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O teatro como disciplina de saberes

éticos

Anilia Francisca Mércio da Silveira

A escola ainda é o principal caminho para instituição e dos profissionais de educação com
se discutir questões relacionadas a probidade, relação à ética e à moral não fica comprometida
consciência, lisura, escrúpulos e princípios apenas no momento do ensino, mas também na
morais, uma vez que o âmbito escolar está constante aplicação desses conceitos.
repleto de possibilidades que evidenciam a
ética como necessária e capaz de permitir “O que é valor?”
um relacionamento mais amistoso entre os
atores educacionais. No entanto, a escola não No livro Educação e Sensibilidade, Vera
necessariamente conseguirá responder a todas as Werneck se faz essa pergunta, dissertando sobre
questões levantadas quando se trata de ética, nem os diversos significados desta palavra na cultura
deverá se considerar fracassada por não conseguir ocidental.
atingir tal objetivo. A máxima e controversa
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frase sempre repetida pela direção nas reuniões Todo ensino e toda a aprendizagem
de pais e com alunos que são reincidentes em vêm com a conotação do valor. Não
casos de indisciplina é que “a escola tem a função há neutralidade nessa atividade.
de dar escolarização e não ‘educação’, pois essa, Desde o aprendizado inicial dos
essencial, deve vir de casa, com o suporte da primeiros anos de vida até o mais
família”. Mas como exigir isso nos tempos de avançado curso universitário, sempre
hoje? Crianças e adolescentes passam pelo menos os conteúdos são apresentados com
quatro horas do seu dia dentro da escola, mas valor positivo ou negativo (2013: 22).
muitas vezes o professor e os educadores daquele
ambiente são os poucos adultos com os quais elas Falar de ética na escola é primordial e
terão contato no seu dia. Os pais saem antes das essencial. A escola pública atual é um nascedouro
mesmas acordarem e muitas vezes retornam bem e criadouro de opressões das mais diversas
depois do jantar. Fica, portanto, a cargo da escola naturezas. Os professores dizem que os alunos
ensinar, também, as primeiras regras morais e são violentos, mas, parafraseando Paulo Freire
éticas. O filósofo Mário Sérgio Cortella (2006) (2009), “como poderiam os oprimidos dar início
defende a ideia de que é na escola que, muitas à violência, se eles são o resultado da violência?”
vezes, o jovem de hoje escuta pela primeira vez A palavra ética, do grego ethos, significa “o
a palavra “não”, sendo muitas vezes no ambiente estudo dos juízos de apreciação que se referem
escolar que o adolescente se confronta com à conduta humana suscetível de qualificação do
as primeiras regras e se vê atingido por elas. E ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente
dependendo de como esse “não” é dado, esse à determinada sociedade, seja de modo absoluto”
jovem pode sentir-se oprimido, rechaçado, (HOLANDA, 2013:300).
desvalorizado, amado, educado, instigado, Como os educandos percebem essa atuação
instruído… enfim, a responsabilidade da do professor que não apenas se compromete

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com os conteúdos formais (história, ciências, enquanto crítico e participativo. No entanto, é o uso social de signos para a comunicação, propõe atividades lúdicas e é bem natural que
geografia, matemática), mas também com o proporcionar ao educando uma formação que o controle, organização e transformação de seu eles confundam com a hora do recreio, achando
ensino desses valores fundamentais? Será que possibilite tornar-se cidadão crítico, autônomo, comportamento. que aquela aula é sempre uma “brincadeira”.
todos os professores de segundo segmento (pois capaz de interferir e dialogar com o meio em Esses primeiros momentos o condutor deve
consideramos que os professores de primeiro que vive parece não ser tarefa fácil. Uma das As justificativas para o ensino do teatro e explicar como funcionam as aulas, estabelecer
segmento e educação infantil aceitam o ensino alternativas para a escola é criar condições para das artes na educação escolar, inicialmente rotinas, regras, e até mesmo explicar como se
de regras como currículo oculto1 natural) que isso possa ocorrer, proporcionando espaços de caráter contextualista ou instrumental, dá a avaliação, se essa for necessária. Além de
comprometem-se nesse ensino “extra-classe”, para discussão, não ficando presa apenas a passaram a destacar, pouco a pouco, a criar regras coletivas, em colaboração, muitas
sobre ética, valores e moral? Surpreendentemente questões individualistas e autoritárias. contribuição singular das linguagens vezes eu traço logo a nossa meta de trabalho,
ainda há resistência dos dois lados: alunos artísticas para o desenvolvimento cultural questionando a respeito do assunto sobre o
considerando professores que lhes cobram "A principal caracterís- e o crescimento pessoal do ser humano, qual eles gostariam de falar, ressaltando como o
atitudes e regras de moral como “intrometidos” apresentando uma nova perspectiva para teatro é a arte da comunicação. Nessas primeiras
e excessivos (invadindo os seus assuntos tica que distingue apreciação do papel das artes na educação: aulas, apesar da rigorosa condução, faço-os
particulares) e professores que consideram não o ser humano das a abordagem especialista ou estética.(…) perceber que as escolhas são deles. Portanto, é
serem pagos para ensinar fora de seus conteúdos. outras espécies é o O objetivo do ensino das artes, para deles a responsabilidade para o alcance da meta
a concepção pedagógica essencialista, estabelecida conjuntamente. Neste momento,
A ética é a responsável pela possibilidade uso social de signos não é a formação de artistas, mas o estamos falando de ética, antes de disciplina. Boal
atribuída à escola de conduzir o ser à para a comunicação, domínio, a fluência e a compreensão (2008) afirma:
condição de crítico e responsável pelos controle, organização estética dessas complexas formas
seus atos, no entanto, ela entrelaça a estas humanas de expressão que movimentam Sublime é o belo inexcedível. Sublime
condições a capacidade de definir o que e transformação de seu processos afetivos, cognitivos e é a ética, organização suprema do caos.
seja justo e injusto, moral e imoral, uma comportamento." psicomotores (JAPIASSU, 2009:30). Moral se obedece, ética se inventa.
98 vez que atribui valores às ati-tudes dos Moral é o que é - Ético é 99
educandos e os vigia, como se a qualquer Atuo como professora de artes cênicas Ao trabalhar valores éticos, o professor de o que se deseja que seja.
momento pudessem fazer, falar ou sentir no município do Rio de Janeiro há mais de teatro compromete-se com a essência do seu Assim como a cosmetizada
algo que não é permitido eticamente. uma década. Sempre identifiquei a arte como trabalho, as relações humanas. Seu desafio é palavra estética, a Ética tem sido
Respeitar a liberdade do outro é possibilidade de atingir outras camadas no ser construir na escola um espaço democrático de amesquinhada quando entendida como
conhecer os direitos e deveres de cada humano. A aula de teatro me pareceu, desde o convívio ético. Numa primeira aula de teatro sinônimo de bom comportamento.
um dos atores do ambiente escolar. início dessa jornada, o ambiente mais propício prática, aprendi pela experiência (pois isso nunca Ética é o caminho por onde se pretende
Para Kant, na escola ninguém tem para se trabalhar disciplinas desse currículo me foi passado na faculdade) que logo no contato chegar ao sonho de humanizar a
privilégios, mas apenas direitos. Ela oculto: cooperação, gentileza, altruísmo, inaugural devem estar claros para todos os limites Humanidade. A ética repugna a
corporifica assim, o local privilegiado superação, equilíbrio, responsabilidade, do que é possível e do que não é. Crianças e persistência do instinto predatório em
que permite ao ser reconhecer a sua generosidade, autoridade, etc. As aulas de artes adolescentes gostam de testar os limites, até para sociedades humanas, cujos resíduos
função social no mundo, compreendendo cênicas podem se tornar o ponto de partida para comprovarem se esta ou aquela regra é uma selvagens ainda existem em nós.
sua posição, se de explorado ou de uma melhor intervenção do jovem no seu meio regra rígida, frouxa, válida ou fictícia. Mesmo Contra o aspecto predatório animal
explorador, mediatizado ou mediatizador social e servir como suporte para então ampliar combinando-se as regras coletivamente, é muito do ser humano a ética busca criar
(CAMARGO E FONSECA 2008: 3,4). o leque de discussões: da escola para o bairro, normal, nos primeiros meses de trabalho, várias relações solidárias (BOAL, 2009:38).
para as associações de moradores, para os delas serem confrontadas pelos educandos,
Claro que a maioria dos educadores órgãos públicos e assim por diante, até abranger muitas vezes, apenas para testar a reação do Como os alunos são condicionados à
comprometidos ressaltam a formação moral como a sociedade globalmente. professor. educação bancária descrita por Paulo Freire,
componente imprescindível na formação do ser De acordo com Ricardo Japiassu, em É bem comum, quando o professor de teatro “que gera homens espectadores e não recriadores
1 CURRÍCULO OCULTO: Aquilo que não Metodologia do ensino de teatro (2009), as artes são entra em contato a primeira vez com uma turma do mundo” (FREIRE, 2008:72), para os da
está programado, planejado para a aula mas que se faz entendidas como formas humanas de expressão e decide dar uma aula prática, se deparar com escola pública – esta, por sua vez, que valoriza a
necessário trabalhar com os alunos. Geralmente são semiótica, processos de representação simbólica todos esses limites testados. A aula prática fragmentação da aprendizagem e pela abstração
normas de comportamento e valores morais que exaltam para a comunicação do pensamento e dos por si só, inova tudo aquilo que até então eles dos conteúdos2, a repetição dos saberes, o controle
virtudes e boas práticas. Exemplo: bons costumes, respeito
às regras da escola, ao trato com os colegas, relação com o
sentimentos humanos. A principal característica estavam acostumados como alunos numa escola 2 A filósofa Viviane Mosé (2013: 50-51) justifica
ambiente escolar e comunitário. que distingue o ser humano das outras espécies convencional. Incita os corpos em movimento, o distanciamento dos alunos de hoje e do currículo

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dos corpos condicionados e a passividade - , poderia ter aprendido depois, quando e O útil no mundo de hoje não é o conteúdo e descoberto desse mergulho; este, por
a aula de teatro pode parecer como um parque se a ocasião de sua necessidade exigisse. sim a ferramenta de uso desse conteúdo e como analogia, nos remete a nós mesmos.
de diversões, onde as algemas controladoras são É como ensinar a velejar a quem mora no se dá o seu compartilhamento4. E talvez, como ( … )
abertas. E, claro, os estudantes que pela primeira alto das montanhas… Nunca usei seno defende Larrosa, o tempo da experiência, já O Eu se transforma em nós - extraordinário
vez têm contato com a disciplina não sabem ou logaritmo, nunca tive a oportunidade que “informação não é experiência. E mais, a salto. Nós artistas, eu e nós - platéia.
como agir: uns extrapolam os limites, outros de usar meus conhecimentos sobre as informação não deixa lugar para a experiência, Juntos, descobrimos a descoberta que fez
se aquietam e se omitem, outros se descobrem. causas da Guerra dos Cem Anos, nunca ela é quase o contrário da experiência, quase o artista. Arte é, a um só tempo, individual
Ensinar e educar não são tarefas fáceis. E não se tive de empregar os saberes da genética uma antiexperiência (…). A informação não faz e social: ao dizermos nós, descobrimos
faz nem uma coisa nem outra sem impor limites. para determinar a prole resultante do outra coisa senão cancelar nossas possibilidades nosso abrangente eu. Digo eu, e somos
A aula é como um esporte: deve ter suas regras cruzamento de coelhos brancos com de experiência. O sujeito da informação sabe nós. Podemos estar todos juntos diante
claras e definidas. coelhos pretos, nunca houve ocasião muitas coisas, passa seu tempo buscando de atores, bailarinos ou telas de cinema,
Com as famílias cada vez mais ausentes e para que eu me valesse de saberes sobre informação, o que mais o preocupa é não ter ou podemos, solidários, observar um
os professores ainda treinados num sistema sulfetos. Mas aquela experiência infantil, bastante informação; cada vez sabe mais, cada quadro, ou escultura - a pluralização se
convencional de despejo de conteúdo, que não a professora nos lendo literatura, isso vez está melhor informado, porém, com essa opera,ainda que invisível.A arte reinventa
atende às demandas contemporâneas, as crianças mudou minha vida. Ao ler- acho que ela obsessão pela informação e pelo saber (saber a realidade a partir da perspectiva
e jovens cada vez mais se desinteressam e se nem sabia disso ela estava me dando a não no sentido de “sabedoria”, mas no sentido de singular do artista, mesmo quando se
afastam dos valores humanos essenciais. Nessa chave de abrir o mundo (ALVES, 1999:65). “estar in-formado”), o que consegue é que nada trata de um artista plural, uma equipe;
sociedade que se reinventa a cada dia, alguns lhe aconteça (LAROSSA, 2002: 21-22). sua obra recria, em nós, seu caminho e
conceitos tornam-se cada vez mais obscuros e Claro que a mudança de currículo se faz Com uma condução experiente, o ambiente da caminhar. Na arte e no amor, penetramos
sem sentido. Que tipo de cidadãos queremos? urgente e necessária, pois o ensino conteudista aula de teatro torna-se propício para três tópicos no Infinito (BOAL, 2009:111-112).
Éticos? Responsáveis? Que tipo de cidade não pode mais ser tão útil, se ao alcance das que considero de grande importância na vida
queremos? Segundo Viviane Mosé (2013), só se mãos, num pequeno aparelho celular, temos de um adolescente em formação e que vão tocar O jogo do teatro fala muito de nós e é através
100 educa uma criança quando se educa uma aldeia todo o conhecimento que desejamos na distância diretamente em conceitos éticos fundamentais: dele que descobrimos medos, anseios, alegrias e 101
- não há outra possibilidade de destacar a escola de um simples clique.3 - a autodescoberta como ser pensante, tristezas. A aula de teatro, dependendo de como
da cidade. Infelizmente, com algumas exceções, esses humano, com suas preferências e identidades; é ministrada, pode ser a menos convencional do
A gestão da educação em nosso país passa por padrões de ensino, que privilegiam a memória - a descoberta do outro e de como se currículo e, mesmo que alguns jogos se repitam,
processos cada vez mais complexos, se pensarmos em vez da imaginação/criação são a base da relacionar com esse outro; sempre traz uma novidade, o que favorece
que, num mundo super globalizado, ainda temos nossa escola brasileira. E nós, professores que - a descoberta do entorno e de como ele muito a expressão pessoal. O compromisso
um modelo educacional conteudista e dividido sempre aprendemos assim, sequer temos noção participa e é relevante para esse entorno. ético do professor de teatro que lida com
em segmentos. Para o ser em formação, esse da quantidade de conteúdo descartável que No último livro do mestre Boal, A Estética adolescentes é, sem dúvida, enorme - e noto que
excesso de conteúdo inútil faz o espaço escolar aprendemos e repassamos sem a menor reflexão. do Oprimido (2009), o mesmo tece muitas a responsabilidade com os jovens dessa geração
cada vez mais distante do conteúdo que realmente considerações sobre ética e estética - a arte como parece ainda maior, pois a cada dia mais distúrbios
3 Quando surgiu a imprensa, Montaingne, preferiu
interessa, afastando o aluno da verdadeira uma cabeça bem construída a um saber acumulado, pois forma de conhecimento. Creio que ele defende de comportamento, de afetividade e de valores são
experiência. a cumulação, já objetivada, se encontrava nos livros, nas o conhecimento no sentido amplo da palavra: detectados. Os jovens precisam ter consciência
prateleiras de sua biblioteca. Antes de Gutemberg, quem conhecimento do outro e de si mesmo. do próprio valor, para conseguirem equilíbrio
Ensina-se, nas escolas, muita coisa que se dedicasse à história precisava saber de cor Tucidides e emocional. É comum encontrar adolescentes
a gente nunca vai usar, depois, na vida Tácito. (...) ou seja, ti-nham que ter a cabeça cheia. (…) Arte é forma de conhecer, e é que se sentem desvalorizados, que se tornam
Nova economia radical: ninguém precisa mais se lembrar
inteira. Fui obrigado a aprender muita do lugar, um buscador on-line cumpre essa tarefa.(...) conhecimento, subjetivo, sensorial, dependentes de amigos, considerando que não
coisa que não era necessário, que eu Não tendo mais que se esforçar tanto para armazenar o não científico. O artista viaja além das valem nada sozinhos, sentimentos que os levam à
saber, pois ele se encontra estendido diante dela, objetivo, aparências e penetra nas unicidades submissão a redes sociais, e à permissividade. Isso
lecionado na escola, principalmente das escolas públicas, coletado, coletivo, conectado, totalmente acessível, dez escondidas pelos conjuntos. é cada dia mais frequente e até mais comum em
pelo conceito de fragmentação dos conteúdos e a abstração vezes revisto e controlado; ela pode voltar sua atenção para Sintetiza sua viagem e cria um novo jovens periféricos que não têm um apoio familiar
das disciplinas curriculares. Ou seja, as matérias escolares a ausência que se mantém acima do pescoço cortado. (...)
estão desconectadas da vida real e desconectadas uma É onde reside a nova genialidade, a inteligência inventiva, a conjunto - a Obra - que revela o Uno constante. A família, geralmente mais pobre, não
das outras, não favorecendo a interdisciplinaridade autêntica subjetividade cognitiva. A originalidade de nossa consegue suprir necessidades afetivas e financeiras
4 PALESTRA FILMADA VIVIANE MOSÉ
inerente dos conhecimentos humanos e tão pouco sendo jovem se refugia no translúcido, sob a agradável brisa. (Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ku5jhVYRrkE. de modo pleno, deixando com a escola, um papel
útil na trajetória individual dos alunos. A fragmentação Conhecimento de custo quase zero, e no entanto difícil de Acesso em 12/09/2016) de acolhimento, que ela não se vê preparada para
dos saberes faz com que a escola perca a conexão com a agarrar. A Polegarzinha comemora o fim da era do saber? dar.
sociedade e até consigo mesma. (SERRES 2015: 37-38, grifo meu)

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Educadores podem colaborar para Hoje, trabalho como professora de artes cênicas, esse limite. E se o espetáculo começa Se Paulo Freire fala da transitividade do
essa auto valorização reconhecendo numa escola que atende a comunidade da na ficção, o objetivo é se integrar na verdadeiro ensino, creio que Boal fale do
e aplaudindo as conquistas pessoais Rocinha, há sete anos. Logo quando cheguei, realidade, na vida. (BOAL, 1999: 347). diálogo propiciado pelo verdadeiro teatro, que
que representem auto superação, a escola tinha um espaço cultural, mas estava se dá não entre os personagens que estão na
e não apenas a obtenção de bens sem professor de teatro, apesar de ter seu Plano Segundo seu criador, uma sessão de Teatro cena, mas entre a plateia e os atores.
de valor que estimulem a posse de Político Pedagógico (PPP), intitulado “Educação do Oprimido não deve terminar jamais, pois ao
algo, como um crescimento ou uma Pela Arte”. A escola atende do sexto ao nono invés de provocar a catarse, encerrar o processo O professor não é aquele que descarrega
aquisição de valor. A criança sente- ano do Ensino Fundamental II e, para os de contar uma história e finalizar o ciclo de saber na cabeça do aluno, como
se mais valorizada por ganhar uma alunos, a exposição criada pelas aulas de teatro debates ele promove a autoatividade intelectual quem esvazia um caminhão, cofre
bicicleta ou por aprender a utilizá-la? gerava muita vergonha, intimidação e um não individual, inicia um processo novo de conexões, de banco onde se guarda o dinheiro-
Por conseguir resolver problemas de entendimento do uso dessa ferramenta, pois estimula a criatividade transformadora dos 10 saber: professor é quem possui um
matemática, poder conversar sobre seu eles acreditavam que “tinha que se ter algum spect.-atores convertidos em protagonistas e que conhecimento e o transmite ao aluno
conhecimento ou por possuir telefone talento” e que o teatro servia apenas para contar agora, depois da análise e participação na cena, e, ao mesmo tempo, dele recebe outro
celular? A auto satisfação vem do fato histórias de cunho melodramáticos (como as se veem armados e informados para iniciar conhecimento, pois que o aluno possui
de dominar os segredos da informática novelas), a fim de entreter. De lá pra cá, tento transformações sociais. Aí está a implicação social seu próprio saber (FREIRE, 2008: 36).
ou de possuir um computador? criar no ambiente escolar uma valorização do e a transformação ética do aluno participante.
(WERNECK, 2013: 22-23). teatro como linguagem, mas especialmente A opressão é sempre real, mas com o advento No teatro convencional existe uma relação
como ferramenta de discussões éticas: racismo, do teatro, o professor estimula os alunos a terem intransitiva: do palco tudo vai à sala, tudo se
"Como a discussão preconceito, homofonia, bullying, depredação suas próprias ideias e a tentarem modificar essa transporta, transfere - emoções, idéias, moral! -
do patrimônio, incentivo à reflexões humanas. realidade, expressando seus desejos, expectativas e nada vice-versa. Qualquer ruído, exclamação,
política está sempre Diversas técnicas são usadas, o Teatro-Fórum já e alternativas. Desse modo, os docentes criam um qualquer sinal de vida que faça o espectador é
também atrelada à foi uma delas, e com ele muitos questionamentos ambiente favorável à amizade, à abertura para o contramão: perigo! Pede-se silêncio para que
102 ética, o Teatro do traçados como meta de estudo entre as turmas. diálogo e à conexão pessoal. não se destrua a magia da cena. No Teatro do 103
Boal acreditava que no Teatro-Fórum5 não E embora muitas pessoas considerem o teatro Oprimido, ao contrário, cria-se o diálogo; mais
Oprimido foi minha existem espectadores: mesmo que estes se de Augusto Boal um teatro político, ele e seus do que se permite, busca-se a transitividade,
ferramenta principal afastem e fiquem olhando de longe, mesmo que curingas afirmam contundentemente que todo interroga-se o espectador e dele se espera
na escola, sendo a escolham não dizer coisa alguma, isso já é uma teatro é político6. resposta. Sinceramente (BOAL, 1996: 46).
ação. A partir daí, o Teatro do Oprimido, é uma
partir dele que o ferramenta muito usada (e talvez a preferida) Paulo Freire sempre defendeu que a
trabalho ético e sobre Na verdade, uma sessão de Teatro do da maioria dos professores de artes cênicas que verdadeira educação só acontece quando ela
valores morais com Oprimido não deve terminar nunca, eu conheço do primeiro e segundo segmentos parte do saber que já temos. Pressupõe-se que
porque tudo que nela acontece deve ser do Ensino Fundamental. Eu escolhi, por muitos mesmo sem nunca terem ido ao teatro ou terem
os adolescentes foi extrapolado na própria vida. O Teatro anos, usar as diversas técnicas da metodologia vivenciado a experiência do evento teatral
desenvolvido. " do Oprimido está no limite entre a do Boal para discutir problemas que aconteciam (nem mesmo na escola), muitas crianças,
ficção e a realidade: é preciso ultrapassar na própria escola envolvendo seus entes. Tais mesmo as de tenra idade, sabem o que é “fazer
A palavra agora tão na moda, “conexão”, técnicas ajudaram a criar dramaturgia coletiva, teatro”. Quando Boal criou o método do Teatro
serve muito bem para o espaço teatral e 5 No Teatro Fórum a dramaturgia simultânea sempre a partir de assuntos trazidos pelos do Oprimido sempre destacou que ele servia
educacional. Além de abrir-se para o entorno, a era uma espécie de tradução feita por artistas sobre educandos. Por dois anos fizemos teatro fórum também para não atores. Inclusive, é uma
os problemas vividos pelo povo. Aí nasceu o Teatro-
escola também deve ser um espaço democrático Fórum, onde a barreira entre palco e platéia é destruída
para investigar tais temáticas de cunho moral, máxima do Boal crer que “qualquer um pode
entre seus entes e a relação professor-aluno, a e o Diálogo implementado. Produz-se uma encenação mas, independentemente disso, passar pelos jogos fazer teatro”, em “qualquer lugar”, até mesmo
meu ver, deve ser repensada. baseada em fatos reais, na qual personagens oprimidos e propostos no teatro do oprimido foi inevitável. dentro do próprio teatro! Não são todos que
Como a discussão política está sempre opressores entram em conflito, de forma clara e objetiva, irão virar atores profissionais, mas é possível
também atrelada à ética, o Teatro do Oprimido na defesa de seus desejos e interesses. No confronto, o 6 “A gente não acredita que faça teatro político. A que todos possam executar exercícios onde
oprimido fracassa e o público é estimulado, pelo Curinga gente acredita que todo teatro é político, porque a gente
foi minha ferramenta principal na escola, sendo (o facilitador do Teatro do Oprimido), a entrar em cena,
diversas habilidades requeridas na vida são
acredita que os seres humanos são políticos e a palavra
a partir dele que o trabalho ético e sobre valores substituir o protagonista (o oprimido) e buscar alternativas política, ela vem da pólis, que é da cidade....onde as pessoas
trabalhadas de maneira lúdica e prazerosa. Os
morais com os adolescentes foi desenvolvido. para o problema encenado. (https://pt.wikipedia.org/wiki/ buscavam as melhores formas de estarem se organizando, da curingas do CTO, inclusive ressaltam que a
Teatro_do_oprimido sua ação política.” (SILVEIRA, FÉLIX e BRITO, 2005:10). maioria do trabalho realizado é:

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(…) sempre com não atores, porque Boal acredita ainda que a eficácia dessas Boal pois me proporcionou uma noção sistêmica profundas sobre
nós priorizamos o trabalho com não acredita ainda que a eficácia dessas técnicas e me estimulou a buscar diversas formas do
teatro dialogar com a comunidade e com os diversas temáticas.
atores, até porque nós acreditamos não pressupõe uma plenitude estética, pois
na cultura como vocação. (…) Não o foco das técnicas do Teatro do Oprimido alunos, ajudando inclusive, a sanar problemas Mas uma educação sem
é que todo mundo tem que ser um (T.O.) é a discussão, o debate, o fórum. A recorrentes do ambiente escolar, como conflitos reflexão, não é uma
Ronaldinho, mas o hábito de todo execução perfeita da técnica teatral é menos com professores, abusos de autoridade,
valorização da escola e dos estudantes. educação “sem partido”,
mundo querer jogar bola é sempre importante que a discussão ética, humana e
maravilhoso; o ato de pintar, também, política apresentada a cada espetáculo. Em Aos poucos o teatro foi encontrando um é uma educação
não precisa ser um Van Gogh, mas, se T.O. o preciosismo teatral facilmente se curva lugar especial: de porta voz dos alunos, de suas alienante, onde o
você se descobrir para pintar, é sempre à dialética. Ser professor, portanto, exige uma opressões. Os espetáculos do fim de ano eram
aguardados com muita ansiedade e expectativa decorar prevalece, de
interessante. Então, a gente prioriza atitude ética frente ao mundo, de rompimento
os não atores, mas as técnicas do com as diversas formas de opressão e injustiça – a cultura do teatro na escola foi estabelecida fato, ao aprender."
Teatro do Oprimido, os exercícios, as social, pois “não posso ser professor se não – os alunos, para ter sua vez de fala, queriam
técnicas de ensaios, elas são tão usadas percebo cada vez melhor que, por não poder chegar logo no nono ano, momento em que O grande desafio, ainda está sendo, lidar
tanto pra não atores como para atores. ser neutra, minha prática exige de mim uma os exercícios cênicos viravam peça, numa com uma juventude extremamente tecnológica
(SILVEIRA, FÉLIX e BRITO, 2005:5). definição. Uma tomada de posição. Decisão. culminância, e eram apresentados para toda a e convencê-la que o teatro ainda é uma
Ruptura” (FREIRE, 1996: 102 -103). escola e seus pais. ferramenta muito potente de comunicação,
Na posição de também diretora adjunta da Claro que não foi simples incentivar e de conexão. Ligados em redes sociais, essa
escola, função que exerci por três anos (2014- estabelecer uma espécie de “tradição” no modernidade líquida, segundo Bauman, se
2017), nessa mesma escola que hoje atuo como ambiente daquela escola que, até então, caracteriza por relações superficiais, frágeis, não
docente, passei a ser muito mais solicitada pelo não alinhava os valores éticos com as duradouras. Tenho, nas últimas experiências,
corpo discente para resolver conflitos éticos, práticas artísticas e estéticas. É bem cruel, evitado lutar contra essas novas tecnologias
morais e até delitos: brigas, roubos, destruição 104 realmente, para nós professores, que viemos e tentado agregá-las às aulas, buscando 105
de patrimônio e ameaças. Histórias reais que de uma aprendizagem acadêmica totalmente estabelecer círculos de confiança e dando
se conectavam pouco a pouco com o trabalho eurocêntrica, dar conta de toda a cultura, arte utilidade para os ‘smarphones’ tão execrados
cênico. e valor popular de uma comunidade brasileira. no ambiente escolar. A reinvenção dos jogos de
Na foto acima, alunos fazem um exercício A arte acadêmica é elitista, é excludente, TO com esses aparelhos que hoje são extensão
de Teatro Imagem, uma das muitas técnicas isso é fato. Não foi um caminho fácil até que dos braços adolescentes tem possibilitado uma
que compõem o Teatro do Oprimido. Quando eu pudesse transpor todas as barreiras que relação mais harmoniosa e produtiva. É comum
solicitei que eles mostrassem uma situação de me afastavam do meu aluno e torná-lo não que eu deixe filmar, fotografar, criar e editar
opressão através de uma foto, ou melhor, me apenas apreciador da arte, mas construtor, (um vídeos para construção de cenas. Contrariando
contassem uma história de opressão numa série construtor consciente) de uma arte intrínseca e muitas recomendações pedagógicas, crio
de fotos, eles imediatamente se colocaram legítima. grupos de conversas em todas as redes sociais
como sujeitos da situação. Não foi difícil possíveis e estendo as aulas e as discussões
executar a ação teatral; difícil foi escolher, entre "Reconheço que vivemos éticas, políticas, ativistas e temáticas para além
tantas opressões vividas, qual queriam me da sala de aula, com materiais compartilhados
tempos soturnos, pois online. Estimulo uma relação que se torna
apresentar.
É importante frisar que, mesmo como os professores estão cada dia mais horizontal, com mais chance de
diretora adjunta de escola, continuava regente sendo acusados e troca. Nessa guerra entre o real e virtual, tento
de turmas (por opção) e isso me deixou numa ir para a batalha com as armas do adversário,
atacados de influenciar e tenho alcançado algum êxito. As estratégias
situação bem demandada de trabalho, mas
extremamente privilegiada, pois conseguia os alunos com mudam com uma rapidez vertiginosa, como os
enxergar os dois lados da trincheira, algo ideologias partidárias, aplicativos e os dispositivos da moda. Indicar
Exercício inspirado na obra Jogos Para Atores e que somente como professora não conseguia qualquer fórmula, método ou preferência para
Não Atores, de Augusto Boal (1999). Turma: 1901,
a cada momento em que as aulas de teatro seria me tornar obsoleta antes
antever. Essa experiência pedagógica na
Outubro 2015– foto: Anilia Francisca – Acervo administração escolar, foi bastante interessante, incitamos reflexões do fim do ano letivo. Por isso, uma constante no
Pessoal meu trabalho diário é o compartilhamento de

Interseções | Renata Leite de Oliveira e Graciane de Souza Rocha Volotão Interseções | Anilia Francisca Mércio da Silveira
conteúdo, onde aprofundo as questões morais, Referências XX. O espírito do tempo - 1 Neurose. 9 ed. Rio de
valores e discussões que surgem nas aulas. O Janeiro: Forense universitária, 2002.
mais importante é nunca impor uma leitura, ALVES, Rubem. Entre a Ciência e a Sapiência: o
uma obrigação, mas estimular um interesse dilema da educação. 19. ed. São Paulo: Edi-ções MOSÉ, Viviane. A escola e os desafios
espontâneo e verdadeiro, algo que através dos Loyola, 1999. contemporâneos. Rio de Janeiro: Civilização
celulares se torna mais orgânico e informal. Brasileira, 2013.
Afirmo, seguramente, que eles me ensinam ________. A escola com que sempre sonhei sem
mais do que eu ensino a eles. Frequentemente, imaginar que pudesse existir. 20a.ed. São Paulo. SANCTUM, Flavio; O teatro do oprimido
recebo dos alunos textos, vídeos, materiais que Edições Loyola, 2003. enquanto instrumento contra hegemônico. Artigo
me surpreendem muito e que, mais tarde, viram (pag 31 e outras). Revista Arte e Resistência na
dramaturgia e novas propostas. BARBOSA, Ana Mae (org). Inquietações e Rua. São Paulo. Ano V, n. 05 – outubro 2015.
Reconheço que vivemos tempos soturnos, Mudanças no Ensino da Arte. 7 ed. São Paulo:
pois os professores estão sendo acusados Cor-tez, 2012. SERRES, Michel. Polegarzinha. Uma nova forma
e atacados de influenciar os alunos com de viver em harmonia, de pensar as institui-ções,
ideologias partidárias, a cada momento BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de de ser e de saber.
em que incitamos reflexões profundas sobre Janeiro: Garamond, 2009.
diversas temáticas. Mas uma educação sem SILVEIRA, Anilia Francisca Mércio da; DUARTE,
reflexão, não é uma educação “sem partido”, _________. Aqui ninguém é burro. Rio de Esperidião; BRITO, Geo; FELIX, Claudete,
é uma educação alienante, onde o decorar Janeiro: Revan, 1996. Material do departamento de Audiovisual
prevalece, de fato, ao aprender. Busco sempre UNIRIO - NEPPA, Transcrição de entrevista re-
respeitar todas as opiniões, mediar os conflitos _________. Jogos para Atores e não Atores.2 ed. gistrada em vídeo digital. Rio de Janeiro: 2005
e propor discussões saudáveis, considerando Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
106 os pontos de vista diversos. Claro que é uma SOUZA, Marcos de. O real conceito de nativos 107
tarefa árdua, ainda mais quando sua vida CANDA , C.N. - PAULO FREIRE E AUGUSTO e imigrantes digitais nas redes sociais digitais:
pessoal, suas escolhas, estão entrelaçadas BOAL: DIÁLOGOS ENTRE EDUCA-ÇÃO E conceitos, vivências e comportamento.
com seu trabalho. Ser imparcial é uma utopia TEATRO; Revista HOLOS - artigo, agosto/2012 Universidade Estadual do Norte Fluminense
estranha para um professor minimamente CORTELLA, Mário Sérgio. Não Nascemos Darcy Ribeiro – UENF. Dissertação de Mestrado,
comprometido. Uma frase que escutava muito Prontos! - Provocações Filosóficas. 9 ed. Campos dos Goytacazes – RJ, 2013
na licenciatura, dos bons professores que Petrópolis: Vozes, 2009.
tive era: “Educar de verdade, é se envolver.
Sempre.” Mas é possível, sim, deixar claras as ________ .Qual a tua obra? 14 ed. Petrópolis:
suas escolhas, permitindo que seus alunos, seus Vozes, 2011.
parceiros e suas redes, façam as deles, de forma
honesta, entendendo as consequências que isso DANTAS, H. .Afetividade e a construção do
implica. sujeito na psicogenética de Wallon,
Não basta consumir cultura; o discurso em La Taille, Y. Dantas, H. Oliveira, M. K.
de Boal é contundente quando diz que é Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias
necessário produzi-la. Esse pode ser um dos psicogenéticas em discussão. São Paulo:
poucos meios que ainda temos para conduzir Summus Editorial Ltda, 1992.
jovens no ambiente escolar, tão inóspito
e desinteressante. Cada dia na sala e cada FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia:
experiência ligada à afetividade me faz crer que saberes necessários à pratica educativa. 39. ed.
Artes Cênicas é a disciplina dos saberes éticos. São Paulo: Paz e terra, 2009.
Sendo assim, ela tem o poder transformador de
mudar as pessoas numa progressão geométrica ________ .Pedagogia do Oprimido. 47 ed. São
e não menos ambiciosa: talvez mudar a Paulo: Paz e Terra, 2008.
comunidade, a cidade, quiçá o mundo. MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século

Revista Perspectivas em educação básica | N. 3 | Dez. de 2019 Interseções | Anilia Francisca Mércio da Silveira

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