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Devemos Defender a Democracia?


F. A. Hayek (tradução de Guilherme Cintra)

N. do T: O seguinte artigo de Hayek foi publicado sob o título de Whither Democracy? [literalmente:
Para onde Democracia?], e apareceu inicialmente como uma palestra em 1976. Hayek faz uma análise
e crítica dos sistemas de democracia contemporâneos e propõe uma reforma para eles de acordo com
seus princípios políticos por ele defendidos e expostos em suas obras. Tanto em questões teóricas
quanto práticas, esse artigo toca em elementos importantes do pensamento de Hayek.

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O conceito de democracia possui um significado – eu acredito ser o significado verdadeiro e original – que
considero um grande valor pelo qual é importante lutar. A democracia não provou ser uma proteção garantida
contra a tirania e a opressão, como uma vez se esperava. Apesar disso, como uma convenção que permite
qualquer maioria livrar-se de um governo que não gosta, a democracia é de um valor inestimável.

Por essa razão, estou cada vez mais incomodado pela contínua perda de fé na democracia entre pessoas
pensativas. Isso não pode mais ser ignorado. Está se tornando sério justamente quando – e talvez parcialmente
porque – a palavra mágica democracia se tornou tão todo-poderosa que todas as limitações inerentes ao poder
governamental estão se desmoronando perante ela. Frequentemente, parece que a soma das demandas que são
hoje em todo lugar defendidas em nome da democracia amedrontou tanto pessoas justas e razoáveis que uma
reação séria contra a democracia, como tal, é um perigo real. Porém, não é a concepção básica da democracia,
mas conotações adicionais que foram no decurso do tempo anexadas a um tipo particular de processo de
decisão, que hoje ameaçam a crença em uma democracia tão ampliada em conteúdo. O que está ocorrendo é,
na realidade, precisamente o que alguns pensadores do século XIX recearam sobre a democracia. O método
sadio de alcançar decisões políticas amplamente aceitáveis se tornou o pretexto de compelir objetivos
substancialmente igualitários.

O advento da democracia no último século trouxe uma mudança decisiva no alcance dos poderes
governamentais. Por séculos, esforços foram direcionados à limitação dos poderes do governo; e o
desenvolvimento gradual das constituições serviu nenhum outro propósito a não ser isso. De repente, pensou-
se que o controle do governo por representantes eleitos de uma maioria tornava qualquer outra limitação aos
poderes do governo desnecessária, de modo que todas as várias salvaguardas constitucionais que têm sido
desenvolvidas no decurso do tempo poderiam ser dispensadas. E assim nasceu a democracia ilimitada – e é a
democracia ilimitada, não democracia, que é o problema de hoje. Toda democracia que nós conhecemos hoje
no Ocidente é mais ou menos democracia ilimitada. É importante lembrar que, se as instituições peculiares da
democracia ilimitada que temos hoje ultimamente se provarão uma falha, isso não precisa significar que a
democracia em si mesma foi um erro, mas apenas que nós a tentamos da maneira errada. Enquanto
pessoalmente eu acredito que a decisão democrática em todas as questões sob as quais existe um acordo geral
que alguma ação governamental é necessária seja um método indispensável de mudança pacífica, eu também
sinto que uma forma de governo na qual qualquer maioria temporária possa decidir que qualquer questão que
ela gosta deva ser considerada ‘matéria comum’ sujeita a seu controle é uma abominação.
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A maior e mais importante limitação sobre os poderes da democracia, que foi varrida pela ascensão de uma
assembleia representativa onipotente, era o princípio da ‘separação dos poderes’. Nós devemos ver que a raiz
do problema é que os tão chamados ‘legislativos’, que os antigos teóricos do governo representativo (e
particularmente John Locke) conceberam como limitados a fazerem leis em um sentido bastante específico e
estreito da palavra, têm se tornado corpos governamentais onipotentes. O antigo ideal do ‘Rule of Law’, ou do
‘Governo dentro da Lei’, foi, desse modo, destruído. O Parlamento ‘soberano’ pode fazer o que quer que os
representantes da maioria achem expediente fazer a fim de manterem o apoio da maioria.

Mas chamar ‘lei’ tudo que os representantes eleitos da maioria decidem, e descrever como ‘Governo dentro da
Lei’ todas as diretrizes decretadas por eles – independentemente de quão discriminatórias em favor de, ou em
detrimento de, alguns grupos de indivíduos – é uma piada muito ruim. Na verdade, isso é governo arbitrário e
sem lei. É apenas um jogo de palavras alegar que, enquanto a maioria aprova os atos do governo, o Estado de
Direito está preservado. O Estado de Direito era considerado como uma salvaguarda da liberdade individual
porque ele significava que a coerção era permissível apenas para compelir obediência a regras gerais de conduta
individual igualmente aplicáveis a todos em um número desconhecido de instâncias futuras. Opressão arbitrária
– a saber, coerção não definida por qualquer regra dos representantes da maioria – não é melhor do que ação
arbitrária por qualquer outra regra. Se essa regra requer que alguma pessoa odiada deva ser fervida e torturada,
ou que sua propriedade seja tomada, não há diferença. Embora haja boas razões para preferir o governo
democrático limitado a um governo não-democrático, eu devo confessar preferir um governo não-democrático
dentro da lei a um governo democrático ilimitado (e portanto essencialmente sem lei). O governo dentro da lei
parece, para mim, ser o maior valor, o qual uma vez se esperava que os defensores da democracia iriam
preservar.

Eu de fato acredito que a sugestão de uma reforma, para a qual minha crítica das atuais instituições da
democracia irá levar, resultaria em uma concretização da opinião comum da maioria dos cidadãos mais
verdadeira do que os arranjos presentes que servem à gratificação da vontade dos grupos de interesse separados
que se somam para formar uma maioria.

Não se sugere que a reivindicação dos representantes eleitos do povo para terem uma palavra decisiva na
direção do governo seja de qualquer forma menos importante do que a demanda para determinar o que a lei
deve ser. A grande tragédia do desenvolvimento histórico é que esses dois poderes distintos foram colocados
nas mãos de uma única e mesma assembleia, e que o governo consequentemente cessou de ser sujeito à lei. A
triunfante alegação do Parlamento Britânico de ter se tornado soberano, e assim ser capaz de governar sem
estar sujeito a qualquer lei, pode se provar tendo sido o anúncio da morte tanto da liberdade individual quanto
da democracia.

Esse desenvolvimento pode ter sido historicamente inevitável. Certamente, ele não é logicamente convincente.
Não é difícil imaginar como o desenvolvimento poderia ter ocorrido em diferentes linhas. Quando no século
XIX a Câmara dos Comuns reivindicou de forma bem sucedida o poder exclusivo sobre o erário público, dessa
forma ela ganhou, com efeito, o controle exclusivo sobre o governo. Se, nesse tempo, a Câmara dos Lordes
estivesse em posição de conceder isso na condição de que o desenvolvimento do direito (ou seja, a lei privada
e criminal que limita os poderes de todo governo) devesse ser exclusivamente sua preocupação – um
desenvolvimento não anti-natural com a Câmara dos Lordes sendo a maior corte do direito – tal divisão entre
uma assembleia governamental e uma assembleia legislativa poderia ter sido alcançada e uma restrição ao
governo pela lei preservada. Politicamente, entretanto, era impossível conferir tal poder legislativo aos
representantes de uma classe privilegiada.
As formas prevalecentes de democracia, nas quais o soberano representativo da assembleia por um lado e ao
mesmo tempo cria leis e direciona o governo, devem sua autoridade a uma ilusão. Esta é a crença devota de
que o governo democrático irá obedecer à vontade da maioria. Isso pode ser verdade sobre os legislativos
democraticamente eleitos no sentido estrito de criadores da lei, no sentido original do termo. Ou seja, isso pode
ser verdade quanto a assembleias eleitas cujo poder está limitado a estabelecer regras universais de justa
conduta, designadas a delimitar os domínios de controle dos indivíduos em suas interações entre si, e
direcionadas a aplicar a um número desconhecido de instâncias futuras. Sobre tais regras que governam a
conduta individual, que previnem conflitos nos quais a maioria das pessoas pode se encontrar, é provável que
uma comunidade forme uma opinião predominante, e que um acordo exista entre os representantes da maioria.
Uma assembleia com tal tarefa definida e limitada tem, portanto, tendência a refletir a opinião da maioria – e,
estando preocupada apenas com regras gerais, tem poucos motivos para ser reflexo da vontade de interesses
particulares em questões específicas.

Mas o fornecimento de leis nesse sentido clássico da palavra é a última parte das tarefas das assembleias que
ainda chamamos de ‘legislativos’. Sua maior preocupação é o governo. Para as regras gerais de justa conduta
ou a ‘lei do advogado’, como escreveu um observador perspicaz do Parlamento Britânico há mais de setenta
anos, ‘o parlamento não possui tempo nem vontade’. O quanto as atividades, o caráter e os métodos das
assembleias representativas em todo lugar são realmente determinados por suas tarefas governamentais mostra-
se pelo fato de que seu nome ‘legislativo’ não mais se deriva de elas decretarem leis. A relação de fato se
inverteu. Hoje nós chamamos praticamente toda resolução dessas assembleias de leis, apenas porque estas
derivam de um legislativo – independentemente de elas terem aquele caráter de um cometimento a uma regra
geral de justa conduta, a cuja aplicação os poderes coercitivos do governo eram presumíveis serem limitados
em uma sociedade livre.

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Mas, como cada resolução dessa autoridade governamental soberana possui ‘força da lei’, suas ações
governamentais também não estão limitadas pela lei. Nem podem elas, e isso é ainda mais sério, pretender
serem autorizadas pela opinião de uma maioria do povo. Na verdade, as bases para apoiar os membros de uma
maioria onipotente são completamente diferentes daquelas para apoiar uma maioria sobre a qual as ações de
um verdadeiro legislativo se baseiam. Votar para um legislador limitado é escolher entre maneiras alternativas
de assegurar uma ordem geral que resulta das decisões de indivíduos livres. Votar para um membro de um
corpo com poderes para conferir benefícios especiais, sem ele mesmo ser sujeito a regras gerais, é algo
inteiramente diferente. Em tal assembleia democraticamente eleita com poderes ilimitados para conferir
benefícios especiais e impor encargos especiais a grupos particulares, uma maioria pode ser formada apenas
pela compra do suporte de numerosos interesses especiais, fornecendo-lhes tais benefícios às custas de uma
minoria.

É fácil ameaçar a retirada da adesão até mesmo a regras gerais que se aprova se seu voto é pago por concessões
especiais a algum grupo. Em uma assembleia onipotente, as decisões, portanto, baseiam-se em um processo
legalizado de chantagem e corrupção. Isso por muito tempo tem sido reconhecido como parte do sistema, do
qual até mesmo os melhores não podem escapar.

Tais decisões em favor de grupos particulares têm pouco a ver com qualquer acordo da maioria sobre a
substância da ação governamental, já que em grande parte dos casos os membros da maioria não saberão muito
a não ser que concederam a alguma agência poderes mal-definidos para alcançar algum objetivo mal-definido.
A respeito da maior parte das medidas, a maioria dos eleitores não terá qualquer razão para ser a favor ou
contra, a não ser que eles saibam que, em troca do apoio aos seus defensores, é prometida a satisfação de
algumas de suas vontades. É o resultado desse processo de barganha que é dignificado como a ‘vontade da
maioria’.
O que chamamos de ‘legislativos’ são de fato corpos decidindo continuamente sobre medidas particulares, e
que autorizam coerção para sua execução, sobre as quais nenhum acordo genuíno entre a maioria existe, mas
para as quais o suporte de uma maioria têm sido obtido por barganhas. Em uma assembleia onipotente que
está preocupada principalmente com particularidades e não com princípios, as maiorias não são, portanto,
baseadas no acordo sobre opiniões, mas são formadas pela aglutinação de interesses especiais que se auxiliam
mutuamente.

O fato aparentemente paradoxal é que uma nominalmente assembleia todo-poderosa – cuja autoridade não é
limitada a, ou não se baseia no cometimento a, regras gerais – é por necessidade exageradamente fraca e
completamente dependente do suporte daqueles grupos fragmentados que estão sujeitos a se manterem por
meio de presentes sob o comando do governo. A imagem da maioria de tal assembleia unida por convicções
morais comuns avaliando os méritos das alegações de grupos particulares é claramente uma fantasia. Ela é uma
maioria apenas porque se comprometeu não em princípios, mas em satisfazer reivindicações particulares. A
assembleia soberana é qualquer coisa a não ser soberana no uso de seus poderes ilimitados. É um pouco
estranho que o fato de que ‘todas as democracias modernas’ decidiram isso ou aquilo é muitas vezes citado
como prova da desejabilidade ou da justiça de alguma medida. A maior parte dos membros da maioria muitas
vezes sabe que uma medida foi estúpida e injusta, mas eles têm que consentir com ela a fim de permanecerem
membros de uma maioria.

Um legislativo ilimitado que não é proibido por convenção ou provisões constitucionais de decretar medidas
específicas e discriminatórias de coerção, tais como tarifas ou impostos ou subsídios, não pode evitar agir de
tal maneira desprovida de princípios. Embora algumas tentativas inevitavelmente são feitas para disfarçar essa
compra de apoio como uma assistência benéfica aos que merecem, a pretensão moral dificilmente pode ser
levada a sério. Um acordo de uma maioria sobre como distribuir os espólios que ela extorque de uma minoria
dissidente dificilmente pode reivindicar qualquer sanção moral para seus procedimentos – mesmo se ela invoca
a ficção da ‘justiça social’ para defendê-los. O que ocorre é que necessidades políticas criadas pelos
estabelecimentos institucionais existentes produzem crenças morais inviáveis ou até mesmo destrutivas.

Um acordo da maioria na repartição do espólio ganhado pela opressão de uma minoria de concidadãos, ou na
decisão do quanto deve ser tomado deles, não é democracia. Pelo menos isso não é o ideal de democracia que
possui qualquer justificação moral. A própria democracia não é igualitarismo. Mas a democracia ilimitada está
sujeita a se tornar igualitária.

A respeito da imoralidade fundamental de todo igualitarismo, pontuarei aqui apenas o fato de que toda nossa
moral se baseia nas diferentes estimas nas quais julgamos as pessoas de acordo com a maneira na qual elas se
comportam. Enquanto a igualdade perante à lei – o tratamento de todos pelo governo de acordo com as mesmas
regras – parece para mim ser uma condição essencial da liberdade individual, aquele tratamento diferente que
é necessário a fim de colocar as pessoas que são individualmente diferentes na mesma posição material me
parece não apenas incompatível com a liberdade individual, mas altamente imoral. Mas esse é o tipo de
imoralidade para a qual a democracia ilimitada está se movendo.

Repetindo, não é a democracia, mas a democracia ilimitada que eu não considero melhor do que qualquer outro
governo ilimitado. O erro fatal que deu poderes ilimitados à assembleia representativa eleita é a superstição de
que uma autoridade suprema por sua própria natureza deve ser ilimitada, porque qualquer limitação pressuporia
outra vontade sobre ela, em cujo caso ela não seria um poder supremo. Mas isso é uma falta de compreensão
que se deriva das concepções positivistas totalitárias de Francis Bacon e Thomas Hobbes, ou do construtivismo
do Racionalismo Cartesiano, que felizmente no mundo anglo-saxão foi contido pelo menos por um bom tempo
pelo profundo entendimento de Sir Edward Coke, Matthew Hale, John Locke e os Old Whigs.
Nesse sentido, os antigos eram de fato frequentemente mais sábios do que o pensamento construtivista
moderno. Um poder maior não precisa ser um poder ilimitado, mas pode dever sua autoridade ao seu
cometimento a regras gerais aprovadas pela opinião pública. O rei-juiz de antigamente não era selecionado
para que qualquer coisa que ele dissesse fosse correta, mas porque, e apenas enquanto, o que ele pronunciava
era em geral sentido como correto. Ele não era a fonte, mas meramente o intérprete de uma lei que se baseava
em uma opinião difusa, mas que poderia levar a ação apenas se articulada pela autoridade aprovada. E se apenas
a autoridade suprema poderia ordenar ação, isso meramente se estendia enquanto ela tivesse o suporte do
assentimento geral aos princípios nos quais ela agia. A única e maior autoridade encarregada de tomar decisões
sobre ações comuns pode bem ser uma autoridade limitada – limitada a decisões pelas quais ela se comete a
regras gerais que a opinião pública aprova.

O segredo do governo decente é precisamente que o poder supremo deve ser um poder limitado – um poder
que pode estabelecer regras limitando qualquer outro poder – e que assim pode restringir, mas não comandar,
o cidadão privado. Qualquer outra autoridade se baseia, dessa forma, ao cometimento a regras que seus
cidadãos reconhecem: o que gera uma comunidade é o reconhecimento das mesmas regras.

Desse modo, o corpo supremo eleito não precisa de qualquer outro poder a não ser o de estabelecer leis no
sentido clássico de regras gerais que guiam a conduta individual. Nem ele precisa ter qualquer poder de coagir
os cidadãos privados a não ser para gerar obediência a regras de conduta assim estabelecidas. Outros ramos do
governo, incluindo uma assembleia governamental eleita, deveriam estar restringidos e limitados por leis da
assembleia confiada à verdadeira legislação. Estes são os requerimentos que assegurariam um genuíno governo
dentro da lei.

A solução ao problema, como eu já havia sugerido, parece ser dividir as tarefas verdadeiramente legislativas
das tarefas governamentais entre assembleias legislativas e governamentais distintas. Naturalmente, pouco iria
ser ganho tendo-se apenas duas tais assembleias com características essencialmente iguais às das assembleias
atuais, e apenas encarregadas de tarefas diferentes. Não apenas as duas assembleias com essencialmente a
mesma composição agiriam em coalizão, produzindo desse modo os mesmos tipos de resultados das
assembleias existentes. Seu carácter, procedimentos e composição foram tão amplamente determinados por
suas tarefas governamentais predominantes que elas são pouco adequadas à legislação propriamente dita.

Nada é mais esclarecedor nesse sentido do que o fato de que os teóricos do governo representativo do século
XIX quase unanimemente condenavam uma organização do que eles conceberam como legislativo em linhas
partidárias. Eles frequentemente falavam de ‘facções’. Mas sua preocupação predominante com questões
governamentais fizeram sua organização em linhas partidárias universalmente necessária. Um governo, para
efetuar suas tarefas de forma bem sucedida, precisa do apoio de uma maioria organizada comprometida com
um programa de ação. E, para dar às pessoas uma opção, deve haver uma oposição similarmente organizada
capaz de formar um governo alternativo.

Para suas funções estritamente governamentais, os ‘legislativos’ existentes parecem ter ficado muito bem
adaptados e bem se pode permiti-los continuar em sua forma presente, se seu poder sobre o cidadão privado
fosse limitado por uma lei decretada por outra assembleia democrática que a assembleia anterior não poderia
alterar. A assembleia governamental iria, na realidade, administrar os recursos materiais e pessoais colocados
à disposição do governo para permiti-lo fornecer vários serviços aos cidadãos como um todo. Ela também
poderia determinar a quantidade agregada de receita para ser levantada dos cidadãos a cada ano para financiar
esses serviços. Mas a determinação da parcela de cada cidadão seria realizada por uma lei verdadeira; ou seja,
o tipo de regra de conduta individual obrigatória e uniforme que apenas a assembleia legislativa poderia
estabelecer. É difícil conceber um controle mais salutar aos gastos do que tal sistema em que cada membro da
assembleia governamental saberia que, para cada gasto que apoiasse, ele e seus eleitores teriam que contribuir
por meio de uma taxa que não pudessem alterar!

A questão crítica então torna-se a composição da assembleia legislativa. Como podemos, ao mesmo tempo,
torná-la verdadeiramente representativa da opinião geral sobre o que é certo, e ainda torná-la imune a qualquer
pressão de interesses especiais? Constitucionalmente, a assembleia legislativa seria limitada a passar leis gerais,
de modo que qualquer ordem específica ou discriminatória que ela decretasse seria inválida. Ela iria dever
autoridade a seu cometimento a regras gerais. A constituição definiria as propriedades que tal tipo de regra
deveria possuir para ser uma lei válida, tal como aplicação para um número desconhecido de instâncias futuras,
uniformidade, generalidade, e etc. Um tribunal constitucional gradualmente teria que elaborar essa definição
tanto quanto decidir qualquer conflito de competências entre as duas assembleias.

Mas essa limitação a passar leis genuínas dificilmente bastaria para prevenir conluio do legislativo com uma
assembleia governamental similarmente composta, para a qual seria provável que ele provesse leis que essa
assembleia necessitaria para seus propósitos particulares, com resultados pouco diferentes em relação aos do
presente sistema. O que queremos em uma assembleia legislativa é claramente um corpo representante da
opinião geral, e não de interesses particulares; e ela deveria, portanto, ser composta de indivíduos que, uma
vez confiados a sua tarefa, são independentes do apoio de qualquer grupo particular. Ela deveria também
consistir de homens e mulheres com uma visão de longo prazo e que não se deixassem balançar por modas e
paixões de uma multidão inconstante que devessem agradar.

Em primeira instância, isso parece requerer independência de partidos, e tal coisa poderia ser assegurada pela
segunda condição, independentemente necessária – a saber, não ser influenciada pelo desejo de re-eleição. Eu
imagino, por essa razão, um corpo de homens e mulheres que, depois de terem ganho reputação e confiança
nas buscas ordinárias da vida, fossem eleitos por um período único e longo de algo como 15 anos. Para
assegurar que tivessem ganho respeito e experiência suficientes, e que não precisariam se preocupar com
garantir seu sustento no período após seu mandato, eu fixaria a idade de eleição comparativamente alta,
digamos aos 45 anos, e os garantiria alguma carreira digna como juízes-leigos ou coisa similar por outros 10
anos, depois de expirar seu mandato aos 60. A média de idade do membro de tal assembleia, pouco menos do
que 53 anos, seria ainda menor do que a da maioria das assembleias similares atuais.

A assembleia, de fato, não seria eleita como um todo em uma única data, mas a cada ano aqueles que
completaram seu período de 15 anos seriam substituídos por pessoas com 45 anos. Eu favoreceria que essas
eleições anuais de um quinto dos membros fosse feita por pessoas de mesma idade (coetâneos), de forma que
cada cidadão votaria apenas uma vez em sua vida, com 45 anos de idade, para que um de seus coetâneos se
tornasse legislador. Isso me parece desejável não apenas por causa da antiga experiência em organizações
militares e similares de que os companheiros de mesma idade são os melhores juízes de seus caráteres e
habilidades, mas também porque provavelmente se tornaria uma oportunidade para o crescimento de certas
instituições como clubes etários locais, que tornariam eleições com base no conhecimento pessoal possíveis.

Já que não haveria partidos, naturalmente não haveria nenhuma bobagem sobre representação proporcional.
Coetâneos de uma região confeririam distinções como um tipo de prêmio para o mais admirado membro da
classe. Existem muitas outras questões fascinantes que um arranjo desse tipo levanta, tais como se, para esse
propósito, uma eleição indireta não seria preferível (com os clubes locais competindo pela honra de que um de
seus delegados fosse eleito representante), mas as quais não seria apropriado discutir em uma exposição do
princípio geral.
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Eu não acredito que políticos experientes acharão minha descrição do procedimento de nossos atuais
legislativos muito errada, embora provavelmente eles considerarão inevitável e benéfico o que para mim parece
evitável e prejudicial. Mas eles não deveriam se sentir ofendidos ao ouvir tal coisa ser chamada de corrupção
e extorsão institucionalizada, porque somos nós que mantemos as instituições que tornam necessário que eles
ajam assim para se manterem capazes de fazer qualquer bem.

Em certo sentido, o processo de barganha que descrevi é de fato provavelmente inevitável em


um governo democrático.

O que eu desaprovo é o fato de que as instituições prevalecentes levam isso ao corpo supremo que deveria
fazer as regras do jogo e restringir o governo. O infortúnio não é que essas coisas acontecem – na administração
local elas provavelmente não podem ser evitadas –, mas que elas acontecem naquele corpo supremo que tem
o poder de fazer nossas leis, presumível a nos proteger contra a opressão e a arbitrariedade.

Um outro efeito importante e bastante desejável de separar o poder legislativo do governamental seria que isso
eliminaria a principal causa da centralização acelerada e concentração de poder. Hoje, isso é resultado do fato
de que, como consequência da fusão do poder legislativo e governamental na mesma assembleia, esta possui
poderes que em uma sociedade livre nenhuma autoridade deveria possuir. Naturalmente, mais e mais tarefas
governamentais são empurradas para aquele corpo que pode obter demandas particulares ao fazer leis especiais
para esse propósito. Se os poderes do governo central não fossem maiores do que os dos governos regionais e
locais, apenas aquelas questões em que uma regulação nacional uniforme parecesse vantajosa a todos seriam
encarregadas ao governo central, e muito do que hoje é encarregado a ele seria delegado a unidades menores.

Uma vez que em geral se reconhece que o governo dentro da lei e os poderes ilimitados dos representantes da
maioria são inconciliáveis, e todo governo é igualmente colocado dentro da lei, pouco mais do que as relações
exteriores precisa ser encarregado ao governo central – distinto da legislação – e os governos regionais e locais,
limitados pelas mesmas regras uniformes no que diz respeito à maneira em que poderiam fazer seus cidadãos
individuais contribuírem para sua receita, se desenvolveriam em corporações quasi-comerciais competindo
entre si para atrair habitantes que poderiam votar com seus pés para a corporação que lhes oferecesse os maiores
benefícios comparados ao preço cobrado.

Dessa forma, nós ainda podemos ser capazes de preservar a democracia e ao mesmo tempo interromper o
movimento em direção ao que tem sido chamado de ‘democracia totalitária’, que já parece irresistível para
muitas pessoas.

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