu como arquivista e
bibliotecário com uma tese sobre o manuscrito A ordem da cavalaria, o que explica, entre
outros, porque encontraremos em sua produção textos técnicos sobre numismática. Durante
praticamente toda sua vida, Bataille foi arquivista da Biblioteca Nacional, ficando
completamente à margem da vida universitária.
Esta formação híbrida, assim como uma grande abertura de interesses, pode explicar
porque os temas de sua filosofia muitas vezes se constroem em um campo de interface entre a
antropologia, a teologia, a estética e a filosofia. O que lhe fornece uma capacidade não
negligenciável de elaborar temas filosóficos até então inexistentes, como este que versa sobre
o erotismo e suas relações com o sagrado.
Se voltarmos os olhos para o sistema de influências presente na obra de Bataille
veremos, ao menos, duas influências maiores vindas do campo da filosofia. A primeira é
Nietzsche. De fato, a peculiaridade da recepção de Nietzsche na França seria incompreensível
sem o impacto dos textos de Bataille e sua maneira de, nos anos trinta, demonstrar a
14

incompatibilidade entre o filósofo alemão e o nazismo que procurava à sua maneira recuperá-
lo. Já a segunda influência filosófica é Hegel, mas um Hegel muito peculiar pois descoberto
através dos cursos de Alexandre Kojève.
Kojève foi um emigrante russo responsável, nos anos trinta, por um seminário de
leituras da Fenomenologia do Espírito na Escola Prática de Altos Estudos. Entre os alunos de
seu curso encontravam-se: Bataille, Jacques Lacan, Maurice Merleau-Ponty, Raymond
Queneau, Eric Weil e de forma mais esporádica Jean-Paul Sartre e André Breton. Como vocês
podem ver, uma boa parte da núcleo do pensamento francês dos anos 30 e 40 estava presente
ao mesmo seminário, aprendendo um modo de leitura dos textos hegelianos que privilegiava
questões ligadas ao desejo, à luta por reconhecimento, à morte e ao fim da história. Bataille
seguiu de maneira assídua os seminários, de 1933 a 1940, sendo a única formação filosófica
de longa duração que teve.
Mas além da influências filosóficas, devemos salientar ainda outras duas matrizes para
a constituição de seu pensamento. A primeira vem do surrealismo e das aspirações abertas
pelo modernismo estético. Desde de meados dos anos vinte, Bataille participa assiduamente
das discussões a respeito do surrealismo, animadas principalmente por André Breton. No
entanto, suas relações com Breton são tensas e logo serão levadas à ruptura. Bataille se vê em
uma posição mais radical do que a de Breton, que ele compreende como uma porta-estandarte
de uma versão “oficial” e “institucionalizada”. A seu respeito, Breton dirá: “O Sr. Bataille faz
profissão de querer considerar apenas o que há de mais vil, mais desencorajador e corrompido
e ele convida o homem, a fim de evitar que ele se torne útil ao que quer que seja de
determinado a correr absurdamente com ele em direção a algumas casas provinciais
assombradas, mais vis que as moscas mais viciosas, mais rançoso que salões de
cabelereiro”13.
Podemos definirmos um dos eixos centrais do surrealismo como a crítica da realidade
social em prol de uma sobre-realidade na qual encontraríamos o que teria sido recalcado pelos
processos de racionalização na modernidade, como o inconsciente, o infantil e o arcaico.
Neste sentido, a experiência modernista é um paradoxal apelo à recuperação do que foi
expulso do nosso tempo histórico. Recuperação da capacidade de escrever como um criança,
sem objetivo e em completa errância; escrever com as condensações, os deslocamentos e as
associações próprias às formações do inconsciente; escrever deixando retornar experiências
sociais que a modernidade quer marcar com o selo do arcaismo. Dentro desse horizonte, a

13
BRETON, André. Manifestes do surréalisme. Paris: Gallimard, 1962, p. 132.
15

posição de Bataille consiste em explorar tal retorno do recalcado através de uma reflexão
sobre a potência de uma escrita da transgressão.
Com este projeto em mente, Bataille irá organizar o campo de uma vertente do
surrealismo que se constituirá através de revistas como Documents, Minotaure e,
principalmente, Acéphale. Talvez a síntese do espírito de tais revistas se encontre na capa de
Acéphale, desenhada por André Masson. Nela, encontramos um desenho inspirado no
Homem de Vitruvio, de Leonardo da Vinci. Mas, pelas mãos de Masson, ele perde sua cabeça,
ganha uma caveira no lugar de seu sexo, suas vísceras estão expostas e nas mãos ele carrega
um coração em chamas e uma adaga. Ou seja, a figura que talvez melhor sintetize a crença
renascentista no humanismo e na razão que se expressa no equilíbrio sereno da boa forma
perde sua cabeça e se vê obrigada a segurar a violência da adaga, a paixão que queima e a
morte ligada ao sexo. O que não nos surpreende se lembrarmos como Bataille escreve o
primeiro texto da revista anunciando: “Chegou o momento de abandonar o mundo dos
civilizados e sua luz. É muito tarde para tentar ser razoável e instruido – o que levou a uma
vida sem atrativos. Secretamente ou não, faz-se necessário se transformar em algo totalmente
outro ou cessar de ser”.
Lembrem como, na aula passada, eu falara sobre a solidariedade entre todo verdadeiro
projeto filosófico e a elaboração, até as últimas consequências, de um acontecimento. Aqui,
nós encontramos um bom exemplo do que significar ter a consciência de estar diante de um
acontecimento. Ele se dá sobre a forma de um momento de abandono. Um abandono
impulsionado, principalmente, pela consciência de se viver em uma época de esgotamento
estético à procura de superação. A arte aparece como uma experiência marcada pela procura
em sintetizar novas formas capazes de nos desacostumar de uma realidade que, longe de ser
naturalizada, é uma construção social responsável pelo empobrecimento da vida do homem
moderno. Por isto, ela nos levará não apenas a uma nova ordem, mas, principalmente, à
destruição da figura atual do homem. Daí porque o gesto estético por excelência é a
decapitação, a perda do centro que define uma hierarquia.
Por fim, o terceiro campo de influência do pensamento de Bataille deriva da
antropologia de Marcel Mauss e da psicanálise de Sigmund Freud. Vale a pena lembrar que
Bataille fundará, juntamente com Michel Leiris, Roger Caillois e Pierre Klossoviski uma
espécie de sociedade secreta chamada “Colégio de sociologia”. Nela, era questão de
desenvolver um saber capaz de fazer não apenas uma antropologia da sociedades primitivas,
mas principalmente uma antropologia das sociedades modernas, colocando à luz aquilo que,
em nossas sociedades, não se deixa pensar a partir de explicações utilitaristas. Para tanto,
16

Bataille se serve principalmente de conceitos de Marcel Mauss, como dádiva, dom, mana, fato
social total, entre tantos outros. Ele também não deixa de se apoiar em Freud a fim de
construir um conceito que fará fortuna na psicanálise, através principalmente de Jacques
Lacan, a saber, o conceito de gozo.

Um crítica da sociedade do trabalho

Uma forma possível de começar a compreender o sentido da experiência intelectual de


Georges Bataille é prestando atenção no modo de funcionamento de sua crítica social. Como
vocês podem imaginar, ela não é apenas uma crítica social, mas ao mesmo tempo, crítica da
razão e crítica do sujeito. Ou seja, ela compreende que a única maneira de fazer uma
verdadeira crítica social não é contentando-se com a denúncia das condições de exploração e
injustiça econômica. A verdadeira crítica precisa, ao mesmo tempo, estar atenta para a
maneira com que nossa realidade social só será modificada à condição de nos livrarmos de um
conceito de razão onde esta aparece principalmente como um modo instrumental de
dominação e de um conceito de sujeito profundamente alienante.
Em vários momentos, Bataille lembrará que nossas sociedades modernas ocidentais
são caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho. O trabalho aparece
como atividade fundamental para a constituição das identidades sociais e para o meu
reconhecimento como sujeito. Neste sentido, lembremos de duas características maiores do
trabalho. Primeiro, o trabalho fornece um modelo fundamental de expressão subjetiva no
interior de realidades sociais intersubjetivamente partilhadas, isto devido ao fato dele ser
(juntamente com o desejo e a linguagem) um dos eixos de constituição daquilo que podemos
entender por “forma de vida”. Tal expressão realiza exigências maiores de autenticidade.
Procuro realizar, através do trabalho, a expressão de algo que definiria minha autenticidade, a
singularidade do meu estilo.
No entanto, e este é o segundo ponto, o trabalho aparece como modalidade
privilegiada de formação em direção à autonomia. Não é por acaso que compreendemos a
maturação psicológica como este momento em que, entre outras coisas, deixamos de brincar e
começamos a trabalhar. Pois a maturação implica mutação no padrão de atividades subjetiva.
Ou seja, a expectativa de realização conjunta de exigências de expressão e formação é
elemento definidor dos valores que mobilizamos na avaliação social do trabalho. Pois trata-se
de dar conta de uma dupla demanda presente na definição moderna de liberdade. Dupla
demanda referente à constituição da autonomia e à manifestação social da autenticidade. Por
17

sua vez, o fracasso em realizar tais expectativas explica muito do espectro de sofrimentos que
ainda encontramos na vida social.
Se o trabalho tem esta dimensão formadora é porque ele é uma das versões mais bem
acabadas de certo processo de auto-governo. Só aqueles capazes de se auto-governar são
capazes de trabalhar. Pois, como dizia Marx, através do trabalho, aprendemos a impor uma lei
à vontade, lei que deve ser reconhecida por mim como expressão da minha própria vontade.
Esta vontade que submete outras vontades e que aparece assim para o sujeito com um dever
que ele mesmo põe para si, dever que lhe permite relativizar as exigências imediatas de auto-
satisfação, é um fator decisivo na constituição da noção moderna de autonomia. Por isto, só
aqueles capazes de trabalhar são autônomos; não apenas no sentido material de serem capazes
de prover seus próprios sustentos, mas no sentido moral de serem capazes de impor para si
mesmo uma lei de conduta que é a expressão de sua própria vontade. E se lembramos da ideia
de Rousseau14, para quem a verdadeira liberdade é a capacidade de dar para si mesmo sua
própria lei, ser legislador de si mesmo, então seremos obrigados a dizer que o trabalho é
exercício mais importante para a liberdade.
Para Bataille, devido a esta natureza de auto-controle socialmente validado não é
possível ao trabalho aparecer, em qualquer momento que seja, como modalidade bem
sucedida de reconhecimento social. Trabalhar sempre será uma operação servil. Podemos
mesmo modificar radicalmente a divisão social imposta ao trabalho pelo capitalismo e
permitir que todos tenham a posse dos meios de produção e de seus frutos. Para Bataille, isto
não mudará o essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da produção e que
produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cálculo de tempo e metas, não se deixar
desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final de cada objeto produzido,
avaliar cada ação a partir do valor que ela produziu. Ou seja, o mundo do trabalho é um
mundo no qual posso calcular valores que são homogêneos, intercambiáveis. A lei que
imponho para mim mesmo quando organizo minhas atividades a partir da lógica do trabalho é
uma lei que me ensina a calcular, a medir, a quantificar minhas atividades, os objetos que
produzo e, principalmente, o prazer final que alcanço. E neste ponto que se encontra, para
Bataille, o verdadeiro núcleo da experiência de alienação produzida pela sociedade do
trabalho. Por isto, ele precisará lembrar:

O trabalho exige uma conduta em que o cálculo do esforço, relacionado à eficácia


produtiva, é constante. Exige uma conduta razoável, em que os movimentos
tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo, não são admitidos. Se
14
Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques. Le contrat social. Paris: Gallimard, 2000.
18

não pudéssemos refrear esses movimentos, não poderíamos trabalhar, mas o


trabalho introduz justamente a razão de refreá-los 15.

Nesta citação, vemos Bataille introduzir uma oposição importante. Há um modelo de


cálculo derivado da lógica do trabalho. Tal modelo é indissociável da noção de “utilidade”,
assim como de um tempo no qual as atividades são calculadas tendo em vista sua utilidade. Se
nos perguntarmos sobre o que devemos entender por “utilidade” neste contexto, teremos que
apelar a um texto do início dos anos 30, intitulado “A noção de dispêndio”. Nele, lemos:

A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob uma
forma moderada, pois o prazer violento é tido como patológico – e se deixa limitar,
por um lado, à aquisição (praticamente à produção) e à conservação dos bens e ,
por outro, à reprodução e à conservação das vidas humanas (...) No conjunto,
qualquer julgamento geral sobre a atividade social subentende o princípio de que
todo esforço particular deve ser redutível, para ser válido, às necessidades
fundamentais da produção e da conservação16.

Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de descrição
da racionalidade própria a um sistema social determinado, mas principalmente como o
princípio fundamental de definição da natureza dos sujeitos próprios a tal sistema. Os sujeitos
racionais no interior do capitalismo são aqueles que organizam suas ações tendo em vista sua
auto-conservação, a conservação de seus bens e a fruição de formas moderadas de prazer.
Eles são aqueles que se julgam racionais por sempre se perguntarem pela utilidade de suas
ações, não apenas suas ações no interior do mundo do trabalho, mas também suas ações
relativas a outros sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx a respeito do problema do
fetichismo da mercadoria, as relações entre pessoas acaba ganhando a forma de relações entre
coisas: “a humanidade, no tempo humano, antianimal do trabalho é em nós o que nos reduz a
coisas”17.
Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela compreende
como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que não se confunde com o cálculo do
prazer e desprazer e, principalmente, toda ação social que aparece como improdutiva. Pois
devemos inicialmente entender por “gozo” aquilo que está para além do prazer, aquilo que
dissocia desprazer e dor, prazer e alegria. Daí o sentido de uma afirmação como:

A atividade humana não é inteiramente irredutível a processos de reprodução e de


conservação, e o consumo deve ser dividido em duas partes distintas. A primeira,
15
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 64.
16
BATAILLE, Georges, A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20.
17
Idem; O erotismo, p. 184.
19

redutível, é representada pelo uso do mínimo necessário para os indivíduos de uma


dada sociedade, à conservação da vida e ao prosseguimento da atividade produtiva:
trata-se, portanto, simplesmente da condição fundamental desta última. A segunda
parte é representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as
guerras, os cultos, as construções de monumentos santuários, os jogos, os
espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da finalidade
genital) representam atividades que, pelo menos nas condições primitivas, têm em
si mesmas seu fim18.

Há várias questões que poderíamos colocar a partir de afirmações desta natureza. Elas
apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela necessidade de experiências de
excesso, de dispêndio e de destruição que, do ponto de vista das exigências econômicas de
produção e maximização, são simplesmente irracionais. Mas, ao menos neste momento,
gostaria de desdobrar a ideia de que a atividade sexual seria um exemplo privilegiado de
atividade improdutiva, de excesso e de dispêndio sem finalidade. Ela está bem expressa em
uma afirmação como:

Há entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual, uma


incompatibilidade cujo rigor não poderia ser negado. Na medida em que o homem
se definiu pelo trabalho e pela consciência, ele teve não apenas que moderar, mas
desconsiderar e por vezes maldizer nele mesmo o excesso sexual. Em certo sentido,
essa desconsideração desviou o homem, senão da consciência dos objetos, ao
menos da consciência de si19.

O excesso e os números

Notem, inicialmente, a peculiaridade da construção de Bataille. Primeiro, trata-se de


dizer que há uma incompatibilidade entre a lógica do trabalho e a vida sexual. Isto exige não
apenas aceitar desvincular a vida sexual dos imperativos de reprodução (pois se sexo servisse
principalmente para a reprodução, então ele entraria sem maiores problemas no interior das
exigências de conservação das sociedades), mas também, e este é o passo mais singular,
desvincular sexo e prazer. Pois poderíamos, sem muita dificuldade, imaginar, como afinal
sempre se imaginou, que o desgaste do mundo do trabalho pede um complemento através do
uso do tempo livre enquanto momento de prazer. Não por outra razão, mais ou menos à
mesma época, filósofos ligados à Escola de Frankfurt, como Herbert Marcuse e Theodor
Adorno, lembravam como as sociedades capitalistas não podiam ser compreendidas como
sociedades repressivas em relação às exigências da sexualidade. Elas eram sociedades de
contínua incitação à sexualidade, sociedades nas quais o poder fornece, ao mesmo tempo, o
18
Idem, A parte maldita, p. 21.
19
Idem, O erotismo, p. 188.
20

paradigma da ordem e as figuras da desordem. Desde o advento das sociedades de consumo, a


experiência do prazer é um argumento constantemente presente para o fortalecimento da
coesão social.
Por uma razão desta natureza, Bataille procura pensar a experiência sexual como
aquilo que não se encaixa dentro da racionalidade instrumental dos que procuram maximizar
seus prazeres e se afastar de seus desprazeres. Por isto, sua incompatibilidade com o trabalho
não é simplesmente derivada da ideia de quanto mais tempo para o trabalho, menos tempo
para a vida sexual. Na verdade, trata-se de afirmar que a incompatibilidade é estrutural: o
tempo profano do trabalho em nada se assemelha ao tempo sagrado do erotismo. Eles não tem
medida comum, eles não seguem a mesma lógica. Sua relação é de completa heterogeneidade.
Quem habita o primeiro tempo, não sabe como habitar o segundo e quem habita o segundo
despreza profundamente o primeiro.
Por isto, o erotismo é excessivo. Mas, com isto, não significa dizer que o erotismo é
mais intenso que o trabalho. Seu excesso não é da ordem da grandeza, mas da alteridade. Nem
sempre, “excessivo” significa o que é muito grande, pois isto corresponderia a dizer que há
uma medida comum entre os dois fenômenos, sendo que um é apenas maior do que o outro.
Na verdade, “excessivo” significa aqui o que excede minha capacidade de medir,
simplesmente porque é o que não se mede, o que colapsa toda medida, porque sua lógica não
é a lógica dos objetos mensuráveis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e
silencioso, mesmo quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será
excessivo. Porque seu excesso é a recusa do que não aceita ser sentido e vivido da mesma
forma que sentimos as coisas que podemos calcular, mensurar e quantificar. O erotismo será
sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente aquilo que não entra na imagem
atual do homem, deste homem da sociedade do trabalho e da lógica utilitária. Por isto, que
Bataille irá procurar se apoiar em tudo o que parece inumano no sexo:

A sexualidade, qualificada de imunda, de bestial, é mesmo o que mais se opõe à


redução do homem à coisa: o orgulho íntimo de um homem se liga a sua virilidade.
Ela não responde de modo algum em nós àquilo que é o animal negado, mas ao que
o animal tem de íntimo e de incomensurável. É mesmo nela que não podemos ser
reduzidos como bois à força de trabalho, ao instrumento, à coisa 20.

Inumano é o que o homem precisou expulsar para ter uma imagem na qual reconheça
as normas aos quais a vida social o vinculou, como a animalidade. Tal animalidade não é o
selvagem, mas o incomensurável, o que não se descreve como descrevemos um instrumento.
20
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 183.
21

Isso explica, em nosso texto, a indignação de Bataille com estudos “sobre a vida
sexual” como os Relatórios Kinsey. Alfred Kinsey foi um biólogo e “sexólogo” norte-
americano responsável por estudos sobre o comportamento sexual masculino e feminino que
marcaram os anos cinquenta. Seu estudos procuraram criar escalas (como uma que definia
tendências homossexuais e heterossexuais a partir de uma escala de 0 a 6) e organizar
comportamentos a partir de variáveis de ocupação, idade, religião, entre tantas outras. Bataille
se insurge contra a ideia de que poderíamos falar de sexo como se estivéssemos diante de um
objeto do mundo físico. Ou seja, uma ciência da sexualidade é, para Bataille, impossível. Pois
a ciência é um regime de descrição que não se diferencia do padrão de racionalidade que
encontramos no mundo do trabalho.
Mas podemos dizer que, para Bataille, uma ciência da sexualidade é impossível
porque, primeiro: “não podemos em geral participar da pedra, da tábua, mas participamos da
nudez da mulher que enlaçamos” 21. Ou seja, não há um observador indiferente aos fenômenos
ligados à sexo, pois eles provocam necessariamente nossa participação. Olhar para eles,
descrevê-los é entrar em um regime de participação e de implicação, como participaríamos e
nos implicaríamos se descrevêssemos a dor ou a morte de alguém próximo. Por isto, o
discurso que crê descrever fenômenos sexuais como se fossem coletados por observadores
imparciais e imunes ao que veem só pode ser uma mistificação. Nossa descrição do que é da
ordem do sexual sempre será uma descrição sexualmente investida, libidinalmente
interessada. Melhor procurar um regime de discurso que possa lidar melhor com tal realidade.
Por isto, e este é o segundo ponto, falar de sexo não pode ser, para Bataille, reduzi-lo a
dados estatísticos. Não que eles não sejam precisos, eles são simplesmente irrelevantes:

Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a dar


números, medidas, classificações de acordo com a idade ou a cor dos olhos? O que
o homem significa a nossos olhos se coloca sem dúvida para além dessas noções:
estas se impõem à atenção, mas não acrescentam a um conhecimento já dado senão
aspectos inessenciais22.

Consciência de si e soberania

Em uma citação anterior, vimos Bataille a afirmar que desconsideração pela natureza
excessiva do sexo teria desviado o homem, senão da consciência dos objetos, ao menos da
21
Idem, p. 179.
22
Idem, p. 180. Ou ainda: “la science a pour objet de fonder l’homogénéité des phénomènes ; elle est, en un
certain sens, une des fonctions eminentes de l’homogénéité. Ainsi, les éléments hétérogènes qui sont exclus par
cette dernière se trouvent également exclus du champ de l'attention scientifique : par principe même, la science
ne peut pas connaître d'éléments hétérogènes en tant que tels” (BATAILLE, Georges).
22

consciência de si. Seria interessante perguntar-se aqui porque vincular a revelação do sexo à
consciência de si. Normalmente, poderíamos pensar no contrário, a saber, que a natureza
excessiva da vida sexual é o avesso de toda consciência de si, pois ela nos colocaria em um
regime de descontrole e inconsciência, de distância em relação a algo como um “si mesmo”,
como quem se entrega à servidão de algo que lhe ultrapassa e lhe subjuga.
No entanto, Bataille afirma que o reconhecimento da natureza excessiva da vida
sexual é condição para quebrarmos o círculo de alienação no qual se encontramos enquanto
indivíduos das sociedades capitalistas do trabalho, enquanto objetos de um discurso científico
objetificador e acedermos à condição de consciência de si emancipada.
Este conceito de consciência de si é profundamente vinculado a um outro conceito
importante de Bataille, a saber, o conceito de soberania. Normalmente, o conceito de
soberania é utilizado no interior da filosofia política para descrever aquele que se encontra em
um lugar excepcional, pois fonte de emanação do poder. O exemplo mais paradigmático aqui
é o lugar do rei no poder monárquico. O rei é soberano porque, sendo a fonte do poder, a lei é
expressão da sua vontade. Por isto, ele pode, ao mesmo tempo, ser o fundamento da lei e
suspendê-la quando entender dever ser o caso. O soberano é aquele que pode estar dentro ou
fora da lei, aplicá-la ou suspendê-la, porque é dele que emana o poder.
Por outro lado, o soberano é aquele que pode consumir as riquezas sem trabalhar,
enquanto aquele submetido à servidão produz riquezas sem consumi-las. Ou seja, a soberania
pressupõe o descolamento entre gozo e trabalho, pois se baseia no direito ao gozo
desvinculado de toda atividade laboral. Do ponto de vista da lógica econômica, o soberano é
improdutivo.
Bataille retira o conceito de soberania das mãos daquele que se encontra no centro do
poder político para transformá-lo em um conceito capaz de descrever a posição subjetiva de
quem não se encontra mais em posição de alienação e servidão. Mas o paradoxal no uso
batailleano do conceito de soberania é que ele não descreve alguma experiência de dominação
baseada na sobreposição da vontade do Outro à minha vontade. Ao contrário, soberano é
aquele capaz de depor toda vontade de domínio, todo projeto, porque ele tem a segurança de
que nenhuma vontade de domínio vinda do Outro poderá lhe submeter.
Depor toda vontade de domínio significa não querer mais controlar as coisas através
da sua submissão à utilidade delas para mim, que normalmente sou seu proprietário, nem
controlar o tempo através da submissão do presente ao futuro que eu projeto. Futuro que se
define como causa das limitações que aceito no presente, que aprisiona o presente em uma
rede causal profunda onde só faz sentido o que se submete à necessidade definida na
23

idealidade do futuro. Futuro para o qual o esquecimento de si no presente aparece como um


dispêndio improdutivo. Por isto, ele dirá: “é soberano o gozo de possibilidades que a utilidade
não justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)”23, ou ainda, “o que é
soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a não ser esse tempo presente”.
Desta forma, a improdutividade do soberano se transforma na descrição de uma posição
subjetiva na qual a liberação do tempo e das coisas é indissociável de uma experiência de
emancipação.
Isto ocorre porque: “eu me reencontro como sujeito, se nego em mim mesmo o
primado do instante por vir sobre o instante presente” 24. Pois só assim, não sou mais um
objeto submetido à suspensão do gozo do presente em nome do trabalho que visa o projeto
futuro. Uma suspensão que sempre é feita para que um outro, este sim em posição soberana,
possa consumir o que produzo. Não há trabalho, lembrará Bataille, sem consumo dos
produtos trabalhados por um soberano que não trabalha. Graças ao efeito do meu trabalho, há
sempre um soberano que pode viver no instante.
Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociável da capacidade de habitar outro
tempo, distinto do tempo da produção. Um tempo, dirá Bataille, próprio ao milagre:

Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio do sol
que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserável (o que, o mais
pobre às vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro copo à bebedeira que afoga.
Mais geralmente esse milagre, ao qual a humanidade inteira aspira, manifesta-se
em nós sob a forma de beleza, de riqueza; também sob a forma de violência, de
tristeza fúnebre ou sagrada; enfim, sob a forma de glória 25.

Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por Bataille,


característica que veremos com mais calma na próxima aula, é sua posição de transgressão em
relação à lei. Se na teoria política o soberano é aquele que está, ao mesmo tempo, dentro e
fora da lei, ele é o fundamento da lei, mas à ela ele não se submete por completo, na filosofia
de Bataille, o homem soberano é aquele que estabelece com a lei uma relação de
transgressão. Ele pode ir em direção ao que é interdito, ao que estava separado do contato dos
homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e a transgressão da lei” 26. Para
Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este jogo de transgressão na qual as leis que
definem os lugares e identidades sociais, as posições, as práticas interditadas são

23
BATAILLE, Georges. La souveraneité, p. 248.
24
Idem, p. 289.
25
Idem, p. 249.
26
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 60.
24

continuamente colocadas em questão e profanadas. Pois o erotismo é próprio a: “um mundo


que se desnuda na experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso que o transgride” 27.
Veremos melhor este ponto na aula que vem
Mas Bataille também acrescenta algo à noção de soberania, a saber, a ideia de que a
consciência de si soberana não é a realização final de uma identidade reconquistada. O
verdadeiro soberano não é aquele que se deleita na segurança de sua própria identidade. Ele é
aquele que depôs todo desejo de auto-identidade. O verdadeiro soberano é aquele que não
teme se perder, que não teme ser habitado pelo profundamente heterogêneo, isto a fim de se
abrir a uma experiência que, do ponto de vista da utilidade, da produção, da conservação de si
e do domínio dos objetos, é completamente irracional. Essa consciência de si é fundada na
capacidade de transformar a relação a si em uma relação que não será relação homogênea,
mas uma relação heterogênea. Veremos na aula que vem como a experiência do erotismo nos
coloca no caminho em direção a tal consciência.

27
FOUCAULT, Michel. “Preface à la transgression”. In: Dits e écrits, p. 264.
25

Erotismo, sexualidade e gênero


Aula 3

Na aula de hoje, daremos continuidade ao nosso módulo dedicado ao conceito de


erotismo, em Georges Bataille. Gostaria de discorrer sobre três temas centrais no pensamento
de Bataille, a saber, a) a função e o sentido da relação entre erotismo e morte, b) o
fundamento da ideia de uma sobreposição entre erotismo e sagrado, c) o conceito de
transgressão.
Na aula passada, terminamos através de uma discussão sobre o conceito de soberania.
Bataille afirmara, em dado momento, que a desconsideração pela natureza excessiva do sexo
teria desviado o homem, senão da consciência dos objetos, ao menos da consciência de si. Eu
sugeri que, compreender a relação entre sexo e consciência de si, ou seja, sexo como uma
forma de tomar consciência de si mesmo, passava por organizar discussões a respeito da
maneira com que Bataille compreende ser possível superar o círculo de alienação no qual se
encontramos enquanto indivíduos das sociedades capitalistas do trabalho, enquanto objetos de
um discurso científico objetificador. Se confrontar-se com a natureza excessiva da vida sexual
é condição para tomar consciência de si mesmo, é porque, ao menos para Bataille, há algo na
experiência sexual que nos coloca nas vias da soberania. Sendo assim, o conceito de soberania
aparece como um operador importante para compreendermos o que está em jogo na ideia de
erotismo.
Lembremos mais uma vez, normalmente, o conceito de soberania é utilizado no
interior da filosofia política para descrever aquele que se encontra em um lugar excepcional,
pois fonte de emanação do poder. O exemplo mais paradigmático aqui é o lugar do rei no
poder monárquico. Do lugar do rei, Bataille sublinha duas características principais: sua
posição, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, assim como a preferência pelo uso
improdutivo da riqueza (já que o uso produtivo seria ligado à acumulação, processo próprio à
ascensão da mentalidade burguesa). Bataille chegará a dizer: “economicamente, a atitude
soberana se traduz pelo uso do excedente para fins improdutivos”28.
O exemplo mais claro desse uso improdutivo da riqueza próprio à soberania nos é
dado pelo fenômeno social do potlatch (“nutrir” ou “consumir” em chinook), que pode ser
encontrado em tribos norte-americanas, na Melanésia e na Nova Guiné. É o antropólogo
Marcel Mauss que descreve o fenômeno como uma “prestação total do tipo agonístico”.
Mauss quer dar conta desses fenômenos sociais baseados na obrigação de retribuir o presente

28
BATAILLE, Georges. La souveranéité, p. 326.
26

recebido, obrigação de retribuir um dom como forma de afirmar o prestígio e o poder de um


clã, chefe ou tribo. Tal obrigação pode chegar: “à destruição puramente suntuária das riquezas
acumuladas para eclipsar o chefe rival” 29. Ou seja, a fim de engajar rivais em uma relação
soberana, um chefe pode, por exemplo presentear ou simplesmente destruir parte significativa
de sua riqueza, degolar escravos, jogar fora bens preciosos a fim de obrigar seu rival a fazer o
mesmo em maior escala. Bataille segue uma colocação de Mauss a respeito do caráter
paradigmático de tal atividade:

Pesquisas mais aprofundadas mostram um número bastante considerável de formas


intermediárias entre essas trocas com rivalidade exasperada, com destruição de
riquezas, como as do noroeste americano e da Melanésia, e outras com emulação
mais moderada em que os contratantes rivalizam em presentes: assim rivalizamos
em nossos brindes de fim de ano, em nossos festins, bodas, em nossos simples
convites para jantar, e sentimo-nos ainda obrigados a nos revanchieren, como
dizem os alemães30.

Com tais características em mente, Bataille retira o conceito de soberania das mãos
daquele que se encontra no centro do poder político para transformá-lo em um conceito capaz
de descrever a posição de todo e qualquer sujeito que não se encontre mais em situação de
alienação e servidão. Mas eu insistira com vocês que o conceito batailleano de soberania tinha
um caráter fundamental: ele não descreve o poder que domina. Normalmente, o soberano,
enquanto fonte do poder, submete a vontade do outro à sua vontade, submete às coisas à
condição de coisas das quais ele pode gozar como proprietário, submete o tempo ao tempo do
seu desejo. Mas Bataille insiste que a verdadeira soberania é um poder que não domina, poder
de quem tem segurança suficiente de não precisar de dominar para se defender.
Depor toda vontade de domínio significa não querer mais controlar as coisas através
da sua submissão à utilidade delas para mim, que normalmente sou seu proprietário, nem
controlar o tempo através da submissão do presente ao futuro que eu projeto. Futuro que se
define como causa das limitações que aceito no presente, que aprisiona o presente em uma
rede causal profunda onde só faz sentido o que se submete à necessidade definida na
idealidade do futuro. Futuro para o qual o esquecimento de si no presente aparece como um
dispêndio improdutivo. Por isto, ele dirá: “é soberano o gozo de possibilidades que a utilidade
não justifica (utilidade: aquilo cujo fim é a atividade produtiva)”31, ou ainda, “o que é
soberano é gozar do tempo presente sem nada ter em vista a não ser esse tempo presente”. Isto

29
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia, p. 192.
30
MAUSS, idem, p. 193.
31
BATAILLE, Georges. La souveraneité, p. 248.
27

ocorre porque: “eu me reencontro como sujeito, se nego em mim mesmo o primado do
instante por vir sobre o instante presente”32. Pois só assim, não sou mais um objeto submetido
à suspensão do gozo do presente em nome do trabalho que visa o projeto futuro. Uma
suspensão que sempre é feita para que um outro, este sim em posição soberana, possa
consumir o que produzo. Não há trabalho, lembrará Bataille, sem consumo dos produtos
trabalhados por um soberano que não trabalha. Graças ao efeito do meu trabalho, há sempre
um soberano que pode viver no instante.
Tornar-se soberano é, assim, um ato indissociável da capacidade de habitar outro
tempo, distinto do tempo da produção. Um tempo, dirá Bataille, próprio ao milagre:

Esse elemento milagroso, que nos arrebata, pode ser simplesmente o raio do sol
que, em uma manhã de primavera, transfigura uma rua miserável (o que, o mais
pobre às vezes ressente). Pode ser o vinho, do primeiro copo à bebedeira que afoga.
Mais geralmente esse milagre, ao qual a humanidade inteira aspira, manifesta-se
em nós sob a forma de beleza, de riqueza; também sob a forma de violência, de
tristeza fúnebre ou sagrada; enfim, sob a forma de glória 33.

Outra característica do conceito tradicional de soberania guardado por Bataille é sua


posição de transgressão em relação à lei. Se na teoria política o soberano é aquele que está, ao
mesmo tempo, dentro e fora da lei, ele é o fundamento da lei, mas à ela ele não se submete
por completo, na filosofia de Bataille, o homem soberano é aquele que estabelece com a lei
uma relação de transgressão. Ele pode ir em direção ao que é interdito, ao que estava
separado do contato dos homens, pois ele conhece a: “profunda cumplicidade entre a lei e a
transgressão da lei”34. Para Bataille, é impossível pensar o erotismo sem este jogo de
transgressão na qual as leis que definem os lugares e identidades sociais, as posições, as
práticas interditadas são continuamente colocadas em questão e profanadas. Pois o erotismo é
próprio a: “um mundo que se desnuda na experiência do limite, faz-se e desfaz-se no excesso
que o transgride”35.

O erotismo, a continuidade e a heterogeneidade

A discussão sobre a natureza improdutiva do uso do excesso na soberania serve para


adentrarmos no sentido da relação, tão salientada por Bataille, entre erotismo e morte.

32
Idem, p. 289.
33
Idem, p. 249.
34
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 60.
35
FOUCAULT, Michel. “Preface à la transgression”. In: Dits e écrits, p. 264.
28

“Do erotismo, é possível dizer que é a aprovação da vida até na morte” 36. Com esta
frase, Bataille começa seu livro. Ela demonstra com clareza a ideia de que, para pensar a
essência do erotismo, devemos compreender como a vida serve-se da morte com uma de suas
figuras, como ela transforma a morte em aprovação da atividade vital. Neste ponto, juntam-se
dos níveis de argumentação: um ligado a teoria social, outro ligado à algo que poderíamos
chamar de “filosofia da natureza”.
O nível ligado à teoria social já foi adiantado desde nossa última aula. As sociedades
capitalistas modernas são sociedades baseadas na redução do espectro das atividades humanas
à figura do trabalho, assim como na redução da experiência subjetiva à figura do indivíduo.
Por um lado, o trabalho é a tarefa de uma coletividade, no tempo do trabalho, a coletividade
deve se opor a esses movimentos que nos fazem nos abandonarmos ao universo violento do
excesso, a saber, a relação sexual e a morte. A morte é a mais forte desordem contra o mundo
do trabalho.
Por outro lado, indivíduos são seres descontínuos, ou seja, que definem sua identidade
da mesma forma que países definem suas fronteiras: estabelecendo limites, usando a
identidade como sistema defensivo contra a submissão ao outro. Do ponto de vista do desejo,
indivíduos são fundamentados em sistemas particulares de interesses que se fazem reconhecer
a partir de acordos entre outros sistemas particulares. Daí porque as relações entre indivíduos
serão, em larga medida, relações inspiradas nas relações contratuais. Mesmo o casamento será
compreendido como um contrato. Pois o contrato é a expressão máxima de um modelo de
vínculo entre indivíduos portadores de interesses que devem ser restringidos mutuamente
pelos interesses de outros indivíduos. Restrição que, normalmente, legitima-se através da
ficção jurídica de um contrato social através do qual conservo interesses possíveis de serem
socialmente realizados e abro mão daqueles que não se submetem a esta condição. Ficção
que, por sua vez, deve se alimentar da elevação do medo a afeto central do vínculo político
(medo da despossessão de meus bens, medo da morte violenta, medo da invasão de minha
privacidade etc.). No entanto, dirá Bataille, indivíduos não conhecem o erotismo, já que:

“o que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas.
Repito-o dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua
das individualidades definidas que somos (...) trata-se de introduzir, no interior de
um mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade de que este
mundo é capaz”37.

36
BATAILLE, Goerges. O erotismo, p. 35.
37
Idem, p. 42.
29

Ou seja, a experiência do erotismo pressupõe a capacidade de sair da ordem


descontínua das individualidades. Por isto, do ponto de vista da preservação das
individualidades, o erotismo sempre será violento e invasivo: “o que significa o erotismo dos
corpos, senão uma violação do ser dos parceiros?” pois “A passagem do estado normal ao de
desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua”38.
Esta violência própria ao erotismo é, no entanto, procura de passagem de um estado de
descontinuidade à continuidade, procura de supressão dos limites e dos indivíduos. Por ter
esta característica de supressão violenta dos indivíduos e de seus sistemas de organização de
experiência e afetos o erotismo, ao menos segundo Bataille, encontra sua fonte na morte. A
morte, enquanto supressão de um ser descontínuo, é o limite do qual o erotismo sempre se
aproxima, podemos mesmo, em certos casos, alcançá-lo. Ela é a força que faz do erotismo
uma experiência na qual os seres se livram de formas antigas e configuram novas formas.
Pode parecer haver algo de passadista nesta maneira batailleana de contrapor o
advento da individualidade moderna e o erotismo. Pois tudo se passaria como se Bataille
procurasse fenômenos sociais nos quais a figura do indivíduo consciente de seus interesses e
insubmisso a práticas ritualizadas não poderia ser encontrada, isto a fim de insidiosamente
pregar uma crítica da modernidade através de alguma forma de retorno a estágios pré-
modernos de individuação. Daí porque, por exemplo, ele precisaria insistir tanto no vínculo
entre sagrado e erotismo. Pois as sociedades para as quais a experiência religiosa aparece
como paradigma para toda e qualquer experiência social, sociedades na qual a religião ocupa
um lugar central na vida social, dando o sentido para práticas na esfera da economia, da
política, da produção cultural e na vida afetiva., seriam as únicas capazes de garantir algo da
ordem da experiência dessa continuidade tanto procurada por Bataille. Estaria Bataille a
pregar alguma forma de volta de nossas sociedades a esses estágios pré-modernos e,
aparentemente, radicalmente ritualizados e codificados?
Na verdade, mais certo seria dizer que Bataille acredita que tais experiências ainda
estão presentes em nossas sociedades, mas sob uma forma distorcida e profundamente
destrutiva. Para a geração de Bataille, fenômenos como a ascensão do nazismo e do fascismo
foram ocasiões para compreender como o processo de formação das individualidades
modernas era agenciado de forma tal a produzir sujeitos indefesos à sedução dos regimes
totalitários. Não por outra razão, Bataille foi um dos primeiros a sugerir uma análise
psicológica do fascismo em um texto chamado, exatamente, de : “A estrutura psicológica do
fascismo”.
38
Idem, p. 41.
30

Bataille inicia seu texto afirmando que a sociedade capitalista da produção é uma
sociedade homogênea, ou seja, baseada na construção de uma estrutura social na qual relações
e valores são baseadas na utilidade e na quantificação. Sociedade homogênea produtora de
indivíduos homogêneos. “Homogeneidade significa aqui comensurabilidade e consciência
dessa comensurabilidade (as relações humanas podem ser mantidas por uma redução a regras
fixas baseadas na consciência da identidade possível de pessoas e de situações definidas)” 39.
Todo o problema de tais sociedades é como lidar com a exclusão do que é heterogêneo, que
Bataille aproxima daquilo que é inconsciente, ou seja, sem forma própria de apreensão pela
consciência.
Bataille afirma que o sagrado é o melhor exemplo social do heterogêneo, já que ele
pode ser definido, como o faz Durkheim, como o absolutamente heterogêneo em relação ao
mundo profano, como aquilo dotado de uma força desconhecida e perigosa e, por isto,
submetido a uma proibição social de contato que o separa do mundo homogêneo ou profano.
Mas o sagrado, por sua vez, é apenas uma parte do que Bataille chama de “dispêndios
improdutivos”: tudo aquilo que a sociedades homogêneas rejeitam como detrito sem valor ou
como valor superior transcendente. Há uma dualidade fundamental do mundo heterogêneo,
preso entre a glória e a decadência, entre o puro e o impuro (como a própria palavra sacer
indica). Tais objetos heterogêneos podem, por isto, produzir tanto atração quanto repulsão e
se apresentam a nós através da força violenta do choque.
Bataille afirma então que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar, pertencem
a tal existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com a homogeneidade
social e o peso fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o fluxo afetivo que eles
mobilizam se dirige a uma unidade, a uma instância dirigente representada pela autoridade do
líder. Cria-se assim uma soberania presa apenas a um lado da heterogeneidade, o que produz
uma soberania assentada na experiência da dominação.
Esta dominação, para se afirmar, volta-se contra tudo o que a sociedade homogênea
definiu como heterogêneo mas impuro, exterior. Ela se volta contra o outro lado da
heterogeneidade que poderia quebrar a experiência da dominação, revelando a força do
descentramento. Assim, o fascismo se transforma no uso do heterogêneo como astúcia última
da sociedade homogênea. Contra ela, Bataille crê que devemos procurar uma forma de
heterogeneidade que não se submete a esta soberania monárquica recuperada pelo fascismo. É
isto que ele procura ao falar das experiências do sagrado e do erotismo.

39
BATAILLE, Georges. La structure psychologique du fascisme, p. 137.
31

Desta forma, duas concepções de soberania podem então se contrapor. Quando a


soberania está presente sob as múltiplas formas do poder monárquico, seres humanos são, no
interior de uma relação de dominação, apenas elementos negados. Quando ela é reapropriada
pelos seres humanos, a própria dominação é negada.

Sexo e morte

Mas poderíamos nos perguntar por que chamar de “morte” tal supressão da
descontinuidade para a qual o erotismo tenderia. Aqui nós devemos fazer apelo a uma certa
filosofia da natureza presente no horizonte do pensamento de Bataille. Ela parte da ideia de
que a atividade vital está, a todo momento, tendo que lidar com a noção de excesso:

O organismo vivo, na situação determinada pelos jogos de energia na superfície do


globo, recebe em princípio mais energia do que é necessário para a manutenção da
vida: a energia (a riqueza) excedente pode ser utilizada para o crescimento de um
sistema (de um organismo, por exemplo); se o sistema não pode mais crescer, ou se
o excedente não pode mais ser inteiramente absorvido em seu crescimento, é
preciso necessariamente perdê-lo sem lucro, despendê-lo, de boa vontade ou não,
gloriosamente ou de modo catastrófico40.

Como vocês podem ver, trata-se de uma proposição biológica sobre a natureza. Ela
consiste em dizer que há um mobilidade interna ao fato vital que leva todo organismo a
precisar saber como lidar com algo que lhe aparece como excessivo, pois não submetido ao
padrão atual de suas atividades e de normas. Esta energia excessiva pode servir ao
crescimento e desenvolvimento do próprio organismo, mas a partir de certo ponto ela pode
levar à sua destruição, ou seja, às destruição de sua forma. As formas vitais não apenas se
desenvolvem; elas procuram impedir que o princípio vital que as modifica (no caso, a energia)
as leve à destruição: “se não temos força para destruir a energia em acréscimo, ela não pode
ser utilizada; e, como um animal intato que não se pode domar, é ela que nos destrói, somos
nós mesmos que arcamos com os custos da explosão inevitável” 41. Neste sentido, as
individualidades orgânicas são estruturalmente instáveis, pois para dar conta da energia que as
atravessa, elas devem gastá-la como puro dispêndio, ou seja, como algo que, do ponto de vista
da pura conservação das formas atuais, não tem sentido algum.
Mas gastar como puro dispêndio significa admitir um conceito de organismo biológico
que age sem ter em vista sua própria auto-preservação e reprodução. Não deixa de ser

40
BATAILLE, Georges. A parte maldita, p. 45.
41
Idem, p. 46.
32

interessante encontrar tal conceito de organismo em alguns dos setores mais avançados da
biologia contemporânea. Lembremos, por exemplo, desta afirmação do biólogo Henri Atlan,
para quem o organismo biológico é uma organização dinâmica capaz de ser um processo de:

Desorganização permanente seguido de reorganização com aparição de


propriedades novas se a desorganização pode ser suportada e não matou o sistema.
Dito de outra forma, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas sob a forma
de uma potencialidade dialética, mas como uma parte intrínseca de seu
funcionamento e evolução: sem perturbação ou acaso, sem desorganização, não há
reorganização adaptadora ao novo; sem processo de morte controlada, não há
processo de vida42.

Aqui se delineia a diferença ontológica fundamental entre um organismo e uma


máquina artificial. Ao menos segundo o filósofo Georges Canguilhem: “na máquina, há
verificação estrita das regras de uma contabilidade racional. O todo é rigorosamente a soma
das partes. O efeito é dependente da ordem das causas” 43. Já o organismo não conhece
contabilidade: “Uma fiabilidade como esta do cérebro, capaz de funcionar com continuidade
mesmo que células morram todos os dias sem serem substituídas, com mudanças inesperadas
de irrigação sanguínea, flutuações de volume e pressão, sem falar da amputação de partes
importantes que perturbam apenas de maneira muito limitada as performances do conjunto
não tem semelhança com qualquer autômato artificial”44. Ou seja, há um princípio de auto-
organização no organismo capaz de lidar com desestruturações profundas, desordens e
dispêndios.
No entanto, a possibilidade da destruição do organismo como sistema, de sua morte é
um dado real e é necessário que tal dado seja real para que a ideia da ação do organismo como
marcada não pela finalidade, mas pela errância possa realmente funcionar. Errância implica
poder se perder por completo, dispender todo o processo acumulado em uma profunda
irracionalidade econômica, o que explica porque a destruição do sistema é uma parte
intrínseca de seu funcionamento. Pois apenas por poder perder-se por completo, ou seja, por
poder deparar-se com a potência do que aparece como a-normativo, que organismos são capaz
de produzir formas qualitativamente novas, migrar para meios radicalmente distintos e,
principalmente, viver em meios nos quais acontecimentos são possíveis, nos quais
acontecimentos não são simplesmente o impossível que destrói todo princípio possível de
auto-organização. Tal figura do acontecimento demonstra como as experiências do aleatório,

42
ATLAN, Henri. Entre le cristal et la fumée, p. 280.
43
CANGUILHEM, Georges. Connaissance de la vie, p. 149.
44
ATLAN, Henri. Entre le cristal et la fumée, p. 41.
33

do acaso e da contingência são aquilo que tensionam o organismo com o risco da


decomposição. Isto talvez explique porque Bataille afirma: “Com uma venda nos olhos,
recusamos a ver que só a morte assegura incessantemente um ressurgimento sem o qual a vida
declinaria. Recusamos ver que a vida é a armadilha oferecida ao equilíbrio, que ela é
inteiramente a instabilidade, o desequilíbrio em que precipita”45.
Não deixa de ser surpreendente que a vida sirva-se desta dinâmica para poder construir
suas formas, o que talvez mostre como não se trata de um mero dado anedótico lembrar que:
“Mais de noventa e nove por cento das espécies aparecidas desde quatro bilhões de anos
foram provavelmente extintas para sempre”46. Esta é apenas uma maneira um pouco mais
dramática de lembrar que os valores mobilizados pela atividade vital não podem ser a
“utilidade”, a “função” ou o mesmo o “papel” a desempenhar. A vida se passa dessa
contabilidade de balcão de supermercado. Não podemos sequer definir o desenvolvimento de
órgãos a partir da necessidade de certas funções próprias a uma adaptação à configuração
atual do meio. Como a biologia evolucionista nos mostra, mais correto seria dizer que muitos
órgãos são inicialmente configurados para que, posteriormente, uma multiplicidade de
funções deles se desenvolvam.
Assim, quando Bataille fala da proximidade entre o erotismo e a morte, não devemos
ver nesse tema apenas os resquícios possíveis de um topos romântico decadentista reciclado.
Na verdade, essa é a forma de Bataille insistir como o erotismo pode aparecer na vida social
como potência de desestabilização de formas ligadas à perpetuação da sociedade homogênea
dos indivíduos e de produção possível de novas formas baseadas na capacidade de estabelecer
relações como o heterogêneo, sendo a morte o grau máximo da heterogeneidade.

O interdito e a transgressão

Talvez neste ponto fique mais claro porque Bataille precisa pensar o erotismo como
fenômeno indissociável do interdito e da transgressão. Bataille lembra que a realidade humana
difere daquela própria ao animal porque ela é submetida a leis. A princípio, tal proposição
pode parecer estranha pois conhecemos bem como a natureza é espaço de normatividades.
Tanto no mundo humano quanto no mundo natural, o peso das normas se faz sentir. Mas no
caso humano há, ao menos segundo Bataille, uma peculiaridade: os interditos são
indissociáveis de sua transgressão. Não há interdito sem transgressão regulada ou, muitas
vezes, prescrita. Não há proibição do assassinato sem a regulação de suas transgressões
45
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 84.
46
AMEISEN, Jean-Claude. La sculpture du vivant: le suicide cellulaire et la mort créatrice, p. 12.
34

possíveis (como a guerra). Há um jogo de equilíbrio entre interdito e transgressão, há uma


profunda cumplicidade entre a lei e a violação da lei que aparece tanto no erotismo quanto no
sagrado. Daí porque, Bataille poderá dizer que: “a transgressão difere do ‘retorno à natureza’:
ela suspende o interdito sem suprimi-lo. Aí se esconde a mola propulsora do erotismo, ai se
encontra ao mesmo tempo a mola propulsora das religiões”47.
É a essa “suspensão sem supressão” que devemos voltar nossos olhos. A princípio, ela
tenderia a indicar um movimento neurótico no qual o sujeito parece necessitar dos muros da
prisão para poder afirmar sua liberdade, pulando-o periodicamente. Como se o sujeito
precisasse do sentimento de culpa e do pavor ligado à transgressão do interdito como
condição para o gozo. E Bataille não deixa de, em certos momentos, escrever nesse sentido.
Ele fala da sensibilidade tanto da angústia que funda o interdito quanto o desejo que leva a
infringi-lo.
Mas poderíamos nos perguntar: o que seria, ao menos para Bataille, o erotismo sem
interditos? Ele seria um erotismo acalmado no interior de uma região na qual a vida não força
seus limites e não testa novas formas. Tentemos, por exemplo, interpretar uma passagem-
chave como:

Se vemos nos interditos essenciais a recusa que o ser opõe à natureza encarada
como uma dissipação de energia viva e como uma orgia de aniquilamento, não
podemos mais diferenciar a morte da sexualidade. A sexualidade e a morte são
apenas os momentos mais agudos de uma festa que a natureza celebra com a
multidão inesgotável dos seres; uma e outra tem o sentido do desperdício ilimitado
a que a natureza procede contrariando o desejo de durar, que é próprio a cada ser
(...) Nunca, com efeito, os homens opuseram à violência (ao excesso de que se
trata) um não definitivo. Em momentos de desfalecimento, eles se fecharam ao
movimento da natureza: tratava-se de um tempo de parada, não de uma
imobilidade derradeira48.

Ou seja, inicialmente, o sentido fundamental dos interditos é opor uma ordem à


dissipação de energia e à orgia de aniquilamento próprias à atividade vital. Os interditos são
sistemas sociais de regras que visam sustentar o duro desejo de durar, que é próprio a cada
ser. Sistemas de regras que visam parar, nem que seja por um momento, essa festa orgiástica
que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres. Talvez porque a vida precise da
suspensão temporária desses turbilhões. E ela precisa porque faz-se necessário levar em conta
princípios contrários: uma certa conservação e uma certa dissolução, ou seja, uma
flexibilização própria à continuidade do jogo entre interdição e transgressão.

47
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 60.
48
Idem, p. 86.
35

Sendo assim, o próprio movimento vital seria um movimento de ereção de interditos e


transgressões periódicas. A condição de que aceitemos se tratar nem sempre dos mesmos
interditos. As sociedades são móveis na constituição de seus interditos, elas erigem interditos
que conseguirão se sustentar apenas por um certo tempo, até que o peso da transgressão
contínua acaba por transformá-los em interditos paródicos. Mas o que Bataille não concebe é
uma abolição produtiva do jogo entre interdição e transgressão. Voltaremos a este ponto na
próxima aula.
36

Erotismo, sexualidade, gênero


Aula 4

Terminamos a aula passada através de uma discussão a respeito das relações


necessárias entre interdito, transgressão e erotismo. Eu dissera à ocasião que Bataille precisa
pensar o erotismo como fenômeno indissociável do interdito e da transgressão. Para tanto, ele
insiste que a realidade humana difere daquela própria ao animal porque ela é submetida a leis.
A princípio, tal proposição pode parecer estranha pois conhecemos bem como a natureza é
espaço de normatividades. Tanto no mundo humano quanto no mundo natural, o peso das
normas se faz sentir. Mas no caso humano há, ao menos segundo Bataille, uma peculiaridade:
os interditos são indissociáveis de sua transgressão. Não há interdito sem transgressão
regulada ou, muitas vezes, prescrita. Por exemplo, não há proibição do assassinato sem a
regulação de suas transgressões possíveis (como a guerra). Ou ainda: “todo o movimento da
religião implica o paradoxo de uma regra que admite a ruptura regular da regra em certos
casos”49. Há um jogo de equilíbrio entre interdito e transgressão, há uma profunda
cumplicidade entre a lei e a violação da lei que aparece tanto no erotismo quanto no sagrado.
Daí porque, Bataille poderá dizer que: “a transgressão difere do ‘retorno à natureza’: ela
suspende o interdito sem suprimi-lo. Aí se esconde a mola propulsora do erotismo, ai se
encontra ao mesmo tempo a mola propulsora das religiões”50.
É a essa “suspensão sem supressão” que voltamos inicialmente os nossos olhos. A
princípio, ela tenderia a indicar um movimento neurótico no qual o sujeito parece necessitar
dos muros da prisão para poder afirmar sua liberdade, pulando-o periodicamente. Como se o
sujeito precisasse do sentimento de culpa e do pavor ligado à transgressão do interdito como
condição para o gozo. E Bataille não deixa de, em certos momentos, escrever nesse sentido.
Ele fala da sensibilidade tanto da angústia que funda o interdito quanto o desejo que leva a
infringi-lo.
Mas poderíamos nos perguntar: o que seria, ao menos para Bataille, o erotismo sem
interditos? Pois Bataille não estaria preso a alguma forma singularmente repressiva de
sexualidade, isto ao insistir que sempre deve haver interdito para existir desejo, que o interdito
é no fundo uma condição para o desejo? Por que não admitir que é possível ultrapassar de vez
esta peculiar dialética entre interdito e transgressão a respeito da qual Bataille quer nos
convencer de sua força?

49
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 134.
50
Idem, p. 60.
37

A resposta possível é: porque um erotismo sem interditos seria um erotismo acalmado


no interior de uma região na qual a vida não força seus limites e não testa novas formas. Se
nada aparece ao erotismo como uma interdição, se ele não dilacera mais nada, então não há
nada que já não esteja presente atualmente como realidade para o erotismo. Então a realidade
atual já é toda a realidade possível. Não há uma possibilidade não explorada, interditada,
ainda não realizada. A dimensão da realidade é toda a extensão dos possíveis, o que faz com
que os possíveis sejam configurados a partir da extensão da situação atual.
Tentemos, por exemplo, interpretar uma passagem-chave como:

Se vemos nos interditos essenciais a recusa que o ser opõe à natureza encarada
como uma dissipação de energia viva e como uma orgia de aniquilamento, não
podemos mais diferenciar a morte da sexualidade. A sexualidade e a morte são
apenas os momentos mais agudos de uma festa que a natureza celebra com a
multidão inesgotável dos seres; uma e outra tem o sentido do desperdício ilimitado
a que a natureza procede contrariando o desejo de durar, que é próprio a cada ser
(...) Nunca, com efeito, os homens opuseram à violência (ao excesso de que se
trata) um não definitivo. Em momentos de desfalecimento, eles se fecharam ao
movimento da natureza: tratava-se de um tempo de parada, não de uma
imobilidade derradeira51.

Ou seja, inicialmente, o sentido fundamental dos interditos é opor uma ordem à


dissipação de energia e à orgia de aniquilamento próprias à atividade vital. Os interditos são
sistemas sociais de regras que visam sustentar o duro desejo de durar, que é próprio a cada
ser. Não por outra razão, os interditos concernam principalmente a morte, o sexo, assim como
a relação aos dejetos e excrementos. Em todos estes casos, em maior ou menor grau, os
interditos impedem o contato com situações e fenômenos nos quais a duração das formas se
encontra em risco, seja através da dissolução mortal ou através da proximidade com o
informe. Tendo isto em vista Bataille dirá, por exemplo: “Certamente, a morte difere como
uma desordem da ordenação do trabalho: o primitivo podia sentir que a ordenação do trabalho
lhe pertencia, ao passo que a desordem da morte o ultrapassava, fazendo de seus esforços um
contrassenso”52.
Isto explica porque Bataille afirmará que o objeto fundamental dos interditos é a
violência. Pois “violência” não significa aqui apenas a vulnerabilidade em relação à força de
um outro, ação externa que não leva em conta os meus interesses. “Violência” é aqui,
principalmente, o que me desordena, o que me faz sair da ordem que me preserva. Neste

51
Idem, p. 86.
52
Idem, p. 67.
38

sentido, há uma violência que é coextensiva à própria mobilidade da vida. Talvez seja
pensando nisto que Bataille pode dizer: “Não há nada que reduza a violência”53. Pois:

A vida é sempre um produto da decomposição da vida. Ela é tributária, em


primeiro lugar, da morte, que desocupa a vaga; em seguida, da corrupção que segue
a morte e recoloca em circulação as substâncias necessárias à incessante vinda ao
mundo de novos seres54.

Por pensar a atividade vital a partir da forma de um movimento no interior do qual


organismos aparecem como sistemas em perpétuo desequilíbrio é que Bataille dá à angústia
uma função fundamental e paradoxal na direção de nossas ações: “Se considerarmos
globalmente a vida humana, ela aspira à prodigalidade até a angústia, até a angústia, até o
limite em que a angústia não é mais tolerável. O resto é conversa de moralista”55.
Esta função da angústia se justifica aos olhos de Bataille porque: “na medida em que
podem (é uma questão – quantitativa- de força) os homens buscam as maiores perdas e os
maiores perigos”56. Neste sentido, eles não se afastam simplesmente do que lhes provoca
angústia, mas são chamados por ela, como quem mede suas forças.
Isso pode, entre outras coisas, nos explicar porque os interditos aparecem claramente
como sistemas de regras que visam parar, nem que seja por um momento, essa festa orgiástica
e violenta que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres. Poderíamos nos
perguntar pela razão de tal desejo de durar. Talvez porque a vida precise da suspensão
temporária da angústia provocada por esses turbilhões. E ela precisa porque faz-se necessário
levar em conta princípios contrários: uma certa conservação e uma certa dissolução, ou seja,
uma flexibilização própria à continuidade do jogo entre interdição e transgressão. Ou seja,
através do erotismo a experiência humana dá forma àquilo que coloca em cheque as estruturas
da forma. E ao permitir tal aproximação, o erotismo aparece como fonte de liberação da vida
dos limites que ela, por um momento, precisou respeitar. Mas o erotismo só poderia aparecer,
ao contrário, como espaço no qual não forçamos mais os limites postos pelos interditos
quando ele perde sua dimensão renovadora.
Se aceitarmos tal ideia, deveremos afirmar que o próprio movimento vital seria um
movimento de ereção de interditos e transgressões periódicas. Como se, paradoxalmente,
devessemos admitir que os interditos estão aí para serem violados. Pois: “A frequência – e a
regularidade – das transgressões não abala a firmeza intangível do interdito, de que é sempre
o completamente esperado como um movimento de diástole completa um de sístole, ou como
uma explosão é provocada por uma compressão que a precede” 57. À condição de que
aceitemos se tratar nem sempre dos mesmos interditos. As sociedades são móveis na
constituição de seus interditos, elas erigem interditos que conseguirão se sustentar apenas por
um certo tempo, até que o peso da transgressão contínua acaba por transformá-los em
interditos paródicos ou em interditos fracos . Por exemplo:

É da nudez que fala o livro de Gênesis, enunciando, através do sentimento de


obscenidade, a passagem do animal ao homem. Mas o que ofendia o pudor no
começo do século não o ofende mais, ou ofende menos. A nudez relativa dos
banhistas ainda é obscena em uma praia espanhola, não em uma praia francesa:

53
Idem, p. 72.
54
Idem, p. 79.
55
Idem, p. 85.
56
Idem, p. 110.
57
Idem, p. 89.
39

mas em uma vila, mesmo na França, a roupa dos banhistas constrange um grande
número de pessoas58.

Mas o que Bataille não concebe é a possibilidade de uma abolição produtiva do jogo
entre interdição e transgressão. Pois o interdito não suprime as atividades necessárias à vida,
mas lhes dá o sentido da transgressão religiosa. O que pode nos colocar a questão de saber por
que a experiência da transgressão é para Bataille tão importante. Se quisermos, podemos
colocar tal questão da seguinte maneira: por que, para Bataille, todo verdadeiro ato é uma
transgressão?

Uma teoria da transgressão

Dos exemplos dados por Bataille a respeito da transgressão, certamente o mais


paradigmático é a festa. Seguindo uma ideia que encontramos inicialmente em Roger Caillois,
Bataille verá na festa a essência da transgressão porque ela seria: “sem dúvida, o cessar do
trabalho, o consumo incontinente dos seus produtos e a violação expressa de suas leis mais
santas, mas o excesso consagra e completa uma ordem de coisas fundadas sobre as regras, ela
só lhes opõe temporariamente”59.
A sociedade humana não é apenas o mundo do trabalho. Ela é uma composição entre o
mundo profano do trabalho e dos interditos e o mundo sagrado dos espaços nos quais
podemos produzir transgressões limitadas. Por isto, o tempo sagrado será, para Bataille,
necessariamente o tempo da festa. Uma festa capaz de produzir laços sociais que não são
apenas a expressão de um sistema de mútua dependência entre trabalhadores que produzem
produtos que circularão a fim de satisfazer necessidades individuais. A festa como laço social
fundado na transgressão do tempo profano, na dilapidação excessiva própria a uma sociedade
que procura, através da festa, adiantar imagens de uma sociedade mais próxima da
prodigalidade da vida.
Mas este sagrado que encontra na festa sua melhor expressão é, ao menos se
seguirmos a leitura de Michel Foucault, um peculiar sagrado sem Deus, ou seja, sem a
separação ontológica em relação à experiência do ilimitado e do infinito. Daí uma afirmação
como: “a morte de Deus não nos restitui a um mundo limitado e positivo, mas a um mundo
que se desdobra na experiência do limite, faz-se e se desfaz no excesso que a transgride” 60.
Esse sagrado que não admite mais a separação ontológica entre o divino e o humano, mas que
58
BATAILLE, Georges. Histoire de la sexualité, p. 45.
59
Idem, p. 78.
60
FOUCAULT, Michel. Preface à la transgression. In: Dits et écrits, vol. I, p. 264.
40

constitui o humano como a passagem incessante ao limite, como a passagem incessante ao


divino é uma espécie muito peculiar de “filosofia da encarnação”, ou seja, filosofia que
procura pensar em quais condições pode ocorrer uma encarnação do divino no humano,
mesmo que tal filosofia admita ao mesmo tempo o vazio ontológico que a morte de Deus
representaria. Há de fato um misticismo em Bataille, já que ele reconhece a força da
experiência do sagrado, mas se trata de um peculiar misticismo “ateológico”, como o próprio
o nomeava. O sagrado aparece aqui, em conformidade com uma certa tradição da teologia
negativa, como o abissal, como o obscuro. O que explica porque Bataille dá a experiências
místicas como as de Santa Teresa D’ávila uma função central em seu conceito de sagrado.
Pois, a seu ver:

Santa Teresa soçobrou, mas não morreu realmente do desejo que teve de soçobrar
realmente. Ela perdeu pé, não fez mais que viver mais violentamente, tão
violentamente que pôde se dizer no limite de morrer, mas de uma morte que,
exasperando-a, não fazia cessar a vida61.

No entanto, a pergunta interessante aqui é por que pensar tal passagem, por que pensar
tal encarnação violenta do divino como transgressão? Há duas maneiras de responder tais
perguntas: uma dada por Michel Foucault e outra voltando a uma das referências principais de
Bataille, a saber, Hegel. A interpretação de Foucault tenta, a todo custo, recusar que exista
algo parecido a uma dialética na relação entre interdito e transgressão, uma dialética que seria
a expressão de uma relação entre o finito e infinito, entre o limitado e o ilimitado.
Poderíamos falar em relação dialética porque se os interditos são postos para serem
transgredidos, é porque os homens precisam organizar a vida social a partir de uma
contradição. Esta é inclusive uma boa definição de dialética, fornecida por Hegel em uma
conversa com Goethe: “espírito de contradição organizado”, e que não deixa de, de certa
forma, ressoar a definição que Bataille fornece da transgressão como uma: “desordem
organizada62. Maneira de compreender a contradição como forma de produzir experiências
através da tentativa de organizar, de produzir uma forma muito peculiar de síntese a partir da
diferença. Neste sentido, podemos dizer que a contradição dialética não é simplesmente a
marca de uma impossibilidade de pensar e de constituir objetos, como seria o caso se
estivéssemos diante de duas proposições contrárias sobre o mesmo objeto e sobre o mesmo
aspecto (Sócrates é e não é homem sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo). A contradição
dialética é um modo do ser entrar em movimento e de admitirmos que o ser não é aquilo que
61
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 266.
62
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 144.
41

permanece sempre igual a si mesmo, como uma substância que subsiste graças ao caráter
inalterado de sua essência. O ser é aquilo que porta em si mesmo seu próprio princípio de
alteração, entrando em um contínuo vir-a-ser marcado pela superação. Movimento através da
qual o ser nega a si mesmo, nega sua própria identidade sem necessariamente se auto-destruir,
nega seus limites graças a uma negação que conserva algo do anteriormente negado. Neste
sentido, a contradição é interna ao ser.
Levando isto em conta, poderíamos dizer que a relação entre interdito e transgressão
seria a maneira de Bataille pensar a dialética. Sendo o interdito uma norma, então tudo se
passa como se as normas fossem, ao mesmo tempo, a definição do que devo fazer e de como é
possível transgredir tal dever. Neste sentido, podemos mesmo dizer que a verdadeira
realização da norma sempre aponta para uma superação da norma.
Isto é possível porque a negação da norma não é, para Bataille, alguma forma de
retorno à animalidade. Negar os interditos não significa voltar à condição animal inicial. Os
interditos visam, de certa forma, negar nossa condição animal, mas a transgressão visa negar
tal negação, superando-a sem, no entanto, retornar ao que ela negava inicialmente. Este
movimento, que se inspira claramente na dinâmica hegeliana de uma negação da negação
implica possibilidade de, ao mesmo tempo, livrar-se das limitações do interdito sem, no
entanto, anular a experiência histórica que o produziu.
Foucault não admite tal leitura, por isto ele deve dizer que: “nada é negativo na
transgressão”63. A transgressão não nega nada. Ela seria, na verdade, uma bisonha “afirmação
não positiva”, uma afirmação que não afirma nada. Sua maneira de colocar em questão o ser
através de uma linguagem da transgressão, ou seja, de uma linguagem do limite não
implicaria em contradição alguma. Pois a contradição pareceria implicar que precisaríamos
sempre conservar o que é negado no interior mesmo da determinação do ser. Parece que
sempre precisaríamos conservar, de alguma forma, os interditos. Mas, principalmente, ela
pareceria (e esta é uma leitura muito corrente e errada da dialética hegeliana) unificar os
opostos em uma síntese final. Pois sendo os diferentes aquilo que se articula em um
movimento contínuo, então eles acabam por se submeterem a uma síntese. O que não parece
ser o sentido da transgressão em Bataille. Ela não caminha em direção a uma síntese, mas a
uma relação, sempre fulgurante e violenta, ao infinito e ao absoluto.

O sacrifício

63
Idem, p. 266.
42

“O sacrifício – que é, como a guerra, a suspensão do interdito do assassinato – é o ato


religioso por excelência”64. Sendo o sagrado este espaço no interior do qual a transgressão é
possível, então o sacrifício aparece sua mais profunda expressão.
Mas por que o sacrifício seria o ato religioso por excelência? Certamente, Bataille não
está a falar do sacrifício como limitação da minha vontade em nome de um ideal moral. Algo
presente quando falo, por exemplo: “eu me sacrifiquei para defender nossa causa”. Sacrifício
significa uma destruição improdutiva, melhor meio de negar uma relação utilitária entre o
homem, as coisas e os animais. Um animal sacrificado é uma animal com o qual não tenho
mais uma relação de uso e de submissão à lógica da produção. Ele é objeto de uma
“consumação sem lucro”. Mas, principalmente, um animal sacrificado é um animal do qual eu
participo, ele me representa e tomo parte no ritual do sacrifício através dele e, principalmente,
nele. No sacrifício do animal, eu posso ser um com ele. Por isto, Bataille pode dizer: “o
sacrifício é o calor em que se reencontra a intimidade daqueles que compõem o sistema das
obras comuns”65. Esta intimidade revelada pelo sacrifício implica certa forma de simbiose e
de fusão que Bataille aproxima da relação amorosa. Daí uma afirmação central como:

O que o ato de amor e o sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui a vida


ordenada do animal pela convulsão cega dos órgãos. O mesmo se dá com a
convulsão erótica: ela libera órgãos pletóricos cujos jogos cegos prosseguem além
da vontade refletida dos amantes. A essa vontade refletida sucedem os movimentos
animais desses órgãos inchados de sangue. Uma violência, que a razão não controla
mais, anima esses órgãos, tensiona-os até a explosão e, de repente, é a alegria dos
corações de ceder ao excesso dessa tempestade 66.

O sacrifício revela a carne que nos constitui aquém da individualidade. Ele é a


revelação de um corpo em nós que é feito de carne, ou seja, de algo próprio a uma
corporeidade que reage para além da vontade refletida dos amantes. A carne, como dirá quase
na mesma época Maurice Merleau-Ponty, é o “anonimato inato de mim mesmo”, este ponto
no qual sou habitado por uma matéria anônima que me aproxima do que exige uma explosão
violenta para aparecer.
O recurso à ideia de carne pode ser visto como a expressão daquilo que Bataille chama
por um momento de “baixo materialismo”. Trata-se de uma ideia por ele apresentada nos anos
trinta e que consiste em dizer que todo ideal elevado assenta-se em uma base material
constantemente negada. Neste ponto, não parece que estejamos longe do Marx de A ideologia

64
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 105.
65
BATAILLE, Georges. A parte maldita, p. 73.
66
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 116.
43

alemã com sua crítica à impossibilidade de ver como o sistema metafísico de ideias era a
expressão invertida dos processos de reprodução material da vida. No entanto, Bataille insiste
que tal base material tem uma base distinta daquela que encontramos no materialismo
histórico marxista. Ela é a composição material heterogênea e disforme da qual toda forma é
extraída. Ela é este solo primeiro anterior a toda forma e sempre negado como impuro,
obsceno, nauseabundo e repulsivo. Por isto, o termo “baixo materialismo”. É em direção a tal
solo que o sacrífico procura nos levar, em direção a uma matéria que é produção contínua de
diferença e que pode aparecer sob a forma do grotesco e do informe.
Notem aqui, principalmente, que a aproximação entre sacrifício e amor não é feita em
nome da visão moral de que a relação afetiva duradoura exige a restrição dos interesses
próprios em nome da construção de um empreendimento comum. Bataille aproxima sacrifício
e amor para dizer que o erotismo partilha deste sentimento de participação através do
desvelamento de um elemento comum, a carne, que é o elemento informe que me forma, o
elemento impessoal que me personaliza e que, por isto, se encontra partilhado em um sistema
de partilha que une desiguais, homem e animal, morto e vivo.
Desta forma, através do erotismo, opera-se um reconhecimento que não é movimento
através do qual eu confirmo meus interesses e desejos ao ver que ele é levado em conta pelo
outro. O reconhecimento produzido pelo erotismo é reconhecimento de que em mim habita o
que me leva a abrir-se como um animal sacrificado, a procurar me ver no que perde sua forma
e se submete a um agir que não pode ser visto como expressão de um Eu. Ou seja, se o amor
sempre foi, na filosofia, a figura de um modelo importante de reconhecimento social no qual
seria capaz de, através do outro, assegurar-me de minha identidade ao mesmo tempo em que
reconheço a identidade do outro, construindo assim um sistema de mútuo estabelecimento de
identidades, o erotismo, ao menos segundo Bataille, produz um fenômeno de outra ordem.
Pois: “o que, desde o início, é sensível no erotismo é o abalo, por uma desordem pletórica, de
uma ordem que exprime uma realidade parcimoniosa, uma realidade fechada” 67. Entre o amor
dos filósofos e o erotismo de Bataille há uma diferença que se expressa na distinção entre um
processo de reconhecimento entre sujeitos e outro processo de reconhecimento de si na
alteridade radical do que não aparece mais como sujeito.
Neste sentido, podemos dizer que, através do erotismo, eu perco a segurança da minha
identidade e não sou mais capaz de assegurar a identidade do outro. Em seu lugar aparece esta
intimidade que descreve a força de um elemento comum que nos une e nos dissolve. Algo que
deve ser compreendido não como identidade, mas como espaço de confrontação com a
67
Idem, p. 129.
44

heterogeneidade que não se submete a uma unidade. Por isto, o erotismo produz uma fusão
que Bataille deve descrever como: violenta, excessiva, disforme e desordenadora. Como se a
existência de tal modelo de fusão fosse a condição para uma experiência social de
emancipação em relação às amarras da figura do indivíduo, assim como de toda e qualquer
fascinação pela identidade, tal como vimos, por exemplo, no modelo da fusão próprio às
massas fascistas, com sua fusão organizada a partir da identificação a um soberano capaz de
produzir homogeneidade.
Neste ponto, podemos retornar ao problema do fascismo, segundo Bataille, isto a fim
de compreendermos melhor a aposta política feita por ele com seu conceito de erotismo. Nós
vimos na aula passada como Bataille insiste que nossa sociedades sofrem por não saberem
como dar conta de uma experiência da heterogeneidade que se manifesta sob a forma de
desejo de fusão e de perda de limites da individualidade. Vimos também como o fascismo
seria maneira de absorver tal desejo através de uma política das massas, mas onde o desejo de
fusão produz uma homogeneidade organizada sob a identificação, profundamente disciplinar,
a um líder transcendente, cujo discurso é marcado pela unidade, pela depuração e purificação
do corpo social. Maneira da identidade ter a última palavra, mesmo se através do uso do
desejo de heterogeneidade. Pois: “a tentar controlar e purificar a heterogeneidade, o fascismo
acaba por destruir a heterogeneidade que está a usar”68.
Contra o fascismo, dirá Bataille, de nada adianta tentar alimentar as experiências
descontínuas ligadas à figura do indivíduo. Contra o fascismo, só mesmo outra forma de
heterogeneidade, esta mais radical ligada ao que vem de baixo, ao que expressa este ponto no
qual forma alguma se estabiliza, mas no qual toda forma ainda é possível. Esta
heterogeneidade é aquilo que não se disciplina, aquilo que quebra toda hierarquia pois
expressa a consciência da dependência entre o alto e baixo. Ela teria, segundo Bataille, um
poder subversivo, por exigir que: “o que é alto se transforme em baixo, o que é baixo se
transforme em alto”69. Por isto, o fascismo procura destrui-la e retira-la do contato dos
homens. Para Bataille, de uma forma bastante peculiar, a melhor arma contra o fascismo é o
erotismo. Pois a luta não é entre regimes políticos, mas entre formas de vida, e não haverá
superação do fascismo se não lhe compreendermos como uma forma de vida que só pode ser
barrada através de outra forma de circulação do desejo. No fundo, a questão política
realmente relevante será sempre: como o desejo circula. Daí uma afirmação importante como:

68
NOYS, Benjamin. Georges Bataille’s base materialism, p. 506.
69
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 157.
45

Não apenas as situações psicológicas das coletividades democráticas são, como


toda situação humana, trasitórias, mas continua possível encontrar, como uma
representação ainda imprecisa, forças de atração diferentes das já utilizadas, tão
distintas do comunismo atual ou passado quanto o fascismo é das reivindicações
dinásticas. É tendo em vista tais possibilidade que se deve desenvolver um sistema
conhecimentos permitindo prever as reações afetivas sociais que percorrem a
super-estruturas – talvez mesmo, em até certo ponto, delas se dispor 70.

É possível se perguntar como poderíamos pensar uma experiência política


revolucionária (pois é isto que Bataille procura) apelando a aberturas desta natureza. Talvez a
melhor resposta passe pela influência que Bataille sofreu de Alexandre Kojève. Uma das
principais características do ensino de Kojève foi insistir na importância de compreendermos
as dinâmicas dos conflitos sociais como problemas ligados a demandas de reconhecimento.
Conflitos sociais são, principalmente, conflitos por reconhecimento de nossa posição de
sujeitos. Bataille acrescenta a esta ideia a noção de que todas conflitos por reconhecimento só
pode ser efetivamente compreendidos se levarmos em conta como sujeitos aspiram à
soberania, ao dispêndio improdutivo, ao erotismo, ao sacrifício. No interior deste processo,
cria-se um problema importante e complexo, a saber, o que pode ser uma sociedade de
sujeitos soberanos? Veremos melhor este ponto na próxima aula.

70
Idem, p. 163.
46

Erotismo, sexualidade, gênero


Aula 5

Na aula de hoje, terminaremos o primeiro módulo de nosso curso, dedicado à leitura


de O erotismo, de Georges Bataille. Durante este primeiro mês de curso, procurei apresentar a
estrutura da experiência social descrita por Bataille a partir do conceito de “erotismo”. O
termo “experiência social” é adequado para falarmos do erotismo porque se trata, ao menos
para Bataille, de um fato, tal como o sagrado, o sacrifício e a dádiva cuja realidade tem a força
de fundar vínculos e modificar relações sociais. Vimos como o erotismo do qual fala Bataille
não é simplesmente um conjunto de práticas ligadas a processos de intensificação dos
prazeres sexuais e de incitação dos desejos. Bataille não quer fundar uma arte erótica mais
completa e atual. Na verdade, o erotismo aparece como experiência social com forte
capacidade crítica em relação a nossas formas hegemônicas de vida. Através do erotismo,
Bataille procura aliar crítica social, crítica do sujeito e crítica da razão apelando a uma
peculiar materialismo que dá, a alguns temas clássicos do pensamento marxista (como a
reificação, o trabalho abstrato), uma versão completamente inusitada.
A importância dada por Bataille a um fenômeno como o erotismo, e sua maneira de
insistir que o erotismo traz em seu bojo uma concepção revolucionária de sociedade, vincula-
se, por um lado, à compreensão do que poderíamos chamar de “problematização política do
desejo”. Bataille age como quem acredita que o desejo, a maneira como ele circula e constitui
laços, é um fator político decisivo. Já em suas análise sobre o fascismo, ficava clara a
perspectiva de avaliar situações sócio-políticas a partir da compreensão da maneira com que a
experiência da heterogeneidade era capaz de habitar o desejo. Há um claro pensamento da
diferença que serve de fundamento para a crítica gerada pela filosofia de Bataille. Diferença
que se configura principalmente através dos conceitos de heterogeneidade e excesso. Todo o
papel fundamental que a noção de diferença desempenhará no pensamento francês a partir dos
anos sessenta, principalmente através de filósofos como Jacques Derrida, Gilles Deleuze e
Michel Foucault é incompreensível se não entendermos Georges Bataille um importante
antecessor.
Por outro lado, lembremos como, em nossa primeira aula, eu afirmara que a
caraterística maior de uma questão filosófica é sua forma de se perguntar sobre como um
fenômeno ou um objeto é um evento. Como dissera em nossa primeira aula, dentro da
perspectiva filosófica, não se trata de simplesmente descrever funcionalmente objetos, nem de
justificar suas existências, dar aos objetos razões de existência a partir de uma reflexão sobre
47

o dever-ser. Na verdade, a filosofia tenta compreender como o aparecimento de certos objetos


e fenômenos produzem modificações em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo
possível. Pois um evento não é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que problematiza
a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma de agir, de desejar e de
julgar. Um evento é sempre uma ruptura que reconfigura o campo dos possíveis produzindo
tal reconfiguração em nossas formas de vida que parecemos, mesmo que usemos as mesmas
palavras de sempre, habitar um mundo totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e
apenas deles, que a filosofia trata. Neste sentido, podemos dizer que o erotismo é o nome
dado por Bataille à compreensão de que há algo na experiência sexual que tem a força de um
acontecimento.
Para tanto, foi necessário que a dimensão do sexual aparecesse como espaço no qual o
homem se encontra distante tanto da natureza quanto de sua afirmação como indivíduo
autônomo. Feita a crítica da subordinação do sexo aos imperativos de reprodução, a distância
em relação à natureza pode ser afirmada. Feita a crítica da subordinação do desejo aos
prazeres que guiam os sistemas individuais de interesse, o segundo passo pode ser dado.
Neste sentido, é inegável que a experiência do erotismo recupera, à sua maneira, as
expectativas disruptivas do surrealismo enquanto fundamento para uma crítica social
renovada. Por outro lado, há em todo acontecimento, a figura de um contra-acontecimento
que é objeto de nossos esforço de suspensão. Como vimos nas aulas passadas, o contra-
acontecimento do qual o erotismo é a melhor resposta é o facismo.
Vimos como a crítica social de Bataille era uma crítica radical da sociedade do
trabalho. Nossas sociedades modernas ocidentais são caracterizadas por serem,
principalmente, sociedades do trabalho, no sentido do trabalho aparecer como atividade
fundamental para a constituição das identidades sociais e para o reconhecimento dos sujeito.
Vimos como a expectativa de realização conjunta de exigências de expressão da
individualidade e formação em direção ao auto-controle era elemento definidor dos valores
que mobilizamos na avaliação social do trabalho.
Trabalhar sempre será uma operação servil. Podemos mesmo modificar radicalmente
a divisão social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham a posse dos
meios de produção e de seus frutos. Para Bataille, isto não mudará o essencial, a saber, que o
mundo do trabalho é o mundo da produção e que produzir implica ser capaz de submeter
atividades ao cálculo de tempo e metas, não se deixar desviar das metas estabelecidas,
perguntar-se pela utilidade final de cada objeto produzido, avaliar cada ação a partir do valor
que ela produziu. Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular valores
48

que são homogêneos, intercambiáveis. A lei que imponho para mim mesmo quando organizo
minhas atividades a partir da lógica do trabalho é uma lei que me ensina a calcular, a medir, a
quantificar minhas atividades, os objetos que produzo e, principalmente, o prazer final que
alcanço. E neste ponto que se encontra, para Bataille, o verdadeiro núcleo da experiência de
alienação produzida pela sociedade do trabalho.
No entanto, o erotismo é uma atividade estranha à tal racionalidade instrumental
própria à sociedade do trabalho. Tal estranhamento se expressa na natureza excessiva do
erotismo. Ao falar de “excesso” neste contexto, Bataille não afirma que o erotismo é mais
intenso que o trabalho. Seu excesso não é da ordem da grandeza, mas da alteridade. Nem
sempre, “excessivo” significa o que é muito grande, pois isto corresponderia a dizer que há
uma medida comum entre os dois fenômenos, sendo que um é apenas maior do que o outro.
Na verdade, “excessivo” significa aqui o que excede minha capacidade de medir,
simplesmente porque é o que não se mede, o que colapsa toda medida, porque sua lógica não
é a lógica dos objetos mensuráveis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e
silencioso, mesmo quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será
excessivo. Porque seu excesso é a recusa do que não aceita ser sentido e vivido da mesma
forma que sentimos as coisas que podemos calcular, mensurar e quantificar. O erotismo será
sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente aquilo que não entra na imagem
atual do homem, deste homem da sociedade do trabalho e da lógica utilitária. Assim, quando
Bataille propor uma espécie de fórmula ontológica ao afirmar que: “o ser é também o excesso
do ser, elevação ao impossível”71, devemos entender com isto que é próprio da definição do
ser o reconhecimento de uma relação constitutiva com o que lhe determina. Neste contexto,
“impossível” não significa inexistente; “impossível” significa o que não se expressa na
configuração atual dos possíveis e que, por isto, força tal configuração a modificar-se.
Foi tendo tal contraposição em mente que introduzi o conceito de “soberania”. Para
Bataille, a resposta à alienação produzida pela sociedade do trabalho passa pela reconstrução
do conceito de soberania, agora aplicado à posição subjetiva. Bataille retira o conceito de
soberania das mãos daquele que se encontra no centro do poder político para transformá-lo
em um conceito capaz de descrever a posição de todo e qualquer sujeito que não se encontre
mais em situação de alienação e servidão. Mas eu insistira com vocês que o conceito
batailleano de soberania tinha um caráter fundamental: ele não descreve o poder que domina.
Normalmente, o soberano, enquanto fonte do poder, submete a vontade do outro à sua
vontade, submete às coisas à condição de coisas das quais ele pode gozar como proprietário,
71
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 201.
49

submete o tempo ao tempo do seu desejo. Mas Bataille insiste que a verdadeira soberania é
um poder que não domina, poder de quem tem segurança suficiente de não precisar de
dominar para se defender.
Isto pode nos explicar porque, ao analisar a sociedade soviética, Bataille dirá que ela
poderia fornecer um caminho para uma soberania comum, a partir do momento em que todos
abrem mão soberanamente de todo traço de soberania monárquica. Para além do caráter
dificilmente defensável de uma proposição desta natureza (difícil aceitá-la se lembrarmos do
lugar soberano do líder no stalinismo), fica a compreensão do esforço em pensar algo que
poderia significar a soberania comum no campo social. Soberania da partilha comum da parte
maldita.
Por outro lado, vimos como depor toda vontade de domínio significava não querer
mais controlar as coisas através da sua submissão à utilidade delas para mim, que
normalmente sou seu proprietário, nem controlar o tempo através da submissão do presente ao
futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitações que aceito no presente,
que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde só faz sentido o que se submete à
necessidade definida na idealidade do futuro. Este tempo é um tempo do gozo.
A fim de compreender porque Bataille associa a afirmação de tal soberania ao
movimento de transgressão, eu sugeri operarmos uma passagem em direção àquilo que
poderíamos chamar de uma “filosofia da natureza”. Ela se expressa em uma forma peculiar de
pensar a relação entre a vida e morte, entre a organização e a desorganização. Para Bataille, há
um mobilidade interna ao fato vital que leva todo organismo a precisar saber como lidar com
algo desorganizador que lhe aparece como excessivo, pois não submetido ao padrão atual de
suas atividades e de normas. Esta energia excessiva pode servir ao crescimento e
desenvolvimento do próprio organismo, mas a partir de certo ponto ela pode levar à sua
destruição, ou seja, às destruição de sua forma. As formas vitais não apenas se desenvolvem;
elas procuram impedir que o princípio vital que as modifica (no caso, a energia) as leve à
destruição: “se não temos força para destruir a energia em acréscimo, ela não pode ser
utilizada; e, como um animal intato que não se pode domar, é ela que nos destrói, somos nós
mesmos que arcamos com os custos da explosão inevitável” 72. Neste sentido, as
individualidades orgânicas são estruturalmente instáveis, pois para dar conta da energia que as
atravessa, elas devem gastá-la como puro dispêndio, ou seja, como algo que, do ponto de vista
da pura conservação das formas atuais, não tem sentido algum. Mas gastar como puro
dispêndio significa admitir um conceito de organismo biológico que age sem ter em vista sua
72
Idem, p. 46.
50

própria auto-preservação e reprodução. Ele age fragilizando as normas que lhe servem como
fundamento para a auto-preservação de sua forma momentânea. Neste sentido, há uma
violência que é coextensiva à própria mobilidade da vida. Talvez seja pensando nisto que
Bataille pode dizer: “Não há nada que reduza a violência”73. Pois:

A vida é sempre um produto da decomposição da vida. Ela é tributária, em


primeiro lugar, da morte, que desocupa a vaga; em seguida, da corrupção que segue
a morte e recoloca em circulação as substâncias necessárias à incessante vinda ao
mundo de novos seres74.

Por pensar a atividade vital a partir da forma de um movimento no interior do qual


organismos aparecem como sistemas em perpétuo desequilíbrio que Bataille precisa insistir
que a soberania própria ao erotismo é sempre transgressiva. A transgressão é o nome a para
um movimento que se desdobra através da perpétua reversibilidade das normas.
Mas, para Bataille, não basta que tais reversibilidades ocorram. Há um modelo de
transgressão privilegiado por seu pensamento, pois produtor de uma experiência substantiva
de heterogeneidade. A este respeito, Bataille censura o pensamento materialista de, até então,
ceder à “obsessão de uma forma ideal da matéria, de uma forma que se aproximaria, mais do
que qualquer outra, daquilo que a matéria deveria ser”75. A seu ver, trata-se de um falso
materialismo, incapaz de compreender o caráter polimórfico e promiscuo da matéria. Este
falso materialismo ainda é dependente de uma hierarquia própria ao caráter elevado da ideia.
Mas a verdadeira transgressão nos faz nos reconhecermos naquilo que Bataille chama de
matéria baixa: “A matéria baixa é exterior e estrangeira às aspirações ideais humanas e se
recusa de se deixar reduzir às grandes máquinas ontológicas” 76. Uma matéria baixa que é a
afirmação do caráter informe da matéria, do caráter “baixo” que uma certa tradição filosófica
sempre associou à matéria, a saber, caráter do que se decompõe, do que se quebra, o que
apodrece, o que não subsiste no interior do tempo e por isto está em plasticidade contínua. A
verdadeira transgressão, dirá Bataille, é reconhecimento de si na heterogeneidade radical do
que se decompõe, do que se quebra e apodrece. E algo do erotismo se deixa tocar exatamente
por tal tipo de experiência material: pelo corpo que não se submete integralmente à sua
própria imagem, pela fragilidade dos instantes que desaparecem no tempo, pela matéria que
sempre se perde e se decompõe, pela reversibilidade contínua dos corpos que perdem algo de
suas formas.
73
Idem, p. 72
74
Idem, p. 79
75
BATAILLE, Georges. « Matérialisme ». In: Oeuvres complètes vol. I, p. 179.
76
BATAILLE, Georges. « Le bas matérialisme et la gnose ». In: idem, p. 224.
51

Sade e a linguagem da violência

Dois artigos de O erotismo são dedicados ao Marques de Sade. De fato, foram os


surrealistas que recuperaram a importância literária de Sade, um autor recorrente no
pensamento francês a partir de então, seja através do próprio Bataille, seja através de Pierre
Klossowski, de Blanchot, de Jacques Lacan, de Gilles Deleuze e Michel Foucault.
Há algo da concepção batailleana de soberania que encontra expressão na obra de
Sade. Tal concepção está expressa em afirmações como:

Sade só quer ter acesso ao gozo mais forte, mas esse gozo tem um valor: significa a
recusa de uma subordinação ao gozo menor, uma recusa a condescender! Sade, em
benefício dos outros, dos leitores, descreveu o ápice que a soberania pode atingir:
há um movimento de transgressão que não para antes de ter atingido o ápice da
transgressão. Sade não evitou esse movimento, seguiu-o em suas consequências,
que excedem o princípio inicial da negação dos outros e da afirmação de si. A
negação dos outros se torna, no extremo, negação de si mesmo (...) Há algo mais
perturbador do que a passagem do egoísmo à vontade de ser consumido por sua vez
no braseiro que o egoísmo acendeu?77.

A que Bataille alude aqui? Não compreenderemos nada da literatura de Sade se


imaginarmos que seus personagens são impulsionados pela simples procura de maximizar
seus prazeres individuais. Na verdade, Sade está à procura de uma purificação da vontade que
a libere de todo conteúdo empírico e patológico. Blanchot fala do desejo de: « fundar a
soberania do homem sobre um poder transcendente de negação » 78. De onde se segue, por
exemplo, o conselho do carrasco Dolmancé à vítima Eugénie, na Filosofia na alcova: "todos
os homens, todas as mulheres se assemelham: não há em absoluto amor que resista aos efeitos
de uma reflexão sã”79. Uma indiferença em relação ao objeto que pressupõe a
despersonalização e o abandono do princípio de prazer. Este é o sentido de um outro conselho
de Dolmancé à Eugénie: "que ela chegue a fazer, se isto é exigido, o sacrifício de seus gostos
e de suas afeições"80. Esta experiência de quem sacrifica seus gostos e afeições em nome de
uma espécie peculiar de imperativo é fundado na crença de aceder a um “gozo mais forte” que
recusa sua subordinação a um gozo menor.
Este gozo mais forte não é, pois, a afirmação dos interesses egoístas da pessoa. Há
algo no movimento do desejo sadeano que, como dirá Bataille, “excede o princípio inicial da
77
Idem, p. 202.
78
BLANCHOT. Lautréamont et Sade. Paris : Minuit, 1949, p. 36.
79
SADE. La philosophie dans le boudoir. Paris: Gallimard, 1975, p, 172.
80
SADE, ibidem, p. 83.
52

negação dos outros e da afirmação de si”. Se a negação dos outros se torna negação de si
mesmo é porque sacrifico tudo o que me individualiza para participar de um movimento
incessante, exaustivo e gratuito de repetição do gozo. Movimento que se dá para além do
prazer. Um pouco como Madame de Saint-Ange que, em meio às orgias produzidas por
Dolmancé, o repreende por este estar tendo prazer em algo que deveria ser feito com apatia e
contenção. O gozo dos personagens de Sade, como vários observaram, é um gozo apático.
Neste sentido, o que Sade demonstra é a nudez do ápice em direção ao qual algo em
nós caminha. Nudez da vontade de ser consumido no braseiro que o próprio egoísmo acendeu.
Daí uma afirmação como:

Sade consagrou intermináveis obras à afirmação de valores inaceitáveis: a vida era,


se acreditarmos nele, a procura do prazer; e o prazer era proporcional à destruição
da vida. Dito de outro modo, a vida atingia o mais alto grau de intensidade numa
monstruosa negação de seu princípio81.

Em outro texto, Bataille descreve este “excessivo ápice daquilo que somos” 82, este
“mais alto grau de intensidade” da vida como aquilo que define algo que o excesso próprio à
vida subjetiva, a saber, a “experiência interior”: “A experiência interior responde à
necessidade na qual me encontro - a experiência humana comigo – de colocar tudo em causa
(em questão) sem repouso admissível”83. Esta é a descrição de uma experiência sócio-
histórica bastante precisa, ligada à consciência de que a modernidade traz consigo uma
modalidade específica de sofrimento: o sofrimento de ser apenas um eu, com suas limitações
e defesas. Pois Bataille age como se nosso sofrimento mais aterrador fosse resultante do
caráter repressivo da identidade. Esta é a temática maior de um certo pensamento francês
contemporâneo (Lacan, Deleuze, Derrida, Foucault). Podemos mesmo dizer que para todos
eles, a modernidade não é apenas momento histórico onde: “não somente está perdida para ele
[o espírito] sua vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é seu
conteúdo”84. Perda que implicaria a pretensa angústia crescente do sentimento de
indeterminação. A modernidade seria também a era histórica de elevação do Eu a condição de
figura do fundamento de tudo o que procura ter validade objetiva. O que neste caso significa:
era do recurso compulsivo e rígido à auto-identidade subjetiva enquanto princípio de
fundamentação das condutas e de orientação para o pensar. Levando tal contexto em conta,
poderemos compreender melhor uma colocação como:
81
Idem, p. 207.
82
Idem, p. 219.
83
BATAILLE, Georges. L’expérience intérieur, p. 15.
84
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito I, Petrópolis: Vozes, 1992, p. 24.
53

Se alguém me perguntasse o que nós somos, e, de qualquer modo, lhe responderia:


essa abertura a todo o possível, essa expectativa que nenhuma satisfação material
poderá apaziguar e que o jogo da linguagem não poderia enganar! Estamos à
procura de um ápice. Cada um, se lhe agrada, pode negligenciar a procura. Mas a
humanidade em seu conjunto aspira a esse ápice, que se ele a define, que só ele é
sua justificação e sentido85.

Neste sentido, Sade teria, ao menos aos olhos de Bataille, o mérito de ter colocado em
cena até onde estaríamos dispostos a chegar para nos livrar de tal sofrimento. No entanto, a
posição de Sade guarda algo de profundamente reativo, e essa natureza reativa é sua
limitação. Bataille explora com exaustão o fato paradoxal de uma literatura como a
apresentada por Sade. Pois se Sade é, de fato, um carrasco sádico, há de se lembrar que
carrascos não escrevem, pois: “a violência é silenciosa, já que a linguagem é, por definição, a
expressão do homem civilizado”86. A violência permaneceu em princípio sem voz. Por isto,
Bataille pode dizer:

Na verdade, essas dissertações da violência, que incessantemente interrompem os


relatos de cruéis infâmias de que os livros de Sade são formados, não são as
dissertações dos personagens violentos a que são atribuídas. Se tais personagens
tivessem vivido, sem dúvida teriam vivido silenciosamente 87.

Por isto, dirá Bataille, a linguagem de Sade é a de uma vítima. Linguagem de quem
estava preso na Bastilha pelo homem que não aceita mais a própria desmesura de sua
experiência interior. Vítima revoltada de uma injustiça que lhe leva a transformar a violência
naquilo que ela não é, no seu oposto, a saber: “uma vontade refletida, racionalizada, de
violência”88. Esta linguagem inventada por Sade é, assim, uma linguagem reativa de quem
procura criar uma violência que teria a calma da razão, linguagem de quem faz entrar na
consciência exatamente aquilo que revoltava a consciência, a desmesura que a consciência
tudo fez para esquecer. Daí porque os vínculos em Sade se constroem através da partilha da
revolta que procura a profanação desenfreada. A revolta das vítimas da incapacidade de uma
sociedade fundada em fenômenos sociais que estejam à altura do excesso próprio ao ser.

A filosofia, a experiência interior e o riso

85
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 300.
86
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 214.
87
Idem, p. 216.
88
Idem, p. 219.
54

Mas o que seria uma linguagem capaz de expressar tal experiência interior sem
precisar, ao mesmo tempo, colocar-se como reação e revolta à disciplina imposta pelo homem
que não aceita a própria desmesura? O que seria um vinculo social livre da obrigação de
reagir através da transformação do silêncio próprio à violência em palavra de revolta? Na
verdade, poderíamos mesmo se perguntar sobre como seria uma experiência que recuperasse a
violência bruta própria ao silêncio. Neste ponto, encontramos uma dicotomia importante entre
saber e erotismo. Tal dicotomia está expressa em afirmações como: “O filósofo pode nos falar
de tudo o que experimenta. Em princípio, a experiência erótica nos obriga ao silêncio” 89. Uma
obrigação ao silêncio que alguns, como Sartre, compreenderam como convite ao misticismo:
“É contra sua própria vontade que o sr. Bataille se serve do discurso. Ele o odeia e, através
dele, ele odeia a linguagem por completo. Este ódio, o sr. Bataille partilha com um bom
número de escritores contemporâneos. Mas os motivos que ele fornece lhe são próprios: é o
ódio do místico que ele reivindica, não o ódio do terrorista”90.
De fato, Bataille afirma: “entendo por experiência interior o que normalmente
chamamos de ‘experiência mística’”91. Há algo na experiência de fusão e afastamento das
estruturas de conhecimento que se expressam na linguagem prosaica própria aos místicos
capaz de fascinar Bataille. Mas, como vimos na aula passada, este é um peculiar “misticismo
ateu”, um misticismo após a morte de Deus. Ele indica, muito mais, a consciência estética do
esgotamento da força representativa da linguagem. Consciência tão alargada que estaria
mesmo disposta a fazer a crítica geral da linguagem poética:

Se a poesia introduz o estranho, ela o faz pela via do familiar. O poético é o


familiar se dissolvendo no estranho e nós mesmos com ele. Ele nunca nos
despossui por completo, pois as palavras, as imagens dissolvidas, são carregadas de
emoções já provadas, fixadas a objetos que as ligam ao conhecido 92.

Tal consciência do esgotamento da linguagem não se configura, assim, como uma


passagem da filosofia à literatura, com sua linguagem pretensamente menos descritiva e
próxima do que não se deixa representar. Ela é um paradoxal retorno à filosofia, já que só a
linguagem filosófica seria capaz de guardar o silêncio do heterogêneo, sem nos colocar nas
vias da crença em alguma forma de imanência reconquistada pela linguagem. A filosofia não
é composta de palavras que carregam emoções já provadas, pois ela é uma linguagem
desdramatizada. Ou seja, de uma certa forma o reconhecimento da fraqueza da linguagem
89
Idem, p. 279.
90
SARTRE, Jean-Paul. Situations I, p. 136.
91
BATAILLE, Georges. L’expérience intérieur, p. 15.
92
Idem, p. 17.
55

filosófica acaba funcionando como sua força. Pois há uma mutação necessária da linguagem,
uma mutação através da qual ela não aparecerá mais como um meio de conhecimento, onde
ela não servirá para conhecer e descrever, mas para nos levar a algo que não se acomoda
completamente à linguagem, que se expressa nas formas do silêncio (e o que é o erotismo a
não ser uma forma bastante peculiar de silêncio):

O que eu quero dar a ver é o impasse da filosofia que não pode se realizar
completamente sem a disciplina, e que, por outro lado, fracassa por não poder
abarcar os extremos de seu objeto, o que designei outrora sob o nome de “extremo
do possível”, que tocam sempre nos pontos extremos da vida. (...) salvo, a rigor, se,
no auge, a filosofia for negação da filosofia, se a filosofia rir da filosofia.
Suponhamos, com efeito, que a filosofia verdadeiramente ria da filosofia, isso
supõe a disciplina e o abandono da disciplina93.

Uma filosofia que ri da filosofia é aquela que paradoxalmente procura comunicar (já
que o termo é constantemente utilizado por Bataille) o que decompõe a linguagem, vivenciar
o que paradoxalmente coloca a vida em risco. Ela não produz exatamente um conhecimento,
mas uma experiência que se abre no interior do campo onde nossos modos de intuição e
categorização desabam. Neste sentido, a função do discurso filosófico não consiste em
fornecer um saber prescritivo e normativo, mas de nos levar a procurar ir em direção àquilo
que Bataille chama de experiência interior. “Rir”, neste caso, é um modo de funcionamento
do discurso no qual disposições contrárias acabam por conviver. Este riso talvez não seja
exatamente o riso da ironia, com sua afirmação de existir sempre algo para além da
enunciação e no interior do qual o sujeito do enunciado se aloja. O riso de Bataille é
impulsionado por um afeto paradoxal, que não é nem prazer, nem desprazer, mas uma
“angústia alegre ”. Um tipo de afeto para o qual talvez não estejamos acostumados, pois é
angústia que sabe que o que lhe angustia guarda algo de profundamente necessário:
A angústia alegre, a alegria angustiada me dá, em um quente-frio o “dilaceramento
absoluto” no qual é minha alegria que termina de me dilacerar, mas no qual o
abatimento seguiria à alegria se eu não fosse dilacerado até o fim, sem medida 94.

93
Idem. O erotismo, p. 285.
94
BATAILLE, Georges. Hegel, la mort, le sacrifice. In: Oeuvres complètes XII, p. 342.
56

Erotismo, sexualidade, gênero


Aula 6

Na aula de hoje, começaremos o nosso módulo sobre o primeiro volume de História


da sexualidade, de Michel Foucault. Foucault era um leitor contumaz de Georges Bataille, a
quem dedicou um texto escrito para figurar como introdução às Obras Completas do filósofo.
Ao falar sobre suas influências, ele chegará mesmo a dizer:

Durante um longo período, tive em mim uma espécie de conflito mal resolvido
entre a paixão por Blanchot, Bataille e, por outro lado, o interesse que eu
alimentava por certos estudos positivos como os de Dumézil e de Lévi-Strauss, por
exemplo. Mas, no fundo, estas duas orientações, cujo único denominador comum
era talvez constituído pelo problema religioso, contribuíram de maneira igual a me
conduzir ao problema do desaparecimento do sujeito95.

De fato, vimos como Bataille servia-se do “problema religioso” para pensar a natureza
de experiências capazes de nos colocar para além dos limites da individualidade moderna.
Problema que animava sua maneira de pensar a natureza essencialmente transgressiva do
erotismo com sua suspensão da lógica utilitarista própria às sociedades do trabalho. Lógica
baseada na quantificação das atividades, na mensuração dos esforços, no cálculo dos prazeres
e na elevação do princípio de auto-preservação do indivíduo à fundamento de toda e qualquer
ação que se queira racional. Vimos ainda como, através do erotismo, Bataille vinculava sexo e
acontecimento. No nosso contexto, isto significava pensar sexo como uma experiência capaz
de nos levar a um gozo que parecia realizar as expectativas disruptivas do modernismo
estético, modificar a percepção do tempo, da identidade e da diferença. Principalmente, o
erotismo era a atividade de um sujeito que só poderia aparecer à condição do desaparecimento
do indivíduo moderno, um sujeito soberano.
Foucault, à sua maneira, também acredita que só podemos pensar de forma adequada
em sexo se o compreendermos como espaço de produção de acontecimentos. No entanto, o
acontecimento pensado por Foucault é de outra ordem. Ele não está ligado exatamente a
emancipação, tal como Bataille pensava, mas a uma forma de sujeição. Sexo é um
acontecimento a ser pensado pela filosofia na medida em que explicita uma nova forma de
poder que paulatinamente ganhou hegemonia no interior das formas de vida no Ocidente. Esta
forma de pensar sexo a partir da maneira com que o poder funciona e nos assujeita, ou seja,

95
FOUCAULT, Dits et écrits II, p. 642.
57

nos submete e nos transforma em sujeitos, evidenciou-se a partir do momento em que sexo foi
pensado sob a forma da “sexualidade”.
Notemos a diferença entre dois termos até agora utilizados para falar de sexo.
“Erotismo” significava uma prática que parecia implicar o cultivo de um desejo que circula
entre os corpos, estabelecendo formas intersubjetivas de relação, de se dar a ver e de procurar
ver. Já “sexualidade” é, principalmente, a qualidade que cada individuo. Posso dizer: “tenho a
minha sexualidade”, como quem tem um modo de ser que pretensamente expressa sua
individualidade, mas dificilmente direi (a não ser que por licença poética): “tenho o meu
erotismo”. Ao centrar suas reflexões sobre o aparecimento da “sexualidade”, Foucault queria
mostrar como um certo regime de organização, de classificação e de descrição da vida sexual
foi fundamental para a constituição dos indivíduos modernos. Não por outra razão,
“sexualidade” é aquilo produzido por um discurso de aspirações científicas, seja vindo
normalmente da psiquiatria, da psicologia ou da medicina. Se Bataille centrava suas análise na
descrição de uma experiência sexual desconhecida pelos indivíduos modernos, Foucault
parece querer mostrar, com mais detalhes, qual é esta experiência sexual própria aos
indivíduos que encontram no discurso da ciência seus padrões de normalidade e de patologia.
Isso quer dizer: ter uma sexualidade é algo fundamental para que eu possa ser visto como um
indivíduo normal, um indivíduo normalizado.
A este respeito, a questão de Foucault consiste em se perguntar: como algo desta
natureza ocorreu e, principalmente, o que isto realmente significa? Ter uma sexualidade seria
expressão de uma liberação do meu corpo em relação às pretensas amarras repressivas do
poder? A sociedade ocidental teria assumido a importância da sexualidade na definição das
individualidades a partir do momento em que o poder teria perdido suas amarras repressivas?
Ou, na verdade, a sexualidade seria uma forma insidiosa de sujeição que demonstraria como a
natureza do poder não é exatamente repressiva, como se estivesse a reprimir uma natureza
sexual, uma energia libidinal primeira e selvagem, mas produtiva, como se ele produzisse os
sujeitos nos quais o poder opera?
De fato, a segunda opção será aquela defendida por Foucault. Não por outra razão, ele
dirá: “Já faz bastante tempo que desconfio dessa noção de ‘repressão’” 96. Uma desconfiança
que, a seu ver, resulta de uma nova maneira de compreender o poder e que estaria expressa
claramente em afirmações como:

96
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, p. 25.
58

O poder se exerce em rede, e nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão
sempre em posição de serem submetidos a esse poder e também de exercê-lo.
Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, são sempre seus
intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica
a eles (...) O indivíduo é um efeito do poder e é, ao mesmo tempo, na mesma
medida em que é um efeito seu, seu intermediário: o poder transita pelo indivíduo
que ele constitui97.

Mas como Foucault chegou a tal concepção de poder na qual os indivíduos aparecem
como seus intermediários e, principalmente, por que a sexualidade apareceria como a
expressão mais bem acabada de sua essência?

O poder disciplinar

Foucault parte de uma distinção maior entre dois modelos de funcionamento do poder:
o poder soberano e o poder disciplinar, poder este que, por sua vez, estaria interligado, por
uma série de relações, à biopolítica e aos dispositivos próprios a uma política
fundamentalmente ligada à noção de “segurança”.
O poder soberano, segundo Foucault, teria seu paradigma na figura da encarnação
monárquica da legitimidade, com sua fundamentação do exercício da lei na vontade do
soberano. Derivado da figura romana da patria potestas, ele sempre foi o poder de decidir
sobre a vida e a morte daqueles que a ele se submetem, mesmo que este direito esteja, em
várias situações, condicionado pelos casos onde está em questão a defesa do soberano.
Lembremos, por exemplo, da maneira que Foucault analisa o sentido do crime no interior do
modelo de funcionamento do poder soberano:

O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ele lhe ataca pessoalmente
porque a lei vale como a vontade do soberano; ele lhe ataca fisicamente porque a
força da lei é a força do príncipe (...) O direito de punir será pois como um aspecto
do direito que o soberano detém de fazer a guerra contra seus inimigos (...) o
suplício [sempre ligado à pena] tem pois uma função jurídico-política. Trata-se de
um cerimonial para reconstituir a soberania ferida momentaneamente (...) Seu
objetivo é menos o de restabelecer um equilíbrio do que expor, até seu ponto
extremo, a dessimetria entre o sujeito que ousou violar a lei e o soberano
onipotente que faz valer sua força98.

No entanto, contra este poder centralizado, vertical por ser completamente


assimétrico, subjetivado em seu pólo central na figura do soberano e impessoal em sua base, a
modernidade teria desenvolvido a hegemonia de um outro poder. Um poder desprovido de
97
Idem, p. 35.
98
Idem, p. 58-59.
59

centro e disseminado por parecer vir de todos os lugares, operar em várias instâncias e níveis;
um poder horizontal. Por não ter centro, ele aparece como impessoal, como não exercido em
nome de alguém, um poder de estruturas que submetem todos sem distinção, como os
hospitais, as escolas, as prisões, as empresas. A fim de expor o advento deste poder, Foucault
chega mesmo a comentar a questão legal que estava em jogo na cena a respeito do
internamento de Jorge III, rei da Inglaterra acometido de loucura a partir de 1810. Através
desta situação, Foucault quer ilustrar o processo de declínio do poder soberano, de sua
submissão à estrutura generalizadora de um poder responsável por gerir a vida através da
implimentação de disciplinas. Daí a afirmação de que: “Pode-se dizer que o velho direito de
fazer morrer ou de deixar viver foi substituído por um poder de fazer viver ou de rejeitar à
morte”99.
Este poder disciplinar tem duas características maiores. Primeiro: “o poder disciplinar
é certa modalidade, bem específica da nossa sociedade, do que poderíamos chamar de contato
sináptico corpo-poder”100. Foucault chega mesmo a afirmar que todo poder é físico e que há
uma ligação direta entre o corpo e o poder político. O que não significa dizer que todo poder é
fundado em práticas de coerção física. Significa dizer, na verdade, que toda prática de poder
visa a internalização de modos determinados de controle corporal, de regulagem das paixões e
dos regimes do desejo. Se o corpo é elevado aqui a interface fundamental de contato com o
poder, é porque a gestão da vida passa necessariamente pelo fortalecimento e
condicionamento do corpo, sendo que muito haverá a se dizer sobre o que pode significar
“fortalecimento” neste contexto (fortalecimento em relação ao que? À morte e à doença, física
e mental? Mas toda a reflexão clínica no século XX – na qual a obra do próprio Foucault deve
ser incluída - foi marcada pela idéia de as formas de fortalecimento são indissociáveis do
desenvolvimento de novas formas do adoecer).
Por outro lado, a segunda característica maior do poder disciplinar é sua capacidade
individualizadora. Foucault não cansa de repetir que: “o indivíduo, parece-me, não é mais que
o efeito do poder, na medida em que o poder é um procedimento de individualização” 101.
Lembremos desta afirmação central:

O indivíduo é muito mais uma certa maneira de separar a multiplicidade, para uma
disciplina, do que o material primeiro a partir do qual nós a construímos. A
disciplina é um modo de individualização das multiplicidades e não algo que, a

99
Idem, Histoire de la séxualité, p. 181.
100
Idem, O poder psiquiátrico, p. 51.
101
idem, p. 21.
60

partir de indivíduos trabalhados inicialmente a título individual, construiria


posteriormente alguma forma de edifício com elementos múltiplos 102.

Por um lado, é clara aqui a ressonância de temáticas nietzscheanas ligadas ao caráter


constitutivo da genealogia da moral e da proveniência de um sujeito capaz de emitir
julgamentos morais. Nos dois casos, temos a tematização da força constitutiva do poder na
produção de uma antropologia, de um sujeito dotado de capacidade de hierarquização das
vontades, de autonomia, de capacidade de auto-controle, de unidade e identidade.
Por outro, Foucault tende a pensar que a submissão à vontade do soberano não é
constitutiva no sentido que a submissão aos dispositivos disciplinares o é. Pois a submissão à
vontade do soberano, é uma submissão que incide de tempos em tempos, enquanto que o
poder disciplinar é constante e atuante em todos os níveis da formação (escola, hospital,
prisão, empresa). Daí porque Foucault pode afirmar: “O efeito maior do poder disciplinar é o
que poderíamos chamar de remanejamento em profundidade das relações entre a
singularidade somática, o sujeito e o indivíduo”103.
Este poder disciplinar será, a partir do século XVIII, complementado por um conjunto
de mecanismos que não se exercem diretamente sobre o corpo dos indivíduos, mas sobre o
controle e planejamento das populações. O advento dos processos de controle e gestão de
populações com seus mecanismos que vão do reordenamento do espaço urbano, controle de
epidemias, carência alimentar à regulação do meio (millieu) no interior do qual a espécie
humana vive (com suas características físicas, climáticas e geográficas) permitirá o advento
de uma nova arte de governar, de um novo paradigma de “governamentalidade”, a saber,
aquele que Foucault chamará de “segurança” (contra o perigo da carência, da sublevação, dos
distúrbios sociais de várias formas). Estes mecanismos de segurança terão assim, por função:
“modificar algo no destino biológico da espécie”104. A noção mesma de população como
objeto do poder implica que a política trata da gestão de algo que se apresenta como dotado de
uma certa naturalidade. A este respeito, lembremos da definição foucauldiana de população
como: “uma multiplicidade de indivíduos que são e que existem apenas profundamente,
essencialmente, biologicamente ligados à materialidade no interior da qual eles existem”. Esta
materialidade fornece um meio capaz de produzir acontecimentos que aparecerão como
“naturais”, regulados apenas indiretamente, como se fosse questão apenas de assegurar as
condições de possibilidade para que uma certa naturalidade da sociedade encontre seu solo

102
Idem, Sécurité, territoire, population, p. 14.
103
idem, p. 68.
104
Idem, p. 12.
61

profícuo. Como se existisse uma: ‘naturalidade específica das relações dos homens entre si,
do que se passa espontaneamente quando eles cohabitam, quando eles estão juntos, quando
eles trocam, trabalham, produzem”105.
Desta forma, constitui-se uma organização do poder sobre a vida composta por dois
pólos de desenvolvimento profundamente interligados. O primeiro, disciplinar, nos forneceria
uma anatomo-política do corpo humano. Já o segundo, composto por “controles reguladores”,
forneceria uma bio-política da população; ou seja, disciplinas do corpo e regulações da
população. Esta junção de anatomo-política e de bio-política é o que devemos entender por
bio-poder.

A produção da sexualidade

Que o problema da produtividade do poder, o problema da maneira com que regimes


de saber constituem práticas disciplinares capazes de definir nosso modo de relação a nós
mesmos e aos outros, seja tematizado de maneira privilegiada quando voltamos os olhos à
sexualidade: eis algo que não deve nos surpreender. Pois se há algo que o século XX produziu
foi a crença de que o falar franco sobre o que é da ordem do sexual implicaria, por um lado,
lançar luz sobre o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que
somos e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a
experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de
sua auto-determinação. Digamos claramente que seu reconhecimento como sujeito passa
necessariamente pela maneira que ele é capaz de subjetivar uma sexualidad e.
Neste sentido, é inegável que a força do pensamento de Freud e da psicanálise se faz
sentir. Foucault sabe disto, tanto que sua História da sexualidade pode ser vista, de uma certa
forma, como uma silenciosa arqueologia da psicanálise. Como dirá Alain Badiou: “De que
Freud se sente responsável quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente de ruptura no real do
sexo, para além mesmo da transgressão de alguns tabus morais ou religiosos? Tem a tremenda
convicção de ter tocado no sexo, no mesmo sentido que, depois de Vitor Hugo, se tocou no
verso?”106. As perguntas não poderiam ser mais claras. Trata-se de afirmar que, depois de
Freud, um novo regime relativo à palavra que fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de
falar que modifica profundamente nosso modo de ser, nosso modo de nos relacionarmos ao
desejo.

105
Idem, p. 357.
106
BADIOU, Alain. O século, p. 112.
62

No entanto, Foucault participa, neste momento, de uma forte desconfiança do


pensamento francês contemporâneo a respeito da psicanálise e de sua maneira de fazer o
sexual falar. Contrariamente àquilo que vimos em As palavras e as coisas, a posição da
psicanálise no interior da episteme moderna mudará. Neste livro, Foucault ainda afirmava:

Em relação às “ciências humanas”, a psicanálise e a etnologia são “contra-


ciências”; o que não quer dizer que elas são menos “racionais” ou “objetivas” que
as outras, mas que elas as pegam na contra-corrente, retirando-as de seu pedestal
epistemológico, e que elas não cessam de “desfazer” este homem que, nas ciências
humanas, faz e desfaz sua positividade107.

Agora, em História da sexualidade, a psicanálise aparecerá, mesmo sem ser


diretamente nomeada, como este saber que nos coloca diante de uma hipótese equivocada e de
uma ilusão de liberdade descrita por Foucault da seguinte forma:

Se o sexo é reprimido, ou seja, votado à proibição, à inexistência e ao mutismo


[como a psicanálise nos faria acreditar que ele era antes de seu aparecimento], o
simples fato de falar dele e de falar de sua repressão tem um ar de transgressão
deliberada. Quem sustenta esta linguagem se coloca, até um certo ponto, fora do
poder; ele faz a lei tremer; ele antecipa, mesmo que apenas um pouco, a liberdade
futura. Daí esta solenidade com a qual hoje se fala do sexo 108.

Uma solenidade que só se explicaria devido à existência, em nossa época: “de um


discurso no qual o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um
outro dia e a promessa de uma certa felicidade estão ligados”109. Discurso este que aparece na
linha direta da reflexão psicanalítica sobre os modos de repressão da sexualidade. Esta será a
hipótese a ser criticada por Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez não tenha existido
sociedade que mais falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:

Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde mais de um século,


fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com prolixidade de seu próprio
silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela não diz, denuncia os poderes que ela
exerce e promete liberar-se de leis que a fazem funcionar 110.

De fato, estranha repressão esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a uma
fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de falar e detalhar.
Trata-se de afirmar que a “análise crítica da repressão” é, no fundo, inseparável dos “efeitos
107
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 391.
108
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, p. 13.
109
Idem, p. 15.
110
Idem, p. 16.
63

de poder” induzidos pela “colocação do sexo no interior do discurso”. Tais efeitos são
produzidos pelo nosso modo de falar, de intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque
Foucault poderá explicar seu projeto da seguinte forma:

O ponto importante não consistirá em determinar se tais produções discursivas e


seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre o sexo ou, ao contrário,
a formular mentiras destinadas a ocultá-lo. Trata-se de expor a ‘vontade de saber’
que lhe serve, ao mesmo tempo, de suporte e de instrumento 111.

Ou seja, trata-se de mostrar quais efeitos de poder são derivados de certas modalidades
de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento silencioso de “técnicas
polimórficas de poder”. Não se trata assim de negar a repressão, mas de negar que sua
temática possa dar conta da maneira com que o poder sobre a vida age e produz. Trata-se de
levar a sério a constatação de que:

Desde o fim do século XVI, a “colocação em discurso” do sexo, longe de


submeter-se a um processo de restrição foi submetido, ao contrário, a um processo
de incitação crescente. As técnicas de poder que se exercem sobre o sexo não
obedeceram a um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário, a disseminação e
a implantação de sexualidades polimórficas. A vontade de saber não parou diante
de um tabu a ser respeitado, mas ela se animou a constituir uma ciência da
sexualidade112.

É da arqueologia desta estranha “ciência da sexualidade”, deste regime de discurso


que vê o sexual como objeto de uma ciência (e não necessariamente de uma ética, de um
conjunto de técnicas e de práticas etc.) que será questão na História da sexualidade.
Ao menos, esta era a idéia inicial. No entanto, a partir do segundo livro, algo
acontecerá e projeto será, em larga medida, abandonado. Na verdade, a dimensão crítica do
projeto dará lugar a uma reflexão de outra natureza. Foucault tinha a idéia de escrever, logo
em seguida ao primeiro volume, um livro sobre A carne e o corpo, onde seria questão do
modos de funcionamento da pastoral cristã e de sua culpabilização da carne.
No entanto, do primeiro volume aos dois seguintes passam-se oito anos (1976 a 1984).
Durante estes oito anos, Foucault não escreve livro algum, logo ele que, desde o lançamento
de História da loucura, em 1961 publica um livro a cada dois ou três anos. Este longo período
sem publicar indica uma profunda reformulação no projeto de Foucault. Hoje, temos mais
clareza desta reformulação graças à edição de seus curso no Collège de France. Neles, há de
fato uma ruptura que se dá por volta de 1980 com o curso intitulado “Subjetividade e
111
Idem, p. 20.
112
Idem, p. 21.
64

verdade”. Ruptura resultante da tentativa de Foucault em: “estudar os jogos de verdade na


relação de si a si e na constituição de si mesmo como sujeito, tomando por domínio de
referência e campo de investigação o que poderíamos chamar de ‘história do homem de
desejo’”113. Uma história que nos abrirá para modos distintos de experiência de desejo e
verdade.

A hipótese repressiva

No segundo capítulo de seu livro, Foucault sistematiza sua tese central. Ela consiste
em dizer que é falsa a compreensão de que, a partir do século XVII, aquilo que é da ordem do
sexual teria sido submetido a um regime estrito de censura e repressão. Na verdade, o que
vemos é uma “incitação institucional a falar sobre o sexo (...) sobre o modo da articulação
explícita e do detalhe indefinidamente acumulado”114.
Desde a pastoral católica com seus ritos de confissão, encontramos esta exigência de
tudo dizer sobre o sexual. Um dizer que se organiza sob o modo da revelação e do exame
minucioso de si tendo em vistas a associação da carne ao pecado. Assim, aparece esta
“injunção tão particular ao ocidente moderno”, a saber:

A tarefa, quase infinita de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a um outro,


tantas vezes quanto possível, tudo o que concerne o jogo dos prazeres, sensações e
pensamentos inumeráveis que, através da alma e do corpo, tem alguma afinidade
com o sexo. Este projeto de uma “colocação em discurso” do sexo foi formado, há
muito tempo, no interior de uma tradição ascética e monástica. O século XVII fez
dele uma regra para todos115.

Este imperativo de transformar seu desejo em discurso, de recusar a idéia de que o que
é da ordem do sexual possa ser acolhido por um silêncio indiferente é, para Foucault, a
verdadeira mola do poder. A pastoral católica fez com que todo o desejo devesse passar pelo
crivo da palavra. Mesmo libertinos, como Sade, seriam tributários deste projeto de fazer
coincidir, em uma coincidência sem falhas, desejo e palavra, a fala e o impulso: desejo de
tudo ver e saber.
No entanto, esta técnica permaneceria ligada ao destino da espiritualidade cristã ou da
economia dos prazeres individuais se ela não tivesse sido integrada, a partir do século XVIII,
a um verdadeiro mecanismo de: “incitação política, econômica, técnica” sobre o sexo. Não

113
FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, p. 13.
114
Idem, p. 27.
115
Idem, p. 29.
65

um mecanismo ligado diretamente à moralidade, mas um mecanismo técnico, portador de um


discurso que não é simplesmente aquele da tolerância ou da condenação, mas da gestão, do
fortalecimento da saúde pública:

O sexo, isso não se julga apenas, mas se administra (...) No século XVIII, o sexo
advém questão de ‘polícia’, mas no sentido pleno e forte que se dava então a esta
palavra – não apenas repressão da desordem, mas majoração ordenada das forças
coletivas e individuais (...) Polícia do sexo, ou seja, não o rigor de uma proibição,
mas a necessidade de regular o sexo através de discursos públicos e úteis 116.

Este é o ponto central. A modernidade conhece, entre outras coisas, um discurso sobre
o sexo enquanto setor de uma administração pública. Na verdade, apenas o ocidente
conhecerá esta idéia do sexo como objeto de uma ciência. Uma ciência que visa, por exemplo,
gerir as populações já que, no coração do problema político das populações encontra-se o
sexo. Se um país rico e forte era um país populoso, então algumas questões centrais de
administração pública serão: a análise da taxa de natalidade, a idade do casamento, os
nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais, o efeito
do celibato e das interdições, a incidência de práticas contraceptivas, entre outros. Pela
primeira vez, uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está ligado à maneira com
que cada um faz uso de seu sexo.
Por isto, Foucault se volta contra a idéia de que a sexualidade infantil teria esperado
Freud para ser reconhecida enquanto tal. Pois seria inexato dizer que a instituição pedagógica
teria imposto o silêncio a respeito da sexualidade das crianças e adolescentes. Ao contrário,
desde o século XVIII, ela multiplicou as formas de discurso a seu respeito, constituindo (e
este é o ponto central) uma codificação estrita de seus conteúdos e uma qualificação exclusiva
de seus interlocutores:

É bem provável que se tenha retirado dos adultos e crianças uma certa forma de
falar e que ela tenha sido desqualificada como grosseira, direta, cruel. Mas isto era
apenas a contrapartida e talvez a condição para o funcionamento de outros
discursos, múltiplos, entrecruzados, sutilmente hierarquizados e todos fortemente
articulados em torno de um feixe de relações de poder 117.

Esta transformação do sexo em objeto de uma pedagogia, mutação que acompanha sua
transformação em objeto de uma medicina, de uma economia e de uma reflexão jurídica: eis,
muito mais do que a “hipótese repressiva”, a verdadeira mola produtiva do poder. Isto explica

116
Idem, p. 35.
117
Idem, p. 42.
66

porque Foucault se vê obrigado a dizer que: “sobre o sexo, a mais insaciável, a mais
impaciente das sociedades é provavelmente a nossa”118. Uma impaciência que produziu a
multiplicação de discursos que não se submetem mais a um princípio comum, como ainda era
o caso da pastoral católica.
De toda forma, isto permite a Foucault colocar em questão este tema tão freqüente que
define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a ruptura de seu segredo poderia
abrir o caminho que nos leva à sua verdade. Na verdade, não seria o caso de dizer que a
sexualidade nada mais é do que um “efeito do discurso”, uma produção discursiva que nada
teria a ver com a liberação de alguma forma bruta de “energia libidinal” ou “força pulsional”?
Nossa experiência sexual, a maneira que constituímos objetos de nossos desejos, que nos
deixamos incitar por interdições e proibições não seria apenas a produção de um modo de
funcionamento dos discursos médicos, pedagógicos, jurídicos e econômicos? Maneira de
dizer que não há nada de natural no campo da sexualidade, não há nenhuma normatividade
vital operando no seu interior. Ela seria apenas a dimensão de uma normatividade social que
não se diz enquanto tal.
Isto nos permite compreender, entre outras coisas, como Foucault se transformou na
referência fundamental para a tradição das chamadas “teorias de gênero”: teorias que
procuram expor como sexo é uma produção social e discursiva que se naturaliza através de
identidades de gênero.

A perversão do discurso

Mas voltemos ao nosso livro. Se é verdade que a sexualidade seria o resultado de um


conjunto de dispositivos disciplinares que, através da incitação ao discurso, visavam constituir
uma normatividade social na relação do sujeito a seus corpos, seus prazeres e ao outro, então
como explicar este fenômeno, tão próprio ao século XIX, de atenção exaustiva às perversões?
Foucault lembra como os séculos XVIII e XIX serão marcados por um esforço de
classificação e taxionomia a respeito do que ainda hoje entendemos por perversões (ou
parafrenias). Ele insiste que as leis anteriores ao século XVIII legislavam sobre o lícito e o
ilícito tendo em vista, basicamente, as infrações às regras de aliança matrimonial. Por isto,
não haveria partilha clara entre as infrações a tais regras e os desvios em relação à
genitalidade. Adultério e sodomia, enganar sua mulher ou violar cadáveres, por exemplo, são
fenômenos colocados no mesmo plano.

118
Idem, p. 46.
67

Foi necessário um lento movimento para que tais desvios em relação à sexualidade
fossem constituídos como uma “contra-natureza” responsável por quadros clínicos como
“loucura moral”, “neurose genital”, “desquilíbrio psíquico” ou “degenerescência”. Lento
movimento onde a influência da religião dará lugar à gestão médica da saúde sexual.
Nesta contra-natureza, será alojada as formas do desvio, como se o poder fosse, ao
mesmo tempo, o processo de definição da norma e de definição das formas do desvio. Como
se as margens da norma fossem já uma produção interna ao funcionamento da disciplina. Pois
o poder age realmente não quando ele nos obriga à conformação à norma enunciada, mas
quando ele nos oferece, em um movimento quase silencioso, as figuras possíveis da
resistência. Ao descrever as perversões, o poder, como diz Foucault, acaricia os olhos,
estimula os corpos, dramatiza os movimentos, intensifica as regiões corporais. Ele implanta
novos modos de prazeres. Por isto, Foucault fala de um: “mecanismo de dupla impulsão” no
interior do qual poder e prazer se articulam na mesma enunciação. Poder que se deixa invadir
pelo prazer que ele, pretensamente, afasta.
Assim, as perversões não seriam a manifestação de uma polimorfia originária que
nunca se enquadraria totalmente nas exigências de uma sexualidade genital orientada à
reprodução. Na verdade, elas seriam o efeito de um jogo do poder. Quando Foucault afirma
que nossa sociedade moderna é perversa de uma maneira extremamente visível, trata-se de
lembrar o tipo de poder que ela faz funcionar sobre o corpo e o sexo. Poder que procede
através da multiplicação de sexualidades singulares, pela produção e fixação da “disparidade
sexual”. Por isto:
O crescimento das perversões não é um tema moralizador que teria obcecado os
espíritos escrupulosos dos vitorianos. Ela é o produto real da interferência de um
tipo de poder sobre os corpos e seus prazeres. É possível que o Ocidente não tenha
sido capaz de inventar prazeres novos e, sem dúvida, ele não descobriu vícios
inéditos. Mas ele definiu novas regras para o jogo dos poderes e prazeres: o rosto
petrificado das perversões nele se desenhou119.

119
Idem, p. 66
68

Erotismo, sexualidade e gênero


Aula 7

Na aula passada, iniciamos a leitura do primeiro volume de História da sexualidade.


Lembrei para vocês este projeto central na filosofia de Foucault deveria ser compreendido à
luz da questão referente à produtividade do poder, ou seja, ao problema da maneira com que
regimes de saber constituem práticas disciplinares capazes de definir nosso modo de relação a
nós mesmos e aos outros. Que este problema seja tematizado de maneira privilegiada quando
voltamos os olhos à sexualidade: eis algo que não deve nos surpreender. Pois se há algo que o
século XX produziu foi a crença de que o falar franco sobre o que é da ordem do sexual
implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como nos relacionamos mas, por
outro, transformar o que somos e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do
indivíduo moderno fazer a experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse
dispositivo fundamental de sua auto-determinação. Digamos claramente que seu
reconhecimento como sujeito passa necessariamente pela maneira que ele é capaz de
subjetivar uma sexualidade.
Lembrei ainda que a História da sexualidade podia ser vista, de uma certa forma,
como uma silenciosa arqueologia da psicanálise. Como dirá Alain Badiou: “De que Freud se
sente responsável quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente de ruptura no real do sexo,
para além mesmo da transgressão de alguns tabus morais ou religiosos? Tem a tremenda
convicção de ter tocado no sexo, no mesmo sentido que, depois de Vitor Hugo, se tocou no
verso?”120. As perguntas não poderiam ser mais claras. Trata-se de afirmar que, depois de
Freud, um novo regime relativo à palavra que fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de
falar que modifica profundamente nosso modo de ser, nosso modo de nos relacionarmos ao
desejo.
No entanto, vimos como Foucault participa, neste momento, de uma forte
desconfiança do pensamento francês contemporâneo a respeito da psicanálise e de sua
maneira de fazer o sexual falar. Esta fala sobre o sexual estaria fundada na temática da
repressão. Temática que nos permitira dizer haver uma força de ruptura vinda do desejo que
não encontraria lugar nos modos de reprodução social das sociedades capitalistas. Esta será a
hipótese a ser criticada por Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez não tenha existido
sociedade que mais falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:

120
BADIOU, Alain. O século, p. 112.
69

Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde mais de um século,


fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com prolixidade de seu próprio
silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela não diz, denuncia os poderes que ela
exerce e promete de se liberar de leis que a fazem funcionar 121.

De fato, estranha repressão esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a uma
fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo de que somos proibidos de falar e
detalhar. Trata-se de afirmar que a “análise crítica da repressão” é, no fundo, inseparável dos
“efeitos de poder” induzidos pela “colocação do sexo no interior do discurso”. Tais efeitos são
produzidos pelo nosso modo de falar, de intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque
Foucault poderá explicar seu projeto da seguinte forma:

O ponto importante não consistirá em determinar se tais produções discursivas e


seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre o sexo ou, ao contrário,
a formular mentiras destinadas a ocultá-lo. Trata-se de expor a ‘vontade de saber’
que lhe serve, ao mesmo tempo, de suporte e de instrumento 122.

Ou seja, trata-se de mostrar quais efeitos de poder são derivados de certas modalidades
de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento silencioso de “técnicas
polimórficas de poder”. Não se trata assim de negar a repressão, mas de negar que sua
temática possa dar conta da maneira com que o poder sobre a vida age e produz. Trata-se de
levar a sério a constatação de que:

Desde o fim do século XVI, a “colocação em discurso” do sexo, longe de


submeter-se a um processo de restrição foi submetida, ao contrário, a um processo
de incitação crescente. As técnicas de poder que se exercem sobre o sexo não
obedeceram um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário, a disseminação e a
implantação de sexualidades polimórficas. A vontade de saber não parou diante de
um tabu a ser respeitado, mas ela se animou a constituir uma ciência da
sexualidade123.

É da arqueologia desta estranha “ciência da sexualidade”, deste regime de discurso


que vê o sexual como objeto de uma ciência (e não necessariamente de uma ética, de um
conjunto de técnicas e de práticas etc.) que será questão na História da sexualidade. Na
verdade, apenas o ocidente conhecerá esta idéia do sexo como objeto de uma ciência. Uma
ciência que visa, por exemplo, gerir as populações já que, no coração do problema político
das populações encontra-se o sexo. Se um país rico e forte era um país populoso, então
algumas questões centrais de administração pública serão: a análise da taxa de natalidade, a
121
FOUCAULT, Histoire de la séxualité, p. 16.
122
Idem, p. 20.
123
Idem, p. 21.
70

idade do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das


relações sexuais, o efeito do celibato e das interdições, a incidência de práticas contraceptivas,
entre outros. Pela primeira vez, uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está ligado
à maneira com que cada um faz sexo. Esta transformação do sexo em objeto de uma
pedagogia, mutação que acompanha sua transformação em objeto de uma medicina, de uma
economia e de uma reflexão jurídica: eis, muito mais do que a “hipótese repressiva”, a
verdadeira mola produtiva do poder.
De toda forma, isto permite a Foucault colocar em questão este tema tão freqüente que
define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a ruptura de seu segredo poderia
abrir o caminho que nos leva à sua verdade. Na verdade, não seria o caso de dizer que a
sexualidade nada mais é do que um “efeito do discurso”, uma produção discursiva que nada
teria a ver com a liberação de alguma forma bruta de “energia libidinal” ou “força pulsional”?
Nossa experiência sexual, a maneira que constituímos objetos de nossos desejos, que nos
deixamos incitar por interdições e proibições não seria apenas a produção de um modo de
funcionamento dos discursos médicos, pedagógicos, jurídicos e econômicos? Maneira de
dizer que não há nada de natural no campo da sexualidade, não há nenhuma normatividade
vital operando no seu interior. Ela seria apenas a dimensão de uma normatividade social que
não se diz enquanto tal.

Uma ciência da sexualidade

Há historicamente dois procedimentos para produzir a verdade do sexo. De um


lado, as sociedades (e elas são numerosas: a China, o Japão, a índia, Roma, as
sociedades árabo-muçulmanas) que se dotaram de uma ars erótica. Na arte erótica,
a verdade é extraída do próprio prazer, tomado como prático e recolhido como
experiência. Não é em relação a uma lei absoluta do permitido e do proibido, não é
em absoluto por um critério de utilidade que o prazer é levado em conta (...) Nossa
civilização, ao menos sob um primeiro ponto de vista, não tem uma ars erótica. No
entanto, ele é a única a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, ao ter
desenvolvido no decorrer dos séculos procedimentos que se ordenam
essencialmente a uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das
iniciações e ao segredo magistral: trata-se da confissão 124.

Esta distinção entre arte erótica e ciência da sexualidade é central para Foucault. Ela
nos remete claramente a Georges Bataille, haja vista a maneira foucaultiana de lembrar que,
na arte erótica, desconhecemos relação: “a uma lei absoluta do permitido e do proibido, não é
em absoluto por um critério de utilidade que o prazer é levado em conta”. Sabemos como esta

124
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, p. 77-78.
71

crítica à lógica utilitarista no campo do erotismo vem de Bataille, assim como a compreensão
de uma dinâmica de interdição e transgressão que não se baseia no respeito absoluto a uma
lei. Como dissera na aula passada, tudo se passa como se Foucault procurasse desenvolver,
através do conceito de “sexualidade” o tipo de experiência sexual própria às sociedades dos
indivíduos e seu regime de fala.
Se, como vimos na aula passada, a ciência da sexualidade baseava-se em um modo de
falar sobre o sexo que encontra suas raízes no sacramento da confissão, nada disto será
encontrado fora do ocidente. Foucault chega a dizer que estamos diante de duas formas de
relação entre sexo e verdade: uma que privilegia a confissão (que Foucault define como
modelo jurídico-religioso, ou ainda, jurídico-discursivo de enunciação da verdade) e outra que
seria uma pedagogia da iniciação. Ou seja, o ocidente seria, entre outras coisas, uma maneira
peculiar de definir o sexual através da “expressão obrigatória e exaustiva de um segredo
individual”125. O que não poderia ser diferente já que, para Foucault, a razão moderna
ocidental é, antes de mais nada, uma forma disciplinar de poder baseada em uma estilística
disciplinar do fazer falar. “Diga-me como você fala e te direi como você se submete”. Por
isto, Foucault se pergunta: “Pode-se articular a produção da verdade segundo o velho modelo
jurídico-religioso da confissão e a extorsão da confidência segundo a regra do discurso
científico?”126. Na verdade, nossas sociedades não teriam feito outra coisa. Foucault chega a
descrever algumas características maiores da nossa ciência da sexualidade que permitiram tal
sobreposição.
Primeiro, a codificação clínica do “fazer falar” através do desenvolvimento de um
conjunto de signos e sintomas decifráveis (questionário, interrogatório, amanese, hipnose
etc.). Segundo, o postulado de uma causalidade geral e difusa, como se o sexo fosse dotado
de um poder causal inesgotável e polimórfico. “Não há praticamente doença ou problema
físico ao qual o século XIX não imaginou ao menos uma parte de etiologia sexual” 127.
Terceiro, o princípio de latência intrínseca à sexualidade, como se a sexualidade fosse
naturalmente dotada de uma clandestinidade, de uma obscuridade que faria de sua confissão
uma tarefa sempre difícil. Quarto, o método de interpretação, como se a confissão trouxesse
uma regra de decifragem que reforça o poder daquele que ouve a confissão. Por fim, a
medicalização dos efeitos da confissão. Este é um ponto fundamental pois:

125
Idem, p. 82.
126
Idem, p. 86.
127
Idem, p. 88.
72

O domínio do sexo não será mais colocado sob os registros da falta e do pecado, do
excesso ou da transgressão, mas sob o regime do normal e do patológico. Define-se
pela primeira vez uma morbidade própria ao sexual, o sexual aparece como um
campo de alta fragilidade patológica128.

O que temos, ao final deste processo, não é apenas um modelo de produção da relação
entre sexualidade e verdade. Para Foucault, este é um setor fundamental de uma “ciência do
sujeito”, já que a causalidade do sujeito, o inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito se
encontrará desdobrada no interior do discurso do sexo. De fato, depois da psicanálise, não há
teoria do sujeito sem que levemos em conta a clivagem que a experiência da sexualidade nos
impõe.
Mas voltemos à distinção entre ciência da sexualidade e arte erótica. Será pelas vias
da tematização desta arte erótica, em uma chave neste caso bastante diferente da sugerida por
Bataille, que os dois outros volumes da História da sexualidade caminhará. Para Foucault, a
função deste dois livros é clara: mostrar como há uma produção de si que obedece a uma
lógica distinta daquela em operação nas práticas disciplinares e na submissão a um modelo
jurídico de relação a si que aparece claramente, por exemplo, nas discussões morais sobre
autonomia. Discussões que determinam meu modo de ser a partir do respeito a normas
universais, categóricas e incondicionais transcendentalmente asseguradas. Como se esta
estratégia transcendental fosse um modo de produção de sujeitos.
A partir disto, Foucault organizará uma dicotomia entre o transcendental como modelo
jurídico de relação à si e o cuidado de si enquanto modo de relação do sujeito à verdade,
cuidado este que estará tematizado no terceiro volume da História da sexualidade sob a forma
da arte erótica greco-romana. O modelo jurídico do transcendental está presente, por exemplo,
nas temáticas da lei moral, do tribunal da razão, no regime de universalidade categórica, na
temática das condições normativas de possibilidade etc. Já o cuidado de si não teria parte com
tal modelo por ser composto por prescrições que não podem ser compreendidas se admitirmos
a dicotomia entre empírico e transcendental.
No cuidado de si, a força formadora do transcendental daria lugar a uma forma de
ajuste entre práticas sociais e “disposições naturais” singulares e que constituem, para um
sujeito, algo como uma dimensão de verdade. No entanto, os termos deste ajuste nunca são
completamente definidos por Foucault. Ele fala, em vários momentos, de uma: “intensificação
da relação à si através da qual alguém se constitui como sujeito de seus atos” 129, de uma forma

128
Idem, p. 90.
129
Histoire de la séxualité III, p. 57 .
73

“ ao mesmo tempo particular e intensa de atenção ao corpo” 130 ou ainda de “ soberania” do


indivíduo sobre si mesmo. “ Intensificação” porque o problema está ligado à força, à
moderação e à incontinência. Daí porque: “o excesso e a passividade são, para um homem, as
duas formas maiores da imoralidade na prática dos aphrodisia”131.
Nota-se que esta constituição soberana de si passa por um deslocamento do si mesmo,
da dimensão da autonomia individual à reconciliação com o corpo. De toda forma, tal
soberania precisaria ser melhor definida. Ela é compreendida como uma transformação que
não pode ser vista como resultado de procedimentos disciplinares. Daí a definição de tal
soberania como uma arte da existência composta por:

práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não apenas fixam para
si mesmos regras de conduta, mas procuram se transformar, modificar-se em seu
ser singular e a fazer de suas vidas uma obra que porta certos valores estéticos e
responde a certos critérios de estilo132.

Tal soberania, que levará Foucault a dizer que o homem mais real é rei de si mesmo,
implica capacidade de constituição de si como sujeito moral, mas esta moralidade não pode
ser compreendida sob o modelo da autonomia. Uma moral cujo assento deve ser pensado no
ajustamento ao código. Na verdade, tal soberania leva a uma moral orientada, não para o
código, mas para o ético. Assim, ao invés das interdições e fronteiras, a teríamos definições
das modalidades de uso dos prazeres que seria capaz de levar em conta as circunstâncias,
posição pessoal e ajuste. Note-se como a figura de uma certa “individualidade” é aqui
necessária.

O dispositivo da sexualidade

No capítulo central de seu livro, Foucault se propõe a falar do “dispositivo da


sexualidade”. Esta noção é central e explica claramente o que Foucault entende por
sexualidade. A propósito da noção de “dispositivo”, ele dirá:

Ce qui j’essaie de réperer sous ce nom (...) c’est premièrment un ensemble


résolument hétérogène, comportant des discours, des institutions, des
aménagements, d’architectures, des décisions réglementaires, des lois, des mésures
administratives, des énoncés scientifiques, des propos philosophiques, morales,
philatrophiques, bref : du dit aussi bien que du non dit, voilà les éléments du

130
Idem, p. 78.
131
Histoire de la séxualité II, p. 65.
132
Idem, p. 18.
74

dispositif. Le dispositif lui-même, c’est le réseau qu’on peut établir entre ces
éléments133.

Nós vemos como Foucault se serve da noção de dispositivo para definir o espaço da
normatividade social, para além das imposições dos enunciados. Um dispositivo é uma rede
heterogênea de normas sociais. Nada estranho para alguém, como Foucault, para quem a
sexualidade é simplesmente uma normatividade social, para quem não há normatividade vital
alguma que deva ser levada em conta na nossa compreensão da sexualidade. Neste sentido, o
conceito de dispositivo tem uma função maior: ela nos permite de pensar e tematizar aquilo
que muda, de uma época histórica a outra, no interior de nossa experiência da sexualidade.
Ele nos libera, por exemplo, de procurar alguma forma de “instinto sexual” imutável, impulso
natural que apareceria como uma espécie de substância primeira a fundar uma normatividade
vital no interior do corpo.
No entanto, talvez a noção de dispositivo não nos permita pensar de maneira adequada
exatamente aquilo que teria a estranha força de permanecer invariável no sexual, aquilo que,
como dizia Lacan, tende a voltar sempre ao mesmo lugar. Para Foucault, assumir algo desta
natureza nos obrigaria a assumir alguma forma de normatividade vital em operação na
sexualidade, algo que, como vimos, o filósofo francês deve recusar expressamente. Ele deve
recusar a idéia de que, talvez, aquilo que nomeamos “sexualidade” é uma estranha articulação
entre normatividade vital e normatividade social.
Mas se voltarmos à reflexão sobre o dispositivo da sexualidade, veremos como
Foucault insiste que sua análise continua fundada, de maneira equivocada, nas temáticas
próprias ao poder soberano. Por isto, ele precisa afirmar que nossa representação do poder
continua assombrada pela monarquia jurídica. Daí a importância dada aos problemas do poder
e da violência, da lei e da ilegalidade, da vontade e da liberdade. No entanto, há séculos
entramos: “em um tipo de sociedade na qual o jurídico pode, cada vez menos, codificar o
poder ou lhe servir de sistema de representação”134. Daí a necessidade de uma analítica do
poder que não tome mais o direito por modelo, mas o dispositivo. Só assim Foucault
encontrará o campo para afirmar:

Por poder, parece-me que devemos inicialmente compreender a multiplicidade de


relações de força que são imanentes ao domínio no qual elas se exercem, e que são
constitutivas de sua organização; o jogo que pela via das lutas e afrontamentos lhes
transformam, reforçam, invertem; os apoios que tais relações de força encontram
umas nas outras de maneira a formar cadeia ou sistema ou, ao contrário, as
133
FOUCAULT, Michel. Le jeu de Michel Foucault.
134
Histoire de la séxualité I, p. 118.
75

defasagens, as contradições que isolam umas das outras; a estratégias enfim nas
quais elas encontram efeito e cujo desenho geral ou cristalização institucional toma
corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, na hegemonia social 135.

Esta idéia de poder é onipresente não porque ela tudo engloba em uma unidade, mas
porque ela vem de todos os lugares. Ela não depende de uma intencionalidade consciente para
funcionar, ela não resulta de decisões e escolhas de um sujeito individual. Se ele vem de todos
os lugares, é fácil perceber também que a noção mesma de resistência é um movimento
interno ao poder. O próprio poder só pode existir em função de uma multiplicidade de pontos
de resistência. Como se a ausência de unidade do poder nos permitisse pensar um movimento
que está, a todo momento, prestes a inverter seus sinais, prestes a produzir outras dinâmicas.
Como se a disciplina e seus dispositivos apenas no limite pudessem garantir sua eficácia.
Como se estivéssemos diante de : “um campo múltiplo e móvel de relações de força no qual
se produzem efeitos globais de dominação, mas jamais totalmente estáveis”136.
Assim, a sexualidade poderá aparecer como um ponto de passagem particularmente
denso para as relações de poder entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, pais e filhos,
educadores e alunos, administradores e população. Ela se desenvolve no momento em que o
dispositivo de aliança, com seus sistema de casamento e de transmissão, perde importância
por servir mais de suporte suficiente para os processos econômicos e as estruturas políticas. O
dispositivo de aliança funcionaria a partir de regras estritas, já o dispositivo de sexualidade
conheceria técnicas móveis e conjunturais. Tal dispositivo de aliança nunca será ultrapassado
completamente, mas ele funcionará a partir de novas dinâmicas. Daí a transformação da
família em espaço de constituição da sexualidade e de seus jogos. Transformação tão presente
na psicanálise e suas noções ligadas ao complexo de Édipo.
Foucault chega a descrever quatro grandes dispositivos que, a partir do século XVIII
se constituirão como eixos desta relação de poder no interior da sexualidade: a) a histerização
do corpo feminino, b) a pedagogização do sexo infantil, c) a socialização das condutas de
procriação e d) a psiquiatrização dos prazeres perversos. Nestes quatro casos, tratam-se de
formas de produção da sexualidade seja através da definição do feminino, da criança, da
norma e do desvio.

Weber e Foucault

135
Idem, p. 122.
136
Idem, p. 135.
76

Aqui, podemos sentir a peculiaridade da posição de Foucault. Por exemplo, Max


Weber, ao insistir que a racionalidade econômica dependia fundamentalmente da disposição
dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta, lembrava que nunca haveria capitalismo sem a
internalização psíquica de uma ética protestante do trabalho e da convicção, estranha ao
cálculo utilitarista e cuja gênese deve ser procurada no calvinismo. Ética esta que Weber
encontrou no ethos protestante da acumulação de capital e do afastamento de todo gozo
espontâneo da vida. O trabalho que marcava o capitalismo como sociedade de produção era
um trabalho que não visava exatamente o gozo do serviço dos bens, mas a acumulação
obsessiva daqueles que: “não retiram nada de sua riqueza para si mesmo, a não ser a sensação
irracional de haver ‘cumprido’ devidamente a sua tarefa”137. Weber chega a falar em uma
“sanção psicológica” (p. 102) produzida pela pressão ética e satisfeita através da realização de
um trabalho como fim em si, ascético e marcado pela renúncia ao gozo. O que o leva a insistir
que: “O summum bonum desta ‘ética’, a obtenção de mais e mais dinheiro, combinada com o
estrito afastamento do todo gozo espontâneo da vida é, acima de tudo, completamente
destituída de qualquer caráter eudemonista ou mesmo hedonista” 138. A irracionalidade deste
processo de racionalização do trabalho, ao menos a partir de uma lógica eudemonista ou
hedonista, pode nos indicar como toda socialização é normativa, ela é normatividade que se
impõe à vida com suas exigências de satisfação pulsional. Max Weber não havia mostrado
outra coisa ao insistir que a gênese da ética protestante do trabalho na constituição da
racionalidade do capitalismo era solidária do ascetismo e da restrição ao gozo.
No entanto, conhecemos várias críticas à plausibilidade desta “hipótese repressiva”,
sendo que uma das principais vem de Michel Foucault. Em História da sexualidade, Foucault
não deixa de criticar este vínculo entre ascetismo e consolidação da sociedade capitalista de
produção. Ele insiste que as tecnologias de si próprias ao mundo burguês moderno não podem
ser compreendidas como simples dispositivos repressivos montados contra um corpo libidinal
metafisicamente pressuposto, substrato natural que apareceria como base para as operações do
poder. Ao contrário, deveríamos: “abandonar o energitismo difuso que sustenta o tema de
uma sexualidade reprimida por razões econômicas”139. Só assim poderíamos compreender que
a modernidade foi um longo processo de constituição (e não de repressão) da sexualidade,
implementação de um poder disciplinar que constituiu tanto mecanismos de incitação a
modos de investimento libidinal reconhecidos socialmente quanto figuras de resistência; já
que o verdadeiro poder não se funda apenas em operações de gestão coercitiva de padrões
137
WEBER, 2001, p. 56.
138
Idem, p. 42.
139
FOUCAULT, 1976, p. 151.
77

normativos de conformação, mas, principalmente, na produção dos próprios modos de


resistência à “dominação”. Foucault quer liberar a reflexão do poder de temáticas vinculadas à
opressão, isto a fim de permitir a melhor compreensão do caráter criador de um poder que
engendra, um bio-poder que incita modos de investimento libidinal, assim como modos de
conflito.
Tendo isto em vista, Foucault pode dizer, por exemplo, que os processos de
entificação do ascetismo e da desqualificação da carne analisados por Max Weber eram
inicialmente, na verdade, técnicas de: “intensificação do corpo, de problematização da saúde e
das suas condições de funcionamento” 140. Maneira de assegurar a longevidade e a não-
corrupção da descendência. Contra estas práticas disciplinares que constituem a sexualidade
não se trataria de consolidar críticas aos processos de interversão das expectativas de
racionalidade em regimes de dominação de si. A verdadeira crítica consistiria em, de uma
forma ou de outra, “desativar” os dispositivos de sexualidade, cortando o vínculo tacitamente
aceito entre sexo e lugar da verdade, suspendendo a economia libidinal alimentada por
processos disciplinares.
No entanto, há duas considerações a fazer a respeito desta perspectiva de Foucault.
Primeiro, uma análise psicanaliticamente orientada não teria maiores dificuldades em aceitar a
temática de um bio-poder que engendra dispositivos de sexualidade. Lembremos que o
problema maior levantado por Freud a respeito dos modos de internalização da Lei através do
supereu consiste exatamente em mostrar como dinâmicas de repressão se transformam em
modo neurótico de satisfação, mostrar como aquilo que nos adoece é fonte de gozo. Neste
sentido, a hipótese repressiva é apenas a descrição de um modo de internalização de práticas
disciplinares.
Mas é fato que a temática da “repressão” nos leva á pressuposição de um corpo
libidinal “naturalizado”, isto no sentido de não ser totalmente redutível à condição de efeito da
ordem do discurso. Não há porque negar este ponto, assim como não há porque negar sua
importância em temáticas, como a adorniana, de interversão da razão em procedimento de
dominação da “natureza interna”. Melhor seria mostrar como o próprio Foucault é muitas
vezes obrigado a retomar um substrato corporal para além da esfera da ordem do discurso,
isto a fim de sustentar procedimentos de crítica ao poder141. Ou seja, melhor seria mostrar
como não é fácil se livrar da “hipótese repressiva”.

140
Idem, 2001, p. 162.
141
Judith Butler percebeu claramente esta ambigüidade de Foucault, principalmente em um pequeno texto
dedicado ao caso de uma hermafrodita, Herculine Barbin, que é descrita como vivendo no “limbo feliz da não-
identidade” (Ver Butler, 1999).
78
79

Erotismo, sexualidade e gênero


Aula 8

Na aula passada, vimos algumas questões gerais a respeito da noção foucaultiana de


bio-política, bio-poder e de genealogia do poder. Vimos como tais noções fundamentais
podiam ser compreendidas como o resultado de um deslocamento. Para Foucault, a crítica da
razão moderna, objeto maior da arqueologia do saber, é indissociável de uma crítica profunda
àquela categoria que lhe serve de fundamento, a saber, o conceito de sujeito. Podemos dizer
que, no interior desta crítica, encontramos em Foucault duas temáticas que se articulam
profundamente.
A primeira destas temáticas referia-se ao diagnóstico do esgotamento da filosofia da
consciência, com seu modelo de fundamentação das operações cognitivas de categorização e
constituição de objetos da experiência a partir da estrutura formal de síntese, unidade e
identidade inicialmente acessível através da auto-afecção da consciência-de-si. Como se a
cognição fosse, necessariamente, indissociável da projeção da estrutura da consciência sobre o
mundo dos objetos.
Mas a este esgotamento da filosofia da consciência, o pensamento francês
contemporâneo em geral, e Foucault em particular, procurou contrapor a necessidade de uma
reflexão demorada sobre o inconsciente. Pois este esgotamento da filosofia da consciência foi
feito, normalmente, graças à insistência no caráter determinante, para a estruturação das
formas do pensar, de uma dimensão propriamente inconsciente. Daí esta maneira própria a
Foucault de procurar expor: “na dimensão própria do inconsciente, as normas, regras,
conjuntos significantes que desvelam à consciências as condições de suas formas e de suas
condutas”142. Como se houvesse uma articulação profunda entre inconsciente e
transcendental.
A segunda temática que não cansará de retornar no interior da crítica do sujeito no
pensamento francês contemporâneo será a necessidade de impedir a perpetuação de daquilo
que um dia Foucault chamou de sono antropológico. Deste sono antropológico só
acordaríamos através daquilo foi sintetizado por Michel Foucault através da temática da
“morte do homem”. Mas um pouco como o ser em Aristóteles, a morte do homem se diz de
muitas maneiras. Gostaria de me concentrar em apenas uma. Trata-se de discutir a maneira
com que tudo se passava como se uma certa figura antropológica do homem servisse de
fundamento silencioso para a configuração de formas de pensar que aspiram validade

142
FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
80

incondicional e universal. Como se não houvesse reflexão sobre a estruturação da forma do


pensamento que não devesse seu direcionamento a uma certa antropologia. Mas o que isto
quer realmente dizer?
Sabemos o quanto Foucault insistiu que: “o homem é uma invenção cuja arqueologia
de nosso pensamento mostra facilmente a data recente” 143. Mas devemos lembrar que, se o
homem nasce juntamente com uma era histórica determinada por um modo de pensar è
porque ele é, fundamentalmente, uma forma de pensar. Entendamos isto da seguinte forma:
podemos começar afirmando que o homem seria aquele que reduz sua realidade subjetiva à
figura ideal do Eu do sujeito maduro, que saiu das amarras da inconsistência da infância, que
não se deixou encantar pela alteridade da loucura com sua alienação da vontade. Esta
verdadeira redução egológica presente na constituição da categoria de “homem” traz, no seu
bojo, a entificação dos atributos próprios ao Eu. Isto fica claro se aceitarmos que o Eu
enquanto princípio formal de unidade sintética pressupõe a elevação do princípio de
identidade e de não-contradição à condição de postulados que terão peso ontológico.
Enquanto sede da autonomia da vontade, o Eu pressupõe a crença em estratégias de
constituição transcendental de objetos da experiência. Enquanto cerne de uma experiência
ligada à analítica da finitude indicaria um modo específico de limitação do campo da
experiência e de distância em relação ao que é apeiron, sem medida, radicalmente Outro ou,
como dirá Foucault, “impensado”. Estes procedimentos articulados conjuntamente produzem
aquilo que um dia Deleuze chamou de imagem do pensamento, maneira que o pensamento
tem de constituir objetos e processos que apenas reiterarão as regras gramaticais que ele
naturalmente aceita como pressuposto não questionável, que apenas naturalizarão um senso
comum144.
Coloquemos então uma hipótese. Se, por um lado, encontramos no projeto
foucauldiano de uma arqueologia do saber o reconhecimento da profunda articulação entre a
noção de inconsciente e a categoria do transcendental, peça maior para a reflexão sobre o
esgotamento da filosofia da consciência, veremos também uma crença, várias vezes presentes,
de que, até então, a reflexão sobre o transcendental e suas formas teria sido contaminada pela
sua dependência da antropologia, por “uma confusão entre o empírico e o transcendental”
através da qual “a análise pré-crítica do que é o homem na sua essência advém a analítica de
tudo o que pode se dar em geral à experiência humana” 145. Livrando o espaço do que

143
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 398
144
Sobre a noção de “imagem do pensamento” em Deleuze ver, sobretudo, DELEUZE, Gilles; Proust et les
signes, Paris: PUF, 2006, pp. 115-127
145
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 352
81

determina a validade de nossas formas de agir e de pensar (o transcendental) de sua


colonização por uma antropologia cuja gênese ainda não estava totalmente clara para
Foucault, não poderíamos, com isto, encontrar o caminho para a reconstrução de um conceito
positivo de razão?
Digamos que esta é a questão central de Foucault a partir dos anos setenta. Sua
reflexão sobre o poder está diretamente associada à maneira de acordar deste sono
antropológico. Pois, para Foucault, pensar sobre o poder é necessariamente pensar sobre
processos de constituição e de produção do que nós nos tornamos, do modelo de homem que
somos. Produção de tal ordem que Foucault não temerá vê-la em operação no sujeito do
conhecimento e no objeto a conhecer, isto a ponto de afirmar que: “não há relação de poder
sem constituição correlativa de um campo de saber, nem saber que não suponha e não
constitua, ao mesmo tempo, relações de poder”146. Este caráter produtivo do poder será o
grande tema do primeiro volume da História da sexualidade.

A produção da sexualidade

Que o problema da produtividade do poder, o problema da maneira com que regimes


de saber constituem práticas disciplinares capazes de definir nosso modo de relação a nós
mesmos e aos outros, seja tematizado de maneira privilegiada quando voltamos os olhos à
sexualidade: eis algo que não deve nos surpreender. Pois se há algo que o século XX produziu
foi a crença de que o falar franco sobre o que é da ordem do sexual implicaria, por um lado,
lançar luz sobre o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que
somos e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a
experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de
sua auto-determinação. Digamos claramente que seu reconhecimento como sujeito passa
necessariamente pela maneira que ele é capaz de subjetivar uma sexualidade.
Neste sentido, é inegável que a força do pensamento de Freud e da psicanálise se faz
sentir. Foucault sabe disto, tanto que sua História da sexualidade pode ser vista, de uma certa
forma, como uma silenciosa arqueologia da psicanálise. Como dirá Alain Badiou: “De que
Freud se sente responsável quanto à sexualidade? Ele pensa ser o agente de ruptura no real do
sexo, para além mesmo da transgressão de alguns tabus morais ou religiosos? Tem a tremenda
convicção de ter tocado no sexo, no mesmo sentido que, depois de Vitor Hugo, se tocou no
verso?”147. As perguntas não poderiam ser mais claras. Trata-se de afirmar que, depois de
146
Idem, Surveiller et punir, p. 36
147
BADIOU, Alain. O século, p. 112.
82

Freud, um novo regime relativo à palavra que fala do sexual ganha hegemonia. Um modo de
falar que modifica profundamente nosso modo de ser, nosso modo de nos relacionarmos ao
desejo.
No entanto, Foucault participa, neste momento, de uma forte desconfiança do
pensamento francês contemporâneo a respeito da psicanálise e de sua maneira de fazer o
sexual falar. Contrariamente àquilo que vimos em As palavras e as coisas, a posição da
psicanálise no interior da episteme moderna mudará. Neste livro, Foucault ainda afirmava:

Em relação às “ciências humanas”, a psicanálise e a etnologia são “contra-


ciências”; o que não quer dizer que elas são menos “racionais” ou “objetivas” que
as outras, mas que elas as pegam na contra-corrente, retirando-as de seu pedestal
epistemológico, e que elas não cessam de “desfazer” este homem que, nas ciências
humanas, faz e desfaz sua positividade148.

Agora, em História da sexualidade, a psicanálise aparecerá, mesmo sem ser


diretamente nomeada, como este saber que nos coloca diante de uma hipótese equivocada e de
uma ilusão de liberdade descrita por Foucault da seguinte forma:

Se o sexo é reprimido, ou seja, votado à proibição, à inexistência e ao mutismo


[como a psicanálise nos faria acreditar que ele era antes de seu aparecimento], o
simples fato de falar dele e de falar de sua repressão tem um ar de transgressão
deliberada. Quem sustenta esta linguagem se coloca, até um certo ponto, fora do
poder; ele faz a ler tremer; ele antecipa, mesmo que apenas um pouco, a liberdade
futura. Daí esta solenidade com a qual hoje se fala do sexo 149.

Uma solenidade que só se explicaria devido à existência, em nossa época: “de um


discurso no qual o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um
outro dia e a promessa de uma certa felicidade estão ligados”150. Discurso este que aparece na
linha direta da reflexão psicanalítica sobre os modos de repressão da sexualidade.
Mas, antes de continuar, sublinhemos a importância desta articulação com a
psicanálise. O recurso filosófico à psicanálise é uma constante no interior do pensamento
francês contemporâneo, isto ao menos desde a fenomenologia de Sartre e de Merleau-Ponty.
Basta lembrar a maneira com que Sartre, após uma crítica conhecida à pretensa inconsistência
da noção freudiana de um inconsciente pensado principalmente a partir das operações de
recalcamento, termina O ser e o nada exatamente através da proposição de uma psicanálise

148
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 391.
149
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, p. 13.
150
Idem, p. 15.
83

existencial. Podemos citar ainda a maneira com que Merleau-Ponty propõe, em seu O visível
e o invisível, fazer não uma psicanálise existencial, mas uma psicanálise ontológica.
Após a fenomenologia, a psicanálise será peça maior dos debates em torno do
estruturalismo graças a Lacan. Lévi-Strauss havia desenvolvido uma noção de inconsciente
estrutural fundamental para o psicanalista francês. Desta conjunção entre antropologia e
psicanálise, sairá um programa influente de pesquisa que alcançará Foucault e Althusser. Por
fim, um dado comum aos autores maiores do dito pós-estruturalismo (Foucault, Deleuze,
Derrida e Lyotard) é exatamente o recurso constante a temáticas e problemas advindos da
experiência psicanalítica.
Mas se voltarmos à Foucault, devemos nos perguntar: quais são as causas desta
modificação brutal de perspectiva em relação à psicanálise? Uma resposta possível concerne o
impacto filosófico de maio de 68 e a influência de O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari. O
anti-Édipo acabou conhecido com o livro que mais claramente sustentou as aspirações
libertárias globais que animaram a revolta de 68. Tais aspirações foram patrocinadas em larga
medida pela recuperação de uma crítica às instituições que se voltou necessiramente contra a
maneira com que a psicanálise seria dependente da inscrição do desejo no interior das regras
do núcleo familiar, da perpetuação de estruturas normativas burguesas de socialização que
seriam os verdadeiros núcleos de reprodução do capitalismo como forma de vida. Neste
sentido, o título do livro já expõe seu projeto “O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia”. Ou
seja, a crítica dos modos de socialização do desejo e de constituição de individualidades
baseados no complexo de Édipo forneceria a chave interpretativa para esta relação decisiva de
conjunção entre “capitalismo” e “esquizofrenia”.
Focault, que chegará a escrever um prefácio para a versão em inglês de O anti-Édipo,
reconhece sua proximidade com tal empreitada, já que se trata (e aqui ele fala de sua
proximidade com o livro de Deleuze e Guattari) de “fazer aparecer aquilo que, na história de
nossa cultura, continuou até agora como o mais escondido, o mais oculto, o mais
profundamente investido: as relações de poder”151. A psicanálise será, a partir de então,
inquirida tendo em vista a produtividade de seu poder em conformidade com outros
dispositivos disciplinares das sociedades capitalistas ocidentais. Não só o complexo de Édipo
será objeto deste inquérito (como vemos no texto A verdade e as formas jurídicas). Também a
transferência, dispositivo central da clínica analítica, será questionada a partir de sua
proximidade com a confissão (ver O poder psiquiátrico).

151
FOUCAULT, Dits et écrist I, p. 1422.
84

E é exatamente deste movimento que se tratará na História da sexualidade, a saber, de


mostrar como um modo de falar sobre o sexo, que procura se passar por um saber, esconde as
engrenagens de um certo poder produtivo. Exposição que, como Foucault reconhece em O
anti-Édipo, deverá dar lugar a uma ética, a um modo de ser do desejo.
No entanto, há aqui uma grande diferença de Foucault em relação à perspectiva de
Deleuze e de Guattari. Um leitura de O anti-Édipo demonstra, rapidamente, como a temática
da repressão da sexualidade está a todo momento presente. Há uma força de ruptura vinda do
desejo que não encontra lugar nos modos de reprodução social das sociedades capitalistas.
Esta será a hipótese a ser criticada por Foucault. Pois, lembrará Foucault, talvez não tenha
existido sociedade que mais falou sobre sexo do que a nossa. Por isto:

Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde mais de um século,


fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com prolixidade de seu próprio
silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela não diz, denuncia os poderes que ela
exerce e promete de liberar-se de leis que a fazem funcionar 152.

De fato, estranha repressão esta que, ao invés de nos levar ao silêncio, nos leva a uma
fala cada vez mais extensa e detalhada sobre aquilo que somos proibidos de falar e detalhar.
Trata-se de afirmar que a “análise crítica da repressão” é, no fundo, inseparável dos “efeitos
de poder” induzidos pela “colocação do sexo no interior do discurso”. Tais efeitos são
produzidos pelo nosso modo de falar, de intensificar, de ficar atento, de incitar. Daí porque
Foucault poderá explicar seu projeto da seguinte forma:

O ponto importante não consistirá em determinar se tais produções discursivas e


seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre o sexo ou, ao contrário,
a formular mentiras destinadas a ocultá-lo. Trata-se de expor a ‘vontade de saber’
que lhe serve, ao mesmo tempo, de suporte e de instrumento 153.

Ou seja, trata-se de mostrar quais efeitos de poder são derivados de certas modalidades
de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento silencioso de “técnicas
polimórficas de poder”Não se trata assim de negar a repressão, mas de negar que sua temática
possa dar conta da maneira com que o poder sobre a vida age e produz. Trata-se de levar a
sério a constatação de que:

Desde o fim do século XVI, a “colocação em discurso” do sexo, longe de


submeter-se a um processo de restrição foi submetido, ao contrário, a um processo
152
Idem, p. 16.
153
Idem, p. 20.
85

de incitação crescente. As técnicas de poder se exercem sobre o sexo não


obedeceram um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário, a disseminação e a
implantação de sexualidades polimórficas. A vontade de saber não parou diante de
um tabu a ser respeitado, mas ela se animou a constituir uma ciência da
sexualidade154.

É da arqueologia desta estranha “ciência da sexualidade”, deste regime de discurso


que vê o sexual como objeto de uma ciência (e não necessariamente de uma ética, de um
conjunto de técnicas e de práticas etc.) que será questão na História da sexualidade.
Ao menos, esta era a idéia inicial. No entanto, a partir do segundo livro, algo
acontecerá e projeto será, em larga medida, abandonado. Na verdade, a dimensão crítica do
projeto dará lugar a uma reflexão de outra natureza. Foucault tinha a idéia de escrever, logo
em seguida ao primeiro volume, um livro sobre A carne e o corpo, onde seria questão do
modos de funcionamento da pastoral cristã e de sua culpabilização da carne.
No entanto, do primeiro volume aos dois seguintes passam-se oito anos (1976 a 1984).
Durante estes oito anos, Foucault não escreve livro algum, logo ele que, desde o lançamento
de História da loucura, em 1961 publica um livro a cada dois ou três anos. Este longo período
sem publicar indica uma profunda reformulação no projeto de Foucault. Hoje, temos mais
clareza desta reformulação graças à edição de seus curso no Collège de France.. Neles, há de
fato uma ruptura que se dá por volta de 1980 com o curso intitulado “Subjetividade e
verdade”. Ruptura resultante da tentativa de Foucault em: “estudar os jogos de verdade na
relação de si a si e na constituição de si mesmo como sujeito, tomando por domínio de
referência e campo de investigação o que poderíamos chamar de ‘história do homem de
desejo’”155. Uma história que nos abrirá para modos distintos de experiência de desejo e
verdade.

A hipótese repressiva

No segundo capítulo de seu livro, Foucault sistematiza sua tese central. Ela consiste
em dizer que é falsa a compreensão de que, a partir do século XVII, aquilo que é da ordem do
sexual teria sido submetido a um regime estrito de censura e repressão. Na verdade, o que
vemos é uma “incitação institucional a falar sobre o sexo (...) sobre o modo da articulação
explícita e do detalhe indefinidamente acumulado”156.

154
Idem, p. 21.
155
FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, p. 13.
156
Idem, p. 27.
86

Desde a pastoral católica com seus ritos de confissão, encontramos esta exigência de
tudo dizer sobre o sexual. Um dizer que se organiza sob o modo da revelação e do exame
minucioso de si tendo em vistas a associação da carne ao pecado. Assim, aparece esta
“injunção tão particular ao ocidente moderno”, a saber:

A tarefa, quase infinita de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a um outro,


tantas vezes quanto possível, tudo o que concerne o jogo dos prazeres, sensações e
pensamentos inumeráveis que, através a alma e o corpo, tem alguma afinidade com
o sexo. Este projeto de uma “colocação em discurso” do sexo foi formado, há
muito tempo, no interior de uma tradição ascética e monástica. O século XVII fez
dele uma regra para todos157.

Este imperativo de transformar seu desejo em discurso, de recusar a idéia de que o que
é da ordem do sexual possa ser acolhido por um silêncio indiferente é, para Foucault, a
verdadeira mola do poder. A pastoral católica fez com que todo o desejo devesse passar pelo
crivo da palavra. Mesmo libertinos, como Sade, seriam tributários deste projeto de fazer
coincidir, em uma coincidência sem falhas, desejo e palavra, a fala e o impulso: desejo de
tudo ver e saber.
No entanto, esta técnica permaneceria ligada ao destino da espiritualidade cristã ou da
economia dos prazeres individuais se ela não tivesse sido integrada, a partir do século XVIII,
a um verdadeiro mecanismo de: “incitação política, econômica, técnica” sobre o sexo. Não
um mecanismo ligado diretamente à moralidade, mas um mecanismo técnico, portador de um
discurso que não é simplesmente aquele da tolerância ou da condenação, mas da gestão, do
fortalecimento da saúde pública:

O sexo, isso não se julga apenas, mas se administra (...) No século XVIII, o sexo
advém questão de ‘polícia’, mas no sentido pleno e forte que se dava então a esta
palavra – não apenas repressão da desordem, mas majoração ordenada das forças
coletivas e individuais (...) Polícia do sexo, ou seja, não o rigor de uma proibição,
mas a necessidade de regular o sexo através de discursos públicos e úteis 158.

Este é o ponto central. A modernidade conhece, entre outras coisas, um discurso sobre
o sexo enquanto setor de uma administração pública. Na verdade, apenas o ocidente
conhecerá esta idéia do sexo como objeto de uma ciência. Uma ciência que visa, por exemplo,
gerir as populações já que, no coração do problema político das populações encontra-se o
sexo. Se um país rico e forte era um país populoso, então algumas questões centrais de
administração pública serão: a análise da taxa de natalidade, a idade do casamento, os
157
Idem, p. 29.
158
Idem, p. 35.
87

nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais, o efeito


do celibato e das interdições, a incidência de práticas contraceptivas, entre outros. Pela
primeira vez, uma sociedade reconhece que seu futuro e fortuna está ligado à maneira com
que cada um faz uso de seu sexo.
Por isto, Foucault se volta contra a idéia de que a sexualidade infantil teria esperado
Freud para ser reconhecida enquanto tal. Pois seria inexato dizer que a instituição pedagógica
teria imposto o silêncio a respeito da sexualidade das crianças e adolescentes. Ao contrário,
desde o século XVIII, ela multiplicou as formas de discurso a seu respeito, constituindo (e
este é o ponto central) uma codificação estrita de seus conteúdos e uma qualificação exclusiva
de seus interlocutores:

É bem provável que se tenha retirado dos adultos e crianças uma certa forma de
falar e que ela tenha sido desqualificada como grosseira, direta, cruel. Mas isto era
apenas a contrapartida e talvez a condição para o funcionamento de outros
discursos, múltiplos, entrecruzados, sutilmente hierarquizados e todos fortemente
articulados em torno de um feixe de relações de poder 159.

Esta transformação do sexo em objeto de uma pedagogia, mutação que acompanha sua
transformação em objeto de uma medicina, de uma economia e de uma reflexão jurídica: eis,
muito mais do que a “hipótese repressiva”, a verdadeira mola produtiva do poder. Isto explica
porque Foucault se vê obrigado a dizer que: “sobre o sexo, a mais insaciável, a mais
impaciente das sociedades é provavelmente a nossa”160. Uma impaciência que produziu a
multiplicação de discursos que não se submetem mais a um princípio comum, como ainda era
o caso da pastoral católica.
De toda forma, isto permite a Foucault colocar em questão este tema tão freqüente que
define o sexo como o que está fora do discurso e que apenas a ruptura de seu segredo poderia
abrir o caminho que nos leva à sua verdade. Na verdade, não seria o caso de dizer que a
sexualidade nada mais é do que um “efeito do discurso”, uma produção discursiva que nada
teria a ver com a liberação de alguma forma bruta de “energia libidinal” ou “força pulsional”?
Nossa experiência sexual, a maneira que constituímos objetos de nossos desejos, que nos
deixamos incitar por interdições e proibições não seria apenas a produção de um modo de
funcionamento dos discursos médicos, pedagógicos, jurídicos e econômicos? Maneira de
dizer que não há nada de natural no campo da sexualidade, não há nenhuma normatividade

159
Idem, p. 42.
160
Idem, p. 46.
88

vital operando no seu interior. Ela seria apenas a dimensão de uma normatividade social que
não se diz enquanto tal.
Isto nos permite compreender, entre outras coisas, Foucault se transformou na
referência fundamental para a tradição das chamadas “teorias de gênero”: teorias que
procuram expor como sexo é uma produção social e discursiva que procura se naturalizar
através de identidades de gênero.

A perversão do discurso

Mas voltemos ao nosso livro. Se é verdade que a sexualidade seria o resultado de um


conjunto de dispositivos disciplinares que, através da incitação ao discurso, visavam constituir
uma normatividade social na relação do sujeito a seus corpos, seus prazeres e ao outro, então
como explicar este fenômeno, tão próprio ao século XIX, de atenção exaustiva às perversões?
Foucault lembra como os séculos XVIII e XIX serão marcados por um esforço de
classificação e taxionomia a respeito do que ainda hoje entendemos por perversões (ou
parafrenias). Ele insiste que as leis anteriores ao século XVIII legislavam sobre o lícito e o
ilícito tendo em vista, basicamente, as infrações às regras de aliança matrimonial. Por isto,
não haveria partilha clara entre as infrações a tais regras e os desvios em relação à
genitalidade. Adultério e sodomia, enganar sua mulher ou violar cadáveres, por exemplo, são
fenômenos colocados no mesmo plano.
Foi necessário um lento movimento para que tais desvios em relação à sexualidade
fossem constituídos como uma “contra-natureza” responsável por quadros clínicos como
“loucura moral”, “neurose genital”, “desquilíbrio psíquico”ou “degenerescência”. Lento
movimento onde a influência da religião dará lugar à gestão médica da saúde sexual.
Nesta contra-natureza, será alojada as formas do desvio, como se o poder fosse, ao
mesmo tempo, o processo de definição da norma e de definição das formas do desvio. Como
se as margens da norma fossem já uma produção interna ao funcionamento da disciplina. Pois
o poder age realmente não quando ele nos obriga à conformação à norma enunciada, mas
quando ele nos oferece, em um movimento quase silencioso, as figuras possíveis da
resistência. Ao descrever as perversões, o poder, como diz Foucault, acaricia os olhos,
estimula os corpos, dramatiza os movimentos, intensifica as regiões corporais. Ele implanta
novos modos de prazeres. Por isto, Foucault fala de um: “mecanismo de dupla impulsão” no
interior do qual poder e prazer se articulam no interior da mesma enunciação. Poder que se
deixa invadir pelo prazer que ele, pretensamente, afasta.
89

Assim, as perversões não seriam a manifestação de uma polimorfia originária que


nunca se enquadraria totalmente nas exigências de uma sexualidade genital orientada à
reprodução. Na verdade, elas seriam o efeito de um jogo do poder. Assim, quando Foucault
afirma que nossa sociedade moderna é perversa de uma maneira extremamente visível, trata-
se de lembrar o tipo de poder que ela faz funcionar sobre o corpo e o sexo. Poder que procede
através da multiplicação de sexualidades singulares, pela produção e fixação da “disparidade
sexual”. Por isto:

O crescimento das perversões não é um tema moralizador que teria obcecado os


espíritos escrupulosos dos vitorianos. Ela é o produto real da interferência de um
tipo de poder sobre os corpos e seus prazeres. É possível que o Ocidente não tenha
sido capaz de inventar prazeres novos e, sem dúvida, ele não descobriu vícios
inéditos. Mas ele definiu novas regras para o jogo dos poderes e prazeres: o rosto
petrificado das perversões nele se desenhou161.

161
Idem, p. 66.
90

Erotismo, sexualidade e gênero


Aula 9

Na aula de hoje, terminaremos o módulo dedicado à discussão do conceito de


sexualidade em Michel Foucault. Neste módulo, vimos como Foucault, à sua maneira,
acreditava só podermos pensar de forma adequada em sexo se o compreendermos como
espaço de produção de acontecimentos. No entanto, o acontecimento pensado por Foucault
não era da mesma ordem do que aquele que vimos no módulo anterior dedicado a Bataille.
Pois ele não está ligado exatamente a emancipação em direção à constituição da soberania, tal
como Bataille pensava, mas a uma forma de sujeição. Sexo é um acontecimento a ser pensado
pela filosofia na medida em que explicita uma nova modalidade de poder que paulatinamente
ganhou hegemonia no interior das formas de vida no Ocidente. Esta forma de pensar sexo a
partir da maneira com que o poder funciona e nos assujeita, ou seja, nos submete e nos
transforma em sujeitos, evidenciou-se a partir do momento em que sexo foi pensado sob a
forma da “sexualidade”.
Lembremos mais um vez como “sexualidade” é, principalmente, um termo utilizado
para designar uma qualidade individualizadora. Normalmente dizemos: “tenho a minha
sexualidade”, como quem tem um modo de ser que pretensamente expressa uma
individualidade a ser reconhecida. Ao centrar suas reflexões sobre o aparecimento da
“sexualidade”, Foucault aproveitava esta qualidade individualizadora para mostrar como um
certo regime de organização, de classificação e de descrição da vida sexual sistematizado no
interior do discurso médico, ou seja, sistematizado a partir da distinção ontológica entre
normal e patológico, foi fundamental na constituição dos indivíduos modernos. Se
“sexualidade” é aquilo produzido por um discurso de aspirações científicas, seja vindo
normalmente da psiquiatria, da psicologia, seja vindo da medicina, então sua normatividade
será, entre outras coisas, fortemente regulada a partir de padrões de mensuração e
quantificação.
Por outro lado, vimos como Bataille centrava suas análise na descrição de uma
experiência sexual desconhecida pelos indivíduos modernos, a saber, o erotismo. Veremos
hoje como Foucault absorve, à sua maneira, tal temática do erotismo. Mas é fato que,
inicialmente, ele estará mais interessado em querer mostrar, com mais detalhes, qual é esta
experiência sexual própria aos indivíduos que encontram no discurso da ciência seus padrões
de normalidade e de patologia.
A compreensão dessa experiência é importante para responder uma questão
propriamente política, a saber: ter uma sexualidade seria expressão de uma liberação do meu
91

corpo em relação às pretensas amarras repressivas do poder? A sociedade ocidental teria


assumido a importância da sexualidade na definição das individualidades a partir do momento
em que o poder teria perdido suas amarras repressivas? Ou a sexualidade seria uma forma
insidiosa de sujeição que demonstraria como a natureza do poder não é exatamente
repressiva, como se estivesse a reprimir uma natureza sexual, uma energia libidinal primeira e
selvagem, mas produtiva, como se ele produzisse os sujeitos nos quais o poder opera? Ou
seja, ao dar importância decisiva a tais perguntas, Foucault apenas era fiel a sua afirmação de
que: “o que me interessa é muito mais a moral do que a política ou, em todo caso, a política
como uma ética”162. Não a política como atividade que se submete a princípios morais gerais,
mas a política como ethos, como aquilo cujo campo real são as construções de modos
singulares de ser. Daí a importância de compreender o sentido do que está em jogo na
sexualidade.
Por sua vez, vimos como Foucault defendia que a sexualidade era um modo de
assujeitamento através de sua reflexão sobre as estruturas do poder disciplinar. Foucault
desenvolvia a hipótese do poder disciplinar para mostrar como devíamos compreender o
poder presente de maneira hegemônica nas sociedades modernas. Diferente do poder
soberano, hegemônico em sociedades pré-modernas, o poder disciplinar tinha um conjunto de
características próprias. Primeiro, ele não era um poder que vinha de um centro no qual
encontrávamos a vontade do soberano. Antes, ele era desprovido de centro e disseminado por
parecer vir de todos os lugares, operar em várias instâncias e níveis; um poder horizontal. Por
não ter centro, ele apareceria como impessoal, como não exercido em nome de alguém, mas
em nome de “saberes” que fundamentam sua legitimidade na força irresistível do que se
coloca como discurso científico. Um poder de estruturas que submetem todos sem distinção,
como o poder que se exerce nos hospitais, nas escolas, nas prisões, nas empresas, na
burocracia estatal.
Segundo ponto, este poder era individualizador. Através do seu exercício,
individualidades eram constituídas, o que nos levava a uma fórmula importante: ser indivíduo
é assujeitar-se a um conjunto de disciplinas que legislam sobre meu modo de organizar o
tempo, de hierarquizar meus desejos e vontade, de regular minhas paixões, de proibir e
desqualificar certos pensamentos, de determinar minha identidade e interesses.
Tal poder disciplinar era composto de uma anatomo-política dos corpos e de uma bio-
política das populações, ou seja, ele visava regular os corpos e seus regimes de desejos e
afetos, assim como regular os fenômenos populacionais de crescimento, de saúde social e de
162
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II, p. 1405.
92

reprodução de costumes. Por isto, a sexualidade podia aparecer como um dispositivo central
do poder disciplinar, já que dizia respeito tanto à experiência dos corpos quanto a questões de
gestão populacional (como aquelas questões ligadas a análise da taxa de natalidade, a idade do
casamento, aos nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações
sexuais, ao efeito do celibato e das interdições, a incidência de práticas contraceptivas). Neste
sentido, a reflexão filosófica sobre a sexualidade expunha a maneira com que um determinado
regime de poder teria produzido um acontecimento maior, a saber, a transformação disciplinar
da vida.
Foucault procurou mostrar como essa transformação disciplinar da vida foi o resultado
da sobreposição de vários discursos, como o discurso científico, o jurídico-moral e o
religioso. A este respeito, vimos como Foucault era sensível à maneira com que os saberes
científicos que fundamentam práticas disciplinares nos levavam a “falar de sexo”. A fala
ouvida pelas ciências da sexualidade não era apenas quantificadora, ela também era exaustiva.
Este era seu ponto central: a ciência da sexualidade produzida no ocidente nos levou a falar de
sexo de forma tal a procurar, através desta fala, a linha de partilha entre o normal e o
patológico, a exaurir tal fala no interior de um sistema classificatório capaz de escutar cada
fantasia, capaz de incitar confissões e, com isto, a nos levar a nos inscrever no interior de uma
gramática, escolher histórias possíveis, controlando assim toda produção possível de
identidades.
Mas era importante a Foucault salientar como essa fala produzida pelo discurso
científico tinha uma genealogia. A genealogia da ciência da sexualidade nos levaria
diretamente à confissão cristã, pois: “é nas culturas cristãs que a sexualidade teria, pela
primeira vez, sido ligada à uma codificação abstrusa das pulsões internas cujo deciframento
exigiria toda uma “hermenêutica de si”. A contribuição essencial do cristianismo não residiria
em uma codificação dos atos interditos e autorizados, mas no tipo de experiência de si que
cada um é suposto conhecer enquanto ser erótico” 163. Nesta experiência de si que cada um é
suposto conhecer como ser erótico, habitaria o verdadeiro cerne da normatividade moral
nascida na confissão. Pois confessar não é apenas submeter-se àquele que me escuta, vincular-
me e instituir um poder àquele que acolhe minha fala. Confessar é constituir uma forma de
verdade nascida da submissão de si à codificação exaustiva de seus atos, pensamentos,
fantasias, afetos. Pois só há confissão se eu confessar tudo, transformar cada dobra da alma
em discurso, exaurir o si mesmo no interior da fala. Admitir a centralidade da confissão é
admitir que tudo é feito para ser falado e descrito discursivamente em uma fala que não
163
RAJCHMAN, John. Érotique de la vérité, p. 116.
93

procura a criação poética de si, mas a exaustão de si em uma linguagem que acumula os
acontecimentos, que os submete ao mesmo regime discursivo desafetado. Pois uma confissão
que seria fala do gozo não seria uma confissão. Ela seria simplesmente gozo. Uma confissão
precisa submeter a linguagem à escrita da culpa. Ela precisa ter a natureza jurídica do tribunal
que ouve o culpado a fim de encontrar a verdade. Assim, é através da imposição de um
regime de fala, mais do que através do obrigação diante de um conjunto de regras de conduta,
que constituímos sujeitos morais. E se assim for, então não seria possível dissociar ciência e
moral, ciência como uma forma de intervir socialmente a fim de, através da imposição de um
modo de falar a verdade, constituir sujeitos morais.
Por isto, se Foucault se voltava contra a “hipótese repressiva”, que vincula a força
política da sexualidade à revolta contra a repressão à pretensa naturalidade de nossa “energia
libidinal”, era por perceber como nenhuma sociedade falou tanto de sexo quanto a nossa.
Mais do que sociedades repressivas, as nossas foram sociedades marcadas por uma peculiar
incitação à constituição do sexo como discurso. Pois nesta vontade de falar, ou antes, nesta
vontade de saber tudo sobre sexo, encontrávamos a incitação a acreditar que falar sobre sexo
seria a condição para nossa liberação e emancipação. Nada mais falso, dirá Foucault.
Mas ficamos aqui com uma questão maior. Pois se somos todos indivíduos
constituídos no interior de sociedades disciplinares, de onde vem o mal-estar que sentimos no
interior da vida social e que nos leva à crítica do que nos tornamos? De onde vem o mal-estar
com este regime de fala que constitui nossa sexualidade, assim como a esperança de outra
forma de relação entre discurso, verdade e sexo? Pois Foucault vincula a força crítica ao
desvelamento desses: “momentos nos quais nossas identificações parecem de uma
contingência e de uma violência das quais não tínhamos consciência”. Por isto: “a experiência
subjetivante do pensamento crítico nascerá desses momentos nos quais não se trata mais de
nos “descobrirmos”, mas de “ultrapassar o limite” em direção a uma identidade nova e
improvável”164. Ou seja, se há crítica social, para Foucault, é porque nossas identidades
aparecem, em certos momentos, como dotadas de uma violência da qual não tínhamos
consciência. Mas por que elas aparecem assim?
Como não podemos fazer apelo a algum substrato natural que resistiria à sua
codificação integral pela administração dos corpos e regulação das populações (saída feita,
por exemplo, por Deleuze ao falar de um corpo sem órgãos, por Freud ao falar de um corpo
pulsional, por Bataille ao trazer a biologia para fundamentar sua teoria do dispêndio e da parte
maldita, entre tantos outros), como Foucault também não quer apelar a uma fundamentação
164
RACHJMAN, John. op. cit., p. 22.
94

ontológica para o mal-estar que sentimos na vida social presente (fazendo, por exemplo, uma
ontologia do ser em chave heideggeriana), então só podemos encontrar o fundamento da
crítica social na história. Nem ontologia, nem reflexão sobre a natureza, mas o recurso a uma
dimensão materialista propriamente histórica.
Aqui, a estratégia se complexifica. Pois, para tanto, faz-se necessário ser possível
mostrar como podemos ter acesso a experiências históricas outras do que as nossas. Ter
acesso não apenas no sentido de saber de sua existência, desvelar a prova documental da
ocorrência, mas de compreender seu sentido e permitir que a partilha deste sentido tenha a
força transformadora capaz de reconfigurar nossas experiências presentes. Foucault não aceita
uma orientação teleológica e finalista para sua reflexão histórica, como se estivéssemos no
interior de uma marcha do progresso em direção a um telos. Por isto, ele precisa explicar
como poderíamos recorrer à história para reorientar o presente. Neste sentido, não basta saber
que outras épocas produziram outros modos de relação a si através do desejo, não basta
construir aquilo que Foucault chamou um dia de “história do homem do desejo”. Maneira de
falar de uma história das técnicas de si, técnicas através das quais, através de formas de auto-
governo e de cuidado de si, nos transformamos em sujeitos reconhecidos.
Se esta história quer servir de fundamento para a crítica do presente, Foucault precisa
mostrar como seu sentido nos é acessível, como o uso dos prazeres que determina a
especificidade de momentos perdidos dessa história encontra lugar como potencialidade
latente do presente. Seguindo uma estratégia que não deixa de nos remeter a Bataille,
Foucault distinguirá a sexualidade dos modernos do erotismo das sociedades pré-modernas.
No entanto, tal erotismo encontrará seu paradigma nas modalidades de usos dos prazeres nas
sociedades grega e romana. Mas para transformar tal erotismo em fundamento para a crítica
da estrutura disciplinar da sexualidade dos modernos é necessário que algo de sua lógica
esteja, de uma maneira ou de outra, presente entre nós.

Baudelaire e os gregos

Em outras ocasiões, eu dissera a vocês que o conceito foucaultiano de “era histórica”


baseava-se no primado de epistemes que definiam o padrão geral de racionalidade dos
discursos científicos de uma época. Assim, por exemplo, a modernidade baseava-se no
primado de uma episteme específica caracterizada, entre outras coisas, pelo pensar
representativo e pela duplicação empírico-transcendental do sujeito, pela constituição de um
conjunto de saberes que tomam o que condiciona o homem (na dimensão do trabalho, do
95

desejo e da linguagem) como objeto da ciência. Não há época que não seja polarizada pela
tensão entre discursos que se submetem à episteme hegemônica e aqueles que a ela não se
submetem. Esta é apenas a aplicação de uma ideia importante de Foucault a respeito do
fenômeno do poder, a saber:

Se não houvesse resistência, não haveria relações de poder. Pois tudo seria
simplesmente uma questão de obediência. Desde o momento em que o indivíduo
está em situação de não fazer o que ele quer, ele deve utilizar relações de poder. A
resistência vem pois em primeiro, e ela permanece superior a todas as forças do
processo, ela obriga, sob seu efeito, à mudança nas relações de força. Considero
pois o termo “resistência” como a palavra mais importante, a palavra-chave dessa
dinâmica165.

Esta resistência que aparece no nível individual, aparece também no nível estrutural da
circulação e produção de discursos. Por isto, insisti com vocês que a episteme moderna fora
sempre acompanhada de uma espécie de contra-episteme, um contra discurso no interior do
qual se aloja aquilo que terá força crítica em relação a estrutura de saberes e experiências do
presente. No caso da modernidade, tal contra episteme seria representada pela literatura. Neste
sentido, a literatura aparece como a latência de possibilidades de pensamento e forma de vida
que não encontram lugar no interior dos regimes de saberes e poderes próprios à nossa época.
Desta forma, para a estratégia historicista de Foucault funcionar, é necessário que
experiências históricas identificadas como portadoras de força crítica em relação ao presente
estejam, à sua maneira, ainda em estado de reverberação no interior do paradigma literário
modernista. Pois se a literatura é a contra episteme fundamental da era moderna, então toda
experiência crítica da modernidade deverá, à sua maneira, encontrar seu modelo nas
produções literárias. E isto Foucault fará através de uma reflexão sobre o conceito
baudeleriano de “modernidade”.
Baudelaire procurou definir a modernidade como experiência estética que levava ao
extremo a quebra da regularidade das formas e da hierarquia valorativa das figuras poéticas.
Seu recurso temático ao que era baixo, mal, deteriorado, prosaico, pode ser compreendido
como início da estratégia modernista de ir em direção ao que foi excluído e recalcado devido
ao advento da universalidade das regras canônicas de estilo. Ele vai em direção ao que era
desprovido de estilo, da mesma forma como décadas mais tarde os expressionistas
abandonarão toda expressão subjetiva codificada em regras de estilo. No entanto, seu uso
profundo da ironia faz desse recurso uma estilização pensada, expressão de uma violência

165
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, p. 1560.
96

controlada que permite ao poema conservar a dimensão da aparência, sem com isto abandonar
sua singularidade.
Esta experiência estética de Baudelaire não é, no entanto, restrita apenas à dimensão
do poema. O que de fato interessa a Foucault é a maneira com que Baudelaire vincula tal
experiência a uma certa estilização de si, a definição dos regimes de uma forma possível de
vida. Por isto, o que realmente lhe interessa são as defesas baudelerianas do dandismo, que o
filósofo francês compreende como uma forma possível de desdobramento das expectativas
modernas de autonomia, mas que não passa pela compreensão da autonomia a partir da
internalização da forma jurídica da lei pela consciência moral. O dandismo permite
compreender a vida como um trabalho singular sobre si a partir das leis de uma estética. Um
ascetismo (no sentido de ascese que nos submete a uma prova) que faz do corpo, do
comportamento, dos sentimentos e paixões uma obra de arte. Daí porque:

O homem moderno não é aquele que parte a descoberta de si mesmo, de seus


segredos e de sua verdade escondida; ele é esse que procura inventar-se a si
mesmo. Essa modernidade não libera o homem em seu ser próprio; ela o restringe à
tarefa de elaborar a si166.

Neste ponto, a modernidade não aparece como tempo de um sujeito que só pode
relacionar-se a si através de uma verdade interior a ser extraída por uma vontade de saber que
se aloja no interior de discursos científicos que posteriormente prescreverão práticas
disciplinares. Vontade de descoberta, de revelação de segredos e de verdades escondidas. Nas
mãos da experiência disruptiva da vanguarda literária, ela aparece como trabalho consciente
de elaboração de si através da sensibilidade estilística própria a uma estética da existência.
Algo muito diferente da compreensão da moral moderna como a submissão de si à forma
geral da lei como condição para a fundamentação da autonomia.
Tal questão é de suma importância para Foucault, principalmente se levarmos em
conta afirmações como: “Não há outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder
político do que a relação de si a si”167. Ou seja, a invenção de novas formas de relação de si a
si é a condição para toda resistência ao poder político. Neste sentido, o passo inusitado de
Foucault consistirá em dizer que a experiência da modernidade estética foi capaz de produzir
uma forma de relação de si a si, forma de estilização da existência capaz de reverberar uma
experiência histórica que lhe é aparentemente estranha, a saber, a estética da existência dos

166
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II, p. 1390.
167
FOUCAULT, Michel. L’hermeneutique du sujet, p. 241.
97

gregos. Do ponto de vista estratégico, há uma peculiar linha de continuidade entre


modernidade literária e moralidade greco-romana.
Ou seja, faltava a Foucault um paradigma capaz de expor como absorver as
experiências disruptivas do modernismo em um quadro mais amplo de reorientação de
processos de racionalização social. Por mais inusitado que isto possa parecer, tal paradigma
será sintetizado através deste retorno aos gregos. Assim, quando Foucault recorre novamente
a Baudelaire em O que é o esclarecimento? , isto a fim de demonstrar como a saída da
minoridade própria ao projeto moderno era indissociável de uma reconstrução de si, crítica
permanente de nosso ser histórico que nos permitiria afirmar: “Ser moderno não é aceitar a si
mesmo tal como se é no fluxo de momentos que passam, é tomar si mesmo como objeto de
uma elaboração complexa e dura”168, vemos o último laço de uma alta-costura entre estética
da existência dos gregos e vanguarda modernista.
Neste sentido, lembremos como Foucault compreende a especificidade história da
experiência grega referente a relação dos sujeitos aos prazeres. Trata-se de:

uma maneira de viver cujo valor moral não está vinculado à sua conformidade a
um código de comportamento, nem à um trabalho de purificação, mas à certas
formas, ou melhor, à certos princípios formais gerais no uso dos prazeres, na
distribuição que deles fazemos, nos limites que observamos, na hierarquia que
respeitamos169.

Ou seja, os gregos desconhecem a determinação das condutas através de códigos


gerais que definem a norma dos atos, descrevendo exaustivamente o proibido e o permitido,
como se toda a criação no campo dos prazeres estivesse esgotada e normatizada. Por isto, ao
invés de interdições e tabus, a moral dos gregos se preocupa com as intensidades e com a
maneira de definir os melhores momentos, circunstâncias, idades para o uso dos prazeres.
Mesmo as práticas de abstinência não são justificadas a partir da desqualificação dos prazeres,
mas como um exercício, uma prática de fortalecimento de si.
O que há de estético nesta maneira de pensar o uso dos prazeres é o tratar a vida como
uma obra que se submete não apenas a valores estéticos, como “harmonia”, “equilíbrio” e
“simetria”, mas também e principalmente a critérios estéticos de produção, como a idéia de
que a ação não é expressão imediata de si, mas relação agonística e singular com materiais
(impulsos, inclinações) que devem ser dominados, devem ser conformados sem serem
totalmente negados. Esta idéia da singularidade dos modos de relação a impulsos e

168
FOUCAULT. Michel. Dits et écrits II, Paris : Gallimad, 2001, p. 1389.
169
FOUCAULT, Michel. Histoire de la séxualité II, op. cit., p. 120.
98

inclinações é o que aproxima tais práticas de uma estilística individualizadora ligada ao


cálculo do momento, da situação, do contexto e a afastam da normatividade do direito. É
neste ponto que Foucault pode agir como quem aproxima moralidade greco-romana e
estilística de si presente no dandi moderno.
Tal estética greco-romana de si nos explica porque a virtude principal no uso dos
prazeres é a temperança. A imoralidade nos prazeres do sexo não é ligada a objetos proibidos
ou a práticas sexuais impossíveis. Ela é sempre da ordem do exagero, do excesso e da
passividade. Pois a atividade sexual: “porta em si uma força, uma energeia que é, por ela
mesma, dirigida ao excesso (...) a questão moral consistirá em saber como afrontar tal força,
como dominá-la assegurando uma economia conveniente”170. O sexo é o mais violento de
todos os prazeres, mais custoso do que a maioria das atividades físicas e sempre referindo-se
ao jogo da vida e da morte. No ato sexual, o sujeito pode ser levado passivamente pelos
mecanismos do corpo e pelos movimentos da alma. De onde se segue a necessidade dele
restabelecer seu domínio, exercendo sobre os prazeres: “um domínio suficientemente
completo para não se deixar nunca levar-se pela violência” 171 do desejo. Por isto, o sexo é o
lugar privilegiado para a formação ética do sujeito.
A insistência neste tópico é compreensível se lembrarmos como, para os gregos, a
liberdade estará profundamente associada ao domínio que os indivíduos serão capazes de
exercer sobre si mesmos. Neste contexto, a temperança aparece como modo de elaboração a si
em direção à virilidade, já que a ausência de temperança diria respeito à passividade e
(construção misógina clássica) à feminilidade: “o que constitui, aos olhos dos gregos,
negatividade ética por excelência, não é evidentemente amar os dois sexos, nem é preferir seu
sexo ao outro, é ser passivo em relação aos prazeres” 172. Neste sentido, a verdade na relação
ao sexo não é uma questão de conhecimento, de classificação exaustiva e de descrição
minuciosa, mas de instauração do indivíduo como sujeito caracterizado pela temperança. A
verdade está ligada não à certeza, mas à beleza. Por isto, é possível dizer que o critério de
verdade é mais estético do que epistêmico. Trata-se de “estilizar uma liberdade”173.
Neste contexto, aparece um peculiar conceito de soberania. Ele é designado por
Foucault “soberania de si”. Tal soberania de si forneceria um horizonte de regulação moral do
uso dos prazeres que nos levaria a: “um gozo sem desejo e sem transtorno (trouble)” 174.
Soberania que nos livra do fantasma do excesso, que permite o aparecimento da liberdade
170
Idem, p. 69.
171
Idem, p. 93.
172
Idem, p. 116.
173
Idem, p. 29.
174
Idem, p. 94.
99

como regulação singular dos corpos sem transtornos, que é intensificação do cuidado a si. A
força política deste processo se encontra em uma aposta nas possibilidade de singularização.
Ele nos permitira, por exemplo, abandonar o discurso da sexualidade, deixar de ter uma
sexualidade fortemente identitária regulada entre o normal e o patológico, para praticar um
erotismo sem identidades previamente definidas, preocupado apenas em agenciar o jogo de
forças que nos configura, retirando sua violência. O que não poderia ser diferente para
alguém, como Foucault, para quem as relações de poder nunca foram exatamente o
problemas, mas sim a degradação do poder em formas de coerção.
Mas o que devemos entender por “soberania” neste contexto? Notemos inicialmente
como, expulsa da condição de qualidade de quem detém o poder do Estado, a soberania
aparece aqui como uma qualidade que pode ser exercida por todo sujeito em emancipação.
Tal soberania é pensada, inicialmente, como capacidade de limitação dos mecanismos do
biopoder e de abertura a um espaço renovado de trabalho sobre si a partir da criação
autônoma de novas normas possíveis.
Muito haveria a ser dito a respeito deste ponto, mas gostaria de me restringir a indicar
um foco de tensão desse projeto. Pois tal espaço pede a reconstrução de um conceito de
indivíduo que, em vários pontos, recupera temas da individualidade liberal. O quanto
estaríamos diante de um conceito de autonomia vinculado à individualidade liberal, eis uma
questão que gostaria de deixar em aberto.
Neste sentido, lembremos, inicialmente, como Foucault compreende claramente o
contexto histórico no qual sua ideia de soberania aparece. As transformações políticas do
mundo greco-romano e a paulatina decadência da estrutura institucional do mundo romano
levaram a um fortalecimento da dimensão individual:

No espaço político no qual a estrutura política da cidade e as leis às quais ela se


dotou certamente perderam sua importância, ainda que elas não tenham
desaparecido, e no qual os elementos decisivos estão cada vez mais nas mãos dos
homens, em suas decisões, na maneira com que eles desempenha sua autoridade,
na sabedoria que eles manifestam no jogo de equilíbrios e transações, aparece que a
arte de se governar advém um fator político determinante 175.

Ou seja, o colapso da noção de “poder comum” aparece enquanto condição para a


definição da soberania como governo de si. O que poderia parecer como uma saída de
compressão do laço social a partir de uma perspectiva individualista. Dada a impossibilidade
de um espaço comum geral, resta-nos a estilização de dimensões relacionais restritas. Isto

175
FOUCAULT, Histoire de la séxualité III, p. 123.
100

talvez nos explique porque tal conceito de soberania é construído como resistência a toda e
qualquer forma de poder estatal. Pois o poder estatal é o melhor exemplo de um “governo por
individualização”. Daí uma afirmação como:

Não creio que devamos considerar o “Estado moderno” como uma entidade que se
desenvolveu a despeito dos indivíduos, ignorando quem eles são e até suas
existências, mas ao contrário como uma estrutura muito elaborada, na qual os
indivíduos podem ser integrados a uma condição: que forneçamos a essa
individualidade em forma nova que a submetamos a um conjunto de mecanismos
específicos176.

Sendo o Estado compreendido como um modo genérico de individualização, com


formas e mecanismos específicos juridicamente totalizados, não haveria outra tarefa política
do que “nos liberar do Estado e do tipo de individualização que a ele se vincula” 177 a fim de
promover novas formas de subjetividade ou, ainda, de “criar um novo direito relacional que
permitiria a todos os tipos possíveis de relação existirem e não serem impedidos, bloqueados
ou anulados por instituições relacionais empobrecedoras”178.
Tal criatividade é compreendida por Foucault a partir da temática do
redimensionamento do espaço dos prazeres. Liberado das amarras jurídicas de nossa
identidade estatal, poderíamos nos abrir à construção contínua de novos espaços de prazeres.
A este respeito, dirá Foucault: “devemos trabalhar não exatamente à liberação de nossos
desejos, mas a permitir que nós mesmos sejamos infinitamente mais suscetíveis aos
prazeres”179. No entanto, não fica claro com lidaremos com os limites no reconhecimento de
tais prazeres se o dimensão da relação a um espaço comum geral institucionalmente garantido
entrou em colapso. Quem garantirá o reconhecimento de minha soberania de si se não há mais
remissão necessária a um espaço político geral?
Por outro lado, há ainda um problema com a ideia do sujeito dos “prazeres”. Um
sujeito capaz de trabalhar a si mesmo tendo em vista a produção de prazeres sempre novos
não seria a versão contemporânea do indivíduo que sabe calcular conscientemente prazeres e
se afastar dos desprazeres, extrair o máximo de prazeres de si, como se ele fosse “proprietário
de si mesmo”, potestas sui, o que não está realmente longe da definição lockeana do indivíduo
como “proprietário de sua própria pessoa”? Esta relação de proprietário de si pode, de fato,
aparecer como uma forma de emancipação social ou ela seria uma forma insidiosa de

176
Idem, Dits et écrits II, p. 1049.
177
Idem, p. 1051.
178
Idem, p. 1129.
179
Idem, Dits et écrits II, p. 984.
101

perpetuar as ilusões de um tipo inusitado de sujeito da consciência? Pois seria interessante


pensar esta recuperação foucaultiana dos prazeres à luz da distinção lacaniana entre prazer e
gozo. Não seria o soberano de si foucaultiano alguém capaz de reduzir a dimensão
radicalmente heterônima do gozo a fim de instrumentalizá-la na forma de prazeres nos quais
conscientemente trabalho e disponho como um proprietário de mim mesmo no melhor estilo
liberal? Estas são algumas questões que gostaria de deixar para vocês.
102

Erotismo, sexualidade, gênero


Aula 10

Depois de um longo período de suspensão, podemos enfim terminar nosso curso


através da apresentação do pensamento da filósofa norte-americana Judith Butler e de sua
maneira de desenvolver as implicações políticas da reconstrução do conceito de “gênero”.
Nestas últimas aulas, gostaria de apresentar a vocês alguns aspectos importantes de sua
experiência intelectual ainda pouco conhecida entre nós. Gostaria também de mostrar porque
tal reconstrução do conceito de gênero por ela proposta representa uma das operações mais
importantes da filosofia política contemporânea, seja por sua capacidade de mobilizar debates
intelectuais, seja por seu uso em contextos práticos de lutas sociais.
Judith Butler é uma filósofa norte-americana ainda em atividade. Nascida em 1956,
ela ganhou espaço por permitir uma inflexão profunda dos debates feministas em direção à
crítica do uso político da noção de identidade social. Assim, sai paulatinamente de cena visões
essencialistas sobre a “condição feminina” ou sobre a naturalidade ou não de comportamentos
sexuais, isto em prol da tentativa de desconstrução da própria noção de gênero. Butler serve-
se de uma articulação inusitada entre o chamado “pós-estruturalismo” francês (em especial
Foucault e Derrida), psicanálise e hegelianismo a fim de mostrar como a experiência de ter
um gênero pode não ser compreendida como de maneira identitária.
De fato, o conceito de gênero ganhou importância decisiva nas últimas décadas devido
à maneira que ele nos permite compreender as relações entre sexo, identidade e política. No
entanto, nada disto estava presente quando o conceito apareceu no campo clínico pela
primeira vez, através das mãos do psiquiatra Robert Stoller em um livro de 1968 intitulado
Sexo e gênero. Nele, Stoller procurava descrever os processos de construção de identidades de
gênero através da articulação entre processos sociais, nomeação familiar e questões
biológicas. Tratava-se de insistir na dinâmica própria da formação das identidades sexuais,
para além de seu vínculo estrito à diferença anatômica de sexo.
Neste sentido, o uso proposto por Judith Butler é particular. Diferentemente da noção
foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de tudo um conceito eminentemente crítico, a
ideia de “gênero” está carregada de uma teoria da ação política, teoria que procura entender a
maneira com que sujeitos lidam com normas, subvertem tais normas, encontram espaço
produzindo novas formas. Não se trata de entender apenas como sujeitos são sujeitados às
normas e completamente constituído por elas. Por isto, pelas mãos de Butler, a teoria de
gênero não será apenas uma teoria da produção de identidades. Ela será uma astuta teoria de
103

como, através da experiência de algo no interior do sexo que não se submete integralmente às
normas e identidades, descubro que ter um gênero é um “modo de ser despossuido” 180, de
abrir o desejo para aquilo que me desfaz no outro. Daí uma afirmação como:

A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao ato de


tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo sentido, tornar-
se gênero para outros) estabelece um campo de enredamento ético com outros e
um sentido de desorientação para a primeira pessoa, para a perspectiva do Eu.
Como corpos, nós somos sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos 181.

Notem como tal colocação não está muito distante de afirmações que vimos
anteriormente presente nos textos de Georges Bataille. Lembremo-nos, por exemplo, de
afirmações como:

O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em


questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas
então o sujeito se identifica com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer,
no erotismo: EU me perco182.

Tanto em Bataille quanto em Butler sexo aparece como o nome de um evento marcado
pelo advento das exigências de reconhecimento do que desarticula as estruturas identitárias da
primeira pessoa do singular. Isto porque ele parece nos colocar em relação com aquilo que
não se deixa determinar no interior das normatividades que definem a figura atual do homem.
Sexo como o que nos empurra em direção a estas conformações ainda não reconhecidas do
desejo, ainda não humanas. Por isto, há sempre algo de recuperação do que era visto como
patológico, doentio e, por isto, sem direito à existência, ou ainda, como inumano, pois sem
identidade fixa e definida. A modificação da sensibilidade social e da sensibilidade médica
para problemas de gênero foi um acontecimento de forte ressonância filosófica, pois nos
colocaria diante da compreensão de como nossa humanidade depende do reconhecimento de
alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano e, muitas vezes, do
abjeto.
O próprio uso do termo “queer” é bastante sintomático deste embate. O termo aparece
no inglês do século XVI para designar o que é “estranho”, “excêntrico” , “peculiar”. A partir
do século XIX, a palavra começa a ser usada como um xingamento para caracterizar
homossexuais e outros sujeitos com comportamentos sexuais aparentemente desviantes. No

180
BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004, p. 19.
181
Idem, p. 25.
182
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 55.
104

entanto, no final dos anos oitenta, o termo começa a ser apropriado por certos grupos LGBT
no interior de um processo de ressignificação no qual o significado pejorativo de uma palavra
é desativado através de sua afirmação por aqueles a quem ela seria endereçada e que procuro
excluir. Sensíveis a tal inversão, algumas teóricas de gênero viram nesta operação uma
oportunidade para descrever um outro momento das lutar por reconhecimento não mais
centradas na defesa de alguma identidade particular aos homossexuais. De onde se seguiu a
produção do sintagma “Teoria queer”, enunciado primeiramente pela feminista italiana Teresa
de Laurentis.

Começar pelo desejo em Hegel

Judith Butler publica seu primeiro livro em 1987. Trata-se de sua tese de doutorado,
Sujeitos do desejo, dedicada ao conceito de desejo em Hegel e sua recepção no pensamento
francês contemporâneo (em especial, em Sartre, Lacan, Foucault e Deleuze). No entanto, é
com seu segundo livro, Problemas de gênero, de 1990, que ela aparecerá como um teórica
inovadora à procura de uma compreensão da subjetividade e da experiência sexual não mais
marcada pelo problema da produção de identidades subjetivas. Neste sentido, problematizar o
“gênero” era, como veremos mais a frente, uma maneira importante de quebrar o espaço
privilegiado no qual a vida social parece fundamentar-se na normatividade pretensamente
fornecida pela natureza.
Depois de Problemas de gênero, Butler publica vários livros nos quais procura
aprofundar problemas específicos a partir das consequências de sua maneira de pensar
problemas de gênero, como o papel da materialidade dos corpos, o impacto psíquico das
normas sociais, a natureza da experiência moral, entre outros. São exemplos deste movimento
de seu pensamento livros como: Bodies that matter: on the discursive oh “sex”(1993),
Excitable speechs: a politics of the performative (1995), The psychic life of power: theories of
subjection (1995) e Undoing gender (2004). A partir de Antigone’s claims: kindship between
life and death (2000), Butler começa a escrever de maneira mais sistemática a respeito de
questões política não diretamente relacionadas a lutas ligadas às minorias sexuais, mas a
problemas ligados à modalidades de exclusão e de precarização da existência. São livros não
ligados diretamente à questões de gênero, mas a teoria política, como: Precarious life: the
powers of mourning and violence (2004), Giving an account of oneself (2005) e o último,
sobre a questão judaico-palestina: Parting ways: jewishness and the critique of zionism
(2012).
105

O que gostaria de fazer aqui é retraçar algumas linhas gerais desta trajetória,
permitindo com isto uma compreensão mais articulada de sua maneira peculiar de extrair
consequências políticas das discussões sobre identidade de gênero. Para tanto, precisamos
voltar à sua tese de doutorado sobre o conceito hegeliano de desejo. Um retorno que apenas
leva a sério colocações da própria Butler, como: “Em certo sentido, todos meus trabalhos
permanecem no interior da órbita de um certo conjunto de questões hegelianas: o que é a
relação entre desejo e reconhecimento e como a constituição do sujeito implica uma relação
radical e constitutiva à alteridade?”183.
Butler começa por lembrar que há uma “visão filosófica” do desejo que procura nos
fazer acreditar que a reflexão sobre a vida desejante deveria nos levar, necessariamente, a um
paradigma de reconciliação no interior do qual encontraríamos a integração psíquica entre
razão e afetos. Esta reconciliação, no entanto, não estaria presente em Hegel, pois em seu caso
o desejo apareceria exatamente como aquilo que “fratura um eu metafisicamente integrado” 184
por ser uma forma de “modo interrogativo de ser, um questionamento corporal de identidade e
lugar”185. Ou seja, a descoberta do desejo é a descoberta de uma fratura que faz do meu ser o
espaço de um questionamento contínuo a respeito do lugar que ocupo e da identidade que me
define. Um questionamento que faz de meu ser um modo contínuo de interpelação ao outro, já
que não há desejo sem que haja outro. Mesmo um desejo “narcisista” é o desejo pela imagem
de si a partir da internalização do olhar de um Outro elevado à condição de ideal. Todo desejo
pressupõe um campo partilhado de significação no qual o agir se inscreve. Pois todo desejo
pressupõe destinatários, é desejo feito para um Outro e inscrito em um campo que não é só
meu, mas é também campo de um Outro. Assim, perguntar-se sobre o ser do sujeito a partir
do desejo é partir necessariamente do sujeito como um entidade relacional para a qual, como
disse Butler, há “uma relação radical e constitutiva à alteridade”.
Esta leitura de Hegel privilegia uma interpretação que visa radicalizar a experiência de
negatividade própria a seu conceito de desejo. Para compreender o que significa tal
negatividade, lembremos como Hegel parece vincular-se a uma longa tradição que remonta a
Platão e compreende o desejo como manifestação da falta. Vejamos, por exemplo, um trecho
maior da Enciclopédia. Lá, ao falar sobre o desejo, Hegel afirma:

O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade –
ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto, lhe

183
BUTLER, Judith. Subjects of Desire, p. XX.
184
Idem, p. 7.
185
Idem, p. 9.
106

falta. A consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um ser, mas
uma atividade absoluta186.

A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que aparece
intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que determina a
essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um outro (o objeto) é uma contradição que a
consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas uma atividade, isto no sentido
de ser uma reflexão que assimila o objeto a si. Esta experiência da falta é tão central para
Hegel que ele chegar a definir a especificidade do vivente (Lebendiges) através da sua
capacidade em sentir falta, em sentir esta excitação (Erregung) que o leva à necessidade do
movimento; assim como ele definirá o sujeito como aquele que tem a capacidade de suportar
(ertragen) a contradição de si mesmo (Widerspruch seiner selbst) produzida por um desejo
que coloca a essência do sujeito no objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto aparece
como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na consumação do
objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o que ocorre:

O desejo e a certeza de si mesma alcançada na satisfação do desejo são


condicionados pelo objeto, pois a satisfação ocorre através do suprimir desse
Outro, para que haja suprimir, esse Outro deve ser. A consciência-de-si não pode
assim suprimir o objeto através de sua relação negativa para com ele, pois essa
relação antes reproduz o objeto, assim como o desejo 187.

A contradição encontra-se aqui na seguinte operação: o desejo não é apenas uma


função intencional ligada à satisfação da necessidade animal, como se a falta fosse vinculada
à positividade de um objeto natural. Ele é operação de auto-posição da consciência: através do
desejo a consciência procura se intuir no objeto, tomar a si mesma como objeto e este é o
verdadeiro motor da satisfação. Através do desejo, na verdade, a consciência procura a si
mesma. Até porque, devemos ter clareza a este respeito, a falta é um modo de ser da
consciência, modo de ser de uma consciência marcada por aquilo que Hegel chama de
“negatividade” e que insiste que as determinações estão sempre em falta em relação ao ser.
Desta forma, não haverá objeto natural algum capaz de realizar a satisfação da
negatividade própria ao desejo. Em Hegel, a consciência desejante procura no Outro não algo
como a reiteração de seu sistema de interesses e necessidades. Ela procura no Outro o
reconhecimento da natureza negativa e indeterminada de seu próprio desejo. É tendo tal
186
HEGEL, G.W.F. Enciclopédia - vol III, op. cit., § 427.
187
Idem. Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 124.
107

esquema em mente que Butler poderá quebrar a natureza essencialista da noção de gênero (em
suas versões ontológicas, políticas ou metodológicas) defendida então por certas correntes
feministas.

A produtividade das normas

Três anos depois da publicação de sua tese, Butler apresente este que será seu trabalho
mais conhecido, Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade. O livro
apresentava uma discussão inovadora sobre a noção de gênero servindo-se, em larga medida,
de apropriações da teoria do poder de Michel Foucault. Dividido em três partes ele partia da
tentativa em dissociar sexo e gênero, passava à crítica do estruturalismo (em especial Lévi-
Strauss e Lacan) como corrente de pensamento que tendia à perpetuar uma ordem patriarcal
de funcionamento da vida social, para ao final abrir certas considerações sobre as
potencialidades política de uma noção de gênero que subverta a identidade. Maneira de
mostrar como um política feminista não precisa adentrar na reificação ilusória do gênero e da
identidade.
Podemos dizer que a base da perspectiva de Judith Butler encontra-se na tentativa de
fornecer uma teoria anti-representativa do sexual. Identidades sexuais não devem ser pensadas
como representações suportadas pela estrutura binária de sexos. Trata-se, ao contrário, de
tentar escapar da própria noção de representação através de uma teoria performativa do
sexual. Teoria que sustenta a possibilidade de realização de atos subjetivos capazes de
fragilizar o caráter reificado das normas, produzindo novos modos de gozo que subvertam as
interdições postas pelo sistema binário de gêneros.
Tal teoria nasce de uma tomada de posição que procura levar às últimas conseqüências
a distinção entre sexo (configuração determinada biologicamente) e gênero (construção
culturalmente determinada). No seu caso, não se trata de fornecer uma nova versão da
distinção clássica entre natureza e cultura, até porque gênero, segundo Butler. “é o aparato
discursivo/cultural através do qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são produzidos e
estabelecidos como ‘pré-discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente
neutra na qual a cultura age”188. Esta suspeita profunda em relação à dimensão do pré-
discursivo, do anterior ao advento da lei, leva Butler a recusar toda ideia de uma naturalidade
reprimida pelo advento das normas sociais.

188
BUTLER, Gender trouble, p. 11.
108

Partindo deste ponto, uma noção de gênero como ante-câmara de produção da


‘natureza sexual’ permite a Butler primeiramente defender o caráter ideológico da noção
binária de gênero (masculino/feminino), já que: “A pressuposição de um sistema binário de
gênero depende da crença em uma relação mimética entre gênero e sexo na qual gênero
espelha sexo ou é, por outro lado, restringido por ele” 189. A quebra de tal mimetismo
permitiria, por sua vez, ao gênero aparecer como o espaço de: “múltiplas convergências e
divergências sem obediência a um telos normativo ou a um fechamento nocional”190.
Voltemos por um momento à noção de sexualidade em Foucault, pois é ela que opera
na crítica de Butler à pressuposição mimética entre gênero e sexo. Vimos como Foucault
insistia que as relações de poder nunca poderiam ser compreendidas como meramente
opressivas. Elas são inicialmente produtivas, ou seja, elas produzem os sujeitos nos quais o
poder age. Mas para aceitar que há uma natureza produtiva do poder, faz-se necessário
também aceitar que nem todas as formas de dominação são formas de opressão. Esta é um
perspectiva que Butler partilha com Foucault.
Retomemos a este respeito algumas características fundamentais da noção
foucaultiana de poder:

Por poder, parece-me que devemos inicialmente compreender a multiplicidade de


relações de força que são imanentes ao domínio no qual elas se exercem, e que são
constitutivas de sua organização; o jogo que pela via das lutas e afrontamentos lhes
transformam, reforçam, invertem; os apoios que tais relações de força encontram
umas nas outras de maneira a formar cadeia ou sistema ou, ao contrário, as
defasagens, as contradições que isolam umas das outras; a estratégias enfim nas
quais elas encontram efeito e cujo desenho geral ou cristalização institucional toma
corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, na hegemonia social 191.

Esta ideia de poder não toma como base as representações jurídicas do poder
soberano. Ela é onipresente não porque ela tudo engloba em uma unidade, mas porque ela
vem de todos os lugares. Ela não depende de uma intencionalidade consciente para funcionar,
ela não resulta de decisões e escolhas de um sujeito individual. Se ele vem de todos os
lugares, é fácil perceber também que a noção mesma de resistência é um movimento interno
ao poder. O próprio poder só pode existir em função de uma multiplicidade de pontos de
resistência. Como se a ausência de unidade do poder nos permitisse pensar um movimento
que está, a todo momento, prestes a inverter seus sinais, prestes a produzir outras dinâmicas.
Como se a disciplina e seus dispositivos apenas no limite pudessem garantir sua eficácia.
189
idem, p. 10.
190
Idem, p. 22.
191
FOUCAULT, Michel. Histoire de la séxualité I, p. 122.
109

Como se estivéssemos diante de : “um campo múltiplo e móvel de relações de força no qual
se produzem efeitos globais de dominação, mas jamais totalmente estáveis”192.
Notem que esta resistência não precisa vir de fora das relações de poder como, por
exemplo, de um corpo insubmisso, de uma libido selvagem, de uma sexualidade não-
controlada ou de um desejo natural. A resistência vem do próprio poder, isto no sentido de vir
da heterogeneidade dos jogos de força, com suas direções múltiplas. Ou seja, quebrada a ideia
de um poder que age de maneira unitária e ordenada, mas que produz efeitos inesperados,
situações não completamente controladas, perde-se a necessidade de responder sobre o que o
poder age. De certa forma, ele age sobre suas próprias camadas.
Isto talvez explique porque gênero não deve ser compreendido como uma identidade
estável. Assegurar algo em sua significação não é resultado de um gesto fundador, de uma
espécie de batismo originário para todo o sempre. Antes, trata-se de um processo continuo de
repetições que, ao mesmo tempo, anula a si mesmo (pois mostra a necessidade de repetir-se
para subsistir) e aprofunda suas regras. Sendo assim, assumir um gênero não é algo que, uma
vez feito, estabiliza-se. Ao contrário, estamos diante de uma inscrição que deve ser
continuamente repetida e reafirmada, como se estivesse, a qualquer momento, a ponto de
produzir efeitos inesperados, sair dos trilhos. Daí a necessidade de afirmar que: “A injunção
de ser um gênero dado produz necessariamente fracassos, uma variedade de configurações
incoerentes que, na sua multiplicidade, excede e desafia a injunção que as gerou”193.

Repetir de forma paródica

Mas se significações são produzidas através da repetição, então um repetição que não
fosse simplesmente mimética poderia deslocar os efeitos do poder. Neste ponto, encontramos
a preocupação claramente política da teoria de Butler. Sem fazer apelo a uma espécie de
história subterrânea do cuidado de si, tal como vimos em Foucault, história que conservou
aspectos da relação a si que nos remeteria aos gregos, Butler procura pensar modalidades de
repetição das normas que produzam tais efeitos de deslocamento. Em Problemas de gênero, é
a paródia que parece ter tal função.
O que nos interessa aqui é a anatomia desta crítica. Pois ela não deve levar à
naturalização de outras categorias identitárias, mas à posição de identidades sexuais que sejam
a própria encarnação da desestruturação da noção de representação, identidades que seriam a
apresentação da desestabilização das identidades. Daí porque esta crítica das categorias
192
Idem, p. 135.
193
BUTLER, Judith. Gender trouble, p. 185.
110

identitárias seria performativamente implantada através, por exemplo, de práticas paródicas


de gênero, como aquelas levadas a cabo por drag-queens e as práticas de cross-dressing. Pois
ao operar uma "dupla inversão" que consistiria em embaralhar as distinções
essência/aparência para afirmar, ao mesmo tempo: "minha aparência exterior é feminina, mas
minha essência interior (o corpo) é masculina" e "minha aparência exterior é masculina (meu
corpo), mas minha essência interior é feminina", as drags fariam uma espécie de "crítica da
reificação dos gêneros". Butler poderá afirmar assim que elas revelariam: "estes aspectos da
experiência de gênero que são falsamente naturalizados como uma unidade através da ficção
regulatória da coerência heterossexual"194. Crítica paródica que, por inaugurar um
deslocamento perpétuo de identidades, teria a força de sugerir a abertura a processos de
ressignificação capazes de se disseminarem na malha social.
Esta crítica articulada através do embaralhamento da diferença ontológica entre
essência e aparência só é possível porque a aparência é elevada aqui à condição de simulacro
que desorienta a própria noção de identidade e representação fixa por, ao mesmo tempo,
adequar-se e não se adequar à diferença sexual e aos modos de sexuação tais como seriam
postos pela Lei. Assim, tudo se passa aqui como se:

Ao agir (performing) e ao chamar a atenção para a estrutura do gênero como


performance, nós pudéssemos ser liberados de uma política dogmática ou de uma
política que aspira saber o real de maneira segura. Não podemos escapar do
sistema de identidade ou da ilusão de que há um sujeito que fala. Mas podemos
agir, repetir ou parodiar todos estes gestos que criam um sujeito 195.

De fato, Butler reconhece bem as dificuldades de sua aposta. Ao definir


performatividade como uma estrutura de citação e repetição contínua de determinações
normativas, de um conjunto a priori de práticas, Butler insiste que a necessidade da repetição
indica como o processo de determinação é sempre frágil. Práticas de subversão seriam
capazes de expor o estatuto reificado do quadro heterossexual que sustenta práticas de gênero.
No entanto, ela é a primeira a reconhecer que: “não há garantia de que a exposição do caráter
naturalizado da heterosexualidade nos levará a subversão. A heterossexualidade pode
aumentar sua hegemonia através da desnaturalização, tal como vemos paródias
desnaturalizadoras que reidealizam normas heterossexuais sem colocá-las realmente em
questão”196. Isto nos deixa com a questão de saber como diferenciar críticas à reificação que
tenham força perlocucionária de outras que não tem.
194
idem, p. 175.
195
COLEBROOK, Irony, p. 125.
196
BUTLER. Bodies that matter. New York: Routledge, 1993, p. 231.
111

Em Problemas de gênero, Butler não abandona a crença na força subversiva de uma


citação teatral das normas, citação que mimetiza e toma de maneira hiperbólica a convenção
discursiva que ela subverte. No entanto, ela desenvolve tal posição de maneira astuta ao
afirmar que este ato seria capaz, na verdade, de alegorizar uma perda própria a todo processo
de incorporação da norma e de regulação das paixões; perda que produz: “o campo dos
objetos heterosexuais ao mesmo tempo que produz um domínio destes a respeito dos quais
seria impossível amar [por não se submeterem ao processo de constituição de objetos do amor
heterosexual]. Assim, drag alegoriza a melancolia heterossexual, melancolia através da qual
um gênero masculino é formado através da recusa em perder o masculino como possibilidade
de amor, um gênero feminino é formado (assumido) através da fantasia incorporativa através
da qual o feminino é excluído como possível objeto de amor”197. Desta forma, as práticas
críticas poderiam expor a fraqueza da normatividade heterossexual através da alegorização de
sua melancolia. Como se uma certa recuperação da ironia melancólica tivesse a força de
desarticular matrizes de socialização e modos de indexação entre normas, modos de escolhas
de objeto e determinações identitárias. Veremos melhor este ponto na próxima aula.

197
idem, p. 235.
112

Aula 11
Erotismo, sexualidade e gênero

Na aula de hoje, gostaria de dar continuidade a nossa discussão a respeito do conceito


de gênero, assim como a respeito das consequências políticas do pensamento de Judith Butler.
Na aula passada, vimos como a teoria de gênero de Butler não era exatamente uma teoria da
produção de identidades sociais. Ela é uma astuta teoria de como, através da experiência de
algo no interior do sexo que não se submete integralmente às normas e identidades, descubro
que ter um gênero é um “modo de ser despossuido”198, de abrir o desejo para aquilo que me
desfaz no outro. Daí uma afirmação como:

A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao ato de


tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo sentido, tornar-
se gênero para outros) estabelece um campo de enredamento ético com outros e
um sentido de desorientação para a primeira pessoa, para a perspectiva do Eu.
Como corpos, nós somos sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos 199.

Sexo como o que nos empurra em direção a estas conformações ainda não
reconhecidas do desejo, ainda não humanas. Por isto, há sempre algo de recuperação do que
era visto como pato lógico, doentio e, por isto, sem direito à existência, ou ainda, como
inumano, pois sem identidade fixa e definida.
Lembremos como o próprio uso do termo “queer” é bastante sintomático deste
embate. O termo aparece no inglês do século XVI para designar o que é “estranho”,
“excêntrico” , “peculiar”. A partir do século XIX, a palavra começa a ser usada como um
xingamento para caracterizar homossexuais e outros sujeitos com comportamentos sexuais
aparentemente desviantes. No entanto, no final dos anos oitenta, o termo começa a ser
apropriado por certos grupos LGBT no interior de um processo de ressignificação no qual o
significado pejorativo de uma palavra é desativado através de sua afirmação por aqueles a
quem ela seria endereçada e que procuro excluir. Sensíveis a tal inversão, algumas teóricas de
gênero viram nesta operação uma oportunidade para descrever um outro momento das lutar
por reconhecimento não mais centradas na defesa de alguma identidade particular aos
homossexuais. De onde se seguiu a produção do sintagma “Teoria queer”, enunciado
primeiramente pela feminista italiana Teresa de Laurentis.
A fim de insistir na ausência de vínculos entre gênero e identidade, Butler procura
levar às últimas conseqüências a distinção entre sexo (configuração determinada
198
BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004, p. 19.
199
Idem, p. 25.
113

biologicamente) e gênero (construção culturalmente determinada). No seu caso, não se trata


de fornecer uma nova versão da distinção clássica entre natureza e cultura, até porque gênero,
segundo Butler. “é o aparato discursivo/cultural através do qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo
natural’ são produzidos e estabelecidos como ‘pré-discursivo’, como prévios à cultura, uma
superfície politicamente neutra na qual a cultura age”200. Esta suspeita profunda em relação à
dimensão do pré-discursivo, do anterior ao advento da lei, leva Butler a recusar toda ideia de
uma naturalidade reprimida pelo advento das normas sociais.
Partindo deste ponto, uma noção de gênero como ante-câmara de produção da
‘natureza sexual’ permite a Butler primeiramente defender o caráter ideológico da noção
binária de gênero (masculino/feminino), já que: “A pressuposição de um sistema binário de
gênero depende da crença em uma relação mimética entre gênero e sexo na qual gênero
espelha sexo ou é, por outro lado, restringido por ele” 201. A quebra de tal mimetismo
permitiria, por sua vez, ao gênero aparecer como o espaço de: “múltiplas convergências e
divergências sem obediência a um telos normativo ou a um fechamento nocional”202.

O mito da identidade

No entanto, Butler precisa explicar como e porque é criada a ilusão de que a vida
social deve se orientar por identidades estáveis ou ainda, no caso da relação entre sexo e
gênero, como e porque ocorre a reificação de tomar por normatividade natural aquilo que é
produto de uma relação social de poder. Neste sentido, ela dirá:

A auto-justificação de uma lei repressiva ou subordinadora quase sempre


fundamenta-se em uma história sobre como era antes do advento da lei e o que
aconteceu para que a lei emergisse em sua forma presente e necessária 203.

Temos então inicialmente a ideia de que há uma dimensão “repressiva” da lei. Não
sendo a lei uma operação da normatividade social sobre uma matéria naturalmente dada
(corpo, impulsos, desejos naturais), esta repressão não contra um princípio exterior ao poder.
Ela age contra a própria dinâmica interna do poder, com seus jogos de força continuamente
cambiantes. Como se uma configuração momentânea do poder se cristalizasse procurando se
perpetuar. Para tanto, faz-se necessário colocar em circulação “uma história sobre como era
antes do advento da lei”. História de informidade e caos. Como se fora da configuração atual
200
BUTLER. Gender trouble, p. 11.
201
idem, p. 10.
202
Idem, p. 22.
203
Idem, p. 46.
114

da lei, só pudesse haver anomia e destruição da vida. Ou seja, só pode haver conformação à
configuração atual da lei lá onde há a produção contínua do medo.
Como um exemplo da maneira com que a configuração atual das identidades é
naturalizada como condição fundamental para o advento de toda e qualquer ordem social,
Butler recupera a teoria das estruturas elementares de parentesco de Claude Lévi-Strauss. Pois
se a antropologia estrutural de Lévi-Strauss estiver correta, então: “seria possível traçar a
transformação de sexo em gênero localizando esse estável mecanismo das culturas, a regras
de trocas de parentesco, que afeta tal transformação de várias formas regulatórias” 204. A crítica
a Lévi-Strauss teria ainda o mérito de abrir espaço a crítica daqueles que levaram a cabo as
consequências de sua teoria da vida social, como Jacques Lacan. O que é uma maneira de
Butler acertar contas com algumas das referências mais importantes para os estudos
feministas até então.
Lévi-Strauss parte da constatação da universalidade da lei do incesto para discutir os
fundamentos da relação entre natureza e cultura. Ou seja, o que lhe preocupa é uma questão
classicamente filosófica: o que é necessário para sairmos do estado de natureza? Neste
sentido, ele lembra como os comportamentos naturais tem a característica de serem universais
e necessários (como os impulsos e tendências), enquanto os comportamentos sociais são
passíveis de diferenças e de contingência (por isto coercitivos), pois respondem às
especificidades de contextos sócio-históricos. No entanto, conhecemos ao menos uma norma
social que tem o caráter de universalidade e necessidade das normas naturais. Trata-se do tabu
do incesto:

Pois a proibição do incesto apresenta, sem o menor equívoco, e de maneira


indissociável, as duas características nas quais reconhecemos os atributos
contraditórios e duas ordens exclusivas: ela constitui uma regra [social], mas uma
regra que, a única dentre todas as regras sociais, possui ao mesmo tempo um
caráter de universalidade205.

A proibição do incesto nos lembra que não haveria grupo social na qual inexistiria
proibição alguma relativa ao casamento. Tais proibições podem variar, mas não haveria casos
de sociedades nos quais elas seriam inexistentes. O que nos colocaria a questão: por que a
questão do incesto parece ser o fundamento da passagem da natureza à cultura?
A peculiaridade de Lévi-Strauss está na sua interpretação do significado da proibição
do incesto. No fundo, tal proibição marca a passagem do fato natural da consaguinidade ao

204
Idem, p. 47.
205
LÉVI-STRAUSS, Claude. Les structures élémentaires de la parenté, p. 10.
115

fato cultural da aliança. Submetendo-se ao tabu do incesto, o homem insere-se, de uma vez
por todas, em um sistema de trocas, ou ainda, em um sistema de comunicação onde as
mulheres são tratadas da mesma forma que sinais lingüísticos. Através da proibição do
incesto, um grupo se vê obrigado a tomar um mulher de outro grupo como esposa,
instaurando assim relações de exogamia, obrigações de receber e de dar. As sociedades
aparecem assim como um sistema de trocas na qual o elemento fundamental de troca são
mulheres:

Se a multiplicidade de modalidades de regras do casamento podem ser subsumidas


sob o termo geral de exogamia, é à condição de perceber, atrás da expressão
superficialmente negativa da regra de exogamia, a finalidade que tende a assegurar,
pela interdição do casamento em graus proibidos, a circulação, total e contínua,
desses bens do grupo por excelência que são as mulheres e filhas 206.

Ou seja, se não houvesse a exogamia, se as mulheres não fossem as “moedas de troca”


da vida social, então o grupo social explodiria em uma multidão de famílias que formariam:
“sistemas fechados, mônadas sem porta nem janela“ 207 inviabilizando a essência mesma da
sociedade com sua produção estrutural de diferenças controladas em um sistema. Para Butler,
tal perspectiva estruturalista significa que:

A relação de reciprocidade estabelecida entre homens é a condição de uma relação


de radical não-reciprocidade entre homens e mulheres e uma relação de não-
relação entre mulheres208.

Transformando a diferença produzida pela distinção anatômica entre sexos em


condição para a própria existência da dinâmica de estruturação das sociedades, Lévi-Strauss
teria fornecido um belo exemplo de como o reconhecimento social dos gêneros era calcado na
naturalização do binarismo entre homens e mulheres. Principalmente, sua perspectiva
representaria uma forma de evidenciar como “a reciprocidade estabelecida entre homens” era
a base intransponível da ordem social, pois se as mulheres eram as “moedas de troca” os
homens acabam por aparecer como os “sujeitos da operação de troca”.
Por sua vez, o esquema de Lévi-Strauss naturalizaria tanto a maneira como o desejo
pode circular socialmente (através da elevação da posição masculina como posição de
agência, são os homens que trocam) quanto a maneira com que a transgressão será expressa

206
Idem, p. 549.
207
Idem, p. 549.
208
BUTLER. Gender trouble, p. 53.
116

(através da constituição do incesto heterossexual como a matriz pré-social do desejo). Daí


vem a pergunta fundamental de Butler:

‘A lei’ produziria tais posições de maneira unilateral e invariável? Poderia ela


produzir configurações da sexualidade que efetivamente contestariam a própria lei
ou são tais contestações inevitavelmente fantasmáticas? Pode a generatividade da
lei ser especificada como variável ou mesmo subversiva? 209

Quer dizer, seria possível pensar a lei social de outra forma, não como a normatividade
que determina lugares e funções definidas para gêneros, criando assim a estabilidade de
identidades necessárias, mas como uma generatividade variável que produz até mesmo
subversões de configurações locais de funcionamento da norma? Ou seja, tudo se passa como
se Butler afirmasse que a análise estrutural de Lévi-Strauss é, no máximo, uma análise local.

Lacan e a comédia do Falo

Neste contexto, é de especial importância as críticas de Butler ao psicanalista Jacques


Lacan. De fato, Lacan tende a ser visto como o exemplo mais bem acabado de uma teoria da
sexualidade construída a partir de chave estruturalista. Teórico importante dentro do debate do
feminismo norte-americano, Lacan foi compreendido, por muitas feministas, como o exemplo
mais bem acabado de uma perspectiva dita falocêntrica e patriarcal do funcionamento social.
Grosso modo, podemos dizer que isto ocorreu por Lacan seguir, à sua maneira Lévi-
Strauss e afirmar a natureza constitutiva do desejo masculino na constituição dos laços
sociais. Isto o leva a afirmar que o Falo aparece como o significante a partir do qual o desejo
humano se orienta. Ele será: “ o significante fundamental através do qual o desejo do sujeito
pode se fazer reconhecer enquanto tal, quer se trate do homem ou quer se trate da mulher”210.
Este lugar central do falo é submissão da diversidade possível dos modos de sexuação
ao primado da função fálica. Assim, a sexuação feminina será inicialmente pensada através do
Penisneid (injeva do pênis), com sua maneira de superar tal relação de dependência através do
ato de transformar os atributos femininos em signos de reivindicações fálicas e que Lacan,
seguindo Joan Rivière, chama de mascarada. Da mesma forma como, para Lévi-Strauss,
sociedades são sistemas de trocas entre mulheres por sujeitos masculinos, para Lacan, as
formas de sexualidade se regulam a partir de um significante que tem sua indelével
vinculação ao gênero masculino. Pois o falo permite a construção de um Universal capaz de

209
Idem, p. 53.
210
LACAN, Séminaire V, p. 273.
117

unificar as experiências singulares do desejo. Ele cria um campo universal de reconhecimento


mútuo do desejo para além da irredutibilidade dos particularismos e dos acidentes da história
subjetiva. Isto explica porque Butler dirá que tal processo: “exige que as mulheres reflitam o
poder masculino e em todo lugar reassegurem tal poder contra a realidade de sua autonomia
ilusória”211.
No entanto, a teoria de Lacan é mais complexa do que isto que descrevi. Primeiro, é
importante lembrar como, para Lacan, a sexualidade é uma construção social. Daí porque ele
insistirá que “homem” e “mulher” são, antes de mais nada, significantes cuja realidade é
eminentemente sócio-linguística. Neste sentido, é absolutamente possível uma mulher
(anatomicamente falando) ocupar uma posição masculina na sua relação ao desejo.
Proposições desta natureza se prestam a vários mal-entendidos. Afinal, como é
possível dizer que a sexualidade é uma construção social se há diferenças anatômicas
evidentes que parecem naturalmente constituir dois sexos? E se ela é, de fato, uma construção
social, por que falamos apenas em dois sexos? Por que não cinco? Por que não abandonar a
distinção binária e pensar uma produção plástica de novas formas de sexualidade?
No entanto, dizer que a determinação da sexualidade se estabelece sem levar em conta
a diferença anatômica dos sexos, como quer Lacan, não implica afirmar que tal diferença
inexista. Não é exatamente a mesma coisa, por exemplo, um homem e uma mulher
(anatomicamente falando) ocuparem a posição masculina. O que Lacan parece nos querer
dizer é que tal diferença anatômica é desprovida de sentido, ela não é normativa por não ter
força para determinar condutas, ou seja, ela é uma diferença pura. Isto significa dizer que,
diante o sexual, sempre me vejo diante de algo irredutivelmente opaco e resistente a toda
operação social de sentido. “A sexualidade”, dirá Lacan, “é exatamente este território onde
não sabemos como nos situar a respeito do que é verdadeiro”212.
Notemos este dado fundamental: as considerações clínicas lacanianas são solidárias de
um tempo no qual as estruturas familiares perderam sua sustância normativa e no qual a
sexualidade não é mais um campo claramente direcionado à teleologia da reprodução. Neste
contexto histórico de indeterminação, a socialização do desejo não pode simplesmente levar o
sujeito a desempenhar papéis e identidades sexuais sem distância alguma, como se fosse
questão de naturalizar o que é socialmente construído. Ao contrário, a socialização do desejo
deve nos levar a confrontarmos com tal opacidade. Esta é, em última instância a função do
falo.

211
BUTLER, idem, p. 57.
212
LACAN, Jacques. Mon enseignement. Paris: Seuil, 2006, p. 32.
118

É levando tais questões em conta que devemos entender porque Lacan define o falo
como: “o significante fundamental através do qual o desejo do sujeito pode se fazer
reconhecer”213. Ou seja, o falo não é exatamente o pênis orgânico, ou algum signo de
potência, mas um significante puro, uma diferença pura que organiza posições subjetivas
(masculino/feminino) a partir da experiência de inadequação fundamental entre o desejo e as
representações “naturais” da sexualidade. Neste sentido, o falo é apenas: “um símbolo geral
desta margem que sempre me separa de meu desejo”214. Tal noção do falo como ‘um símbolo
geral desta margem que sempre me separa do meu desejo’ nos mostra como o falo é apenas a
inscrição significante da impossibilidade de uma representação adequada do sexual no
interior da ordem simbólica215. Ele é a inscrição significante da relação de inadequação entre
o sexual e a representação. Neste sentido, a Lei lacaniana demonstra-se vazia, desprovida de
todo conteúdo normativo positivo.
Para Butler, a estratégia de Lacan é paralisante, pois ao mesmo tempo reconhece o
caráter impossível de sustentar identidades de gênero como identidades fortemente
normativas, ou seja, abre espaço para a experiência da negatividade do desejo em uma chave
que não deixa de nos remeter a Hegel, mas perpetua tais identidades sem permitir o
aparecimento de novas configurações possíveis para além do quadro heterossexual, não
fornecendo a tal negatividade sua verdadeira força produtiva, ao menos segundo Butler. Daí
uma afirmação como:

Que plausibilidade pode ser dada a um relato do Simbólico que requer a


conformidade a uma Lei que demonstra sua impossibilidade de agir (to perform) e
que não dá espaço para a flexibilidade da própria Lei, para sua reformulação
cultural em formas mais plásticas? (...) A solução não está em sugerir que a
identificação deva se transformar em uma realização bem acabada. Mas parece
haver uma romantização ou, na verdade, uma idealização religiosa da “falta”, da
humilhação e da limitação diante da Lei que faz da narrativa lacaniana algo
ideologicamente suspeito216.

Esta passagem crítica por Lévi-Strauss e Lacan é muito importante para Butler
evidenciar, ao menos a seus olhos, estratégias narrativas que impossibilitam ultrapassar a
matriz identitária heterossexual como modalidade de regulação geral da vida social. Seja
através do caráter normativo do estruturalismo de Lévi-Strauss, seja através da conservação

213
LACAN. Séminaire V. Paris : Seuil, 1998, p. 273.
214
LACAN. Séminaire V, p. 243.
215
É a partir de tal perspectiva que podemos compreender Lacan quando ele fala da : “relação significativa da
função fálica enquanto falta essencial da junção da relação sexual com sua realização subjetiva” (LACAN, S
XIV, sessão do 22/02/67).
216
BUTLER, idem, p. 72.
119

da impossibilidade em Lacan, é sempre o quadro de distinções heterossexuais que é


conservado em sua função de referência. Mesmo que no caso de Lacan, ele pareça ser
conservado através de uma certa melancolia vinda desta pretensa: “idealização religiosa da
“falta”, da humilhação e da limitação diante da Lei”, deste vínculo a uma identidade que
parece a todo momento expressar sua própria impossibilidade.

Melancolia e identidade

Levando em conta este ponto, Butler passa a terceira estratégia de seu capítulo,
certamente aquela que mais será por ela posteriormente retomada. Trata-se de insistir que a
força da submissão dos sujeitos a identidades de gênero pensadas em uma matriz estável e
insuperável é indissociável dos usos da melancolia. O poder age produzindo em nós
melancolia, fazendo-nos ocupar uma posição necessariamente melancólica. Se vocês
quiserem, podemos dizer que o poder nos melancoliza e é deste forma que ele nos submete.
Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os mecanismos clássicos de coerção.
Neste ponto, seu recurso a um texto de Freud, intitulado “Luto e melancolia” é
fundamental. Ele será retomado como eixo de um de seus livros mais importantes: “A vida
psíquica do poder: teorias da sujeição”. Gostaria de apenas lembrar aqui de algumas
características gerais da ideia freudiana para, na próxima aula, retomar este ponto mostrando
como se trata de um ponto fundamental para sua teoria do poder e da ação política.
Butler vê, na descrição freudiana sobre o luto e a melancolia, o regime geral de
constituição de identidades sociais, em especial de identidades de gênero. Pois: “a
identificação de gênero é uma forma de melancolia na qual o sexo do objeto proibido é
internalizado como uma proibição”217.
Se formos ao texto de Freud, veremos como um dos seus méritos está em sua
capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexão mais ampla sobre
as relações amorosas. Freud sabe que o amor não é apenas o nome que damos para uma
escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos de formação da identidade subjetiva.
Esta é uma maneira de dizer que as verdadeiras relações amorosas colocam em circulação
dinâmicas de formação da identidade, já que tais relações fornecem o modelo elementar de
laços sociais capazes de socializar o desejo.
Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a fim de lembrar que se
tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.

217
Idem, p. 80.
120

Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo. No entanto, o


melancólico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do sentimento de
autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse contra si próprio, através de
autorrecriminações e acusações. A tese fundamental de Freud consiste em dizer que ocorreu,
na verdade, uma identificação do Eu com o objeto abandonado de amor. Tudo se passa como
se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a melancolia fosse a continuação
desesperada de um amor que não pode lidar com a situação da perda. Incapacidade vinda do
fato de a perda do objeto que amo colocar em questão o próprio fundamento da minha
identidade. Mais fácil mostrar que a voz do objeto ainda permanece em mim, isto através da
autoacusação patológica contra aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Essa é uma
maneira de dizer que a melancolia é o cristal quebrado que nos mostra a natureza
radicalmente relacional de nossas identidades.
Butler vincula tal dinâmica da melancolia à ideia freudiana de uma bissexualidade
inata nos seres humanos. Para Freud, começamos todos por investir libidinalmente os pais de
ambos os sexos. Ë só através de um construção social da identidade de gênero que
transformarmos o investimento em figuras do mesmo sexo em identificações capazes de
organizar o ideal do eu. Ou seja, perdemos escolhas de objetos homossexuais para podermos
nos tornar heterossexuais. Tudo se passa como se a perda destas primeiras escolhas marcasse
com o selo da melancolia toda construção social possível da identidade.
121

Erotismo, sexualidade e gênero


Aula 12

Gostaria de nesta aula terminar o módulo dedicado ao conceito de “gênero” em Judith


Butler. Mesmo que muito ainda haveria a se dizer sobre problemas de gênero, eu idealizara
este módulo apenas como uma introdução. Algo que pode orientar vocês em reflexões futuras
sobre as relações entre sexo, política e formação da identidade. Na aula de hoje, gostaria de
mostrar como tal reflexão sobre problemas de gênero permitirá a Butler desenvolver posições
originais a respeito de questões estruturais nos campos da ética e da política. Para tanto, trata-
se aqui de inicialmente discutir a maneira com que Butler compreende a forma do poder
sujeitar sujeitos, desenvolvendo com isto uma temática da produtividade do poder que vimos
anteriormente com Michel Foucault.
Butler herda de Foucault a compreensão da identidade como problema político central.
Sua teoria de gênero, como vimos, não era uma teoria da produção social de identidades, mas
uma reflexão sobre a dimensão necessariamente opaca de nossa relação ao sexual, sobre a
maneira como há algo em nossa experiência do sexual que nos faz pensar o sujeito para além
da figura de uma substância auto-idêntica e estável capaz de se auto-determinar.
Sendo assim, uma questão política decisiva, como vimos na aula passada, passa por
tentar explicar como e porque é criada a ilusão de que a vida social deve se orientar por
identidades estáveis ou ainda, no caso da relação entre sexo e gênero, como e porque ocorre a
reificação de tomar por normatividade natural aquilo que é produto de uma relação social de
poder. Neste sentido, ela dirá:

A auto-justificação de uma lei repressiva ou subordinadora quase sempre


fundamenta-se em uma história sobre como era antes do advento da lei e o que
aconteceu para que a lei emergisse em sua forma presente e necessária 218.

Temos então inicialmente a ideia de que há uma dimensão “repressiva” da lei. Não
sendo a lei uma operação da normatividade social sobre uma matéria naturalmente dada
(corpo, impulsos, desejos naturais), esta repressão não contra um princípio exterior ao poder.
Ela age contra a própria dinâmica interna do poder, com seus jogos de força continuamente
cambiantes. Como se uma configuração momentânea do poder se cristalizasse procurando se
perpetuar. Para tanto, faz-se necessário colocar em circulação “uma história sobre como era
antes do advento da lei”. História de informidade e caos. Como se fora da configuração atual
da lei, só pudesse haver anomia e destruição da vida. Ou seja, só pode haver conformação à
218
Idem, p. 46.
122

configuração atual da lei, organização das possibilidades da vida a partir do funcionamento


estático de normas lá onde há a produção contínua do medo.

Poder e melancolia

Neste contexto, a crítica social se transforma em uma tentativa de compreender como


certos afetos são produzidos a fim de conformar sujeito a determinados tipos de
comportamentos, a aceitarem certas impossibilidades de ação como necessárias, a assumirem
certos medos. Uma teoria da sujeição será necessariamente teoria dos afetos sociais. Neste
contexto: “sujeição consiste precisamente nessa dependência fundamental em relação a um
discurso que nunca escolhemos mas que, paradoxalmente, inicia e sustenta nossa agência” 219.
Ou seja, um discurso que não sinto como completamente meu, mas que define a maneira com
que defino minha ação. Um discurso que , de certa forma, está dentro de mim sem ser
completamente idêntico ao que entendo por minha identidade.
A este respeito, a hipótese de Judith Butler consistirá em mostrar como a força da
submissão dos sujeitos seja a identidades de gênero pensadas em uma matriz estável e
insuperável, seja à própria forma geral da identidade é indissociável dos usos da melancolia.
O poder age produzindo em nós melancolia, fazendo-nos ocupar uma posição
necessariamente melancólica. Se vocês quiserem, podemos dizer que o poder nos melancoliza
e é deste forma que ele nos submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os
mecanismos clássicos de coerção, pois violência de uma regulação social que leva o eu a
acusar si mesmo em sua própria vulnerabilidade. Desta forma, através da melancolia, posso
aceitar ser habitado por um discurso que, ao mesmo tempo, não é meu mas me constitui.
O conceito de melancolia utilizado por Judith Butler vem de Freud. Neste ponto, seu
recurso a um texto de Freud, intitulado “Luto e melancolia” é fundamental. Ele será retomado
como eixo de um de seus livros mais importantes: “A vida psíquica do poder: teorias da
sujeição”. Gostaria de inicialmente lembrar de algumas características gerais da ideia
freudiana para, ao final, mostrar como se trata de um ponto fundamental para a teoria do
poder e da ação política de Judith Butler.
Butler vê, na descrição freudiana sobre o luto e a melancolia, o regime geral de
constituição de identidades sociais, em especial de identidades de gênero. Pois: “a
identificação de gênero é uma forma de melancolia na qual o sexo do objeto proibido é
internalizado como uma proibição”220.
219
BUTLER. The Psychic Life of Power, p. 2.
220
Idem, Gender trouble, p. 80.
123

Se formos ao texto de Freud, veremos como um dos seus méritos está em sua
capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexão mais ampla sobre
as relações amorosas. Freud sabe que o amor não é apenas o nome que damos para uma
escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos de formação da identidade subjetiva.
Esta é uma maneira de dizer que as verdadeiras relações amorosas colocam em circulação
dinâmicas de formação da identidade, já que tais relações fornecem o modelo elementar de
laços sociais capazes de socializar o desejo, de produzir as condições para o seu
reconhecimento. Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a fim de
lembrar que se tratam de duas modalidades de perda de objeto amado. Por outro lado, isto nos
explica porque Butler dirá: “nenhum sujeito emerge sem um vínculo passional com esses com
os quais ele ou ela é fundamentalmente dependente”221.
Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo: esta é, para Freud, a
base da experiência que vincula luto e melancólica. No entanto, o melancólico mostraria algo
ausente no luto: o rebaixamento brutal do sentimento de autoestima. Como se, na melancolia,
uma parte do Eu se voltasse contra si próprio, através de autorrecriminações e acusações. Há
uma “reflexividade” na melancolia através da qual eu me tomo a mim mesmo como objeto,
clivando-me entre uma consciência que julga e outra que é julgada. Como se houvesse uma
base moral para a reflexividade, tópico que Butler encontrará em autores como Hegel e
Nietzsche. Principalmente, como se houvesse uma agressividade em toda reflexividade. Uma
reflexividade que acaba por fundar a própria experiência da vida psíquica, de um espaço
interior no qual, como dizia Paul Valéry, eu me vejo me vendo, criando assim uma estrutura
de topografias psíquicas.
A tese fundamental de Freud consiste em dizer que ocorreu, na verdade, uma
identificação de uma parte do Eu com o objeto abandonado de amor. Tudo se passa como se a
sombra desse objeto fosse internalizada, como se a melancolia fosse a continuação
desesperada de um amor que não pode lidar com a situação da perda. Incapacidade vinda do
fato de a perda do objeto que amo colocar em questão o próprio fundamento da minha
identidade. Mais fácil mostrar que a voz do objeto ainda permanece em mim, isto através da
autoacusação patológica contra aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Daí uma afirmação
como: “Freud identifica consciência elevada e auto-reprimendas como signos da melancolia
com um luto incompleto. A negação de certas formas de amor sugere que a melancolia que
fundamenta o sujeito assigna um luto incompleto e não resolvido” 222. Assim, a sujeição do

221
Idem, The Psychic Life of Power, p. 7.
222
BUTLER. The Psychic Life of Power, p. 23.
124

desejo pode se transformar em desejo por sujeição. Essa é uma maneira de dizer que a
melancolia é o cristal quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de nossas
identidades.
Butler insiste como tal vínculo melancólico a um objeto perdido funda a própria
identidade do Eu, seu valor e seu lugar. É desta forma que as identidade em geral são
constituídas. Tendo isto em mente, ela pode vincular inicialmente tal dinâmica da melancolia
à ideia freudiana de uma bissexualidade inata nos seres humanos. Para Freud, começamos
todos por investir libidinalmente os pais de ambos os sexos. Ë só através de um construção
social da identidade de gênero que transformarmos o investimento em figuras do mesmo sexo
em identificações capazes de organizar o ideal do eu. Ou seja, perdemos escolhas de objetos
homossexuais para podermos nos tornar heterossexuais. Tudo se passa como se a perda destas
primeiras escolhas marcasse com o selo da melancolia toda construção social possível da
identidade. Pois identidades serão sempre marcadas por essa impossibilidade de voltar a
investir libidinalmente aquilo que perdi, aquilo que agora se transformou em um ponto opaco
do meu desejo. Essa perda me faz ter uma identidade melancólica.

Ética e opacidade

Através desta teoria da melancolia como dispositivo de constituição da vida psíquica


pelo poder, Butler pode expor o tema de como somos atravessados por objetos que não
conseguimos completamente integrar e que podem se voltar contra nós em uma reflexividade
violenta e paralisante. Estes objetos demonstram como nossa constituição como sujeito de
nossos atos é indissociável da permanência de vínculos libidinais que aparecem a nós de
maneira opaca, desestruturando a todo momento nossas identidades e as narrativas que
construímos sobre o que somos e quem somos. Daí uma ideia importante como: “Se exijo
“ter” uma sexualidade, então isto poderia parecer que uma sexualidade é o que está aqui para
ser chamada de minha, para possuir como um atributo. Mas e se sexualidade é o meio através
do qual sou despossuído?”223. Ou seja, se há algo na experiência sexual que sempre parece nos
colocar diante de objetos que nos desestruturam, que nos despossui, então integrar o que tem a
força de nos despossuir pode ter uma consequência políica importante. Pois isto significa
reconhecer minha dependência em relação ao que não controlo. Não se trata assim de um
abandono de uma noção autárquica de autonomia em direção a uma forma mais elaborada de
relacionalidade, ou seja, de reconhecimento da natureza relacional do sujeito em sua agência.

223
Idem, Undoing Gender, p. 16.
125

A ideia de uma natureza relacional não capta o que significa as consequências da


compreensão de que : “como corpos, estamos fora de nós mesmos e somos para outro” 224.
Pois a principal consequência é a consciência de uma vulnerabilidade estrutural própria à
nossa condição. A aposta de Butler consiste em transformar a consciência da vulnerabilidade
e da dor que sentimos diante de objetos perdidos em elemento fundamental para a
constituição da ação política. Pois podemos temer tal vulnerabilidade, o que terá
consequências evidentes:

Quando luto é algo a ser temido, nossos medos podem nos levar ao impulso de
resolver isto rapidamente, baní-lo em nome de uma ação investida com o poder de
restaurar a perda ou retornar ao mundo na sua antiga ordem ou ainda revigorar a
fantasia de que o mundo estava anteriormente ordenado 225.

Daí uma questão importante que consiste em se perguntar sobre o que pode ser ganho
para o domínio político ao mantermos uma certa vulnerabilidade comum como condição para
uma forma de reconhecimento que me permite não impedir que o sofrimento do outro seja
indiferente para mim.
Servindo-se deste ponto, Butler procura desenvolver um modelo de reflexão ética que
terá fortes consequências políticas. Partindo de seu referencial hegeliano, Butler pensará os
problemas políticos e morais a partir de discussões relativas às dinâmicas de reconhecimento
da alteridade. Agir de maneira moral é ser capaz de reconhecer o outro como sujeito, mesmo
em situações nas quais ele não parece agir a partir dos critérios e predicados de humanidade
que convencionamos a atribuir a todos os sujeitos. Desta forma, cria-se um vínculo entre: “a
questão do poder e o problema de quem é qualificado como reconhecidamente humano e
quem não é”226. De fato, preciso me sujeitar às normas sociais com seus quadros identitários
estabelecidos para ser reconhecido como sujeito. Mas posso também sentir que os termos
pelos quais sou reconhecido fazem da vida algo impossível a se viver:
A opacidade do sujeito pode ser a consequência de seu ser concebido como um ser
relacional, ser cujas relação primárias e iniciais não estão sempre disponíveis a um
conhecimento consciente. Momentos de desconhecimento a respeito de si mesmo
tendem a emergir no contexto de relações a outros sugerindo que tais relações
chamam formas primárias de relacionalidade que não estão sempre disponíveis à
tematização explícita e reflexiva.

224
Idem, Precarious Life, p. 27.
225
Idem, p. 30.
226
Idem, Undoing Gender, p. 2.

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