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isaalamas@gmail.com; isabellalamas@ces.uc.pt
1
Resumo
2
Introdução
3
micro e do cotidiano como elementos fundamentais de análise, em especial as
desenvolvidas na área dos Estudos para a Paz através do foco nas concepções/ vivências
cotidianas de paz e violência. No entanto, curiosamente, há relativamente poucos
trabalhos inspirados pela proposta da etnografia multi-situada cuja emergência foi uma
resposta à inquietações muito semelhantes às que aconteceram no âmbito das RI, como o
desejo de transcender a divisão existente entre os níveis micro e macro de análise.
4
caminhos e as inquietações da construção dessa investigação através da condução de
trabalhos de campo em áreas geograficamente e epistemologicamente diversas.
Nos últimos anos, dois movimentos se destacam no campo metodológico das áreas de
Relações Internacionais e da Antropologia por questionarem linhas de pensamento
ortodoxas e suas formas de produção de divisões artificiais, principalmente em relação
aos níveis de análise local e global. Essas divisões estão relacionadas a uma ideia
normativa subjacente de que a Antropologia deve ser dedicada às formas de expressão de
fenômenos globais nos níveis locais e às Relações Internacionais constituem um campo
do estudo do global que não deve se voltar aos acontecimentos da esfera da micropolítica
local1.
5
representam a dimensão do global e os poços de minas que simbolizam a realidade local
(Ibid.: 112). Mas foi só através do acesso da antropóloga a essa primeira esfera que ela
pode construir o seu argumento de que é lá onde são desenhadas partes fundamentais do
arcabouço institucional voluntário que rege a atuação social das CMNs nos locais de
operação. Essa circulação por esferas não convencionais exemplifica como a abertura do
campo para o estudo de processos transnacionais perturbou a orientação disciplinar
clássica da Antropologia de um comprometimento metodológico exclusivo com o nível
local.
6
implementação. Os inúmeros problemas decorrentes da falta de pertencimento e
identificação com as instituições e práticas impostas através de intervenções fracassadas,
informadas por uma concepção pretensamente universal de paz, serviram de impulso para
o surgimento da ‘virada local’ dos Estudos para a Paz (Vide. Ginty and Richmond, 2013).
Como ressaltam Richmond e Mitchell, “formas únicas de paz emergem quando
estratégias, instituições e normas das intervenções internacionais, em grande parte
liberais-democráticas de construção de paz colidem com as vidas cotidianas de atores
locais atingidos pelos conflitos” (Richmond and Mitchell, 2012: 1). Esse espaço de
encontro e sobreposição entre o internacional e o local – com suas dinâmicas únicas de
resistência, autonomia, apropriação e aceitação – dão origem à dinâmicas de hibridização.
Para compreender estes novos espaços políticos que propiciam a emergência dos
conceitos de paz ‘híbrida’ e ‘cotidiana’ (Vide. Richmond, 2009) muitos estudiosos da
área passaram a voltar a sua atenção para um entendimento das “dinâmicas e interações
que fazem todas as formas de paz únicas, dinâmicas, contextualizadas e contestadas”
(Richmond and Mitchell, 2012: 1 -2).
3
Em trabalho recente, Ferguson coloca muito bem a questão do porque ainda importa fazer essas
discussões dentro de uma concepção disciplinar ressaltando o poder das instituições e das fontes de
financiamento. Ele fala que uma resposta perfeitamente defensível a ansiedade gerada em relação a
abertura da área para um pluralismo metodológico e a uma potencial perda de identidade disciplinar dentro
da Antropologia é - quem se importa? O que vale é apenas a produção de bom conhecimento independente
das barreiras disciplinares. Não obstante, o contexto institucional não permite com que o debate seja feito
apenas nessas linhas, uma vez que os/as pesquisadores são constantemente cobrados por resultados
enquadrados dentro dos limites dessa mesma identidade disciplinar (Ferguson, 2011: 205). Marcus também
acaba reproduzindo em suas “5 ou 6 coisas que sei agora” sobre a etnografia multi-situada uma discussão
essencialmente disciplinar ainda que em defesa da integração de movimentos interdisciplinares ao ethos
antropológico (Marcus, 2011).
7
categoriais com o objetivo de produzir normalizações e legitimar formas múltiplas de
intervenções4.
4
Um dos exemplos que me ocorre é a narrativa dos estados falidos baseada, entre outros, no binário
desenvolvido – subdesenvolvido extensamente usada como forma de legitimar intervenções em países do
chamado terceiro mundo.
5
A companhia é a quinta maior empresa brasileira segundo o ranking Forbes Global 2016. Além disso,
ocupa o 559o lugar entre as 2000 companhias listadas. No Forbes Global 2015 ocupava o terceiro lugar
entre as maiores empresas brasileiras. A perda de posições é atribuída por alguns analistas econômicos a
queda do preço e demanda mundial de commodities.
8
Mundial6. Classificada como empresa-fenômeno principalmente devido ao seu sucesso
como estatal (Faro et al., 2005: 15), o que não falta são elogios a trajetória de sucessos da
Vale. De grandezas vive e descreve-se a Vale: a maior mineradora do Brasil e entre as 3
maiores do mundo e, agora, entre tantos outros feitos e classificações, dona do maior
projeto de mineração do mundo (S11D, desenvolvido em Carajás no sudeste do Pará)7.
Em contraposição a essas narrativas de sucesso, há um reconhecimento internacional
cada vez maior da Vale enquanto uma ‘multinacional dos conflitos’ (Revelli, 2010). Este
teve como ponto alto a atribuição do prêmio de pior companhia do mundo pelo Public
Eye Award de 2012, um contra-evento ao Fórum Econômico Mundial em Davos.
A sua sede, ao contrário da extravagante sede da CMN Anglo American em Londres, está
escondida na Barra da Tijuca (bairro nobre da zona oeste do Rio de Janeiro conhecido
por ser afastado das demais áreas da cidade) no terceiro andar de um shopping center –
lugar muito pouco convencional se considerarmos o padrão mundial de sedes de
empresas de porte equivalente. Tudo indica que a empresa foi lá se afastar dos protestos
sociais extremamente comuns na sua antiga e tradicional sede no centro do Rio de
Janeiro8. Essa é uma outra face da Vale que, apesar de exposta por muitos movimentos
sociais dos/as atingidos pela suas atividades, é muito pouco retratada nos meios da mídia
hegemônica e de seus comentadores neoliberais. A única maneira de acessá-la foi através
da interface entre impressões de uma observação direta em visita à sede e conversas/
entrevistas paralelas com diferentes atores em diversos territórios por ela ocupados.
Apesar de ser uma mineradora, além das atividades de operação de minas, a companhia
possui inúmeras operações nas áreas de Logística, Energia e Siderurgia. Assim, entre
6
A Vale foi criada como forma de reação as instabilidades internacionais e nacionais do período, além das
demandas por minério de ferro para alimentar a indústria bélica geradas pela guerra. É autobiografada no
livro de comemoração de 70 anos de sua história como protagonista da economia nacional e mundial: “(...)
a antiga CVRD partiu de Itabira, conquistou Carajás e ganhou o mundo. Hoje é simplesmente Vale – ou
‘simplesmente’ a segunda maior mineradora do planeta” (Vale S.A., 2012: 13).
7
Além de maior produtora mundial de minério de ferro/ pelotas (usados pela indústria siderúrgica) e de
níquel (matéria prima da indústria de aço inoxidável e ligas metálicas), também produz manganês, ferro
ligas, carvão térmico e metalúrgico, cobre, metais do grupo da platina, ouro, prata, cobalto, potássio,
fosfatos e outros fertilizantes.
8
É verdade que recentemente há uma onda de multinacionais que tem optado por instalar suas sedes por lá
como a Shell Brasil e a Esso Brasil, bem como que há uma tendência mundial de diminuir grandes
escritórios para poupar gastos e salvaguardar a imagem, questão que atinge diversas CMNs do setor.
9
participações ou controle total de operações de ferrovias, portos e usinas hidrelétricas, os
tentáculos da companhia se estendem em diversas áreas e dimensões da vida de
populações que estão nas proximidades destas atividades. O alcance extraordinário da
companhia e os efeitos negativos consideráveis de suas atividades na vida de pessoas ao
redor do mundo foram as motivações mais elementares da sua escolha como peça central
da minha investigação de doutorado. A entrada de uma mineradora como a Vale em
determinado contexto muda a vida das pessoas que estão de alguma forma presentes em
sua área de influencia de tal forma que a escolha de olhar de perto estas realidades como
forma de análise da relação entre a exploração de recursos naturais e a conflitualidade se
mostrou promissora.
Afinal, os recursos naturais trazem prosperidade e mudanças efetivas no cotidiano da
população do estado hospedeiro? A discussão entre acadêmicos, organizações não
governamentais, movimentos sociais, governos, organizações internacionais, grandes
companhias e pessoas comuns sobre o teor desta mudança é extensa e muito pouco
consensual. Na academia, há uma variedade de interpretações sobre a relação entre a
existência de exploração de recursos naturais e os seus efeitos nas dinâmicas da vida das
pessoas. Em um extremo, há aqueles que demonstram que há uma maldição dos recursos
naturais de forma que a presença de grandes reservas está associada com corrupção,
pilhagem, guerra civil, entre outros. No outro, estudos e policy papers que ressaltam o
potencial que uma boa administração dos recursos naturais tem para gerar crescimento
econômico e desenvolvimento social. Contudo, ao contrário de buscar um
posicionamento entre estes extremos, é na ausência das temáticas por eles abordadas de
uma visão abrangente da conflitualidade e injustiça socioambiental e do acesso desigual
ao controle e uso dos recursos naturais que se situa o lugar dessa investigação.
No dia 5 de novembro de 2015, já em fase relativamente avançada da produção dessa
pesquisa, o rompimento de uma barragem de rejeito da mineração em Minas Gerais gerou
a sequencia de eventos que ficaram conhecidas como o desastre de Mariana. A onda de
lama ocasionada pelo rompimento da barragem de Fundão matou 19 pessoas, destruiu
completamente os distritos de Bento Rodrigues, Camargos e Paracatu de Baixo, além de
ter percorrido 930 quilômetros e todo o percurso do Rio Doce até a foz em Regência no
Estado do Espírito Santo. A mineradora responsável pela operação da barragem era a
10
Samarco, uma joint venture controlada pela Vale e pela maior mineradora do mundo, a
anglo-australiana BHP Billiton. Foi o maior desastre socioambiental da história do Brasil
e o maior envolvendo barragens de rejeito de mineração do mundo (Milanez and
losekann, 2016). As investigações sobre o acontecimento indicam conhecimento prévio
dos riscos de rompimento, o que evidencia o seu caráter de crime ambiental. E a Vale,
apesar dos seus esforços de gerar uma desvinculação formal no imaginário da população
do Brasil e do mundo9, não teve como negar, é a protagonista central dessa história.
9
Em entrevista coletiva, o presidente Murilo Ferreira se referiu a existência de um ‘buraco de governança’
que teria colocado a Vale e a Samarco diante de uma situação nova Disponível em:
http://veja.abril.com.br/politica/vale-tenta-se-descolar-da-samarco-empresas-concorrentes/
10
O que aconteceu em Mariana impactou não só a vida de milhares de pessoas como aumentou
consideravelmente a atenção pública para a questão mineral no Brasil e no mundo. Isso levou também a
uma multiplicação exponencial dos questionamentos sobre o modelo através do qual a mineração de larga
escala vem sendo desenvolvida no Brasil ou pelo Brasil em estados hospedeiros. Evidentemente, muitos já
estavam anteriormente posicionados nesta frente de questionamento e resistência aos efeitos nocivos deste
modelo como o Movimento dos Atingidos pela Mineração (MAM) ou o Comitê Nacional em Defesa dos
Territórios Frente à Mineração, mas com o desastre a temática ganhou maior visibilidade e,
consequentemente mais pessoas passaram a refletir sobre isso e/ou aderiram aos movimentos. As vidas de
Mariana estão presentes nas entrelinhas e nas motivações do meu trabalho na medida em que o foco é
naquilo que já existia e continua a existir no pós-tragédia de Mariana – aquilo que entendo como o
continuum do conflito associado a exploração de escala industrial de recursos naturais. Afinal, ao contrário
de interpretá-la como acidente aleatório, eu junto a minha voz a de outros que defendem que foram as
violências inscritas em um modelo conflituoso de mineração e exploração insustentável dos recursos
naturais que geraram o crime socioambiental de Mariana em primeiro lugar.
11
Com esse objetivo, optei por seguir as partes em conflito através da condução de uma
etnografia multi-situada. Ao longo dos últimos dois anos, realizei pesquisas de campo em
diferentes contextos de emergência deste tipo de conflitualidade socioambiental
relacionada à mineração de larga-escala da Vale: a exploração de carvão em Moçambique
(junho/julho de 2016), de níquel no Canadá (junho/ julho de 2015) e de ferro no Brasil
(janeiro de 2016). Além disso, estive também na sede da CMN no Rio de Janeiro (Brasil),
em conferências e disciplinas acadêmicas sobre a temática da exploração de recursos
naturais em Nova York, Cambridge (EUA) e Sudbury (Canadá) e seminários organizados
pelos/as atingidos/as pela mineração em Belo Horizonte (Brasil). Optei pela escolha de
lugares espacialmente dispersos não só em termos geográficos/físicos, mas também
epistêmicos. Assim, eu busquei o encontro com uma variedade de atores e partes em
conflito – de populações atingidas à membros das corporações, governos e empresas de
consultoria – não só pelo que estas pessoas sabem de novo, mas também pelas maneiras
radicalmente distintas através das quais elas sabem.
No entanto, seguir o conflito para mim não era apenas viver durante algum tempo nos
arredores das áreas operacionais, lugares em que estes emergem e se desenvolvem
através da tensão entre a CMN, populações atingidas e eventualmente representantes da
esfera pública. Na busca de entender como é possível (e principalmente através de que
meios) que a indústria extrativa tem caminho livre (e, portanto legitimidade) para agir
enquanto autoridade com poder de intervenção na gestão social e ambiental que geram
efeitos avassaladores na vida de tantas pessoas – em países tão distintos quanto Canadá,
Moçambique e Brasil – não bastava que eu acessasse apenas a realidade daquilo que
acontece nos territórios minerados. Esse acesso me proporcionou, a partir da pluralidade
epistemológica de modos de pensar diversos 11 , compartilhar (ainda que enquanto
investigadora e não atingida) da indignação com os descasos, projetos de
responsabilidade social paliativos e ‘para inglês ver’, destruição de modos de vida,
enganação, falsas promessas, apropriação de terras, desmonte orquestrado de
11
Epistemologicamente, a investigação parte da concepção da existência de uma ecologia de saberes (Vide.
Santos, 2006) na medida em que reconhece a diversidade de modos de conhecimento e condições sociais
para sua produção (Santos, 2004: 28).
12
organizações representativas dos trabalhadores mineradores, contaminação, entre tantos
outros.
Pois é ai a saúde no começo como ela queria ser boazinha ela deu saúde boa. A
Vale ela foi desmamando o índio, tirando de pouquinho. Hoje em dia a Vale ela
não paga um canal, só arranca e faz chapa. Antigamente até implante ela fazia.
Como ela viu que aumentou o número de doença ela foi tirando. É mesmo que
tirar pito de uma boca de uma criança. (...) Falo do meu povo em geral, mas se
dinheiro da Vale acabasse hoje tinha índio ai que ia pedir esmola, não sabe mais
caçar, não sabe jogar um anzol na água, não tem coragem pra trabalhar. Mas
quem acostumou? A Vale. A mamãe Vale. Ai a Vale fechou a torneira12.
12
Entrevista pessoal, anonimato preservado – liderança indígena, TI Mãe Maria, 13 de janeiro de 2016.
13
O fato do/a indígena referir-se a Vale enquanto mamãe Vale é um forte simbolismo do
envolvimento totalitário da companhia em aspectos cruciais da vida dos índios e a total
dependência destes últimos das ações de governo da população atingida decorrentes do
convênio. Narrativas como essa das populações atingidas sempre foram a base da minha
motivação, simbolizam na pesquisa a magnitude gigantesca dos impactos
socioambientais da mineração de larga-escala, a inviabilidade desse modelo mineral e do
projeto de desenvolvimento que este representa e a necessidade da existência dos
conflitos enquanto forma de reação e combate às opressões e descasos vividos. Não
obstante, para entender não só porque a CMN mesmo envolvida em tantos casos de
conflitualidade tem o caminho cada vez mais livre para operar, mas também porque os
espaços de governo da CMN ao redor da exploração de recursos naturais estavam cada
vez amplos era preciso circular por outros espaços.
14
passo nesse sentido foi a criação em 2008 do Vale Columbia Center for Sustainable
International Investment na Universidade de Columbia em Nova York. A Vale garantiu o
seu nome no centro através de uma doação inicial de US$ 1,5 milhão de dólares por um
período de 5 anos, mas a diluição da participação dos seus investimentos depois desse
período frente a crescente contribuição de outros doadores fizeram com que o centro
mudasse de nome para Columbia Center on Sustainable Development. O foco de
pesquisa do centro são os investimentos estrangeiros diretos e questões de
sustentabilidade dos negócios. O objetivo da Vale era reforçar a sua imagem ao associá-
la com a de uma das mais importantes universidades no mundo no que diz respeito a
pesquisa e prática de desenvolvimento sustentável. Em reportagem sobre a ocasião de
inauguração do então Vale Columbia Center on Sustainable International Investment, o
jornal Valor Econômico explicita a fala de Agnelli sobre a ligação inexorável da CMN
com ações de governo.
Nessa fala, Agnelli diz que os acadêmicos norte-americanos contribuiriam para que a
Vale encontrasse soluções para o seu envolvimento em ações de governo nos estados
hospedeiros de suas atividades. No entanto, através da experiência que relato na
sequência pude constatar que esta dimensão da atuação de corporações mineradoras
simplesmente não é incorporada no modo de pensar acadêmico “dessa gente inteligente”
a que se refere Agnelli. Durante o mesmo período vivendo nos Estados Unidos, contei
com a generosidade do professor Francisco Monaldi (especialista em política energética e
na indústria do petróleo Venezuelana) para frequentar como ouvinte um semestre
acadêmico da disciplina Political Economy of Oil and Mining in Developing Countries
lecionada na Harvard Kennedy School. Sentada ao lado de estudantes do mundo inteiro
15
que exerciam (ou aspiravam exercer) cargos de liderança em diferentes setores – entre os
meus colegas estavam desde um polêmico diretor da Saudi Arabian Oil Company à um
jovem entusiasmado da elite política de Omã - esta experiência me ensinou coisas muito
mais importantes do que aquilo que constava na descrição do curso. Acima de tudo eu
tive acesso ao modo de pensar (a forma de saber) predominante nas análises da maior
parte dos estados, das CMNs e das organizações internacionais. É através desta forma de
conhecimento, centrado no bom funcionamento da economia política internacional, que o
pensamento sobre as relações entre a exploração de recursos naturais e o
desenvolvimento é construído. Ali entendi como as determinantes políticas e econômicas
da exploração de minérios em voga - tais como os regimes políticos, a interação entre os
estados e as corporações extrativistas, as políticas de gestão da riqueza dos recursos
naturais, as avaliações de impactos (ambientais e sociais) - são variáveis centrais para
pensar como a relação entre indústria, mercado e política é constituída e percepcionada
pelos atores envolvidos.
Nas aulas, discutíamos o sucesso do fundo soberano norueguês enquanto maior exemplo
de gestão eficiente da riqueza proveniente da exploração de petróleo em contraste com o
fracasso venezuelano (que doía particularmente ao professor, “no exílio” e feroz
oposicionista do regime) em promover quaisquer ganhos duráveis para o país através de
sua riqueza mineral. Mas não eram as construções desses modelos de sucesso e fracasso
da gestão dos recursos naturais aquilo que verdadeiramente me interessava. E assim logo
pude perceber que eram as ausências do curso o que eu queria encontrar na minha
pesquisa. O melhor exemplo que eu posso dar aqui é a aula com o tema recursos e
violências onde a leitura obrigatória era um texto do Michael Ross que discute as ligações
causais entre recursos naturais e guerras civis (Ross, 2012). Não discutimos relações de
poder, as nuances do conceito de violência, a existência da injustiça ambiental e de
complexas redes formada por uma pluralidade de atores com entendimentos diversos
sobre a composição de arranjos institucionais e de economia política na compreensão dos
significados dos conflitos associados a exploração de recursos naturais (BILLON, 2015).
A narrativa era única e representava a visão da economia política internacional
neoliberal. Neste sentido, percebi que era fundamental refletir sobre quais são as
especificidades da economia política da mineração que implicam em um envolvimento
16
tão profundo da CMN mineradora na vida das populações atingidas por suas atividades a
partir da ótica dominante de gestão social que estava sendo transportada entre as
diferentes operações. Mas qual era essa ótica e como eu poderia acessá-la?
Não é preciso ir muito além para entender que a Vale não gosta nada da existência de
uma pesquisa sobre contextos de conflitualidade com a qual esta diretamente envolvida.
Uma das estratégias que desenvolvi para tentar obter acesso aos/as funcionários da
companhia/ seus palcos de operação foi florear alguns aspectos da minha pesquisa – ao
invés de conflitos falava em aspecto social, forma de relacionamento social entre as suas
diferentes operações. O fato de ser uma mulher, jovem (entre 23 e 27 anos), branca e
desenvolver um doutorado em Coimbra configuram em conjunto um estereótipo que me
garantiu um acesso relativamente maior à corporação do que colegas que me deparei no
caminho buscando informações semelhantes. É preciso dizer que eu acredito que um
efeito semelhante dificultou em alguns momentos a minha aproximação às populações
atingidas pela Vale. O caso mais paradigmático talvez tenha sido em um acampamento de
sem terras em terras públicas da União apropriadas pela Vale nas proximidades do
projeto S11D e de Canaã dos Carajás no Pará. O momento era de reunião dos/as
17
acompados/as e estávamos todos sentados em círculo no caramanchão quando começo a
ouvir um burburinho entre os/as presentes. A reunião foi interrompida com a pergunta em
tom de indignação por um dos presentes: ela é funcionária da Vale? Expliquei que não,
que estava fazendo um trabalho de pesquisa independente ligado a uma universidade.
Eles não descansaram enquanto eu não expliquei a qual instituição eu estava vinculada,
aliás algo que se demonstrou um pouco difícil pois eles não estavam acostumados com
trabalhos acadêmicos e com a condução de uma pesquisa “independente” por lá. De uma
forma ou de outra porém, sempre fui bem recebida pelas comunidades atingidas e
inegavelmente cortada de muitos aspectos do campo por ter sido ignorada e/ou ter tido
inúmeras vezes acesso negado à CMN. Considero isso acima de tudo um reflexo da
minha forma de mapear o campo e formular questões, mas também um dado de pesquisa
sobre a fraca transparência – aparato de classificação chave de “boa governança” - que a
CMN oferece a sociedade de forma geral e a sua pouquíssima abertura para discutir a sua
conduta que tem consequências sociais e ambientais tão profundas para esse mesma
sociedade. A questão da pouca transparência é o gancho ideal para introduzir um
exemplo sobre como o mapeamento do modo de funcionamento da área social da CMN a
partir de uma perspectiva multi-situada se faz necessário.
18
a observação direta do que acontece na sede e nos contextos operacionais, entrevistas
com funcionários/as da área social da Vale, uma apresentação sobre a performance social
da CMN que me foi enviada por um/a desses/as entrevistados/as e que não pode ser
encontrada online e entrevistas com as populações atingidas.
13
Tradução livre da autora: “establish decision rights, general rules and limits of authority associated with a
macro process or issue that has relevance for the entire Valley”.
14
O sumário do guia é composto por: Objetivo, Contexto de Atuação Social da Vale, Escopo, Aplicação,
Estrutura de Atuação Social Vale, Governança da Atuação Social Vale (1. Gerir Temas de Direitos
Humanos, 2. Gerir Riscos e Impactos Socioambientais, 3. Gerir Saúde e Segurança nas Comunidades, 4.
Gerir Remoção Involuntária, 5. Gerir Relações com Comunidades Locais, 6. Gerir Relações com Povos
Indígenas e Comunidades Tradicionais, 7. Gerir Ações de Apoio ao Desenvolvimento Local, 8. Gerir
Dispêndios Sociais).
19
deve planejar, qual o escopo de atuação, o direcionamento técnico, a forma de execução e
o monitoramento desse investimento15.
A filosofia que ancora a arquitetura social a nível discursivo é que uma sustentabilidade
integrada com o negócio principal da empresa garantirá a licença de operação. Dessa
forma, as diretrizes de performance socioambiental da empresa são todas construídas para
o resultado esperado de licença de operação. Segundo a CMN, esta última é subdivida
entre licença social, licença formal e licença global, obtidas em níveis de análise
distintos. No local/ territorial/ municipal obtém-se a licença social a partir da
consideração dos impactos sociais e ambientais na área de influencia, por meio de
relacionamento com comunidades, ONGs e governos locais e com os benefícios
esperados econômicos, de qualidade de vida e perspectiva futura. No estatal/nacional
obtém-se licenças formais a partir da consideração dos impactos locais e comitês de
licenciamento por meio de relações institucionais com o governo e suas instituições
ambientais, com os benefícios esperados diretos (taxas e empregos) e de desenvolvimento
local. Por último, a licença global baseada no reconhecimento é obtida no nível global a
partir de considerações de transparência e impactos em questões de sustentabilidade
global, por meio de agências multilaterais, ONGs internacionais e investidores globais
com os benefícios esperados de conservação e restauração de ativos globais.
A segmentarização dos níveis de análise no modelo proposto pela Vale mostra como a
empresa ainda subestima a complexidade dos arranjos de coprodução presentes em cada
contexto. Em relação a licença social, por exemplo, há uma presença intensa de
movimentos sociais de dimensão transnacional, além de uma forte influência de padrões
normativos propostos por organizações internacionais como os padrões de performance
do IFC ou a Convenção 169 da OIT. Populações, ONGs e movimentos sociais presentes
no terreno estão bem informados sobre a existência de normativos internacionais e
envolvidos em muitas redes de aliança transnacional para lutar pelo direito dos/as
atingidos/as perante a mineradora. Isso faz com que na prática a licença social não diga
respeito apenas a uma atuação a nível local, mas a um complexo emaranhado de
coprodução transescalar.
15
Entrevista pessoal, anonimato preservado - funcionário/a da área social da Vale, online via Webex, 10 de
janeiro de 2016.
20
Assim, uma abordagem multi-situada do exercício de caracterização da arquitetura de
controle social da Vale não publicamente sistematizada tem o potencial de mostrar falhas
importantes na aplicabilidade, transparência e nos processos de verificação da estrutura
de governança da atuação social da Vale. A circulação entre os diferentes lugares/
perspectivas me permitiu entender que um dos aspectos centrais das raízes da
conflitualidade está precisamente nessa visão equivocada da mineradora de continuar
dirigindo a atenção de sua área social para uma busca por licenças de operação em níveis
de análise rígidos e estanques que não correspondem às realidades cotidianas que existem
em torno dos impactos gerados.
Conclusão
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