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A gente nota que o importante da CTI [Centro de Terapia Intensiva] não é a cloroquina, mas é o cuidado adequado.

É
um médico capacitado e um enfermeiro capacitado para tratar aquele paciente, mais do que a cloroquina. E isso, por
exemplo, o Rio de Janeiro não tem em número suficiente, tanto é que estão convocando médicos – ou que não estão
atuando clinicamente ou que não têm experiência em CTI – para trabalhar nas CTIs, que foram construídas
desnecessariamente. Poderiam ter melhorado os hospitais que já estavam montados. Ao mesmo tempo que são
essas pessoas que vão morrer, que são os pobres, são os moradores das favelas cariocas que vão morrer, porque
estão saindo para trabalhar, vão pegar Covid e não vão ter assistência, são eles também que vão morrer porque não
vão ter dinheiro. Então, eles só perdem. Nós, como profissionais da saúde, pensamos mais na saúde, lógico. Mas eu
entendo o quadro. Esperávamos que o governo desse uma saída melhor para o problema e não as filas na Caixa

Econômica ou o ministro Paulo Guedes dizendo que o valor do auxílio vai cair sem as pessoas terem uma
perspectiva de poder trabalhar. Ou seja, no final das contas, quem vai se dar mal são os pobres. E isso é perverso,
porque abrindo ou não abrindo, são eles que vão sofrer.

Como vocês enxergam essa correlação entre pobreza, desigualdade e pandemia? Enfim, há alguns estudos
mostrando como o índice de mortalidade nas periferias é muito mais alto do que em outras áreas urbanas.
Gostaríamos que vocês comentassem a questão da disseminação de um vírus como esse, com alto potencial
de transmissibilidade, tendo em vista a especificidade do território.

É importante falar das especificidades do território no sentido de falta de condições locais. De novo, é mais um fato
que nos leva a pensar que a pandemia acentua a desigualdade. Nós já temos uma alta prevalência de tuberculose.
Na área geográfica da minha população, nós temos um prédio de 13 andares, em que o nível da rua fica, mais ou
menos, no décimo andar do prédio. Então, para você entrar você desce um beco, 10 andares de beco, e a porta é lá
embaixo, e aí você sobe 13 andares de escada. As pessoas que vivem no primeiro, segundo, terceiro, quarto
andares, elas basicamente vivem em um subsolo úmido, com mofo, e é um beco com, sei lá, menos de um metro de
largura. São coisas que já vem de antes e que já explicam muitas das doenças infecciosas, como a tuberculose.
Além disso, há a aglomeração de pessoas, já que a densidade demográfica é muito grande. Vivem muitas pessoas
em um cômodo. Há a questão da chuva também, que aqui na Rocinha é importante. A chuva abala a Rocinha, tem
muita história de desabamento, de gente que perdeu casa, alagou tudo. A pobreza é sempre um dos maiores
determinantes sociais de doença e de mortalidade. Uma pessoa que mora no Leblon e tiver hipertensão e diabetes e
pegar Covid, é diferente de uma pessoa que mora na Rocinha, tem hipertensão e diabetes e pegou Covid.

É preciso dizer que, apesar de qualquer esforço que houver, mesmo que uma parcela da população consiga aderir a
essas medidas, são duas pandemias diferentes. Temos uma característica de transmissão diferente, o acesso ao
cuidado é diferente, a insumos. Ao se internar um paciente, os desfechos são completamente diferentes. As chances
de você sobreviver à Covid aqui é totalmente diferente da Zona Sul. Então, em essência, são quase duas doenças
com histórias naturais diferentes.

Quando a gente trabalha com a saúde sendo determinada socialmente, o que vemos, como serviço de saúde, é que
conseguimos dar conta de um pedaço disso. E isso está se refletindo na pandemia. Por mais que a gente esteja se
desdobrando, mesmo fazendo tudo o que a gente fez, ainda há desfechos muito ruins. Tratar a tuberculose, ir atrás
de contato, tem um impacto muito pequeno na redução. Nós temos uma história, não sei exatamente de quando, mas
de alguns anos atrás, com as obras do PAC, que abriram uma rua nova numa área da comunidade. Houve uma
redução muito mais importante nos casos de tuberculose do que com a nossa ação. Então, nós ficamos ali na
sensação de enxugar gelo, porque se não tiver uma atuação no conjunto para trazer condições, não adianta falar que
Como tem sido a política de testagem – ou de não testagem – desde o início da pandemia? Quais as ações
tem que lavar a mão se está faltando água. Muitas áreas na Rocinha não têm água.
que foram tomadas?[2]

Desde o início, o que vimos é a ausência de qualquer política coordenada de testagem. Em geral, as pessoas que
são testadas pelo SUS são aquelas que têm critério de SRAG, ou seja, que estão com sintomas graves e internadas
em algum hospital ou UPA. Durante a maior parte do tempo esse foi o principal fluxo de testes do município do Rio de
Janeiro e, acredito, na maior parte do Brasil. Após algumas semanas de pandemia, vimos muitas clínicas particulares
disponibilizarem os testes, com preços em geral maiores do que 200 reais. Mas o Poder Público não deu uma
resposta rápida a essa questão da testagem. Para exemplificar: em um dia normal no pico da pandemia, dos 80-100
casos suspeitos de Covid (síndromes gripais) que nós atendíamos por dia, uma média de cinco pessoas apresentava
sintomas graves e precisava de encaminhamento ao hospital ou à UPA. Ou seja, de 100 casos suspeitos, apenas
cinco tinham qualquer possibilidade de realizar o teste. Observamos também que o resultado dos testes demora
muito para sair, pois temos acesso à plataforma que disponibiliza esses resultados. A demora, às vezes, chega a três
semanas, um mês após a coleta. Vimos inúmeras vezes resultados positivos de pessoas que tinham falecido há três
semanas, um mês. Isso com certeza se reflete na contagem de casos oficiais divulgada pelas secretarias de saúde
que aparece na mídia todos os dias. Se temos tanta demora no resultado, é quase impossível termos um panorama
confiável da pandemia em tempo real. Em geral, os números, tanto de casos quanto de óbitos confirmados, demoram
para aparecer. Além dessa escassez de testagem para os casos suspeitos, percebemos que muitos casos graves
também não eram testados.

Para exemplificar: muitas vezes encaminhávamos um paciente grave, com critério de SRAG (por exemplo, oximetria
abaixo de 94%) para a UPA, conforme todos os protocolos indicam, pois o paciente precisava de suporte hospitalar.
Esse paciente, sem dúvida, tem critério para ser testado. E muitas vezes a UPA ou o serviço de emergência não
internava o paciente, às vezes, porque não havia leitos e as outras pessoas internadas estavam com um quadro
clínico pior. E, se o paciente não é internado, ele não é notificado como SRAG e nem é testado. Então, isso mais
uma vez reflete a subnotificação. O Brasil é o segundo país com menos testes por milhão de habitantes dentre os 10
países com mais casos de Covid, e acreditamos que isso seja por uma falta de política coordenada de testagem em

quase todos os estados e municípios. Passamos por uma situação bastante desconfortável no mês de junho, quando
a Prefeitura do Rio de Janeiro decidiu fazer um inquérito populacional para estimar a prevalência de pessoas que já
tiveram contato com o Sars-Cov2, através da testagem com testes rápidos IgG/IgM.

A testagem da população é uma ferramenta importantíssima para conhecermos a evolução da pandemia e para o
planejamento de políticas públicas para as próximas etapas da reabertura ou isolamento. O grande problema foi a
metodologia da pesquisa. Fomos avisados numa sexta-feira a tarde que teríamos até a próxima quarta-feira (na
prática, três dias) para sairmos na comunidade e realizarmos 270 testes. Além do teste, deveríamos aplicar um
questionário com dados demográficos e perguntas sobre se a pessoa já havia apresentado sintomas. Nenhum dos
entrevistadores/coletadores de dados foi capacitado nem instruído a coletar esses dados ou a coletar o teste rápido
corretamente. Então, fomos nós médicos e os enfermeiros para nossas áreas, sem capacitação adequada de como
coletar os dados, batendo nas casas das pessoas, sem saber se entrávamos ou não (pois muitas pessoas eram
idosas, que deveriam estar em isolamento social, e nós somos profissionais da saúde, que têm contato direto com

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