Você está na página 1de 7

A

Aristóteles, no livro II da Retórica


(1), define as paixões humanas em

geral e submete várias delas a exame.

Evidentemente, suas observações são

indissociáveis do contexto histórico, so-

Ira
Manuelzão
cial e cultural em que foram formuladas.

Seriam essas observações ainda válidas

para o estudo de obras literárias nossas

e contemporâneas?

Este pequeno estudo procura res-

amor
ponder a essa questão, no limite do

exame de duas paixões, a ira e o amor, tal

como elas se configuram no espírito do

de
protagonista da novela “Uma Estória de

Amor”, de João Guimarães Rosa (2).

A IRA
O vaqueiro Manuelzão é o herói

problemático de “Uma Estória de Amor”.


JOSÉ DE PAULA RAMOS JR.

Sua individualidade é minuciosamente

1 Aristóteles, Rhetoric, in Great construída pelo narrador, que, ao longo


Books of the Western Word,
Chicago, Encyclopaedia Britan- da história, vai disseminando dados da
nica, 1952, v. 9.
2 João Guimarães Rosa, “Uma origem e da trajetória da personagem, até
Estória de Amor”, in Ficção
Completa, Rio de Janeiro, o momento crucial de sua vida, quando
Nova Aguilar, 1994, 1o vol.
As citações da novela de Rosa
são dessa edição e estão alcança seu momento de glória como
entre aspas, acompanhadas
do número da página, entre fundador da fazenda Samarra. Mais
parênteses. Originalmente,
essa novela foi publicada no
primeiro dos dois volumes que
ainda, o narrador, onisciente, revela
compunham a obra Corpo de
Baile, 1956, desmembrada detalhadamente a vida interior do pro-
pelo autor, a partir de 1964, em
três volumes autônomos. Desde tagonista, dando conta de suas emoções,
então, “Uma Estória de Amor”
compõe, ao lado de “Campo
Geral”, o livro intitulado Manu- pensamentos e pressentimentos. Resulta
elzão e Miguilim.
daí o retrato vívido de uma personagem
3 A noção de “personagem
complexa, que a teoria literária chama
redonda” foi introduzida por E.
M. Forster (Aspects of the Novel,
London, Penguin Books, 1990
– 1a ed., 1927). de “redonda” (3).

156 REVISTA USP, São Paulo, n.66, p. 156-162, junho/agosto 2005


A
Manuelzão nasceu num lugarejo obscuro
e isolado no sertão de Minas Gerais. Seu
pai era um humilde trabalhador rural, em
situação de extrema pobreza. Conformado
a esse estado, o pai condena a família ao
confinamento num círculo de miséria. Essa
imagem de vida sitiada é sugerida pela
configuração geográfica de onde nasceu JOSÉ DE PAULA
RAMOS JR. é
Manuelzão, um lugar de gente muito po-
doutorando em Literatura
bre, que vivia numa planície rodeada de Brasileira na USP e autor
montanhas. A própria forma gráfica do de Sondas (Ateliê).
nome desse lugar – MIM – funciona como
um ícone, que representa o indivíduo, “I”,
emparedado pelos montanhosos “MM”.
Note-se que o topônimo em questão é um
palíndromo, o que reforça a sugestão de
confinamento sem saída. Também não se
pode esquecer que, gramaticalmente, “mim” ao extremo do sertão explorado de Minas
é um pronome pessoal, forma oblíqua de Gerais para formar uma nova fazenda, onde
“eu”. Tudo isso sugere, obliquamente, que interromperia o ciclo da experiência nô-
o “eu” (Manuelzão), nascido em Mim, es- made. É quando ele sente que, “para fundar
taria fadado a repetir a mesma sina de seu lugar, lhe faltava o necessário de alguma
pai se não ultrapassasse os limites de sua espécie” (p. 548). Para suprir essa falta
condição original. ele chama para a Samarra o filho, Adelço
Mas Manuelzão, ao contrário do pai, de Tal, que tivera numa relação casual e
que era trabalhador de enxada, não se con- com quem nunca convivera. Adelço leva a
formou com a perspectiva de reproduzir a mulher Leonísia e sete filhos. Manuelzão
mesma existência obscura. Rompendo com manda buscar também a velha mãe, dona
o imobilismo de sua origem, escolheu a Quilina, e, assim, inventa, de repente, uma
profissão de vaqueiro, que, por natureza, família para si.
se caracteriza pela extrema mobilidade. Ao se fixar num lugar – a Samarra – e
Abandonando o Mim, Manuelzão parte em constituir família, Manuelzão reproduz a
busca de uma nova identidade. experiência paterna, mas num nível superior
Embora herde do pai a ética da vida ao vivenciado por seu pai. Dialeticamente,
dedicada ao trabalho, o protagonista se opõe Manuelzão nega, conserva e supera o pai:
à figura paterna à medida que ultrapassa os nega, ao sair de casa e tornar-se vaqueiro;
limites geográficos de Mim e, ao contrário conserva, ao fixar-se na Samarra e constituir
do pai agricultor, sempre fixo no mesmo família; supera, ao tornar-se o “único dono
lugar, ganha o mundo sem fronteiras, na visível” (p. 546) da Samarra. Dono. Seu
condição de vaqueiro. nome passa a ser largamente conhecido e res-
Num primeiro momento, essa oposição peitado, ao contrário do pai, que nada tivera
entre fixidez e mobilidade é radical. O filho na vida, a não ser a sua força de trabalho, e
torna-se um errante, empregado em fazen- que morrera no mais obscuro anonimato.
das diversas, mundo afora, livre e só, até É interessante notar que, no momento
chegar às portas da velhice; num segundo culminante de sua vida, o herói modifica
momento, perto dos 60 anos, Manuelzão o seu nome. “‘Manuel Jesus Rodrigues’
reproduz algo do exemplo paterno ao cons- – Manuelzão J. Roiz –: gostaria pudesse
tituir família. ter escrito também, debaixo do título da
Convidado pelo capitalista Federico Santa, naquelas bonitas letras azuis, com o
Freyre, o experiente vaqueiro desloca-se resto da tinta que, não por pequeno preço,

REVISTA USP, São Paulo, n.66, p. 156-162, junho/agosto 2005 157


da Pirapora mandara vir. Queria uma festa que o desgosto maior decorria da omissão
forte, a primeira missa. Agora, por dizer, do filho em relação a certos deveres tácitos,
certo modo, aquele lugar da Samarra se como o de estar presente em alguns momen-
fundava” (p. 544). O rito religioso e festivo tos relevantes da grande festa que marcava
de fundação do lugar coincide com a mu- a fundação da Samarra e, especialmente,
dança de identidade do herói, que ultrapassa o de se oferecer para tocar uma boiada,
a condição de sua origem subalterna para após os festejos, em seu lugar, justamente
tornar-se senhor e dono. quando ele, Manuelzão, se sentia frágil e
Apesar da posição alcançada, Manu- nutria fantasias de morte. Manuelzão sente
elzão experimenta o desconfortável sen- raiva de Adelço porque este não demonstra
timento de incompletude e precariedade a consideração que se deve, se não aos pais,
de sua situação. Ele sente que não é dono, aos superiores.
propriamente, da Samarra, mas um “ad- No livro II da Retórica, Aristóteles as-
ministrador, quase sócio, meio capataz de sinala que as paixões são “todos aqueles
vaqueiros, certo um empregado” (p. 546). sentimentos que mudam e afetam os juízos
A consciência disso o inquieta; ele sente dos homens, e que são também acompa-
que só a riqueza poderia trazer alguma nhados por dor ou prazer” (4). No caso
segurança: “ficar rico era o que era seguro. em questão, o sentimento que afeta o juízo
Rico, para não precisar de se ter medo de negativo de Manuelzão quanto ao filho é a
que todo o pouco que fosse da gente não ira, que, para Aristóteles, “pode ser definida
estivesse sempre salteado” (p. 574). como um impulso, acompanhado por dor,
Para alcançar a riqueza, no entanto, ele para uma manifesta vingança por causa
pressente que sua vida seria insuficiente, de uma manifesta e injustificável desconsi-
que alguém deveria dar continuidade deração dirigida a uma pessoa ou a algum
ao seu esforço. Principalmente, porque, amigo dela” (5).
perto dos 60 anos de idade, começara a Para Aristóteles, o motivo fundamental
sentir certos sintomas, que o levavam a da ira é a desconsideração, que é exata-
pensar na morte. Essas circunstâncias é mente a causa, percebida por Manuelzão,
que o motivaram a reunir uma família desencadeadora de sua cólera. Mas é preciso
no outono de sua vida. “Carecia de um deixar bem clara a situação em que a raiva
filho prosseguinte. Um que levasse tudo se apodera do protagonista para se ter uma
levantado, sem deixar o mato rebrotar” (p. imagem mais nítida da coesão que há entre
567). Porém, Manuelzão não acreditava as postulações teóricas de Aristóteles e as
que Adelço fosse essa pessoa. disposições práticas, concernentes ao as-
Há uma nítida oposição entre pai e sunto, de Guimarães Rosa.
filho, que se configura em duas instâncias. Resumindo, Manuelzão se encontra
Primeiramente, aos olhos de Manuelzão, num momento decisivo de sua existên-
Adelço parece demais com o avô, de quem cia. Depois de uma longa jornada, desde
4 Aristóteles, op. cit., p. 623:
“The Emotions are all those ele, Manuelzão, fora a antítese. Adelço, a infância à sombra da miséria, desde a
feelings that so change men as
to affect their judgments, and
identificando-se com o avô, seria para juventude de vaqueiro livre, no limiar da
that are also attended by pain Manuelzão, em termos lógicos, a negação velhice, já pressentindo a morte, ele se vê
or pleasure”.
da negação. “Não o Adelço – ele sabia que na contingência de tornar-se senhor. Trata-se
5 Aristóteles, op. cit., p. 623:
“Anger may be defined as an o Adelço não tinha esse valor. Doía de se de uma mudança crucial, que lhe traz um
impulse, accompanied by pain, conhecer: que tinha um filho, e não tinha. sentimento misto de orgulho e insegurança
to a conspicuous revenge for a
conspicuous slight directed with- Mas esse Adelço saíra triste ao avô, ao pai de sua nova condição. Essa insegurança se
out justification towards what
concerns oneself or towards
dele Manuelzão, que lavrava rude mas só acentua com a suposição de que Adelço
what concerns one’s friends”. de olhos no chão, debaixo do mando de desdenha a festa e o seu significado, além
6 Aristóteles, op. cit. p. 624: outros, relambendo sempre seu pedacinho de não dar importância aos achaques que
“Thus a sick man is angered
by disregard of his illness...”. de pobreza, privo de réstia de ambição de ele sentia (6), visto que não se dispunha a
(“Assim, um homem doente se vontade. Desgosto...” (p. 567). tocar a boiada em seu lugar. Na imaginação
enraivece pelo desprezo de sua
enfermidade...”) O narrador enfatiza, em outra passagem, do velho vaqueiro, o comportamento omisso

158 REVISTA USP, São Paulo, n.66, p. 156-162, junho/agosto 2005


do filho é uma manifesta desconsideração
à sua pessoa.
O AMOR
O desprezo, tal como Aristóteles assi-
nala, é uma forma de desconsideração, que A segunda instância da oposição entre
consiste em não se dar valor àquilo que é Manuelzão e Adelço envolve a nora Leoní-
valorizado por outrem. É o que se dá no caso sia. E aqui se encontra a chave que ajuda
do suposto desdém de Adelço para com a a entender melhor o título da novela. Apa-
festa, que tem a máxima importância para rentemente, a história de amor a que se refere
Manuelzão, pois significa o reconhecimento o título diz respeito ao vínculo afetivo que
de sua superioridade como fundador e “dono une as personagens de dois contadores de
visível” da Samarra. histórias, que são envolvidos numa trama
A cólera de Manuelzão é particularmente paralela ao eixo narrativo principal, o velho
intensa porque ele se sente desprezado por Camilo e Joana Xaviel. Isso se levarmos
quem se beneficiara de sua benevolência, em conta somente o que o narrador insiste
que lhe deve respeito e que lhe é inferior em explicitar:
em poder e em riqueza. Exatamente como
descreve Aristóteles, a paixão da ira é acom- • “De sombra, se vislumbrava que a
panhada de dor, que é mais intensamente Joana, sua parte, dele velho Camilo não
sofrida quando o desprezo vem de alguém fazia pouco-caso. Olhos que olhava, parecia
próximo, de quem esperaríamos tratamento que parecia. Às dãs! Remedavam namoro?
oposto (7). A dor decorre da desconsi- Acontecia isso?” (p. 584)
deração de que Manuelzão se sente vítima, • “A Joana Xaviel devia de estar agora
supostamente praticada por quem lhe devia no meio dos cantadores, aceitando graças
respeito por sua posição de superioridade, de homem, quem sabe. Ou, então, era só
quer como pai, quer como patrão. o penar de não residirem mais juntos, na
O desprezo injustificado de Adelço, per- cafua da chapada. Velho assim não podia
7 Aristóteles, op. cit., p. 624:
cebido como tal por Manuelzão, é a causa gostar de mulher?” (pp. 592-3) “[…] a man looks for respect
da ira deste, do modo como Aristóteles • “O velho Camilo, soturno. Rabujava? from those who he thinks owe
him good treatment, and these
demonstra que essa paixão é desenca- Bebeu o fel-vinagre? Podia perguntar: – Seo are people whom he has treated
deada nas pessoas. E nem falta à cólera Camilo, está mal com alguém? Sendo de or is treating well. [...] we are
angrier with our friends than
do velho vaqueiro o sentimento de prazer soer: os agastamentos com a Joana Xaviel with other people, since we
feel that our friends ought to
que, segundo o filósofo, a acompanha. No – Uma estória de amor. A graça!” (p. 596) treat us well and not badly”.
caso, o prazer se manifesta nas fantasias de (“Um homem exige respeito
daqueles que ele julga deverem-
vingança (8) nutridas por Manuelzão. Com Se essa for a história de amor destacada lhe bom tratamento, e essas
são as pessoas que ele tratou
raiva do filho, ele sente prazer ao imaginar, pelo título, então, a novela frustra a expec- ou está tratando bem. [...] nós
como vingança, mandá-lo conduzir a boiada tativa dos leitores. O narrador leva o leitor nos encolerizamos mais com
os amigos do que com outras
em seu lugar e, em seguida, despachá-lo para a pensar que se trata do amor dos dois pessoas, visto que, conforme
mais longe da mulher Leonísia, afirmando contadores de histórias, mas não dá solução pensamos, nossos amigos têm
a obrigação de nos tratar bem
assim seu sentimento de superioridade: para esse relacionamento, cujo desenlace e não mal.”) A amizade é aqui
entendida no sentido de philia,
permanece aberto. O par não ata nem desata. que inclui entre as suas espécies
“Mesmo, por um capricho legal, não estava A própria enunciação duvida dessa história as relações de parentesco e as
de dependência dos que não
no poder de mandar aumentado? Assim: de amor: “Mas tinha lá alguma graça aquela possuem laços de sangue com
o superior (ver nota 8).
que, depois da boiada entregue, ainda o estória de amor nessas gramas ressequidas,
8 Aristóteles, op. cit., p. 624:
Adelço carecesse de ir para adiante, mais de um velhão no burro baio com uma bruaca “[…] [anger] is also attended
longe, mais tempo – levar por exemplo assunga-a-roupa?” (p. 573) by a certain pleasure because
the thoughts dwell upon the act
um bilhete, em mão, na Sete-Lagoas, No subterrâneo da história, porém, of vengeance, and the images
no Belorizonte, no lugarejo do Mim, na insinua-se um outro caso de amor. Um then called up cause pleasure,
like the images called up in
Uberaba! – então tinha de passar não era amor ilícito. dreams”. (“[...] [a ira] é também
acompanhada por um certo
um mês, não, mas dois, três, seis meses, A ojeriza que Manuelzão nutre pelo prazer porque os pensamentos
sei lá, longe da Leonísia. Pra ver o que é filho apresenta um viés psicológico compli- antecipam o ato de vingança,
e as imagens invocadas causam
bom...” (p. 568). cado. Como vimos, Manuelzão antipatiza prazer, como as imagens evo-
cadas em sonhos.”)

REVISTA USP, São Paulo, n.66, p. 156-162, junho/agosto 2005 159


com Adelço pela semelhança deste com “Jantar, se jantava. Manuelzão não tinha fome
o avô. A antipatia do velho vaqueiro faz nenhuma. Tomou um gole de café, outro gole
com que ele quase só veja defeitos no de aguardente; pitou um cigarro. A cozinha,
filho, a quem avalia como um homem confusa de mulheres. Parava ali, lerdeando,
“mesquinho e fornecido maldoso, um estadonho. Tempão, que estava. Atinando
homem esperando para ser ruim [...], – queria ver Leonísia. Requeria alguma pa-
um sujeito assim, desamigo de todos” lavra de estima, de consolo? Que era que se
(pp. 548-9). Manuelzão só não chegou a envelhecia? Mas, quando Leonísia com ele
mandar Adelço embora da Samarra por defrontou, deu má surpresas, nos olhos que
causa de Leonísia. abriu, mesmo no dizendo, com aquela voz
Se a opinião que Manuelzão tem do escolhida de gentil: – ‘Pai, o que o senhor
filho é muito ruim, a que ele tem da nora está sentindo? A não está bem? Não estou
é a melhor possível. A beleza da nora é gostando dessa sua cor, isso é cansaços da
freqüentemente notada pelo sogro, que festa, tamanha lufa. O senhor preza um chá?’
exalta também suas qualidades morais, a Não. Que estava subido de bem. Era o que
ponto de defini-la como uma mulher “boa, ele garantia. Leonísia era de beira do Grotão
uma sinhá exata, só senhora. [...] tinha sinal do Abaeté, de que família que na roda do
de um sabido anjo-da-guarda” (p. 549). tempo havia podido ajuntar tantas canduras?
Manuelzão considera Adelço des- Assim aprazível de coração, assisada uma
merecedor da mulher que tem, e chega a ter filha” (pp. 593-4, grifo meu).
inveja, ciúme e “maus pensamentos”:
Assim, afastam-se as nuvens do amor
“Leonísia já devia de estar em cama, junto suspeito. Fica transparente ao próprio
com o Adelço, só ele tinha direito de olhar Manuelzão o caráter paternal de seu amor
a formosura alegre de Leonísia. Mesmo por Leonísia. Trata-se, portanto, de uma
de pensar, mesmo de reparar no rosto, no espécie de amor definida por Aristóteles,
descanso de Leonísia. Deus de lei. Maus na Retórica (9) e na Ética a Nicômaco (10),
pensamentos. A Leonísia devia de ter per- como philia.
manecido sempre exata donzela formosa, Será essa, então, a história de amor? A da
não se casado com ninguém” (p. 571). descoberta do amor paterno de Manuelzão?
Suspeitamos que sim, mas não exatamente
O desejo proibido, recalcado no íntimo, em relação à nora. A nossa hipótese é de
aflora, mas é logo disciplinado por um que a história de amor, destacada no título
escrúpulo moral que redireciona a mira do da novela, é, sobretudo, a história do amor
desejo para um alvo abstrato: uma mulher paterno de Manuelzão, mas, mais propria-
hipotética, que se assemelhasse à nora: “Não mente, do amor pelo filho Adelço.
dava para o amor. Por certo ainda podia Isso pode parecer estranho, com tantos
se casar, tinha forças e parecer para isso? índices de desamor disseminados na nar-
Soubesse de achar uma moça da igualha de rativa. Mas é importante notar que o caráter
formosura, da simpatia de Leonísia, sim, negativo de Adelço é desenhado na perspec-
casava” (p. 573). tiva de Manuelzão. Não se tem acesso à opi-
nião de outras personagens. Deduz-se que a
É importante dizer que o comporta- de Leonísia seja bem diferente, pois ela em
mento de Leonísia não encoraja os “maus momento algum se queixa do que quer que
9 Aristóteles, op. cit., p. 627: pensamentos” de Manuelzão. Ela o trata seja. Por meio das próprias observações de
“Friendship has various forms
– comradeship, intimacy, kin- com respeito afetuoso de filha; as formas de Manuelzão, que reconhece a reciprocidade
ship, and so on”. (“A amizade tratamento com que ela se dirige ao sogro de afeto entre marido e mulher, presume-se
tem várias formas – camarada-
gem, intimidade, parentesco e são sempre as de “pai” e “senhor”. que ela seja feliz no casamento: “Ela, para
assim por diante.”)
Por fim, o próprio Manuelzão com- o Adelço, era a melhor companheira. Sina
10 Aristóteles, “Ética a Nicômaco”, preende melhor seus sentimentos em relação de mulher, sina de homem” (p. 594). Dona
in Os Pensadores, São Paulo,
Abril, 1973, pp. 379 e seg. a Leonísia: Quilina, que “reconhecia o tamanho da alma

160 REVISTA USP, São Paulo, n.66, p. 156-162, junho/agosto 2005


de toda pessoa, no disparo de um olhar” (p. paterna – “Manuelzão pôs bem o peito, dos
562), nada diz a propósito do neto. ombros, nas pressas de um sentir, como, de
Quanto ao narrador, sua opinião coin- supetão, demais se felicitava” (p. 600).
cide, aparentemente, com a de Manuelzão, A surpresa da proposta generosa de
mas ela é suspeita, em virtude da manifesta Adelço faz o velho vaqueiro pensar. Ele
postura empática que mantém com o pro- entende que não poderia culpar o filho pelos
tagonista da história. Apesar dessa empatia, problemas dele, Manuelzão, como fizera
porém, o narrador não deixa de registrar até o momento. Sente-se envergonhado,
indícios que podem corrigir uma impressão faz um rápido balanço de sua situação na
desfavorável a Adelço. O próprio Manuel- vida, pensa nos sintomas que o afligiam e
zão, reiteradamente, enfatiza a disposição na possibilidade da morte próxima, para
do filho para o trabalho, que, no código concluir: “Faço e faço, mas não tem outro
de valores do velho vaqueiro, é a virtude jeito: não vivo encalcado, parece que estou
maior. Também é destacada a dedicação num erro [...]. Assim o que a gente quer, e
votada por Adelço aos filhos e, como já o querer não fica em pé, mas se desvém no
vimos, à mulher. ar” (p. 601).
Quando o vaqueiro atribui a desconsi- Em outros termos, Manuelzão filosofa
deração do filho ao exagerado apego com sobre o sentido da ação e da vontade dos
a esposa, pode parecer ciúme que ele sente homens; em última análise, sobre o descon-
de Leonísia, mas pode-se entender que, no certo e a falta de sentido da vida. Como não
fundo, é ciúme de Adelço, pois, afinal, o consegue encontrar resposta satisfatória às
manifesto apreço por mulher e filhos con- suas questões, pensa em consultar o velho
trasta com a desconsideração sentida por Camilo, mas, em vez disso, num impulso,
Manuelzão, que, apesar de tudo, é o pai manda que ele conte uma história.
de Adelço. Manuelzão se sente rejeitado Essa história, narrada pelo velho Camilo
pelo filho. no fim da festa, tem o misterioso condão de
Em favor de Adelço, é preciso dizer ain- revelar o sentido da existência e de, final-
da que o narrador assinala sua presença em mente, libertar os sentimentos reprimidos
vários daqueles momentos relevantes, dos de Manuelzão, que, comovido, se abraça
quais Manuelzão o julgava alheio: dentro com o filho e a nora, em frente aos amigos
da igreja, na hora da missa; desdobrando-se irmanados no sentimento de camaradagem.
para atender aos convidados ilustres, numa O fato de essa cena se apresentar como
hora de esmorecimento da festa. clímax da novela reforça a idéia de que
Quando Adelço, inesperada e publi- a “estória de amor” destacada no título é,
camente, se aproxima de Manuelzão e se sobretudo, a do problemático amor do pai
oferece para conduzir a tal boiada, com pelo filho. A paixão do amor, nesse contexto
sinal evidente de consideração pela saúde que envolve relações de parentesco e de
e respeito pela pessoa do pai, a má im- camaradagem, aproxima-se claramente da
pressão que se tem do moço se desvanece noção aristotélica de philia.
prontamente. Manuelzão é um herói fundador de
Manuelzão já sentia um desconforto lugar, que, no ato de fundação, assume a
moral por não gostar do filho: “Mesmo superior condição de único “dono visível”
achava, devia gostar do Adelço; mas ainda da Samarra. A festa inaugural da fazenda
não conseguia reunido, na prática. Tencio- celebra o reconhecimento dessa superiori-
nou; pelejava. O Adelço teria ódio a ele?” dade, que se afirma nas demonstrações de
(p. 574). O gesto do filho demonstra que respeito da família e da sociedade sertaneja.
não havia ódio, mas respeito e consideração. Nessa medida, a narrativa pode ser vista
Com isso, a imagem negativa atribuída a como história da instauração da philia de
Adelço se converte em seu oposto, ou seja, Manuelzão e de sua posição de destaque
Adelço se torna a imagem do bom filho. nessa comunidade de parentes e de amigos,
Manuelzão, internamente, exulta de alegria isto é, de seu poder.

REVISTA USP, São Paulo, n.66, p. 156-162, junho/agosto 2005 161


Guimarães Rosa soube incorporar or-
DIÁLOGO DE ROSA COM ganicamente a teoria do filósofo à sua arte.
Não há nada de mecânico na apropriação,
ARISTÓTELES tal a naturalidade com que as emoções se
desenvolvem no espírito da personagem,
Como dissemos na abertura deste texto, de acordo com a descrição aristotélica e,
as observações de Aristóteles sobre as o que talvez surpreenda, de acordo com
emoções são indissociáveis do contexto que a sensibilidade contemporânea. A análise
as gerou. No entanto, suas considerações se comparativa dessas emoções, nas referidas
mostram válidas e até mesmo indispensáveis obras de Rosa e de Aristóteles, demonstra
na análise de uma obra literária contem- que as formulações do filósofo são válidas
porânea, como é o caso de “Uma Estória na composição de caracteres literários que
de Amor”, de Guimarães Rosa. Pudemos mimetizam ou constroem artisticamente
observar o alto grau de coesão que se esta- as paixões humanas hodiernas, embora
belece entre a teoria do filósofo e a prática inseridas num ambiente em que há muito
do artista. É certo que há diferenças que de arcaico, como é o sertão mineiro repre-
uma análise mais extensa poderia apontar. sentado na narrativa. É importante assinalar
Mas isso não invalida as semelhanças ex- que a mimese produzida por Guimarães
plicitadas em nossa discussão, posto que Rosa apresenta aquela verossimilhança
elas se impõem como evidências. fundamental para a validação de uma obra
Como explicar essa congruência entre de arte, como o próprio Aristóteles aponta
autores de épocas e propósitos tão diversos? na Poética. E, para a nossa análise, é mais
Seria a essência do homem do passado importante ainda frisar que se trata da ve-
aristotélico fundamentalmente idêntica rossimilhança de uma obra literária contem-
à do homem do presente rosiano? Para porânea, que pressupõe uma sensibilidade
Guimarães Rosa, pelo que se sabe de suas contemporânea na sua recepção.
convicções metafísicas, provavelmente, O passado grego é incorporado ao
sim. Mas não nos interessa, no limite presente do sertão brasileiro, que, para
modesto deste trabalho, desenvolver essa Guimarães Rosa, representa o mundo.
questão ontológica. Basta-nos a constatação Trata-se do universalismo regionalista,
óbvia de que as formulações aristotélicas ou regionalismo metafísico, que a crítica
geraram uma tradição ilustre que, ao longo geralmente atribui ao autor de Grande
de diferentes épocas, foi aproveitada por Sertão: Veredas.
inúmeros escritores, e que se consubstan- Mas, resguardada a hipótese da iden-
cia de modo inequívoco na novela “Uma tidade essencial dos homens de épocas e
Estória de Amor”. lugares distintos, numa perspectiva analítica
Nessa obra, evidencia-se um diálogo diacrônica, histórica, identificar as paixões
entre os dois autores, cujas noções de ira e da Antiguidade com as da nossa contem-
de amor (philia) apresentam a coesão que poraneidade seria um anacronismo. Esse
buscamos salientar na comparação dessas problema talvez pudesse ser resolvido com
paixões, tal como são desenhadas pelo ar- a análise das diferenças, de que não nos
tista e pelo filósofo. Aqui importa menos se ocupamos aqui. Essa análise, porém, pode-
a fonte aristotélica é direta ou indiretamente ria configurar melhor o caráter dialético da
absorvida, embora fique a impressão de assimilação rosiana das considerações de
que Guimarães Rosa construiu as referidas Aristóteles a propósito das paixões, mas
paixões de sua personagem seguindo de esse não é o escopo deste trabalho, que se
perto a lição do livro II da Retórica. Trata- dá por satisfeito com a demonstração de um
se de uma evidente apropriação da teoria caso modelar de sobrevivência “clássica”
aristotélica como fonte de criação literária na expressão das emoções na literatura
contemporânea. contemporânea.

162 REVISTA USP, São Paulo, n.66, p. 156-162, junho/agosto 2005

Você também pode gostar