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A Integralidade das Artes Daoístas

Eduardo Alexander

Rio de Janeiro
Março 2009
Eduardo Alexander / 2

Introdução

Quando decidi escrever este texto estava motivado pelas constantes questões
de estudantes novatos e outros interessados que podem ser resumidas pela
seguinte sentença: “O que é Daoísmo?” O incentivo decisivo veio através de uma
questão colocada de forma bastante divertida por uma estudante. Em suas primeiras
aulas disse-me: -“Mas se alguém me perguntar sobre o que estou praticando, o que
respondo?”

Este acontecimento me remeteu a uma condição com que já havia me


deparado antes em estudos realizados no campo das Terapias Holísticas 1 : a
dificuldade geral que temos em apreender a totalidade de um sistema de saberes e
práticas oriundos de outra cultura. Diante da imensa e talvez historicamente inédita
possibilidade de aprendizagem de qualquer tipo de saberes e práticas transculturais
a que nos encontramos expostos atualmente, aliado a um intenso hibridismo
cultural, torna-se mais difícil olhar determinados corpos de saberes como totalidades
organizadas, ao menos em sua cultura original. Assim, escrevo este texto com o
intuito de apresentar o Daoísmo como um conjunto de saberes e práticas
organizadas e integradas, facilitando a tarefa daqueles que porventura desejarem se
aventurar por este mundo.

Prólogo

Há muito tempo atrás, num lugar longínquo havia um espaço dedicado ao


desenvolvimento dos seres em seu potencial máximo e à plena satisfação de estar
vivo. Lá viviam homens e mulheres, numa harmonia onde a dissonância também era
bela. Num destes momentos de dissonância um dos homens falou ao outro, em tom
de cobrança: -“Você está fazendo a prática de meditação que nosso mestre passou?
Vejo que você está sendo negligente!” O outro respondeu: -“Estou jogando xadrez.
Esta é minha prática. Fui tão fundo nela, que achei água no poço. E você, já achou
sua água?”

Muitos anos depois, nos dias atuais, em uma região metropolitana, um de


meus professores inicia sua aula de Daoísmo exclamando: “O Daoísmo não existe!”
Foram poucos os momentos que me lembro de ter ouvido frase tão apropriada.
Naquele momento entendi porque o jovem rapaz de saúde plena, imagem do bom

1
Ver Souza (2004). As Faces do Todo: O holismo nas práticas terapêuticas contemporâneas,
Dissertação de mestrado, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.

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resultado atingido pelas práticas do Dao 道 , contrastava tanto com outros


professores que tive, nem sempre tão saudáveis, mas sempre certos de estarem
afinados com o fluxo do Dao 道. Um de meus professores de Yi Jing 易 經 uma vez
me dizia. “Às vezes seguir o caminho pode ser adoecer. Não se fixe em nenhuma
imagem, nem mesmo a da saúde. Não privilegie a vida ou a morte. Este é o caminho
do Yi Jing 易 經. Como poderiam aqueles dois homens tão diferentes participarem
do mesmo caminho, ambos completamente identificados como Daoístas?

Desde os mais remotos tempos o campo de Saberes e Práticas Daoístas


acumulou e desenvolveu conhecimentos diversos, as vezes até antagônicos em
seus princípios. Por exemplo, na doutrina de Zhuang Zi 壯 子, ou pelo menos na
parte da doutrina que chegou até nossos dias, parece claro que um de seus
princípios era não privilegiar a vida em detrimento da morte (Kohn, 1992). Por outro
lado, Ge Hong 葛 洪, , eminente Daoísta do século IV, fala abertamente contra
Zhuang Zi 壯 子, criticando aqueles que não buscam a imortalidade através da
Alquimia (Campany, 2002). Não é novidade no Daoísmo vermos distintos mestres
anunciando que suas práticas são o caminho a seguir.

Dar uma solução harmônica para este cenário é mais simples do que parece,
ao menos para alguns com visão mais ampla. Segundo a própria cosmologia
Daoísta vivemos no mundo dos dez mil seres, ou seja, da infinita multiplicidade.
Cada um destes seres, absolutamente único, absorve uma parcela do Dao 道 em
sua concepção, que lhe confere um senso de direção de desenvolvimento a partir do
nascimento. Mas, também é previsto que os seres humanos irão perder a
consciência desta direção durante o decorrer de sua vida. Neste contexto, os
saberes e práticas Daoístas cumprem dois objetivos básicos: o primeiro, é a limpeza
dos fatores que impedem o sujeito de fazer contato consciente com sua direção de
vida; e o segundo é o apoio ao caminhar, o desenvolvimento dos potenciais inatos
contidos no interior de cada ser.

Como cada um dos dez mil seres é único, o conjunto de saberes e práticas que
lhes serão mais úteis neste processo deverá ser adaptado para promover seu
desenvolvimento a partir de suas características e necessidades singulares. Neste
sentido, ao caminharmos da multiplicidade para a unidade, existem dez mil
caminhos, e não apenas um. Mas, apenas um destes dez mil será o mais adequado
para você. Assim, a multiplicidade das Artes Daoístas é uma forma de servir a
singularidade dos seres em seu desenvolvimento, conforme expressa o ditado
Daoísta a seguir:

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“O Dao é grandioso. Oferece aos seres humanos 3.600


caminhos, cada um contendo 10.000 métodos para nos ajudar a nos
tornar quem realmente somos”. (Winn, 2009)

Atualmente o modelo de organização que mais aprecio é a divisão em oito


tópicos, pois reflete a harmonia expressa pelo símbolo do Ba Gua 八 卦 (Oito
trigramas). A atribuição da qualidade dos trigramas ao tipo de Arte, assim como a
própria categorização das Artes apresenta variações segundo instituições ou
mestres do Dao 道. A categorização que apresento, no meu ponto de vista a mais
completa e bem organizada, foi publicada por Winn (2001). Porém, a atribuição dos
trigramas é desenvolvimento meu.

Cultivo Horizontal e Cultivo Vertical

Além de evidenciar a unidade das Artes Daoístas, pretendo também elaborar


outra temática de vital importância, especialmente para aqueles que estão a procura
de um sistema de desenvolvimento pessoal que possa satisfazer seus mais
profundos anseios. Sua importância se deve ao fato das Artes Daoístas terem
surgido e se desenvolvido nas ultimas décadas nos países ocidentais como práticas
de saúde e sexualidade. No imaginário coletivo é bastante comum encontrarmos a
associação da prática do Tai Ji Quan 太 極 拳 e da Acupuntura como práticas de
saúde e o Daoísmo como algo interessante para se alcançar orgasmos intensos, o
que é parcialmente verdadeiro, mas deveras superficial ao potencial destas artes.
Pois, se praticar Tai Ji Quan 太 極 拳 promove a saúde, seu objetivo principal é
eficácia marcial, e se a Sexologia Daoísta promove o prazer sexual, seu objetivo é
estimular o desenvolvimento integral do ser humano.

Pretendemos evidenciar a profundidade das Artes, pouco notada tanto pelo


leigo, como por praticantes de Tai Ji Quan 太 極 拳 ou Medicina Chinesa,
salientando que as Artes Daoístas formam um sistema integrado, profundo e
completo de desenvolvimento pessoal.

Em meu percurso de vida, levei muito tempo para perceber este aspecto das
Artes Daoístas. Como um buscador, me envolvi com diversos sistemas esotéricos, e
via no Daoísmo, resumido ao Qi Gong 氣 功 , ao Tai Ji Quan 太 極 拳 e a
acupuntura, excelentes práticas de saúde, mas, meu caminho espiritual era
orientado por outro sistema. Tomando o Qi Gong 氣 功 e o Tai Ji Quan 太 極 拳
como exemplo, via uma infinidade de linhagens orientadas por diretrizes de famílias

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e clãs de mestres e praticantes, que imprimiam miríades de formas e seqüências de


movimentos distintos ao corpo, em sua busca pela capacidade de acumular e
movimentar a força vital (Qi 氣). Haviam também as lendas dos fundadores, que um
dia teriam alcançado os céus com aquelas práticas. Porém, os mestres e praticantes
da atualidade com quem me encontrei tinham muita saúde, mas, faltava-me algo
para considerar aquelas práticas como um caminho completo para o
desenvolvimento humano. A mudança que me fez perceber as Artes Daoístas desta
forma aconteceu em dois momentos. O primeiro, foi notar que existe entre as
diversas práticas uma complementaridade, como se cumprissem objetivos comuns
através de caminhos diferentes. O segundo, foi perceber que a noção da Alquimia
Interna (Nei Dan Gong 內 丹 功), mais precisamente, das 7 Fórmulas Alquímicas,
contém a chave para ampliar as práticas para níveis além da saúde e vitalidade,
constituindo um sistema completo de desenvolvimento.

Para efetuar estes dois passos foi necessário experimentar pessoalmente


diversas linhagens de Qi Gong 氣 功, Tai Ji Quan 太 極 拳 e Medicina Chinesa, e
completar esta experiência com as visões dos professores Michael Winn e Livia
Kohn. O primeiro, um de meus professores de Alquimia Interna, é um intérprete e
organizador contemporâneo das 7 fórmulas alquímicas2. A segunda, acadêmica da
área do Daoísmo com quem estudei parte dos textos clássicos que evidenciam a
estrutura em profundidade das práticas. Assim, juntar as peças do quebra-cabeças
me fez perceber o que denomino de cultivo horizontal. A unidade e
complementaridade entre as práticas capazes de promover vitalidade e saúde,
conforme vemos na figura a seguir, que nos mostra os aspectos das Artes Daoístas
vistos de forma integrada, organizados pela estrutura do Ba Gua 八 卦.

2
Mais referências sobre este tema a seguir

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Figura 1: Os Oito Aspectos das Artes Daoístas

Yi Jing,
Cosmologia

Artes (Música, Nutrição e Alquimia


Caligrafia, Pintura...) Externa

Artes de Cura Qi Gong e Artes


Marciais

Feng Shui Alquimia Interna

Sexologia
Daoísta

Neste trabalho abordamos essencialmente o aspecto horizontal do cultivo, ou


seja, a integração das Artes conforme a ilustração bidimensional acima. Não
elaboramos em profundidade o tema da Alquimia como fio condutor, mas,
apresentamos a seguir a noção de cultivo vertical, essencial para compreensão de
sua função.

A busca pela profundidade do sistema nasceu a partir da minha experiência


pessoal e também de diversos alunos, que, diante das miríades de formas de Qi
Gong 氣 功 um dia se perguntam: -“Certo, me sinto melhor e recuperei a minha
saúde, mas também me sinto girando em círculos. Seria assim o Daoísmo?
Mudamos de formas, avançamos para maiores complexidades, mas temos a
sensação de algo que falta. O que seria?”

Penso que os sistemas de desenvolvimento humano completos oferecem


métodos para vivenciar e elaborar questões fundamentais da existência tais como: O
que é o cosmos (Cosmologia), de onde viemos (Antropogênese) e qual seria nossa
função no cosmos enquanto seres humanos. Ainda, se possível, dar suporte à
apreensão destas respostas no nível individual, como também, para realizarmos o
papel que nos foi conferido e alcançarmos a plenitude em vida. Neste contexto, creio
que a Alquimia Interna cumpre o papel de integrar os oito aspectos das Artes e
conduzi-los à profundidade do Dao 道.

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Assim, o cultivo vertical seriam os saberes e práticas capazes de criar uma


terceira dimensão na figura acima. Um eixo que ao passar pelo centro seria capaz
de criar uma espiral, conduzindo o praticante deste mundo até a fonte inefável do
cosmos, o Wu Ji 無 極. A cada passo, o caminhante realiza um dos aspectos
supracitados. Este caminho é dividido em 3 níveis de acúmulo de vitalidade e
orientado pelas 7 Fórmulas Alquímicas, conforme ilustração a seguir:

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Tabela 1: Resumo Ilustrativo do Cultivo Vertical

Nível de Vitalidade Função das Práticas Nível Equivalente das 7 Fórmulas


Alquímicas

1- Abaixo do concedido em sua Auxílio ao tratamento de 0 – Fundamentos do Qi Gong 氣 功 e da


concepção conduzindo à enfermidades; cultivo da vitalidade e Alquimia
Saúde
Cultivo Vertical em Profundidade

morte prematura (Em bem estar; Realização de funções e


1 – Fusão dos 5 Elementos
relação ao potencial desejos pessoais na terra.
humano). 2- Kan & Li Menor: Alquimia Sexual Interna

2- Nível máximo do potencial Auxiliar a realização da totalidade 2- Kan & Li Menor: Alquimia Sexual Interna
Longevidade humano, conduzindo à vida das funções do ser humano na
3- Kan & Li Médio: Alquimia Terra-Sol-Lua
(SHÒU 壽 ) longa e próspera. terra.
4- Kan & Li Superior: Alquimia Planetária

3- - Extensão do nível máximo Auxiliar a realização da totalidade 5 – Selo dos 5 Sentido: Alquimia Estelar
Imortalidade do potencial humano. da função cósmica do ser humano.
6- Congresso de Céu e Terra
(XIĀN 仙 )
7- União do Homem com o Dao

Os sentidos e significados desta ilustração-resumo podem ser aprofundados em outros textos, especialmente no artigo intitulado “As
Sete Fórmulas Alquímicas”3.

3
Disponível em www.grandetriade.com

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Os Oito Aspectos das Artes Daoístas

1- Alquimia Interna (Nei Dan 內 丹)

Alquimia não é um fenômeno Chinês. Todas as grandes civilizações antigas,


Egito, Grécia (Europa), Índia e outras desenvolveram sistemas alquímicos. Alquimia
também não é uma proto-química, conforme a visão hegemônica da ciência do
século XX. Iniciemos sua apresentação com uma imagem. Há um laboratório, um
espaço reservado, sagrado (oratório) para trabalho (labor). Neste espaço
encontramos diversos frascos com substâncias e também um forno, onde o fogo
induz a transformação das substâncias misturadas das mais diversas formas. No
final do processo, vemos o acúmulo de um líquido, em pouca quantidade, mas muito
concentrado. É o elixir extraído do processo.

Continuemos com as imagens, agora extraídas dos ideogramas chineses. O


termo original traduzido como alquimia é Nei Dan Gong 內 丹 功. Nei 內 mostra um
objeto dentro de uma caixa, significando o lado de dentro, interno. Dan 丹 é a
imagem estilizada do cinabre, um composto de mercúrio e enxofre, tido como uma
síntese com propriedades mágicas e curativas. Gong 功 significa habilidade. Não
qualquer habilidade, mas aquela que é conquistada através da prática e da
experiência. Em sua totalidade o significado de Nei Dan Gong 內 丹 功 pode ser
expresso como: a habilidade em [fazer] o elixir interno.

Assim as imagens usuais de um laboratório alquímico são congruentes com a


imagem evocada pela denominação chinesa. Trata-se, sobretudo, de produzir algo
nobre e raro (um elixir, ou em alguns casos, o próprio ouro (Jin 金 ) a partir de
produtos brutos, não nobres. Para fazê-lo é necessário um conjunto de saberes,
técnicas e habilidades que serão desenvolvidas junto ao próprio processo de
extração do elixir.

Estas imagens primordiais nos conferem diversos elementos que ensinam de


forma metafórica sobre o processo alquímico. O processo que ocorre no laboratório
pode ser associado ao próprio fluxo da vida e o laboratório, uma imagem do corpo e
do psiquismo humano, é o local onde ocorre o processo. Desta forma, alquimia é o
próprio processo da vida, entendida como um conjunto de transformações, mas
sujeitas a ação de um catalisador, um acelerador de transformações, o fogo,
metáfora da consciência (Shen 神)).

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O quadro poderia então ser lido da seguinte forma: O processo de


transformação que denominamos vida pode ser estimulado ao seu potencial máximo
pela presença da consciência (fogo) na matéria (corpo/laboratório), conduzindo a
formação de algo muito especial: o elixir ou o ouro, símbolos de “vida eterna”,
incorruptibilidade e satisfação plena de estar vivo.

O corpo de saberes e práticas da Alquimia Interna sintetiza os diversos


conjuntos das Artes Daoístas em um corpo único, um amálgama que pode ser
considerado em si mesmo o elixir das Artes Daoístas. Segundo Pregadio (2000), a
prática da Alquimia Interna envolve concepções da Alquimia Externa (Wai Dan 外 丹
); concepções cosmológicas e operacionais do Yi Jing 易 經, o livro das mutações;
práticas de Qi Gong 氣 功, e Dao Yin 導 引, que usualmente servem a fins curativos
e revitalizantes, centrados na saúde corporal e emocional; práticas sexuais (Fang
Zhong Shu 房 中 術); e práticas de respiração e meditação. Ainda, em algumas
escolas, a Alquimia é também apoiada por práticas ritualísticas.

A Alquimia Interna é alfa e ômega do Daoísmo. Pode ser dito que todo
conhecimento Daoísta nasceu da Alquimia e para ela retornará. Em seu coração é a
forma Daoísta de investigar, experimentar e realizar as questões mais fundamentais
da existência, sejam do ser individualizado, da condição humana ou do próprio
cosmos. A Alquimia busca não somente a compreensão, mas a realização da
estrutura da criação e do mistério da força criativa. Os possíveis resultados desta
busca são descritos pela própria tradição como: 1) a realização do mandato celeste
(Ming 命 ), pensado como a manifestação plena dos potenciais que foram
concedidos aos seres no momento de sua concepção e cuja atualização no mundo
conduz a um estado de plenitude de vida; 2) A obtenção do estado de Xian 仙, ou
imortalidade, tido como uma vida longa e próspera no qual o ser humano retorna ao
seu estado de potência original conhecido como Zhen Ren 真 人 , ou “homem
autêntico”. Neste estado considera-se que o ser humano não é mais sujeito à morte,
mas passa por um conjunto de metamorfoses voluntárias que o permitem “liberar-se
de seu corpo”, mantendo sua consciência intacta durante o processo que termina
com a união de seu espírito com Dao 道 (Yu Shen He Dao 與 神 合 道).

É neste contexto que consideramos a Alquimia como o primeiro ramo das


Artes Daoístas, o único capaz de organizar a diversidade de práticas numa estrutura
vertical, que orienta e estimula os praticantes a alcançarem uma profundidade em
suas práticas que vai além da busca por saúde e que permite a exploração,
elaboração e realização das questões fundamentais da existência humana.

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Existem diversas linhagens de Alquimia interna, sendo que cada uma organiza
este processo de formas distintas. O Projeto Grande Tríade compromete-se com o
ensino e desenvolvimento da Alquimia Interna Daoísta conforme o sistema descrito
no artigo: “As Sete Fórmulas Alquímicas”

2- Qi Gong, Tai Ji Quan (Artes Marciais), Danças Sagradas

Este grupo de práticas apresenta uma classificação interna confusa à primeira


vista, devido ao uso extensivo dos termos Qi Gong 氣 功, e Tai Ji Quan 太 極 拳.
Desde a década de 80 do século passado houve na China um movimento de
resgate e intensificação da utilização de práticas de Qi Gong 氣 功 . Este
renascimento reforçou um aspecto presente no campo desde a China Clássica, da
multiplicidade de famílias (Jia 家 ,) ou linhagens (Zong 宗 ) de práticas, que
disponibilizam milhares de formas distintas.

Assim, se o olhar do praticante recair sobre a forma, será difícil perceber a


unidade do Qi Gong 氣 功. O termo em si é bastante recente, tendo sido utilizado
popularmente apenas a partir da década de 40 do século passado. É claro que o tipo
de prática então denominada de Qi Gong 氣 功 é milenar em seus aspectos
fundamentais. O termo Gong 功, significa “habilidade”, ou melhor, uma habilidade
que provém de uma prática, de um fazer. Qi 氣 significa “força vital”. Assim, o
significado do conjunto é “habilidade com a força vital”. Uma definição genérica, e de
fato, adequada à situação.

As milhares de formas distintas de Qi Gong 氣 功 tem como objetivo


fundamental o despertar, a circulação e o cultivo da força vital (Qi 氣 ) no corpo
humano. Para tal, considera-se a respiração, tida como uma forma de captação e
circulação de Qi 氣, um aspecto central da prática. Os fundamentos da prática
poderiam ser resumidos na prática respiratória associada a movimentos lentos e
precisos, que buscam a integridade corporal. Estes movimentos usualmente seguem
padrões baseados na cosmologia e na morfologia humana segundo o Daoísmo,
onde o corpo humano teria uma rede de circulação de força vital (meridianos),
associada à padrões do cosmos. Em algumas famílias é permitida, também, a
utilização de visualizações criativas durante a prática, enquanto em outras é
proibida. A prática do Qi Gong 氣 功, pode ser feita em pé, sentado ou deitado, de
acordo com a proposta da forma específica a ser praticada.

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Assim como o Nei Dan Gong 內 丹 功, o Qi Gong 氣 功 visa despertar a força


vital humana adormecida no corpo. Porém, vemos o Qi Gong 氣 功 como um estágio
fundamental do desenvolvimento do Qi 氣, que uma vez alcançado, poderá ser
aplicado nos demais ramos do Daoísmo. Por exemplo, uma vez que o praticante
desperte e circule o seu próprio Qi 氣, ele poderá aplicar esta habilidade para efetuar
as artes de cura (Grupo 4), para sentir a qualidade do espaço na arte do Feng Shui
風 水, (Grupo 6), ou para iniciar a prática de Nei Dan Gong 內 丹 功 (Grupo 1).

Preferimos classificar o Qi Gong 氣 功, como um aspecto do Grupo 2 por suas


características voltadas para a saúde e vitalidade com ênfase no corpo. Assim, este
seria o grupo adequado para o desenvolvimento do corpo humano em seu
potencial máximo, através das artes que expressam a vitalidade diretamente
através do corpo. Neste sentido as Artes Marciais e as Danças seriam formas de
expressão aplicadas a objetivos específicos. A primeira para auto-defesa, e a
segunda para o encanto, do outro e de si-mesmo, através do movimento4.

Quanto as Artes Marciais, convém listarmos as mais conhecidas dentro da


tradição Daoísta. Em primeiro lugar, devemos separar as Artes Marciais internas das
externas. A primeira promove o desenvolvimento da força vital para depois aplica-lá
em situações de combate e a segunda treina diretamente o corpo para o combate na
expectativa que a força vital se desenvolva, o que nem sempre ocorre. Neste sentido
preferimos destacar apenas as Artes Internas, que são as mais utilizadas pelos
Daoístas em suas práticas.

a) Tai Ji Quan 太 極 拳 – Termo que significa o “Punho do grande


supremo”. É a arte interna mais divulgada no ocidente, conhecida por
seus movimentos simultaneamente suaves e fortes, baseados nas
noções de Yin e Yang.

b) Ba Gua Zhang 八 卦 掌 – O termo significa “As palmas dos oito


signos”. Sua prática é fundamentada em movimentos que
desenvolvem no corpo as qualidades dos oito trigramas (Céu, Terra,
Fogo, Água, Trovão, Lago, Vento e Montanha) com aplicações
marciais.

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Para diversas tradições religiosas as danças são consideradas formas de provocar estados
expandidos de consciência no dançarino e em sua platéia. Este aspecto da dança foi
particularmente explorado pela tradição Sufi.

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c) Xing Yi Quan 形 意 拳 – Significa “O Punho da intenção e da forma”.


Sua prática é fundamentada no desenvolvimento das qualidades das
cinco fases (Água, Madeira, Fogo, Terra e Metal) no corpo e sua
aplicação marcial. Também utiliza o desenvolvimento das forças de
certos animais, mantendo uma ligação com práticas shamânicas.

d) Yi Quan 意 拳 – Arte nascida no século XX a partir de uma reforma


sobre o Xing Yi Quan 形 意 拳. Busca-se desenvolver a força interna
ao máximo antes de aprender qualquer forma ou movimento. Sua
prática é fundamentada na utilização de posturas estáticas.

Quanto às danças sagradas, convém salientar novamente que sua utilização


não se tratava apenas de uma demonstração artística para fins de entretenimento,
apesar disto também acontecer. O termo genérico utilizado para danças é Bu Gang
步 罡 , e significa “andar sobre as linhas”. Refere-se ao caráter que os diagramas
cosmológicos Daoístas conferiam as danças, no sentido de orientar no espaço a
expressão do corpo. As danças serviam para invocação de forças universais, tais
como as forças da estrela polar, ou de cada um dos planetas, ou também para
forças da natureza terrestre, como a invocação de diversos animais, no mesmo
estilo que as Artes Marciais. Ainda, as danças eram também utilizadas como formas
de invocar forças para rituais de exorcismo.

Por último, é conveniente expressar nossa compreensão sobre o papel das


artes deste grupo no contexto total. O Qi Gong 氣 功, as Artes Marciais e as Danças
Sagradas podem levar ao extremo do desenvolvimento do corpo, mas não garantem
o desenvolvimento em profundidade da prática alquímica, em sua busca pela
realização total dos potenciais humanos (Zhen Ren 真 人 ). Devem ser praticadas
em profundidade por aqueles cujas potencialidades singulares sejam a luta ou a
expressão corporal. Para os demais, recomenda-se uma prática mais suave destas
artes para manter o corpo saudável e vitalizado, como base para a prática
Alquímica.

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3- Cosmologia, Yi Jing, Astrologia, Mitologia. (“Filosofia Daoista”)

O termo “Filosofia Daoísta”, bastante empregado em nossa cultura, requer


alguma elaboração para que possamos apreender o que há de Filosofia no
Daoísmo. O uso deste termo refere-se usualmente às obras Dao De Jing 道 德 經 e
Zhuang Zi 壯 子, dois dos mais famosos textos adotados pelos daoístas, cujos
autores costumavam ser denominados de “filósofos”. Esta denominação foi
importante durante várias passagens da história da China onde houveram disputas
por poder político-religioso entre Daoístas, Confuncionistas, Budistas, e, a partir do
século XIX, também por Católicos e Protestantes europeus. Para a maioria dos não-
Daoístas era importante separar os ensinamentos similares aos de Lao Zi 老 子 e
seu Dao De Jing 道 德 經 , que mostravam elaborações teóricas sobre o
funcionamento do cosmos e da sociedade, das doutrinas religiosas que envolviam
rituais, sistemas devocionais, panteões divinos e organização clerical hierárquica.
Após a separação, os grupos não-Daoístas tendiam a respeitar os ensinamentos de
Lao Zi 老 子, classificando-os como Dao Jia 道 家, termo que chegou ao ocidente
com o sentido de “ensinamentos filosóficos”, e por outro lado, tendiam a
desqualificar o segundo grupo, Dao Jiao 道 教, tido como doutrinas e práticas
religiosas consideradas “inferiores”. A idéia fundamental do ponto de vista dos anti-
Daoístas era tentar salvar Lao Zi 老 子 e condenar o Daoísmo. Esta divisão chegou
ao ocidente moderno, que tendia a reproduzi-la.

Nos últimos 30 anos, porém, Pregadio (2003) em sua Enciclopédia do


Daoísmo, uniu as vozes dos Acadêmicos Daoístas contemporâneos ao evidenciar
as impropriedades desta divisão, ou seja, que Lao Zi 老 子 não é separável do
Daoísmo. Mais especificamente, o autor evidencia que os termos Dao Jia 道 家 e
Dao Jiao 道 教 , significavam originalmente “as linhagens do caminho” e “os
ensinamentos do caminho”, respectivamente, referindo-se aos grupos e linhagens
de Daoístas (Dao Jia 道 家) e seus ensinamentos (Dao Jiao 道 教), o que nos remete
ao fato dos ensinamentos apresentarem simultaneamente aspectos “filosóficos” e
“religiosos”. Pregadio (2003) nota que a distorção dos sentidos originais dos termos
que conduziram à divisão foi, sobretudo, uma ação dos opositores do Daoísmo,
salientando que os Daoístas eram perfeitamente capazes de se auto-definirem de
forma integrada com Lao Zi 老 子.

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Após esta apresentação retornamos à questão inicial: Há filosofia no Daoísmo?


Minha resposta pessoal é não. Penso que nunca houve no Daoísmo uma
supervalorização do logos. Pelo contrário, os Daoístas gostam de fazer notar as
dificuldades que a razão pode criar para aqueles que buscam o caminho (Dao 道).
Muito menos houve no Daoísmo a idéia de que através da razão poderia-se chegar
à verdade. Se é que os Daoístas acreditam em uma “verdade”. Ainda, penso que os
Daoístas nunca cortaram os laços com a mitologia como uma forma válida de
conhecimento, passo característico da Filosofia Grega. Assim, se tomarmos uma
definição mais rígida de Filosofia, Lao Zi 老 子 não é um filósofo. O Daoísmo não é
uma filosofia, mas, apresenta diversos modelos e explicações sobre o
funcionamento do cosmos, do homem e da sociedade. Modelos fundamentados nas
experimentações proporcionadas pelo conjunto de práticas descritas neste texto.
Desta forma, definimos este terceiro grupo de saberes como saberes
compreensivos. Essencialmente voltados para a mente, constituem-se do conjunto
de concepções e modelos que, por um lado orientam as práticas, e por outro são por
elas criados.

Incluímos neste grupo os estudos de Cosmologia, incluindo a Astrologia como


uma forma de leitura simbólica do cosmos, expressa pelas temáticas mitológicas, e
o Yi Jing 易 經, o cânone da mutações. Convém salientar que, antes de ser um livro
oracular, o Yi Jing 易 經 apresenta um modelo de gênese e desenvolvimento do
cosmos sendo a função oracular uma decorrência deste modelo. Os antigos
Daoístas pensavam que para organizar o presente e prever o futuro, dois aspectos
da função oracular, seria necessário ter em mãos uma noção de como este cosmos
funciona. Desta forma, os Oráculos Daoístas 5 são fundamentados num modelo
cosmológico.

Assim, poderíamos dizer que os instrumentos deste terceiro ramo do Daoísmo


servem para orientar a prática e a vida através de sua reinserção numa ordem
cósmica. Para uma compreensão adequada deste delicado tópico é necessário
apresentarmos antes algumas noções fundamentais do universo Daoísta: Wu Wei
無 為 e Ming 命 . A primeira, comumente traduzida como não ação é melhor
compreendida como uma determinada postura-ação que é espontânea e efetiva
para o ser individualizado em termos de posicionamento no mundo.

5
Em minha opinião os sistemas oraculares são fundamentados em modelos cosmológicos
nas civilizações cujos sistemas esotéricos tenham desenvolvido tais modelos. Por exemplo, o
Tarot e a Astrologia Ocidental se fundamentam, ou ao menos se relacionam, com o modelo
da Árvore da Vida (Qabala).

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“O mestre nada faz, e ainda assim nada deixa de ser feito. Um


homem ordinário está sempre fazendo, e, no entanto, sempre há muito
ainda por fazer.”6

A segunda, Ming 命 , é usualmente traduzida por Destino. Convém aqui


ressaltar que não se trata de fatalismo, mas sim da noção da harmonia na interação
do ser individualizado com o cosmos. Segundo esta noção cada ser é singular e
interage com o cosmos de forma única em sua jornada da concepção à morte. Logo,
pode-se entender Ming 命 como um conjunto de ações singulares e espontâneas
que cada ser deve realizar para viver em harmonia consigo e com o cosmos.

“Assim, a Não-Ação é definida como ação em verdadeira


harmonia e acordo com as coisas [do mundo]. As pessoas se auto-
realizam ao fazerem exatamente aquilo para que são mais adequadas,
e nada mais.” (Kohn, 1992, p. 74)

Compreendidas as duas noções torna-se fácil a exposição da função oracular


e dos saberes deste grupo: facilitar pessoas a sentir, compreender e agir, a cada
momento de sua vida, em constante Wu Wei 無 為.

4 - Artes de Cura (Acupuntura, Massagem, Moxabustão)

“Aquele que for capaz de nutrir os espíritos internos não irá


morrer. Por espíritos eu me refiro aos espíritos das cinco esferas. A
alma no fígado, a alma material nos pulmões, o espírito no coração, a
intenção consciente no baço e a essência junto com a vontade nos
rins. Quando estas cinco esferas se exaurirem ou ferirem, os cinco
espíritos irão fugir.” (Kohn, 1992, p.68)7

A passagem acima exemplifica um valor fundamental do Daoísmo: considerar


a boa saúde como condição para realização espiritual, que, uma vez alcançada,
implica não somente na obtenção de sabedoria e estados refinados de consciência,
como também em longevidade. Na frase: “Quando estas cinco esferas se exaurirem
ou ferirem” He Shan Gong 河 上 公 está se referindo à qualidade da força vital (Qi 氣
) no interior dos órgãos e vísceras do corpo humano. Tanto uma exaustão
(deficiência da força vital), como uma “ferida” (enfermidade), irão “fazer os cinco
6
Parte do verso 38 do DÀO DÉ JĪNG 道 德 經 traduzido por Stephen Mitchell em
http://www.edepot.com/taoism.html, acessado em 17/11/2007.
7
Esta passagem é uma tradução do DÀO DÉ JĪNG 道 德 經 compilado por HÉ SHÀNG
GŌNG 河 上 公 presente no Cânone Daoísta da dinastia MÌNG 明 (1368 A 1643 d.C.). Texto
DZ682, fascículo 363, capítulo 6;1,5ª.

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espíritos fugirem”. “Espírito” é uma tradução do termo Shen 神, que atualmente é


mais comumente traduzido por consciência. Desta forma, pensa-se que a para o
desenvolvimento da consciência, é necessário que esta tenha uma residência
habitável, um corpo puro e cheio de força vital (Qi 氣).

Foi neste contexto que se desenvolveram as Artes de Cura, como um aspecto


de um grande corpo de conhecimento, voltado para a expansão da vitalidade e
desenvolvimento da consciência. Considerava-se as enfermidades como um
obstáculo a este processo.

Assim, como o Daoísmo não consegue conceber um “Santo” que adoeça e


como nos tempos da China Antiga (até 200 d.C.) as funções sociais do Médico e do
Sacerdote eram concentradas em uma mesma figura8, desenvolveram-se diversas
práticas com objetivo de cura e expansão da vitalidade, que mais tarde integraram o
corpo de conhecimento da Medicina Clássica Chinesa 9 . Para estes médicos-
sacerdotes, a medicina era tida como um caminho de desenvolvimento pessoal, em
sua busca para se tornarem seres auto-realizados (Zhen Ren 真 人). Para tal, os
“médicos” utilizavam as diversas práticas aqui apresentadas como um conjunto
integrado para seu auto-desenvolvimento.

Porém, havia um conjunto de práticas dedicadas exclusivamente à cura do


outro através de uma intervenção terapêutica direta, conforme vemos na lista
abaixo:

• A Acupuntura (tida com uma forma de intervenção direta sobre a força vital (Qi
氣) do outro.

• A Moxabustão (Similar a acupuntura, com propriedades de incrementar a força


vital).

• Sistemas de Terapias de Manipulação Corporal:

o Tui Na

o Qi Nei Zang (Sistema da manipulação dos órgãos em profundidade


para purificação física e emocional)

8
Inicialmente chamada de Wu 巫, shaman, e mais tarde de Fang Shi 方 士, o “mestre das
artes esotéricas”. Apenas posteriormente foi cunhado o termo Dao Shi 道 士, mestres das
artes do Dao 道, os Daoístas.
9
Convém salientar que do ponto de vista que apresentamos aqui, a Medicina Clássica
Chinesa como um todo é uma parte das Artes Daoístas. Desenvolvemos este argumento em
tese de doutorado.

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• Práticas de transmissão de força vital (Qi 氣) (Transmissão direta de Qi 氣 do


terapeuta para o paciente).

5 - Sexologia

A função exercida pela sexualidade no Daoísmo é uma de suas características


mais peculiares e instigantes. Primeiro, por declarar desde o principio as relações
entre a saúde e a sexualidade, o Daoísmo construiu um conjunto de praticas
voltadas para o cultivo da saúde e da longevidade através da sexualidade
denominado de Fang Zhong Shu 房 中 術, as Artes do Interior do Quarto, ou He Yin
Yang 合 陰 陽, Harmonia do Feminino-Masculino.

Porém, o que realmente causa impacto é a conciliação entre a sexualidade e o


desenvolvimento da consciência (espiritual), pois antagoniza com os sistemas
religiosos hegemônicos do mundo. Para o Daoísmo em geral, a força sexual
humana não é apenas algo aceito como natural, portanto nada tendo de conflituoso
com o desenvolvimento da consciência, mas é considerada como algo
imprescindível para tal objetivo. Esta força deve ser trabalhada de forma consciente,
para que possa se tornar uma substância propulsora do desenvolvimento da
consciência e da saúde.

Os Daoístas que utilizam as Fang Zhong Shu 房 中 術 como parte de seu


caminho de desenvolvimento conferem importância central à concepção de Jing 精,
a “essência sexual”. Enquanto no campo da Medicina Chinesa é comum afirmar que
a essência, e portanto a força sexual, diminui com o envelhecimento do ser, os
Alquimistas/Sexólogos invertem a afirmativa: O ser envelhece porque não utiliza de
forma correta seu Jing 精 durante a vida e especialmente durante sua atividade
sexual. A perda do Jing 精 está antes do envelhecimento!

Ora, se os Daoístas pensam a saúde como uma pré-condição para o


desenvolvimento espiritual e o cultivo do Jing 精 é um fator determinante de saúde,
temos uma primeira relação entre a sexualidade e a espiritualidade. Porém os
Daoístas vão além, ao afirmar que a “fonte de energia” das transformações de
consciência características do processo de desenvolvimento espiritual é esta mesma
essência sexual, Jing 精.

Assim, se a proteção e o cultivo desta essência é algo de grande importância,


os Daoístas desenvolveram métodos para alcançar estes objetivos, adequados às

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distintas condições sexuais humanas. Basicamente, classifica-se o cultivo em dois


tipos:

1) O Cultivo Solo: Saberes e técnicas para o desenvolvimento e


transformação da força sexual sem companheiros.

2) Cultivo Dual: Desenvolvimento através da relação sexual.

6 - Feng Shui – Arquitetura da Vida

Recentemente, numa pequena reunião na casa de amigos, fui abordado com


diversas questões sobre minhas atuais atividades profissionais como Terapeuta e
Pesquisador Acadêmico do campo da Medicina Chinesa. Sacaram do fundo de seu
“baú mental” uma daquelas perguntas interessantes: - “Mas você acredita em Feng
Shui 風 水?” Respirei fundo por um instante e observei minha própria reação mental.
Pois para mim, naquele instante, aquela pergunta fazia tanto sentido quanto o
questionamento de minha crença em carros ou aparelhos de televisão. Bem,
encontrava-me numa situação adequada para um exercício interno. Colocar-me na
posição do outro. Afinal, porque não me perguntaram se acreditava em acupuntura?
Teria sido um delicadeza? Ou realmente seria mais fácil para eles creditarem algum
grau de realidade, validade ou utilidade à acupuntura? Um pouco dos dois, pensei.
Mas onde estaria o acréscimo de dificuldade na aceitação do Feng Shui 風 水? Qual
seria a dificuldade de comunicação intercultural por detrás desta pergunta?

Atualmente, creio na seguinte resposta: Aceitar que o corpo humano está vivo
e que a fluidez de sua vitalidade pode ser modificada por estímulos provocados
pelas agulhas, foi uma mudança no sistema de crença de nossa cultura mais
simples de operar que a requisitada pelo Feng Shui 風 水, que colocamos aqui de
uma forma simples. O planeta é vivo e sua vitalidade pode ser harmonizada,
dinamizada e cultivada. Os antigos Daoístas percebiam o cosmos como uma
totalidade integrada, permeada por Qi , força vital, que a tudo anima e interliga. É
justamente esta cosmovisão que ainda soa estranha à nossa cultura.

Mas, este é o ponto de partida do Feng Shui 風 水. Uma força vital onipresente
que deve ser cultivada e dinamizada para que o homem possa experimentar a
plenitude de sua vitalidade. Neste sentido o Feng Shui 風 水 é tanto parte de um
sistema de sáude quanto a acupuntura ou os fitoterápicos. De fato, para os
Daoístas, a vida pode e deve ser harmonizada nas seguintes dimensões:

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1) Harmonia Interna – Cultivar simultâneamente as dimensões física,


emocional e mental do ser humano individualizado, sendo óbvio, para
a tradição Daoísta, que são indissociáveis.

2) Harmonia da relação Microcosmos-Macrocosmos – Cultivar a


vitalidade nas relações do ser individualizado com o cosmos,
imediatamente presente nas relações com o planeta (ecologia,
habitação, agricultura, etc...) e com a sociedade, o grande corpo da
humanidade.

Sendo o Feng Shui 風 水 a parte do sistema especializada em harmonizar


estas dimensões a partir da relação do homem com o seu ambiente.

As Escolas de Feng Shui 風 水

A cultura Chinesa apresenta um traço peculiar em sua relação com a


construção do conhecimento: a princípio, aquilo que é mais antigo tem mais valor.
Esta postura frente ao conhecimento faz com que o antigo não seja “descartado”
diante do novo. Ao contrário do Ocidente, onde o novo é sempre uma superação do
antigo, e por isto deve substituí-lo, na China, o novo integra-se ao antigo em um
movimento inclusivo e sintético. Assim, o Feng Shui 風 水 contemporâneo sintetiza
saberes e práticas construídos em alguns milênios de história, tendo ocorrido
mudanças na ênfase da aplicação do conhecimento.

Por exemplo, na alta antiguidade, a nocão de ancestralidade, relação


adequada entre os membros de uma família, era considerado um importante fator na
determinação de estados de harmonia ou desarmonia da vida. O clã, ou a família,
era composta por membros vivos e mortos. Os primeiros eram considerados sua
parte Yang 陽 (ativa, luminosa), e os últimos a parte Yin 陰(em repouso, obscura). A
harmonia da relação entre a parte Yang 陽, viva e Yin 陰, morta, poderia e deveria
ser proporcionada e mediada por rituais adequados de passagem e instalação do
mundo dos vivos ao dos mortos. Neste contexto, a escolha da posição da
“residência dos mortos”, os túmulos, era um fator determinante para que se
tornassem simultaneamente um local de repouso e transformação para os mortos e
uma fonte de vitalidade para os vivos. Mais tarde, a ênfase mudou para a aplicação
nas casas dos vivos sendo nomeada de Tu Zhai Shu 圖 宅 術 (arte de planejar
residências), onde o método privilegiado era a escolha da posição da porta de
entrada de acordo com a teoria das cinco fases. Outros aspectos que passam a

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receber mais atenção são as características do entorno geológico das residências


tais como a forma das montanhas, as correntes de água e de vento, passando então
a ser chamada de Feng Shui 風 水 (Vento-Água).

A sinologista Kohn (2005) distingue três escolas principais na atualidade: a


escola da Forma, a escola do Compasso e a escola Intuitiva. A escola da forma
enfatiza a leitura e harmonização da força vital, através de sua relação com as
formas do ambiente e da residência. Utiliza a noção das cinco fases aplicadas aos
desenhos de ambos, buscando a relação ideal. Por exemplo, montanhas
arredondadas indicariam a fase terra, enquanto montanhas pontudas, a fase fogo.
Os locais mais adequados para construção de residências devem mostrar a
presença das cinco fases. Também são consideradas as influências de ambientes
sociais, sendo harmônico dispor a casa perto de parques, jardins, templos e escolas,
e desaconselhável posicioná-la perto de hospitais, estações elétricas ou prisões. A
escola também procura incluir em suas avaliações a presença das “artérias da terra”
ou “veias do dragão”, locais privilegiados de passagem de energia no interior da
terra.

A Escola do Compasso tem este nome pois utiliza um gráfico chamado


compasso cósmico (Luo Pan) para apreensão e cálculo da atuação de forças
terrestres e celestes na residência, tais como os oito trigramas, os ciclos de
sessenta anos, as 28 mansões lunares e as 24 estações solares. É considerada
uma das formas mais complexas de Feng Shui 風 水 por combinar elementos
astrológicos, oraculares e das formas geológicas das residências, trabalhando
implicitamente com a noção de Ming 命, destino. Para esta escola a residência
armazena uma qualidade específica de energia relacionada aos padrões
astrológicos de seu ano de construção, sendo necessária uma adequação destas
qualidades às características pessoais dos residentes, conferidas também por suas
cartas astrológicas. A Escola enfatiza a organização interna das residências
segundo a estrutura do Ba Gua 八 卦, o bem conhecido octógono onde estão
dispostos os oito trigramas, representando qualidades energéticas da força vital.
Deve-se identificar as oito regiões da residência, para em seguida conjugá-las com
um tipo de arte decorativa, construindo os ambientes com móveis, cores e objetos
afins com a qualidade daquela região.

Finalizando, e diferente das escolas anteriores, a chamada Escola Intuitiva não


privilegia um aspecto do corpo de conhecimento tal como as formas ou o Ba Gua 八
卦, mas sim, a habilidade do praticante em sentir, apreender e compreender os

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fluxos vitais da residência e de seu entorno geográfico de uma forma direta, pela
interação consciente do seu corpo com o ambiente, privilegiando a consciência
humana desperta como um fator fundamental na leitura e organização da vitalidade
do ambiente.

7 – Alquimia Externa (Wai Dan 外 丹) – Elixires, Fármacos e Nutrição

O termo Wai Dan 外 丹 é traduzido como “elixir externo”. Este ramo das Artes
Daoístas, em seu aspecto mais profundo, é considerado a contraparte externa do
Nei Dan 內 丹, alquimia interna. Porém, se nesta última o complexo corpo-mente
humano era o espaço de produção do elixir interno, no Wai Dan 外 丹 a busca pela
compreensão dos princípios de funcionamento do cosmos era praticada no
laboratório externo (Dan Wu 丹 屋 , a câmara de elixires), um espaço de
processamento e consumo de substâncias que seriam capazes de conferir ao
alquimista o conhecimento da natureza e das propriedades de cada parte do
cosmos, desde seus aspectos materiais mais densos até os níveis mais sutis de
consciência.

Como em toda civilização antiga onde se desenvolveu a alquimia, o


processamento e consumo de metais era parte fundamental da obra alquímica,
incluindo o ouro e o mercúrio. O consumo de mercúrio é considerado altamente
tóxico ao corpo humano, porém, segundo os alquimistas, após passar por diversas
transformações estas propriedades poderiam ser controladas ou anuladas.

Porém, não eram apenas os metais as substâncias preparadas. No


pensamento alquímico cada reino da natureza tem uma qualidade que representa
um estágio do desenvolvimento do cosmos. Como o alquimista deveria percorrer
todos os estágios, envolvia-se com o preparo de substâncias de todos os tipos,
vegetais, animais, minerais (pedras e metais).

Para alguns Daoístas eminentes como Ge Hong 葛 洪 , o consumo de


substâncias externas era essencial para alcançar os graus mais elevados de Xian 仙
, imortalidade, e mesmo considerando esta afirmação exagerada, nota-se até o
presente que o uso de substâncias externas constitui uma importante forma de
auxílio ao cultivo da vitalidade.

Os alquimistas externos deixaram como legado a descrição precisa da ação de


diversas substâncias no corpo humano, segundo a morfologia e dinâmica vital
Daoísta. Ou seja, descrevem o órgão e o meridiano que a substância atinge, sua
temperatura e sabor, e o movimento energético que provoca dentro dos canais.

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Além disto os alquimistas deixaram um conjunto de técnicas de preparo de


substâncias para assegurar resultados otimizados no consumo. Ainda, nos tempos
clássicos as substâncias eram utilizadas em três níveis distintos: 1) Cura de
enfermidades; 2) Cultivo de vitalidade; 3) Busca por imortalidade. Esta categorização
é apresentada no livro intitulado Shen Nong Ben Cao Jing 神 農 本 草 經, um tratado
intermediário entre alquimia e medicina.

Desta forma, a alquimia externa influenciou a Medicina Chinesa, conferindo-lhe


seus fundamentos teóricos e experimentais de farmacologia, sendo que os diversos
fitoterápicos que encontramos hoje em locais onde a Medicina Chinesa é praticada
são produtos do conhecimento dos alquimistas externos. Ainda, cabe salientar que
os limites entre fármaco e alimento não são muito rígidos nesta área. Temos por
exemplo, o gergelim como um alimento fundamental, que é utilizado em fórmulas
fitoterápicas, ou, por outro lado, raízes tonificantes como o ginseng, utilizado no
preparo de receitas culinárias.

No contexto atual das Artes Daoístas no mundo ocidental, podemos dizer que
este ramo compreende a arte de ingerir, ou seja, como selecionar, preparar e ingerir
as substâncias necessárias para promover cura de enfermidades e dar suporte ao
desenvolvimento do processo alquímico.

Neste sentido, há alguma distinção entre alimentos comuns e os “super-


alimentos”. Os primeiros são preparados e utilizados na cozinha do cotidiano,
considerada uma versão básica da “câmara dos elixires”, e podem ser utilizados
para estimular a cura de enfermidades e para promover a vitalidade. Como exemplo
do primeiro caso podemos ver uma receita de bolo de castanhas para ajudar em
diarréias e no segundo caso, temos as receitas dos “banquetes de longevidade” que
compõem os cardápios da culinária chinesa contemporânea.

Por sua vez, os super-alimentos, um dos nomes dados às substâncias que


promovem vitalidade e longevidade são mais raros e não fazem parte da culinária
cotidiana. São raízes como o ginseng, fungos como o fu ling, flores, sementes,
cascas de árvores e produtos animais. Este produtos precisam de um tipo de
processamento específico que envolve preparo de decocção, extração alcoólica, ou
trituração antes de serem consumidos.

O consumo de metais não é mais utilizado no contexto atual das Artes


Daoístas, mas, a adequada seleção e preparo de alimentos e substâncias que
promovam a vitalidade e longevidade continua sendo um de seus aspectos
fundamentais.

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8 – Artes (Música, Caligrafia, Pintura, Escultura, Teatro, Cinema)

Agrupa-se neste último ramo das Artes Daoístas o que é convencionalmente


chamado de Arte em nossa cultura, como a música, a caligrafia, a pintura, a
escultura e o teatro. Porém, dentro do contexto Daoísta, estas Artes proporcionam
caminhos de cultivo da vitalidade. Vejamos, por exemplo, a caligrafia. O objetivo de
sua prática não é apenas a busca pela estética na escrita. O caminho da escrita
fundamenta-se na noção de estudo de símbolos. As escritas arcaica ou clássica
chinesa são essencialmente simbólicas, ou seja, não existem letras que
representem sons sem significados. As palavras são compostas por imagens que
condensam em si diversos significados. Os Daoístas pensavam que a escrita, o
desenho de um símbolo, seria capaz de “invocar” a força representada.

Assim, o primeiro nível do caminho da escrita seria uma forma de apreender os


sentidos e significados das concepções condensadas no símbolo, e um nível um
pouco mais profundo, seria utilizar o símbolo, através do próprio processo da escrita,
como uma forma de entrar em contato direto, sem utilização do aspecto racional da
mente, com as forças, qualidades ou personalidades representadas pelos símbolos.

A música Daoísta é fundamentada numa escala pentatônica, onde cinco notas


básicas representam as cinco fases (água, madeira, fogo, terra, metal), compondo a
melodia através das leis de geração e controle destas fases. A construção de uma
música segue modelo análogo à vida. Desta forma, a musica era utilizada em
diversos campos além do “entretenimento”. Basicamente, tratava-se de utilizar o
poder de harmonização que o som exerce sobre a força vital (Qi 氣 ). Assim,
encontram-se descrições das relações de pontos de acupuntura e meridianos com
determinadas notas musicais, que teriam a capacidade de influenciá-los, ou,
composições musicais que buscam harmonizar uma determinada fase. Ainda, a
música era utilizada com fins de suporte e indução de estados meditativos.

Uma outra arte de grande importância na antiguidade era a chamada Shen


Hua 神 話. O termo traduzido literalmente significa contos dos espíritos e se referem
ao que denominamos hoje da arte de contar estórias. Mas neste caso, da arte de
repassar oralmente os mitos que fundamentam a cultura e os modelos ideais de
conduta. Esta arte era essencialmente conectada a Mitologia, ou, de fato, poderiam
ser consideradas apenas uma.

Atualmente pode-se considerar que o cinema e o teatro tenham tomado o


espaço do contador de histórias em sua função de reproduzir os mitos que movem e
modelam a sociedade, confirmando a importância da função.

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Considerações Finais

Uma das idéias expressas pelo Ba Gua 八 卦 é a complementaridade entre as


forças fundamentais que animam o cosmos, expressas pelos símbolos dos oito
trigramas. Segundo o Yi Jing 易 經 estas forças combinam-se em pares para formar
os 64 hexagramas, modelos para o desdobramento da vida, as mutações. O Ba Gua
八 卦 é tido pelos Daoístas como um símbolo onde se condensa uma espécie de
código organizador da vida. Assim, nossa proposta de utilizá-lo como um símbolo
para organização das práticas, tidas como ferramentas para o desdobramento da
vida, fundamenta-se na noção de Ming 命 , o mandato celeste, tido como um
conjunto de potenciais singulares que devem ser atualizados no mundo. A partir de
experiência pessoal como professor, noto que as pessoas apresentam aversões e
predileções por determinados grupos de práticas. Penso que estas predileções
podem ser, por um lado positivo, uma ressonância com o grupo de práticas mais
adequadas para o desenvolvimento de seus potenciais internos e sua conseqüente
atualização. Por outro lado, as aversões podem frequentemente ser lidas como
resistências ao processo de transformação que a prática incita, ou, simplesmente
uma ausência de ressonância com aquela prática, ou seja, uma percepção mais
profunda de que não há potencial a ser desenvolvido naquele campo. Desta forma,
uma pessoa cujo Ming 命 esteja relacionado à expressão corporal ou combate irá se
envolver com o cultivo das artes do segundo grupo, enquanto uma pessoa cujo Ming
命 esteja relacionado à cura irá se envolver com o estudo e prática das Artes do
quarto e sétimo segmentos. Penso que a adequação a um grupo de práticas em
intensidade e qualidade é um processo contínuo de adequação feito na relação
entre o professor e o aluno, na medida do desenvolvimento do Ming 命 do aluno.

Apresentamos a seguir uma proposta de leitura qualitativa dos grupos de


práticas através dos sentidos e significados dos trigramas. Convém salientar que tal
proposta foi apresentada por Chang (2001) na literatura Daoísta contemporânea,
porém, o agrupamento das Artes proposto pelo autor é bastante distinto do nosso, e
em nenhum momento o autor apresenta uma associação qualitativa dos sentidos e
significados dos trigramas aos grupos de saberes. Ainda, salientamos que até o
presente momento não encontramos classificação semelhante em textos clássicos
Daoístas. Porém, em experiência de aprendizagem pessoal, recebi por transmissão

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oral classificações semelhantes utilizadas por instituições fundadas por Daoístas de


linhagem monástica10.

A classificação foi proposta em função das qualidades dos trigramas e fases


apresentadas por Karcher (2003). Nesta obra o autor propõe resgatar os sentidos e
significados originais do Yi Jing 易 經. Por fim, reiteramos que do nosso ponto de
vista, a Alquimia Interna fornece a estrutura para o cultivo vertical dos outros ramos,
devendo ser cultivada por todos os praticantes que buscam o aprofundamento.

1 – Alquimia Interna - Nei Dan Gong 內 丹 功.

Trigrama Associado: Qian (Céu)

Fase Associada: Metal

Atributos: Uma dos atributos de Qian é o poder de orientar. Neste sentido


associamos Qian à função de orientação em profundidade da vida conferida pela
prática da Alquimia Daoísta. Ainda, a força criativa que provém de Qian está
associada ao cumprimento de Ming 命, o mandato celeste.

Qian é um trigrama associado à fase metal, ou melhor, ao ouro, tido como o


produto final da alquimia metálica. Um dos nomes antigos da alquimia Daoísta era
Jin Dan 金 丹, ou a prática do elixir de ouro. O ouro como símbolo das forças
celestes condensadas na terra. Propósito das práticas alquímicas.

Palavras Chave: Ouro como símbolo da condensação das forças celestes.

2- Qi Gong, Tai Ji Quan (Artes Marciais), Danças Sagradas

Trigrama Associado: Dui (Lago)

Fase Associada: Metal

Atributos: As práticas de Qi Gong 氣 功, são fundamentadas na respiração. No


cultivo do fluxo de força vital através da respiração. O trigrama Dui representa os
pulmões em sua capacidade de captar a força vital celeste e traze-la para dentro do
corpo. Representa as trocas entre o ser e seu ambiente, incentivadas pela prática do
Qi Gong 氣 功. Por sua vez, as Artes Marciais são diretamente associadas à fase
metal, que representa, entre outros, os armamentos, o serviço militar e a força
marcial. Era comum na China Antiga receber uma convocação para a guerra com a
imagem de um tigre, símbolo do metal, no documento de convocação.

10
Especialmente a escola fundada pelo professor Share K. Lew, sediada em San Diego,
Califórnia (http://www.jadedragon.com/archives/lew.html). Recebi tal classificação do
professor Jeff Nagel, desta mesma escola.

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Palavras- Chave: Excitação, movimentação, captação e concentração de força


vital.

3- Cosmologia, Yi Jing, Astrologia, Mitologia. (“Filosofia Daoista”)

Trigrama Associado: Li (Fogo)

Fase Associada: Fogo

Atributos: O fogo é símbolo para a consciência e para a clareza que provém


desta. Os Daoistas também denominam a fase fogo de “o nomear”, referindo-se ao
ato de dar identidade as coisas do mundo através do nome. O Fogo também
representa a capacidade de compreensão e atribuição de sentidos à vida.
Atribuímos a este grupo o trigrama fogo, pois é o grupo de organização e
compreensão do processo de desenvolvimento da vida, e também, de orientação e
auto-conhecimento através dos oráculos e mitos que re-orientam o sentido da vida.

Palavras- Chave: Nomear, interpretar, modelos de pensamento e sistemas de


crença.

4 - Artes de Cura (Acupuntura, Massagem, Moxabustão)

Trigrama Associado: Zhen (Trovão)

Fase Associada: Madeira

Atributos: Os atributos de Zhen que se associam à cura são essencialmente a


capacidade de renovar, reiniciar e expurgar as forças vitais perversas. Atribui-se o
poder do exorcismo ao trigrama trovão. O exorcismo é pensado como a capacidade
de expurgar forças maléficas, ou forças vitais degeneradas. Se pensarmos o
adoecimento como acúmulo destas forças, Zhen demonstra qualidades de um dos
aspectos das Artes de Cura.

Palavras- Chave: Renovação, exorcismo, expurgo do perverso.

5 - Sexologia

Trigrama Associado: Kan (Agua)

Fase Associada: Agua

Atributos: Os atributos de Kan são associados à vida e a morte. Representa


por um lado a morte como o recolhimento da força vital e o início da vida, com a
disponibilidade irrestrita de potencial. Representa também o poder para atualização
de seus potenciais em potências e a realização de Ming 命, o mandato celeste.
Ainda, a fase água é relacionada à sexualidade, à potencia sexual e à essência Jing

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精, como força capaz de gerar uma nova vida. Assim, vemos a sexologia Daoísta
como a principal forma de desenvolvimento dos aspectos de Kan.

Palavras- Chave: Essência, matéria, potência sexual, fluidos e sexualidade.

6 - Feng Shui – Arquitetura da Vida

Trigrama Associado: Gen (Montanha)

Fase Associada: Terra

Atributos: Os atributos de Gen são a capacidade de criar limites, de conter, a


quietude, e a solidez. Pensamos o Feng Shui como a arte de “criar montanhas” para
o ser humano. Espaços onde possa estar quieto e em segurança, com sua força
vital contida e trânsito limitado. É a arte de organizar o espaço da terra (fase terra)
de acordo com as forças celestes, outro aspecto da montanha, vista como um ponto
de contato entre o céu e a terra.

Palavras- Chave: Espaço, organização do espaço, locação, limitação,


quietude, segurança.

7 – Alquimia Externa (Wai Dan 外 丹) – Elixires, Fármacos e Nutrição

Trigrama Associado: Kun (Terra)

Fase Associada: Terra

Atributos: Os atributos de Kun são: servir, render-se e nutrir. Nutrir com o


sentido de dar suporte à manifestação das formas e também alimentação. O Wai
Dan pode ser pensado como a capacidade de despertar a força celeste dentro dos
produtos da terra, a fim de criar e nutrir corpos saudáveis.

Palavras- Chave: Nutrir, incorporar

8 – Artes (Música, Caligrafia, Pintura, Escultura, Teatro, Cinema)

Trigrama Associado: Sun (Vento)

Fase Associada: Madeira

Atributos: Os atributos de Sun são a comunicação a penetração e as


conexões. A fase madeira representa a expansividade e a expressividade, inclusive
artística. É a criação de formas a partir dos potenciais da água e sua expressão. Em
seu aspecto funcional e sagrado, a arte conecta o corpo da sociedade e expressa as
formas do cosmos. Como modelos operativos para o microcosmos do ser humano.

Palavras- Chave: Comunicação, expressão, criatividade, semear.

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