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AULA 17 – INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE SANTO

AGOSTINHO – BEATITUDE – PARTE IV


Sancte Míchael Archángele,
defénde nos in proelio,
contra nequítiam et insídias diáboli esto praesídium. Impéret illi Deus, súpplices
deprecámur:
tuque, Princeps milítiae caeléstis, sátanam aliósque spíritus malignos, qui ad
perditiónem animárum pervagántur in mundo,
divína virtúte in inférnum detrúde.
Ámen.

1. A sabedoria e a felicidade [1]


O sábio é portador de uma sabedoria que lhe dá condições para enfrentar as diversas
situações da vida, sejam mais difíceis ou mais fáceis, porque tem o que necessita para lidar com
o que está a sua volta. A partir do momento em que não busca obter esta mesma sabedoria, sua
alma como que definha, pois não tem o alimento tão necessário para ela.
No item 25 do capítulo 4, o Santo faz uma exposição utilizando-se do pensamento de
Terêncio e diz “Não temos que recear aqui com as necessidades corporais dos sábios porque a
alma onde se encontra a vida feliz não vive essa indigência.”. Do ponto de vista do que está
presente na alma do sábio, que é a sabedoria, ele pode sofrer carências e outras privações
materiais e não tem grandes problemas, pois não possui indigência em sua alma, onde se
encontra a vida feliz. Ele sabe lidar com os diferentes acontecimentos de sua vida porque “quem
é sábio é forte, e quem é forte não teme seja o que for” (Agostinho, em A Vida Feliz). Além
disso, quando as coisas não lhe faltam, sabe usar com moderação o que tem disponível no
momento.
Por isso que Agostinho lembra que seria uma estultícia tolerar o que pode ser evitado, ou
seja, fazer isso não é um sinal de sabedoria. Deve-se tolerar, portanto, apenas aquilo que, de
fato, não se pode evitar. E é a falta do reto procedimento nestas questões que possibilita,
segundo o Santo, o estado de infelicidade de quem se porta assim:

“Essa pessoa será infeliz não porque as evitou ou suportou pacientemente, mas em
virtude de sua insensatez.”

A insensatez causa, pois, a infelicidade. E isso mostra que a vontade do sábio, na medida
em que ele é portador da sabedoria, não é desregrada e confusa, mas procura se dirigir
justamente a partir da mesma sabedoria presente no indivíduo. Ele aprende, com isso, que se
não é possível possuir o que se quer, quererá o que é possível.
A sabedoria ajuda o homem, portanto, a adequar a sua vontade àquilo que é possível. Se
tem uma vontade desmedida, ela caminha contra o real, ou seja, àquilo que é impossível, o que
gera sofrimento e infelicidade. Por outro lado, quando o homem aprende a querer de maneira
equilibrada e ordenada, a felicidade está em seu alcance.
2. A indigência e a infelicidade
Santo Agostinho, fazendo uso da tradição estoica, levanta uma questão: como pode ser
infeliz aquele a quem nada acontece contra a sua vontade? Quando se perguntava o que poderia
tornar o homem feliz, que era uma questão ética por excelência, chagava-se à conclusão que o
ele seria feliz na medida em que possuir um bem absoluto.
Ao analisar isso, concluía-se que este Sumo Bem que torna o homem feliz deve ser algo
que só possa ser adquirido ou perdido dependendo exclusivamente da vontade da pessoa. Posto
isto, tem-se em vista que não pode ser considerado um bem supremo aquilo que o homem pode
perder contra a própria vontade.
Um indivíduo que aprende a controlar a vontade tem condições de ser feliz, não por realizar
tudo o que quer, mas por – na medida em que é portador da sabedoria – saber como não querer
certas coisas. Ele satisfaz as próprias vontades, porém não escolhe qualquer coisa, senão
somente aquilo que é possível. Se é assim, como pode ser infeliz aquele com quem não acontece
nada contra sua vontade? A vontade, portanto, é direcionada tendo como ponto fixo tudo aquilo
que está de acordo com a virtude e com a sabedoria. Esta é, pois, a referência e a medida para
a própria vontade.
Na sequência do texto, Agostinho analisa se o infeliz é, de fato, indigente. Ele mostra,
então, que muitas pessoas não são indigentes quanto aos bens materiais:

Muitos homens vivem numa grande abundância de bens da fortuna que lhes torna
todas as coisas tão fáceis que (...) aparece tudo o que o seu desejo reclama.
(...)
Quem, de fato, dirá sem contestação que Orata viveu na indigência? Ele que foi um
homem muito rico, agradável ou indigente e a quem nunca algum prazer faltou, ou a
graça ou uma saúde íntegra e boa. (...) Mas talvez alguém dentre vós me diga que ele
quis ter mais do que já tinha. Mas admitamos que ele não quisesse ter mais do que
tinha, parece-vos que ele foi um indigente? Licêncio diz: ainda que aceitasse que não
desejasse mais nada porque era um homem de bom senso, ele temia que tudo aquilo
fosse arrebatado por alguém por maior força desfavorável.
Já vês que este homem muito afortunado não podia ser feliz por causa de seu bom
senso, quanto mais arguto fosse, melhor compreendia que podia perder tudo, e por
este fato, o medo dominava-o, o que confirma suficientemente o dito popular: para
um homem seguro, até a sua insensatez é um mal.
Examinemos este problema, portanto, de maneira mais atenta, porque embora Orata
temesse, ele não era indigente. E essa é a questão. Ser indigente consiste em não ter,
e não em temer, perder o que possui. Mesmo que não fosse indigente, ele era infeliz
porque temia. Portanto, nem todo homem infeliz vive na indigência.

A indigência está mais relacionada em não ter algo do que em temer perder aquilo que já
se possui. Orata, portanto, não era indigente, mas era infeliz porque temia perder o que possuía.
Logo, para Agostinho, não há uma relação necessária entre infelicidade e indigência. Santa
Mônica diz que não entende isso e que não é possível separar as duas realidades, porque “se
nós classificamos como indigente aquele que não é portador de riquezas e bens materiais”,
como aquelas pessoas sem sabedoria não seriam igualmente chamadas de indigentes? Há muito
mais motivos para alguém assim ser um indigente do que apenas aqueles sem bens materiais.
Ela diz:
“Então chamá-lo-ias de indigente se lhe faltassem a prata e as riquezas, e não o
podemos fazer quando é a sabedoria que lhe falta?”

Conclui-se, pois, que a grande e mais profunda indigência humana é a estultícia e a


insensatez, que mostra a ausência de sabedoria. Da mesma forma que a morte é contrária à vida,
a felicidade se encontra na sabedoria, e a infelicidade na ausência desta. Segundo Agostinho:

“Assim como o homem que não é feliz é infeliz, e todo homem que não está morto
vive, também é evidente que quem não é estulto é sábio. Por isso podemos
compreender que Sérgio Orata não era infeliz porque temia perder os bens de sua
fortuna, mas porque era estulto. Logo que segue que seria mais infeliz se não temesse
absolutamente nada.”

O temor não é o problema porque é resultado de um consenso natural, mas isso ainda não
é a sabedoria. O Santo continua:

“Mas se aquele a quem a sabedoria falta experimenta uma grande indigência, se aquele
que domina a sabedoria não lhe falta nada, segue-se que a estultícia é uma indigência.
Do mesmo modo que todo estulto é infeliz, também todo infeliz é estulto.”

Este é um ponto fundamental porque mostra que quem realmente não tem sabedoria é
indigente, o que significa ser estulto. E disso “segue-se que é necessário dar a indigência outro
nome quando se fala da estultícia”. Para isso, ele faz uma comparação entre a luz e as trevas:

“Na verdade a escuridão não vai e vem, mas faltar a luz é o mesmo que estar escuro,
tal como faltarem as roupas é o mesmo que estar nu. De fato, ao vestir-se a roupa, a
nudez não foge como alguma coisa que se movimenta. Dizemos por isso que alguém
tenha indigência ou tenha nudez porque a expressão ter indigência significa não ter.”

Há, para Agostinho, motivos suficientes para concluir que todo infeliz é estulto e todo
estulto é infeliz, e que todo infeliz é indigente, e todo indigente é infeliz. Feita essas
considerações, o Santo mostra que é preciso também pensar do outro lado: se a indigência tem
todas essas terminologias, como se poderia chamar aquele que não é indigente, isto é, o sábio?
A estultícia é a indigência, que também pode ser apontada como esterilidade, carência, penúria
etc. A grande questão seria o que usar para designar o outro lado, o da felicidade.

3. A sabedoria e a plenitude

Para este fim surgem, pois, algumas possibilidades como riqueza, plenitude e opulência, e,
para ele, a que mais exprime a verdade é a segunda: se, por um lado, a indigência é estultícia,
por outro, a plenitude é sabedoria. E a partir de um estudo linguístico, Agostinho conclui que a
frugalidade é a mãe de todas as virtudes, e entende que a palavra vem de temperança e de
moderação. A plenitude, assim, está relacionada com ela e não significa abundância ou excesso,
e é conveniente na relação com a sabedoria porque aquilo que é pleno mostra que não há
carência nem exagero, o que se pode pensar com a palavra “opulência”, por exemplo.
A plenitude, portanto, indica moderação e temperança, ou seja, é o atingir aquilo que é
necessário: o que não é a mais nem a menos, a sabedoria. Nessa relação do termo plenitude com
frugalidade, que implica a relação com o termo moderação (medida) e temperança (proporção),
Agostinho diz que:

“existe uma justa medida ou proporção onde nada está a mais ou a menos. Essa é a
plenitude que apresentamos contrária a indigência e que é muito melhor do que se
disséssemos o termo abundância.”

4. Desfecho

A partir dessas considerações, se a sabedoria tem relação com a plenitude e, portanto, com
justa medida e proporção, pode-se questionar o que realmente é digno de ser chamado de
sabedoria. O que é essa sabedoria que serve de medida para a vontade do homem e que lhe
fornece as condições necessárias para que ele seja feliz? Adiante, portanto, estes aspectos serão
analisados.

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[1] Todas as citações foram retiras da obra A vida feliz, de Santo Agostinho.

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