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Mino Carta
Redator-chefe: Nirlando Beirão
Consultor editorial: Luiz Gonzaga Belluzzo
Editor especial: Mauricio Dias
Editores: Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa e Carlos Drummond
Repórter: Miguel Martins . Brasília: André Barrocal e Renan Truffi. Paris: Gianni Carta
Diretora de arte: Pilar Velloso
Chefes de arte: Estella Maris, George B. J. Duque Estrada (Fundador), Mariana Ochs (Projeto
Original)
Designer: Milena Branco
Fotografia: Mara Lúcia da Silva (Chefe de Produção) e Wanezza Soares (Produtora Editorial)
Revisores: Áli Onaissi (Coordenação) e Hassan Ayoub
Colaboradores:Afonsinho, Álvaro Machado, Antonio Delfim Netto, Carlos Leonam, Claudio
Bernabucci (Roma), Drauzio Varella, Eduardo Graça, Eduardo Nunomura, José Genulino
Moura Ribeiro, José Geraldo Couto, Jotabê Medeiros, Luiz Roberto Mendes Gonçalves
(Tradução), Marcio Alemão, Marcos Coimbra, Orlando Margarido, Pedro Alexandre Sanches,
René Ruschel, Riad Younes, Rogério Tuma, Rodrigo Casarin, Tárik de Souza, Thomaz Wood
Jr. e Wálter Fanganiello Maierovitch
Fotógrafos: Anna Carolina Negri, Carol Carquejeiro, Davi Ribeiro, Greg Salibian e Sergio
Amaral
Ilustradores: Cárcamo e Eduardo Baptistão
Assistente administrativo: Ingrid Sabino
Carta on-line
Editor-geral: José Antonio Lima
Editor executivo: Rodrigo Martins
Editora assistente: Tory Oliveira
Editor de vídeo: Tadeu Amaral
Editora de mídias sociais: Claúdia Belfort
Repórteres: Débora Melo, Gabriel Bonis e Thais Paiva
Analista de mídias sociais: Vitório Tomaz
Estagiários: Felipe Campos de Mello, Ingrid Yurie Paes Matuoka e Julia Leite
ÍNDICE
18 de Janeiro de 2017 - Ano XXIII - Nº 935
Cartas Capitais
"Foi a ausência do Estado que produziu essa violência cruel"
Brasiliana
O Haiti é aqui
Rosa dos ventos
A sonhadora Tia Carminha
Editorial
Resumo da ópera
A Semana
Sob o céu de Lisboa
Capa
Na desordem, a força do mal
Capa
O terror à espreita
Seu País Política exterior
A vocação de súdito
Seu País Violência
A ignorância sem diálogo
Economia Trabalho
A escravidão não acabou
Afonsinho
Verão 2017
QI Estilo
Abertura
VARA
Por Venes Caitano
O PAÍS DA BARBÁRIE
Tenho a impressão de que um dia já ouvi falarem que o Brasil “é um País cordial”.
Mas deve ser coisa da idade.
José Miguel de Souza
(Enviado via Facebook)
O que vemos no Brasil não é uma luta, mas um governo agindo premeditadamente
como máquina de matar. Uma eliminação premeditada da pobreza pela via mais
rápida e eficaz: a negação de todos os direitos.
Marcia Bittencourt
(Enviado via Facebbok)
RUMO A 2017
Em sombrios tempos como os que se avizinham (mas já não sobrevoam nossas
cabeças e mentes?), a existência de algumas poucas publicações no ainda livre
exercício de esclarecer e escarafunchar o baú de maldades despejado sob os
costados dos pobres mortais é algo mais do que alvissareiro. Diria necessário,
salutar e oxigenante. Mesmo para os bestiais que cegamente a criticam, agora até
dispostos a envolvê-la na vala comum dos desmandos, ela é hoje algo como uma
tábua de salvação, diante da iniquidade de uma mídia cada vez mais adesista. Esta
revista faz o que pode diante da enxurrada, verdadeiro tsunami de forças contrárias.
Navega num mar tempestuoso e, dessa forma, resiste e insiste. Seus leitores
reconhecem o esforço e não a abandonarão por nada.
Henrique Perazzi de Aquino
Bauru, SP
(Enviado via Carta)
DIAS DE IRA
A política brasileira é uma piada de muito mau gosto, em que os pobres e a classe
média são extorquidos por meio de impostos para manter privilégios de uma casta
egoísta e conservadora.
René Rodrigues de Melo
(Enviado via Facebook)
O governo atual demonstra que não tem capital moral para dirigir o País com toda
a sua cúpula sob suspeição. É necessária uma medida de contenção com o objetivo
de realizarmos um novo plebiscito, ou nova eleição, para darmos legitimidade ao
governo, pois este já se perdeu no meio do caminho da corrupção. Eliseu Padilha,
Romero Jucá, Renan Calheiros, Rodrigo Maia e Michel Temer já não têm
significado algum para o povo brasileiro. Eleições já!
Paulo Sérgio Rodrigues Pereira
Rio de Janeiro, RJ
(Enviado via Carta)
O Estado a cada dia que passa é mais omisso. E não é PSDB, PT ou P que for,
todos os que entraram no poder se esquivaram do problema. Deu no que deu.
Alexandre S. Baldin
(Enviado via Facebook)
ÍNDICE
Nou pap pè, nou pap jam pè. O coro em crioulo haitiano ecoa pelo Estádio Nicolau Alayon,
na Barra Funda, zona oeste de São Paulo. Cantado por um grupo de 18 torcedores, significa
“não tememos, nós nunca vamos temer”. O grito de incentivo é endereçado aos Pérolas
Negras, único time estrangeiro a participar da Copa São Paulo de Futebol Júnior, tradicional
torneio para atletas com idade entre 15 e 19 anos. O jogo começa com atraso, às 11h02 da
manhã. Os haitianos enfrentam a equipe da casa, o Nacional. Tentam vencer pela primeira
vez na Copinha. Um empate seria um resultado inédito. Em 2016, quando debutaram na
competição, os Pérolas foram superados em seus três confrontos. Na atual edição, derrotas
nas rodadas iniciais para Goiás e Cori-Sabbá, do Piauí. “Hoje é o nosso dia”, arrisca o
produtor musical Robert Montinard. Nascido na capital Porto Príncipe, Montinard mantém
longos dreadlocks, parcialmente encobertos por um gorro nas cores da bandeira jamaicana.
Bob, como prefere ser chamado, fala português com desenvoltura. Mudou-se para o Brasil
em dezembro de 2010, 11 meses após o terremoto que causou mais de 300 mil mortes no
Haiti. Apelidado de “Monstro Divino”, o sismo fez ruir a casa de três andares na qual o
produtor morava com a mulher, Mélanie, e os filhos, Bimba e Lula. Mélanie foi a única a
escapar do imóvel antes do desabamento. Bob sofreu duas fraturas na perna esquerda, mas
conseguiu proteger Bimba, então com 1 ano, até a chegada do resgate. Lula, à época com 2
anos, ficou 48 horas sob escombros. Bombeiros se surpreenderam quando o encontraram
vivo. A necessidade de tratar a perna machucada e o medo de novos desastres levaram Bob
ao Rio de Janeiro. A adaptação foi sofrida. “No Haiti, a vida era tranquila, podia auxiliar os
mais pobres. Quando vim para cá, foi a minha família que precisou de apoio. Tive dificuldade
para conseguir o visto de residência. Demorei a encontrar um bom emprego.”
Há
dois anos, Montinard trabalha no projeto Haiti Aqui, criado para facilitar a integração dos
imigrantes recém-chegados ao Brasil. De 2011 a 2015, cerca de 50 mil haitianos entraram no
País. A iniciativa é mantida pela ONG Viva Rio, responsável pela Academia Pérolas Negras.
Construído em Porto Príncipe, o complexo tem campos de futebol, piscina, sala de ginástica
e escola. São atendidos 120 adolescentes, entre eles os 25 atletas na Copa São Paulo. O
técnico é o brasileiro Rafael Novaes. “Os caras precisam chutar mais, mano”, reclama o
estudante Ossanto Georges. Faixa na cabeça, mostra irritação com o fato de alguém ter
amarrado a bandeira do Haiti verticalmente no alambrado. “As faixas azul e vermelha têm de
estar na horizontal. Elas simbolizam nossa vitória sobre a França”, ensina, em referência à
Revolta de São Domingos, movimento promovido por escravos responsável pela libertação
do país, em 1804. Ossanto desembarcou em São Paulo há três anos com o plano de juntar
dinheiro. Foi explorado na construção civil antes de ser contratado por uma gráfica.
Atualmente, cursa Tecnologia da Informação e divide quarto com um amigo em um cortiço no
Centro da capital paulista. Diz ter sido vítima de preconceito, mas prefere minimizar o
ocorrido. “É uma coisa tão estúpida que eu não ligo. Sou bem tratado pela maioria.”
Após um insosso primeiro tempo, a partida esquenta. Não é força de expressão. Ao meio-dia,
a temperatura alcança 33 graus. O árbitro marca pênalti para o Nacional. Um hatiano com
uma camiseta regata do Boston Celtics, time da liga americana de basquete, dispara
palavrões em crioulo. Ao perceber que o juiz não o compreende, apela para xingamentos em
português. Seu nome é Philippe Louis. Tem 30 anos e um olhar de permanente
desconfiança, consequência, talvez, de infortúnios que se recusa a detalhar. Casado com
uma brasileira, vende produtos de sorveteria em uma loja. Domina cinco idiomas. “Não é fácil
viver aqui, mas ainda está melhor do que no Haiti.”
ÍNDICE
Cármen Lúcia, por exemplo, mudou a rotina do STF, em outubro, no Dia da Criança.
Recebeu 50 delas em visita ao tribunal. Rodeada por meninas e meninos, recusou-se a ser
chamada de ministra e optou, naquele momento, pela intimidade: “Sou Tia Carminha”. Por
essas e outras, a presidente do Supremo tem marcado presença no noticiário. E conquistado
aplausos. A constância do marketing é tanta que lançou dúvidas e ciúmes no ar.
Cármen Lúcia, mineira severa e reservada, teria vestido a pele de raposa. Uma tradição na
política de Minas Gerais em referência aos políticos que trabalham em silêncio. Em que
direção, sendo assim, levam os passos da raposa Carminha? Agora ela mergulha
vigorosamente na crise do desumano sistema penitenciário do País. Escolhe o tema como
carro-chefe do seu comportamento político. Iniciou visitas de inspeção.
Cenas internas dos presídios, com fotos e vídeos, foram distribuídas fartamente para a mídia.
Em seguida, convidou Michel Temer para uma conversa na casa que comprou recentemente.
Na pauta, o tema dos presídios. Consta que conversaram por cerca de três horas. Tempo
longo demais para uma tecla só. Em pesquisa realizada no começo de dezembro de 2016, o
instituto Datafolha testou o nome de Cármen Lúcia na lista de candidatos à Presidência da
República, em 2018. A presidente do STF alcançou modestíssimo 1% na preferência do
eleitor. Há quem enxergue a mosca azul em voo rasante. Não surpreenderia se Tia Carminha
se enxergasse na escala de sucessão presidencial, caso o Tribunal Superior Eleitoral acabe
por caçar a chapa Dilma-Temer. O sonho terminaria aí? Ou no embalo a ministra se dispuser
a disputar o governo de Minas Gerais em 2018? •
ANDANTE MOSSO
Adriana Ancelmo está em todas
Volta ao lar
Marcelo Odebrecht tenta negociar com os procuradores da Lava Jato a possibilidade de,
futuramente, voltar aos quadros da empresa, trabalhando na área social.
Os punidos pelo juiz Sergio Moro, como se sabe, ficam impedidos de voltar a trabalhar nas
mesmas empreiteiras.
Reforma Temer
Caso a reforma trabalhista seja aprovada com a retirada de direitos, como previsto, haverá
uma mudança súbita de status.
Os trabalhadores vão virar biscateiros.
Camarote vazio
Os secretários do prefeito carioca Marcelo Crivella já definiram o perfil dele como governante.
Centralizador e indeciso.
Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal, não vai passar o Carnaval no Brasil. Como faz
comumente, viajará para Israel.
Essa ausência talvez seja caso único na história do Sambódromo.
Fim de linha
Em abril, termina o segundo e último mandato do advogado Henrique Neves como ministro
classista do TSE. Com isso, acaba também o domínio da família Neves na Justiça Eleitoral.
Primeiro foi o pai, Célio Silva (já falecido); em seguida Fernando e, por fim, Henrique.
O escritório da família Neves é um dos mais procurados por políticos ameaçados pela Lei
Eleitoral.
O olhar e a razão
O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, parece disposto a comprar uma confusão sem
igual ao propor monitorar, por meio de gravações, os advogados de chefes de facções
criminosas nos presídios.
Ele vai mais longe.
“As lideranças são colocadas em segurança máxima com bloqueadores de celulares, mas se
permite visita íntima sem que o Estado possa filmar.”
Movido por uma perspectiva autoritária, após a tragédia ocorrida nos presídios, ele ataca um
valor democrático em si mesmo: a privacidade.
Talvez almeje, no futuro, gravar consultório de psiquiatras e até mesmo confessionários.
ÍNDICE
Perfeito intérprete do desastre. Na moldura, a perseguição a CartaCapital é mero detalhe, além de nos honrar
O governo de Michel Temer premia a mídia nativa por sua notabilíssima contribuição ao êxito
do golpe de 2016. Tenho lido, aliás, da lavra até de praticantes do jornalismo honesto, ou da
boca de dignos cidadãos, que se trata de golpe parlamentar. Permito-me observar que a
definição é incorreta: parlamentar, sim, mas também judicial, midiático e policial.
A gratidão de Temer em relação aos barões midiáticos e seus sabujos confirma o estado de
exceção em vigor. Neste começo de 2017, farta publicidade governista inunda os órgãos da
comunicação jornalística, a começar pelas revistas semanais ditas de informação, melhor
seria de propaganda. CartaCapital é excluída. Obviamente, já que os golpistas, com
indiscutível coerência, fazem o que bem entendem.
O golpe precipitou o País em um beco sem saída, jamais conheceu crise igual, política,
econômica, social, moral e intelectual. Institucional. O Estado está falido, os poderes da
República não existem, há uma destruição por dentro, uma implosão irreparável. É como se o
momento de caos absoluto condensasse toda a prepotência, toda a irresponsabilidade, toda
a insensibilidade, toda insensatez, todos os desastres provocados pela inextinguível casa-
grande ao longo de 500 anos de história. Até a conciliação das elites tornou-se instituição
falida, os graúdos digladiam-se entre si em busca de um prêmio impossível, o poder extinto
pela total ausência de comando.
O Brasil é hoje o perfeito resultado do desmando secular. A se olhar para trás, percebe-se
que não poderia haver outro desfecho. Nisso tudo, a perseguição de Michel Temer
a CartaCapital é algo de somenos, mesmo porque de figuras como o professor de Direito
Constitucional disposto a rasgar a Constituição por outros comportamentos seria estulto
esperar. O que mais dói é a impossibilidade de imaginar o futuro enquanto semeiam-se
insatisfação, desencanto, medo, ódio. Neste exato instante, só se oferecem à fácil previsão o
recrudescimento da criminalidade e o fortalecimento de uma organização sólida e bem
estruturada para o mal como o PCC, assunto de capa desta edição. •
ÍNDICE
Para afastar as suspeitas sobre o convite de Temer, Mendes desmentiu uma história que ele
mesmo havia fomentado durante o julgamento do chamado mensalão. À época, a
revista Veja acusou o ex-presidente Lula de pressionar o ministro a trabalhar pelo adiamento
do trâmite da ação penal no STF. Lula e Mendes reuniram-se no escritório do ex-ministro
Nelson Jobim, que negou qualquer pressão do ex-presidente. Mendes calou-se. O texto da
revista narrava detalhes que ou foram inventados ou assoprados por um dos participantes do
encontro.
Agora, para se defender da acusação de parcialidade, Mendes declarou: “Estive com Lula
várias vezes e ele nunca me pediu nada”. Um pouco tarde. E bem conveniente.
De tempos em tempos, em intervalos cada vez mais longos, aparece alguma notícia sobre o
“mensalão do PSDB” em Minas Gerais. Soube-se agora que o desembargador Jair Varão, da
3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça mineiro, determinou o bloqueio de bens do ex-
governador Eduardo Azeredo por improbidade administrativa.
A ação apura os repasses de 3 milhões de reais de estatais mineiras para as agências de
publicidade de Marcos Valério Fernandes de Souza. O dinheiro, segundo a denúncia, fez
uma ponte nas agências de Souza antes de seguir para o comitê de campanha à reeleição
de Azeredo. Nascia dessa operação a “tecnologia” mais tarde incorporada pelo PT no plano
nacional.
Varão reformou uma decisão de primeira instância que havia excluído o ex-governador do
bloqueio de bens. Azeredo, anotou o desembargador, foi “o maior beneficiário da campanha
eleitoral”. Não lhe pareceu crível que “o ocupante do cargo de governador do estado à época”
não estivesse “a par da origem dos recursos destinados à sua própria campanha”.
EUA/ 007 contra Trump
Uma trama digna de um romance de espionagem. Ou de vídeo pornô
Na terça-feira 10, a CNN noticiou que “os chefes da inteligência apresentaram a Trump
alegações sobre esforços russos para comprometê-lo”. Durante a noite, o BuzzFeed violou a
ética jornalística e divulgou o material sem verificá-lo.
O tom burocrático do dossiê de 35 páginas, segundo o qual Trump trocou favores e
informações com a espionagem russa durante a campanha, é apimentado na primeira página
com a alegação de que “seu comportamento (de Trump) em Moscou incluiu atos sexuais
pervertidos arranjados e monitorados pela FSB” a serem usados pela agência russa para
chantageá-lo. Como o evento teria incluído urofilia, o caso foi apelidado “showergate”.
ÍNDICE
O PCC busca consolidar-se nas regiões Norte e Centro-Oeste e controlar todas as etapas do
narcotráfico: produção, logística e distribuição. “Há uma estratégia de cartelização”, afirma
Vladimir Aras, secretário de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República.
“É comum organizações criminosas formarem um cluster, aglomerado no qual cada uma
delas domina parte distinta do negócio. Quando essa partilha deixa de funcionar, emerge a
guerra, na tentativa de controlar todos os processos.” A formação de um cartel semelhante
aos que atuam em outros países da América Latina preocupa as autoridades. “Se não houver
uma guinada, estaremos no caminho do México”, diz Sérgio Fontes, secretário de Segurança
Pública do Amazonas.
Em Roraima, onde 33 presos foram brutalmente assassinados na Penitenciária Agrícola de
Monte Cristo, o número de filiados ao PCC passou de 50 integrantes identificados em 2013
para mil em 2016. Os dados são da inteligência do governo estadual. Segundo o Grupo de
Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público roraimense,
foram mapeados, em dezembro de 2016, 400 integrantes do PCC, cem do Comando
Vermelho, fundado no Rio de Janeiro, e 60 da Família do Norte (FDN), que atua na
Amazônia. A matança em Monte Cristo é atribuída à organização paulista, um possível revide
ao massacre de 56 detentos ocorrido dias antes no Complexo Anísio Jobim, de Manaus, que
teve como principal alvo integrantes do PCC.
A
O governo paulista já negociou, na surdina e às claras, com Marcola, líder do Primeiro Comando da Capital
guerra entre o PCC e o Comando Vermelho, aliado da Família do Norte, tem relação com
disputas por rotas de tráfico internacional de drogas e com a própria expansão da
organização paulista, afirmam diversos especialistas. Um dos fatores que estremeceram as
relações entre os grupos paulista e fluminense foi o assassinato do narcotraficante Jorge
Rafaat Toumani em uma emboscada na fronteira do Paraguai. Os executores utilizaram fuzis
e uma metralhadora Browning M2 .50, artilharia antiaérea, para perfurar o jipe Hammer
blindado de Rafaat. A operação cinematográfica é atribuída ao PCC, que passou a controlar
a maior parte da lucrativa rota, que abastece os mercados do Sudeste com maconha
paraguaia e cocaína produzida na Bolívia.
Não é possível estimar com exatidão o número de associados ao PCC. Uma espécie de
censo realizado pela própria organização, em 2013, mostra que o grupo já operava em todo o
Brasil, além de ter 57 filiados na Bolívia e no Paraguai. Segundo os documentos apreendidos
pela polícia naquele ano, o PCC tinha uma participação tímida na Região Norte: contava com
188 membros no Pará, 48 no Amazonas, 21 no Tocantins e 11 no Acre. O maior contingente
localizava-se em São Paulo, com 7,8 mil integrantes. Em seguida, figuram Paraná (626) e
Mato Grosso do Sul (558).
O PCC nunca teve dificuldade para arregimentar novos soldados. E a atual conjuntura
favorece seus planos de expansão. Com a economia estagnada, após dois anos de
recessão, o Brasil soma mais de 12 milhões de desempregados, 11,9% da população
economicamente ativa. “A relação entre a economia e a violência não é linear, uma coisa não
deriva automaticamente da outra. Mas não há dúvida de que, em um cenário de
pauperização da sociedade, é mais fácil recrutar pessoas para as atividades criminosas”,
afirma o sociólogo Ignácio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj.
“O recrutamento é sempre favorecido por condições socioeconômicas precárias”, emenda
Vladimir Aras.
Nos superlotados cárceres brasileiros, o PCC oferece uma série de atrativos aos seus
“batizados”, que pagam mensalidades à organização. Além da perspectiva de obter um
emprego no tráfico de drogas após o cumprimento da pena, os presos beneficiam-se de
proteção e segurança nas cadeias. Seus familiares costumam receber auxílio financeiro para
viajar longas distâncias em dias de visita. “Se o indivíduo morrer durante alguma ação do
PCC, a família dele pode até receber algum tipo de pensão”, afirma o analista criminal
Guaracy Mingardi, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Entre 2006 e 2010, o PCC desenvolveu sua estrutura empresarial, com o auxílio da política
de segurança do governador paulista, Geraldo Alckmin (PSDB). Após a crise de 2006,
quando a organização promoveu uma onda de atentados contra policiais e agentes
penitenciários, a cúpula da segurança de São Paulo, informada sobre possíveis rebeliões e
receosa do impacto delas na campanha do presidenciável Alckmin, decidiu recolher todas as
lideranças do PCC em um só presídio, o de Presidente Venceslau. Em um só dia foram
transferidos 765 presos.
A medida reuniu toda a cúpula do PCC e tinha o objetivo de quebrar o comando e a
articulação da facção. A estratégia só seria plena se, transferidos, os líderes fossem isolados
e impossibilitados de se comunicar com o mundo exterior. O que se viu foi o contrário. A
partir dali o PCC ergueu uma gestão hierarquizada e extremamente organizada, subdividida
em setores chamados de Sintonias. Em última instância, encontra-se a Sintonia Geral Final,
cúpula formada por Marcola e seus apadrinhados. É essa cúpula, de forma colegiada, que
toma todas as decisões do PCC.
Todo o dinheiro arrecadado no Progresso, Progresso 100% (tráfico dentro dos presídios), da
Cebola (mensalidade para membros em liberdade) e das Rifas é administrado pela Sintonia
Financeira, formada apenas por membros de alta confiança da cúpula. Como reserva para
momentos de dificuldades, a facção criou as chamadas Minerais, espécie de cofres
preenchidos com 1 milhão de reais cada um. As interceptações telefônicas do Ministério
Público apontam a existência de ao menos sete Minerais escondidos em imóveis comprados
pela facção.
Em 2014, CartaCapital revelou um documento do Gaeco que mostrava a audácia dos
integrantes do PCC. Naquele momento, o grupo planejava resgatar seu líder máximo,
Marcola, da Penitenciária II de Presidente Venceslau. O chefe da organização e dois
companheiros seriam içados por um helicóptero, comandado por um membro do PCC
treinado em pilotagem, e levados para o aeroporto de Loanda, no Paraná. De lá, ele partiria
em um avião Cessna Aircraft, modelo 510, também pilotado por um integrante da facção,
para o Paraguai.
Naquele momento, vários sobrevoos tinham sido realizados para avaliar os detalhes da
tomada de assalto da penitenciária e que um imóvel fora alugado na cidade de Porto Rico,
próxima a Venceslau, para servir como base de apoio à operação. Além disso, uma pista de
pouso foi mapeada para que o avião vindo do Paraguai pudesse aterrissar.
O PCC não teria conquistado tanto poder sem a negligência do governo tucano. Por muito
tempo, as autoridades paulistas procuraram minimizar a força da organização criminosa, que
assumiu o controle dos superlotados presídios. Em 2006, não deu mais para esconder. A
Ouvidoria das Polícias contabilizou 493 mortes durante a onda de violência. Os ataques só
cessaram após representantes da cúpula de segurança negociarem um armistício com o líder
do PCC.
Em
2015, o delegado José Luiz Ramos Cavalcanti revelou, em um processo judicial, que
representantes do governo estadual fizeram um acordo com Marcola naquele ano. A
proposta do crime organizado foi levada pela advogada Iracema Vasciaveo, que
representava à época o PCC, relata Cavalcanti, um dos escolhidos pelo então governador
Claudio Lembo para participar do encontro, realizado no presídio de segurança máxima de
Presidente Bernardes, no interior paulista.
Segundo o depoimento, divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo, os ataques seriam
encerrados, caso os responsáveis pelo comando dos atentados nas ruas fossem informados
de que Marcola estava bem fisicamente e não havia sido torturado. A cúpula das secretarias
de Segurança Pública e da Administração Penitenciária, cujos chefes na época eram Saulo
de Castro Abreu Filho e Nagashi Furukawa, aceitou.
Em 2012, em meio a mais uma onda de ataques do crime organizado em São Paulo, o então
secretário de Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, foi categórico ao afirmar que a
influência do PCC é “exagerada pela mídia”. Alckmin chancelou a fala do subordinado, ao
afirmar que havia “muita lenda” sobre facções criminosas.
O atual ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, também atuou na Secretaria de Segurança
Pública de São Paulo, sem grandes intervenções que colocassem em risco o poder do PCC.
O Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, divulgou na quarta-feira
11 uma carta, subscrita por juristas e advogados, para pedir a sua renúncia. O documento
trata dos massacres nos presídios do Amazonas e de Roraima, critica o Plano Nacional de
Segurança Pública lançado pelo governo federal e afirma que o titular da Justiça adotou
posição “omissa e inábil” diante das tragédias, dando declarações “populistas e
irresponsáveis”.
No
Segundo o procurador Vladimir Aras, o PCC visa à formação de um cartel e ao controle de todas as etapas do
narcotráfico
ÍNDICE
A Rodrigo Martins
Principal alvo do massacre do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, que resultou na morte
de 56 presos em Manaus, metade deles decapitada, o Primeiro Comando da Capital
expandiu tanto pelo País que despertou a ira de concorrentes locais, explica o analista
criminal Guaracy Mingardi, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Vários
desses grupos buscaram se aliar ao Comando Vermelho para resistir. Apesar de ser uma
organização menor que o PCC, o Comando Vermelho é uma marca nacional. Eles foram se
estranhando cada vez mais.”
Ex-investigador da Polícia Civil de São Paulo e doutor em Ciência Política pela USP,
Mingardi aponta o assassinato do narcotraficante Jorge Rafaat Toumani em uma emboscada
na fronteira com o Paraguai como um dos fatores que estremeceram a relação da
organização paulista com o CV. “O PCC aumentou a porcentagem do que controla por ali,
em toda a fronteira com o Paraguai. Trata-se de uma rota muito viável economicamente,
porque chega rápido em São Paulo e, pelas estradas paulistas, segue para qualquer lugar”,
diz Mingardi.
Na avaliação do especialista, que também atuou como subsecretário nacional de Segurança
Pública, a guerra já ultrapassou os muros dos presídios, pois os grupos disputam pontos de
venda e rotas de tráfico. “A briga com o Estado é outra coisa. Colocaram muitas lideranças
do PCC no Regime Disciplinar Diferenciado. Eles já estão em disputa com a Família do Norte
(FDN), com o CV. Resta saber se vão comprar briga com os governos.”
CartaCapital: O senhor define o PCC como uma organização criminosa, mas rejeita o termo
facção. Por quê?
Guaracy Mingardi: Facção é parte. No caso de São Paulo, o PCC não é parte, exerce poder
hegemônico. Controla 90% das penitenciárias, segundo diversas fontes. Sou mais cauteloso,
diria que dominam ao menos 80% do sistema prisional paulista. Os demais são grupelhos.
Usar o termo facção é minimizar o problema. Prefiro falar sempre em organização criminosa.
CC: Em um recente artigo acadêmico, o senhor ressalta que “não existe crime organizado
sem vínculo com o Estado”. No caso do PCC, o que evidencia essa simbiose?
GM: Primeiro, a situação dos próprios presídios. Esses criminosos não controlam as cadeias
sem uma anuência tácita de setores do Estado. Fora isso, vamos pensar no que ocorre
extramuros. Uma das principais fontes de renda do PCC é o tráfico de drogas. A venda dos
narcóticos costuma ocorrer em “biqueiras”, “bocas de fumo”. Como pode haver um local fixo
para a prática diária de um crime e ninguém se dá conta? É a mesma lógica do jogo do
bicho. Há pontos específicos onde são coletadas as apostas. Sem corromper agentes
públicos, não há como manter essa estrutura. Precisa haver algum tipo de vínculo, com
órgãos do Executivo, Legislativo ou Judiciário. Ou em vários, o que é mais comum.
CC: O que propiciou a expansão do PCC pelo País? Foi aquela política de transferir presos
para tentar isolar as lideranças?
GM: Começou ali. Fora de São Paulo, os dois lugares onde o PCC tem maior presença são o
Paraná e Mato Grosso do Sul, para onde foram transferidas diversas lideranças após 2001.
Plantaram a semente lá. Depois, a expansão deu-se pelo marketing. O sujeito que está preso
em outro estado torna-se responsável por transmitir a mensagem, levar aquilo adiante. O
PCC é o grupo mais conhecido, que enfrentou o Estado.
Com a morte do narcotraficante Rafaat Toumani, o PCC ampliou o controle sobre o comércio de drogas
vindas do Paraguai
CC: O que explica a guerra entre o PCC e o Comando Vermelho? É mesmo uma disputa por
rotas internacionais de tráfico?
GM: Também é, mas não só. Primeiro, o PCC expandiu demais, o que despertou o
antagonismo dos grupos locais, a exemplo da FDN, do Primeiro Grupo Catarinense (PGC),
do Bonde dos 40, do Sindicato do Norte. Existem mais de 20 organizações concorrentes
espalhadas pelos estados. Vários desses grupos buscaram se aliar ao Comando Vermelho
para resistir. Apesar de ser uma organização menor do que o PCC, o Comando Vermelho é
uma marca nacional. Eles foram se estranhando cada vez mais. Desde o cinematográfico
assassinato do narcotraficante Jorge Rafaat Toumani no Paraguai, com o uso de uma arma
capaz de perfurar blindados do Exército, o PCC passou a controlar cada vez mais aquela
rota.
CC: Então, toda droga ou arma que entra pela fronteira de Pedro Juan Caballero passa,
necessariamente, pelo PCC?
GM: Não, nunca é assim, de uma só pessoa ou grupo. No entanto, o PCC aumentou a
porcentagem do que controla por ali, em toda a fronteira com o Paraguai, não somente em
Pedro Juan Caballero. Trata-se de uma rota muito viável economicamente, porque chega
rápido a São Paulo e, pelas estradas paulistas, segue para qualquer lugar. A rota do Rio
Solimões é normalmente usada para exportação, mas não é simples descer de barco.
Quanto mais cara a logística, maior o preço da droga.
Julgamento da Camorra, em 1911
CC: As sangrentas disputas em presídios da Região Norte têm relação com uma disputa
pelas rotas da Amazônia?
GM: Não tenho certeza, mas a maior parte do que passa pelo Paraguai está nas mãos do
PCC. É a cocaína boliviana, mais barata, que o pessoal usa aqui no Brasil. A colombiana é
mais cara. Há uma grande fronteira da Bolívia com Mato Grosso, mas é preciso ter contatos
com os bolivianos. Desconfio que a coisa ficou complicada para os outros, e eles partiram
para a guerra.
CC: O senhor acredita que essa guerra pode ultrapassar os muros da cadeia? Há o risco da
repetição de ataques como os de 2006?
GM: Não dá para saber. Na verdade, a guerra já extrapolou os muros dos presídios. Eles
brigando do lado de fora, por pontos de venda e rotas de tráfico. É uma coisa contida, não
aparece tanto. Não veremos chacinas com 50 mortos. Um grupo invade o ponto do outro,
mata três ou quatro. A briga com o Estado é outra coisa. Colocaram muitas lideranças do
PCC no Regime Disciplinar Diferenciado. Eles já estão em disputa com a FDN, com o CV.
Resta saber se vão comprar briga com os governos. •
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CRÉDITOS DA PÁGINA: Ferdinando Ramos/Estadão Conteúdo e George Grantham Bain Collection/Library Of Congress
Washington, D.C.
A vocação de súdito
POLÍTICA EXTERIOR As pedras e os perigos da aproximação aos EUA desejada
pelo governo de Michel Temer
Donald Trump assume a Casa Branca na sexta-feira 20, e logo a partir de fevereiro
burocratas americanos e brasileiros começam a reunir-se para preparar uma agenda capaz
de ajudar mutuamente o crescimento econômico dos dois países, artigo escasso lá e aqui.
Ao menos foi esse o combinado entre o magnata e Michel Temer em um telefonema em
dezembro, ligação de iniciativa do Palácio do Planalto. Na conversa, o peemedebista disse
contar com investimentos dos Estados Unidos, que os empresários dos dois países se
conhecem bem e gostariam de ampliar os negócios. A conversa não foi capaz, porém, de
levar o magnata a convidar Temer para a posse, indiferença que teria incomodado o
brasileiro. Uma negociação EUA-Brasil haverá, obviamente, de levar em conta o peso
específico de cada um, sem contar as tradições de uma subserviência interrompida somente
pelo governo Lula.
É verdade que o costume em Washington é chamar apenas embaixadores para a posse,
mas a falta de deferência de Trump com o peemedebista é sintomática. O Brasil não está no
centro das preocupações do bilionário, a nutrir desprezo pelos latino-americanos, vide sua
intenção de expulsar mexicanos e construir um muro para impedi-los de entrar. Para Brasília,
contudo, os EUA são prioridade, embora não haja uma estratégia clara para atingir o objetivo
e traduzir isso em questões concretas. Temer e o chanceler José Serra buscam desde o
início uma relação carnal com o país, visto como fonte de legitimação internacional do
governo e de capitais capazes de empurrar o PIB.
descompasso é apenas uma das pedras no caminho da aproximação, uma trilha cheia de
perigos aos interesses nacionais, como a secreta retomada das negociações sobre a Base
de Alcântara. Serra é uma das pedras. Torceu abertamente pela candidata democrata, Hillary
Clinton. Os tucanos construíram boas relações com os Clinton na gestão Fernando Henrique
Cardoso. O escolhido por Serra para embaixador em Washington, Sergio Amaral, foi porta-
voz de FHC. Antes do triunfo de Trump, Serra comentara a hipótese: “Não pode acontecer”,
seria um “pesadelo”. Mais: “É preciso ser muito masoquista para ficar imaginando que o
Trump vá ganhar”. Consumado o “pesadelo”, resignou-se. “Nas democracias, as decisões do
eleitorado se respeitam e se cumprem não apenas por quem vence.” Viu, Aécio Neves e
PSDB?
Resignação à parte, Serra tende a merecer desdém por Trump. Vizinhos dos EUA, México e
Canadá mudaram seus chanceleres às vésperas da posse do magnata. A mexicana Claudia
Ruiz Massieu, por exemplo, tinha reclamado de o presidente Enrique Peña Nieto convidar o
xenofóbico magnata para uma conversa. Será que Serra corre o risco de perder o cargo? E
que choque seria para o tucano, autor de discretas juras de amor aos EUA em várias
entrevistas.
No namoro com o Tio Sam, Serra ressuscitou uma ideia polêmica e numa área sempre
sedutora para os norte-americanos, a defesa. Mandou recolocar na mesa de negociações um
acordo para ceder aos EUA uma base de lançamento de foguetes no Maranhão, a de
Alcântara, em troca de recompensas. Sergio Amaral conversou sobre o tema com o
subsecretário de Assuntos Políticos do Departamento de Estado, Thomas Shannon. Mantida
em sigilo, uma proposta foi elaborada e apresentada pelo Itamaraty a autoridades dos EUA.
Teria sido rejeitada, segundo CartaCapital apurou.
Alcântara é tida como a base mais bem localizada do mundo para lançar foguetes. A partir
dali, conseguem colocar satélites em órbita mais rapidamente, com economia de combustível
e de dinheiro. No fim da gestão FHC, houve um acordo, cujos termos foram ao Congresso,
para ratificação. Logo em 2003, primeiro ano de mandato, Lula enterrou o projeto.
Ao
contrário de Serra, Temer não chegou a exibir paixão em público, mas em privado mostrou-
se interessado, e útil, aos EUA. Em 2006, ano da reeleição de Lula, encontrou duas vezes o
cônsul-geral americano no Brasil, Christopher McMullen, para conversar. Uma em 9 de
janeiro, outra em 19 de junho, ambas em São Paulo. As reuniões foram relatadas por
McMullen a Washington em telegramas secretos, tornados públicos pelo WikiLeaks,
especializado em vazar documentos, em 13 de maio passado, um dia após Temer chegar ao
poder por causa do afastamento provisório de Dilma Rousseff. Os telegramas deixam a
impressão de que a indicação do peemedebista para vice de Dilma na eleição de 2010 foi um
erro de Lula e do PT, a menos que não tenha prevalecido a tese da conveniência de manter
os amigos por perto e os inimigos mais perto ainda.
No primeiro encontro, segundo o telegrama, Temer não mostrara objeção à Área de Livre-
Comércio das Américas (Alca), ideia sepultada no ano anterior por líderes progressistas sul-
americanos, Lula entre eles, por ameaçar a economia e a soberania locais. Teria dito que a
vitória de Lula em 2002 fora “fraude eleitoral”, que o governo dele era “desapontador” e com
“foco excessivo” no social, que o PT se corrompera. Diante das pauladas, McMullen anotou
“com aliados assim...”, em referência à posição de Temer sobre Lula.
No despacho seguinte, sobre a conversa de junho, Temer foi descrito como “anti-Lula”, por
suas críticas à política econômica, ao petista e a peemedebistas tidos como lulistas, caso de
Renan Calheiros, hoje presidente do Senado. O PMDB era então dividido no apoio ao
governo. Presidente da sigla, Temer pertencia à ala claudicante e reclamou “causticamente”,
escreveu McMullen, “das recompensas miseráveis” do governo. Em bom português: um
fisiológico descontente. Temer e seus colegas deputados só mergulhariam no governo após
o novo triunfo de Lula. Uma reeleição que provocaria uma guinada do petista no segundo
mandato, sem as amarras ortodoxas do primeiro, previra Temer a McMullen, seu único
interlocutor a traçar tal prognóstico.
Fundador do WikiLeaks, asilado na embaixada do Equador em Londres, o hacker australiano
Julian Assange analisou o comportamento de Temer em uma entrevista ao escritor brasileiro
Fernando Morais, divulgada na terça-feira 10. Para Assange, o peemedebista revelou um
grau “preocupante de conforto”. “O que ele terá como retorno? Ele está claramente dando
informações internas à embaixada por alguma razão. Provavelmente, para pedir algum favor
aos Estados Unidos, talvez para receber informações deles em retorno.”
Em 2006, Temer dizia aos americanos que a vitória de Lula em 2002 fora
“fraude” e acentuava os “exageros” da política social
A guinada de Lula no segundo mandato, prevista por Temer, ocorreu e foi embalada pela
descoberta pela Petrobras, logo em 2007, de petróleo em águas ultraprofundas. A partir dali,
o Brasil despontou como player em duas áreas delicadas para os americanos, a militar e a
petrolífera. No fim de 2008, o governo lançaria uma Estratégia Nacional de Defesa, a amarrar
o desenvolvimento do País ao reforço da segurança nacional. Em 9 de janeiro de 2009, em
telegrama confidencial a Washington, o então embaixador dos EUA em Brasília, Clifford
Sobel, dizia que o Brasil caminhava para tornar-se uma “potência mundial moderna” e,
mesmo que a Estratégia não vingasse na íntegra, seria capaz de “desenvolver uma força
militar moderna com capacidade maior”.
A Marinha destacava-se no plano, reforço impulsionado particularmente pelo pré-sal, cujo
controle inspirava cuidados, sobretudo após o anúncio norte-americano, em 2008, de
reativação da IV Frota, força naval atuante ao Sul do Oceano Atlântico, pertinho do petróleo
descoberto. Com a expansão desenhada para a Marinha, o Brasil sairia da 19a posição entre
as forças navais mais poderosas do planeta e chegaria à 9a no fim da década de 2020,
conforme o livro As Garras do Cisne, de 2014, do jornalista Roberto Lopes.
O marco no salto naval viria com o submarino movido a energia nuclear, capaz de deslocar-
se com mais velocidade e ficar mais tempo sob o mar do que o convencional. “O mais
importante instrumento de ameaça que o País jamais possuiu”, escreve Lopes. Só os cinco
membros do Conselho de Segurança da ONU (China, EUA, França, Reino Unido e Rússia)
detêm tecnologia de construção desse submarino. O projeto brasileiro é parceria com a
França, acordo negociado em 2008 e selado em 2009. Custará 8,5 bilhões de reais e já
consumiu 1,8 bilhão. Segundo as últimas estimativas da Marinha, deve ficar pronto em 2027
e entrar em operação para valer em 2029.
Chanceler de Lula e ministro da Defesa de Dilma Rousseff, o embaixador Celso Amorim diz
que com pré-sal, investimento militar e uma política externa independente de Washington, a
priorizar as relações com a Ásia, a África e a integração latino-americana, o Brasil atraiu a ira
do Tio Sam. “Havia uma percepção do sistema político nos Estados Unidos de que o Brasil
começava a colocar as manguinhas de fora e de que era preciso nos deter.”
Ao divulgar no Brasil o filme sobre Snowden, Oliver Stone aventou que a espionagem da NSA de 2013 poderia
ter abastecido a Lava Jato inaugurada em 2014
máxima “aos amigos tudo, aos inimigos a lei” dá uma pista de como pode ter ocorrido tal
contenção do Brasil por parte dos EUA. Segundo um ex-ministro de Dilma, muitas
informações da Operação Lava Jato contra multinacionais brasileiras, casos de Petrobras e
Odebrecht, chegaram ao Ministério Público e à Polícia Federal graças aos serviços
americanos de inteligência e seus aliados. Condenado a 43 anos de cadeia por fraudes na
Eletronuclear, o pai do programa nuclear da Marinha, almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva,
foi vítima de um agente infiltrado do Mossad, o serviço secreto de Israel, tradicional parceiro
dos Estados Unidos.
Sócia da estatal francesa DCNS na construção do submarino nuclear, a Odebrecht acabou
enredada abertamente pelo Tio Sam. Em 21 de dezembro, o Departamento de Justiça
americano e a empreiteira anunciaram um acordo de leniência pelo qual a empresa pagará
cerca de 7 bilhões de reais como punição (uns 5 bilhões serão pagos no Brasil) por distribuir
788 milhões de dólares em propinas (55% a autoridades estrangeiras) entre 2001 e 2016 em
mais de 20 países. Vários países latino-americanos já estudam processar a construtora, um
pepino para os negócios da empresa.
As informações prestadas pela Odebrecht nos EUA serão aproveitadas pelo procurador-geral
da República, Rodrigo Janot, no Brasil. Em fevereiro de 2015, Janot viajou a Washington com
a força-tarefa da Lava Jato para conversas sobre temas incertos e não sabidos. Sabe-se
apenas que não aceitou a presença de representantes do governo, na figura da Advocacia-
Geral da União, nas reuniões.
No ano passado, o cineasta Oliver Stone lançou um filme sobre Edward Snowden,
denunciante da espionagem em massa praticada pela NSA, agência de bisbilhotagem dos
americanos que alvejou Dilma e a Petrobras. Em passagem pelo Brasil para divulgar o filme
em novembro, Stone sugeriu que a espionagem da NSA, revelada em setembro de 2013,
abasteceu a Lava Jato, deflagrada em março de 2014. “Essa informação vai para algum
lugar, não fica lá guardada. É usada para destruir, mudar governos, grandes empresas, a
Petrobras, a empresa petrolífera da Venezuela. Isso pode levar à guerra”, afirmou, convicto
de envolvimento dos EUA na derrubada da petista.
Na recente entrevista, Assange também cita o papel dos Estados Unidos no impeachment.
Disse ter identificado “robôs” a convocar pessoas nas redes sociais da web para participar de
marchas. “Pensando em como são os programas americanos, vemos que essas coisas não
acontecem na América Latina sem apoio americano”, disse. E “considerando a intenção do
Departamento de Estado americano em maximizar os interesses da Chevron e ExxonMobil”,
o pré-sal teria sido a razão para o Tio Sam querer derrubar o PT, patrono da lei que garantia
a presença da Petrobras na exploração em todos os campos.
O controle do pré-sal pela Petrobras era a base de um plano de desenvolvimento que
passava pelo estímulo à indústria naval (fornecedora de navios-sonda), a construtoras de
refinarias e às Forças Armadas. Em 2009, um ano antes de concorrer ao Planalto pela
segunda vez, o hoje chanceler Serra reunira-se com dirigentes da Chevron e prometera
mudar a lei e liberar a exploração do pré-sal por estrangeiros sem a Petrobras, caso
ganhasse a eleição. A promessa foi cumprida com a ascensão de Temer, responsável por
sancionar, em novembro, lei proposta por Serra no Senado em 2015.
Foi
na
Na entrevista a Fernando Morais, Assange revela os pecados de Serra
Exxon Mobbil que Donald Trump pinçou seu homem para o Departamento de Estado, Rex
Tillerson, até aqui presidente da companhia. Pelo menos aí Serra deverá ter facilidades, caso
Tillerson nutra sentimentos do tipo “gratidão”. Perspectivas de negócios não faltam no pré-
sal. Produzir ali é uma mina de ouro, com custos de extração dignos dos sauditas. Metade da
produção da Petrobras no ano passado saiu de águas profundas, 1 milhão de barris por dia,
alta de 33% ante 2015. O presidente da estatal, Pedro Parente, manteve o saldão inaugurado
no governo Dilma e acaba de anunciar a venda de 21 bilhões de dólares em ativos entre
2017 e 2018.
O investimento de capitais talvez seja o que há de oportunidade econômica em uma
aproximação do Brasil com os EUA, quem sabe algo em comércio exterior, já que a pauta de
exportações do Brasil para o mercado americano é de boa qualidade, centrada em
manufaturados, ao contrário do que ocorre com a China. O problema, diz o economista
Marcio Pochmann, um estudioso das relações globais, é que os EUA são uma economia
decadente e que, sob Donald Trump, tendem a adotar uma postura protecionista para brigar
com a China, o grande parque fabril do planeta hoje.
O Planalto, ressalta Pochmann, poderia até tirar proveito político de uma briga dessas, com
jogadas parecidas com as de Getúlio Vargas durante a Segunda Guerra Mundial, oscilante
entre a Alemanha nazista e o bloco formado por ingleses, franceses, russos e americanos.
Foi dessa artimanha que o Brasil arrancou dos EUA capitais para construir a primeira
siderúrgica nacional. “Usar os Estados Unidos para negociar com a China não seria de todo
ruim. Mas nós precisaríamos de um estadista.” Não é o caso. •
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CRÉDITOS DA PÁGINA: Jales Valquer/Fotoarena, Andressa Anholete/AFP, Lotta Hardelin/Dagens Nyheter/AFP, Endgame
Entertainment/Vendian/Collection Christophel/AFP e Reproduçãoo De Vídeo
A ignorância sem diálogo
VIOLÊNCIA Bancados por autoridades e políticos, os discursos de ódio prosperam
Major Olímpio estimulou novos massacres nas cadeias nas redes sociais
Na República de Platão, Polemarco, em diálogo com Sócrates, busca no senso comum seu
conceito de justiça. Para ele, a definição passa pela maniqueísta formulação de “devolver o
que se deve, sendo o bem ao amigo e o mal ao inimigo”. No Brasil que naturaliza a barbárie,
a definição do personagem platônico impõe-se em discursos de políticos, promotores e
juízes. A repercussão das matanças recentes nas prisões brasileiras confirma a preferência
da atual classe política pelo “olho por olho, dente por dente” de Polemarco.
A morte de mais de 90 presos em Manaus e Roraima mereceu reprováveis comentários de
autoridades. Em uma entrevista à Rádio CBN, o governador amazonense, José Melo,
afirmou que não “havia nenhum santo” entre os mortos no Complexo Penitenciário Anísio
Jobim. Na sexta-feira 6, Bruno Júlio, agora ex-secretário de Juventude de Michel Temer, não
se satisfez com o número de decapitações e mutilações. “Tinha era que matar mais, tinha
que fazer uma chacina por dia.” O deputado federal Major Olímpio superou-se: publicou em
sua rede social um “placar dos presídios”, contrapondo as 56 mortes em Manaus às mais de
30 em Roraima. “Vamos lá, Bangu! Vocês podem fazer melhor!”, emendou, ao incentivar os
presos da penitenciária carioca a reproduzir as matanças ocorridas na Região Norte.
A carta do autor da chacina em Campinas é uma metonímia da barbárie propalada por autoridades, entre
elas o ex-secretário de juventude de Temer
filósofa Márcia Tiburi, autora do livro Como Conversar com um Fascista, classifica a chacina
em Campinas como uma metonímia do atual momento do País. “O ato desse cidadão é uma
parte que vale pelo todo. O discurso é análogo ao de grandes atores da política e do
Judiciário.” A filósofa destaca dois fatores preocupantes na carta. “Primeiro, ela é um ‘copia e
cola’ de preconceitos que transitam livremente nas redes sociais. Segundo, é sintomática a
criatividade dele ao chamar a lei que pune a violência contra a mulher como ‘vadia da
Penha’. Há um sentimento de que a própria Constituição tornou-se uma espécie de lei
vagabunda.”
Para a filósofa, as atuais condições econômico-políticas trazem à tona energias afetivas
negativas. “Como qualquer afeto, o ódio é um sentimento manipulável. A raiva e o amor não
são naturais, eles florescem em determinadas condições”, explica Tiburi. “Os discursos de
ódio são publicitários: eles servem para nos enganar e nos vender uma ideia, seja para
adquirir uma mercadoria ou votar em parlamentar e aderir a uma igreja.” Contra as certezas
do discurso, a filósofa sugere o diálogo como forma de resistir ao autoritarismo vigente. “É
preciso questionar e desconfiar mais.”
Talvez Polemarco conservasse sua definição maniqueísta de justiça, não fosse o contraponto
de Sócrates. O filósofo grego pacientemente desconstrói, segundo a narrativa de Platão, o
conceito de seu interlocutor, ao argumentar que “devolver o mal aos inimigos” apenas torna
os seres humanos piores. O esforço dialógico de Sócrates confundia-se com sua defesa
incondicional da democracia. Infelizmente, o diálogo é um valor cada vez mais raro no Brasil.
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CRÉDITOS DA PÁGINA: Ananda Borges/Câmara dos Deputados, Wagner Souza/Futura Press e Reprodução
A escravidão não acabou
TRABALHO 349 empregadores ainda submetem os contratados a condições
degradantes e subumanas
Foi para combater situações como essa que o Brasil começou a publicar, em 2003, o
“Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de
escravo”, mais conhecida como a Lista Suja do Trabalho Escravo, que reúne nomes de
empresas ou pessoas que colocaram trabalhadores em situações degradantes ou forçadas
de trabalho. Essa importante ferramenta, reconhecida internacionalmente, não foi publicada,
no entanto, pelo governo Michel Temer no último ano, o que pode sinalizar um retrocesso
maior a caminho.
A gestão peemedebista aproveitou-se de uma decisão judicial já revista para, simplesmente,
ignorar a existência desse cadastro. Isso porque em 2015, durante o recesso de fim de ano,
o ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF),
atendeu liminarmente e de forma monocrática o pedido da Associação Brasileira de
Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) para suspender a publicação. A Abrainc representa as
principais construtoras do País e está sob comando, atualmente, da MRV Engenharia.
Ministro. Ronaldo Nogueira avisou aos comandados que 2016 não teria lista
medida cautelar foi cassada, entretanto, pela ministra Cármen Lúcia, em maio de 2016 e o
Ministério do Trabalho foi liberado para voltar a divulgar o cadastro há mais de oito meses.
Mas nenhuma lista foi oficialmente divulgada até agora. A decisão do Supremo levou em
conta uma nova portaria interministerial, publicada no apagar das luzes do governo Dilma
Rousseff, para driblar o impasse.
Na prática, a portaria flexibiliza as regras de manutenção do cadastro de empregados. Por
essa mudança, as empresas flagradas com trabalhadores em condições análogas à
escravidão passam a figurar em uma nova lista se firmarem um Termo de Ajustamento de
Conduta (TAC) ou acordo judicial com a União. Isso significa que, desde então, o governo
poderia publicar duas listas: uma com empresas que se comprometeram a solucionar o
problema e outra com as que não mostraram intenção de tomar providência alguma.
Ainda assim, desde que assumiu, o governo Michel Temer ignora essa possibilidade. A
omissão deliberada fez com que o Ministério Público do Trabalho ajuizasse uma ação civil
pública para obrigar o governo federal a voltar a atualizar o cadastro de empregadores
envolvidos com escravidão. No dia 19 de dezembro, o juiz Rubens Curado Silveira, da 11ª
Vara do Trabalho de Brasília, reconheceu a importância do tema e determinou que uma nova
lista fosse publicada em até 30 dias, a partir do momento em que o governo fosse notificado
da decisão.
Na decisão, Silveira lembrou justamente que esse tipo de omissão colocou o Brasil no banco
dos réus do plano internacional, em referência ao caso da Fazenda Brasil Verde. “Esse foi o
primeiro caso decidido pela CIDH (Corte Interamericana) sobre escravidão e tráfico de
pessoas. (...) Nesse cenário, revela-se ainda mais preocupante a omissão”, observa o
magistrado.
Para Tiago Muniz Cavalcanti, procurador do Trabalho e um dos autores da ação, essa
postura marca o retrocesso de políticas públicas até então elogiadas por órgãos como a
Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). “A
publicação da Lista Suja é uma política de Estado e não uma política de governo. O combate
ao trabalho escravo tem de continuar”, critica. “Essa postura omissiva vem desde maio para
cá e não existe justificativa para isso.”
Além de uma ferramenta de defesa dos direitos humanos, a Lista Suja também era uma
referência para o mercado e bancos na hora de conceder financiamentos ou fazer negócios
com determinadas empresas. Mesmo instituições privadas utilizavam o cadastro feito pelo
Ministério do Trabalho antes de concluir operações de crédito para companhias. A decisão do
governo federal de impedir o acesso a essa lista coloca todas as empresas no mesmo
patamar.
“Para além dos direitos humanos e da questão de acesso à informação e liberdade de
imprensa há a questão muito clara de mercado (para a publicação da lista). É por isso que as
empresas sérias querem essa informação, é uma questão de risco. O mercado brasileiro
aprendeu que só tem a ganhar ao gerenciar esse risco, não é fazer com que as empresas
percam negócios”, alerta o jornalista e presidente da ONG Repórter Brasil, Leonardo
Sakamato. Atualmente, é a ONG presidida por ele que tem conseguido obter e divulgar a
Lista Suja com a ajuda da Lei de Acesso à Informação. A última foi obtida em junho do ano
passado e apresenta 349 nomes de empregadores.
Para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a postura do governo federal não encontra
respaldo nem mesmo entre a classe empresarial do País. “Existe um grupo majoritário que
não quer ser confundido com os escravagistas, porque isso pode fechar o acesso de um
produto a determinado país vizinho ou cadeia produtiva no exterior”, enfatiza o Frei Xavier
Plassat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da CPT.
Nada disso comove o ministro Ronaldo Nogueira, do Trabalho, mal assumiu a pasta, avisou a
interlectores que não iria publicar a lista. A secretária Especial dos Direitos Humanos do
Ministério da Justiça e Cidadania, Flávia Piovesan, que tem capitaneado todas as ações
sobre o assunto, em novembro anunciou a coordenação de um Pacto Federativo para
Erradicação do Trabalho Escravo com o estado do Pará, a unidade da Federação com o
maior número de casos. Nogueira enviou seu secretário-executivo, Antonio Correia de
Almeida, para a cerimônia, mas a assessoria de comunicação do ministério mal registrou o
fato em seu site.
Não está claro se a postura decorre de uma decisão particular do ministro, ou se há algum
tipo de orientação vinda do ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha. Em dezembro, uma
operação das polícias Militar, Civil e Ambiental de Mato Grosso, que investiga desmatamento
ilegal, encontrou em péssimas condições as acomodações de empregados em uma fazenda
de Padilha, em Mato Grosso, e encaminhou as imagens ao Ministério Público do Trabalho,
diante da suspeita de trabalho análogo à escravidão.
Procurador. Tiago Muniz Cavalcanti move ação contra o governo para a publicação da Lista Suja
ÍNDICE
Os críticos mais radicais do programa que vem sendo executado pelo ilustre presidente
Temer exercitam a uma histeria verbal cacofônica com altos decibéis, mas pouca razão.
Insistem em ignorar que boa parte das medidas já era “necessária” e sugerida (mas não
praticada!) nos governos Sarney, Collor, FHC, Lula e, particularmente, Dilma! Apenas para
lembrar. Depois do fracasso do Plano Cruzado, os ministros de Sarney não imploraram em
vão pelo controle das despesas? Collor não foi eleito para eliminar os “marajás”? Depois do
enorme sucesso do Plano Real, mas antes de quebrar em 1998, preocupou-se FHC com o
equilíbrio fiscal? Lula levou adiante o fundamental aggiornamento da CLT que estava no seu
programa? Aceitou Dilma as propostas do ministro Mantega, em 2013 e 2014, para controlar
as despesas públicas, enquanto pensava, desesperadamente, na sua reeleição? Essas
últimas foram, aliás, recuperadas, em 2015, pelo ministro Joaquim Levy quando Dilma
buscou – sem sucesso – restabelecer a aliança com os eleitores que traíra.Era tarde. A
tragédia não tinha mais como ser escondida. No primeiro trimestre de 2016, confirmou-se
que o PIB de 2015 havia caído 3,8% e a taxa de inflação, mesmo reprimida, saltara para
10,7%. Na confusão letal colhemos o segundo rebaixamento do rating soberano da S&P e o
primeiro da Moody’s.
O ano de 2016 começou com um novo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, e uma visita de
Dilma ao Congresso, da qual muito se esperava. Decepcionou. Sugeriu apenas a volta da
CPMF (esquecida pela enorme vaia que levou) e pediu a prorrogação da DRU. É bom
lembrar que esta só foi aprovada no governo Temer sob feroz oposição dos deputados que a
haviam apoiado com Dilma. A partir de março ficou evidente que o governo perdera
completamente sua capacidade de administrar o País. As “previsões” catastróficas para a
economia no ano iam se confirmando e a Ficht completou o trabalho das agências de rating:
rebaixou o do Brasil, agora definitivamente, do “grau de investimento” arduamente
conseguido no governo Lula.
Sob enorme pressão, a presidenta apoiou um programa bastante razoável sugerido pelo seu
novo ministro: 1. Um teto para as despesas primárias da União. 2. Mudanças na seguridade
social. Reconhecia também a necessidade de controlar as despesas e melhorar a gestão na
educação e na saúde, mas acreditava impossível fazê-lo.
A situação política do País continuou a agravar-se. Como resultado da sua falta de
protagonismo e da desaparição do seu apoio parlamentar, Dilma foi afastada provisoriamente
em maio. O vice-presidente, Michel Temer, ainda na interinidade, construiu uma base política
e escolheu para seu ministro da Fazenda Henrique Meirelles, que durante os oito anos de
Lula comandara o Banco Central.
A verdade é que o programa de Meirelles em sua arquitetura é muito parecido com o de
Nelson Barbosa, que nem sequer chegou a ser apresentado, devido à visceral indisposição
de Dilma para o exercício da política. Temer, ao contrário, é um velho e treinado político que
conhece e gosta de exercitar a sua arte. Começou por onde Dilma terminara: coordenou uma
espécie de parlamentarismo de ocasião, que vem aprovando, apesar das dificuldades
estruturais que cercam a atual conjuntura nacional, o que parecia impossível.
É claro que semelhanças arquitetônicas não escondem diferenças na forma de ver o mundo
dos dois programas. O importante, entretanto, é que eles não diferem no reconhecimento da
absoluta necessidade de dar um fim aos descalabros fiscais, aprovar algumas reformas
estruturais, superar a contabilidade “criativa” e o voluntarismo inconsequente posto em
prática a partir de 2012 (quando Dilma atingiu o auge da sua aprovação nas pesquisas de
opinião) e os danos causados pela desastrada (mas bem-sucedida) reeleição em 2014.
Deixemos de lado a hipocrisia e tentemos, por alguns instantes, ser honestos. Quase tudo o
que está sendo proposto (por Temer e que esperamos seja aprovado) já era uma
necessidade visível nos governos Sarney e FHC. Foi reconhecido no primeiro mandato de
Lula, inclusive com sugestões interessantes, como a modernização da CLT, mas logo
abandonadas por Dilma, que decidira que “gasto público é vida”.
O que faltou, então? Talvez grandeza para empenhar o eventual prestígio passageiro que a
sorte de cada um lhe conferiu numa sociedade com eterno viés curtoprazista. O paradoxo é
que parece ser preciso alguém com pouca aprovação no curto prazo para propor e aprovar o
que ela necessita no longo. •
ÍNDICE
Nas antípodas. Keynes iluminou a economia, David Ricardo seria o herói dos nossos cientistas tristes
Lá se vão 81 anos desde que John Maynard Keynes se debruçou sobre os dogmas que
aprisionavam e ainda aprisionam as mentes e os corações de alguns economistas, os
praticantes da Ciência Triste. Em sua Teoria Geral, as relações entre salário e emprego
ocupam papel central para a construção do conceito de demanda efetiva. Pedimos licença ao
caro leitor para citar descomedidamente a obra do Mestre (agora de domínio público, mas há
tempos ausente dos domínios de certos públicos): “Não é muito plausível afirmar que o
desemprego nos Estados Unidos, em 1932, tenha resultado de uma obstinada resistência do
trabalhador em aceitar uma diminuição dos salários nominais, ou de uma insistência
obstinada de conseguir um salário real superior ao que permitia a produtividade do sistema
econômico... O trabalhador não se mostra mais intransigente no período de depressão do
que no de expansão, antes ao contrário... A quantidade de mão de obra que os empresários
resolvem empregar depende da soma de duas quantidades, a saber: o montante que se
espera seja gasto pela comunidade em consumo, e o montante que se espera seja aplicado
em novos investimentos. Essa soma é o que chamamos de demanda efetiva... A propensão
a consumir e o nível do novo investimento é que determinam, conjuntamente, o nível de
emprego, e é este que, certamente, determina o nível de salários reais – não o inverso”.
Em oposição, ainda hoje são ouvidos os ecos do misterioso sucesso de uma teoria
econômica que estabelece relações positivas entre a queda dos salários e a geração de
empregos. Por essas e outras, Keynes sustentava especial implicância com David Ricardo.
Ao formular sua teoria da distribuição entre salários, lucros e renda da terra, Ricardo eliminou
o problema da geração da renda agregada e da massa de salários pelo gasto empresarial,
isto é, sumiu com as incertezas da demanda efetiva. “Deu-lhe virtude a circunstância de que
seus ensinamentos, transportados para a prática, eram austeros e, por vezes,
desagradáveis. Deu-lhe primor o poder sustentar uma superestrutura lógica, vasta e
coerente. Deu-lhe autoridade o fato de poder explicar muitas injustiças sociais e crueldades
aparentes como incidentes inevitáveis na marcha do progresso, e de poder mostrar que a
tentativa de modificar esse estado de coisas tinha, de modo geral, mais chances de causar
danos que benefícios. Por ter formulado certa justificativa à liberdade de ação do capitalista
individual, atraiu-lhe o apoio das forças sociais dominantes agrupadas atrás da autoridade.”
Gota d’ água. O aumento da gasolina se soma a um histórico de violência, corrupção e insensibilidade política
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Pode-se dizer o mesmo de muitos outros países, mas dificilmente com tanta ênfase e
certeza: para o México, 2016 foi um ano péssimo e 2017 será pior. O ano passado foi
marcado pelo agravamento de problemas sociais, deterioração da economia, queda da
produção de petróleo e aumento do número de vítimas do narcotráfico e da violência política.
A todos esses problemas agora se soma Donald Trump, cuja candidatura o desavisado e
incompetente presidente Enrique Peña Nieto ajudou a impulsionar em agosto ao convidá-lo,
recebê-lo com honras de chefe de Estado e se deixar humilhar por ele na esperança de
agradá-lo.
Antes mesmo de sua posse começar a agravar todos esses problemas, o gasolinazo,
aumento de 14% a 24% dos combustíveis a partir de 1º de janeiro, serviu de estopim a uma
revolta popular que já dura duas semanas e não dá sinais de arrefecer. Estradas foram
interrompidas, instalações da estatal petroleira Pemex ocupadas e mais de mil lojas e
mercados foram saqueados, sem falar de manifestações mais pacíficas em praticamente
todas as cidades.
Nos anos 1980, o México exportou petróleo para os EUA como se não houvesse amanhã.
Ajudou o vizinho do Norte a quebrar o poderio da Opep e derrubar os preços internacionais,
mas esgotou as reservas recém-descobertas. Desde 2004, a produção começou a cair,
enquanto a indústria nacional de refino e petroquímica se deteriorava. No ano passado, o
país voltou a ser importador líquido, em proveito das refinarias estadunidenses.
Juntamente com a queda das commodities e a incerteza política criada pela eleição de
Trump, isso impulsionou a desvalorização do peso e a inflação e alimenta o aumento de
preços. Um segundo aumento foi programado para o início de março, antes que os preços
sejam totalmente liberados dentro da política de privatização do setor. O presidente conduziu
a reforma e privatização do setor de petróleo e eletricidade, desde dezembro de 2013, com a
promessa de trazer investimentos privados e baratear os combustíveis. Agora culpa o
antecessor por ter subsidiado os combustíveis e justifica-se cobrando os eleitores em rede
nacional: “O que vocês fariam no meu lugar?”
O império construído pelos EUA talvez não desabe com a mesma rapidez, mas dá passos na
mesma direção. Desde os anos de Ronald Reagan, os EUA estimularam ou forçaram a
abertura de seus parceiros ao livre-comércio e à livre circulação de capitais. Com isso os
obrigou a moldar suas economias às suas demandas e fortaleceu sua hegemonia. Países
aliados tiveram de sucatear setores tradicionais e enfrentar crises sociais, embora também se
criassem oportunidades de investimento e enriquecimento para suas elites. Por outro lado, os
EUA abriram mão de algumas indústrias e aceitaram manter um crescente déficit comercial,
compensado pelo fluxo de capitais para Wall Street. Apesar do aumento da desigualdade e
do desemprego, um número suficiente de pessoas, principalmente nos EUA, podia ser
persuadido a não contestar o sistema antes da crise de 2008.
Ficou mais difícil mascarar os problemas causados pela globalização neoliberal aos
trabalhadores da própria superpotência. O resultado é Trump e um eleitorado iludido sobre a
possibilidade de comer o bolo e continuar com ele, sem consciência de que querer revogar o
livre-comércio apenas nos aspectos danosos à classe média estadunidense e cobrar dos
aliados os custos da “proteção” oferecida por Washington é abrir caminho à desintegração do
império e matar a galinha dos ovos de ouro. Mesmo que os EUA pudessem voltar aos anos
1960, não teriam como obrigar a China e as demais potências industriais asiáticas surgidas
nas últimas décadas a fazer o mesmo e perderiam o que lhes resta de competitividade. •
ÍNDICE
Na modesta sede da campanha de Marine Le Pen, em uma das ruas mais elegantes de
Paris, a Rue du Faubourg Saint-Honoré, falta alguma coisa, e não é apenas a estátua
simbólica de Joana d’Arc ou o galo gigante de papel machê que enfeita os escritórios
permanentes da Frente Nacional a poucos quilômetros dali.
Não longe do Palácio do Élysée, onde Le Pen espera morar daqui a quatro meses, cartazes
pendurados na sala da entrevista mostram o slogan da campanha, Au Nom du Peuple (Em
Nome do Povo), e as palavras MARINE Presidente, acompanhadas de uma rosa azul, sem
espinhos. Não há menção à FN nem qualquer indício do nome Le Pen. Também
desapareceu o logotipo da Frente, uma chama vermelha, branca e azul.
É o lançamento oficial de sua campanha presidencial. Ela chega em um blazer que combina
perfeitamente com os cartazes e a cadeira destinada a ela, perto da obrigatória bandeira
francesa, a Tricolore, que se mistura às paredes cinza-azuladas. Tudo é perfeitamente
coordenado e tranquilizador. Le Pen sorri e deseja a todos um feliz ano-novo.
Tudo é extrema-direita “light”, a imagem suave de uma mulher conhecida como durona e
defensora de uma “França esquecida”, que, segundo fotos “privadas” divulgadas no ano
passado, também é generosa com os gatos.
Não está claro quem representa Le Pen, se é que há alguém. Sua campanha presidencial de
2012 foi conduzida por uma agência pouco conhecida, a Riwal, dirigida por um velho amigo,
Frédéric Chatillon, ex-integrante da sombria organização estudantil de extrema-direita
Groupe Union Défense. Em 2015, um juiz ordenou a Chatillon, cujo nome apareceu nos
Panama Papers, e à Riwal a não trabalhar de “maneira direta ou indireta” com a FN como
parte de uma investigação sobre financiamento de campanha.
Diante do QG da campanha de Le Pen, L’Escale, um cartaz de eleição tinha sido
vandalizado. Por baixo dos arranhões, Le Pen podia ser vista diante de um fundo bucólico a
olhar sonhadora para o futuro da extrema-direita, acima do slogan “La France Appaisée” (a
França tranquilizada). Mais uma vez, nenhuma menção à FN.
Os institutos de pesquisa são cautelosos ao prever o resultado da eleição presidencial, mas
uma disputa em segundo turno entre o candidato de centro-direita, François Fillon, e Le Pen
ou o ex-ministro socialista independente Emmanuel Macron é considerado o cenário mais
provável. Os partidos Socialista e Ecológico escolherão seus candidatos no fim do mês, de
uma longa lista de candidatos de esquerda, incluído o ex- primeiro-ministro Manuel Valls.
Em L’Escale, diante dos integrantes da Associação Anglo-Americana de Imprensa, Le Pen
estava confiante ao atacar diversos alvos: “Chantagem, ameaças, intimidação... e diktats”
dos tecnocratas da UE. O euro, disse, “é uma faca enfiada nas costelas do país”. Sem falar
na “submissão” forçada da França à vontade de Bruxelas.
Le Pen atacou a chanceler alemã, Angela Merkel, e a dominação pela UE da política do
continente. Usou o termo à la schlague, que significa “à surra” e é mais associado à
brutalidade de um campo de concentração nazista. Este é um dos motivos pelos quais muitos
concordam com Fourquet e veem com ceticismo a reformulação de Marine. •
ÍNDICE
O Califado do Estado Islâmico (EI) planejou e marcou no calendário cristão, para o fim de
2016 e início de 2017, a realização de sangrentos ataques terroristas. Em Berlim, em 19 de
dezembro, um dos jihadistas do EI lançou, a fim de atropelar para matar, um caminhão de
carga de selo TIR (para transporte transnacional pesado) contra um tradicional mercadinho
de Natal, resultando 12 mortos e 48 feridos.
O autor desse atentado, um tunisiano, logrou fugir com facilidade à Itália e acabou morto nas
primeiras horas do dia 23, numa troca de tiros com dois policiais em ronda preventiva pela
cidade de Milão.
Nas primeiras horas de 2017, no lado ocidental de Istambul, outro jihadista do Califado
invadiu o Club Reina, ocupado por 500 pessoas em festa de réveillon, e disparou 180
projéteis de Kalashnikov, com um saldo de 39 mortos e 24 feridos. O autor deste ataque
ainda está foragido. No dia 9 deste mês, em Jerusalém, um palestino arremessou outro TIR
contra um grupo de pessoas, ferindo 15 e matando 4 jovens de menos de 20 anos. O autor
do atentado foi morto a tiros e o governo de Israel atribuiu a responsabilidade ao Estado
Islâmico.
ÍNDICE
CRÉDITOS DA PÁGINA: Ilustração: Baptistão
O axé vai ao museu
MÚSICA Um documentário inicia a historiografia do gênero que ganhou as avenidas
do Brasil e hoje perde espaço
No princípio, eram o verbo e a verba. De meados dos anos 1980 em diante, a música do
Carnaval de rua da Bahia adquiriu novas feições e expressividade e se impôs pouco a pouco
no cenário nacional, a ponto de adquirir dimensões industriais, mover cofres abarrotados de
dinheiro e incomodar ambas as partes, ao ser tomada como espelho referencial do
neoliberalismo brasileiro sob Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). “Axé music” foi o
apelido que se deu à aparente contradição em termos, à música rebolativa e apelativa que
constrangia e rendia divisas ao presidente que era o príncipe brasileiro da sociologia.
Passaram-se três décadas, as jazidas se esgotaram e ambos, a axé music e o neoliberalismo
à brasileira, enfrentaram choques de realidade e chegaram a ser dados como mortos. O
documentário Axé - Canto do Povo de um Lugar estreia neste mês no país tropical “neo-
neoliberal” e estabelece, a partir da Bahia natal e do pop, a primeira tentativa historiográfica
em torno daquele tema que afugentava acadêmicos como a cruz afugenta o diabo dos
católicos.
João Jorge: presos só pelos dread locks. Ivete Sangalo: Pepererê pepê pepê
Bel, ex-Chiclete com Banana: instituição do Carnaval. Daniela e o grito da afirmação femininia
“Percebi que os documentos históricos que tínhamos da trajetória baiana eram muito pobres”,
Chico justifica a decisão de filmar o fenômeno onipotente em meados dos anos 1990, quando
encampado por dez entre dez gravadoras multinacionais estabelecidas no País. “Não tinha
um livro, um filme, nenhum documentário. Me deu vontade de fazer.” Axé - Canto do Povo de
um Lugar apoia-se em mais de cem entrevistas de artistas, empresários, donos de bloco etc.
Todo mundo está lá, dos inventores da axé aos patronos tropicalistas Gilberto Gil e Caetano
Veloso. “Foi um gesto de afirmação do preto baiano”, afirma Caetano a certa altura, deixando
de lado as implicações políticas do movimento e sublinhando o confronto racial subjacente ao
levante axé.
A quem tenha sempre obedecido aos preconceitos da crítica cultural contra a música
brasileira de maior poder comunicativo, Axé revela uma dinâmica intrincada, de grande
complexidade e, por que não dizer?, riqueza cultural. Tonho Matéria, do pioneiro bloco afro
Olodum, põe combustível na fogueira racial ao lembrar que, de maneira análoga ao que
aconteceu na aurora do samba carioca, músicos baianos de axé eram presos como
“vagabundos e maconheiros” pela polícia, apenas por ostentar cabelos rastafári. Com
sutileza, o filme dá elementos para embaralhar o que foi tido genericamente como uma
reprovação estética ao estilo musical com o espectro sempre negado do racismo à brasileira.
Se a música axé foi tão importante para a cultura afrodescendente baiana, a resistência
contra ela não seria também um tipo de racismo?
Kertész prefere contornar a fogueira a pulá-la. “Acho que é muito mais preconceito com a
música popular, do povão, que mexe com a massa. Dizem que é mal tocada, que o refrão é
chiclete, várias coisas que fazem as pessoas criarem esses preconceitos. O axé tem coisas
lindas, como Baianidade Nagô, e por outro lado tem composição de Ivete Sangalo que fala
‘pepererê pepê pepê’ e fica só nisso. Dá pra entender um pouco o preconceito.”
A apropriação do axé afrodescendente pelos não negros não é tematizada diretamente, mas
prevalece na eloquência de imagens que falam por si. “Isso vem revertendo com o passar do
tempo. Eles deixam de estar na linha de trás e vêm para a frente”, afirma o diretor. “Alguns
críticos, como Letieres Leite, dizem que a decadência da música baiana vem porque parou
de sugar da música preta os toques de candomblé, de onde surgiu tudo.” Líder da virtuosa
Orquestra Rumpilezz, Letieres é músico negro baiano, cujo depoimento traz à baila o tema
ainda não dissecado, como também não o é o poderio feminino no comando dos antes
exclusivamente masculinos trios elétricos.
Ironicamente, o gênero musical que se confundiu com o neoliberalismo sob FHC hoje sofre
com a sanha privatizadora do espaço público. “O Carnaval da Bahia passa por um momento
de transformação absurda”, avalia Kertész. “O Carnaval hoje é todo feito dentro de
camarotes. O que era voltado para a rua vai se voltando cada vez mais para a privatização e
para as festas internas. Estamos num momento nebuloso, no qual blocos não conseguem
patrocínio e muitos nem vão sair neste ano. Imagine o Olodum sem patrocínio. Onde vamos
chegar?”
O presidente do Olodum, João Jorge, confirma as dificuldades, que embaralham agora os
percalços da axé ao longo da era petista e a atual crise econômica, política e institucional
fomentada pelo golpe. “Depois de um grande crescimento, de o Brasil tornar-se um país
razoavelmente viável, a economia errou muito com a crise da democracia”, afirma João
Jorge. “As empresas e os governos alegam dificuldade geral para patrocinar. Vai ser um
Carnaval emblemático para o Olodum, os blocos afro e a música chamada axé.”
As mesmas práticas neoliberais que catapultaram a negritude musical baiana como indústria
hoje voltam-se contra ela, especialmente na ponta mais pobre, e negra. “Os blocos afro vão à
rua com a população que tem menos poder aquisitivo. Salvador tem 86% de população
negra. Os consumidores de qualquer produto, de absorvente a palito de fósforo, são negros.
Quem consome cerveja em Salvador?”, pergunta João Jorge. As marcas seguem a manada
e privilegiam o sertanejo nos camarotes. “Você usa uma festa local para transferir recursos
para outros lugares”, avalia. Ele mostra que, com a guinada mais-que-conservadora do
Brasil, as portas se fecham em regime de parceria público-privada: “Nos últimos anos, houve
apoio da Petrobras, da Caixa Econômica, do Banco do Brasil. Neste momento, tudo indica
que não haverá isso dessa forma”.
Quem se esgotou primeiro, o verbo ou a verba? Axé – Canto do Povo de um Lugar debruça-
se mais na ascensão do que no declínio e não chega a vasculhar os impasses presentes da
música que repovoou o espaço público baiano (e brasileiro) e alçou, sobretudo, mulheres,
negros e nordestinos ao poder (cultural) local, antes mesmo que Luiz Inácio Lula da Silva e
Dilma Rousseff os representassem no centro político.
Mais que refletir sobre uma dinâmica cultural, o documentário faz parte dela. Como acontece
desde que o samba é samba, o sucesso comercial das microrrevoluções culturais afasta
acadêmicos e gera a hostilidade de críticos culturais. Quando declina, distancia-se no tempo
e vira peça de museu, ganha a estranha autoridade de ser revisto pela crítica, pelo cinema,
qualquer dia desses pela academia. Neoliberais ou socialistas, somos todos a axé music que
amamos-e-detestamos. As contradições restam preservadas ao final de Axé, mas já não há
armário, democrático ou de exceção, em que elas caibam. •
AXÉ, CANTO DO POVO DE UM LUGAR
Chico Kertész.
Brasil, 2016, 107 minutos, 12 anos.
Produção Zahir Company
ÍNDICE
Suas boutades traíam uma indisfarçável vontade de romper com a panaceia social, coisa que
o escritor acabou fazendo, ao se alistar nas tropas de Pancho Villa, no México, e sumir para
sempre, em pleno auge do prestígio literário. Esse desfecho da vida de Bierce alimentou
ficções, como Gringo Viejo, de Carlos Fuentes. Mestre dos contos, fez de alguns deles,
como A Coisa Maldita, uma reflexão metafórica do avanço silencioso do autoritarismo. Muito
por causa da circunstância histórica e social, velhos equívocos orientam alguns verbetes, que
acabam sendo um tanto machistas ou preconceituosos. Amor marital, por exemplo, é
“afeição pervertida que é desperdiçada com a própria esposa”. O casamento é “uma
comunidade que consiste de um homem, uma mulher e uma amante, num total de duas
pessoas”. No geral, o tom de Bierce é ultrassofisticado. Leitura leve, mas não para tolos.
O livro aborda questões cruciais, e reconhecidas por qualquer escola de economia, sobre
como os mecanismos econômicos geram distorções nas relações de capital e trabalho.
Procurando repensar Marx, Harvey parte da atual crise, fruto de uma financeirização global
hiperendividada que começou nos anos 1980 , para tratar das contradições do capital, e não
do capitalismo. E critica: surgiu uma nova forma de geração de riqueza que despreza a
produção e vive de aluguéis, juros e lucros sobre o capital comercial e midiático ou, pior, só
da especulação de ativos ou dos ganhos de capital. “Infelizmente, o surgimento dessa
plutocracia é mais que evidente. É difícil disfarçar o fato de que ela vai muito bem, enquanto
a massa da população vai muito mal”.
O final da história está antecipado pelo título do livro Eu Matei JK, do jurista e escritor
Gladston Mamede. O ex-presidente Juscelino Kubitschek morreu em 22 de agosto de 1976,
não num acidente automobilístico, mas assassinado. A trama é desfiada em primeira pessoa,
na figura de um atirador de elite que serve à ditadura civil-militar e cumpre a missão
clandestina de alvejar o crânio do motorista do ex-presidente, para que o carro se
desgoverne e JK deixe de ameaçar os propósitos dos generais no poder. O protagonista
machadiano, sem nome, segue trajetória anônima do interior das Minas Gerais ao Exército,
onde prossegue pelos governos civis, até combater no Haiti, sob Lula . Vai para a reserva
durante o governo de Dilma Rousseff e termina incomodado pela Comissão da Verdade, que
ressuscita o caso. Navegamos pelas águas da ficção ou da realidade? O autor deixa em
aberto. Em 2013, a Comissão da Verdade de São Paulo concluiu que JK foi assassinado. Em
2014, a Comissão Nacional disse que não. Depois aconteceu tudo que aconteceu, e
continuamos sem saber.
Impossível não chorar vendo Eu, Daniel Blake, o novo filme do cineasta britânico Ken Loach.
A questão é: você chora por você mesmo, chora por causa de seu humanismo incontornável
ou chora porque sabe que tentar deter planos de extermínio dos mais vulneráveis é como
enxugar gelo em Ipanema? O discurso da inexorabilidade da tecnologia vai criando uma
legião incômoda de deserdados. É desse mundo que vem Daniel Blake, que trabalhou a vida
toda como carpinteiro em Newcastle. Incapaz de manusear um mouse de computador, aos
59 anos, Blake (Dave Johns) recupera-se de um ataque cardíaco e pela primeira vez na vida
precisa do Estado para sobreviver. Vai ser jogado no inferno das repartições e guias.
Médicos sem coração, burocracia sem fundo, indiferença sem limites: o que Blake colherá é
uma fórmula que vem sendo cuidadosamente universalizada.
A jovem Farah (Baya Medhaffer) vive um dilema particular: virar médica, como sua família
quer, ou seguir como vocalista de uma banda de rock. Ela também está na fase de
descoberta do amor, da vida noturna e do estrelato. É uma questão difícil em qualquer
situação, mas o filme é ambientado na Tunísia, no verão de 2010, pouco antes da Revolução
de Jasmim, que inaugurou os protestos da Primavera Árabe. Tudo pode ser ainda mais
complicado, sobretudo quando as autoridades descobrem que ela é a voz dissidente de uma
canção de protesto contra o governo repressivo de Zine El-Abidine Ben Ali, presidente do
país por 23 anos. Para proteger a filha, a mãe, Hayet (Ghalia Benali) opõe-se à carreira
artística e acrescenta o conflito familiar como uma variável a mais na equação do filme
dirigido por uma mulher, Leyla Bouzid. A jovem é tão determinada que opta pelo caminho
mais tortuoso. Prêmio de público no Festival de Veneza, Assim Que Abro Meus Olhos, que
entra em cartaz no Brasil, foi indicado pela Tunísia como representante para o Oscar.
O professor entra em sala de aula e rouba a cena. Pode ser raro, mas às vezes acontece. E
quando o ator sobe no palco e “rouba” o papel de um professor? Mais do que interpretar uma
hipotética aula da filósofa francesa Simone Weil, Afinação I é um monólogo que convida a
plateia a se colocar no lugar de alunos de uma escola que, se já não existe, deveria ser
inventada. Em 60 minutos de espetáculo, reflexões sobre a opressão no mundo do trabalho e
fora dele, o pensamento racional, o sentimento, a Justiça e a liberdade. A arte de pensar é
estimulada e potencializada por textos de Bertolt Brecht, Friedrich Hegel, Karl Marx e da
própria Simone Weil e uma interpretação sagaz e cortante de Georgette Fadel, atriz e
diretora formada pela Universidade de São Paulo.
O fetiche pelo passado mantém viva uma indústria que virou poeira. Morto o formato CD,
parece óbvio e ululante para os fetichistas que seria melhor ter em casa as cópias em vinil
dos discos de estrada Clube da Esquina 1 (1972) e 2 (1978), liderados por Milton
Nascimento. Ambos saíram originalmente em álbuns duplos, com rico material gráfico que o
CD matou antes de ser assassinado pelo fantasma do LP (e a internet). Os fetichistas com
R$ 150 para desembolsar em cada volume ouvirão em alta gramatura sonora e simbólica o
que já circula livremente por streaming e meios virtuais lícitos ou ilícitos. O volume original,
dividido com Lô Borges, contém nuvens ciganas densas, como Cais, O Trem Azul, Cravo e
Canela, Um Girassol da Cor do Seu Cabelo e Nada Será Como Antes. Seis anos mais tarde
e amplamente consolidado, Milton assinou sozinho o volume 2, mas o coalhou de estrelas,
de colegas de clube a Chico Buarque (em Canción por la Unidad Latinoamericana) e Elis
Regina (na imortal O Que Foi Feito Devera/ De Vera).
A capa épica e o formato de álbum com várias páginas ilustradas justificariam sozinhos o
fetiche por Novos Baianos F.C. em vinil, mas o terceiro título da discografia dos Novos
Baianos, lançado em 1973, é bem mais que mera embalagem. Menos celebrado e
disseminado que seu antecessor Acabou Chorare (1972), rivaliza com ele na massa sonora
que fundiu samba, rock e bossa nova de modo inédito até então, e que jamais seria superado
depois. Não há hits de rádio aqui, mas Cosmos e Damião e Os “Pingo” da Chuva são aulas
magnas de história do suingue brasileiro.
Antes do desencanto
Por Pedro Alexandre Sanches
TIM MAIA 1, 2 E 4. Tim Maia. Universal/Polysom
A revisão setentista da fábrica de vinis Polysom coloca lupa também na história do primeiro
soul man brasileiro, com a reedição de três dos quatro álbuns iniciais de Tim Maia, lançados
originalmente em 1970, 1971 e 1973. No primeiro estão os hinos soul Primavera (Vai
Chuva) e Azul da Cor do Mar e a versão funk do forró Coroné Antônio Bento (lançado em
1959 pelo alagoano Luiz Wanderley, como Matuto Transviado). No segundo há Não Quero
Dinheiro (Só Quero Amar), Você e Não Vou Ficar, além da versão preta para a bossa Preciso
Aprender a Ser Só (1965), do loiro Marcos Valle. Fica fora do pacote o Tim Maia de 1972,
que tinha Idade, O Que Me Importa e mais um flagrante da brasilidade torta do artista, na
versão envenenada do xote Canário do Reino, do Trio Nordestino. O ciclo fecha-se com o
título mais dançante, com Réu Confesso, O Balanço e Gostava Tanto de Você. A alegria era
externa, pois em seguida Tim rompeu com a multinacional, converteu-se à filosofia religiosa
Universo em Desencanto e, transitoriamente independente, virou Tim Maia Racional.
Mais vinis
1. Como vinil não precisa ser só saudade, ganha edição no formato o recém-lançado As
Coisas Simples da Vida, do soul man Hyldon.
2. CD pode virar vinil, como acontece com O Rappa-Mundi (1996), segundo CD da banda O
Rappa.
3. Fetiche custa caro na caixa da extinta gravadora Elenco, mito da bossa nova e da arte de
capas de LP. Saiu em 2014 e custa salgados 420 reais.
AGENDA
Curitiba
A potência vocal e a explosão de palco de Filipe Catto estarão presentes na Caixa Cultural
de 13 a 15 de janeiro, com o espetáculo Tomada, álbum lançado em 2015. Ingressos: R$ 10
e R$ 20.
Belo Horizonte
A exposição Estado de Sítio, do artista mineiro Eder Santos, questiona as tensões
sociopolíticas e o momento em que vivemos por meio da arte-tecnologia. Grátis. No Palácio
das Artes, até 22 de janeiro.
Fortaleza
O Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura traz de volta à terra natal as obras do pintor
Raimundo Cela, um moderno que nunca foi um modernista no início do século XX. A partir de
17 de janeiro.
Rio de Janeiro
A peça Luiz e Nazinha – Luiz Gonzaga para Crianças, no Teatro Dulcina, recorre a uma
fábula de um amor inocente para resgatar clássicos do Rei do Baião. Livre. Sábados e
domingos, às 16 horas. Ingressos: R$ 10 e R$ 20.
Rio de Janeiro
A partir de 18 de janeiro, a Casa Rio, em Botafogo, recebe o espetáculo Carne do Umbigo,
de Maria Resende. É um misto de performance e recital de poesias. Ingressos: R$ 30. Até 8
de fevereiro.
ÍNDICE
CRÉDITOS DA PÁGINA: Bettmann/Corbis/Divulgação, Julio Ricardo, Elena Moc, Domicio Pinheiro/Estadão Conteúdo e
Julia Zakia
O poder da fama
THE GUARDIAN A ligação entre notoriedade e grandes empresas explica a
ascensão de figuras como Trump
Agora que um astro de reality TV se prepara para ser o presidente dos Estados Unidos,
podemos concordar que a cultura das celebridades é mais do que uma simples diversão
inocente – e que poderia, de fato, ser um componente essencial dos sistemas que governam
nossa vida?
A ascensão da cultura das celebridades não aconteceu por si só. Ela foi cultivada durante
muito tempo pelos anunciantes, os marqueteiros e a mídia. E tem uma função. Quanto mais
distantes e impessoais são as corporações, mais elas contam com o rosto de outras pessoas
para conectá-las a seus clientes.
Corporação significa corpo; capital significa cabeça. Mas o capital corporativo não tem
cabeça nem corpo. É difícil para as pessoas ligar-se a uma franquia homogeneizada de
propriedade de um hedge fund , cuja identidade corporativa consiste em um armário de
arquivos na Cidade do Panamá. Então a máquina precisa de uma máscara. Ela tem de usar
o rosto de alguém que vemos com tanta frequência quanto vemos nossos vizinhos de porta.
É inútil perguntar o que Kim Kardashian faz para viver: seu papel é existir em nossas mentes.
Ao interpretar nossa vizinha virtual, ela induz um clique de reconhecimento em benefício de
qualquer monólito cinza que esteja por trás dela nesta semana.
Uma obsessão pela celebridade não fica silenciosamente junto das outras coisas que
valorizamos; ela ocupa seu lugar. Um estudo publicado na revista Cyberpsychology revela
que uma mudança extraordinária parece ter ocorrido entre 1997 e 2007 nos EUA. Em 1997,
os valores predominantes (conforme julgados por um público adulto) expressos pelos
programas mais populares entre crianças de 9 a 11 anos eram o sentimento de comunidade,
seguido por benevolência. A fama vinha em 15º dos 16 valores testados. Em 2007, quando
programas como Hannah Montana prevaleciam, a fama vinha primeiro, seguida de
realização, imagem, popularidade e sucesso financeiro. O sentimento de comunidade tinha
caído para 11º, benevolência para 12º.
Um trabalho publicado no International Journal of Cultural Studies (IJCS) revelou que, entre
pessoas pesquisadas no Reino Unido, as que acompanham mais de perto as fofocas sobre
celebridades têm três vezes menos probabilidade do que as pessoas interessadas em outras
formas de notícias a se envolver em organizações locais, e a metade da probabilidade de
serem voluntárias em causas sociais. Os vizinhos virtuais substituem os reais.
Quanto mais misturado e homogeneizado for o produto, mais diferente será a máscara que
deve usar. É por isso que Iggy Pop foi usado para promover seguros de carros e Benicio del
Toro é usado para vender Heineken. O papel dessas pessoas é sugerir que há algo mais
excitante por trás do logotipo do que prédios de escritórios e planilhas. Eles transferem sua
modernidade às empresas que representam. Assim que recebem o cheque que compra sua
identidade, eles se tornam tão processados e insignificantes quanto o produto que estão
promovendo.
As celebridades que você vê com maior frequência são os produtos mais lucrativos,
expelidos por meio de uma mídia interessada por uma indústria de marketing cujo poder
ninguém parece conter. É por isso que atores e modelos hoje recebem uma atenção
desproporcional, captando grande parte do espaço antes ocupado por pessoas com ideias
próprias: sua perícia está em canalizar as visões de outras pessoas.
Del Toro e sua cervejinha: artista vende mais que plebeu
Uma pesquisa de bancos de dados feita pelo antropólogo Grant McCracken revela que nos
EUA os atores recebiam 17% da atenção cultural dada a pessoas famosas entre 1900 e
1910: pouco menos que os físicos, químicos e biólogos juntos. Os diretores de cinema
recebiam 6% e os escritores, 11%. Entre 1900 e 1950, os atores tiveram 24% da cobertura e
os escritores, 9%. Em 2010, os atores recebiam 37% (mais de quatro vezes a atenção dada
aos cientistas), enquanto a porcentagem dada a diretores de cinema e escritores caiu para
3%.
Você não precisa ler ou assistir a muitas entrevistas para ver que as principais qualidades
hoje procuradas em uma celebridade são banalidade, vazio e beleza física. Elas podem ser
usadas como uma tela em branco para se projetar qualquer coisa. Com poucas exceções, as
que têm menos a dizer dispõem do maior número de plataformas nas quais se expressar.
Isso ajuda a explicar a ilusão em massa entre os jovens de que têm uma chance razoável de
ser famosos. Uma pesquisa com jovens de 16 anos no Reino Unido revelou que 54% deles
pretendem se tornar celebridades.
Assim que as celebridades esquecem o papel que lhes foi designado, os cães do inferno são
soltos sobre elas. Lily Allen (cantora pop) foi a queridinha da mídia quando fazia publicidade
de John Lewis (shopping on-line). Gary Lineker (ex-craque da seleção inglesa e hoje
comentarista de tevê) não dava um passo errado quando só vendia comida junk para
crianças. Mas quando eles expressaram simpatia pelos refugiados foram destroçados.
Quando você recebe dinheiro das empresas, deve parar de pensar por si mesmo.
A celebridade tem um segundo grande papel: como arma de distração em massa. A pesquisa
publicada no IJCS que mencionei acima também revela que as pessoas mais interessadas
em celebridades são as menos envolvidas em política, as com menor probabilidade de
protestar e as menos inclinadas a votar. Isso parece destruir a frequente alegação
autojustificadora da mídia de que as celebridades nos conectam à vida pública.
pesquisa descobriu que as pessoas com fixação nas celebridades assistem ao noticiário
tanto quanto as outras, em média, mas parecem existir em um estado de diversão
permanente. Se você quiser que as pessoas permaneçam dóceis e descomprometidas,
mostre-lhes os rostos de Taylor Swift, Shia LaBeouf e Cara Delevingne várias vezes por dia.
Em Trump vemos uma fusão perfeita das duas principais utilidades da cultura das
celebridades: a personificação corporativa e a distração em massa. Sua celebridade tornou-
se uma máscara para seu próprio império empresarial caótico, terceirizado e inescrupuloso.
Sua imagem pública era a inversão perfeita de tudo o que ele e suas empresas representam.
Como apresentador da versão americana de O Aprendiz, esse herdeiro mimado de uma
riqueza imensa tornou-se a face do empreendedorismo e da mobilidade social. Durante as
eleições presidenciais, sua personalidade ruidosa distraiu as pessoas do vazio intelectual por
trás da máscara, um vazio hoje preenchido por representantes mais lúcidos do capital global.
As celebridades podem habitar sua vida, mas elas não são suas amigas. Independentemente
das intenções daqueles a que ela é conferida, a celebridade é o braço direito da exploração.
Vamos transformar nossos vizinhos novamente em nossos vizinhos, e virar nossas costas
àqueles que fingem sê-lo. •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Um repórter meio insolente de nome Nirlando Beirão cutucou, no início de 2005, o publicitário
e então candidato ao estrelato Roberto Justus a respeito de seu interesse (ou desinteresse)
pela política. Eis o diálogo travado, publicado na falecida Playboy:
NB: Na condição de Clinton, o senhor não ia dar aquela bobeira do caso Monica Lewinski,
ia?
RJ: Olha, o Clinton fez um governo extraordinário. Quem sou eu para acusá-lo por um deslize
pequeno. As pessoas têm deslizes, quem não tem? (...) Mas, como eu disse, o
tal approach político existiu e eu nem quis pensar. Tudo que faço, faço com dedicação.
Abandonar minha vida de empresário para me dedicar a uma vida de político? Eu sou pouco
político. Falo o que penso. Sou muito sincero, não consigo fazer aquela coisa de agradar a
todos, o acerto, o conchavo... Ser político, na essência, é saber negociar. Eu sei negociar ...
em negócios. Não me sentiria bem num universo em que teria de estar o tempo todo fazendo
acordo. Admiro quem é político por paixão, gente decente, que não usa a máquina do poder
para ficar rico, que entrega uma vida inteira à causa pública. São raros, mas existem.
Poucos meses antes da entrevista, Roberto Justus havia estreado, na TV Record, a versão
cabocla de The Apprentice, seriado da tevê americana NBC, que havia recrutado a insolência
caricata de um magnata imobiliário com enorme vocação para a autopromoção. Bem, se
Donald Trump é, uma década e pouco depois, presidente dos Estados Unidos, por que é que
Roberto Justus não poderia, reformulando seus juízos sobre a política, se espelhar no
exemplo dele?
É o que Roberto Justus já anunciou que fará. Começando, modestamente, pela Presidência
da República. Catapultado por O Aprendiz e por uma carreira no show biz e até então
limitado às namoradas loiras (Galisteu, Eliane), que têm nos auditórios e nas passarelas seus
meios de vida, o publicitário pop virou, ele também, uma celebridade e é com essa credencial
que ele pretende ser o homem capaz de definir o destino não de uns tantos coitados
desempregados, mas de 200 milhões de brasileiros à beira disso. Sem falar daquele
predicado que fez questão de mencionar à Playboy: a aparência, é claro.
Quem veio a substituí-lo no brasileirinho O Aprendiz – quando ele se cansou de demitir tanta
gente – foi um certo João Doria Jr., outro incansável alpinista social. Se Doria é hoje prefeito
da maior cidade do Hemisfério Sul, a bordo de seu cashmere, seu mocassim sem meia e
seus risíveis factoides, é natural que Justus se sinta habilitado a voos mais altos ainda.
Afinal, já trocou meia dúzia de palavras com o inspirador Trump e, aqui entre nós, o inglês de
Justus é muito melhor do que o de Doria. Na atual conjuntura de rendição ao Império, pode
ajudar.
ÍNDICE
– No fim do ano viajei. Não fui longe. Uma pequena cidade na Serra da Mantiqueira de nome
Santo Antônio do Pinhal. Graciosa e com temperatura pra lá de civilizada. Uma pousada
igualmente pra lá de recomendável que se chama Pousada do Cedro.
– Já estive lá. Me encantou o silêncio e a quantidade de passarinhos. E a comida na pousada
é boa.
– Boa, mas não tão barata.
– A cidade é bem servida de restaurantes, se bem lembro.
– Coisas boas e outras nem tanto, como em qualquer lugar do planeta. Mas o mais
impressionante foi notar que está muito difícil encontrar uma batata frita boa.
– Somos dois na empreitada. O que tem acontecido?
– Eu sei lá. Mas, obviamente, parece que estamos com problema na matéria-prima.
– Dificilmente, o dono de um desses restaurantes estaria disposto a investir mais em uma
batata, considerando que é acompanhamento pra encher a barriga.
– Já disse isso por aqui: a melhor que comi nos últimos tempos foi a do Burger King no
Aeroporto Santos-Dumont.
– Falando em matéria-prima, em que o leitor pode facilmente reconhecer a diferença entre a
boa e a ruim, é em frangos assados de padaria ou rosticceria.
– E eu continuo cismado com o frango Korin, que tem produzido coxas e sobrecoxas com a
mesma textura e cor do peito.
– Se fosse o contrário seria uma maravilha.
– Também vale uma investigação. E agora eu te conto sobre uma casinha na árvore que vi
por lá, na pousada.
– Tipo cabana?
– A de lá era muito mais sofisticada, mas tinha o conceito da cabana fora da casa.
– Fiz muitas ao longo da infância.
– Então, com certeza você vai se lembrar da primeira coisa que fazíamos quando a cabana
estava pronta.
– Uma comida.
– Uma refeição que fosse. Podia ser algumas frutas ou sanduíches, mas tinha de haver essa
comilança para a cabana ficar completa. Aliás, me lembro bem de uma, feita com bambu,
uma daquelas que despertam na gente a ilusão de que ser engenheiro seria uma boa ideia.
Pois nessa tal conseguimos fazer um fogão de tijolos, um braseiro, e fizemos bifes.
– Emblemático isso, para usar um adjetivo dos novos tempos.
– Só vira casa se tem comida, se todos podem fazer uma refeição juntos.
– Isso também poderia ser estudado em profundidade.
– Não creio que alguém fosse se interessar em provar que sem comida ninguém ou nada se
estabelece.
– Ainda hoje, acho eu, quando crianças vão brincar de casinha, acredito que não passe pela
cabeça delas lavar e passar roupa ou fazer uma boa faxina.
– Mas com certeza vão preparar uma comidinha. Ah! Lembrei de outra coisa da cabana de
bambu: o cheiro de bife jamais saiu de lá. •
ÍNDICE
A generalizada impressão de que o céu está – como temia aquele chefe gaulês do Asterix –
caindo sobre nossas cabeças vale além de uma metáfora da atual conjuntura. Uma
minuciosa investigação por satélite, que coletou dados de 1997 até 2015, e que tem à sua
frente uma meteorologista da Universidade de São Paulo, Rachel Albrecht, mapeou o mau
humor da atmosfera e indiciou os pontos onde provavelmente um raio é capaz de cair mais
de uma vez – muitas vezes – no mesmo lugar. A pesquisa, denominada Tropical Rainfall
Measuring Mission, acaba de ser divulgada pela revista Science. Cabe à infelicitada
Venezuela o campeonato mundial dos raios e trovões. Mais exatamente ao Lago Maracaibo,
o maior da América do Sul, com seus 13.120 quilômetros quadrados (dez vezes a Represa
de Itaipu). Ali, um específico quilômetro quadrado é golpeado, num ano, por 233 descargas
elétricas – ou seja, duas vezes em cada três dias do ano. No boletim da American
Meteorology Society que compulsou os dados da investigação, o único concorrente a
ameaçar a perigosa primazia venezuelana é a região de Kabare, na República Democrática
do Congo, ex-Zaire, perto da fronteira com a Tanzânia e a poucos quilômetros do Lago
Tanganica. Ali, os raios desabam 205 vezes por ano.
ÍNDICE
Verão 2017
Que rumo vão seguir os norte-americanos? Certo que não vão ficar alheios a todo esse
“mercado” – palavrinha desmoralizada essa. No curto prazo, aguarda-se o que vai fazer o
“novo” governo, saudado ansiosamente pela cartolagem atrapalhada desde a crise da Fifa,
que já leva dois anos.
Entre nós, continuam a perda de tempo e o desperdício, dois pecados capitais que nos dão e
vão dar muita dor de cabeça. Reportagem sobre o Maracanã mostra deterioração avançada,
enquanto não termina o cabo de guerra mediado pelo “dono” molenga em sua
irresponsabilidade. A população e o futebol? Paguem o prejuízo!
O prefeito do Rio de Janeiro revela intenção de municipalizar o Maracanã e o Teatro
Municipal, cuja vocação o próprio nome revela. Pode ser uma medida interessante.
O Botafogo prepara o retorno de parte de suas dependências para os ingressos populares, o
que deverá ser uma tendência daqui para a frente, com o fracasso da elitização do futebol
bancada pela mesma decadente Fifa.
Enquanto o barco afunda, tem gente que acha que o recesso dos políticos em férias é um
alívio ou trégua. Ledo engano, o buraco só aumenta. O mesmo ocorre na sociedade em
geral. Mais que movimentado, o ano começa agitado com a ocorrência dos massacres de
dimensão e formas terríveis, tudo isso em meio ao calorão abrasador do verão que demorou,
mas veio com tudo.
ÍNDICE
CRÉDITOS DA PÁGINA: Ilustração: Baptistão
Abertura
O Red Carpet do Globo de Ouro mostra que Hollywood vai esfregar seu umbigo em
Trump
A entrega do Globo de Ouro é a cada ano anunciada como uma prévia razoavelmente
acurada do que vai acontecer daqui a poucas semanas no Oscar – e a cada ano vai se
convertendo, graças ao seu tapete vermelho, no showroom dos estilistas, das grifes e dos
bijoutiers do primeiro e, por que não?, também do segundo time. As estrelas, uma após
outra, têm meio minuto para falar de seu trabalho e bem mais do que isso para um minucioso
comercial de seu Armani, seu Valentino, seu Versace, seu Vuitton, seu Prada. Em 2017, se a
moda Golden Globes ditou algum estilo, parece ter sido o de ousar em decotes abissais que
se confraternizam com o umbigo, abrindo a perspectiva para um atrevimento que combina
com a temperatura de Los Angeles – em tremendo contraponto às nevascas que atingem o
resto dos Estados Unidos – e desafia o clima de misoginia e do machismo que desponta no
horizonte da América trumpista.
Violência
O grafite de Bueno, antes de ser vandalizado em Higienópolis
Esta imagem que vocês veem sobreviveu por alguns dias num muro do califado tucano de
Higienópolis, São Paulo. Um judeu lendo o Alcorão, um muçulmano lendo a Torá. E, para
deixar ainda bem mais claro o que pretendia dizer, o grafiteiro Bueno tuitou (@buenos caos):
“Tenho convicção de que a humanidade tem de fazer mais esforços a fim de entender o
outro”. Não adianta mais procurar por essa bela peça de tolerância. A intolerância triunfou
rapidamente e o grafite foi vandalizado. A empavonada elite de São Paulo não é muito
diferente dos violentos presidiários do Norte.
Nenhum enigma intriga tanto os ingleses – com a possível exceção da verdadeira identidade
de Jack, o Estripador – do que o naufrágio do “invulnerável”. O Titanic deixou Southampton
no dia 12 de abril de 1912 e sucumbiu três dias depois ao choque com um iceberg gigante a
caminho da América. O número de vítimas passou de 1,5 mil. Teorias da conspiração não
faltam. Agora, quem apresenta a sua é um jornalista irlandês que há 30 anos tem no Titanic
sua ideia fixa. Num documentário exibido pela BBC, Senan Molony admite que houve o
choque com o bloco de gelo, mas a fortaleza dos mares estava fragilizada por um incêndio
que se propagou pela sua casa das máquinas e atingiu a fuselagem do casco no estaleiro de
Belfast, antes da viagem inaugural – e fatal. Molony apurou que chegou a haver uma
investigação judicial, porém o juiz tratou de isentar os construtores.
ÍNDICE
CRÉDITOS DA PÁGINA: John Sciulli/Getty Images For Instyle/AFP, Valerie Macon/AFP e Cheriss Maio/Nurphoto/Zuma
Press/Fotoarena