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ÍNDICE
18 de Janeiro de 2017 - Ano XXIII - Nº 935 

Cartas Capitais
"Foi a ausência do Estado que produziu essa violência cruel"
Brasiliana
O Haiti é aqui
Rosa dos ventos
A sonhadora Tia Carminha
Editorial
Resumo da ópera
A Semana
Sob o céu de Lisboa
Capa
Na desordem, a força do mal
Capa
O terror à espreita
Seu País Política exterior
A vocação de súdito
Seu País Violência
A ignorância sem diálogo
Economia Trabalho
A escravidão não acabou

Antonio Delfim Netto


O curto e o longo prazo
Economia Precarização
Sobre salários e empregos
Nosso Mundo México
Perto demais dos EUA
Nosso Mundo The Observer
A megera domada

Wáler Fanganiello Maierovitch


Terror sem trégua
Plural Música
O axé vai ao museu
Bravo!
Para ler, ver e ouvir
QI The Guardian
O poder da fama
QI Papinho Gourmet
Comida de cabana
QI Ciência
O raio cai mais de uma vez no mesmo lugar

Afonsinho
Verão 2017
QI Estilo
Abertura
VARA
Por Venes Caitano
O PAÍS DA BARBÁRIE

 Tenho a impressão de que um dia já ouvi falarem que o Brasil “é um País cordial”.
Mas deve ser coisa da idade.
José Miguel de Souza
(Enviado via Facebook) 

 O que vemos no Brasil não é uma luta, mas um governo agindo premeditadamente
como máquina de matar. Uma eliminação premeditada da pobreza pela via mais
rápida e eficaz: a negação de todos os direitos.
Marcia Bittencourt
(Enviado via Facebbok)

TORRES DE MARFIM SITIADAS

 O artigo “Torres” de Thomaz Wood Jr. trata de um tema essencial na discussão


sobre a universidade atual. A pontuação a ser obtida pelo pesquisador, com vistas à
progressão na carreira, passou a ser mais importante do que o significado da
pesquisa para a sociedade que mantém, com grande sacrifício, a universidade
pública, entre nós. E é a universidade pública, responsável por somente 20% das
vagas do ensino superior brasileiro, que produz a quase totalidade da pesquisa
relevante em nosso País. Precisamos de universidades que tenham por objetivo
principal a busca e a transformação do conhecimento, e que deem conta dos
desafios sociais presentes em um mundo sujeito a muito rápidas transformações.
Pela experiência milenar das universidades no mundo, já se contatou que elas
podem perder completamente sua função, e até desaparecer, em alguns
momentos, como aconteceu, por exemplo, nos séculos XVII e XVIII, quando o
grande progresso ocorrido nas ciências deu-se por fora e à revelia delas.
João Augusto de Lima Rocha
Salvador, BA
(Enviado via Carta)

RUMO A 2017

 Em sombrios tempos como os que se avizinham (mas já não sobrevoam nossas
cabeças e mentes?), a existência de algumas poucas publicações no ainda livre
exercício de esclarecer e escarafunchar o baú de maldades despejado sob os
costados dos pobres mortais é algo mais do que alvissareiro. Diria necessário,
salutar e oxigenante. Mesmo para os bestiais que cegamente a criticam, agora até
dispostos a envolvê-la na vala comum dos desmandos, ela é hoje algo como uma
tábua de salvação, diante da iniquidade de uma mídia cada vez mais adesista. Esta
revista faz o que pode diante da enxurrada, verdadeiro tsunami de forças contrárias.
Navega num mar tempestuoso e, dessa forma, resiste e insiste. Seus leitores
reconhecem o esforço e não a abandonarão por nada.
Henrique Perazzi de Aquino
Bauru, SP
(Enviado via Carta)

A HORA DOS JOVENS

 Os estudantes secundaristas são nossos porta-vozes e podem virar o jogo da


educação no País. São símbolos de resistência, luta e coragem. Avante, estudantes
brasileiros! A educação pública agoniza.
Selma Athayde
(Enviado via Facebook)

 Como de costume, a direita, incapaz de refutar os argumentos de Ana Júlia Ribeiro,


procura denegrir sua imagem. Como dizia meu avô: sataniza-se o carteiro para que
não se discuta a carta.
Nathalie Gomes Rovai
(Enviado via Facebbok)

DIAS DE IRA

 Admiro o espírito de coragem e enfrentamento do senador Roberto Requião, ele é


incansável. Que 2017 possa fortalecê-lo ainda mais, pois este país precisa de
ânimo e esperança.
Ivone Pereira de Souza
(Enviado via Facebook)

“A PIADA ESTÁ NO PODER”

 A política brasileira é uma piada de muito mau gosto, em que os pobres e a classe
média são extorquidos por meio de impostos para manter privilégios de uma casta
egoísta e conservadora.
René Rodrigues de Melo
(Enviado via Facebook)

O CARÁTER RACISTA DO RETROCESSO

 Aos negros autossuficientes, que têm suas conquistas individuais, parabéns. Só


não cometam a desfaçatez de negar um comportamento histórico porque você é
bem-sucedido. Sou negro e também me acho autossuficiente, mas nem por isso a
sociedade deixa de me olhar com desprezo.
Amauri Henrique
(Enviado via Facebook)
COMO CONGELAR O FUTURO

 Acompanho com apreensão os desdobramentos dos movimentos políticos e


econômicos do governo brasileiro nos últimos meses. A economia está longe de ser
o nosso único problema e me atrevo a dizer que nem sequer é o maior deles,
avaliação da qual diverge o governo. Parece perdurar ainda uma anacrônica
percepção de que distribuir renda é “coisa de comunista” em uma sociedade
excessivamente desigual como a nossa. Por outro lado, o presidente deixa
transparecer que medidas do ajuste fiscal, como a PEC 241 e a reforma da
Previdência, servirão para bancar regalias de banqueiros, empresas de grande
porte e funcionários públicos de alto escalão, em detrimento de necessidades
básicas da classe média e da população mais carente. No estado do Rio de
Janeiro, funcionários públicos têm salários medianos parcelados, enquanto
governador, secretários e magistrados têm seus altos ordenados pagos em dia,
acrescidos dos mais diversos penduricalhos. O mesmo governo que financia a
privatização de empresas públicas, paga uma das maiores taxas de juros do
mundo, perdoa dívidas bilionárias de grandes empresas de telefonia e oferece
incentivos fiscais a fundo perdido é o mesmo que se diz incapacitado de arcar com
gastos sociais que representam uma ínfima parcela do Orçamento. A conta não
fecha.
João Victor Chaves
São Paulo, SP
(Enviado via Carta)

“MÃOS SUJAS” NO PLANALTO

 O governo atual demonstra que não tem capital moral para dirigir o País com toda
a sua cúpula sob suspeição. É necessária uma medida de contenção com o objetivo
de realizarmos um novo plebiscito, ou nova eleição, para darmos legitimidade ao
governo, pois este já se perdeu no meio do caminho da corrupção. Eliseu Padilha,
Romero Jucá, Renan Calheiros, Rodrigo Maia e Michel Temer já não têm
significado algum para o povo brasileiro. Eleições já!
Paulo Sérgio Rodrigues Pereira
Rio de Janeiro, RJ
(Enviado via Carta)

Aqui jazem as vítimas do massacre de Manaus

“FOI A AUSÊNCIA DO ESTADO QUE PRODUZIU ESSA VIOLÊNCIA


CRUEL”

 O Estado a cada dia que passa é mais omisso. E não é PSDB, PT ou P que for,
todos os que entraram no poder se esquivaram do problema. Deu no que deu.
Alexandre S. Baldin
(Enviado via Facebook)

ÍNDICE

 CRÉDITO DA PÁGINA: Raphael Alves/AFP


O Haiti é aqui
Os jovens atletas do Pérolas Negras reavivam o orgulho dos imigrantes

Por Fernão Ketelhuth

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Nou pap pè, nou pap jam pè. O coro em crioulo haitiano ecoa pelo Estádio Nicolau Alayon,
na Barra Funda, zona oeste de São Paulo. Cantado por um grupo de 18 torcedores, significa
“não tememos, nós nunca vamos temer”. O grito de incentivo é endereçado aos Pérolas
Negras, único time estrangeiro a participar da Copa São Paulo de Futebol Júnior, tradicional
torneio para atletas com idade entre 15 e 19 anos. O jogo começa com atraso, às 11h02 da
manhã. Os haitianos enfrentam a equipe da casa, o Nacional. Tentam vencer pela primeira
vez na Copinha. Um empate seria um resultado inédito. Em 2016, quando debutaram na
competição, os Pérolas foram superados em seus três confrontos. Na atual edição, derrotas
nas rodadas iniciais para Goiás e Cori-Sabbá, do Piauí. “Hoje é o nosso dia”, arrisca o
produtor musical Robert Montinard. Nascido na capital Porto Príncipe, Montinard mantém
longos dreadlocks, parcialmente encobertos por um gorro nas cores da bandeira jamaicana.

Bob, como prefere ser chamado, fala português com desenvoltura. Mudou-se para o Brasil
em dezembro de 2010, 11 meses após o terremoto que causou mais de 300 mil mortes no
Haiti. Apelidado de “Monstro Divino”, o sismo fez ruir a casa de três andares na qual o
produtor morava com a mulher, Mélanie, e os filhos, Bimba e Lula. Mélanie foi a única a
escapar do imóvel antes do desabamento. Bob sofreu duas fraturas na perna esquerda, mas
conseguiu proteger Bimba, então com 1 ano, até a chegada do resgate. Lula, à época com 2
anos, ficou 48 horas sob escombros. Bombeiros se surpreenderam quando o encontraram
vivo. A necessidade de tratar a perna machucada e o medo de novos desastres levaram Bob
ao Rio de Janeiro. A adaptação foi sofrida. “No Haiti, a vida era tranquila, podia auxiliar os
mais pobres. Quando vim para cá, foi a minha família que precisou de apoio. Tive dificuldade
para conseguir o visto de residência. Demorei a encontrar um bom emprego.”

“Caldeirão”. Os torcedores haitianos não perderam o ânimo, apesar do calor de 33 graus

dois anos, Montinard trabalha no projeto Haiti Aqui, criado para facilitar a integração dos
imigrantes recém-chegados ao Brasil. De 2011 a 2015, cerca de 50 mil haitianos entraram no
País. A iniciativa é mantida pela ONG Viva Rio, responsável pela Academia Pérolas Negras.
Construído em Porto Príncipe, o complexo tem campos de futebol, piscina, sala de ginástica
e escola. São atendidos 120 adolescentes, entre eles os 25 atletas na Copa São Paulo. O
técnico é o brasileiro Rafael Novaes. “Os caras precisam chutar mais, mano”, reclama o
estudante Ossanto Georges. Faixa na cabeça, mostra irritação com o fato de alguém ter
amarrado a bandeira do Haiti verticalmente no alambrado. “As faixas azul e vermelha têm de
estar na horizontal. Elas simbolizam nossa vitória sobre a França”, ensina, em referência à
Revolta de São Domingos, movimento promovido por escravos responsável pela libertação
do país, em 1804. Ossanto desembarcou em São Paulo há três anos com o plano de juntar
dinheiro. Foi explorado na construção civil antes de ser contratado por uma gráfica.
Atualmente, cursa Tecnologia da Informação e divide quarto com um amigo em um cortiço no
Centro da capital paulista. Diz ter sido vítima de preconceito, mas prefere minimizar o
ocorrido. “É uma coisa tão estúpida que eu não ligo. Sou bem tratado pela maioria.”

Em sua segunda participação na Copa São Paulo, o time obteve a primeira


vitória

Após um insosso primeiro tempo, a partida esquenta. Não é força de expressão. Ao meio-dia,
a temperatura alcança 33 graus. O árbitro marca pênalti para o Nacional. Um hatiano com
uma camiseta regata do Boston Celtics, time da liga americana de basquete, dispara
palavrões em crioulo. Ao perceber que o juiz não o compreende, apela para xingamentos em
português. Seu nome é Philippe Louis. Tem 30 anos e um olhar de permanente
desconfiança, consequência, talvez, de infortúnios que se recusa a detalhar. Casado com
uma brasileira, vende produtos de sorveteria em uma loja. Domina cinco idiomas. “Não é fácil
viver aqui, mas ainda está melhor do que no Haiti.”

Festa no estádio do Nacional, em São Paulo


time da casa desperdiça o pênalti. Os Pérolas Negras se entusiasmam. Fenelon, craque da
equipe, acerta o canto esquerdo com um chute de fora da área. O gol inesperado origina uma
catarse coletiva. Ossanto corre sem rumo. Bob abraça Mélanie. Philippe soca o ar, deixando
cair um bastão de selfies. À comemoração sucede-se um coro improvisado: “Nacional, aqui é
nossa casa”. Os Pérolas Negras fazem o segundo gol. Quase ampliam antes do apito final. O
placar de 2 a 0 é insuficiente para evitar a eliminação. No gramado, os caribenhos rezam em
círculo. São aplaudidos por torcedores do Nacional, aglomerados no setor coberto do
estádio. Do lado oposto, os haitianos reúnem-se para cantar o hino do país que tiveram de
deixar. •

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: Fernão Ketelhuth


A sonhadora Tia Carminha

Por Mauricio Dias

A mineira Cármen Lúcia sonha também com Minas

 |   |   |   

Em apenas quatro meses na presidência do hoje discutido Supremo Tribunal Federal, a


ministra Cármen Lúcia tornou-se personagem importante e igualmente extravagante no
embaralhado palanque da política brasileira. Desde logo mostrou a diferença e, talvez por
isso, tenha recebido premiação da mídia. Ao assumir o Supremo, quebrou o protocolo de
posse e iniciou o discurso cumprimentando “o povo brasileiro” para, só em seguida, voltar à
norma regulamentar e dirigir-se a Michel Temer, empossado na Presidência após o golpe
contra Dilma Rousseff.
O constrangimento de Temer foi antecipado pela execução ao violão do Hino Nacional, na
voz de Caetano Veloso, eleitor de Dilma. Em certas ocasiões, Cármen Lúcia usa gestos, em
outras toma iniciativas pouco comuns, ou mesmo inéditas, na história dessa maior instância
de julgamentos do País, o STF, definida pelo destacado jurista Evandro Lins e Silva como
“corte de justiça com funções políticas”.

Cármen Lúcia, por exemplo, mudou a rotina do STF, em outubro, no Dia da Criança.
Recebeu 50 delas em visita ao tribunal. Rodeada por meninas e meninos, recusou-se a ser
chamada de ministra e optou, naquele momento, pela intimidade: “Sou Tia Carminha”.  Por
essas e outras, a presidente do Supremo tem marcado presença no noticiário. E conquistado
aplausos. A constância do marketing é tanta que lançou dúvidas e ciúmes no ar.

A presidente do Supremo curte oníricos projetos. Não falta quem lhe


atribua um propósito presidencial, caso o STE casse a chapa Dilma-
Temer. Mas tem mais...

Cármen Lúcia, mineira severa e reservada, teria vestido a pele de raposa. Uma tradição na
política de Minas Gerais em referência aos políticos que trabalham em silêncio. Em que
direção, sendo assim, levam os passos da raposa Carminha? Agora ela mergulha
vigorosamente na crise do desumano sistema penitenciário do País. Escolhe o tema como
carro-chefe do seu comportamento político. Iniciou visitas de inspeção.

Cenas internas dos presídios, com fotos e vídeos, foram distribuídas fartamente para a mídia.
Em seguida, convidou Michel Temer para uma conversa na casa que comprou recentemente.
Na pauta, o tema dos presídios. Consta que conversaram por cerca de três horas. Tempo
longo demais para uma tecla só. Em pesquisa realizada no começo de dezembro de 2016, o
instituto Datafolha testou o nome de Cármen Lúcia na lista de candidatos à Presidência da
República, em 2018. A presidente do STF alcançou modestíssimo 1% na preferência do
eleitor. Há quem enxergue a mosca azul em voo rasante. Não surpreenderia se Tia Carminha
se enxergasse na escala de sucessão presidencial, caso o Tribunal Superior Eleitoral acabe
por caçar a chapa Dilma-Temer. O sonho terminaria aí? Ou no embalo a ministra se dispuser
a disputar o governo de Minas Gerais em 2018? •

ANDANTE MOSSO
Adriana Ancelmo está em todas

Tentáculo da Lava Jato


Silenciosamente, o Ministério Público investiga se o esquema de desvio de dinheiro público
do ex-governador Sérgio Cabral e de sua mulher, a advogada Adriana Ancelmo, ambos
presos em Bangu, tinha uma ponta na Ordem dos Advogados do Brasil, no Rio de Janeiro.
Amigo íntimo de Cabral e filiado ao PMDB, o presidente da entidade dos advogados, Felipe
Santa Cruz, nomeou para diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB o advogado
Sérgio Coelho, sócio e ex-marido de Adriana Ancelmo.

Volta ao lar
Marcelo Odebrecht tenta negociar com os procuradores da Lava Jato a possibilidade de,
futuramente, voltar aos quadros da empresa, trabalhando na área social.
Os punidos pelo juiz Sergio Moro, como se sabe, ficam impedidos de voltar a trabalhar nas
mesmas empreiteiras.

Reforma Temer
Caso a reforma trabalhista seja aprovada com a retirada de direitos, como previsto, haverá
uma mudança súbita de status.
Os trabalhadores vão virar biscateiros.

Camarote vazio
Os secretários do prefeito carioca Marcelo Crivella já definiram o perfil dele como governante.
Centralizador e indeciso.
Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal, não vai passar o Carnaval no Brasil. Como faz
comumente, viajará para Israel.
Essa ausência talvez seja caso único na história do Sambódromo.
Fim de linha
Em abril, termina o segundo e último mandato do advogado Henrique Neves como ministro
classista do TSE. Com isso, acaba também o domínio da família Neves na Justiça Eleitoral.
Primeiro foi o pai, Célio Silva (já falecido); em seguida Fernando e, por fim, Henrique.
O escritório da família Neves é um dos mais procurados por políticos ameaçados pela Lei
Eleitoral.

O olhar e a razão
O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, parece disposto a comprar uma confusão sem
igual ao propor monitorar, por meio de gravações, os advogados de chefes de facções
criminosas nos presídios.
Ele vai mais longe.
“As lideranças são colocadas em segurança máxima com bloqueadores de celulares, mas se
permite visita íntima sem que o Estado possa filmar.”
Movido por uma perspectiva autoritária, após a tragédia ocorrida nos presídios, ele ataca um
valor democrático em si mesmo: a privacidade.
Talvez almeje, no futuro, gravar consultório de psiquiatras e até mesmo confessionários.

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: Andressa Anholete e Reprodução


Resumo da ópera
Por Mino Carta

Perfeito intérprete do desastre. Na moldura, a perseguição a CartaCapital é mero detalhe, além de nos honrar

 |   |   |   

O governo de Michel Temer premia a mídia nativa por sua notabilíssima contribuição ao êxito
do golpe de 2016. Tenho lido, aliás, da lavra até de praticantes do jornalismo honesto, ou da
boca de dignos cidadãos, que se trata de golpe parlamentar. Permito-me observar que a
definição é incorreta: parlamentar, sim, mas também judicial, midiático e policial.
A gratidão de Temer em relação aos barões midiáticos e seus sabujos confirma o estado de
exceção em vigor. Neste começo de 2017, farta publicidade governista inunda os órgãos da
comunicação jornalística, a começar pelas revistas semanais ditas de informação, melhor
seria de propaganda. CartaCapital é excluída. Obviamente, já que os golpistas, com
indiscutível coerência, fazem o que bem entendem.

CartaCapital já passou por situação similar durante o governo de Fernando Henrique


Cardoso, reputado até hoje democrático. No comando da estrutura chamada a administrar a
publicidade governista, Andrezinho Matarazzo esmerou-se ao ignorar CartaCapital. Cheguei
a ter saudades, então, ao menos deste ponto de vista, dos tempos da ditadura.
Democrático foi o comportamento dos governos Lula e Dilma, que não esqueceram quem
quer que seja. Por 14 anos a mídia foi de oposição feroz ao governo, e dizer oposição é
licença poética, porque amiúde não hesitou, a bem dos seus propósitos sempre golpistas, em
omitir, inventar ou mentir para colocar Lula antes, Dilma depois, em dificuldades aos olhos do
público. Já estavam a ensaiar sua participação decisiva no golpe de 2016.

Uma encenação de 500 anos chega ao último ato e o resultado é o caos


absoluto em que mergulhamos. Neste momento, só é possível prever um
desfecho de extrema violência

Talvez surpresos pelo súbito comparecimento de publicidade governista nas páginas


de CartaCapital, diversos escribas a serviço da casa-grande deram para defini-la como
revista chapa-branca, embora houvesse publicações muito mais recheadas. Tive de
constatar, por exemplo, que a quinzenal Exame da Editora Abril, dedicada ao business,
recebia mais publicidade governista do que a nossa semanal de política, economia e cultura.
Às vezes me ocorreu perguntar aos meus intrigados botões se tanto Lula, quanto Dilma, não
seriam democratas demais no tratamento reservado a quem os denegria sistematicamente.
Responderam: “Cristãos”. De todo modo, de nada adiantou oferecer a outra face e deu no
que deu. Ou seja, neste Brasil que finalmente chegou ao resumo de uma ópera de 500 anos.

O golpe precipitou o País em um beco sem saída, jamais conheceu crise igual, política,
econômica, social, moral e intelectual. Institucional. O Estado está falido, os poderes da
República não existem, há uma destruição por dentro, uma implosão irreparável. É como se o
momento de caos absoluto condensasse toda a prepotência, toda a irresponsabilidade, toda
a insensibilidade, toda insensatez, todos os desastres provocados pela inextinguível casa-
grande ao longo de 500 anos de história. Até a conciliação das elites tornou-se instituição
falida, os graúdos digladiam-se entre si em busca de um prêmio impossível, o poder extinto
pela total ausência de comando.

O Brasil é hoje o perfeito resultado do desmando secular. A se olhar para trás, percebe-se
que não poderia haver outro desfecho. Nisso tudo, a perseguição de Michel Temer
a CartaCapital é algo de somenos, mesmo porque de figuras como o professor de Direito
Constitucional disposto a rasgar a Constituição por outros comportamentos seria estulto
esperar. O que mais dói é a impossibilidade de imaginar o futuro enquanto semeiam-se
insatisfação, desencanto, medo, ódio. Neste exato instante, só se oferecem à fácil previsão o
recrudescimento da criminalidade e o fortalecimento de uma organização sólida e bem
estruturada para o mal como o PCC, assunto de capa desta edição. • 
ÍNDICE

 CRÉDITO DA PÁGINA: Adriano Machado/Reuters/Zuma Press/Fotoarena


Poder/ Sob o céu de Lisboa
Como classificar a viagem de Gilmar Mendes e Michel Temer para os funerais de
Mário Soares? E uma tardia correção dos fatos

Para Mendes, trata-se de uma relação republicana

 |   |   |   

A indignação dos “homens de bem” esvaiu-se após o impeachment de Dilma Rousseff.


Pouca gente incomodou-se com o fato de o ministro Gilmar Mendes, que tem sob sua mesa
no Tribunal Superior Eleitoral o processo contra a chapa Dilma-Temer, ter aceito carona no
avião presidencial para ir ao funeral de Mário Soares, estadista português morto no sábado 7.
Juiz e investigado irmanados no trajeto sobre o Oceano Atlântico? Imagine os protestos em
outros tempos.
Mendes, que faz e fala o que quer, recorreu a uma desculpa esfarrapada. Viu no convite de
Temer uma prova das “relações republicanas” entre dois poderes. O processo no TSE,
afirmou, “é público e transparente”. Por conta de uma alegada labirintite, o ministro do
Supremo não compareceu aos funerais de Soares, razão oficial de sua viagem a Portugal à
custa do contribuinte.

Para afastar as suspeitas sobre o convite de Temer, Mendes desmentiu uma história que ele
mesmo havia fomentado durante o julgamento do chamado mensalão. À época, a
revista Veja acusou o ex-presidente Lula de pressionar o ministro a trabalhar pelo adiamento
do trâmite da ação penal no STF. Lula e Mendes reuniram-se no escritório do ex-ministro
Nelson Jobim, que negou qualquer pressão do ex-presidente. Mendes calou-se. O texto da
revista narrava detalhes que ou foram inventados ou assoprados por um dos participantes do
encontro.
Agora, para se defender da acusação de parcialidade, Mendes declarou: “Estive com Lula
várias vezes e ele nunca me pediu nada”. Um pouco tarde. E bem conveniente. 

A inflação e seu custo

Ao custo de 12 milhões de empregos formais e da mais brutal recessão da história recente


do Brasil, iniciada no governo de Dilma Rousseff e aprofundada sob Michel Temer, a inflação
em 12 meses ficou abaixo do teto da meta, de 6,5% ao ano. Fechou em 6,29% no acumulado
de janeiro a dezembro. Na quarta-feira 11, o Banco Central reduziu a taxa de juros em 0,75
ponto porcentual. Os juros nativos ficaram um pouco menos indecentes: 13% ao ano. 

Justiça 1/ Moro está em casa


O Tribunal Federal da 4ª Região reafirma o estado de exceção
O TRF fica em Porto Alegre, mas poderia ser em Curitiba

Os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, responsáveis por validar ou


não as decisões do juiz Sergio Moro, aprovaram súmulas que autorizam a abertura de
investigação com base em denúncias anônimas e a renovação sucessiva de interceptação
telefônica, em caso de persistência da necessidade de apuração.
O uso de denúncias anônimas e a renovação automática de grampos eram dois dos
principais pontos de contestação da defesa dos investigados pela Operação Lava Jato.
Advogados e juristas criticaram duramente a nova interpretação dos desembargadores. “A
súmula que trata da denúncia anônima contraria orientação pacífica dos nossos tribunais no
sentido de que denúncia anônima é um nada jurídico”, afirmou o criminalista Antônio Claudio
Mariz de Oliveira.
Lembrete: a Operação Castelo de Areia, que investigava o pagamento de propinas da
construtora OAS a tucanos e peemedebistas, foi anulada pelo Superior Tribunal de Justiça
por valer-se de uma denúncia anônima. 

Maggi vira réu


Blairo Maggi, alçado ao posto de ministro da Fazenda após apoiar o impeachment de Dilma
Rousseff, tornou-se réu por supostamente integrar um esquema de compra de uma vaga no
Tribunal de Contas de Mato Grosso. Maggi teria participado das negociações para convencer
o conselheiro Alencar Soares Filho a se aposentar e abrir espaço para o então deputado
estadual Sérgio Ricardo de Almeida. O esquema foi detectado durante as investigações da
Operação Ararath, que apurou crimes de lavagem de dinheiro por meio de compras de
imóveis em nome de laranjas. 
Justiça 2/ Quem se lembra do mensalão tucano?
Desembargador bloqueia os bens do ex-governador Eduardo Azeredo

A sorte de Azeredo é ser filiado ao PSDB

De tempos em tempos, em intervalos cada vez mais longos, aparece alguma notícia sobre o
“mensalão do PSDB” em Minas Gerais. Soube-se agora que o desembargador Jair Varão, da
3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça mineiro, determinou o bloqueio de bens do ex-
governador Eduardo Azeredo por improbidade administrativa.
A ação apura os repasses de 3 milhões de reais de estatais mineiras para as agências de
publicidade de Marcos Valério Fernandes de Souza. O dinheiro, segundo a denúncia, fez
uma ponte nas agências de Souza antes de seguir para o comitê de campanha à reeleição
de Azeredo. Nascia dessa operação a “tecnologia” mais tarde incorporada pelo PT no plano
nacional.
Varão reformou uma decisão de primeira instância que havia excluído o ex-governador do
bloqueio de bens. Azeredo, anotou o desembargador, foi “o maior beneficiário da campanha
eleitoral”. Não lhe pareceu crível que “o ocupante do cargo de governador do estado à época”
não estivesse “a par da origem dos recursos destinados à sua própria campanha”.
EUA/ 007 contra Trump
Uma trama digna de um romance de espionagem. Ou de vídeo pornô

A divulgação do dossiê pegou o presidente eleito de surpresa

Na terça-feira 10, a CNN noticiou que “os chefes da inteligência apresentaram a Trump
alegações sobre esforços russos para comprometê-lo”. Durante a noite, o BuzzFeed violou a
ética jornalística e divulgou o material sem verificá-lo.
O tom burocrático do dossiê de 35 páginas, segundo o qual Trump trocou favores e
informações com a espionagem russa durante a campanha, é apimentado na primeira página
com a alegação de que “seu comportamento (de Trump) em Moscou incluiu atos sexuais
pervertidos arranjados e monitorados pela FSB” a serem usados pela agência russa para
chantageá-lo. Como o evento teria incluído urofilia, o caso foi apelidado “showergate”.

O material vem de uma agência privada aparentemente a serviço de inimigos do presidente


eleito, cuja principal fonte foi o ex-espião do MI-6 britânico Christopher Steele, sumido desde
a divulgação de seu nome. John McCain apresentara o relatório ao FBI e insistira na sua
importância. Trump, furioso, culpou pelo vazamento os serviços de inteligência, cujo chefe,
James Clapper, defendeu-se: o material circula há meses nos bastidores da mídia, não é do
seu pessoal e “não faz julgamentos sobre sua confiabilidade”. Que não está acima de
suspeitas: Michael Cohen, conselheiro de Trump ao qual foi atribuída uma reunião com
russos em Praga, em agosto, tem testemunhas de sua visita a uma universidade dos EUA
nos mesmos dias.
O momento do vazamento pareceu escolhido para constranger o presidente eleito em sua
primeira entrevista coletiva, mas o episódio acabou usado por Trump para acusar a mídia de
divulgar notícias falsas e recusar responder à CNN e a questões embaraçosas. O episódio
mostra como o conflito interno em Washington é mais grave do que o imaginado e capaz de
paralisar qualquer debate racional sobre política externa. Os EUA, após tantas intervenções
no exterior, parecem a caminho de desestabilizarem a si mesmos.

Disputa casa a casa


O governo de Bagdá, aliado a milícias curdas e xiitas, diz ter retomado ao Estado Islâmico
70% da zona leste de Mossul e chegado às margens do Eufrates, que divide a cidade em
duas. A batalha já custou de 2 mil a 4 mil vítimas de cada lado e pelo menos mil mortes civis
desde meados de outubro. Mais de 135 mil civis fugiram da cidade e cerca de mil por dia
continuam a abandoná-la. Tropas revistam casa por casa em busca de suspeitos de
colaborar com os jihadistas. A derrota do Califado não garante a paz. O resultado pode ser
sua fragmentação em grupos ainda mais imprevisíveis e brutais.
Enquanto isso, o governo da Líbia, logo após derrotar definitivamente o EI em Sirte, volta a
se dividir, com a tomada de vários ministérios em Trípoli ao “governo de unidade” por rivais
no Congresso.

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: Isac Nóbrega/PR, George Gianni e Mike Segar/Reuters/Latinstock


Na desordem, a força do mal
Com presença em 22 estados e conexões em 6 países, o PCC prospera e assume
um papel cada vez mais ameaçador

Por Miguel Martins E Rodrigo Martins*

 |   |   |   

Em meio ao caos dominante, o recrudescimento da criminalidade é inevitável, tanto mais em


um país que tem a primazia mundial de assassínios, cerca de 300 mil nos últimos anos, mais
do que os mortos da guerra civil da Síria. Várias organizações criminosas atuam no País, e
entre elas o PCC ganha destaque especial. A capa desta edição recorda, na compacta
agregação das balas, a testuggine das coortes da antiga Roma, fator decisivo das vitórias do
exército antes republicano e depois imperial. Testuggine significa tartaruga, representada
pela composição de uma estrutura invulnerável. O PCC, no Brasil à matroca, é uma forma
mafiosa em pleno desenvolvimento e muito bem organizada para o mal. A sua força vai muito
além do tráfico, para alcançar um poder político. 
Fundado, em 1993, na Casa de Custódia de Taubaté, unidade reconhecida por torturas e
maus-tratos, o Primeiro Comando da Capital foi visto inicialmente como mais uma associação
de presos, espécie de sindicato. A memória ainda recente do Massacre do Carandiru, que
resultou na morte de 111 detentos no ano anterior, alimentava o discurso de união da massa
carcerária, interessada em buscar proteção diante do braço armado do Estado. A
organização só entrou no radar da mídia, em fevereiro de 2001, quando deflagrou
simultaneamente uma megarrebelião em 28 presídios. Em um período de dez anos, o PCC,
ao seguir o modelo trilhado pelo Comando Vermelho, tornou-se a principal organização
criminosa dos presídios paulistas. Hoje hegemônica em São Paulo, expandiu-se para 22
estados e possui conexões em seis países. 

Aos presos a organização oferece proteção, auxílio funerário e ajuda


financeira para as famílias

O PCC busca consolidar-se nas regiões Norte e Centro-Oeste e controlar todas as etapas do
narcotráfico: produção, logística e distribuição. “Há uma estratégia de cartelização”, afirma
Vladimir Aras, secretário de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República.
“É comum organizações criminosas formarem um cluster, aglomerado no qual cada uma
delas domina parte distinta do negócio. Quando essa partilha deixa de funcionar, emerge a
guerra, na tentativa de controlar todos os processos.” A formação de um cartel semelhante
aos que atuam em outros países da América Latina preocupa as autoridades. “Se não houver
uma guinada, estaremos no caminho do México”, diz Sérgio Fontes, secretário de Segurança
Pública do Amazonas. 
Em Roraima, onde 33 presos foram brutalmente assassinados na Penitenciária Agrícola de
Monte Cristo, o número de filiados ao PCC passou de 50 integrantes identificados em 2013
para mil em 2016. Os dados são da inteligência do governo estadual. Segundo o Grupo de
Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público roraimense,
foram mapeados, em dezembro de 2016, 400 integrantes do PCC, cem do Comando
Vermelho, fundado no Rio de Janeiro, e 60 da Família do Norte (FDN), que atua na
Amazônia. A matança em Monte Cristo é atribuída à organização paulista, um possível revide
ao massacre de 56 detentos ocorrido dias antes no Complexo Anísio Jobim, de Manaus, que
teve como principal alvo integrantes do PCC. 

A
O governo paulista já negociou, na surdina e às claras, com Marcola, líder do Primeiro Comando da Capital

guerra entre o PCC e o Comando Vermelho, aliado da Família do Norte, tem relação com
disputas por rotas de tráfico internacional de drogas e com a própria expansão da
organização paulista, afirmam diversos especialistas. Um dos fatores que estremeceram as
relações entre os grupos paulista e fluminense foi o assassinato do narcotraficante Jorge
Rafaat Toumani em uma emboscada na fronteira do Paraguai. Os executores utilizaram fuzis
e uma metralhadora Browning M2 .50, artilharia antiaérea, para perfurar o jipe Hammer
blindado de Rafaat. A operação cinematográfica é atribuída ao PCC, que passou a controlar
a maior parte da lucrativa rota, que abastece os mercados do Sudeste com maconha
paraguaia e cocaína produzida na Bolívia. 
Não é possível estimar com exatidão o número de associados ao PCC. Uma espécie de
censo realizado pela própria organização, em 2013, mostra que o grupo já operava em todo o
Brasil, além de ter 57 filiados na Bolívia e no Paraguai. Segundo os documentos apreendidos
pela polícia naquele ano, o PCC tinha uma participação tímida na Região Norte: contava com
188 membros no Pará, 48 no Amazonas, 21 no Tocantins e 11 no Acre. O maior contingente
localizava-se em São Paulo, com 7,8 mil integrantes. Em seguida, figuram Paraná (626) e
Mato Grosso do Sul (558). 

O PCC nunca teve dificuldade para arregimentar novos soldados. E a atual conjuntura
favorece seus planos de expansão. Com a economia estagnada, após dois anos de
recessão, o Brasil soma mais de 12 milhões de desempregados, 11,9% da população
economicamente ativa. “A relação entre a economia e a violência não é linear, uma coisa não
deriva automaticamente da outra. Mas não há dúvida de que, em um cenário de
pauperização da sociedade, é mais fácil recrutar pessoas para as atividades criminosas”,
afirma o sociólogo Ignácio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj.
“O recrutamento é sempre favorecido por condições socioeconômicas precárias”, emenda
Vladimir Aras. 
Nos superlotados cárceres brasileiros, o PCC oferece uma série de atrativos aos seus
“batizados”, que pagam mensalidades à organização. Além da perspectiva de obter um
emprego no tráfico de drogas após o cumprimento da pena, os presos beneficiam-se de
proteção e segurança nas cadeias. Seus familiares costumam receber auxílio financeiro para
viajar longas distâncias em dias de visita. “Se o indivíduo morrer durante alguma ação do
PCC, a família dele pode até receber algum tipo de pensão”, afirma o analista criminal
Guaracy Mingardi, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

Os 12 milhões de desempregados e a super população carcerária alavancam o PCC


difícil estimar o quanto o PCC movimenta em suas atividades. Investigações da Polícia Civil e
do Ministério Público paulista apontam que a organização manteve ao menos uma conta
corrente na China e outra nos Estados Unidos para lavar dinheiro e fazer compras
internacionais de drogas e armas. Entre 2013 e 2014, a movimentação chegaria a cerca de
100 milhões de reais. Apenas o fornecimento de cocaína peruana para as regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste gera um lucro anual de 4,5 bilhões de dólares às facções
criminosas envolvidas no negócio, estima um relatório do serviço de inteligência da
Secretaria de Segurança Pública do Amazonas. Detalhe: o Peru não é líder na produção do
narcótico. Segundo um relatório das Nações Unidas de 2015, foram registrados 96 mil
hectares de cultivo da folha de coca na Colômbia, maior produtor mundial, enquanto Peru e
Bolívia somam 60 mil. 
Em São Paulo, de todas as 152 unidades prisionais, 137, ou 90% delas, eram dominadas
pelos 6 mil integrantes do PCC presos, segundo um relatório de 2014 do setor de inteligência
do Gaeco do Ministério Público paulista. Do lado de fora, outros 1,8 mil filiados pagavam 650
reais de mensalidade à organização, além de comprar rifas de carros, apartamentos e casas.
Somente com essa renda, 2 milhões de reais entraram nos cofres do grupo criminoso
mensalmente. 

Entre 2006 e 2010, o PCC desenvolveu sua estrutura empresarial, com o auxílio da política
de segurança do governador paulista, Geraldo Alckmin (PSDB). Após a crise de 2006,
quando a organização promoveu uma onda de atentados contra policiais e agentes
penitenciários, a cúpula da segurança de São Paulo, informada sobre possíveis rebeliões e
receosa do impacto delas na campanha do presidenciável Alckmin, decidiu recolher todas as
lideranças do PCC em um só presídio, o de Presidente Venceslau. Em um só dia foram
transferidos 765 presos. 
A medida reuniu toda a cúpula do PCC e tinha o objetivo de quebrar o comando e a
articulação da facção. A estratégia só seria plena se, transferidos, os líderes fossem isolados
e impossibilitados de se comunicar com o mundo exterior. O que se viu foi o contrário. A
partir dali o PCC ergueu uma gestão hierarquizada e extremamente organizada, subdividida
em setores chamados de Sintonias. Em última instância, encontra-se a Sintonia Geral Final,
cúpula formada por Marcola e seus apadrinhados. É essa cúpula, de forma colegiada, que
toma todas as decisões do PCC. 

A principal atividade da organização é o tráfico de drogas, chamado de Progresso. Este, por


sua vez, é dividido em três instâncias. A mais baixa é a Disciplina, responsável por
disseminar e fiscalizar a implantação da ideologia em um bairro ou cidade. Cabe a essa
instância, seja um indivíduo, seja um grupo, a primeira decisão sobre problemas da
comunidade onde a facção atua, resolução para brigas entre integrantes e cumprimento de
punições. O Disciplina reporta-se ao Sintonia Geral, segunda instância que cuida de uma
grande região ou de cidades vizinhas e deve se reportar ao Sintonia Final. Essa última
instância encontra-se logo abaixo da cúpula do PCC e é responsável pelas grandes regiões. 
Como mostrou o relatório do Ministério Público, a comunicação entre as Sintonias dá-se por
meio de Pipas (bilhetes) entregues por visitas, celulares e advogados. Quando é preciso
mandar um aviso para todos os membros, a cúpula emite um Salve: informe gestado em
consenso pelos integrantes da cúpula. Essa eficiência da comunicação é um dos pontos
fortes da facção e é capaz de fazer a informação chegar ao líder de cada setor, sem
atravessadores. Com a ajuda de uma rede de advogados instalados na Sintonia dos
Gravatas, a cúpula e os Sintonias Gerais e Finais conseguem comandar toda a cadeia
produtiva da organização mesmo trancafiados no sistema penitenciário. 

Em contas na China e nos EUA, o PCC movimentou 100 milhões de reais,


segundo o Ministério Público

Todo o dinheiro arrecadado no Progresso, Progresso 100% (tráfico dentro dos presídios), da
Cebola (mensalidade para membros em liberdade) e das Rifas é administrado pela Sintonia
Financeira, formada apenas por membros de alta confiança da cúpula. Como reserva para
momentos de dificuldades, a facção criou as chamadas Minerais, espécie de cofres
preenchidos com 1 milhão de reais cada um. As interceptações telefônicas do Ministério
Público apontam a existência de ao menos sete Minerais escondidos em imóveis comprados
pela facção. 
Em 2014, CartaCapital revelou um documento do Gaeco que mostrava a audácia dos
integrantes do PCC. Naquele momento, o grupo planejava resgatar seu líder máximo,
Marcola, da Penitenciária II de Presidente Venceslau. O chefe da organização e dois
companheiros seriam içados por um helicóptero, comandado por um membro do PCC
treinado em pilotagem, e levados para o aeroporto de Loanda, no Paraná. De lá, ele partiria
em um avião Cessna Aircraft, modelo 510, também pilotado por um integrante da facção,
para o Paraguai. 

Naquele momento, vários sobrevoos tinham sido realizados para avaliar os detalhes da
tomada de assalto da penitenciária e que um imóvel fora alugado na cidade de Porto Rico,
próxima a Venceslau, para servir como base de apoio à operação. Além disso, uma pista de
pouso foi mapeada para que o avião vindo do Paraguai pudesse aterrissar.
O PCC não teria conquistado tanto poder sem a negligência do governo tucano. Por muito
tempo, as autoridades paulistas procuraram minimizar a força da organização criminosa, que
assumiu o controle dos superlotados presídios. Em 2006, não deu mais para esconder. A
Ouvidoria das Polícias contabilizou 493 mortes durante a onda de violência. Os ataques só
cessaram após representantes da cúpula de segurança negociarem um armistício com o líder
do PCC. 

Em

Ex-secretário de Alckmin, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, consegue desagradar a todos

2015, o delegado José Luiz Ramos Cavalcanti revelou, em um processo judicial, que
representantes do governo estadual fizeram um acordo com Marcola naquele ano. A
proposta do crime organizado foi levada pela advogada Iracema Vasciaveo, que
representava à época o PCC, relata Cavalcanti, um dos escolhidos pelo então governador
Claudio Lembo para  participar do encontro, realizado no presídio de segurança máxima de
Presidente Bernardes, no interior paulista. 
Segundo o depoimento, divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo, os ataques seriam
encerrados, caso os responsáveis pelo comando dos atentados nas ruas fossem informados
de que Marcola estava bem fisicamente e não havia sido torturado. A cúpula das secretarias
de Segurança Pública e da Administração Penitenciária, cujos chefes na época eram Saulo
de Castro Abreu Filho e Nagashi Furukawa, aceitou. 

Em 2012, em meio a mais uma onda de ataques do crime organizado em São Paulo, o então
secretário de Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, foi categórico ao afirmar que a
influência do PCC é “exagerada pela mídia”. Alckmin chancelou a fala do subordinado, ao
afirmar que havia “muita lenda” sobre facções criminosas. 
O atual ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, também atuou na Secretaria de Segurança
Pública de São Paulo, sem grandes intervenções que colocassem em risco o poder do PCC.
O Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, divulgou na quarta-feira
11 uma carta, subscrita por juristas e advogados, para pedir a sua renúncia. O documento
trata dos massacres nos presídios do Amazonas e de Roraima, critica o Plano Nacional de
Segurança Pública lançado pelo governo federal e afirma que o titular da Justiça adotou
posição “omissa e inábil” diante das tragédias, dando declarações “populistas e
irresponsáveis”. 

No

Segundo o procurador Vladimir Aras, o PCC visa à formação de um cartel e ao controle de todas as etapas do
narcotráfico

mesmo dia, deputados da Bancada da Bala sugeriram a Michel Temer a criação de um


Ministério da Segurança Pública, o que desidrataria o poder de Moraes. “Ele faz um bom
trabalho, mas não conhece a fundo os problemas dos estados”, afirmou Alberto Fraga (DEM),
à frente do grupo. A proposta foi recusada pelo Planalto. 
Resolver o caos carcerário não parece ser uma prioridade de Temer. Em 2015, o Supremo
Tribunal Federal determinou a liberação do saldo acumulado do Fundo Penitenciário
Nacional (Funpen) para a construção e reforma de presídios. Em 19 de dezembro, Temer
editou uma Medida Provisória que permite o uso do recurso em ações de segurança pública.
A decisão levou a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão a questionar a
constitucionalidade da medida. “Surpreendentemente, parcela substancial das normas
editadas pela MP 755/16, em vez de ter potencial para contribuir com a superação do ‘estado
de coisas inconstitucional’ declarado pelo Supremo Tribunal Federal, amplia as deficiências
do sistema penitenciário brasileiro”, destacam os procuradores no documento enviado à
Procuradoria-Geral da República. 
Com a continuidade do caos carcerário e da crise econômica, o PCC tem um cenário propício
para a sua expansão. “Se não há uma resistência, seja por parte do Estado, seja por parte de
outra organização criminosa, é óbvio que isso vai acontecer”, diz Vladimir Aras. •

*Colaboraram Débora Melo, José Antônio Lima e Tory Oliveira.

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: Paulo Liebert/Estadão Conteúdo, Eduardo Knapp/Folhapress, Rodolfo Buhrer/La


Imagem/Fotoarena/Folhapress, Edmar Barros/Futura Press, Alex Ferreira/Câmara dos Deputados e Andressa Anholete/AFP
O terror à espreita
"A guerra já ultrapassou os muros dos presídios", alerta o analista criminal Guaracy
Mingardi

A Rodrigo Martins

São Paulo, maio de 2006

 |   |   |   

Principal alvo do massacre do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, que resultou na morte
de 56 presos em Manaus, metade deles decapitada, o Primeiro Comando da Capital
expandiu tanto pelo País que despertou a ira de concorrentes locais, explica o analista
criminal Guaracy Mingardi, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Vários
desses grupos buscaram se aliar ao Comando Vermelho para resistir. Apesar de ser uma
organização menor que o PCC, o Comando Vermelho é uma marca nacional. Eles foram se
estranhando cada vez mais.” 
Ex-investigador da Polícia Civil de São Paulo e doutor em Ciência Política pela USP,
Mingardi aponta o assassinato do narcotraficante Jorge Rafaat Toumani em uma emboscada
na fronteira com o Paraguai como um dos fatores que estremeceram a relação da
organização paulista com o CV. “O PCC aumentou a porcentagem do que controla por ali,
em toda a fronteira com o Paraguai. Trata-se de uma rota muito viável economicamente,
porque chega rápido em São Paulo e, pelas estradas paulistas, segue para qualquer lugar”,
diz Mingardi. 
Na avaliação do especialista, que também atuou como subsecretário nacional de Segurança
Pública, a guerra já ultrapassou os muros dos presídios, pois os grupos disputam pontos de
venda e rotas de tráfico. “A briga com o Estado é outra coisa. Colocaram muitas lideranças
do PCC no Regime Disciplinar Diferenciado. Eles já estão em disputa com a Família do Norte
(FDN), com o CV. Resta saber se vão comprar briga com os governos.” 

Ex-investigador da Polícia Civil, Mingardi é pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

CartaCapital: O senhor define o PCC como uma organização criminosa, mas rejeita o termo
facção. Por quê? 
Guaracy Mingardi: Facção é parte. No caso de São Paulo, o PCC não é parte, exerce poder
hegemônico. Controla 90% das penitenciárias, segundo diversas fontes. Sou mais cauteloso,
diria que dominam ao menos 80% do sistema prisional paulista. Os demais são grupelhos.
Usar o termo facção é minimizar o problema. Prefiro falar sempre em organização criminosa. 
CC: Em um recente artigo acadêmico, o senhor ressalta que “não existe crime organizado
sem vínculo com o Estado”. No caso do PCC, o que evidencia essa simbiose? 
GM: Primeiro, a situação dos próprios presídios. Esses criminosos não controlam as cadeias
sem uma anuência tácita de setores do Estado. Fora isso, vamos pensar no que ocorre
extramuros. Uma das principais fontes de renda do PCC é o tráfico de drogas. A venda dos
narcóticos costuma ocorrer em “biqueiras”, “bocas de fumo”. Como pode haver um local fixo
para a prática diária de um crime e ninguém se dá conta? É a mesma lógica do jogo do
bicho. Há pontos específicos onde são coletadas as apostas. Sem corromper agentes
públicos, não há como manter essa estrutura. Precisa haver algum tipo de vínculo, com
órgãos do Executivo, Legislativo ou Judiciário. Ou em vários, o que é mais comum. 

CC: Em que medida a superpopulação carcerária é responsável pela gestação dessas


organizações criminosas? Há, de fato, semelhanças entre a Camorra napolitana e o PCC? 
GM: Na verdade, o primeiro grupo a seguir o exemplo da Camorra foi o Comando Vermelho.
A máfia napolitana surgiu como um sindicato de presos, tornou-se uma organização
criminosa posteriormente. O PCC também é fruto de uma aliança de presos, mas já nasceu
com a ideia do crime. No entanto, eles não teriam crescido tanto não fossem as torturas e
maus-tratos no sistema carcerário e, sobretudo, o Massacre do Carandiru. Antes do PCC,
havia outros grupos nos presídios, como a Seita Satânica, só que ela explorava os demais
presos, não oferecia proteção. Ao menos no discurso, o PCC aproximava-se da antiga
Camorra, de um sindicato de presos, com uma mensagem mais inclusiva: “Nós, presos,
contra o Estado”. Mesmo quem não é “irmão”, quem não foi “batizado”, é respeitado, desde
que não prejudique os seus negócios. Não estou dizendo que não há demagogia nesse
discurso, mas eles arregimentaram muitos. 

"Esses criminosos não controlam as cadeias sem uma anuência tácita de


setores do Estado"

CC: Que tipo de benefício o PCC oferece aos seus “batizados”? 


GM: Primeiro, a possibilidade de participar da distribuição dos despojos do crime. O PCC é
um grande empregador no ramo do tráfico de drogas e em outras atividades ilícitas.
Segundo, segurança dentro da cadeia. As famílias dos presos também têm acesso a alguns
benefícios. Como você acha que todas aquelas mulheres conseguem viajar para visitar
familiares presos no interior? Há vários pontos da capital paulista de onde saem os ônibus.
Quem paga? Se você perguntar ao motorista, ele dirá que são as próprias mulheres. Mas
muitas não têm dinheiro para nada. Se o indivíduo morrer durante alguma ação do PCC, a
família dele pode até receber algum tipo de pensão, entende? Há uma série de benefícios
financeiros, até porque cada filiado paga ao menos um salário mínimo para a organização.
Sem falar dos cargos que ele pode vir a ocupar, dentro e fora do presídio. 

CC: O que propiciou a expansão do PCC pelo País? Foi aquela política de transferir presos
para tentar isolar as lideranças? 
GM: Começou ali. Fora de São Paulo, os dois lugares onde o PCC tem maior presença são o
Paraná e Mato Grosso do Sul, para onde foram transferidas diversas lideranças após 2001.
Plantaram a semente lá. Depois, a expansão deu-se pelo marketing. O sujeito que está preso
em outro estado torna-se responsável por transmitir a mensagem, levar aquilo adiante. O
PCC é o grupo mais conhecido, que enfrentou o Estado. 

Com a morte do narcotraficante Rafaat Toumani, o PCC ampliou o controle sobre o comércio de drogas
vindas do Paraguai

CC: Essa organização criminosa movimenta quanto em dinheiro? 


GM:Não tenho a mínima ideia. Qualquer estimativa é um mero chute. Alguns promotores
podem dizer quantos integram o PCC, quanto pagam de mensalidade, qual é o valor da
contribuição, fazer um cálculo com base nisso. É difícil, no entanto, estimar o dinheiro
proveniente do tráfico de drogas, não apenas do comércio local, mas do contrabando da
mercadoria. A única pista é a quantidade de narcótico apreendida pela polícia. 

CC: Como o PCC lava o dinheiro do crime? 


GM: Já usaram de tudo, até posto de gasolina. Até algum tempo atrás, eles guardavam
dinheiro em casa, a inflação era menor. Mais recentemente, surgiram as primeiras
informações de uso de empresas de lavagem, que remetem dinheiro para o exterior. Na
verdade, não é muito difícil esquentar recursos ilícitos. Se você tem um hotel que fica às
moscas o ano todo, pode declarar que ele operou sempre com capacidade máxima e
superestimar os lucros. A Receita está preocupada em pegar sonegadores. Nunca vi pegar
ninguém que declarou dinheiro a mais. 
"O Comando Vermelho e o PCC seguem o exemplo da Camorra
napolitana, surgida como um sindicato de presos"

CC: O que explica a guerra entre o PCC e o Comando Vermelho? É mesmo uma disputa por
rotas internacionais de tráfico? 
GM: Também é, mas não só. Primeiro, o PCC expandiu demais, o que despertou o
antagonismo dos grupos locais, a exemplo da FDN, do Primeiro Grupo Catarinense (PGC),
do Bonde dos 40, do Sindicato do Norte. Existem mais de 20 organizações concorrentes
espalhadas pelos estados. Vários desses grupos buscaram se aliar ao Comando Vermelho
para resistir. Apesar de ser uma organização menor do que o PCC, o Comando Vermelho é
uma marca nacional. Eles foram se estranhando cada vez mais. Desde o cinematográfico
assassinato do narcotraficante Jorge Rafaat Toumani no Paraguai, com o uso de uma arma
capaz de perfurar blindados do Exército, o PCC passou a controlar cada vez mais aquela
rota. 

CC: Então, toda droga ou arma que entra pela fronteira de Pedro Juan Caballero passa,
necessariamente, pelo PCC? 
GM: Não, nunca é assim, de uma só pessoa ou grupo. No entanto, o PCC aumentou a
porcentagem do que controla por ali, em toda a fronteira com o Paraguai, não somente em
Pedro Juan Caballero. Trata-se de uma rota muito viável economicamente, porque chega
rápido a São Paulo e, pelas estradas paulistas, segue para qualquer lugar. A rota do Rio
Solimões é normalmente usada para exportação, mas não é simples descer de barco.
Quanto mais cara a logística, maior o preço da droga. 
Julgamento da Camorra, em 1911

CC: As sangrentas disputas em presídios da Região Norte têm relação com uma disputa
pelas rotas da Amazônia? 
GM: Não tenho certeza, mas a maior parte do que passa pelo Paraguai está nas mãos do
PCC. É a cocaína boliviana, mais barata, que o pessoal usa aqui no Brasil. A colombiana é
mais cara. Há uma grande fronteira da Bolívia com Mato Grosso, mas é preciso ter contatos
com os bolivianos. Desconfio que a coisa ficou complicada para os outros, e eles partiram
para a guerra. 

CC: O senhor acredita que essa guerra pode ultrapassar os muros da cadeia? Há o risco da
repetição de ataques como os de 2006? 
GM: Não dá para saber. Na verdade, a guerra já extrapolou os muros dos presídios. Eles
brigando do lado de fora, por pontos de venda e rotas de tráfico. É uma coisa contida, não
aparece tanto. Não veremos chacinas com 50 mortos. Um grupo invade o ponto do outro,
mata três ou quatro. A briga com o Estado é outra coisa. Colocaram muitas lideranças do
PCC no Regime Disciplinar Diferenciado. Eles já estão em disputa com a FDN, com o CV.
Resta saber se vão comprar briga com os governos. • 

ÍNDICE
 CRÉDITOS DA PÁGINA: Ferdinando Ramos/Estadão Conteúdo e George Grantham Bain Collection/Library Of Congress
Washington, D.C.
A vocação de súdito
POLÍTICA EXTERIOR As pedras e os perigos da aproximação aos EUA desejada
pelo governo de Michel Temer

Por André Barrocal

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Donald Trump assume a Casa Branca na sexta-feira 20, e logo a partir de fevereiro
burocratas americanos e brasileiros começam a reunir-se para preparar uma agenda capaz
de ajudar mutuamente o crescimento econômico dos dois países, artigo escasso lá e aqui.
Ao menos foi esse o combinado entre o magnata e Michel Temer em um telefonema em
dezembro, ligação de iniciativa do Palácio do Planalto. Na conversa, o peemedebista disse
contar com investimentos dos Estados Unidos, que os empresários dos dois países se
conhecem bem e gostariam de ampliar os negócios. A conversa não foi capaz, porém, de
levar o magnata a convidar Temer para a posse, indiferença que teria incomodado o
brasileiro. Uma negociação EUA-Brasil haverá, obviamente, de levar em conta o peso
específico de cada um, sem contar as tradições de uma subserviência interrompida somente
pelo governo Lula. 
É verdade que o costume em Washington é chamar apenas embaixadores para a posse,
mas a falta de deferência de Trump com o peemedebista é sintomática. O Brasil não está no
centro das preocupações do bilionário, a nutrir desprezo pelos latino-americanos, vide sua
intenção de expulsar mexicanos e construir um muro para impedi-los de entrar. Para Brasília,
contudo, os EUA são prioridade, embora não haja uma estratégia clara para atingir o objetivo
e traduzir isso em questões concretas. Temer e o chanceler José Serra buscam desde o
início uma relação carnal com o país, visto como fonte de legitimação internacional do
governo e de capitais capazes de empurrar o PIB. 

Arriscou-se ao torcer por Hillary


Este sempre mostrou sua preferência

descompasso é apenas uma das pedras no caminho da aproximação, uma trilha cheia de
perigos aos interesses nacionais, como a secreta retomada das negociações sobre a Base
de Alcântara. Serra é uma das pedras. Torceu abertamente pela candidata democrata, Hillary
Clinton. Os tucanos construíram boas relações com os Clinton na gestão Fernando Henrique
Cardoso. O escolhido por Serra para embaixador em Washington, Sergio Amaral, foi porta-
voz de FHC. Antes do triunfo de Trump, Serra comentara a hipótese: “Não pode acontecer”,
seria um “pesadelo”. Mais: “É preciso ser muito masoquista para ficar imaginando que o
Trump vá ganhar”. Consumado o “pesadelo”, resignou-se. “Nas democracias, as decisões do
eleitorado se respeitam e se cumprem não apenas por quem vence.” Viu, Aécio Neves e
PSDB? 
Resignação à parte, Serra tende a merecer desdém por Trump. Vizinhos dos EUA, México e
Canadá mudaram seus chanceleres às vésperas da posse do magnata. A mexicana Claudia
Ruiz Massieu, por exemplo, tinha reclamado de o presidente Enrique Peña Nieto convidar o
xenofóbico magnata para uma conversa. Será que Serra corre o risco de perder o cargo? E
que choque seria para o tucano, autor de discretas juras de amor aos EUA em várias
entrevistas. 

Os EUA pretendiam botar o bedelho na base de Alcântara. Lula enterrou o


projeto

No namoro com o Tio Sam, Serra ressuscitou uma ideia polêmica e numa área sempre
sedutora para os norte-americanos, a defesa. Mandou recolocar na mesa de negociações um
acordo para ceder aos EUA uma base de lançamento de foguetes no Maranhão, a de
Alcântara, em troca de recompensas. Sergio Amaral conversou sobre o tema com o
subsecretário de Assuntos Políticos do Departamento de Estado, Thomas Shannon. Mantida
em sigilo, uma proposta foi elaborada e apresentada pelo Itamaraty a autoridades dos EUA.
Teria sido rejeitada, segundo CartaCapital apurou. 
Alcântara é tida como a base mais bem localizada do mundo para lançar foguetes. A partir
dali, conseguem colocar satélites em órbita mais rapidamente, com economia de combustível
e de dinheiro. No fim da gestão FHC, houve um acordo, cujos termos foram ao Congresso,
para ratificação. Logo em 2003, primeiro ano de mandato, Lula enterrou o projeto. 

Um dos ministros a defender o arquivamento foi Roberto Amaral, então na Ciência e


Tecnologia. Por seus termos, relembra ele, era um “crime de lesa-pátria”. Os Estados Unidos
impunham várias proibições ao Brasil: lançar foguetes próprios de base, firmar cooperação
tecnológica espacial com outros países, apoderar-se de tecnologia americana usada em
Alcântara, usar dinheiro obtido ali para desenvolver satélites nacionais. Além disso, só
pessoal norte-americano teria acesso à base. “O acordo contrariava os interesses nacionais
e afetava nossa soberania”, afirma Amaral. “Os EUA não queriam nosso programa espacial,
isso foi dito por eles à Ucrânia.” 
Enterrada a negociação, a Ucrânia foi o parceiro escolhido em 2003 para um acordo
espacial. Herdeira da União Soviética, tinha tecnologia para fornecer. Brasil e Ucrânia
desenvolveriam conjuntamente foguetes para lançamentos em Alcântara, com o
compromisso de transferência de tecnologia. A proposta da chancelaria de Serra aos EUA
teria espírito parecido. O Brasil alugaria a base em troca de grana e tecnologia. As proibições
do acerto de 2002, chamadas “salvaguardas”, seriam flexibilizadas. Teria sido esse o motivo
da atual recusa norte-americana de agora. A propósito: o entendimento com a Ucrânia foi
desfeito em 2015, após consolidar-se por lá um governo pró-EUA. 

Ao

contrário de Serra, Temer não chegou a exibir paixão em público, mas em privado mostrou-
se interessado, e útil, aos EUA. Em 2006, ano da reeleição de Lula, encontrou duas vezes o
cônsul-geral americano no Brasil, Christopher McMullen, para conversar. Uma em 9 de
janeiro, outra em 19 de junho, ambas em São Paulo. As reuniões foram relatadas por
McMullen a Washington em telegramas secretos, tornados públicos pelo WikiLeaks,
especializado em vazar documentos, em 13 de maio passado, um dia após Temer chegar ao
poder por causa do afastamento provisório de Dilma Rousseff. Os telegramas deixam a
impressão de que a indicação do peemedebista para vice de Dilma na eleição de 2010 foi um
erro de Lula e do PT, a menos que não tenha prevalecido a tese da conveniência de manter
os amigos por perto e os inimigos mais perto ainda. 
No primeiro encontro, segundo o telegrama, Temer não mostrara objeção à Área de Livre-
Comércio das Américas (Alca), ideia sepultada no ano anterior por líderes progressistas sul-
americanos, Lula entre eles, por ameaçar a economia e a soberania locais. Teria dito que a
vitória de Lula em 2002 fora “fraude eleitoral”, que o governo dele era “desapontador” e com
“foco excessivo” no social, que o PT se corrompera. Diante das pauladas, McMullen anotou
“com aliados assim...”, em referência à posição de Temer sobre Lula. 
No despacho seguinte, sobre a conversa de junho, Temer foi descrito como “anti-Lula”, por
suas críticas à política econômica, ao petista e a peemedebistas tidos como lulistas, caso de
Renan Calheiros, hoje presidente do Senado. O PMDB era então dividido no apoio ao
governo. Presidente da sigla, Temer pertencia à ala claudicante e reclamou “causticamente”,
escreveu McMullen, “das recompensas miseráveis” do governo. Em bom português: um
fisiológico descontente. Temer e seus colegas deputados só mergulhariam no governo após
o novo triunfo de Lula. Uma reeleição que provocaria uma guinada do petista no segundo
mandato, sem as amarras ortodoxas do primeiro, previra Temer a McMullen, seu único
interlocutor a traçar tal prognóstico. 
Fundador do WikiLeaks, asilado na embaixada do Equador em Londres, o hacker australiano
Julian Assange analisou o comportamento de Temer em uma entrevista ao escritor brasileiro
Fernando Morais, divulgada na terça-feira 10. Para Assange, o peemedebista revelou um
grau “preocupante de conforto”. “O que ele terá como retorno? Ele está claramente dando
informações internas à embaixada por alguma razão. Provavelmente, para pedir algum favor
aos Estados Unidos, talvez para receber informações deles em retorno.” 

Em 2006, Temer dizia aos americanos que a vitória de Lula em 2002 fora
“fraude” e acentuava os “exageros” da política social

A guinada de Lula no segundo mandato, prevista por Temer, ocorreu e foi embalada pela
descoberta pela Petrobras, logo em 2007, de petróleo em águas ultraprofundas. A partir dali,
o Brasil despontou como player em duas áreas delicadas para os americanos, a militar e a
petrolífera. No fim de 2008, o governo lançaria uma Estratégia Nacional de Defesa, a amarrar
o desenvolvimento do País ao reforço da segurança nacional. Em 9 de janeiro de 2009, em
telegrama confidencial a Washington, o então embaixador dos EUA em Brasília, Clifford
Sobel, dizia que o Brasil caminhava para tornar-se uma “potência mundial moderna” e,
mesmo que a Estratégia não vingasse na íntegra, seria capaz de “desenvolver uma força
militar moderna com capacidade maior”. 
A Marinha destacava-se no plano, reforço impulsionado particularmente pelo pré-sal, cujo
controle inspirava cuidados, sobretudo após o anúncio norte-americano, em 2008, de
reativação da IV Frota, força naval atuante ao Sul do Oceano Atlântico, pertinho do petróleo
descoberto. Com a expansão desenhada para a Marinha, o Brasil sairia da 19a posição entre
as forças navais mais poderosas do planeta e chegaria à 9a no fim da década de 2020,
conforme o livro As Garras do Cisne, de 2014, do jornalista Roberto Lopes. 

O marco no salto naval viria com o submarino movido a energia nuclear, capaz de deslocar-
se com mais velocidade e ficar mais tempo sob o mar do que o convencional. “O mais
importante instrumento de ameaça que o País jamais possuiu”, escreve Lopes. Só os cinco
membros do Conselho de Segurança da ONU (China, EUA, França, Reino Unido e Rússia)
detêm tecnologia de construção desse submarino. O projeto brasileiro é parceria com a
França, acordo negociado em 2008 e selado em 2009. Custará 8,5 bilhões de reais e já
consumiu 1,8 bilhão. Segundo as últimas estimativas da Marinha, deve ficar pronto em 2027
e entrar em operação para valer em 2029. 
Chanceler de Lula e ministro da Defesa de Dilma Rousseff, o embaixador Celso Amorim diz
que com pré-sal, investimento militar e uma política externa independente de Washington, a
priorizar as relações com a Ásia, a África e a integração latino-americana, o Brasil atraiu a ira
do Tio Sam. “Havia uma percepção do sistema político nos Estados Unidos de que o Brasil
começava a colocar as manguinhas de fora e de que era preciso nos deter.” 

Ao divulgar no Brasil o filme sobre Snowden, Oliver Stone aventou que a espionagem da NSA de 2013 poderia
ter abastecido a Lava Jato inaugurada em 2014

máxima “aos amigos tudo, aos inimigos a lei” dá uma pista de como pode ter ocorrido tal
contenção do Brasil por parte dos EUA. Segundo um ex-ministro de Dilma, muitas
informações da Operação Lava Jato contra multinacionais brasileiras, casos de Petrobras e
Odebrecht, chegaram ao Ministério Público e à Polícia Federal graças aos serviços
americanos de inteligência e seus aliados. Condenado a 43 anos de cadeia por fraudes na
Eletronuclear, o pai do programa nuclear da Marinha, almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva,
foi vítima de um agente infiltrado do Mossad, o serviço secreto de Israel, tradicional parceiro
dos Estados Unidos. 
Sócia da estatal francesa DCNS na construção do submarino nuclear, a Odebrecht acabou
enredada abertamente pelo Tio Sam. Em 21 de dezembro, o Departamento de Justiça
americano e a empreiteira anunciaram um acordo de leniência pelo qual a empresa pagará
cerca de 7 bilhões de reais como punição (uns 5 bilhões serão pagos no Brasil) por distribuir
788 milhões de dólares em propinas (55% a autoridades estrangeiras) entre 2001 e 2016 em
mais de 20 países. Vários países latino-americanos já estudam processar a construtora, um
pepino para os negócios da empresa. 
As informações prestadas pela Odebrecht nos EUA serão aproveitadas pelo procurador-geral
da República, Rodrigo Janot, no Brasil. Em fevereiro de 2015, Janot viajou a Washington com
a força-tarefa da Lava Jato para conversas sobre temas incertos e não sabidos. Sabe-se
apenas que não aceitou a presença de representantes do governo, na figura da Advocacia-
Geral da União, nas reuniões. 

Muitas informações da Lava Jato chegaram ao MP e à polícia graças aos


serviços secretos dos EUA

No ano passado, o cineasta Oliver Stone lançou um filme sobre Edward Snowden,
denunciante da espionagem em massa praticada pela NSA, agência de bisbilhotagem dos
americanos que alvejou Dilma e a Petrobras. Em passagem pelo Brasil para divulgar o filme
em novembro, Stone sugeriu que a espionagem da NSA, revelada em setembro de 2013,
abasteceu a Lava Jato, deflagrada em março de 2014. “Essa informação vai para algum
lugar, não fica lá guardada. É usada para destruir, mudar governos, grandes empresas, a
Petrobras, a empresa petrolífera da Venezuela. Isso pode levar à guerra”, afirmou, convicto
de envolvimento dos EUA na derrubada da petista. 

Na recente entrevista, Assange também cita o papel dos Estados Unidos no impeachment.
Disse ter identificado “robôs” a convocar pessoas nas redes sociais da web para participar de
marchas. “Pensando em como são os programas americanos, vemos que essas coisas não
acontecem na América Latina sem apoio americano”, disse. E “considerando a intenção do
Departamento de Estado americano em maximizar os interesses da Chevron e ExxonMobil”,
o pré-sal teria sido a razão para o Tio Sam querer derrubar o PT, patrono da lei que garantia
a presença da Petrobras na exploração em todos os campos. 
O controle do pré-sal pela Petrobras era a base de um plano de desenvolvimento que
passava pelo estímulo à indústria naval (fornecedora de navios-sonda), a construtoras de
refinarias e às Forças Armadas. Em 2009, um ano antes de concorrer ao Planalto pela
segunda vez, o hoje chanceler Serra reunira-se com dirigentes da Chevron e prometera
mudar a lei e liberar a exploração do pré-sal por estrangeiros sem a Petrobras, caso
ganhasse a eleição. A promessa foi cumprida com a ascensão de Temer, responsável por
sancionar, em novembro, lei proposta por Serra no Senado em 2015. 

Foi
na
Na entrevista a Fernando Morais, Assange revela os pecados de Serra

Exxon Mobbil que Donald Trump pinçou seu homem para o Departamento de Estado, Rex
Tillerson, até aqui presidente da companhia. Pelo menos aí Serra deverá ter facilidades, caso
Tillerson nutra sentimentos do tipo “gratidão”. Perspectivas de negócios não faltam no pré-
sal. Produzir ali é uma mina de ouro, com custos de extração dignos dos sauditas. Metade da
produção da Petrobras no ano passado saiu de águas profundas, 1 milhão de barris por dia,
alta de 33% ante 2015. O presidente da estatal, Pedro Parente, manteve o saldão inaugurado
no governo Dilma e acaba de anunciar a venda de 21 bilhões de dólares em ativos entre
2017 e 2018. 
O investimento de capitais talvez seja o que há de oportunidade econômica em uma
aproximação do Brasil com os EUA, quem sabe algo em comércio exterior, já que a pauta de
exportações do Brasil para o mercado americano é de boa qualidade, centrada em
manufaturados, ao contrário do que ocorre com a China. O problema, diz o economista
Marcio Pochmann, um estudioso das relações globais, é que os EUA são uma economia
decadente e que, sob Donald Trump, tendem a adotar uma postura protecionista para brigar
com a China, o grande parque fabril do planeta hoje. 
O Planalto, ressalta Pochmann, poderia até tirar proveito político de uma briga dessas, com
jogadas parecidas com as de Getúlio Vargas durante a Segunda Guerra Mundial, oscilante
entre a Alemanha nazista e o bloco formado por ingleses, franceses, russos e americanos.
Foi dessa artimanha que o Brasil arrancou dos EUA capitais para construir a primeira
siderúrgica nacional. “Usar os Estados Unidos para negociar com a China não seria de todo
ruim. Mas nós precisaríamos de um estadista.” Não é o caso. • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Jales Valquer/Fotoarena, Andressa Anholete/AFP, Lotta Hardelin/Dagens Nyheter/AFP, Endgame
Entertainment/Vendian/Collection Christophel/AFP e Reproduçãoo De Vídeo
A ignorância sem diálogo
VIOLÊNCIA Bancados por autoridades e políticos, os discursos de ódio prosperam

Por Miguel Martins

Major Olímpio estimulou novos massacres nas cadeias nas redes sociais

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Na República de Platão, Polemarco, em diálogo com Sócrates, busca no senso comum seu
conceito de justiça. Para ele, a definição passa pela maniqueísta formulação de “devolver o
que se deve, sendo o bem ao amigo e o mal ao inimigo”. No Brasil que naturaliza a barbárie,
a definição do personagem platônico impõe-se em discursos de políticos, promotores e
juízes. A repercussão das matanças recentes nas prisões brasileiras confirma a preferência
da atual classe política pelo “olho por olho, dente por dente” de Polemarco. 
A morte de mais de 90 presos em Manaus e Roraima mereceu reprováveis comentários de
autoridades. Em uma entrevista à Rádio CBN, o governador amazonense, José Melo,
afirmou que não “havia nenhum santo” entre os mortos no Complexo Penitenciário Anísio
Jobim. Na sexta-feira 6, Bruno Júlio, agora ex-secretário de Juventude de Michel Temer, não
se satisfez com o número de decapitações e mutilações. “Tinha era que matar mais, tinha
que fazer uma chacina por dia.” O deputado federal Major Olímpio superou-se: publicou em
sua rede social um “placar dos presídios”, contrapondo as 56 mortes em Manaus às mais de
30 em Roraima. “Vamos lá, Bangu! Vocês podem fazer melhor!”, emendou, ao incentivar os
presos da penitenciária carioca a reproduzir as matanças ocorridas na Região Norte. 

Em um país no qual 40% da massa carcerária é composta de detentos provisórios e cerca de


metade deles, de acordo com pesquisas, costuma ser inocentada por tribunais, o desprezo
generalizado pelos presos impressiona. Os discursos de ódio, presentes na mídia, nas redes
sociais e nos argumentos de autoridades, levantam o debate sobre os limites entre a
liberdade de expressão e a apologia e a incitação ao crime. 
Embora muitos integrantes do Judiciário reproduzam discursos de ódio, ao menos o Supremo
Tribunal Federal parece estar menos disposto a tolerar a agressividade de políticos. Em
junho do ano passado, o deputado Jair Bolsonaro, do PSC, tornou-se réu por incitar o crime
de estupro. Em 2014, Bolsonaro atacou Maria do Rosário, do PT, ao afirmar que só não
estupraria a deputada por ela não merecer. O fato de a Corte ter aceito a queixa-crime contra
o parlamentar representou uma nova interpretação sobre a imunidade parlamentar, que
garante ampla liberdade, autonomia e independência a deputados e senadores no exercício
de suas funções. Segundo o entendimento dos ministros à época, as declarações do
deputado extrapolavam a imunidade. 

As matanças em prisões foram alvo de comentários reprováveis

Segundo Maíra Zapater, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da


Fundação Getulio Vargas, as declarações do Major Olímpio nas redes sociais podem
configurar incitação ao crime, com pena de três a seis meses de detenção e multa. “Ele está
recomendando a outros que pratiquem homicídios ainda não consumados.” As afirmações do
ex-secretário de Juventude de Temer seriam mais bem enquadradas como apologia, entende
a pesquisadora da FGV. “Neste caso há uma defesa para mais delitos como esse
ocorrerem.” Em ambos os casos, a interpretação da Justiça é uma incógnita por causa do
atual momento político, diz Zapater. “O discurso punitivista está ganhando a opinião pública e
há decisões recentes do Judiciário que acompanham essa tendência.” 
O discurso de ódio no País tem deixado as caixas de comentários das redes sociais e
chegado às vias de fato. Na noite de 31 de dezembro, o técnico de laboratório Sidnei Ramis
de Araújo encampou em Campinas uma chacina com 12 mortos, entre eles a ex-mulher e o
filho. Antes de cometer os homicídios, Araújo escreveu uma carta na qual tentava justificar o
ato. No documento, o assassino chama a todo momento a mãe de seu filho e outras
mulheres de sua família de “vadia”. Trechos da carta demonstram a semelhança entre seus
argumentos e aqueles propagados diariamente nas redes sociais. “No Brasil, crianças
adquirem microcefalia e morrem por corrupção (...) eu morro por justiça, dignidade, honra e
pelo meu direito de ser pai! Na verdade, somos todos loucos, depende da necessidade dela
aflorar!” 
A

A carta do autor da chacina em Campinas é uma metonímia da barbárie propalada por autoridades, entre
elas o ex-secretário de juventude de Temer
filósofa Márcia Tiburi, autora do livro Como Conversar com um Fascista, classifica a chacina
em Campinas como uma metonímia do atual momento do País. “O ato desse cidadão é uma
parte que vale pelo todo. O discurso é análogo ao de grandes atores da política e do
Judiciário.” A filósofa destaca dois fatores preocupantes na carta. “Primeiro, ela é um ‘copia e
cola’ de preconceitos que transitam livremente nas redes sociais. Segundo, é sintomática a
criatividade dele ao chamar a lei que pune a violência contra a mulher como ‘vadia da
Penha’. Há um sentimento de que a própria Constituição tornou-se uma espécie de lei
vagabunda.” 
Para a filósofa, as atuais condições econômico-políticas trazem à tona energias afetivas
negativas. “Como qualquer afeto, o ódio é um sentimento manipulável. A raiva e o amor não
são naturais, eles florescem em determinadas condições”, explica Tiburi. “Os discursos de
ódio são publicitários: eles servem para nos enganar e nos vender uma ideia, seja para
adquirir uma mercadoria ou votar em parlamentar e aderir a uma igreja.” Contra as certezas
do discurso, a filósofa sugere o diálogo como forma de resistir ao autoritarismo vigente. “É
preciso questionar e desconfiar mais.” 
Talvez Polemarco conservasse sua definição maniqueísta de justiça, não fosse o contraponto
de Sócrates. O filósofo grego pacientemente desconstrói, segundo a narrativa de Platão, o
conceito de seu interlocutor, ao argumentar que “devolver o mal aos inimigos” apenas torna
os seres humanos piores. O esforço dialógico de Sócrates confundia-se com sua defesa
incondicional da democracia. Infelizmente, o diálogo é um valor cada vez mais raro no Brasil.
• 

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: Ananda Borges/Câmara dos Deputados, Wagner Souza/Futura Press e Reprodução
A escravidão não acabou
TRABALHO 349 empregadores ainda submetem os contratados a condições
degradantes e subumanas

Por Renan Truffi

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Com um adiantamento que podia chegar a cerca de 60 reais, dezenas de trabalhadores


rurais foram seduzidos na década de 1990 para capinar juquira na Fazenda Brasil Verde, no
Sul do Pará. Essa espécie de mato, conhecida por incomodar fazendeiros na criação de
gado, foi a principal razão para um dos casos mais simbólicos de flagrante de trabalho
escravo na história do País. No último mês de dezembro, enfim, a consequência: o Brasil foi
a primeira nação a ser condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não
prevenir a prática de trabalho escravo moderno e de tráfico de pessoas. 
Sobraram evidências para a responsabilização do Estado brasileiro no caso. Além de serem
ameaçados caso abandonassem o emprego, os trabalhadores resgatados nesse local
dormiam em barracões cobertos de plásticos e palha, sem proteção lateral, o que permitia a
entrada de chuva e ventos durante a noite. Também não havia cama, o “alojamento” era de
redes. E a água, imprópria para consumo, assim como a alimentação oferecida. Isso não
impedia que os trabalhadores rurais tivessem essas “despesas” descontadas de seus
vencimentos, que nunca chegavam a ser pagos de fato. Ao todo, somente nessa fazenda,
mais de 300 trabalhadores foram resgatados, entre 1989 e 2002. 

Foi para combater situações como essa que o Brasil começou a publicar, em 2003, o
“Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de
escravo”, mais conhecida como a Lista Suja do Trabalho Escravo, que reúne nomes de
empresas ou pessoas que colocaram trabalhadores em situações degradantes ou forçadas
de trabalho. Essa importante ferramenta, reconhecida internacionalmente, não foi publicada,
no entanto, pelo governo Michel Temer no último ano, o que pode sinalizar um retrocesso
maior a caminho. 
A gestão peemedebista aproveitou-se de uma decisão judicial já revista para, simplesmente,
ignorar a existência desse cadastro. Isso porque em 2015, durante o recesso de fim de ano,
o ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF),
atendeu liminarmente e de forma monocrática o pedido da Associação Brasileira de
Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) para suspender a publicação. A Abrainc representa as
principais construtoras do País e está sob comando, atualmente, da MRV Engenharia. 

Ministro. Ronaldo Nogueira avisou aos comandados que 2016 não teria lista
medida cautelar foi cassada, entretanto, pela ministra Cármen Lúcia, em maio de 2016 e o
Ministério do Trabalho foi liberado para voltar a divulgar o cadastro há mais de oito meses.
Mas nenhuma lista foi oficialmente divulgada até agora. A decisão do Supremo levou em
conta uma nova portaria interministerial, publicada no apagar das luzes do governo Dilma
Rousseff, para driblar o impasse. 
Na prática, a portaria flexibiliza as regras de manutenção do cadastro de empregados. Por
essa mudança, as empresas flagradas com trabalhadores em condições análogas à
escravidão passam a figurar em uma nova lista se firmarem um Termo de Ajustamento de
Conduta (TAC) ou acordo judicial com a União. Isso significa que, desde então, o governo
poderia publicar duas listas: uma com empresas que se comprometeram a solucionar o
problema e outra com as que não mostraram intenção de tomar providência alguma. 
Ainda assim, desde que assumiu, o governo Michel Temer ignora essa possibilidade. A
omissão deliberada fez com que o Ministério Público do Trabalho ajuizasse uma ação civil
pública para obrigar o governo federal a voltar a atualizar o cadastro de empregadores
envolvidos com escravidão. No dia 19 de dezembro, o juiz Rubens Curado Silveira, da 11ª
Vara do Trabalho de Brasília, reconheceu a importância do tema e determinou que uma nova
lista fosse publicada em até 30 dias, a partir do momento em que o governo fosse notificado
da decisão. 

Na decisão, Silveira lembrou justamente que esse tipo de omissão colocou o Brasil no banco
dos réus do plano internacional, em referência ao caso da Fazenda Brasil Verde. “Esse foi o
primeiro caso decidido pela CIDH (Corte Interamericana) sobre escravidão e tráfico de
pessoas. (...) Nesse cenário, revela-se ainda mais preocupante a omissão”, observa o
magistrado. 
Para Tiago Muniz Cavalcanti, procurador do Trabalho e um dos autores da ação, essa
postura marca o retrocesso de políticas públicas até então elogiadas por órgãos como a
Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). “A
publicação da Lista Suja é uma política de Estado e não uma política de governo. O combate
ao trabalho escravo tem de continuar”, critica. “Essa postura omissiva vem desde maio para
cá e não existe justificativa para isso.” 
Além de uma ferramenta de defesa dos direitos humanos, a Lista Suja também era uma
referência para o mercado e bancos na hora de conceder financiamentos ou fazer negócios
com determinadas empresas. Mesmo instituições privadas utilizavam o cadastro feito pelo
Ministério do Trabalho antes de concluir operações de crédito para companhias. A decisão do
governo federal de impedir o acesso a essa lista coloca todas as empresas no mesmo
patamar. 
“Para além dos direitos humanos e da questão de acesso à informação e liberdade de
imprensa há a questão muito clara de mercado (para a publicação da lista). É por isso que as
empresas sérias querem essa informação, é uma questão de risco. O mercado brasileiro
aprendeu que só tem a ganhar ao gerenciar esse risco, não é fazer com que as empresas
percam negócios”, alerta o jornalista e presidente da ONG Repórter Brasil, Leonardo
Sakamato. Atualmente, é a ONG presidida por ele que tem conseguido obter e divulgar a
Lista Suja com a ajuda da Lei de Acesso à Informação. A última foi obtida em junho do ano
passado e apresenta 349 nomes de empregadores. 
Para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a postura do governo federal não encontra
respaldo nem mesmo entre a classe empresarial do País. “Existe um grupo majoritário que
não quer ser confundido com os escravagistas, porque isso pode fechar o acesso de um
produto a determinado país vizinho ou cadeia produtiva no exterior”, enfatiza o Frei Xavier
Plassat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da CPT. 

Nada disso comove o ministro Ronaldo Nogueira, do Trabalho, mal assumiu a pasta, avisou a
interlectores que não iria publicar a lista. A secretária Especial dos Direitos Humanos do
Ministério da Justiça e Cidadania, Flávia Piovesan, que tem capitaneado todas as ações
sobre o assunto, em novembro anunciou a coordenação de um Pacto Federativo para
Erradicação do Trabalho Escravo com o estado do Pará, a unidade da Federação com o
maior número de casos. Nogueira enviou seu secretário-executivo, Antonio Correia de
Almeida, para a cerimônia, mas a assessoria de comunicação do ministério mal registrou o
fato em seu site. 
Não está claro se a postura decorre de uma decisão particular do ministro, ou se há algum
tipo de orientação vinda do ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha. Em dezembro, uma
operação das polícias Militar, Civil e Ambiental de Mato Grosso, que investiga desmatamento
ilegal, encontrou em péssimas condições as acomodações de empregados em uma fazenda
de Padilha, em Mato Grosso, e encaminhou as imagens ao Ministério Público do Trabalho,
diante da suspeita de trabalho análogo à escravidão. 

Procurador. Tiago Muniz Cavalcanti move ação contra o governo para a publicação da Lista Suja

Pressões de empresas do setor da construção civil, de parlamentares ou até mesmo de


ministros por conta da repercussão negativa da Lista Suja do Trabalho Escravo não são
novidades no País. Esse tipo de relato também era comum nas gestões petistas e
encontrava conivência, inclusive, entre parlamentares do PT e integrantes do governo Dilma.
No entanto, a postura da gestão Temer, mesmo com vozes dissonantes como a de Flávia
Piovesan, pode sinalizar mudanças mais preocupantes. 
Há algum tempo que integrantes da bancada ruralista tentam abrandar no Congresso a
definição de trabalho escravo, com o objetivo de impedir que flagrantes de trabalho em
condições desumanas seja enquadrado nessa prática. Um dos patrocinadores desse ponto
de vista é justamente o líder do governo no Congresso, o senador Romero Jucá (PMDB-RR),
que foi ministro de Temer. 
Em 2014, quando os congressistas discutiam a PEC do Trabalho Escravo, Jucá tentou
emplacar sua tese sob o argumento de que os termos utilizados para a identificação de
trabalho escravo eram “genéricos”. “O que é sumamente revoltante para alguns pode não o
ser para outros”, amenizava no texto de seu projeto. “Principalmente porque as condições de
trabalho em geral não são lá essa maravilha nos campos distantes, nas minas, nas florestas
e nas fábricas de fundo de quintal.” • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Fabrício Castro/Ascom/Ministério Do Trabalho, Ricardo Wolffenbuttel/Agência Rbs e Roberto


Navarro
O curto e o longo prazo
É

possível que alguém com pouca aprovação no curto prazo proponha e


realize o que necessita do longo?

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Os críticos mais radicais do programa que vem sendo executado pelo ilustre presidente
Temer exercitam a uma histeria verbal cacofônica com altos decibéis, mas pouca razão.
Insistem em ignorar que boa parte das medidas já era “necessária” e sugerida (mas não
praticada!) nos governos Sarney, Collor, FHC, Lula e, particularmente, Dilma! Apenas para
lembrar. Depois do fracasso do Plano Cruzado, os ministros de Sarney não imploraram em
vão pelo controle das despesas? Collor não foi eleito para eliminar os “marajás”? Depois do
enorme sucesso do Plano Real, mas antes de quebrar em 1998, preocupou-se FHC com o
equilíbrio fiscal? Lula levou adiante o fundamental aggiornamento da CLT que estava no seu
programa? Aceitou Dilma as propostas do ministro Mantega, em 2013 e 2014, para controlar
as despesas públicas, enquanto pensava, desesperadamente, na sua reeleição? Essas
últimas foram, aliás, recuperadas, em 2015, pelo ministro Joaquim Levy quando Dilma
buscou – sem sucesso – restabelecer a aliança com os eleitores que traíra.Era tarde. A
tragédia não tinha mais como ser escondida. No primeiro trimestre de 2016, confirmou-se
que o PIB de 2015 havia caído 3,8% e a taxa de inflação, mesmo reprimida, saltara para
10,7%. Na confusão letal colhemos o segundo rebaixamento do rating soberano da S&P e o
primeiro da Moody’s. 
O ano de 2016 começou com um novo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, e uma visita de
Dilma ao Congresso, da qual muito se esperava. Decepcionou. Sugeriu apenas a volta da
CPMF (esquecida pela enorme vaia que levou) e pediu a prorrogação da DRU. É bom
lembrar que esta só foi aprovada no governo Temer sob feroz oposição dos deputados que a
haviam apoiado com Dilma. A partir de março ficou evidente que o governo perdera
completamente sua capacidade de administrar o País. As “previsões” catastróficas para a
economia no ano iam se confirmando e a Ficht completou o trabalho das agências de rating:
rebaixou o do Brasil, agora definitivamente, do “grau de investimento” arduamente
conseguido no governo Lula. 

Sob enorme pressão, a presidenta apoiou um programa bastante razoável sugerido pelo seu
novo ministro: 1. Um teto para as despesas primárias da União. 2. Mudanças na seguridade
social. Reconhecia também a necessidade de controlar as despesas e melhorar a gestão na
educação e na saúde, mas acreditava impossível fazê-lo. 
A situação política do País continuou a agravar-se. Como resultado da sua falta de
protagonismo e da desaparição do seu apoio parlamentar, Dilma foi afastada provisoriamente
em maio. O vice-presidente, Michel Temer, ainda na interinidade, construiu uma base política
e escolheu para seu ministro da Fazenda Henrique Meirelles, que durante os oito anos de
Lula comandara o Banco Central. 
A verdade é que o programa de Meirelles em sua arquitetura é muito parecido com o de
Nelson Barbosa, que nem sequer chegou a ser apresentado, devido à visceral indisposição
de Dilma para o exercício da política. Temer, ao contrário, é um velho e treinado político que
conhece e gosta de exercitar a sua arte. Começou por onde Dilma terminara: coordenou uma
espécie de parlamentarismo de ocasião, que vem aprovando, apesar das dificuldades
estruturais que cercam a atual conjuntura nacional, o que parecia impossível. 

É claro que semelhanças arquitetônicas não escondem diferenças na forma de ver o mundo
dos dois programas. O importante, entretanto, é que eles não diferem no reconhecimento da
absoluta necessidade de dar um fim aos descalabros fiscais, aprovar algumas reformas
estruturais, superar a contabilidade “criativa” e o voluntarismo inconsequente posto em
prática a partir de 2012 (quando Dilma atingiu o auge da sua aprovação nas pesquisas de
opinião) e os danos causados pela desastrada (mas bem-sucedida) reeleição em 2014. 
Deixemos de lado a hipocrisia e tentemos, por alguns instantes, ser honestos. Quase tudo o
que está sendo proposto (por Temer e que esperamos seja aprovado) já era uma
necessidade visível nos governos Sarney e FHC. Foi reconhecido no primeiro mandato de
Lula, inclusive com sugestões interessantes, como a modernização da CLT, mas logo
abandonadas por Dilma, que decidira que “gasto público é vida”. 
O que faltou, então? Talvez grandeza para empenhar o eventual prestígio passageiro que a
sorte de cada um lhe conferiu numa sociedade com eterno viés curtoprazista. O paradoxo é
que parece ser preciso alguém com pouca aprovação no curto prazo para propor e aprovar o
que ela necessita no longo. • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Ilustração: Baptistão


Sobre salários e empregos
PRECARIZAÇÃO As lições de Keynes não chegam aos ouvidos de quem nos
empurra ladeira abaixo da depressão

Por Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo

Nas antípodas. Keynes iluminou a economia, David Ricardo seria o herói dos nossos cientistas tristes

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Lá se vão 81 anos desde que John Maynard Keynes se debruçou sobre os dogmas que
aprisionavam e ainda aprisionam as mentes e os corações de alguns economistas, os
praticantes da Ciência Triste. Em sua Teoria Geral, as relações entre salário e emprego
ocupam papel central para a construção do conceito de demanda efetiva. Pedimos licença ao
caro leitor para citar descomedidamente a obra do Mestre (agora de domínio público, mas há
tempos ausente dos domínios de certos públicos): “Não é muito plausível afirmar que o
desemprego nos Estados Unidos, em 1932, tenha resultado de uma obstinada resistência do
trabalhador em aceitar uma diminuição dos salários nominais, ou de uma insistência
obstinada de conseguir um salário real superior ao que permitia a produtividade do sistema
econômico... O trabalhador não se mostra mais intransigente no período de depressão do
que no de expansão, antes ao contrário... A quantidade de mão de obra que os empresários
resolvem empregar depende da soma de duas quantidades, a saber: o montante que se
espera seja gasto pela comunidade em consumo, e o montante que se espera seja aplicado
em novos investimentos. Essa soma é o que chamamos de demanda efetiva... A propensão
a consumir e o nível do novo investimento é que determinam, conjuntamente, o nível de
emprego, e é este que, certamente, determina o nível de salários reais – não o inverso”.

Por aqui, na ladeira da depressão, cientistas tristes descem na contramão, empenhados em


ressaltar as benesses econômicas decorrentes da precarização do mercado de trabalho. Uns
afirmam que os efeitos recessivos do ajuste econômico poderiam ser suavizados pela
elevação do trabalho informal. Seus “testes empíricos” indicam que os resultados do ajuste
são melhores em economias com alto grau de informalidade, pois conferem ao
desempregado a “possibilidade de manter” o nível de consumo no exercício de uma atividade
informal. Outros, compungidos, insistem em celebrar uma rápida queda do salário real. Na
visão de suas doutrinas, quanto maior e mais rápida for a queda do salário real, menor será o
aumento do desemprego. Conforme nossos merencórios especialistas, nas economias de
mercado as tristezas do desemprego pesam trágica e inevitavelmente sobre os lombos dos
assalariados. Perversidade absolutamente suportável nos confortáveis escritórios dos
especialistas e comentaristas. Nesses ambientes refrigerados, a fé na interação “virtuosa”
entre a queda dos ganhos e a preservação das ocupações não é abalada pela observação
do movimento que leva de cambulhada para o despenhadeiro o emprego e os salários no
mercado de trabalho tupiniquim.

Ao analisar a evolução do salário médio real de janeiro a setembro de 2010 a 2016 só há


queda no valor justamente em 2015 e 2016, anos em que o desemprego aumentou. A
evolução do emprego formal apresenta desaceleração desde 2010, mas apenas em 2015
apresenta saldo negativo: mais de 1,5 milhão de demissões acima das admissões. De janeiro
a novembro de 2016, o saldo negativo era superior a 850 mil de empregos. Robert Reich,
secretário de Trabalho no governo Bill Clinton, publicou uma carta aberta aos republicanos,
endereçando-a aos capitães da indústria americana e titãs de Wall Street que financiam o
partido: “Você se esqueceu de que seus trabalhadores são também consumidores. Assim, ao
mesmo tempo que você empurrou os salários para baixo, também espremeu seus
consumidores, tão apertados que eles dificilmente podem comprar o que você vende”. Reich
tenta explicar que os salários, ademais de custo para as empresas, são também fonte de
demanda, que a formação da renda e da demanda agregadas dependem da disposição de
gasto dos empresários com salários e outros meios de produção que também empregam
assalariados. Ao decidir gastar com o pagamento de salários e colocar sua capacidade
produtiva em operação ou decidir ampliá-la, o coletivo empresarial avalia a perspectiva de
retorno de seu dispêndio imaginando o dispêndio dos demais.

A doida teoria em voga estabelece relações positivas entre queda de


salários e geração de emprego

Muitos países desenvolvidos estão recorrendo a políticas de salário mínimo e organizando


experiências com a renda básica para tentar atacar a desigualdade e o crescimento anêmico
dos salários. No Reino Unido, a previsão era de elevação dos salários dos trabalhadores de
baixa renda quatro vezes mais rápida que o salário médio no ano. A Alemanha introduziu, em
2015, seu primeiro salário mínimo na história. O premier japonês, Shinzo Abe, defendeu
aumentos de 3% ao ano para o salário mínimo. No fim de 2016, a Finlândia anunciou um
sistema de renda mínima universal de, aproximadamente, 2 mil reais por mês, que, após um
período inicial de testes com 2 mil cidadãos, seriam distribuídos igualmente para todos. A
Holanda planeja testar um programa similar em 2017. O apoio a programas de renda mínima
cresce na Europa em decorrência do baixo crescimento econômico e ampliação da
desigualdade, especialmente a partir da crise de 2008. A manufatura da Revolução Industrial
sinaliza com o desemprego endêmico e sistêmico pela substituição de trabalhadores em um
vasto espectro de atividades. Especialistas sugerem particular prejuízo aos mais pobres, pelo
desaparecimento dos trabalhos de baixa qualificação, acompanhado da redução dos salários.
Programas de renda mínima visam, simultaneamente, assegurar um sistema de bem-estar
social, a partir da distribuição da riqueza, e estimular as economias, garantindo poder de
consumo aos seus cidadãos.

Em oposição, ainda hoje são ouvidos os ecos do misterioso sucesso de uma teoria
econômica que estabelece relações positivas entre a queda dos salários e a geração de
empregos. Por essas e outras, Keynes sustentava especial implicância com David Ricardo.
Ao formular sua teoria da distribuição entre salários, lucros e renda da terra, Ricardo eliminou
o problema da geração da renda agregada e da massa de salários pelo gasto empresarial,
isto é, sumiu com as incertezas da demanda efetiva. “Deu-lhe virtude a circunstância de que
seus ensinamentos, transportados para a prática, eram austeros e, por vezes,
desagradáveis. Deu-lhe primor o poder sustentar uma superestrutura lógica, vasta e
coe­rente. Deu-lhe autoridade o fato de poder explicar muitas injustiças sociais e crueldades
aparentes como incidentes inevitáveis na marcha do progresso, e de poder mostrar que a
tentativa de modificar esse estado de coisas tinha, de modo geral, mais chances de causar
danos que benefícios. Por ter formulado certa justificativa à liberdade de ação do capitalista
individual, atraiu-lhe o apoio das forças sociais dominantes agrupadas atrás da autoridade.”

Empoleirado nos ombros do “vício ricardiano”, o fantasma da falácia de composição


prossegue em sua ronda sinistra nos territórios dos economistas tristes. Entalados nas
armadilhas dos fundamentos microeconômicos da macroeconomia, ignoram que o
“recomendável” para uma empresa numa era de recessão – reduzir os salários para manter
empregos – não funciona para a economia como um todo, a não ser em situações
específicas, como a da Alemanha na Zona do Euro. Aí a moderação salarial e a dianteira
tecnológica juntaram-se para estimular as exportações, que pesam 40% no PIB. O crédito
generoso dos bancos das valquírias associou-se aos ganhos salariais de espanhóis,
portugueses e que tais, para estimular a aquisição dos Audi, BMW e de bens de capital da
indústria da senhora Angela Merkel. •
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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Reproduções


Perto demais dos EUA
MÉXICO Posse de Trump vai agravar um quadro já crítico. Mas e se o feitiço se
voltar contra o feiticeiro?

Por Antonio Luiz M. C. Costa

Gota d’ água. O aumento da gasolina se soma a um histórico de violência, corrupção e insensibilidade política
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Pode-se dizer o mesmo de muitos outros países, mas dificilmente com tanta ênfase e
certeza: para o México, 2016 foi um ano péssimo e 2017 será pior. O ano passado foi
marcado pelo agravamento de problemas sociais, deterioração da economia, queda da
produção de petróleo e aumento do número de vítimas do narcotráfico e da violência política.
A todos esses problemas agora se soma Donald Trump, cuja candidatura o desavisado e
incompetente presidente Enrique Peña Nieto ajudou a impulsionar em agosto ao convidá-lo,
recebê-lo com honras de chefe de Estado e se deixar humilhar por ele na esperança de
agradá-lo. 
Antes mesmo de sua posse começar a agravar todos esses problemas, o gasolinazo,
aumento de 14% a 24% dos combustíveis a partir de 1º de janeiro, serviu de estopim a uma
revolta popular que já dura duas semanas e não dá sinais de arrefecer. Estradas foram
interrompidas, instalações da estatal petroleira Pemex ocupadas e mais de mil lojas e
mercados foram saqueados, sem falar de manifestações mais pacíficas em praticamente
todas as cidades. 

Nos anos 1980, o México exportou petróleo para os EUA como se não houvesse amanhã.
Ajudou o vizinho do Norte a quebrar o poderio da Opep e derrubar os preços internacionais,
mas esgotou as reservas recém-descobertas. Desde 2004, a produção começou a cair,
enquanto a indústria nacional de refino e petroquímica se deteriorava. No ano passado, o
país voltou a ser importador líquido, em proveito das refinarias estadunidenses. 
Juntamente com a queda das commodities e a incerteza política criada pela eleição de
Trump, isso impulsionou a desvalorização do peso e a inflação e alimenta o aumento de
preços. Um segundo aumento foi programado para o início de março, antes que os preços
sejam totalmente liberados dentro da política de privatização do setor. O presidente conduziu
a reforma e privatização do setor de petróleo e eletricidade, desde dezembro de 2013, com a
promessa de trazer investimentos privados e baratear os combustíveis. Agora culpa o
antecessor por ter subsidiado os combustíveis e justifica-se cobrando os eleitores em rede
nacional: “O que vocês fariam no meu lugar?” 

A Ford se dobrou a Trump e desistiu de fábrica mexicana. É o fim do


Nafta?

É a gota d’água a entornar um caldeirão no qual cozinham décadas de violência, corrupção e


insensibilidade política. Peña Nieto fugiu de investigar a presumível execução de 43
estudantes dos Ayotzinapa, abafou-a dentro do possível e deu a investigação por encerrada
com um relatório condenado por investigadores independentes. Sua esposa foi presenteada
por uma empreiteira com uma casa de 7 milhões de dólares e ele recusou discutir o assunto. 
A isso se soma o iminente desastre para as indústrias que puderam prosperar com o Nafta, a
começar pela automobilística. Trump começou a desmontar o acordo de livre-comércio a
golpes de Twitter, com ameaças de tarifas proibitivas a cada montadora com planos de criar
fábricas no México. A Ford submeteu-se de imediato: anunciou que cancelaria um projeto de
1,6 bilhão em San Luis Potosí e construiria uma fábrica de 700 milhões no Michigan, dizendo-
se “encorajada pelas políticas de crescimento do presidente eleito”. A Fiat Chrysler admite
suspender a produção no México se Trump cumprir a promessa de criar uma sobretaxa,
enquanto a GM e a Toyota resistem, esta última com respaldo do governo japonês e o
argumento de ter investido bilhões e criado milhares de empregos nos EUA. 

Para aproveitar os acordos de livre-comércio e os salários baixos todas as grandes


montadoras do mundo criaram fábricas no México, hoje o sétimo maior produtor mundial,
acima da França, da Espanha e do Brasil, com 3,5 milhões de veículos por ano, 61% dos
quais exportados aos EUA, 6% ao Canadá e 12% a outros países. Cerca de 40% do valor
desses carros refere-se a autopeças produzidas nos EUA e Trump coleciona carros
importados, mas isso pouco importa ante o valor do espetáculo de “trazer” fábricas para o
país, mesmo se, devido à automatização, isso não significa recuperar os empregos perdidos,
nem em qualidade nem em quantidade. 
Os carros produzidos no México são hoje 19,4% dos vendidos nos EUA e a expectativa era
de crescerem para 27,9% em 2020. Está agora em risco um setor com 1 milhão de empregos
e, se a ameaça for estendida a toda a indústria maquiladora surgida desde a criação do
Nafta, falamos de 2,65 milhões de empregos que respondem por 59% das exportações e
25% do PIB mexicano. Some-se o risco de colapso dessa indústria ao da expulsão de
imigrantes e à ameaça de reter as remessas de trabalhadores mexicanos para suas famílias
para pagar o famigerado muro na fronteira e não é preciso enfatizar o risco de uma explosão
política e social no segundo país mais populoso da América Latina. A União Europeia, às
voltas com as ondas de refugiados da Síria e Líbia, bem que poderia esclarecer o presidente
eleito sobre os problemas de ter esse tipo de crise às portas e o México é bem maior. 
A história se repete?. Gorbachev repudiou acordos comerciais por julgá-los danosos e isso acabou por destruir
o bloco soviético e a própria URSS
Não que seja o único ameaçado. O México e a China são os bichos-papões mais citados por
Trump, mas todos os países com exportações industriais importantes para os EUA estão
ameaçados, inclusive o Brasil. A proposta republicana é que os custos com produtos e
insumos importados deixem de ser dedutíveis da receita para fins tributários, o que equivale
a uma taxa alfandegária pesada e universal. Como assinalou a economista Monica de Bolle,
da Johns Hopkins University, em artigo no Estadão, empresas aéreas dos EUA não poderão
deduzir de suas receitas o custo com aviões comprados da Embraer, que, além disso, teria
de pagar um adicional de 6% de border adjustment tax por não usar mão de obra
estadunidense. 
De certa forma, Trump lembra Mikhail Gorbachev e seu sonho fracassado de fazer a União
Soviética “grande de novo”. Os dois podem ser antípodas em muitos aspectos do
temperamento e da formação intelectual, mas ambos representam ou representaram um
movimento de insatisfação com a decadência percebida de suas superpotências e mostraram
vaidade e autoconfiança desproporcionais à sua capacidade de enfrentar ou talvez nem
sequer compreender as razões profundas das suas dificuldades sociais e econômicas. 

Gorbachev, enquanto conduzia tentativas ineficazes de reforma e modernização internas,


julgou a URSS prejudicada por acordos comerciais demasiado generosos para com países
do bloco soviético, anteriores aos choques do petróleo. Ao menos segundo a cotação oficial
da moeda fictícia usada nessas transações, Moscou fornecia a esses parceiros petróleo e
matérias-primas a preços inferiores aos internacionais e pagava por seus produtos mais do
que o mercado ocidental. Economias e comércio internacional foram moldados por esse
sistema de “solidariedade socialista”: Cuba, por exemplo, foi desencorajada a desenvolver
uma indústria própria (como pretendera Che Guevara) e estimulada a se concentrar em
exportar açúcar e importar máquinas russas e alemãs orientais. Em troca da hegemonia
soviética, essa interdependência proporcionava razoável segurança econômica aos
parceiros. 
A partir de julho de 1989, com poucos meses de aviso prévio, esses países foram obrigados
a entrar num sistema de transações em moedas fortes a preços de mercado e expostos a
uma competição impiedosa. Suas economias e seus sistemas políticos entraram em colapso
antes mesmo que fosse completada a reforma do comércio exigida pelo Kremlin. O Muro de
Berlim caiu em novembro do mesmo ano e o resto do bloco (salvo Cuba) desmoronou como
uma fileira de dominó até o colapso chegar, no fim de 1991, à própria URSS. 

Trump parece alheio ao risco de deflagrar uma explosão social no país


vizinho

O império construído pelos EUA talvez não desabe com a mesma rapidez, mas dá passos na
mesma direção. Desde os anos de Ronald Reagan, os EUA estimularam ou forçaram a
abertura de seus parceiros ao livre-comércio e à livre circulação de capitais. Com isso os
obrigou a moldar suas economias às suas demandas e fortaleceu sua hegemonia. Países
aliados tiveram de sucatear setores tradicionais e enfrentar crises sociais, embora também se
criassem oportunidades de investimento e enriquecimento para suas elites. Por outro lado, os
EUA abriram mão de algumas indústrias e aceitaram manter um crescente déficit comercial,
compensado pelo fluxo de capitais para Wall Street. Apesar do aumento da desigualdade e
do desemprego, um número suficiente de pessoas, principalmente nos EUA, podia ser
persuadido a não contestar o sistema antes da crise de 2008. 
Ficou mais difícil mascarar os problemas causados pela globalização neoliberal aos
trabalhadores da própria superpotência. O resultado é Trump e um eleitorado iludido sobre a
possibilidade de comer o bolo e continuar com ele, sem consciência de que querer revogar o
livre-comércio apenas nos aspectos danosos à classe média estadunidense e cobrar dos
aliados os custos da “proteção” oferecida por Washington é abrir caminho à desintegração do
império e matar a galinha dos ovos de ouro. Mesmo que os EUA pudessem voltar aos anos
1960, não teriam como obrigar a China e as demais potências industriais asiáticas surgidas
nas últimas décadas a fazer o mesmo e perderiam o que lhes resta de competitividade. •

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: El Universal/Zuma Press/Fotoarena, Carlos Jasso/Reuters/Zuma Press/Fotoarena, Ricardo


Aldayturriaga/Xinhuazuma Press/Fotoarena e Abramochkin Yuryia/Ria Novosti/Sputnik/AFP
A megera domada
THE OBSERVER Marine Le Pen esconde o sobrenome e os símbolos do partido

Por Kim Willsher

A candidata no figurino extrema-direira “light”

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Na modesta sede da campanha de Marine Le Pen, em uma das ruas mais elegantes de
Paris, a Rue du Faubourg Saint-Honoré, falta alguma coisa, e não é apenas a estátua
simbólica de Joana d’Arc ou o galo gigante de papel machê que enfeita os escritórios
permanentes da Frente Nacional a poucos quilômetros dali. 
Não longe do Palácio do Élysée, onde Le Pen espera morar daqui a quatro meses, cartazes
pendurados na sala da entrevista mostram o slogan da campanha, Au Nom du Peuple (Em
Nome do Povo), e as palavras MARINE Presidente, acompanhadas de uma rosa azul, sem
espinhos. Não há menção à FN nem qualquer indício do nome Le Pen. Também
desapareceu o logotipo da Frente, uma chama vermelha, branca e azul. 
É o lançamento oficial de sua campanha presidencial. Ela chega em um blazer que combina
perfeitamente com os cartazes e a cadeira destinada a ela, perto da obrigatória bandeira
francesa, a Tricolore, que se mistura às paredes cinza-azuladas. Tudo é perfeitamente
coordenado e tranquilizador. Le Pen sorri e deseja a todos um feliz ano-novo. 
Tudo é extrema-direita “light”, a imagem suave de uma mulher conhecida como durona e
defensora de uma “França esquecida”, que, segundo fotos “privadas” divulgadas no ano
passado, também é generosa com os gatos. 

Há seis anos Marine assumiu a FN e começou a torná-la, e a si mesma, elegível. Nesse


período, transformou sua posição de movimento marginal tóxico em um partido da corrente
dominante. Quatro meses antes da eleição presidencial, a vitória de Le Pen continua
improvável, mas não mais impossível. 
O pai de Le Pen não tem, porém, lugar nesse partido metamorfoseado e reembalado. Jean-
Marie e sua filha não se falam mais, depois que ela o expulsou por não assinar o programa
de desintoxicação. Enquanto o patriarca insiste que o Holocausto foi um “detalhe” da história,
Marine segue em frente: seus alvos são a imigração, a União Europeia e o fundamentalismo
islâmico. 
Segundo Jérôme Fourquet, diretor da empresa de pesquisas de opinião Ifop, essa
repaginação vai além da tentativa habitual de um candidato presidencial francês de
personalizar sua campanha. “Todo mundo na França conhece o logo da FN e o nome Le
Pen, e estes ainda deixam muita gente temerosa”, afirma. “Ao eliminar o logo e o nome, e
apresentar a candidata pelo primeiro nome, eles tentam criar uma proximidade e sugerir um
produto menos difícil, preocupante, assustador.” 

É uma tentativa de atenuar a imagem da Frente Nacional, legenda de


ultradireita criada por seu pai

Em setembro passado, a FN anunciou que sua conferência anual, tradicionalmente uma


“universidade de verão”, seria chamada de “evento de verão”. Os cartazes exibiam um pôr de
sol no mar. “Era em cores suaves, tons pastel, mais parecido com uma publicidade de férias
na Côte d’Azur do que de um evento político”, compara Fourquet. 
Marine Le Pen, 48 anos, decidiu “des-demonizar” a FN em 2011, depois de tomar o controle
do partido fundado pelo pai nos anos 1970. Le Pen sênior, 88 anos, causou um terremoto
político em 2002 ao vencer o segundo turno da eleição presidencial, mas, até relativamente
pouco tempo atrás, a família era vista como inelegível ao cargo máximo. 
Uli Wiesendanger, fundadora da agência de publicidade internacional TBWA, com sede em
Paris, disse que Le Pen rapidamente percebeu a necessidade de “diluir” a imagem racista,
nazista e homofóbica do partido, exemplificada por seu pai, se almejasse a sério o poder. “O
que ela tem feito não é tão criativo, na verdade, e não imagino que um especialista em
marketing tenha criado isso.” 
Wiesendanger acrescenta: “Espero que ela mesma tenha pensado, ao perceber que o nome
não atraía os eleitores. Mas, se o partido que ela representa se envergonha de seu nome, é
uma observação muito interessante. Ela não é nada burra, e fala muito bem, melhor que
qualquer outro político do país, mas eu não a representaria”. 

Não está claro quem representa Le Pen, se é que há alguém. Sua campanha presidencial de
2012 foi conduzida por uma agência pouco conhecida, a Riwal, dirigida por um velho amigo,
Frédéric Chatillon, ex-integrante da sombria organização estudantil de extrema-direita
Groupe Union Défense. Em 2015, um juiz ordenou a Chatillon, cujo nome apareceu nos
Panama Papers, e à Riwal a não trabalhar de “maneira direta ou indireta” com a FN como
parte de uma investigação sobre financiamento de campanha. 
Diante do QG da campanha de Le Pen, L’Escale, um cartaz de eleição tinha sido
vandalizado. Por baixo dos arranhões, Le Pen podia ser vista diante de um fundo bucólico a
olhar sonhadora para o futuro da extrema-direita, acima do slogan “La France Appaisée” (a
França tranquilizada). Mais uma vez, nenhuma menção à FN. 
Os institutos de pesquisa são cautelosos ao prever o resultado da eleição presidencial, mas
uma disputa em segundo turno entre o candidato de centro-direita, François Fillon, e Le Pen
ou o ex-ministro socialista independente Emmanuel Macron é considerado o cenário mais
provável. Os partidos Socialista e Ecológico escolherão seus candidatos no fim do mês, de
uma longa lista de candidatos de esquerda, incluído o ex- primeiro-ministro Manuel Valls. 
Em L’Escale, diante dos integrantes da Associação Anglo-Americana de Imprensa, Le Pen
estava confiante ao atacar diversos alvos: “Chantagem, ameaças, intimidação... e diktats”
dos tecnocratas da UE. O euro, disse, “é uma faca enfiada nas costelas do país”. Sem falar
na “submissão” forçada da França à vontade de Bruxelas. 
Le Pen atacou a chanceler alemã, Angela Merkel, e a dominação pela UE da política do
continente. Usou o termo à la schlague, que significa “à surra” e é mais associado à
brutalidade de um campo de concentração nazista. Este é um dos motivos pelos quais muitos
concordam com Fourquet e veem com ceticismo a reformulação de Marine. • 

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Charles Pau/Reuters/Zuma Press/Fotoarena


Terror sem trégua
A

escalada do EI passa por Berlim, Istambul e Jerusalém, e aqui ganha o


aplauso do Hamas

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O Califado do Estado Islâmico (EI) planejou e marcou no calendário cristão, para o fim de
2016 e início de 2017, a realização de sangrentos ataques terroristas. Em Berlim, em 19 de
dezembro, um dos jihadistas do EI lançou, a fim de atropelar para matar, um caminhão de
carga de selo TIR (para transporte transnacional pesado) contra um tradicional mercadinho
de Natal, resultando 12 mortos e 48 feridos. 
O autor desse atentado, um tunisiano, logrou fugir com facilidade à Itália e acabou morto nas
primeiras horas do dia 23, numa troca de tiros com dois policiais em ronda preventiva pela
cidade de Milão. 
Nas primeiras horas de 2017, no lado ocidental de Istambul, outro jihadista do Califado
invadiu o Club Reina, ocupado por 500 pessoas em festa de réveillon, e disparou 180
projéteis de Kalashnikov, com um saldo de 39 mortos e 24 feridos. O autor deste ataque
ainda está foragido. No dia 9 deste mês, em Jerusalém, um palestino arremessou outro TIR
contra um grupo de pessoas, ferindo 15 e matando 4 jovens de menos de 20 anos. O autor
do atentado foi morto a tiros e o governo de Israel atribuiu a responsabilidade ao Estado
Islâmico. 

Em Berlim, os 007 germânicos pensaram tratar-se de um “lobo solitário”, firme no legado de


Bin Laden do “faça você mesmo a sua parte na Jihad”. Àquela altura, nenhuma autoridade
alemã acreditava estar o Califado por trás da ação. Logo depois, no entanto, o EI exibiu um
vídeo gravado na véspera do atentado, com o terrorista Anis Amri avisando ter chegado a
Berlim para “abater os porcos dos cruzados”. Fora isso, a Amaq-News, que veicula por
telemática as ações do Califado, difundiu um vídeo gravado no dia seguinte ao atentado, no
qual Amri reivindicava o ataque e criticava os cruzados pelos bombardeios diários feitos
contra muçulmanos. 
Até o momento, não se sabe se Anis Amri recebeu apoio logístico da rede europeia do
Estado Islâmico. Sabe-se, entretanto, que em novembro a rede do principal homem do EI na
Alemanha, Abu Walla, pregador e arregimentador de jihadistas, foi desmantelada e ele,
preso. 
O certo é que Amri saiu com facilidade de Berlim e chegou à Itália. A respeito da Itália, os
007 israelenses e norte-americanos consideram-na um “corredor jihadista”. Chega-se,
através de Bari, à Síria e ao Norte da África. No lugar onde Amri foi morto, na estação
milanesa de Sesto Giovanni, pode-se embarcar para a Espanha, Albânia, Tunísia e Bósnia,
além da Sicília, por onde Anis Amri entrou no país, num barco de refugiados, em 2011. Ainda
sobre o apoio logístico a Amri por uma rede jihadista europeia, muitos 007 italianos duvidam.
Fazem comparações com Paris, ou, melhor, destacam não ter sido Anis Amri um Salah
Abdeslam, o terrorista que, depois do ataque ao Bataclan parisiense, fugiu para a Bélgica e
ficou meses sob proteção do Estado Islâmico. 

É sabido que o EI possui uma eficaz network na Turquia. Só em 2016, em Istambul, o


Califado atacou, em 10 de dezembro, com um carro-bomba, com um saldo de 38 mortos e
166 feridos. Em junho, houve o ataque no Aeroporto Mustafa Kemal Atatürk, com 45 mortos.
Em Istambul, o clima era diferente daquele festeiro de Berlim. Na cidade turca, desde
meados de dezembro, panfletos advertiam não serem o Natal e o ano-novo efemérides
mulçumanas, que as definem como “festas de apóstatas”. Fora isso, o novo porta-voz do
Califado, Abu Hassan al-Muhajir, havia, ainda em dezembro, convocado os jihadistas para
ataques na Turquia. 
No campo da geopolítica, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, aproveita-se de tudo
para alargar seus poderes ditatoriais e aponta seu país como alvo não somente do EI, mas
também dos extremistas curdos do PKK e dos falcões do TAK, do Curdistão. Na Alemanha, a
ultradireita abre uma campanha internacional contra a chanceler Angela Merkel, com apoio
do líder antieuropeísta inglês Nigel Farrage, da direitista francesa Marine Le Pen (unida à
Liga Norte italiana de Matteo Salvini) e da ultranacionalista alemã Frauke Petry. Contava
também com o Movimento 5 Estrelas, de Beppe Grillo, mas as relações com este partido
italiano azedaram. Todos falam do massacre de Berlim como sendo uma herança deixada
por Merkel, com sua política de abertura a refugiados. 
Para rematar esse quadro, a decisão do Conselho de Segurança da ONU de condenar Israel
por promover assentamentos em terras palestinas ocupadas, com o premier Benjamin
Netanyahu a afirmar desobediência à resolução da ONU e depois recuar, serviu para o EI
tentar enviar um sinal ao Hamas, por meio do ataque terrorista do último fim de semana. O
Hamas, em nota, aplaudiu a ação sangrenta. • 

ÍNDICE
 CRÉDITOS DA PÁGINA: Ilustração: Baptistão
O axé vai ao museu
MÚSICA Um documentário inicia a historiografia do gênero que ganhou as avenidas
do Brasil e hoje perde espaço

Por Pedro Alexandre Sanches

“Gesto de afirmação do preto baiano”, na visão de Caetano

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No princípio, eram o verbo e a verba. De meados dos anos 1980 em diante, a música do
Carnaval de rua da Bahia adquiriu novas feições e expressividade e se impôs pouco a pouco
no cenário nacional, a ponto de adquirir dimensões industriais, mover cofres abarrotados de
dinheiro e incomodar ambas as partes, ao ser tomada como espelho referencial do
neoliberalismo brasileiro sob Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). “Axé music” foi o
apelido que se deu à aparente contradição em termos, à música rebolativa e apelativa que
constrangia e rendia divisas ao presidente que era o príncipe brasileiro da sociologia. 
Passaram-se três décadas, as jazidas se esgotaram e ambos, a axé music e o neoliberalismo
à brasileira, enfrentaram choques de realidade e chegaram a ser dados como mortos. O
documentário Axé - Canto do Povo de um Lugar estreia neste mês no país tropical “neo-
neoliberal” e estabelece, a partir da Bahia natal e do pop, a primeira tentativa historiográfica
em torno daquele tema que afugentava acadêmicos como a cruz afugenta o diabo dos
católicos. 

O diretor é o baiano Chico Kertész, de 36 anos, cineasta estreante egresso da publicidade e


do marketing político. Ele é filho do político Mário Kertész, que foi homem forte do udenista-
pefelista-demista Antonio Carlos Magalhães, rompeu com o carlismo em 1981 e se sagrou
prefeito de Salvador pelo PMDB nas eleições municipais de 1985, no momento histórico em
que o sucesso popular Fricote, de Luiz Caldas, dava partida informal à futura axé music. 
O documentário legitima um gênero musical combatido em regra pela crítica cultural e tido
repetidas vezes em anos recentes como decadente e/ou moribundo. No Carnaval deste ano,
trios elétricos como os de Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Claudia Leitte e Léo Santana
disputarão as ruas com nomes do neoforró (Wesley Safadão, Aviões do Forró) e do
neossertanejo (Matheus & Kauan). Nos camarotes privados bancados por grandes marcas
(sobretudo de cerveja), Carlinhos Brown e É o Tchan terão de sobreviver em meio a uma
enxurrada de nomes não necessariamente carnavalescos do neossertanejo (Marília
Mendonça, Luan Santana, Gusttavo Lima), do funk (Anitta) e do neossamba (Péricles, Xande
de Pilares). 

João Jorge: presos só pelos dread locks. Ivete Sangalo: Pepererê pepê pepê
Bel, ex-Chiclete com Banana: instituição do Carnaval. Daniela e o grito da afirmação femininia

“Percebi que os documentos históricos que tínhamos da trajetória baiana eram muito pobres”,
Chico justifica a decisão de filmar o fenômeno onipotente em meados dos anos 1990, quando
encampado por dez entre dez gravadoras multinacionais estabelecidas no País. “Não tinha
um livro, um filme, nenhum documentário. Me deu vontade de fazer.” Axé - Canto do Povo de
um Lugar apoia-se em mais de cem entrevistas de artistas, empresários, donos de bloco etc.
Todo mundo está lá, dos inventores da axé aos patronos tropicalistas Gilberto Gil e Caetano
Veloso. “Foi um gesto de afirmação do preto baiano”, afirma Caetano a certa altura, deixando
de lado as implicações políticas do movimento e sublinhando o confronto racial subjacente ao
levante axé. 
A quem tenha sempre obedecido aos preconceitos da crítica cultural contra a música
brasileira de maior poder comunicativo, Axé revela uma dinâmica intrincada, de grande
complexidade e, por que não dizer?, riqueza cultural. Tonho Matéria, do pioneiro bloco afro
Olodum, põe combustível na fogueira racial ao lembrar que, de maneira análoga ao que
aconteceu na aurora do samba carioca, músicos baianos de axé eram presos como
“vagabundos e maconheiros” pela polícia, apenas por ostentar cabelos rastafári. Com
sutileza, o filme dá elementos para embaralhar o que foi tido genericamente como uma
reprovação estética ao estilo musical com o espectro sempre negado do racismo à brasileira.
Se a música axé foi tão importante para a cultura afrodescendente baiana, a resistência
contra ela não seria também um tipo de racismo? 

Após três anos, boom na música baiana já examina passado e futuro

Kertész prefere contornar a fogueira a pulá-la. “Acho que é muito mais preconceito com a
música popular, do povão, que mexe com a massa. Dizem que é mal tocada, que o refrão é
chiclete, várias coisas que fazem as pessoas criarem esses preconceitos. O axé tem coisas
lindas, como Baianidade Nagô, e por outro lado tem composição de Ivete Sangalo que fala
‘pepererê pepê pepê’ e fica só nisso. Dá pra entender um pouco o preconceito.” 
A apropriação do axé afrodescendente pelos não negros não é tematizada diretamente, mas
prevalece na eloquência de imagens que falam por si. “Isso vem revertendo com o passar do
tempo. Eles deixam de estar na linha de trás e vêm para a frente”, afirma o diretor. “Alguns
críticos, como Letieres Leite, dizem que a decadência da música baiana vem porque parou
de sugar da música preta os toques de candomblé, de onde surgiu tudo.” Líder da virtuosa
Orquestra Rumpilezz, Letieres é músico negro baiano, cujo depoimento traz à baila o tema
ainda não dissecado, como também não o é o poderio feminino no comando dos antes
exclusivamente masculinos trios elétricos. 

Kertész: “Dá para entender um pouco o preconceito”

Ironicamente, o gênero musical que se confundiu com o neoliberalismo sob FHC hoje sofre
com a sanha privatizadora do espaço público. “O Carnaval da Bahia passa por um momento
de transformação absurda”, avalia Kertész. “O Carnaval hoje é todo feito dentro de
camarotes. O que era voltado para a rua vai se voltando cada vez mais para a privatização e
para as festas internas. Estamos num momento nebuloso, no qual blocos não conseguem
patrocínio e muitos nem vão sair neste ano. Imagine o Olodum sem patrocínio. Onde vamos
chegar?” 
O presidente do Olodum, João Jorge, confirma as dificuldades, que embaralham agora os
percalços da axé ao longo da era petista e a atual crise econômica, política e institucional
fomentada pelo golpe. “Depois de um grande crescimento, de o Brasil tornar-se um país
razoavelmente viável, a economia errou muito com a crise da democracia”, afirma João
Jorge. “As empresas e os governos alegam dificuldade geral para patrocinar. Vai ser um
Carnaval emblemático para o Olodum, os blocos afro e a música chamada axé.” 

Blocos afro sofrem com segregação de patrocínio e a invasão de sertanejo


e funk

As mesmas práticas neoliberais que catapultaram a negritude musical baiana como indústria
hoje voltam-se contra ela, especialmente na ponta mais pobre, e negra. “Os blocos afro vão à
rua com a população que tem menos poder aquisitivo. Salvador tem 86% de população
negra. Os consumidores de qualquer produto, de absorvente a palito de fósforo, são negros.
Quem consome cerveja em Salvador?”, pergunta João Jorge. As marcas seguem a manada
e privilegiam o sertanejo nos camarotes. “Você usa uma festa local para transferir recursos
para outros lugares”, avalia. Ele mostra que, com a guinada mais-que-conservadora do
Brasil, as portas se fecham em regime de parceria público-privada: “Nos últimos anos, houve
apoio da Petrobras, da Caixa Econômica, do Banco do Brasil. Neste momento, tudo indica
que não haverá isso dessa forma”. 

Quem se esgotou primeiro, o verbo ou a verba? Axé – Canto do Povo de um Lugar debruça-
se mais na ascensão do que no declínio e não chega a vasculhar os impasses presentes da
música que repovoou o espaço público baiano (e brasileiro) e alçou, sobretudo, mulheres,
negros e nordestinos ao poder (cultural) local, antes mesmo que Luiz Inácio Lula da Silva e
Dilma Rousseff os representassem no centro político. 
Mais que refletir sobre uma dinâmica cultural, o documentário faz parte dela. Como acontece
desde que o samba é samba, o sucesso comercial das microrrevoluções culturais afasta
acadêmicos e gera a hostilidade de críticos culturais. Quando declina, distancia-se no tempo
e vira peça de museu, ganha a estranha autoridade de ser revisto pela crítica, pelo cinema,
qualquer dia desses pela academia. Neoliberais ou socialistas, somos todos a axé music que
amamos-e-detestamos. As contradições restam preservadas ao final de Axé, mas já não há
armário, democrático ou de exceção, em que elas caibam. • 
AXÉ, CANTO DO POVO DE UM LUGAR
Chico Kertész. 
Brasil, 2016, 107 minutos, 12 anos. 
Produção Zahir Company

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: P. Xando/A Tarde e Macaco Gordo/Rodrigo Maia


LIVRO  O diabo nos entalhes
Ambrose bierce fez de o Dicionário do Diabo um exame da hipocrisia nas relações
sociais
Por Jotabê Medeiros

Bierce: ácido crítico do teatro social, levou o rompimento ao paroxismo, desaparecendo

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A chamada literatura de aforismos amamentou grande parte de um determinado ramo da


intelectualidade brasileira. Especialmente H.L. Mencken, “a língua mais afiada do jornalismo
americano”, querido por articulistas como Paulo Francis, Ruy Castro, Daniel Piza e Tarso de
Castro (e cujo O Livro dos Insultos foi traduzido por Ruy Castro para a Companhia das
Letras). Já Ambrose Bierce foi um frasista de impacto menor, porque menos conhecido, aqui
no Brasil. O motivo foi que era um pouco mais refinado, mais cínico do que polemista. Um
egoísta, para Bierce, era alguém desprovido de consideração para com o egoísmo dos
outros. Em 1881, suas frases começaram a ser publicadas em jornal, semanalmente, com o
título de Dicionário do Diabo, um livrinho que levou 25 anos sendo escrito (e que saiu no
Brasil pela primeira vez pela Editora Carambaia). O verbete política, por exemplo, é definido
como “luta de interesses disfarçada de disputa e princípios; a condução dos negócios
públicos para obter vantagens pessoais”. Paciência é “uma forma menos grave do
desespero, disfarçada de virtude”. Partidário é um “seguidor que ainda não conseguiu tudo
que esperava”. O amor é definido como “insanidade temporária curada pelo casamento ou
pela remoção do paciente das influências sob as quais ele contraiu a doença”.

Suas boutades traíam uma indisfarçável vontade de romper com a panaceia social, coisa que
o escritor acabou fazendo, ao se alistar nas tropas de Pancho Villa, no México, e sumir para
sempre, em pleno auge do prestígio literário. Esse desfecho da vida de Bierce alimentou
ficções, como Gringo Viejo, de Carlos Fuentes. Mestre dos contos, fez de alguns deles,
como A Coisa Maldita, uma reflexão metafórica do avanço silencioso do autoritarismo. Muito
por causa da circunstância histórica e social, velhos equívocos orientam alguns verbetes, que
acabam sendo um tanto machistas ou preconceituosos. Amor marital, por exemplo, é
“afeição pervertida que é desperdiçada com a própria esposa”. O casamento é “uma
comunidade que consiste de um homem, uma mulher e uma amante, num total de duas
pessoas”. No geral, o tom de Bierce é ultrassofisticado. Leitura leve, mas não para tolos. 

LIVRO  Um manifesto anticapitalista


David Harvey traz respostas para a crise atual
Por Eduardo Nunomura
“Nunca a esquerda foi tão fraca”, diz o autor

Em 17 Contradições e o Fim do Capitalismo, o geógrafo David Harvey escreve para um


público carente de respostas para as turbulências sociais, econômicas e políticas do nosso
tempo. Traz uma nesga de alento para leitores que se sentem pessimistas com a
“globalização da indiferença”, o ceticismo e a descrença enraizados na alienação universal. O
autor trata de esquadrinhar os próximos passos para que movimentos anticapitalistas
possam se constituir como focos de resistência e oposição, muito embora alerte que eles
potencialmente se tornarão “caóticos, voláteis e geograficamente específicos”. Harvey
mostra-se preocupado com o avanço de fundamentalismos religiosos e a ameaça crescente
de novos movimentos fascistas, o que faz com que o capitalismo aposte em Estados
ultramilitarizados, com seus modernos aparatos de vigilância e repressão, como forma de
superar o impasse. A consequência é a transformação das sociedades civis em um campo,
para além do sentido bourdiano, de batalha em torno do futuro do capitalismo e da
humanidade. O problema, segundo ele, é que “nunca antes a ampla esquerda foi tão fraca”
para se contrapor a essa nova situação.

O livro aborda questões cruciais, e reconhecidas por qualquer escola de economia, sobre
como os mecanismos econômicos geram distorções nas relações de capital e trabalho.
Procurando repensar Marx, Harvey parte da atual crise, fruto de uma financeirização global
hiperendividada que começou nos anos 1980 , para tratar das contradições do capital, e não
do capitalismo. E critica: surgiu uma nova forma de geração de riqueza que despreza a
produção e vive de aluguéis, juros e lucros sobre o capital comercial e midiático ou, pior, só
da especulação de ativos ou dos ganhos de capital. “Infelizmente, o surgimento dessa
plutocracia é mais que evidente. É difícil disfarçar o fato de que ela vai muito bem, enquanto
a massa da população vai muito mal”. 

17 CONTRADIÇÕES E O FIM DO CAPITALISMO


David Harvey. Boitempo
304páginas
R$ 69,00

LIVRO  Quem matou JK?


Por Pedro Alexandre Sanches
EU MATEI JK, Gladston Mamede. Edição do autor, 154 págs.

O final da história está antecipado pelo título do livro Eu Matei JK, do jurista e escritor
Gladston Mamede. O ex-presidente Juscelino Kubitschek morreu em 22 de agosto de 1976,
não num acidente automobilístico, mas assassinado. A trama é desfiada em primeira pessoa,
na figura de um atirador de elite que serve à ditadura civil-militar e cumpre a missão
clandestina de alvejar o crânio do motorista do ex-presidente, para que o carro se
desgoverne e JK deixe de ameaçar os propósitos dos generais no poder. O protagonista
machadiano, sem nome, segue trajetória anônima do interior das Minas Gerais ao Exército,
onde prossegue pelos governos civis, até combater no Haiti, sob Lula . Vai para a reserva
durante o governo de Dilma Rousseff e termina incomodado pela Comissão da Verdade, que
ressuscita o caso. Navegamos pelas águas da ficção ou da realidade? O autor deixa em
aberto. Em 2013, a Comissão da Verdade de São Paulo concluiu que JK foi assassinado. Em
2014, a Comissão Nacional disse que não. Depois aconteceu tudo que aconteceu, e
continuamos sem saber. 

CINEMA  Nós, Daniéis Blakes


Novo filme de Kean Loach socializa a invisibilidade
Por Jotabê Medeiros
Deserdados de Loach: “entraves” à eficiência do Estado

Impossível não chorar vendo Eu, Daniel Blake, o novo filme do cineasta britânico Ken Loach.
A questão é: você chora por você mesmo, chora por causa de seu humanismo incontornável
ou chora porque sabe que tentar deter planos de extermínio dos mais vulneráveis é como
enxugar gelo em Ipanema? O discurso da inexorabilidade da tecnologia vai criando uma
legião incômoda de deserdados. É desse mundo que vem Daniel Blake, que trabalhou a vida
toda como carpinteiro em Newcastle. Incapaz de manusear um mouse de computador, aos
59 anos, Blake (Dave Johns) recupera-se de um ataque cardíaco e pela primeira vez na vida
precisa do Estado para sobreviver. Vai ser jogado no inferno das repartições e guias.
Médicos sem coração, burocracia sem fundo, indiferença sem limites: o que Blake colherá é
uma fórmula que vem sendo cuidadosamente universalizada.

Os filmes de Loach são forjados em um ritmo de naturalismo desconcertante, o que faz


ranger dentes de críticos viciados em arquiteturas cênicas engenhosas. Ele apenas faz,
aparentemente sem esforço, o gesto de aproximar mundos que se roçam todo dia, mas
nunca se tocam, como no caso do motorista de ônibus que, apaixonado, vai parar na
Nicarágua revolucionária (Uma Canção para Carla). O filme está a serviço de uma
mensagem mais do que a mensagem a serviço do cinema. Há questionamentos acerca de
determinadas cenas de pobreza, consideradas “inverossímeis” nas regiões de onde elas
provêm. Mas o recado de Blake é universal: não somos apenas clientes, consumidores ou
usuários de serviços. Somos gente com diferenças. É preciso que o Estado, como
representante do povo, saiba tratar diferenças. Blake é frágil diante das engrenagens do
sistema, mas conhece alguém ainda mais frágil: uma mãe. Há sempre uma hierarquia mais
baixa no desabrigo. Ele recebe em casa Katie (Hayley Squires), que conhece no momento
em que ela é enxotada de uma entrevista de emprego com os filhos, Daisy e Dylan. O filme
pode ser lido de duas maneiras. Para uma Inglaterra pós-Brexit, tem algum ingrediente de
confusão, até algum toque de xenofobia. Para o Brasil da PEC 241, é uma sirena para nós,
Daniéis Blakes. 

Trailer filme "Eu, Daniel Blake"

CINEMA  Rebeldia política


Por Eduardo Nunomura

ASSIM QUE ABRO MEUS OLHOS, de Leyla Bouzid, 1h42

A jovem Farah (Baya Medhaffer) vive um dilema particular: virar médica, como sua família
quer, ou seguir como vocalista de uma banda de rock. Ela também está na fase de
descoberta do amor, da vida noturna e do estrelato. É uma questão difícil em qualquer
situação, mas o filme é ambientado na Tunísia, no verão de 2010, pouco antes da Revolução
de Jasmim, que inaugurou os protestos da Primavera Árabe. Tudo pode ser ainda mais
complicado, sobretudo quando as autoridades descobrem que ela é a voz dissidente de uma
canção de protesto contra o governo repressivo de Zine El-Abidine Ben Ali, presidente do
país por 23 anos. Para proteger a filha, a mãe, Hayet (Ghalia Benali) opõe-se à carreira
artística e acrescenta o conflito familiar como uma variável a mais na equação do filme
dirigido por uma mulher, Leyla Bouzid. A jovem é tão determinada que opta pelo caminho
mais tortuoso. Prêmio de público no Festival de Veneza, Assim Que Abro Meus Olhos, que
entra em cartaz no Brasil, foi indicado pela Tunísia como representante para o Oscar.   

Trailer filme "Assim Que Abro Meus Olhos"

TEATRO  Uma aula para pensar


Peça reflete sobre como a liberdade faz falta no mundo

Georgette Fadel interpreta a filósofa Simone Weil

O professor entra em sala de aula e rouba a cena. Pode ser raro, mas às vezes acontece. E
quando o ator sobe no palco e “rouba” o papel de um professor? Mais do que interpretar uma
hipotética aula da filósofa francesa Simone Weil, Afinação I é um monólogo que convida a
plateia a se colocar no lugar de alunos de uma escola que, se já não existe, deveria ser
inventada. Em 60 minutos de espetáculo, reflexões sobre a opressão no mundo do trabalho e
fora dele, o pensamento racional, o sentimento, a Justiça e a liberdade. A arte de pensar é
estimulada e potencializada por textos de Bertolt Brecht, Friedrich Hegel, Karl Marx e da
própria Simone Weil e uma interpretação sagaz e cortante de Georgette Fadel, atriz e
diretora formada pela Universidade de São Paulo.

A peça recorre à metáfora da afinação de um instrumento, no caso um violoncelo, para nos


revelar o quão minucioso e delicado deve ser o construir de pensamentos e ideias. Afinação
I faz parte da série de espetáculos intimistas do Teatro Mínimo, promovido pelo Sesc
Ipiranga, e vai até 1o de fevereiro. Nesta temporada, a outra montagem é Se Eu Fosse
Iracema, interpretada por Adassa Martins, acerca do universo indígena brasileiro, indo das
tradições dos povos aos direitos hoje negligenciados. Segue até 12 de fevereiro. 

VINILÂNDIA  A nata da MPB na bolacha


Velho formato revive clássicos
Por Pedro Alexandre Sanches

CLUBE DA ESQUINA 1 E 2. Milton Nascimento, Lô Borges e outros. Universal/Polysom

O fetiche pelo passado mantém viva uma indústria que virou poeira. Morto o formato CD,
parece óbvio e ululante para os fetichistas que seria melhor ter em casa as cópias em vinil
dos discos de estrada Clube da Esquina 1 (1972) e 2 (1978), liderados por Milton
Nascimento. Ambos saíram originalmente em álbuns duplos, com rico material gráfico que o
CD matou antes de ser assassinado pelo fantasma do LP (e a internet). Os fetichistas com
R$ 150 para desembolsar em cada volume ouvirão em alta gramatura sonora e simbólica o
que já circula livremente por streaming e meios virtuais lícitos ou ilícitos. O volume original,
dividido com Lô Borges, contém nuvens ciganas densas, como Cais, O Trem Azul, Cravo e
Canela, Um Girassol da Cor do Seu Cabelo e Nada Será Como Antes. Seis anos mais tarde
e amplamente consolidado, Milton assinou sozinho o volume 2, mas o coalhou de estrelas,
de colegas de clube a Chico Buarque (em Canción por la Unidad Latinoamericana) e Elis
Regina (na imortal O Que Foi Feito Devera/ De Vera). 

Samba, rock e futebol


Por Pedro Alexandre Sanches

NOVOS BAIANOS F.C. Novos Baianos. Polysom

A capa épica e o formato de álbum com várias páginas ilustradas justificariam sozinhos o
fetiche por Novos Baianos F.C. em vinil, mas o terceiro título da discografia dos Novos
Baianos, lançado em 1973, é bem mais que mera embalagem. Menos celebrado e
disseminado que seu antecessor Acabou Chorare (1972), rivaliza com ele na massa sonora
que fundiu samba, rock e bossa nova de modo inédito até então, e que jamais seria superado
depois. Não há hits de rádio aqui, mas Cosmos e Damião e Os “Pingo” da Chuva são aulas
magnas de história do suingue brasileiro.

Antes do desencanto
Por Pedro Alexandre Sanches
TIM MAIA 1, 2 E 4. Tim Maia. Universal/Polysom

A revisão setentista da fábrica de vinis Polysom coloca lupa também na história do primeiro
soul man brasileiro, com a reedição de três dos quatro álbuns iniciais de Tim Maia, lançados
originalmente em 1970, 1971 e 1973. No primeiro estão os hinos soul Primavera (Vai
Chuva) e Azul da Cor do Mar e a versão funk do forró Coroné Antônio Bento (lançado em
1959 pelo alagoano Luiz Wanderley, como Matuto Transviado). No segundo há Não Quero
Dinheiro (Só Quero Amar), Você e Não Vou Ficar, além da versão preta para a bossa Preciso
Aprender a Ser Só (1965), do loiro Marcos Valle. Fica fora do pacote o Tim Maia de 1972,
que tinha Idade, O Que Me Importa e mais um flagrante da brasilidade torta do artista, na
versão envenenada do xote Canário do Reino, do Trio Nordestino. O ciclo fecha-se com o
título mais dançante, com Réu Confesso, O Balanço e Gostava Tanto de Você. A alegria era
externa, pois em seguida Tim rompeu com a multinacional, converteu-se à filosofia religiosa
Universo em Desencanto e, transitoriamente independente, virou Tim Maia Racional. 

Mais vinis
1. Como vinil não precisa ser só saudade, ganha edição no formato o recém-lançado As
Coisas Simples da Vida, do soul man Hyldon.
2. CD pode virar vinil, como acontece com O Rappa-Mundi (1996), segundo CD da banda O
Rappa.
3. Fetiche custa caro na caixa da extinta gravadora Elenco, mito da bossa nova e da arte de
capas de LP. Saiu em 2014 e custa salgados 420 reais.

AGENDA
Curitiba
A potência vocal e a explosão de palco de Filipe Catto estarão presentes na Caixa Cultural
de 13 a 15 de janeiro, com o espetáculo Tomada, álbum lançado em 2015. Ingressos: R$ 10
e R$ 20.

Belo Horizonte
A exposição Estado de Sítio, do artista mineiro Eder Santos, questiona as tensões
sociopolíticas e o momento em que vivemos por meio da arte-tecnologia. Grátis. No Palácio
das Artes, até 22 de janeiro. 

Fortaleza
O Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura traz de volta à terra natal as obras do pintor
Raimundo Cela, um moderno que nunca foi um modernista no início do século XX. A partir de
17 de janeiro.

Rio de Janeiro
A peça Luiz e Nazinha – Luiz Gonzaga para Crianças, no Teatro Dulcina, recorre a uma
fábula de um amor inocente para resgatar clássicos do Rei do Baião. Livre. Sábados e
domingos, às 16 horas. Ingressos: R$ 10 e R$ 20.

Rio de Janeiro
A partir de 18 de janeiro, a Casa Rio, em Botafogo, recebe o espetáculo Carne do Umbigo,
de Maria Resende. É um misto de performance e recital de poesias. Ingressos: R$ 30. Até 8
de fevereiro.

ÍNDICE

 CRÉDITOS DA PÁGINA: Bettmann/Corbis/Divulgação, Julio Ricardo, Elena Moc, Domicio Pinheiro/Estadão Conteúdo e
Julia Zakia
O poder da fama
THE GUARDIAN A ligação entre notoriedade e grandes empresas explica a
ascensão de figuras como Trump

Por George Monbiot

“A política não é nada além de um comercial de tevê”

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Agora que um astro de reality TV se prepara para ser o presidente dos Estados Unidos,
podemos concordar que a cultura das celebridades é mais do que uma simples diversão
inocente – e que poderia, de fato, ser um componente essencial dos sistemas que governam
nossa vida? 
A ascensão da cultura das celebridades não aconteceu por si só. Ela foi cultivada durante
muito tempo pelos anunciantes, os marqueteiros e a mídia. E tem uma função. Quanto mais
distantes e impessoais são as corporações, mais elas contam com o rosto de outras pessoas
para conectá-las a seus clientes. 
Corporação significa corpo; capital significa cabeça. Mas o capital corporativo não tem
cabeça nem corpo. É difícil para as pessoas ligar-se a uma franquia homogeneizada de
propriedade de um hedge fund , cuja identidade corporativa consiste em um armário de
arquivos na Cidade do Panamá. Então a máquina precisa de uma máscara. Ela tem de usar
o rosto de alguém que vemos com tanta frequência quanto vemos nossos vizinhos de porta.
É inútil perguntar o que Kim Kardashian faz para viver: seu papel é existir em nossas mentes.
Ao interpretar nossa vizinha virtual, ela induz um clique de reconhecimento em benefício de
qualquer monólito cinza que esteja por trás dela nesta semana. 

Uma obsessão pela celebridade não fica silenciosamente junto das outras coisas que
valorizamos; ela ocupa seu lugar. Um estudo publicado na revista Cyberpsychology revela
que uma mudança extraordinária parece ter ocorrido entre 1997 e 2007 nos EUA. Em 1997,
os valores predominantes (conforme julgados por um público adulto) expressos pelos
programas mais populares entre crianças de 9 a 11 anos eram o sentimento de comunidade,
seguido por benevolência. A fama vinha em 15º dos 16 valores testados. Em 2007, quando
programas como Hannah Montana prevaleciam, a fama vinha primeiro, seguida de
realização, imagem, popularidade e sucesso financeiro. O sentimento de comunidade tinha
caído para 11º, benevolência para 12º. 
Um trabalho publicado no International Journal of Cultural Studies (IJCS) revelou que, entre
pessoas pesquisadas no Reino Unido, as que acompanham mais de perto as fofocas sobre
celebridades têm três vezes menos probabilidade do que as pessoas interessadas em outras
formas de notícias a se envolver em organizações locais, e a metade da probabilidade de
serem voluntárias em causas sociais. Os vizinhos virtuais substituem os reais. 

As corporações impessoais buscam um rosto conhecido para seduzir os


clientes

Quanto mais misturado e homogeneizado for o produto, mais diferente será a máscara que
deve usar. É por isso que Iggy Pop foi usado para promover seguros de carros e Benicio del
Toro é usado para vender Heineken. O papel dessas pessoas é sugerir que há algo mais
excitante por trás do logotipo do que prédios de escritórios e planilhas. Eles transferem sua
modernidade às empresas que representam. Assim que recebem o cheque que compra sua
identidade, eles se tornam tão processados e insignificantes quanto o produto que estão
promovendo. 
As celebridades que você vê com maior frequência são os produtos mais lucrativos,
expelidos por meio de uma mídia interessada por uma indústria de marketing cujo poder
ninguém parece conter. É por isso que atores e modelos hoje recebem uma atenção
desproporcional, captando grande parte do espaço antes ocupado por pessoas com ideias
próprias: sua perícia está em canalizar as visões de outras pessoas. 
Del Toro e sua cervejinha: artista vende mais que plebeu

Uma pesquisa de bancos de dados feita pelo antropólogo Grant McCracken revela que nos
EUA os atores recebiam 17% da atenção cultural dada a pessoas famosas entre 1900 e
1910: pouco menos que os físicos, químicos e biólogos juntos. Os diretores de cinema
recebiam 6% e os escritores, 11%. Entre 1900 e 1950, os atores tiveram 24% da cobertura e
os escritores, 9%. Em 2010, os atores recebiam 37% (mais de quatro vezes a atenção dada
aos cientistas), enquanto a porcentagem dada a diretores de cinema e escritores caiu para
3%. 
Você não precisa ler ou assistir a muitas entrevistas para ver que as principais qualidades
hoje procuradas em uma celebridade são banalidade, vazio e beleza física. Elas podem ser
usadas como uma tela em branco para se projetar qualquer coisa. Com poucas exceções, as
que têm menos a dizer dispõem do maior número de plataformas nas quais se expressar. 
Isso ajuda a explicar a ilusão em massa entre os jovens de que têm uma chance razoável de
ser famosos. Uma pesquisa com jovens de 16 anos no Reino Unido revelou que 54% deles
pretendem se tornar celebridades. 

As pessoas com fixação em celebridades vivem em estado de ilusão


permanente

Assim que as celebridades esquecem o papel que lhes foi designado, os cães do inferno são
soltos sobre elas. Lily Allen (cantora pop) foi a queridinha da mídia quando fazia publicidade
de John Lewis (shopping on-line). Gary Lineker (ex-craque da seleção inglesa e hoje
comentarista de tevê) não dava um passo errado quando só vendia comida junk para
crianças. Mas quando eles expressaram simpatia pelos refugiados foram destroçados.
Quando você recebe dinheiro das empresas, deve parar de pensar por si mesmo. 
A celebridade tem um segundo grande papel: como arma de distração em massa. A pesquisa
publicada no IJCS que mencionei acima também revela que as pessoas mais interessadas
em celebridades são as menos envolvidas em política, as com menor probabilidade de
protestar e as menos inclinadas a votar. Isso parece destruir a frequente alegação
autojustificadora da mídia de que as celebridades nos conectam à vida pública. 

Trump aprendeu a abusar dos calouros para só depois assediar os eleitores

pesquisa descobriu que as pessoas com fixação nas celebridades assistem ao noticiário
tanto quanto as outras, em média, mas parecem existir em um estado de diversão
permanente. Se você quiser que as pessoas permaneçam dóceis e descomprometidas,
mostre-lhes os rostos de Taylor Swift, Shia LaBeouf e Cara Delevingne várias vezes por dia. 
Em Trump vemos uma fusão perfeita das duas principais utilidades da cultura das
celebridades: a personificação corporativa e a distração em massa. Sua celebridade tornou-
se uma máscara para seu próprio império empresarial caótico, terceirizado e inescrupuloso.
Sua imagem pública era a inversão perfeita de tudo o que ele e suas empresas representam.
Como apresentador da versão americana de O Aprendiz, esse herdeiro mimado de uma
riqueza imensa tornou-se a face do empreendedorismo e da mobilidade social. Durante as
eleições presidenciais, sua personalidade ruidosa distraiu as pessoas do vazio intelectual por
trás da máscara, um vazio hoje preenchido por representantes mais lúcidos do capital global. 
As celebridades podem habitar sua vida, mas elas não são suas amigas. Independentemente
das intenções daqueles a que ela é conferida, a celebridade é o braço direito da exploração.
Vamos transformar nossos vizinhos novamente em nossos vizinhos, e virar nossas costas
àqueles que fingem sê-lo. •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

AS CÓPIAS SE ASSANHAM COM O ORIGINAL


Por Nirlando Beirão

As opiniões mudaram mas o cabelo continua o mesmo

Um repórter meio insolente de nome Nirlando Beirão cutucou, no início de 2005, o publicitário
e então candidato ao estrelato Roberto Justus a respeito de seu interesse (ou desinteresse)
pela política. Eis o diálogo travado, publicado na falecida Playboy: 

Nirlando Beirão: O senhor tem algum interesse pela política? 


Roberto Justus: Não. Tive até um convite, uns anos atrás, para me candidatar a um cargo
majoritário. Pelo fato de ser conhecido etc. e tal. 

NB: Que partido? 


RJ: Não posso revelar. O partido é bacana, o projeto não era ruim, mas... 

NB: Majoritário? A quê, prefeito? 


RJ: É... tipo assim. Me disseram que as pessoas estavam cansadas dos políticos
convencionais, queriam uma cara nova, de boa aparência. (John) Kennedy e (Bill) Clinton
(ex-presidentes dos Estados Unidos) se elegeram muito pela aparência. Me diziam: tem tudo
a ver com você. 

NB: Na condição de Clinton, o senhor não ia dar aquela bobeira do caso Monica Lewinski,
ia? 
RJ: Olha, o Clinton fez um governo extraordinário. Quem sou eu para acusá-lo por um deslize
pequeno. As pessoas têm deslizes, quem não tem? (...) Mas, como eu disse, o
tal approach político existiu e eu nem quis pensar. Tudo que faço, faço com dedicação.
Abandonar minha vida de empresário para me dedicar a uma vida de político? Eu sou pouco
político. Falo o que penso. Sou muito sincero, não consigo fazer aquela coisa de agradar a
todos, o acerto, o conchavo... Ser político, na essência, é saber negociar. Eu sei negociar ...
em negócios. Não me sentiria bem num universo em que teria de estar o tempo todo fazendo
acordo. Admiro quem é político por paixão, gente decente, que não usa a máquina do poder
para ficar rico, que entrega uma vida inteira à causa pública. São raros, mas existem. 
Poucos meses antes da entrevista, Roberto Justus havia estreado, na TV Record, a versão
cabocla de The Apprentice, seriado da tevê americana NBC, que havia recrutado a insolência
caricata de um magnata imobiliário com enorme vocação para a autopromoção. Bem, se
Donald Trump é, uma década e pouco depois, presidente dos Estados Unidos, por que é que
Roberto Justus não poderia, reformulando seus juízos sobre a política, se espelhar no
exemplo dele? 

É o que Roberto Justus já anunciou que fará. Começando, modestamente, pela Presidência
da República. Catapultado por O Aprendiz e por uma carreira no show biz e até então
limitado às namoradas loiras (Galisteu, Eliane), que têm nos auditórios e nas passarelas seus
meios de vida, o publicitário pop virou, ele também, uma celebridade e é com essa credencial
que ele pretende ser o homem capaz de definir o destino não de uns tantos coitados
desempregados, mas de 200 milhões de brasileiros à beira disso. Sem falar daquele
predicado que fez questão de mencionar à Playboy: a aparência, é claro. 
Quem veio a substituí-lo no brasileirinho O Aprendiz – quando ele se cansou de demitir tanta
gente – foi um certo João Doria Jr., outro incansável alpinista social. Se Doria é hoje prefeito
da maior cidade do Hemisfério Sul, a bordo de seu cashmere, seu mocassim sem meia e
seus risíveis factoides, é natural que Justus se sinta habilitado a voos mais altos ainda.
Afinal, já trocou meia dúzia de palavras com o inspirador Trump e, aqui entre nós, o inglês de
Justus é muito melhor do que o de Doria. Na atual conjuntura de rendição ao Império, pode
ajudar.

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 CRÉDITO DA PÁGINA: Carlos Barria/Reuters/Zuma Press/Fotoarena


Comida de cabana
Por Marcio Alemão

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– No fim do ano viajei. Não fui longe. Uma pequena cidade na Serra da Mantiqueira de nome
Santo Antônio do Pinhal. Graciosa e com temperatura pra lá de civilizada. Uma pousada
igualmente pra lá de recomendável que se chama Pousada do Cedro. 
– Já estive lá. Me encantou o silêncio e a quantidade de passarinhos. E a comida na pousada
é boa. 
– Boa, mas não tão barata. 
– A cidade é bem servida de restaurantes, se bem lembro. 
– Coisas boas e outras nem tanto, como em qualquer lugar do planeta. Mas o mais
impressionante foi notar que está muito difícil encontrar uma batata frita boa. 
– Somos dois na empreitada. O que tem acontecido? 
– Eu sei lá. Mas, obviamente, parece que estamos com problema na matéria-prima. 
– Dificilmente, o dono de um desses restaurantes estaria disposto a investir mais em uma
batata, considerando que é acompanhamento pra encher a barriga. 
– Já disse isso por aqui: a melhor que comi nos últimos tempos foi a do Burger King no
Aeroporto Santos-Dumont. 
– Falando em matéria-prima, em que o leitor pode facilmente reconhecer a diferença entre a
boa e a ruim, é em frangos assados de padaria ou rosticceria. 
– E eu continuo cismado com o frango Korin, que tem produzido coxas e sobrecoxas com a
mesma textura e cor do peito. 
– Se fosse o contrário seria uma maravilha. 
– Também vale uma investigação. E agora eu te conto sobre uma casinha na árvore que vi
por lá, na pousada. 
– Tipo cabana? 
– A de lá era muito mais sofisticada, mas tinha o conceito da cabana fora da casa. 
– Fiz muitas ao longo da infância. 
– Então, com certeza você vai se lembrar da primeira coisa que fazíamos quando a cabana
estava pronta. 
– Uma comida. 
– Uma refeição que fosse. Podia ser algumas frutas ou sanduíches, mas tinha de haver essa
comilança para a cabana ficar completa. Aliás, me lembro bem de uma, feita com bambu,
uma daquelas que despertam na gente a ilusão de que ser engenheiro seria uma boa ideia.
Pois nessa tal conseguimos fazer um fogão de tijolos, um braseiro, e fizemos bifes. 
– Emblemático isso, para usar um adjetivo dos novos tempos. 
– Só vira casa se tem comida, se todos podem fazer uma refeição juntos. 
– Isso também poderia ser estudado em profundidade. 
– Não creio que alguém fosse se interessar em provar que sem comida ninguém ou nada se
estabelece. 
– Ainda hoje, acho eu, quando crianças vão brincar de casinha, acredito que não passe pela
cabeça delas lavar e passar roupa ou fazer uma boa faxina. 
– Mas com certeza vão preparar uma comidinha. Ah! Lembrei de outra coisa da cabana de
bambu: o cheiro de bife jamais saiu de lá. • 

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Istockphoto


O raio cai mais de uma vez no
mesmo lugar
METEOROLOGIA Satélite de missão conduzida por cientista da USP mapeia os
terrenos da Terra onde o mau humor da atmosfera impõe mais perigo

Lago Maracaibo, Venezuela: primazia no mapa das tormentas

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A generalizada impressão de que o céu está – como temia aquele chefe gaulês do Asterix –
caindo sobre nossas cabeças vale além de uma metáfora da atual conjuntura. Uma
minuciosa investigação por satélite, que coletou dados de 1997 até 2015, e que tem à sua
frente uma meteorologista da Universidade de São Paulo, Rachel Albrecht, mapeou o mau
humor da atmosfera e indiciou os pontos onde provavelmente um raio é capaz de cair mais
de uma vez – muitas vezes – no mesmo lugar. A pesquisa, denominada Tropical Rainfall
Measuring Mission, acaba de ser divulgada pela revista Science. Cabe à infelicitada
Venezuela o campeonato mundial dos raios e trovões. Mais exatamente ao Lago Maracaibo,
o maior da América do Sul, com seus 13.120 quilômetros quadrados (dez vezes a Represa
de Itaipu). Ali, um específico quilômetro quadrado é golpeado, num ano, por 233 descargas
elétricas – ou seja, duas vezes em cada três dias do ano. No boletim da American
Meteorology Society que compulsou os dados da investigação, o único concorrente a
ameaçar a perigosa primazia venezuelana é a região de Kabare, na República Democrática
do Congo, ex-Zaire, perto da fronteira com a Tanzânia e a poucos quilômetros do Lago
Tanganica. Ali, os raios desabam 205 vezes por ano.

A doutora Albrecht explicou à Science que o satélite focou a área compreendida entre o


paralelo 38 Norte (a latitude de Atenas, Grécia) e 38 Sul (que passa na província de Buenos
Aires). Cruzava o mundo de três a seis vezes por dia e capturava, com seu olho bisbilhoteiro,
uma extensão de até 600 quilômetros. Os cientistas tinham previamente retalhado o mapa
em áreas de interesse e em cada uma dessas o satélite podia deter-se por 90 segundos, a
cada passagem sua. A conclusão é de que a meteorologia raramente dispôs, como nesta
missão, de acervo tão rico em informações. A investigação confirmou – e aprofundou – ideias
com as quais os cientistas já flertavam a respeito do inclemente regime das turbulências
atmosféricas. Muitos dos lugares mais afetados pelos raios estão associados a terrenos
íngremes, que ajudam a promover o choque entre ar quente e ar frio responsável pelas
piores tempestades.

Brasília foi incluida na pesquisa. Mas lá as turbulências são de outra


natureza.

A meteorologista da USP observa que isso é particularmente verdadeiro no caso do Lago


Maracaibo, que é emoldurado por picos elevados. “O choque entre os ventos frios que
escorrem das montanhas à noite e o calor tropical das águas do lago provoca tempestades
297 noites por ano”, informa a doutora Albrecht. Não por acaso, os antigos navegadores que
por lá se aventuravam à noite nunca tiveram muitos problemas, com luminosidade, em se
localizar. Em geral, raios ocorrem mais frequentemente na terra do que no mar, no verão
mais do que no inverno e entre o meio-dia e o fim da tarde, quando o aumento da
temperatura ajuda a condensar as nuvens das tormentas. O Lago Maracaibo, observou a
pesquisa, quebra as três regras: os raios desabam sobre as águas, entre meia-noite e 5 da
manhã e as estações mais agudas são o fim da primavera e o outono. A investigação por
satélite incluiu todo o território brasileiro. Mas, apesar das aparências, não estamos fazendo
bonito no quesito raios e trovões. Nem mesmo Brasília foi bem contemplada no mapa. No
Brasil, os piores temporais são de outra natureza. •

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Verão 2017

Nem sempre contratar muito é contratar bem. E cuidado com o inchaço


das comissões técnicas

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A segunda semana do ano começou movimentada no futebol, mais do que o comum em


início de temporada. Compreende-se. As mudanças no calendário, aumentando os
campeonatos, entrando uns dentro dos outros – à procura, mais do que de se adaptar, de
imitar o calendário europeu. Além do mais, acontecem as mobilizações dos que pretendem
mudanças nas esferas de poder do nosso esporte. 
Alguns estranham o elevado número das contratações de jogadores, às vezes em posições
superpostas, mas a nova realidade exige elenco numeroso mesmo – e, mais que isso, sem
planejamento não se chega a lugar nenhum. Nesse ponto a confusão é grande, houve um
retardamento no fecho do ano passado e agora quem sabe quando se inicia o calendário
atual? Cada clube se reapresenta numa data e muitos atropelam a chamada pré-temporada,
disputando ao mesmo tempo torneios caça-níqueis no exterior. Calendário? 
Deveria ser instituída uma Copa Brasil-Colômbia para colar de vez a solidariedade latino-
americana tão fortemente apresentada pelos colombianos na tragédia da Chapecoense e tão
necessária aos países do nosso continente. 
Ainda no capítulo das contratações, Palmeiras e Flamengo, os mais festejados, me parecem
enganados em suas perspectivas para o novo ano. A ampliação do número de jogadores e
da comissão técnica tem demonstrado contradições que mais à frente podem custar caro às
suas ambições. 
No plano internacional, a Fifa anuncia a Copa do Mundo de 2024 com 48 seleções. Como
andará o mundo àquela altura com a entrada dos chineses a todo gás, os japoneses
estabilizados, os árabes etc.? 

Que rumo vão seguir os norte-americanos? Certo que não vão ficar alheios a todo esse
“mercado” – palavrinha desmoralizada essa. No curto prazo, aguarda-se o que vai fazer o
“novo” governo, saudado ansiosamente pela cartolagem atrapalhada desde a crise da Fifa,
que já leva dois anos. 
Entre nós, continuam a perda de tempo e o desperdício, dois pecados capitais que nos dão e
vão dar muita dor de cabeça. Reportagem sobre o Maracanã mostra deterioração avançada,
enquanto não termina o cabo de guerra mediado pelo “dono” molenga em sua
irresponsabilidade. A população e o futebol? Paguem o prejuízo! 
O prefeito do Rio de Janeiro revela intenção de municipalizar o Maracanã e o Teatro
Municipal, cuja vocação o próprio nome revela. Pode ser uma medida interessante. 
O Botafogo prepara o retorno de parte de suas dependências para os ingressos populares, o
que deverá ser uma tendência daqui para a frente, com o fracasso da elitização do futebol
bancada pela mesma decadente Fifa. 
Enquanto o barco afunda, tem gente que acha que o recesso dos políticos em férias é um
alívio ou trégua. Ledo engano, o buraco só aumenta. O mesmo ocorre na sociedade em
geral. Mais que movimentado, o ano começa agitado com a ocorrência dos massacres de
dimensão e formas terríveis, tudo isso em meio ao calorão abrasador do verão que demorou,
mas veio com tudo. 

Correndo do sufoco, acompanho a evolução do movimento editorial dos esportes, que se


anuncia em franca evolução, me encorajando a escrever alguma coisa sobre minha própria
vivência no mundo da bola. Enquanto isso, vou lendo o que posso de tantos assuntos
interessantes da vida dos profissionais e do desenvolvimento das estratégias do jogo em
suas idas e vindas, ondas através do tempo. 
Fico sabendo ainda do lançamento do livro que narra a trajetória da grande campeã olímpica
Rafaela Silva nos quatro anos impressionantes que ela atravessou depois da derrota na
Olimpíada anterior (Londres 2012). 
Como sempre instigantes as inteligências do Sócrates, do Casagrande e do Tostão, cujo livro
eu abraço no momento, admirado com a semelhança do início de nossas carreiras. Mas isso
é assunto para um comentário inteiro. 
Vovô e meio cansado de tanto aparelho de pressão, como todo bom brasileiro de vez em
quando eu ainda penso em me candidatar a algum clube de qualquer divisão de algum
cartola sonhador. 
Bem, o ano terminou e começa no futebol mais desenvolvido com a glorificação de Cristiano
Ronaldo. Merecidamente ficou com as bolas, chuteiras de ouro e quantos prêmios existam,
até o campeonato de seleções que não esperava caiu em seu colo. O gajo, seu time e sua
seleção reinaram absolutos. •

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: Ilustração: Baptistão
Abertura
O Red Carpet do Globo de Ouro mostra que Hollywood vai esfregar seu umbigo em
Trump

Tendência-desafio: as estrelas respondem à era do megamachista

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A entrega do Globo de Ouro é a cada ano anunciada como uma prévia razoavelmente
acurada do que vai acontecer daqui a poucas semanas no Oscar – e a cada ano vai se
convertendo, graças ao seu tapete vermelho, no showroom dos estilistas, das grifes e dos
bijoutiers do primeiro e, por que não?, também do segundo time. As estrelas, uma após
outra, têm meio minuto para falar de seu trabalho e bem mais do que isso para um minucioso
comercial de seu Armani, seu Valentino, seu Versace, seu Vuitton, seu Prada. Em 2017, se a
moda Golden Globes ditou algum estilo, parece ter sido o de ousar em decotes abissais que
se confraternizam com o umbigo, abrindo a perspectiva para um atrevimento que combina
com a temperatura de Los Angeles – em tremendo contraponto às nevascas que atingem o
resto dos Estados Unidos – e desafia o clima de misoginia e do machismo que desponta no
horizonte da América trumpista.

Nossa ideia de elegância

Não houve nem haverá primeira-dama como Michelle

Firmeza. Beleza. Atitude. Coragem. Inteligência. Humor. Sinceridade. Companheirismo. Bom


gosto. Talvez ainda falte algum predicado na ampla gama de atributos que fazem de Michelle
Obama um paradigma incomum de elegância. Uma semana atrás ela ofereceu na Casa
Branca uma festa que varou a noite, como se quisesse deixar registrado na memória
silenciosa dos candelabros e dos espelhos a certeza de que nunca houve e jamais haverá
uma primeira-dama como ela. No caldeirão tórrido da campanha eleitoral, houve muita gente
se perguntando se não valia mais a pena ter como candidata a mulher do atual presidente –
e não a daquele outro. A derrota de Hillary Clinton não foi a derrota de Barack Obama, muito
menos de Michelle. Foi a derrota da verdade e do bom senso, que os Obama souberam tão
bem representar por oito anos. Michelle – está certo – não sofreu o desgaste do marido,
obrigado a negociar com os capiaus do Congresso e com os brucutus do Pentágono. Se
tivesse sentado, ela, com certeza o resultado da administração Obama teria sido muito
melhor.

Violência
O grafite de Bueno, antes de ser vandalizado em Higienópolis

Esta imagem que vocês veem sobreviveu por alguns dias num muro do califado tucano de
Higienópolis, São Paulo. Um judeu lendo o Alcorão, um muçulmano lendo a Torá. E, para
deixar ainda bem mais claro o que pretendia dizer, o grafiteiro Bueno tuitou (@buenos caos):
“Tenho convicção de que a humanidade tem de fazer mais esforços a fim de entender o
outro”. Não adianta mais procurar por essa bela peça de tolerância. A intolerância triunfou
rapidamente e o grafite foi vandalizado. A empavonada elite de São Paulo não é muito
diferente dos violentos presidiários do Norte.

Titanic, versão nº 2017


Construtores esconderam o incêndio, antes da fatal partida

Nenhum enigma intriga tanto os ingleses – com a possível exceção da verdadeira identidade
de Jack, o Estripador – do que o naufrágio do “invulnerável”. O Titanic deixou Southampton
no dia 12 de abril de 1912 e sucumbiu três dias depois ao choque com um iceberg gigante a
caminho da América. O número de vítimas passou de 1,5 mil. Teorias da conspiração não
faltam. Agora, quem apresenta a sua é um jornalista irlandês que há 30 anos tem no Titanic
sua ideia fixa. Num documentário exibido pela BBC, Senan Molony admite que houve o
choque com o bloco de gelo, mas a fortaleza dos mares estava fragilizada por um incêndio
que se propagou pela sua casa das máquinas e atingiu a fuselagem do casco no estaleiro de
Belfast, antes da viagem inaugural – e fatal. Molony apurou que chegou a haver uma
investigação judicial, porém o juiz tratou de isentar os construtores.

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 CRÉDITOS DA PÁGINA: John Sciulli/Getty Images For Instyle/AFP, Valerie Macon/AFP e Cheriss Maio/Nurphoto/Zuma
Press/Fotoarena

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