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Artigo, modificado e revisado, apresentado no “II Encontro dos serviços de atenção diária do Rio de
Janeiro” – julho de 2000, na Mesa Redonda: “Clínica e Subjetividade Contemporânea”.
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Doutora em Saúde Mental pelo IPUB/UFRJ, pesquisadora do NUPPSAM – Núcleo de Políticas Públicas em
Saúde Mental – IPUB/UFRJ e supervisora de Caps da rede municipal do Rio de Janeiro.
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Cf. Souza Santos, B. 1995. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. Edições
Afrontamento. Porto. 4a Edição, pág. 120.
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A esse respeito ver: Rotelli, F. e Risio, C. 1990. “Uma análise crítica dos fundamentos epistemológicos de
anormalidade e de psicopatia em Kurt Schneider”. In: Nicacio, F (org) Desinstitucionalização. São Paulo,
Hucitec.
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Cf. Renaut, A. 1999. Avant- Propos: Liberte, Egalité, Subjectivité. IN: Renaut, A. (org.) Histoire de la
philisophie politique. Tome II: Naissances de la Modernité. Paris, Éditions Calmann- Lévy.
tratamento tem a produzir. Mas de que autonomia temos falando no campo da Reforma?
Que sentidos essa palavra tem adquirido em nosso meio? Como ela informa as nossas
ações? Que implicações poderiam, eventualmente, advir de tomá-la, nas suas mais
variadas acepções, como referência para prática de cuidado?
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Sobre esta questão ver: Leal, Erotildes Maria. 1999. “Tudo está em seu lugar? Da importância de irmos
além dos princípios gerais na discussão da prática dos serviços- dia”. In: Cadernos do IPUB No. 14 ,
Práticas ampliadas em saúde mental: desafios e construções do cotidiano. Rio de Janeiro, UFRJ.
sujeito e de mundo7. Será então a partir desse recorte que discutirei a questão da autonomia
no campo da Reforma. Tentarei mapear como este valor que qualifica e caracteriza o
indivíduo tem sido significado em nosso meio. A partir disso teremos um esboço dos
modos como a subjetividade contemporânea e a clínica que se propõe a promover a
autonomia têm se articulado.
Modo II: Autonomia como uma característica sempre limitada, por causa da sua
divisão interna do sujeito.
Para este grupo os conceitos de vontade, interioridade e sujeito ganharam definições
tão particulares que foi preciso destacá-los. A autonomia, sob essa perspectiva, estava
sempre limitada. A divisão interna do sujeito – entre o eu e o outro de si – apresenta-se
como algo instransponível. Não haveria qualquer possibilidade dessas duas instâncias se
harmonizarem. Logo, o sujeito da vontade, identificado aí com o eu, estaria
permanentemente cerceado. O social, introjetado, constituía uma terceira instância no
“interior” do sujeito. Representante da cultura diferia, por suas características próprias, do
eu e do outro de si com os quais, em tese, era também incapaz de harmonizar-se. A
subjetividade, neste caso limitava-se à singularidade. Todavia, não mais uma singularidade
descrita no padrão interior. Aqui a sua complexidade era tão maior que era capaz de abarcar
em seu interior o próprio social, embora tematizado a partir da interioridade.
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Sobre o tema da normatividade das práticas de cuidado ver:
1. Costa, J. F. 1994. “Apresentação” . In: Goldberg, J. I. Clínica da Psicose. Um projeto na rede pública.
Rio de Janeiro; Te Corá Editora: IFB.
2. Costa, J. F. 1996. “As éticas da psiquiatria”. In: Figueiredo, A. C. e Silva, J. F. (orgs.). Ética e Saúde
Mental. Rio de Janeiro, Topbooks.
Modo IV: A Autonomia é definida como capacidade do indivíduo de gerar normas
para a sua vida a partir de sua possibilidade de ampliar suas relações com o social.
Para a clinica, três grandes riscos ficaram evidentes quando a subjetividade foi
descrita assim:
a)reduzir a dimensão política da clinica àquilo que do social se reflete dentro do
sujeito;
b) reduzir o trabalho clínico apenas ao trabalho que considera a dimensão do sujeito
que não é definida pelo sujeito da vontade;
c) desconectar o trabalho clínico do trabalho de reinserção social, considerando-o
como ações que estão fora do campo da clinica.
A conseqüência mais clara dessas três possibilidades foi favorecer que o agente do
cuidado em saúde mental se desimplicasse da responsabilidade de construí para o louco e
para a loucura um outro lugar na sociedade.
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A esse respeito ver:
1. Lefort 1991. Pensando o político. Ensaios sobre a democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro;
Ed. Paz e Terra.
2. Castoriadis, C. 1987. As encruzilhadas do Labirinto I e II. Ed. Rio de Janeiro,Paz e Terra.
3. Badiou, A. 1999. “Ética e Política”. In: Garcia, C. (org.) Conferências de Alain Badiou no Brasil. Belo
Horizonte, Autentica. Pág.37 a 47.
Sob essa perspectiva o cosmo parecia definido a partir da noção de sociedade. As
duas noções – indivíduo e sociedade – não se apresentaram definidas de forma totalizante.
Em geral tanto a sociedade quanto o indivíduo foram compreendidos como mutantes e
prenhes de diversas e complexas características. Havia uma relação de imanência entre os
dois que garantia um certo grau de liberdade e indeterminação da própria história. Nem
indivíduo nem sociedade eram concebidos como fruto do passado. O cuidado construído a
partir dessa concepção de autonomia muito freqüentemente apresentou as seguintes
características:
a) Fez das questões organizacionais do dia a dia da instituição questões clínicas (o
pressuposto era o seguinte: o sujeito é também efeito do meio);
b) Tomou os desafios da reinserção social como questões do trabalho clínico (pela
mesma justificativa anterior).
c) Mais facilmente estabelecia com a comunidade e com o território uma relação
que não era instrumental. Sustentava este outro padrão relacional uma concepção
de relação de imanência entre o sujeito o local onde vive; uma relação que se
caracterizava por ser afetiva e de afecção. Este é o pressuposto que permitiu
também uma idéia de rede que não repetia o modelo de mero agrupamento
hierarquizado de serviços.
IV – Notas finais
Para encerrar será importante contextualizar nos dias de hoje a preocupação primeira
que dirigiu os estudos apresentados neste artigo. Entretanto, antes disso quero chamar
atenção para uma observação feita anteriormente. O mapa apresentado aqui é um mapa
limitado, esquemático. O cuidado oferecido no campo da Reforma não tem esta pureza
descrita nos modelos. A clínica da Reforma não é um corpo único multifacetado. Há várias
clínicas nesse campo, clínicas que muitas vezes se sobrepõem, compõem umas com as
outras, estabelecem alianças e em tantas outras se antagonizam. O interesse em apresentá-
las internamente sem contradições e nuanças teve um objetivo principal: fazer ver melhor
as tensões que são constitutivas da subjetividade contemporânea (por exemplo, tensão entre
valores fundamentais de nossa cultura como liberdade/ determinação; igualdade/ diferença).
Logo, esse foi apenas um artifício teórico para possibilitar a melhor visualização da gênese
de cada uma dessas posições. Sabemos, pelas características de nossa cultura, que nenhuma
delas é monolítica e livre de contradições.
De minha preocupação inicial, para finalmente encerrar, quero ainda fazer uma última
consideração. Quando me ocupei pela primeira vez do desafio de conhecermos melhor o
que produzimos como cuidado no campo da reforma o cenário era outro. A rede
substitutiva ao hospital psiquiátricos praticamente inexistia e engatinhávamos na
tematização de questões que tornaram-se relevantes. Por exemplo, as discussões sobre rede
e território não tinham expressão, os serviços de atenção diária tipo CAPS eram
apresentados como a alternativa ao hospital psiquiátrico, etc... Essa realidade se
transformou. Novas questões ganharam legitimidade assim como novos dispositivos de
cuidado foram surgindo. Essa ampliação do campo, todavia, não garantiu de melhor
conhecimento acerca do que produzimos. A adoção de um vocabulário mais rico para
descrever nossas ações não nos livrou de facilmente atribuir-lhe significado conservador
em relação a velhas práticas de cuidado. Uma atitude interrogativa diante do nosso dia a
dia, evitando tomá-lo como sabido e conhecido de antemão continua necessária e atual.
Minha expectativa foi ter contribuído para o enfrentamento desse permanente desafio.