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Sim, já.

Mas a grande diferença da tuberculose para o coronavírus é que ela precisa de um contato muito mais
prolongado, um contato íntimo prolongado para você transmitir. Então, a gente não tinha muito caso…não tem muita
história de caso de tuberculose com os profissionais, né? Então, a gente dava o nosso jeito. Não deixava o paciente
da tuberculose aguardando muito tempo na sala de espera, chamava, e essas salas…lembrando que não têm janela
e a maioria delas estão com aparelho de ar condicionado sem funcionar. Mais da metade das salas não tem ar
condicionado. Então, a gente já tinha que trabalhar com essa possibilidade antes sim.

Também gostaríamos de reforçar que é muito importante contextualizar o momento. Nós entramos na maior crise
sanitária da nossa geração vindo da maior crise que a gente podia imaginar da nossa vivência enquanto profissional
de saúde aqui no SUS do Rio. A gente, na verdade, vem de três anos de muito sofrimento, de greve no final do ano,
de atraso salarial a partir de setembro, outubro, de demissão, de vacância na rede, uma desestruturação completa. E
a humilhação constante dos profissionais. Nesse contexto, depois de ficarmos 20 dias sem emprego, tentando
assinar, tentando entrar na Rio Saúde, não aceitando a redução salarial, vendo nossos colegas de trabalho, como as
enfermeiras, que fazem um trabalho tão importante quanto o nosso, recebendo uma redução salarial de quase
metade do que ganhavam. É com esse tipo de coisa que a gente vinha convivendo há três anos! Então, a gente entra
nessa crise muito desgastado e tendo que tirar energia sabe-se lá de onde para poder enfrentar isso.

Além disso, no momento que retomamos as atividades da clínica – tínhamos acabado de sair desse processo de
troca da OSS, a unidade tinha ficado 15, 20 dias sem nenhum médico, já que, pra assinar um contrato minimamente
justo, nós tivemos que fazer um movimento de ninguém assinar para depois eles voltarem atrás com algumas coisas
–, então, a gente já vinha de uma população que não estava atendida tanto quanto a gente gostaria. Acho que desde
o ano passado por causa das greves já havia uma dificuldade de acesso muito maior do que a gente está
acostumado a oferecer. E com profissional desgastado, com a questão da incerteza no trabalho, quer dizer, a gente
trabalhou duas semanas antes da pandemia estourar de uma forma que tivemos que mudar tudo aquilo que
estávamos fazendo e fazer uma tenda lá fora, parando de atender normalmente. Então, nessas duas semanas que

voltamos, já veio a pandemia e tivemos que voltar todo o nosso foco para a pandemia. Criamos o nosso fluxo do
zero. Se fossemos esperar a orientação da gestão municipal, estadual ou federal, não conseguiríamos dar conta.
Contextualizar o cenário do desmonte é essencial.

Para nós era óbvio que as ações tinham que ser para ontem, inclusive, para ontem mesmo. Antes de ter transmissão
comunitária declarada no Brasil, nós já estávamos discutindo como é que íamos montar as coisas. E, do ponto de
vista da gestão, essas coisas começaram a se estruturar uma, duas semanas depois, quando a coisa já estava
bombando. Então, esse início foi o grande nó. A gente fala que eles pegaram os nossos fluxos e publicaram. Até
certo ponto, não está mal, mas no começo isso foi um problema porque ficamos no escuro, fazendo por conta
própria.

Há uma precarização que passa pelas condições de trabalho, mas também pelo não fornecimento dos
insumos, no limite, pela própria construção do ambiente de trabalho. Na verdade, parece ser difícil pensar o
impacto de qualquer doença sem considerar o histórico de precariedade.

Há problemas que se arrastam desde a criação da clínica e tudo, mas eu não colocaria tanto como uma precariedade
contínua que eclode agora. Houve um período em que as coisas, quer dizer, havia problemas, mas a gente estava
bem. Nos últimos três anos a diferença é muito brutal. Enfim, impossível dissociar isso das questões de quem está na
prefeitura e tal, mas independente disso eu não diria, por exemplo, que a gente viveu dez anos de clínica ou, nos
cinco anos em que estou aqui, em um cenário precário. Eu diria que havia problemas sim e que esses problemas
O desmonte
ficaram realizado
bizarros nos últimos
ultimamente, anos não
nos últimos é financeiro,
três anos. ele é político. Simplesmente porque esse ano o Marcelo
Crivella comprou 30 tomógrafos desnecessários para a cidade do Rio de Janeiro, ao custo de 5 milhões de dólares
cada um. Então, quando se fala que é financeiro porque não tinha dinheiro, estamos usando a lógica deles. Na
verdade, eles não tinham vontade política de investir na saúde naquele momento. Por muitos anos, apesar da
infraestrutura física ser a mesma, nós vivemos muito felizes aqui, trabalhando muito bem. Só que o problema é que
em qualquer trabalho, como em qualquer estrutura, a minha casa, a sua casa, enfim, a nossa clínica precisa de
manutenção. E hoje a gente tem o chão da clínica afundando literalmente, com buracos. Sem ser consertado porque
não tem dinheiro, porque não tem qualquer coisa…Alguns médicos compraram o computador dos consultórios, do
bolso deles, porque não tem, não chega essas coisas.

Exemplificando mais uma situação de desdém nessa relação da Prefeitura com a gente: No começo da pandemia,
em um momento de pico, quando estávamos atendendo 80, 100 pessoas por dia com síndrome gripal, recebemos
um informe dizendo que eles pagariam 20% a mais para todos os profissionais de saúde envolvidos no cuidado do
coronavírus. Achamos estranho, só acreditaríamos vendo, nós não esperávamos isso também, principalmente a
gente que não teve uma redução tão significativa no salário, mas outros colegas nossos que perderam uma parcela
expressiva do salário estavam nessa expectativa. E aí, algum tempo depois, na mesma semana que recebemos um
indicativo de que a gente poderia ser convocado para sair da atenção primária e trabalhar nos hospitais, recebemos
o informe de que, na verdade, eles não iriam pagar esses 20% para a atenção primária porque, segundo eles, a
atenção primária não é linha de frente para atender casos de Covid. Então, isso exemplifica como eles funcionam,
como eles fazem essa interface com a gente.

Gostaríamos que vocês falassem sobre o levantamento de dados que está sendo feito por vocês, que,
inclusive, mostra um número de mortos distinto daquele divulgado pela Prefeitura. Enfim, em oposição ao
painel da Prefeitura, vocês construíram um outro painel?   

Talvez, seja importante mencionar como surgiu a questão do painel. Como nós atuamos “na ponta”, temos vínculo
com os pacientes há muito tempo, então, conhecemos muito bem as pessoas. Nós temos também os Agentes
Comunitários de Saúde, que são pessoas que moram na comunidade e que sabem o que está acontecendo com os
pacientes. A gente vinha recebendo muita informação e conseguindo monitorar os pacientes que nós sabíamos que
tinham sido internados com suspeita de Covid, ou que tínhamos mandado para a emergência de ambulância, ou
atendido aqui na clínica. E aí, constatamos que o número de óbitos na área tinha aumentado. Mesmo sem contar
numericamente, nós tínhamos essa impressão. Por exemplo: “ah, sempre morre uma pessoa por mês na minha
equipe, agora, de repente, morreram 5 pessoas numa semana”. Nós tínhamos a sensação de que estávamos
pedindo muito mais ambulâncias de emergência para a remoção de pacientes. Então, tivemos acesso a algumas
planilhas da gestão local, que faz a gestão das clínicas da Zona Sul, algumas planilhas que seriam planilhas de
acompanhamento de pessoas internadas com Síndrome Respiratória Aguda Grave. E aí, batemos esses dados com
os nossos relatos e também com a plataforma de acesso – uma plataforma que a gente consegue acessar os
exames para coronavírus. E foi aí que começamos a montar a nossa planilha, fazer uma contagem de pacientes.
Tanto de quem internou por Síndrome Respiratória Aguda Grave quanto quem morreu por coronavírus ou suspeita de
Covid, além das pessoas que mandamos de ambulância. Vimos que era um número muito maior do que aquilo que

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