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Reflexões metodológicas sobre uma etnografia multi-situada dos conflitos

socioambientais na mineração de larga-escala

Isabella Alves Lamas

Doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos no Centro de Estudos


Sociais e na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

isaalamas@gmail.com; isabellalamas@ces.uc.pt

Área Temática: Política Internacional, Relações Internacionais, Política Externa e


Integração Regional

Trabalho em andamento– por favor, não citar sem a autorização da autora

Trabalho preparado para sua apresentação no 9o Congresso Latino- americano de Ciência


Política, organizado pela Associação Latino-americana de Ciência Política (ALACIP)
Montevideu, 26 ao 28 de julho de 2017.

1
Resumo

A Etnografia clássica foi desenvolvida na Antropologia e é normalmente associada a


busca pela expressão de vozes subalternas e/ou do cotidiano através de longas estadias
do(a) pesquisador(a) no campo. Na área das Relações Internacionais, o seu uso crescente
a partir da década de 80 deu origem a chamada virada etnográfica no estudo da política
global. No entanto, há poucos trabalhos inspirados pela proposta apresentada por George
Marcus em 1995 no Annual Review of Anthropology de etnografia multi-situada. Esta
pretende romper com o apelo único à manifestações locais de grandes narrativas do
sistema mundial ao identificar uma complexa arquitetura contextual através dos métodos
de seguimento de atores, coisas, metáforas, estórias ou alegorias, biografias ou conflitos.
A presente investigação é construída a partir do objetivo de seguir conflitos
socioambientais relacionados à mineração de larga-escala. Pesquisas de campo foram
realizadas em diferentes contextos de emergência deste tipo de conflitualidade: a
exploração em larga-escala de carvão em Moçambique, níquel no Canadá e ferro no
Brasil. A proposta apresenta a escolha de um campo espacialmente disperso não só em
termos geográficos/físicos, mas também epistêmicos. Assim, buscou-se o encontro com
uma variedade de atores – de populações atingidas à membros dos governos – não só
pelo que estas pessoas sabem de novo, mas também pelas maneiras radicalmente distintas
através das quais elas sabem. As movimentação entre as esferas pública e privada e entre
contextos subalternos e oficiais fazem com que os discursos encontrados por vezes se
sobreponham com aqueles que guiam as motivações do próprio exercício de investigação.

Palavras-chave: etnografia multi-situada; metodologia; mineração; conflitualidade


socioambiental

2
Introdução

A metodologia etnográfica foi inicialmente desenvolvida no âmbito da Antropologia do


século XX e é normalmente associada a busca pela expressão de vozes subalternas e/ou
do cotidiano através da condução de pesquisas de campo. A relação entre a área e o
trabalho de campo é tão marcante que este último é entendido como parte constituinte da
produção do conhecimento antropológico, aquilo que permite a distinção mais clara da
Antropologia com as demais disciplinas. De fato, durante muito tempo, o ‘arquétipo’ ou
‘complexo malinowskiano’ - referência ao trabalho seminal de Malinowski a partir do
qual o objetivo do etnógrafo é apreender a visão do nativo através de um longo período
de imersão e vivência junto a esses (Vide: Malinowski, 2005 [1922]: 6) - foi a fonte de
auto-imagem e legitimidade da Antropologia (Gupta and Ferguson, 1997: 39). Não
obstante, ao longo do tempo foram surgindo questionamentos sobre a adequação do
métodos e conceitos etnográficos tradicionais para o entendimento do mundo pós-
colonial contemporâneo (Gupta and Ferguson, 1997: 3).

Essas inquietações geraram um panorama geral de revisões e discussões metodológicas


dentro da disciplina. Os pesquisadores Gupta e Ferguson (1997), por exemplo,
defenderam um ‘descentramento do lugar da pesquisa de campo’ na Antropologia e a
necessidade de apreciá-lo de uma nova maneira. Foi como resposta a esse deslocamento
de condições de produção da pesquisa antropológica e do método do trabalho de campo
(Marcus, 1999), que em 1995 o pesquisador George Marcus apresentou a ideia de
etnografia multi-situada no Annual Review of Anthropology. Segundo a sua proposta,
essa etnografia, realizada a partir de múltiplos locais de observação e participação,
permite a superação de dicotomias como o ‘local’ e ‘global’, ‘mundos de vida’ e
‘sistema’. De forma geral, ela rompe com o apelo único à manifestações locais de
grandes narrativas do sistema mundial ao possibilitar a identificação de uma complexa
arquitetura contextual através dos métodos de seguimento de atores, coisas, metáforas,
estórias ou alegorias, biografias ou conflitos.

Na área das Relações Internacionais, o uso crescente da metodologia etnográfica a partir


da década de 80 deu origem as chamadas ‘virada etnográfica’ e ‘cotidiana’ no estudo da
política global. Muitas pesquisas passaram a incorporar as esferas práticas do local, do

3
micro e do cotidiano como elementos fundamentais de análise, em especial as
desenvolvidas na área dos Estudos para a Paz através do foco nas concepções/ vivências
cotidianas de paz e violência. No entanto, curiosamente, há relativamente poucos
trabalhos inspirados pela proposta da etnografia multi-situada cuja emergência foi uma
resposta à inquietações muito semelhantes às que aconteceram no âmbito das RI, como o
desejo de transcender a divisão existente entre os níveis micro e macro de análise.

Em parágrafo introdutório da minha tese de doutorado, em desenvolvimento na área de


Relações Internacionais em um programa focado em Estudos para a Paz, é possível
encontrar aquilo que me motivou na busca por uma metodologia que oferecesse meios de
incorporar o cotidiano e as perspectivas das populações atingidas na análise dos conflitos
socioambientais na mineração.

A realidade alarmante dos conflitos socioambientais formados em torno dos


megaprojetos de extração de minérios está intimamente relacionada ao governo das
populações atingidas exercido pelas corporações multinacionais (CMNs). Apesar do
reconhecimento crescente do posicionamento das CMNs como um ator não estatal ativo
na governação global, a bibliografia existente, principalmente nas áreas de Relações
Internacionais e Ciência Política, acaba por focar nos níveis de análise da macro
política global e, assim, deixa de fora o envolvimento cotidiano da corporação na
conduta da vida das pessoas. Ao mesmo tempo, as perspectivas das populações
atingidas, apesar de terem um papel central na modulação das interações que tomam
forma nestes contextos, raramente são incorporadas como variáveis centrais para a
compreensão do processo de composição do olhar da corporação multinacional.

O presente trabalho tem o intuito de apresentar reflexões metodológicas sobre a


construção do mapeamento do trabalho de campo dessa investigação a partir de uma
inspiração na metodologia da etnografia multi-situada por meio do método de ‘seguir
conflitos’ (Marcus, 1995: 110) socioambientais na mineração de larga-escala. Sendo
assim, não pretendo discutir aqui os dados coletados e os resultados de pesquisa, mas sim
expor algumas das potencialidades da etnografia multi-situada para a análise da relação
entre atores transnacionais e a emergência de conflitualidade e os desafios metodológicos
através dos quais esta investigação se constitui. O objetivo é percorrer em linhas gerais os

4
caminhos e as inquietações da construção dessa investigação através da condução de
trabalhos de campo em áreas geograficamente e epistemologicamente diversas.

As viradas Etnográfica e Cotidiana das RI: um diálogo com a Antropologia

Nos últimos anos, dois movimentos se destacam no campo metodológico das áreas de
Relações Internacionais e da Antropologia por questionarem linhas de pensamento
ortodoxas e suas formas de produção de divisões artificiais, principalmente em relação
aos níveis de análise local e global. Essas divisões estão relacionadas a uma ideia
normativa subjacente de que a Antropologia deve ser dedicada às formas de expressão de
fenômenos globais nos níveis locais e às Relações Internacionais constituem um campo
do estudo do global que não deve se voltar aos acontecimentos da esfera da micropolítica
local1.

O primeiro movimento que questiona essa lógica acontece na Antropologia é a


reinvindicação de que as políticas nacional e internacional/sistema financeiro
internacional tem o potencial de serem tão antropológicos quanto a política/economia
locais (Gupta and Ferguson, 1997: 15). A defesa de uma diluição entre global e local em
um mundo interconectado (a existência de lugares igualmente locais e globais) abriu
espaço para representações do mundo como uma grande vila global. A concepção de um
capitalismo homogenista em tempos de globalização foi muito criticada dentro da
Antropologia, mas segundo Dinah Rajak (2011), mesmo contestando essa ideia o foco
continuou a ser de certa forma o tradicional: estudos que procurassem evidenciar
manifestações locais do processo econômico global. Em seu trabalho, ela defende uma
mudança de perspectiva para a compreensão de como atores econômicos globais como as
CMNs estão também territorializados e empregam mecanismos de pretensa validade
universal como a responsabilidade social corporativa para reinventar a hegemonia sob os
‘atores locais’ e legitimar práticas corporativas particulares (Rajak, 2011: 120). Segundo
a autora, um dos riscos da desconstrução da divisão artificial entre local e global seria
precisamente invisibilizar a hierarquia que continua a existir entre diferentes espaços e
suas populações, como por exemplo, entre a sala de reuniões na sede de uma CMN que

1
Para Ferguson, os cientistas políticos são aqueles que ‘começam do topo’, enquanto os antropólogos
‘começam de baixo’ (Schouten, 2009).

5
representam a dimensão do global e os poços de minas que simbolizam a realidade local
(Ibid.: 112). Mas foi só através do acesso da antropóloga a essa primeira esfera que ela
pode construir o seu argumento de que é lá onde são desenhadas partes fundamentais do
arcabouço institucional voluntário que rege a atuação social das CMNs nos locais de
operação. Essa circulação por esferas não convencionais exemplifica como a abertura do
campo para o estudo de processos transnacionais perturbou a orientação disciplinar
clássica da Antropologia de um comprometimento metodológico exclusivo com o nível
local.

O segundo movimento faz parte da chamada virada cotidiana das Relações


Internacionais. Esta defende uma maior aproximação de um conhecimento situado e
ancorado em experiências cotidianas que permitam um afastamento de abstrações
distantes típicas da área. Em um Call for Papers do início de 2017 para a elaboração de
número especial dedicado às ‘Relações Internacionais Cotidianas’, a revista Cooperation
and Conflict procura trabalhos que dialoguem com o cotidiano como constitutivo da
política global, a micropolítica das Relações Internacionais e o valor analítico de micro-
movimentos que acessem pontos cegos da área para a análise de fenômenos
internacionais 2 . De forma complementar, a ‘virada etnográfica’ das Relações
Internacionais ou do estudo da política global (Vide. Vrasti, 2008) advoga pelo uso de
abordagens metodológicas mais conectadas com as práticas cotidianas como forma de
capturar as complexidades da vida política. Por este meio, amplia o espectro de uma
Relações Internacionais ortodoxa focada exclusivamente em análise de textos e discursos,
excessivamente centrada nos atores estatais (Lie, 2013: 202) e fruto de uma concepção do
internacional que não incorpora o cotidiano enquanto parte integrante da análise.

Recentemente, as ‘viradas cotidiana’ e ‘etnográfica’ adquiriram um fôlego especial na


área dos Estudos para a Paz (Vide. Bichsel, 2009; Millar, 2014; Denskus, 2012). As
intervenções contemporâneas de construção de paz desenhadas de cima para baixo
através de concepções normativas liberais padronizadas de como devem ser estabelecidas
as dinâmicas políticas, econômicas e sociais em sociedades pós-conflito foram muito
criticadas por não levarem em conta as especificidades dos diferentes locais de

2
Disponível em: http://journals.sagepub.com/pb-assets/cmscontent/CAC/CAC_Everyday_IR_cfp.pdf

6
implementação. Os inúmeros problemas decorrentes da falta de pertencimento e
identificação com as instituições e práticas impostas através de intervenções fracassadas,
informadas por uma concepção pretensamente universal de paz, serviram de impulso para
o surgimento da ‘virada local’ dos Estudos para a Paz (Vide. Ginty and Richmond, 2013).
Como ressaltam Richmond e Mitchell, “formas únicas de paz emergem quando
estratégias, instituições e normas das intervenções internacionais, em grande parte
liberais-democráticas de construção de paz colidem com as vidas cotidianas de atores
locais atingidos pelos conflitos” (Richmond and Mitchell, 2012: 1). Esse espaço de
encontro e sobreposição entre o internacional e o local – com suas dinâmicas únicas de
resistência, autonomia, apropriação e aceitação – dão origem à dinâmicas de hibridização.
Para compreender estes novos espaços políticos que propiciam a emergência dos
conceitos de paz ‘híbrida’ e ‘cotidiana’ (Vide. Richmond, 2009) muitos estudiosos da
área passaram a voltar a sua atenção para um entendimento das “dinâmicas e interações
que fazem todas as formas de paz únicas, dinâmicas, contextualizadas e contestadas”
(Richmond and Mitchell, 2012: 1 -2).

Pensar a complementariedade existente entre estes dois movimentos ainda permeados


pelas barreiras disciplinares 3 , mas assentes em inquietações de naturezas muito
semelhantes é fundamental para a valorização crescente da necessidade de pensamentos
interdisciplinares (como se apresentam as propostas acima referenciadas dos Estudos para
a Paz) que transcendam binários e divisões artificiais – i.e. local e global, conhecimentos
locais e científicos, sociedades tradicionais e modernas, contexto subalterno e oficial,
esfera pública e privada, o Norte e o Sul, desenvolvido e subdesenvolvido (Meneses,
2003) – sem com isso deixar de atentar para as instrumentalizações dessas mesmas


3
Em trabalho recente, Ferguson coloca muito bem a questão do porque ainda importa fazer essas
discussões dentro de uma concepção disciplinar ressaltando o poder das instituições e das fontes de
financiamento. Ele fala que uma resposta perfeitamente defensível a ansiedade gerada em relação a
abertura da área para um pluralismo metodológico e a uma potencial perda de identidade disciplinar dentro
da Antropologia é - quem se importa? O que vale é apenas a produção de bom conhecimento independente
das barreiras disciplinares. Não obstante, o contexto institucional não permite com que o debate seja feito
apenas nessas linhas, uma vez que os/as pesquisadores são constantemente cobrados por resultados
enquadrados dentro dos limites dessa mesma identidade disciplinar (Ferguson, 2011: 205). Marcus também
acaba reproduzindo em suas “5 ou 6 coisas que sei agora” sobre a etnografia multi-situada uma discussão
essencialmente disciplinar ainda que em defesa da integração de movimentos interdisciplinares ao ethos
antropológico (Marcus, 2011).

7
categoriais com o objetivo de produzir normalizações e legitimar formas múltiplas de
intervenções4.

É nesse contexto que eu situo o potencial metodológico e analítico da condução de uma


etnografia multi-situada para às aspirações da emergência de uma RI crítica que
incorpore o cotidiano e as visões subalternas como constitutivos da política global e vice-
versa. São os múltiplos locais de observação da etnografia multi-situada que geram o
potencial do método de transcender as barreiras acima referidas e, não por acaso, este é
muito presente no campo de trabalhos interdisciplinares ou anti-disciplinares por
ideologia como os ESCT através de pesquisas sobre redes sociotécnicas, assemblages,
formas emergentes de vida. A etnografia multi-situada além de ser usada como método
para demonstrar os sistemas híbridos que são produzidos na tradução de ideias e
significados entre os diferentes espaços, também pode ser trabalhada de modo a ressaltar
a continuidade e a difusão da solidez dessas mesmas ideias e significados enquanto
formas múltiplas de intervenção - sejam elas frutos da indústria da ajuda internacional, da
responsabilidade social corporativa ou da construção da paz. Na sequência, apresento
algumas reflexões sobre a sua aplicabilidade na minha pesquisa de doutorado que procura
articular questões transnacionais relacionadas à formas de gestão dos impactos
socioambientais da mineração de larga-escala com manifestações cotidianas de
convivências conflituosas com a atividade extrativista em diferentes territórios.

Seguindo conflitos socioambientais

A minha investigação é focada no envolvimento de uma mesma CMN em arranjos de


governança e conflitualidade em diferentes contextos: a Vale S.A., uma das gigantes
multinacionais brasileiras5, atualmente privada e de capital aberto, mas que foi estatal
durante a maior parte da sua história que remonta aos tempos da Segunda Guerra


4
Um dos exemplos que me ocorre é a narrativa dos estados falidos baseada, entre outros, no binário
desenvolvido – subdesenvolvido extensamente usada como forma de legitimar intervenções em países do
chamado terceiro mundo.
5
A companhia é a quinta maior empresa brasileira segundo o ranking Forbes Global 2016. Além disso,
ocupa o 559o lugar entre as 2000 companhias listadas. No Forbes Global 2015 ocupava o terceiro lugar
entre as maiores empresas brasileiras. A perda de posições é atribuída por alguns analistas econômicos a
queda do preço e demanda mundial de commodities.

8
Mundial6. Classificada como empresa-fenômeno principalmente devido ao seu sucesso
como estatal (Faro et al., 2005: 15), o que não falta são elogios a trajetória de sucessos da
Vale. De grandezas vive e descreve-se a Vale: a maior mineradora do Brasil e entre as 3
maiores do mundo e, agora, entre tantos outros feitos e classificações, dona do maior
projeto de mineração do mundo (S11D, desenvolvido em Carajás no sudeste do Pará)7.
Em contraposição a essas narrativas de sucesso, há um reconhecimento internacional
cada vez maior da Vale enquanto uma ‘multinacional dos conflitos’ (Revelli, 2010). Este
teve como ponto alto a atribuição do prêmio de pior companhia do mundo pelo Public
Eye Award de 2012, um contra-evento ao Fórum Econômico Mundial em Davos.

A sua sede, ao contrário da extravagante sede da CMN Anglo American em Londres, está
escondida na Barra da Tijuca (bairro nobre da zona oeste do Rio de Janeiro conhecido
por ser afastado das demais áreas da cidade) no terceiro andar de um shopping center –
lugar muito pouco convencional se considerarmos o padrão mundial de sedes de
empresas de porte equivalente. Tudo indica que a empresa foi lá se afastar dos protestos
sociais extremamente comuns na sua antiga e tradicional sede no centro do Rio de
Janeiro8. Essa é uma outra face da Vale que, apesar de exposta por muitos movimentos
sociais dos/as atingidos pela suas atividades, é muito pouco retratada nos meios da mídia
hegemônica e de seus comentadores neoliberais. A única maneira de acessá-la foi através
da interface entre impressões de uma observação direta em visita à sede e conversas/
entrevistas paralelas com diferentes atores em diversos territórios por ela ocupados.

Apesar de ser uma mineradora, além das atividades de operação de minas, a companhia
possui inúmeras operações nas áreas de Logística, Energia e Siderurgia. Assim, entre


6
A Vale foi criada como forma de reação as instabilidades internacionais e nacionais do período, além das
demandas por minério de ferro para alimentar a indústria bélica geradas pela guerra. É autobiografada no
livro de comemoração de 70 anos de sua história como protagonista da economia nacional e mundial: “(...)
a antiga CVRD partiu de Itabira, conquistou Carajás e ganhou o mundo. Hoje é simplesmente Vale – ou
‘simplesmente’ a segunda maior mineradora do planeta” (Vale S.A., 2012: 13).
7
Além de maior produtora mundial de minério de ferro/ pelotas (usados pela indústria siderúrgica) e de
níquel (matéria prima da indústria de aço inoxidável e ligas metálicas), também produz manganês, ferro
ligas, carvão térmico e metalúrgico, cobre, metais do grupo da platina, ouro, prata, cobalto, potássio,
fosfatos e outros fertilizantes.
8
É verdade que recentemente há uma onda de multinacionais que tem optado por instalar suas sedes por lá
como a Shell Brasil e a Esso Brasil, bem como que há uma tendência mundial de diminuir grandes
escritórios para poupar gastos e salvaguardar a imagem, questão que atinge diversas CMNs do setor.

9
participações ou controle total de operações de ferrovias, portos e usinas hidrelétricas, os
tentáculos da companhia se estendem em diversas áreas e dimensões da vida de
populações que estão nas proximidades destas atividades. O alcance extraordinário da
companhia e os efeitos negativos consideráveis de suas atividades na vida de pessoas ao
redor do mundo foram as motivações mais elementares da sua escolha como peça central
da minha investigação de doutorado. A entrada de uma mineradora como a Vale em
determinado contexto muda a vida das pessoas que estão de alguma forma presentes em
sua área de influencia de tal forma que a escolha de olhar de perto estas realidades como
forma de análise da relação entre a exploração de recursos naturais e a conflitualidade se
mostrou promissora.
Afinal, os recursos naturais trazem prosperidade e mudanças efetivas no cotidiano da
população do estado hospedeiro? A discussão entre acadêmicos, organizações não
governamentais, movimentos sociais, governos, organizações internacionais, grandes
companhias e pessoas comuns sobre o teor desta mudança é extensa e muito pouco
consensual. Na academia, há uma variedade de interpretações sobre a relação entre a
existência de exploração de recursos naturais e os seus efeitos nas dinâmicas da vida das
pessoas. Em um extremo, há aqueles que demonstram que há uma maldição dos recursos
naturais de forma que a presença de grandes reservas está associada com corrupção,
pilhagem, guerra civil, entre outros. No outro, estudos e policy papers que ressaltam o
potencial que uma boa administração dos recursos naturais tem para gerar crescimento
econômico e desenvolvimento social. Contudo, ao contrário de buscar um
posicionamento entre estes extremos, é na ausência das temáticas por eles abordadas de
uma visão abrangente da conflitualidade e injustiça socioambiental e do acesso desigual
ao controle e uso dos recursos naturais que se situa o lugar dessa investigação.
No dia 5 de novembro de 2015, já em fase relativamente avançada da produção dessa
pesquisa, o rompimento de uma barragem de rejeito da mineração em Minas Gerais gerou
a sequencia de eventos que ficaram conhecidas como o desastre de Mariana. A onda de
lama ocasionada pelo rompimento da barragem de Fundão matou 19 pessoas, destruiu
completamente os distritos de Bento Rodrigues, Camargos e Paracatu de Baixo, além de
ter percorrido 930 quilômetros e todo o percurso do Rio Doce até a foz em Regência no
Estado do Espírito Santo. A mineradora responsável pela operação da barragem era a

10
Samarco, uma joint venture controlada pela Vale e pela maior mineradora do mundo, a
anglo-australiana BHP Billiton. Foi o maior desastre socioambiental da história do Brasil
e o maior envolvendo barragens de rejeito de mineração do mundo (Milanez and
losekann, 2016). As investigações sobre o acontecimento indicam conhecimento prévio
dos riscos de rompimento, o que evidencia o seu caráter de crime ambiental. E a Vale,
apesar dos seus esforços de gerar uma desvinculação formal no imaginário da população
do Brasil e do mundo9, não teve como negar, é a protagonista central dessa história.

Coincidentemente, a Vale e os impactos socioambientais da mineração de larga-escala


eram também a peça central da minha pesquisa. Não faria sentido, no entanto, incorporar
o desastre de Mariana como um dos “casos” ou lugares a serem estudados, uma vez que o
elemento do cotidiano nos conflitos é fundamental na constituição do meu objeto de
pesquisa10. O imediatismo, a magnitude da mudança causada e as análises de risco dai
decorrentes são elementos que fazem daquilo que aconteceu em Mariana um
acontecimento único, e de certa forma distante daquilo que era a minha preocupação
central: mostrar como as manifestações cotidianas dos conflitos socioambientais
estão relacionadas com a existência de mecanismos de governo da vida das
populações atingidas pela mineração nos quais as corporações adquirem
centralidade e ocupam espaços emergentes de governança.


9
Em entrevista coletiva, o presidente Murilo Ferreira se referiu a existência de um ‘buraco de governança’
que teria colocado a Vale e a Samarco diante de uma situação nova Disponível em:
http://veja.abril.com.br/politica/vale-tenta-se-descolar-da-samarco-empresas-concorrentes/
10
O que aconteceu em Mariana impactou não só a vida de milhares de pessoas como aumentou
consideravelmente a atenção pública para a questão mineral no Brasil e no mundo. Isso levou também a
uma multiplicação exponencial dos questionamentos sobre o modelo através do qual a mineração de larga
escala vem sendo desenvolvida no Brasil ou pelo Brasil em estados hospedeiros. Evidentemente, muitos já
estavam anteriormente posicionados nesta frente de questionamento e resistência aos efeitos nocivos deste
modelo como o Movimento dos Atingidos pela Mineração (MAM) ou o Comitê Nacional em Defesa dos
Territórios Frente à Mineração, mas com o desastre a temática ganhou maior visibilidade e,
consequentemente mais pessoas passaram a refletir sobre isso e/ou aderiram aos movimentos. As vidas de
Mariana estão presentes nas entrelinhas e nas motivações do meu trabalho na medida em que o foco é
naquilo que já existia e continua a existir no pós-tragédia de Mariana – aquilo que entendo como o
continuum do conflito associado a exploração de escala industrial de recursos naturais. Afinal, ao contrário
de interpretá-la como acidente aleatório, eu junto a minha voz a de outros que defendem que foram as
violências inscritas em um modelo conflituoso de mineração e exploração insustentável dos recursos
naturais que geraram o crime socioambiental de Mariana em primeiro lugar.

11
Com esse objetivo, optei por seguir as partes em conflito através da condução de uma
etnografia multi-situada. Ao longo dos últimos dois anos, realizei pesquisas de campo em
diferentes contextos de emergência deste tipo de conflitualidade socioambiental
relacionada à mineração de larga-escala da Vale: a exploração de carvão em Moçambique
(junho/julho de 2016), de níquel no Canadá (junho/ julho de 2015) e de ferro no Brasil
(janeiro de 2016). Além disso, estive também na sede da CMN no Rio de Janeiro (Brasil),
em conferências e disciplinas acadêmicas sobre a temática da exploração de recursos
naturais em Nova York, Cambridge (EUA) e Sudbury (Canadá) e seminários organizados
pelos/as atingidos/as pela mineração em Belo Horizonte (Brasil). Optei pela escolha de
lugares espacialmente dispersos não só em termos geográficos/físicos, mas também
epistêmicos. Assim, eu busquei o encontro com uma variedade de atores e partes em
conflito – de populações atingidas à membros das corporações, governos e empresas de
consultoria – não só pelo que estas pessoas sabem de novo, mas também pelas maneiras
radicalmente distintas através das quais elas sabem.

No entanto, seguir o conflito para mim não era apenas viver durante algum tempo nos
arredores das áreas operacionais, lugares em que estes emergem e se desenvolvem
através da tensão entre a CMN, populações atingidas e eventualmente representantes da
esfera pública. Na busca de entender como é possível (e principalmente através de que
meios) que a indústria extrativa tem caminho livre (e, portanto legitimidade) para agir
enquanto autoridade com poder de intervenção na gestão social e ambiental que geram
efeitos avassaladores na vida de tantas pessoas – em países tão distintos quanto Canadá,
Moçambique e Brasil – não bastava que eu acessasse apenas a realidade daquilo que
acontece nos territórios minerados. Esse acesso me proporcionou, a partir da pluralidade
epistemológica de modos de pensar diversos 11 , compartilhar (ainda que enquanto
investigadora e não atingida) da indignação com os descasos, projetos de
responsabilidade social paliativos e ‘para inglês ver’, destruição de modos de vida,
enganação, falsas promessas, apropriação de terras, desmonte orquestrado de


11
Epistemologicamente, a investigação parte da concepção da existência de uma ecologia de saberes (Vide.
Santos, 2006) na medida em que reconhece a diversidade de modos de conhecimento e condições sociais
para sua produção (Santos, 2004: 28).

12
organizações representativas dos trabalhadores mineradores, contaminação, entre tantos
outros.

Através dessas experiências (e da circulação por esses múltiplos lugares) vivenciei de


perto o hiato existente entre a compreensão empresarial do gerenciamento do risco social
da mineração e a maneira como os impactos são entendidos a partir de formas de
conhecimento diversas dos/as atingidos/as: os saberes de populações indígenas,
camponeses, sem terra, quilombolas, trabalhadores sindicalizados. Um dos exemplos
mais simbólicos que posso dar acontece no sudeste do Pará onde a Vale desde os anos 80
possui convênios assinados com as populações indígenas da TI Mãe Maria (Povo Gavião)
como resultado de exigências do Banco Mundial para a concessão de empréstimos
destinados a implementação do Projeto Ferro Carajás. Atualmente, os convênios se
resumem basicamente a uma transferência financeira entre a CMN e associações
indígenas, o que gerou uma dependência quase total dos grupos do dinheiro da Vale na
área da saúde e dependência parcial na educação. Pouco antes da minha passagem pela
região, a CMN e os indígenas tinham vivido um dos momentos mais severos do conflito
por ocasião da interdição do convênio e dos repasses por parte da Vale devido a uma
suposta paralização da ferrovia por um dos grupos indígenas da TI, os Parkatêjê. Entre as
ações tomadas, a corporação deu ordens de suspensão imediata do atendimento de saúde
indígena, emergencial ou eletivo. Essa atitude deixou diversos indígenas em situações de
urgência totalmente desamparados, o que causou grande revolta na TI. Na opinião dos
índios, a dependência deles da assistência da Vale na área da saúde é total e a companhia
tem recorrentemente adotado ações no sentido de romper com a provisão destas
atividades.

Pois é ai a saúde no começo como ela queria ser boazinha ela deu saúde boa. A
Vale ela foi desmamando o índio, tirando de pouquinho. Hoje em dia a Vale ela
não paga um canal, só arranca e faz chapa. Antigamente até implante ela fazia.
Como ela viu que aumentou o número de doença ela foi tirando. É mesmo que
tirar pito de uma boca de uma criança. (...) Falo do meu povo em geral, mas se
dinheiro da Vale acabasse hoje tinha índio ai que ia pedir esmola, não sabe mais
caçar, não sabe jogar um anzol na água, não tem coragem pra trabalhar. Mas
quem acostumou? A Vale. A mamãe Vale. Ai a Vale fechou a torneira12.


12
Entrevista pessoal, anonimato preservado – liderança indígena, TI Mãe Maria, 13 de janeiro de 2016.

13
O fato do/a indígena referir-se a Vale enquanto mamãe Vale é um forte simbolismo do
envolvimento totalitário da companhia em aspectos cruciais da vida dos índios e a total
dependência destes últimos das ações de governo da população atingida decorrentes do
convênio. Narrativas como essa das populações atingidas sempre foram a base da minha
motivação, simbolizam na pesquisa a magnitude gigantesca dos impactos
socioambientais da mineração de larga-escala, a inviabilidade desse modelo mineral e do
projeto de desenvolvimento que este representa e a necessidade da existência dos
conflitos enquanto forma de reação e combate às opressões e descasos vividos. Não
obstante, para entender não só porque a CMN mesmo envolvida em tantos casos de
conflitualidade tem o caminho cada vez mais livre para operar, mas também porque os
espaços de governo da CMN ao redor da exploração de recursos naturais estavam cada
vez amplos era preciso circular por outros espaços.

Assim, presencialmente e através de acesso virtual frequentei conferências e encontros


onde membros da indústria extrativa, acadêmicos e políticos discutem entre si a
responsabilidade social corporativa e os aspectos socioambientais da mineração a partir
de análises inevitavelmente propostas de cima para baixo geralmente a partir de
exposições de estudos de caso bem sucedidos de investimento social e desenvolvimento
sustentável. A minha participação mais simbólica foi na “Ninth Annual Columbia
International Investment Conference: “Raising the Bar: Home Country Efforts to
Regulate Foreign Investment for Sustainable Development” (2014) onde o famoso
economista norte-americano Jeffrey Sachs (Diretor do Instituto da Terra da Universidade
de Columbia) compartilhou espaço com o Diretor de Relações Externas da Vale (a quem
eu devo agradecimento por ter colaborado para abrir caminho junto aos funcionários da
área social da Vale). Os dois dias de evento foram organizados pelo Columbia Centre on
Sustainable Investment e aconteceram na suntuosa Faculty House da Universidade de
Columbia regados à refeições requintadas (como depois vim constatar é típico de grandes
eventos em universidades desse porte nos EUA). Na realidade, foi justamente o quem
estava organizando que me levou a estar lá. Após a expansão da empresa para o mundo e
seguindo o padrão de outras grandes corporações principalmente no norte global, os
investimentos na área de pesquisa e desenvolvimento da Vale estiveram também
relacionados ao estabelecimento de ligações orgânicas com as universidades. O maior

14
passo nesse sentido foi a criação em 2008 do Vale Columbia Center for Sustainable
International Investment na Universidade de Columbia em Nova York. A Vale garantiu o
seu nome no centro através de uma doação inicial de US$ 1,5 milhão de dólares por um
período de 5 anos, mas a diluição da participação dos seus investimentos depois desse
período frente a crescente contribuição de outros doadores fizeram com que o centro
mudasse de nome para Columbia Center on Sustainable Development. O foco de
pesquisa do centro são os investimentos estrangeiros diretos e questões de
sustentabilidade dos negócios. O objetivo da Vale era reforçar a sua imagem ao associá-
la com a de uma das mais importantes universidades no mundo no que diz respeito a
pesquisa e prática de desenvolvimento sustentável. Em reportagem sobre a ocasião de
inauguração do então Vale Columbia Center on Sustainable International Investment, o
jornal Valor Econômico explicita a fala de Agnelli sobre a ligação inexorável da CMN
com ações de governo.

Agnelli disse ontem que precisa da “ajuda de gente inteligente” como os


acadêmicos da universidade americana, porque a Vale acaba tendo de
fazer o papel do governo no apoio ao desenvolvimento das
comunidades das regiões pobres. Ele citou o caso de Carajás (PA),
onde o próximo programa de investimentos da companhia atrairá o
deslocamento de pelo menos mais 800 mil pessoas à região. “Para
continuar crescendo como empresa, sabemos que as regiões que
exploramos precisam ter casas, asfalto, saneamento e educação”, disse
Agnelli a uma plateia de acadêmicos e empresários dos EUA, Europa,
Brasil, Rússia, Índia e China. “É preciso contar com o conhecimento de
fora”, disse (Ibid.: 117).

Nessa fala, Agnelli diz que os acadêmicos norte-americanos contribuiriam para que a
Vale encontrasse soluções para o seu envolvimento em ações de governo nos estados
hospedeiros de suas atividades. No entanto, através da experiência que relato na
sequência pude constatar que esta dimensão da atuação de corporações mineradoras
simplesmente não é incorporada no modo de pensar acadêmico “dessa gente inteligente”
a que se refere Agnelli. Durante o mesmo período vivendo nos Estados Unidos, contei
com a generosidade do professor Francisco Monaldi (especialista em política energética e
na indústria do petróleo Venezuelana) para frequentar como ouvinte um semestre
acadêmico da disciplina Political Economy of Oil and Mining in Developing Countries
lecionada na Harvard Kennedy School. Sentada ao lado de estudantes do mundo inteiro

15
que exerciam (ou aspiravam exercer) cargos de liderança em diferentes setores – entre os
meus colegas estavam desde um polêmico diretor da Saudi Arabian Oil Company à um
jovem entusiasmado da elite política de Omã - esta experiência me ensinou coisas muito
mais importantes do que aquilo que constava na descrição do curso. Acima de tudo eu
tive acesso ao modo de pensar (a forma de saber) predominante nas análises da maior
parte dos estados, das CMNs e das organizações internacionais. É através desta forma de
conhecimento, centrado no bom funcionamento da economia política internacional, que o
pensamento sobre as relações entre a exploração de recursos naturais e o
desenvolvimento é construído. Ali entendi como as determinantes políticas e econômicas
da exploração de minérios em voga - tais como os regimes políticos, a interação entre os
estados e as corporações extrativistas, as políticas de gestão da riqueza dos recursos
naturais, as avaliações de impactos (ambientais e sociais) - são variáveis centrais para
pensar como a relação entre indústria, mercado e política é constituída e percepcionada
pelos atores envolvidos.
Nas aulas, discutíamos o sucesso do fundo soberano norueguês enquanto maior exemplo
de gestão eficiente da riqueza proveniente da exploração de petróleo em contraste com o
fracasso venezuelano (que doía particularmente ao professor, “no exílio” e feroz
oposicionista do regime) em promover quaisquer ganhos duráveis para o país através de
sua riqueza mineral. Mas não eram as construções desses modelos de sucesso e fracasso
da gestão dos recursos naturais aquilo que verdadeiramente me interessava. E assim logo
pude perceber que eram as ausências do curso o que eu queria encontrar na minha
pesquisa. O melhor exemplo que eu posso dar aqui é a aula com o tema recursos e
violências onde a leitura obrigatória era um texto do Michael Ross que discute as ligações
causais entre recursos naturais e guerras civis (Ross, 2012). Não discutimos relações de
poder, as nuances do conceito de violência, a existência da injustiça ambiental e de
complexas redes formada por uma pluralidade de atores com entendimentos diversos
sobre a composição de arranjos institucionais e de economia política na compreensão dos
significados dos conflitos associados a exploração de recursos naturais (BILLON, 2015).
A narrativa era única e representava a visão da economia política internacional
neoliberal. Neste sentido, percebi que era fundamental refletir sobre quais são as
especificidades da economia política da mineração que implicam em um envolvimento

16
tão profundo da CMN mineradora na vida das populações atingidas por suas atividades a
partir da ótica dominante de gestão social que estava sendo transportada entre as
diferentes operações. Mas qual era essa ótica e como eu poderia acessá-la?

Arquitetura de Controle Social da CMN: potencialidades e desafios de uma análise


multi-situada
A reflexividade e a discussão sobre posicionamento são uma das dimensões centrais do
método da etnografia multi-situada: Marcus mostra que ao se mover entre as esferas
publico e privada e entre contextos oficiais e subalternos é inevitável que o etnógrafo
encontre discursos que estejam sobrepostos aos seus. As identificações mútuas dai
provenientes impossibilitam a condução de uma pesquisa que seja feita a partir de cima,
uma vez que o etnógrafo esta situado dentro do terreno que ele esta mapeando através da
sua pesquisa (Marcus, 1995; 112). No meu caso, a oposição em relação as formas de
injustiça socioambiental e violências perpetuadas pela CMN e pelas redes de atores e
significados que compõe a mineração de larga-escala moldaram simultaneamente o tipo
de informação que busquei e o tipo de informação a que tive acesso. Soma-se a isso a
questão dos desafios práticos da intenção de studying up etnograficamente como, por
exemplo, as restrições daqueles que se recusam a ser objeto ou alvo de estudo.

Não é preciso ir muito além para entender que a Vale não gosta nada da existência de
uma pesquisa sobre contextos de conflitualidade com a qual esta diretamente envolvida.
Uma das estratégias que desenvolvi para tentar obter acesso aos/as funcionários da
companhia/ seus palcos de operação foi florear alguns aspectos da minha pesquisa – ao
invés de conflitos falava em aspecto social, forma de relacionamento social entre as suas
diferentes operações. O fato de ser uma mulher, jovem (entre 23 e 27 anos), branca e
desenvolver um doutorado em Coimbra configuram em conjunto um estereótipo que me
garantiu um acesso relativamente maior à corporação do que colegas que me deparei no
caminho buscando informações semelhantes. É preciso dizer que eu acredito que um
efeito semelhante dificultou em alguns momentos a minha aproximação às populações
atingidas pela Vale. O caso mais paradigmático talvez tenha sido em um acampamento de
sem terras em terras públicas da União apropriadas pela Vale nas proximidades do
projeto S11D e de Canaã dos Carajás no Pará. O momento era de reunião dos/as

17
acompados/as e estávamos todos sentados em círculo no caramanchão quando começo a
ouvir um burburinho entre os/as presentes. A reunião foi interrompida com a pergunta em
tom de indignação por um dos presentes: ela é funcionária da Vale? Expliquei que não,
que estava fazendo um trabalho de pesquisa independente ligado a uma universidade.
Eles não descansaram enquanto eu não expliquei a qual instituição eu estava vinculada,
aliás algo que se demonstrou um pouco difícil pois eles não estavam acostumados com
trabalhos acadêmicos e com a condução de uma pesquisa “independente” por lá. De uma
forma ou de outra porém, sempre fui bem recebida pelas comunidades atingidas e
inegavelmente cortada de muitos aspectos do campo por ter sido ignorada e/ou ter tido
inúmeras vezes acesso negado à CMN. Considero isso acima de tudo um reflexo da
minha forma de mapear o campo e formular questões, mas também um dado de pesquisa
sobre a fraca transparência – aparato de classificação chave de “boa governança” - que a
CMN oferece a sociedade de forma geral e a sua pouquíssima abertura para discutir a sua
conduta que tem consequências sociais e ambientais tão profundas para esse mesma
sociedade. A questão da pouca transparência é o gancho ideal para introduzir um
exemplo sobre como o mapeamento do modo de funcionamento da área social da CMN a
partir de uma perspectiva multi-situada se faz necessário.

Como a racionalidade de gestão social é produzida e colocada em circulação dentro da


Vale? Retratar o funcionamento e as abordagens da área social da Vale é uma tarefa que
se mostrou muito mais complicada do que eu esperava. É muito comum o uso de
diferentes nomes para referenciar funções/cargos semelhantes (Zandvliet, 2012: 36) o que
potencialmente aumenta a confusão. O processo de busca de informações revelou a pouca
transparência e clareza da companhia frente a sua política social e, de maneira mais geral,
a estrutura de governança da atuação social. Os relatórios anuais e websites falam de
temáticas como o relacionamento com populações indígenas, mas não fica claro para o
público quais são ou se há regulamentos específicos para o tratamento de tais temáticas
ao longo do ciclo de operação da CMN. Além disso, uma análise sobre o discurso oficial
da gestão social seria por razões óbvias insuficiente para entender a realidade dos
conflitos a ela associados. É neste sentido que eu entendo a importância da posição multi-
situada para a realização de um mapeamento da arquitetura de controle social da Vale:
além de documentos públicos com informações bastante limitadas e dispersas, contei com

18
a observação direta do que acontece na sede e nos contextos operacionais, entrevistas
com funcionários/as da área social da Vale, uma apresentação sobre a performance social
da CMN que me foi enviada por um/a desses/as entrevistados/as e que não pode ser
encontrada online e entrevistas com as populações atingidas.

A arquitetura de controle social é a maneira como se designa no jargão da indústria


extrativa o sistema de gestão social e/ou de riscos e impactos. Para essa indústria, um
bom arranjo de arquitetura social prevê uma explicação clara e coerente de como visão,
politica, requerimentos e orientações temáticas, implementação, garantia e competências
da equipe estão interconectados dentro da CMN (Triple R Alliance, 2012). O principal
documento público de políticas de DSC que compõe a arquitetura de controle social da
Vale é Política de Desenvolvimento Sustentável Global. A política foi aprovada em 2009,
tem caráter global válido para todas as subsidiárias e controladas e estabelece, a partir de
uma visão ampla e geral, a ligação entre responsabilidade corporativa e sustentabilidade
(Gomes, 2010: 42). Já as traduções dessa política em normas e diretrizes são documentos
não públicos de uso interno, sendo os dois principais, o Normas de Sustentabilidade
Global e, dentro desse, o Guia de Atuação Social. Nas palavras da Vale, é neste
normativo de sustentabilidade onde se “estabelece direitos de decisão, regras gerais e
limites de autoridade associados a macro processos ou assuntos que possuem relevância
para toda a Vale”13. O guia, lançado em 2016, é um capítulo dentro do normativo e define
as diretrizes e os detalhes da atuação social da Vale14. É válido apenas a nível nacional
brasileiro e se desdobra em orientações e procedimentos específicos de como e o que
fazer conhecidos como PROs. Segundo um/a entrevistado/a d área social da Vale, um
exemplo é a gestão de dispêndios sociais: no documento esta definido como o/a
responsável pela atuação social deve fazer um orçamento de investimento social, como


13
Tradução livre da autora: “establish decision rights, general rules and limits of authority associated with a
macro process or issue that has relevance for the entire Valley”.
14
O sumário do guia é composto por: Objetivo, Contexto de Atuação Social da Vale, Escopo, Aplicação,
Estrutura de Atuação Social Vale, Governança da Atuação Social Vale (1. Gerir Temas de Direitos
Humanos, 2. Gerir Riscos e Impactos Socioambientais, 3. Gerir Saúde e Segurança nas Comunidades, 4.
Gerir Remoção Involuntária, 5. Gerir Relações com Comunidades Locais, 6. Gerir Relações com Povos
Indígenas e Comunidades Tradicionais, 7. Gerir Ações de Apoio ao Desenvolvimento Local, 8. Gerir
Dispêndios Sociais).

19
deve planejar, qual o escopo de atuação, o direcionamento técnico, a forma de execução e
o monitoramento desse investimento15.
A filosofia que ancora a arquitetura social a nível discursivo é que uma sustentabilidade
integrada com o negócio principal da empresa garantirá a licença de operação. Dessa
forma, as diretrizes de performance socioambiental da empresa são todas construídas para
o resultado esperado de licença de operação. Segundo a CMN, esta última é subdivida
entre licença social, licença formal e licença global, obtidas em níveis de análise
distintos. No local/ territorial/ municipal obtém-se a licença social a partir da
consideração dos impactos sociais e ambientais na área de influencia, por meio de
relacionamento com comunidades, ONGs e governos locais e com os benefícios
esperados econômicos, de qualidade de vida e perspectiva futura. No estatal/nacional
obtém-se licenças formais a partir da consideração dos impactos locais e comitês de
licenciamento por meio de relações institucionais com o governo e suas instituições
ambientais, com os benefícios esperados diretos (taxas e empregos) e de desenvolvimento
local. Por último, a licença global baseada no reconhecimento é obtida no nível global a
partir de considerações de transparência e impactos em questões de sustentabilidade
global, por meio de agências multilaterais, ONGs internacionais e investidores globais
com os benefícios esperados de conservação e restauração de ativos globais.
A segmentarização dos níveis de análise no modelo proposto pela Vale mostra como a
empresa ainda subestima a complexidade dos arranjos de coprodução presentes em cada
contexto. Em relação a licença social, por exemplo, há uma presença intensa de
movimentos sociais de dimensão transnacional, além de uma forte influência de padrões
normativos propostos por organizações internacionais como os padrões de performance
do IFC ou a Convenção 169 da OIT. Populações, ONGs e movimentos sociais presentes
no terreno estão bem informados sobre a existência de normativos internacionais e
envolvidos em muitas redes de aliança transnacional para lutar pelo direito dos/as
atingidos/as perante a mineradora. Isso faz com que na prática a licença social não diga
respeito apenas a uma atuação a nível local, mas a um complexo emaranhado de
coprodução transescalar.


15
Entrevista pessoal, anonimato preservado - funcionário/a da área social da Vale, online via Webex, 10 de
janeiro de 2016.

20
Assim, uma abordagem multi-situada do exercício de caracterização da arquitetura de
controle social da Vale não publicamente sistematizada tem o potencial de mostrar falhas
importantes na aplicabilidade, transparência e nos processos de verificação da estrutura
de governança da atuação social da Vale. A circulação entre os diferentes lugares/
perspectivas me permitiu entender que um dos aspectos centrais das raízes da
conflitualidade está precisamente nessa visão equivocada da mineradora de continuar
dirigindo a atenção de sua área social para uma busca por licenças de operação em níveis
de análise rígidos e estanques que não correspondem às realidades cotidianas que existem
em torno dos impactos gerados.

Conclusão

Para Rajak, a etnografia multi-situada é uma “estratégia crucial na tentativa de


confrontar as dinâmicas transnacionais do capitalismo corporativo e da governança global
– assuntos convencionalmente vistos como competência das Relações Internacionais – a
partir de uma perspectiva antropológica” (Rajak, 2011: 107). Nesse artigo, procurei expor
um exercício reflexivo de como essa abordagem também pode ser usada a partir das
Relações Internacionais como forma de confrontar dinâmicas transnacionais do
capitalismo corporativo e de esquemas de governança com perspectivas e práticas
cotidianas/ locais que são tipicamente associadas à área da Antropologia. O relato do
percurso de seguir os conflitos socioambientais através de múltiplos lugares - geográficos
e epistêmicos – mostra potencialidades e desafios de operacionalização de uma
investigação preocupada em transcender binários simplistas como local e global, Norte e
Sul, centro e periferia através da incorporação do cotidiano ao estudo de dinâmicas
transnacionais.

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