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LEAL, E. M. . “Clínica e Subjetividade: a questão da autonomia na Reforma Psiquiátrica Brasileira”. In:


FIGUEIREDO, A. C. CAVALCANTI, M. T.(Org.). A Reforma Psiquiátrica e os desafios da
desinstitucionalização. Contribuições à III Conferência Nacional de Saúde Mental - Dezembro de 2001. Rio
de Janeiro: Edições CUCA - IPUB/UFRJ, 2001, v. 1, p. 69-83.

“Clinica e subjetividade contemporânea: a questão da autonomia na Reforma


Psiquiátrica brasileira”1.

Erotildes Maria Leal2

I - Clínica, subjetividade contemporânea e autonomia – uma articulação preliminar


dos três termos.

A subjetividade é uma questão crucial para a modernidade. O colapso da visão de


mundo medieval que tinha em Deus o centro do poder e da autoridade, deu ao indivíduo a
possibilidade de autoria do mundo. A assunção do homem ao centro do universo trouxe,
para o meio da cena, os temas relativos ao sujeito e a sua individualidade. A subjetividade
tornou-se, desse modo, um tema da ordem do dia. Tema complexo. Pensar a subjetividade
contemporânea exige a consideração de outras idéias que se mostraram igualmente
fundamentais para nossa era. Algumas delas se constituíram enquanto valores fundamentais
de nosso tempo. A subjetividade envolve idéia de autonomia, liberdade, auto-reflexividade,
auto-responsabilidade, materialidade de um corpo, particularidades, potencialidades
infinitas que conferem cunho próprio e único à personalidade3. Todos estes atributos,
todavia, podem ser compreendidos como do âmbito exclusivo da singularidade e por isso
mesmo isolados; ou podem ser considerados como expressão da relação “humano –social”
que se forma e se constitui de modo processual4.
Para discutir a relação da clínica com a subjetividade contemporânea tomarei aqui
apenas uma dessas idéias presentes no bojo da subjetividade: a idéia de autonomia. Na
modernidade essa idéia é, sem dúvida, uma representação imediata da liberdade humana. É
um valor que qualifica e caracteriza o humano e afirma o indivíduo como um princípio5.
Vemos, desse modo, que autonomia e individuo são termos intrinsecamente articulados.
Logo, se tal articulação se repete no campo do cuidado ganhando relevância também aí,
isso não se dá por acaso.
Podemos dizer, de forma caricatural, que muitos de nós no campo da Reforma,
chegamos mesmo a tomar a “produção da autonomia” como um certo ideal de “cura”.
A autonomia freqüentemente é considerada o que de mais importante o processo de

1
Artigo, modificado e revisado, apresentado no “II Encontro dos serviços de atenção diária do Rio de
Janeiro” – julho de 2000, na Mesa Redonda: “Clínica e Subjetividade Contemporânea”.
2
Doutora em Saúde Mental pelo IPUB/UFRJ, pesquisadora do NUPPSAM – Núcleo de Políticas Públicas em
Saúde Mental – IPUB/UFRJ e supervisora de Caps da rede municipal do Rio de Janeiro.
3
Cf. Souza Santos, B. 1995. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. Edições
Afrontamento. Porto. 4a Edição, pág. 120.
4
A esse respeito ver: Rotelli, F. e Risio, C. 1990. “Uma análise crítica dos fundamentos epistemológicos de
anormalidade e de psicopatia em Kurt Schneider”. In: Nicacio, F (org) Desinstitucionalização. São Paulo,
Hucitec.
5
Cf. Renaut, A. 1999. Avant- Propos: Liberte, Egalité, Subjectivité. IN: Renaut, A. (org.) Histoire de la
philisophie politique. Tome II: Naissances de la Modernité. Paris, Éditions Calmann- Lévy.
tratamento tem a produzir. Mas de que autonomia temos falando no campo da Reforma?
Que sentidos essa palavra tem adquirido em nosso meio? Como ela informa as nossas
ações? Que implicações poderiam, eventualmente, advir de tomá-la, nas suas mais
variadas acepções, como referência para prática de cuidado?

Não é raro pensarmos o campo do cuidado na Reforma como algo homogêneo e


harmônico. Muito freqüentemente a descrição que fazemos de nossas experiências, o uso
naturalizado de alguns termos que constituem o vocabulário habitual do campo, produz
essa impressão que, sem dificuldade, é alçada a status de verdade. Aparentemente, e já não
é de hoje, alcançamos um modo unânime de descrever a prática de cuidado que
desenvolvemos nos novos dispositivos de atenção à saúde mental. Da primeira vez que
essa unanimidade me chamou a atenção, me preocupava o modo linear como descrevíamos
o nosso cotidiano, os serviços e as nossas ações6. Até mesmo os riscos, as contradições, a
provisoriedade e a complexidade das situações vividas no dia-a-dia, características
fundamentais da, digamos, “realidade”, com a qual lidamos, pareciam ter alcançado
previsibilidade antes impensada. Ainda naquela época pensei que, para lidar com essa
aparente unanimidade que não refletia a vida real dos nossos serviços e nos mantinha na
ignorância sobre o que de fato fazíamos, seria importante:
1o. perceber que a eleição de um conjunto de princípios gerais considerados
eticamente desejáveis para nortear o nosso olhar e a nossa prática cotidiana, não nos
garantia sobre o rumo do cuidado que estávamos efetivamente produzindo. (A adoção
desses princípios, freqüentemente significados de modos muito diferentes, não assegurava
para o conjunto de experiências identificadas com o movimento de reformulação da
assistência psiquiátrica a homogeneidade que parecia sugerir. Era preciso nos indagar mais
sobre o percurso trilhado).
2o. Identificar que outras idéias, pressupostos e conceitos informavam as nossas
ações. É comum não nos darmos conta de muitas delas, ignorando a sua força na
determinação das nossas intervenções. Esse exercício poderia ser metodologicamente útil
tanto para revelar as noções que estavam condensadas no vocabulário usual do campo,
quanto para nos auxiliar a enfrentar o desafio de sabermos mais sobre o cuidado que
produzimos nesses serviços.
3o. Vencer o mito de que a particularidade de cada situação tem sido o único aspecto a
definir o caráter da intervenção. Regularidades reveladoras da maneira como entendemos o
trabalho que desenvolvemos nesses espaços tem sido encontradas mesmo nos casos em que
a máxima “cada caso é um caso” é a regra.

Olhando retrospectivamente posso afirmar que essa preocupação, surgida naquela


ocasião, ocupou-me durante todo esse período. Sem dúvida ela foi determinante para o
estudo que desenvolvi nesse tempo e, creio eu, assegurou o convite para participar do
debate proposto para essa mesa: clínica e subjetividade moderna.
Nesses anos tenho sustentado, a partir de pesquisa, que as práticas da Reforma são
heterogêneas. Há séries diferentes de regularidades e a elas subjazem noções diversas de

6
Sobre esta questão ver: Leal, Erotildes Maria. 1999. “Tudo está em seu lugar? Da importância de irmos
além dos princípios gerais na discussão da prática dos serviços- dia”. In: Cadernos do IPUB No. 14 ,
Práticas ampliadas em saúde mental: desafios e construções do cotidiano. Rio de Janeiro, UFRJ.
sujeito e de mundo7. Será então a partir desse recorte que discutirei a questão da autonomia
no campo da Reforma. Tentarei mapear como este valor que qualifica e caracteriza o
indivíduo tem sido significado em nosso meio. A partir disso teremos um esboço dos
modos como a subjetividade contemporânea e a clínica que se propõe a promover a
autonomia têm se articulado.

II – A questão da autonomia no campo da Reforma Psiquiátrica brasileira.

O levantamento apresentado a seguir teve como fonte material bibliográfico


identificado com a Reforma Psiquiátrica, produzido principalmente no período de 86 a 98.
Foram investigadas publicações comemorativas de serviços abertos, trabalhos inscritos
como temas livres em congressos, artigos, revistas, livros e outros. Desse material
basicamente quatro formas distintas de compreender a idéia de autonomia ganharam
visibilidade. Vale dizer que esses sentidos não se apresentaram puros como descreverei.
Embora freqüentemente estivessem articulados e se imiscuíssem, pressupostos diferentes
pareciam informar cada um deles. Delineavam-se tendências distintas no modo de definir a
noção de autonomia. Pareceu-me útil, apesar dos riscos, tentar circunscrevê-los.
A expectativa, a partir desse exercício, era fazer da idéia de autonomia um guia.
Definindo-a tornar-se-ia possível deduzir não só como outras idéias fundamentais,
presentes no bojo da noção de subjetividade, estavam sendo significadas, mas também
como a própria noção de subjetividade era compreendida. A observação de uma dada
descrição da idéia de autonomia, por exemplo, daria pistas para se inferir como a noção de
interioridade era compreendida e conseqüentemente como se definiam as várias idéias de
sujeito identificadas no campo da Reforma. A realização dessa tarefa tinha o propósito de
evidenciar as noções de sujeito e de mundo que sustentam as nossas ações, favorecendo o
melhor conhecimento dos modos como temos compreendido e conseqüentemente
construído o cuidado, a clinica, em nossos serviços.
Havia ainda um outro motivo que fazia da noção de autonomia uma categoria
privilegiada para o conhecimento do campo: a existência de um projeto de totalização,
comum a todo material investigado, que buscava romper a dicotomia indivíduo X
sociedade. Esse projeto era tomado como condição indispensável para a garantia do
princípio ético mais importante do campo – cuidar sem segregar. A construção de um
outro lugar social para a loucura/ louco reclamava que estes termos – indivíduo e sociedade
- aparentemente antagônicos, fossem revistos. Sem a sua articulação seria impossível
garantir o principio ético maior. Indivíduo e sociedade não podiam mais ser consideradas
entidades ontológicas radicalmente diferentes. Todo material pesquisado sugeria a
necessidade capital de ultrapassar essa dicotomia. A categoria autonomia, por não ter sido
significada sempre do mesmo modo, e por ser considerada um atributo fundamental do
7
A esse respeito ver: 1. Leal, Erotildes Maria. 1999. “O agente do cuidado na Reforma Psiquiátrica brasileira:
modelos de conhecimento”. Tese de doutorado. IPUB/UFRJ.
2. Leal, Erotildes Maria. 2000. “O campo da Reforma Psiquiátrica brasileira: noções de
sujeito e de mundo presentes no discurso dos agentes do cuidado.” Cadernos do IPUB, No. 18,
Antropologia e História dos Saberes psicológicos. Rio de Janeiro, UFRJ/IPUB.
3. Leal, Erotildes Maria.2001. “Interioridade, pessoa moderna e eu dividido em
Durkheim e Mauss: contribuições para o campo da saúde mental.”In: Venâncio ,A.T. e Cavalcanti, M. T.
(orgs) Saúde Mental: Campo, Saberes e Discursos. Rio de Janeiro: Edições IPUB/CUCA.
indivíduo moderno, comumente associada às idéias de autogoverno, livre arbítrio e
autosuficiencia, era um bom indicador para se avaliar os contornos alcançado pelo projeto
de articulação da noção de indivíduo e sociedade. Estas noções ora apareciam reificadas e
definidas de modo atemporal e abstrato ora eram relativizadas e passavam a comportar
atributos particulares e especiais. Tais diferenças garantiam contornos variados para o
projeto de articulação das noções de indivíduo e sociedade, para o modo de compreender a
própria subjetividade e produziam conseqüências diversas para o desenho do cuidado. É
isso que tentarei mapear resumidamente a seguir.
Foram basicamente quatro os modos de descrever a autonomia.

Modo I: A autonomia refere-se ao livre arbítrio, independência, auto- suficiência e


autogoverno.

A autonomia, quando definida como livre arbítrio, independência, auto-suficiencia e


autogoverno, em geral caracterizava o sujeito com sujeito da vontade. Soberana,era ela – a
vontade - que garantia, em tese e de forma abstrata, a diferença entre os sujeitos. Havia
nesse caso nuanças importantes que dependiam também do modo com era concebida a
interioridade do sujeito. Pelo menos duas variações desta primeira forma de definir
autonomia poderiam ser descritas. Na primeira variação o sujeito tornar-se-ia autônomo, ou
seja, independente, livre e com capacidade para se autogovernar quando parte de si – a
parte habitualmente profunda e eventualmente oculta - pudesse, através do processo de
tratamento, se revelar. O trabalho consistia em favorecer que a natureza do sujeito, ocultada
pela doença, se revelasse.
Na segunda variação o que estava oculto não era exatamente algo da ordem de uma
natureza já dada. A interioridade estava marcada por uma divisão do eu em que a parte
oculta constrangia o sujeito a ser sempre o mesmo. Ser autônomo era estar livre deste
constrangimento para poder com independência estabelecer novos modos de viver. Nestas
duas variações a relação do sujeito com a sociedade foi pouco tematizada. Havia um certo
apagamento da sociedade, daquilo que podia ser considerado fora ao indivíduo.
Em geral, nas duas alternativas, o social, a sociedade, quando presente estava
integralmente identificado àquilo que o sujeito apreendia dele. Raras vezes estes termos não
foram definidos exclusivamente a partir desta apreensão. Todavia, nas vezes em que isso
aconteceu havia uma forte idéia de que aquilo que não se constituía a partir do sujeito não
necessariamente teria que ser objeto de intervenção. Na verdade as questões relativas ao
social, à sociedade, não eram prioritárias no campo de preocupação daqueles que assim
concebiam a autonomia. Produzir um sujeito autônomo era, antes de tudo, produzir um
sujeito que pudesse realizar, durante o processo do tratamento e na instituição, a sua
vontade. Havia uma aproximação entre autonomia e possibilidade de realização da vontade,
independente das definições dada à própria vontade. Neste caso a compreensão adotada
para a subjetividade não tematizava de modo algum a relação entre o indivíduo e o social.

Modo II: Autonomia como uma característica sempre limitada, por causa da sua
divisão interna do sujeito.
Para este grupo os conceitos de vontade, interioridade e sujeito ganharam definições
tão particulares que foi preciso destacá-los. A autonomia, sob essa perspectiva, estava
sempre limitada. A divisão interna do sujeito – entre o eu e o outro de si – apresenta-se
como algo instransponível. Não haveria qualquer possibilidade dessas duas instâncias se
harmonizarem. Logo, o sujeito da vontade, identificado aí com o eu, estaria
permanentemente cerceado. O social, introjetado, constituía uma terceira instância no
“interior” do sujeito. Representante da cultura diferia, por suas características próprias, do
eu e do outro de si com os quais, em tese, era também incapaz de harmonizar-se. A
subjetividade, neste caso limitava-se à singularidade. Todavia, não mais uma singularidade
descrita no padrão interior. Aqui a sua complexidade era tão maior que era capaz de abarcar
em seu interior o próprio social, embora tematizado a partir da interioridade.

Modo III: A autonomia diz respeito ao indivíduo livre, independente, auto-suficiente,


mas ele tem esta potencialidade limitada porque é sempre devedor de obrigações ao meio
onde está inserido.

Quando a autonomia dizia respeito ao indivíduo livre, independente, auto-suficiente,


mas considerava-o devedor de obrigações ao meio onde estava inserido, o social
comparecia de forma particular. Apresentava-se principalmente como um elemento capaz
de constranger a vontade do indivíduo. Observem, nesta perspectiva aquilo que constrange
o sujeito – no que diz respeito a sua autonomia - não é uma dada dimensão da sua
interioridade. Há algo diverso do próprio indivíduo, de fora, que realiza esse papel. O
sujeito era o sujeito da vontade mas cabia a ele ter controle sobre ela a partir da
consideração das regras sociais. Essa definição justifica, por exemplo, ações que
estabeleçam o cerceamento àqueles que descumpre as regras sociais. Quando essa idéia de
autonomia é adotada é comum observar o esforço de adequar o paciente aos modelos de
indivíduo socialmente aceitos.
Sob essa perspectiva a “produção de autonomia” como ideal de cura adquire um
caráter normativo peculiar: é menos inclusiva e incorre mais freqüentemente no risco de
promover a exclusão. É fato que não há como pensar que as práticas de cuidado podem
deixar de ser práticas normativas. Elas sempre dizem respeito a valores, escolhas8. A norma
todavia pode ser rígida, tomada como verdade atemporal e eterna ou considerada fruto da
ação dos homens e por isso mutável. Quando o seu sentido aproxima-se da primeira
alternativa, cabe àqueles que cuidam adequar os pacientes aos modelos socialmente aceitos
como padrão de normalidade. Neste caso a norma tem maior risco de ser excludente.
Quando o seu sentido aproxima-se da segunda alternativa as práticas podem buscar normas
mais inclusivas, que considerem legítimos modelos de indivíduo não necessariamente
aceitos como padrão. Quando a autonomia era definida dessa forma a subjetividade
apresentava-se como expressão da relação do individual com o social, só que tal relação era
tomada como imutável e eterna. Nenhuma possibilidade de mudança lhe era atribuída.

8
Sobre o tema da normatividade das práticas de cuidado ver:
1. Costa, J. F. 1994. “Apresentação” . In: Goldberg, J. I. Clínica da Psicose. Um projeto na rede pública.
Rio de Janeiro; Te Corá Editora: IFB.
2. Costa, J. F. 1996. “As éticas da psiquiatria”. In: Figueiredo, A. C. e Silva, J. F. (orgs.). Ética e Saúde
Mental. Rio de Janeiro, Topbooks.
Modo IV: A Autonomia é definida como capacidade do indivíduo de gerar normas
para a sua vida a partir de sua possibilidade de ampliar suas relações com o social.

Nesta modalidade o indivíduo é considerado produto das relações sociais. Isso o


articula de forma definitiva com o social. A idéia de independência, tão cara à noção de
autonomia, ganha assim uma outra descrição. Será considerado mais autônomo aquele que
depender do maior número de relações com pessoas e coisas. É isso que lhe garantirá
possibilidade de escolha e lhe dará capacidade de gerar novas normas, ampliando o seu
repertório para lidar com o meio no qual está inserido. Neste caso o indivíduo é
considerado autônomo quando não esta refém de determinações únicas, absolutas e
totalizantes. Em geral, sob essa perspectiva ele, é considerado livre quanto maior e mais
variadas forem as suas possibilidades de relações.
A vontade é tematizada por esse grupo, mas não é compreendida como produto
exclusivo do arbítrio do indivíduo. É também considerada uma produção histórica e social.
Sob essa perspectiva a autonomia como ideal de cura é produtora de uma normatividade
inclusiva. A subjetividade, por sua vez, não só é expressão da relação do humano com o
social, como é considerada algo mutável, socialmente construído e forma-se
processualmente. Para que a autonomia seja definida deste modo é preciso que se assegure
um caráter historio não só para o indivíduo mas também para o social.

Após essa sucinta apresentação das idéias de autonomia presentes no campo da


Reforma, podemos, para concluir, destacar, considerando ainda o material investigado,
quais são as principais implicações que decorrem de cada um dos modos de concebê-la.

III – Algumas conseqüências clínicas das várias formas de definir autonomia no


campo da Reforma psiquiátrica.

No primeiro modo de conceber autonomia (aquele em cabe ao tratamento fazer advir


o sujeito independente, auto-suficiente que tenha livre arbítrio) o social não é tematizado.
O indivíduo é o cosmo. Se social existe, ele está contido no interior desse indivíduo. É
apenas um elemento de seu mundo interno que abriga dentro de si o universo. O risco de
descrever desse modo à subjetividade reside em igualá-la a mera singularidade. A
complexidade do fora, do social, costuma ser perdida, assim como a dimensão política da
loucura e do próprio cuidado. A ignorância da alteridade faz crescer muito o risco da
produção de um cuidado alienante e excludente. No material investigado foi comum ver
dimensão política da clínica perdida quando esta era a forma privilegiada de definir a
autonomia. Isso dava características muito particulares ao cuidado que se construía a partir
dessa concepção de autonomia. Citarei algumas das observadas:
a) as atividades que envolviam criatividade eram amplamente privilegiadas.
Havia um certo consenso de que eram instrumentos capazes de favorecer a
irrupção desse sujeito independente que ou estava constrangido e tinha que
ser liberto ou precisava ser criado.
b) O cotidiano do serviço era pouco ou quase nada tematizado. Quando
apareciam questões em relação à vida institucional eram de natureza
exclusivamente organizativa. Em geral a clinica estava dicotomizada das
questões organizativas. Não havia relação aparente entre o cuidado oferecido
e o dia a dia do serviço.
c) A relação com o território, com a comunidade não costumava ser questão.
Quando acontecia costumava ser meramente instrumental.

No segundo modelo (aquele em que a autonomia apresentava-se limitada por causa


da divisão interna do sujeito) o social foi tematizado a partir de uma categoria interna ao
sujeito. A subjetividade aproximava-se da singularidade. Esta, todavia, definia-se de modo
complexo porque continha em seu interior, em toda a sua extensão, a alteridade. O cuidado
construído a partir dessa concepção de autonomia muito freqüentemente apresentou as
seguintes características:
a) Fez do tratamento psicoterápico uma prescrição para todos;
b) Fez do restante das modalidades terapêuticas instrumentos hierarquicamente
inferiores ao primeiro, porque incapazes, teoricamente, de enfrentar o tema da
divisão subjetiva.
c) Freqüentemente estabelecia com a comunidade e com o território relação
instrumental.

Para a clinica, três grandes riscos ficaram evidentes quando a subjetividade foi
descrita assim:
a)reduzir a dimensão política da clinica àquilo que do social se reflete dentro do
sujeito;
b) reduzir o trabalho clínico apenas ao trabalho que considera a dimensão do sujeito
que não é definida pelo sujeito da vontade;
c) desconectar o trabalho clínico do trabalho de reinserção social, considerando-o
como ações que estão fora do campo da clinica.
A conseqüência mais clara dessas três possibilidades foi favorecer que o agente do
cuidado em saúde mental se desimplicasse da responsabilidade de construí para o louco e
para a loucura um outro lugar na sociedade.

No terceiro modo de definir a autonomia - aquele em que ela significa liberdade e


independência mas está limitada pelo meio – tanto a subjetividade quanto a visão de mundo
privilegiada ganham contornos específicos. O cosmos aí parece ser composto por dois
elementos que se articulam: o indivíduo e o mundo. A subjetividade não pode mais ser
compreendida como puro sinônimo da singularidade. O problema é que sob essa
perspectiva indivíduo e sociedade são definidos de modo monolítico. As duas concepções
afiguram-se marcadas por um tempo e um espaço não definidos. Isso lhes confere um
caráter absoluto e atemporal. Não são concepções concretas e contextuais. O risco maior
desse modo de compreender a autonomia é fazer da subjetividade humana algo
determinado por uma razão sem história. Perde-se assim a característica principal da
subjetividade contemporânea: ser uma subjetividade sem centro porque definida a cada
período histórico pelos valores hegemônicos9. O cuidado construído a partir dessa
concepção de autonomia muito freqüentemente apresentou as seguintes características:
a) possuía um script de recursos terapêuticos aos quais os pacientes deviam se
adequar (nesses serviços era freqüente a idéia, por exemplo, de que todos os
pacientes deveriam participar de atividades grupais tipo oficinas terapêuticas,
atividades individuais, assembléias).
b) Autorizou, sem maiores questionamentos, a classificação de pacientes como
“sem perfil para o serviço”, quando esses não se adequavam ao tratamento
oferecido.
c) Favoreceu que pacientes deixassem de receber tratamento porque não
constituíam “vínculo com o serviço”. Essa avaliação em geral tinha um tom
acusatório em relação aos pacientes. Encobria a idéia de que oferecia-se o
que era necessário ao tratamento e se o paciente não aceitava isso não era
problema do serviço. Quando essa característica era relevante o cotidiano do
serviço deixava de ser questão clínica. Aparecia relacionada exclusivamente
a problemas organizacionais.

Para a clínica, as conseqüências da descrição da subjetividade nestes termos foram


principalmente:
a) permitir o esmaecimento da dimensão política da clínica em função de
considerá-la imutável;
b) negligenciar as possibilidades de pensar mudanças que considerasse
pacientes, instituição e o social;
Sob essa perspectiva muito facilmente o cuidado oferecido apresentou-se como uma
clínica da conservação: conservava-se o modelo de subjetividade hegemônico como padrão
de normalidade e conservava-se o padrão de exclusão do louco da sociedade porque
facilmente o naturalizam. Nesse caso, muito freqüentemente a clínica careceu de
iniciativas criativas e primou pela repetição do mesmo.

No quarto modo de definição da autonomia (aquele em que ela apresentou-se como


capacidade de promover o maior número de relações possíveis) a subjetividade adquiriu
características ainda diferentes dos modelos anteriores. Expressão da relação entre o
indivíduo e o social marcava-se por um caráter processual que lhe garantiu historicidade.
Não havia um centro da subjetividade pré-definido de modo atemporal e absoluto. A sua
concepção foi preferencialmente contextual e dependeu basicamente de dois aspectos:
a) das possibilidades de relações que engendrassem o indivíduo;
b) e do caráter histórico e social da vontade, valor tomado como intrinsecamente
articulado à capacidade de promover novas relações.

9
A esse respeito ver:
1. Lefort 1991. Pensando o político. Ensaios sobre a democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro;
Ed. Paz e Terra.
2. Castoriadis, C. 1987. As encruzilhadas do Labirinto I e II. Ed. Rio de Janeiro,Paz e Terra.
3. Badiou, A. 1999. “Ética e Política”. In: Garcia, C. (org.) Conferências de Alain Badiou no Brasil. Belo
Horizonte, Autentica. Pág.37 a 47.
Sob essa perspectiva o cosmo parecia definido a partir da noção de sociedade. As
duas noções – indivíduo e sociedade – não se apresentaram definidas de forma totalizante.
Em geral tanto a sociedade quanto o indivíduo foram compreendidos como mutantes e
prenhes de diversas e complexas características. Havia uma relação de imanência entre os
dois que garantia um certo grau de liberdade e indeterminação da própria história. Nem
indivíduo nem sociedade eram concebidos como fruto do passado. O cuidado construído a
partir dessa concepção de autonomia muito freqüentemente apresentou as seguintes
características:
a) Fez das questões organizacionais do dia a dia da instituição questões clínicas (o
pressuposto era o seguinte: o sujeito é também efeito do meio);
b) Tomou os desafios da reinserção social como questões do trabalho clínico (pela
mesma justificativa anterior).
c) Mais facilmente estabelecia com a comunidade e com o território uma relação
que não era instrumental. Sustentava este outro padrão relacional uma concepção
de relação de imanência entre o sujeito o local onde vive; uma relação que se
caracterizava por ser afetiva e de afecção. Este é o pressuposto que permitiu
também uma idéia de rede que não repetia o modelo de mero agrupamento
hierarquizado de serviços.

Para a clinica, o risco desse modelo era elidir as possibilidades de teorização e


conhecimento tanto do individuo quanto da sociedade. A possibilidade de mudança
permanente favoreceu, algumas vezes, a desarticulação do binômio determinação/
autonomia. Com isso a ilusão de indeterminação ganhou força. Paradoxalmente, quando
isso acontecia as regularidades, os indicadores das marcas da cultura, eram desqualificadas.
Por caminhos diferentes daqueles assinalados anteriormente incorria-se em risco já
indicado: a perda da dimensão daquilo que era particular tanto para o indivíduo quanto para
a sociedade.

IV – Notas finais

Para encerrar será importante contextualizar nos dias de hoje a preocupação primeira
que dirigiu os estudos apresentados neste artigo. Entretanto, antes disso quero chamar
atenção para uma observação feita anteriormente. O mapa apresentado aqui é um mapa
limitado, esquemático. O cuidado oferecido no campo da Reforma não tem esta pureza
descrita nos modelos. A clínica da Reforma não é um corpo único multifacetado. Há várias
clínicas nesse campo, clínicas que muitas vezes se sobrepõem, compõem umas com as
outras, estabelecem alianças e em tantas outras se antagonizam. O interesse em apresentá-
las internamente sem contradições e nuanças teve um objetivo principal: fazer ver melhor
as tensões que são constitutivas da subjetividade contemporânea (por exemplo, tensão entre
valores fundamentais de nossa cultura como liberdade/ determinação; igualdade/ diferença).
Logo, esse foi apenas um artifício teórico para possibilitar a melhor visualização da gênese
de cada uma dessas posições. Sabemos, pelas características de nossa cultura, que nenhuma
delas é monolítica e livre de contradições.
De minha preocupação inicial, para finalmente encerrar, quero ainda fazer uma última
consideração. Quando me ocupei pela primeira vez do desafio de conhecermos melhor o
que produzimos como cuidado no campo da reforma o cenário era outro. A rede
substitutiva ao hospital psiquiátricos praticamente inexistia e engatinhávamos na
tematização de questões que tornaram-se relevantes. Por exemplo, as discussões sobre rede
e território não tinham expressão, os serviços de atenção diária tipo CAPS eram
apresentados como a alternativa ao hospital psiquiátrico, etc... Essa realidade se
transformou. Novas questões ganharam legitimidade assim como novos dispositivos de
cuidado foram surgindo. Essa ampliação do campo, todavia, não garantiu de melhor
conhecimento acerca do que produzimos. A adoção de um vocabulário mais rico para
descrever nossas ações não nos livrou de facilmente atribuir-lhe significado conservador
em relação a velhas práticas de cuidado. Uma atitude interrogativa diante do nosso dia a
dia, evitando tomá-lo como sabido e conhecido de antemão continua necessária e atual.
Minha expectativa foi ter contribuído para o enfrentamento desse permanente desafio.

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