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Literatura e história: diálogos e contaminações

Pós 2018
Júlio Pimentel Pinto
Aula 2

A leitura: da obra aberta aos protocolos de leitura

Umberto Eco. “A poética da obra aberta”, in Obra aberta. Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas.
São Paulo: Perspectiva, 1968, p. 37-66
Umberto Eco. “Protocolos ficcionais”, in Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras,
1994, p. 123-147
Robert Scholes. “Leitura: uma atividade intertextual”, in Protocolos de leitura. Lisboa: Edições 70, 1991, p. 17-64
Antoine Compagnon. “L’écriture brouillée”, in La seconde main ou le travail de la citation. Paris: Seuil, 1979, p. 357-
402.

Do texto e da leitura: introdução


— Eco e Scholes: autores/trabalhos fundadores de uma discussão que repensa a
mesclagem entre leitura e escritura e a possibilidade de estabelecer ou ensinar critérios
de leitura

— duas outras presenças, espectrais, nesse debate: Roland Barthes e Jacques Derrida
— Barthes e Derrida: exploração de um sentido lato de leitura, afirmação do
caráter interpretativo, e não analítico (logo, compreensivo, e não explicativo);
afirmação do valor do texto, e não da autoria
— Barthes: busca de estratégias semiológicas de compreensão do texto;
identificação de referenciais sígnicos como princípio desconstruidor do texto
— Derrida: fundação textual/discursiva da realidade; troca da referência realista
por uma referência textual na preocupação representativa; sentido da gramatologia
como estudo do mundo

— imbricação profunda, em qualquer dos quatro autores, entre textualidade e leitura: o


que não significa que qualquer deles perca de vista a diferenciação entre os dois atos,
conformados em momentos diferentes, submetidos a distintos regramentos e a
limitações

— papel essencial dado à leitura pelos quatro autores: associação entre cultura e
“supertexto” (Scholes, p. 46), atuação da cultura como texto (Scholes, p. 54-55), “o
texto da nossa vida” (Barthes), “tudo é textualidade” (Derrida): as leituras dissolvem
limites da ficção com a realidade (Eco, SP, p. 124-125)

— pontos de partida:
1. muitas obras assumem o caráter aberto, especialmente na modernidade (Eco,
OA);
2. todo tipo de textualidade pode ser considerado obra (Scholes);
3. ficcionalidade e representação da realidade contaminam-se (Eco, SP);
4. textualidade e vida mesclam-se (Derrida, citado por Scholes);
5. o “texto lido e texto da nossa vida” interpenetram-se (Barthes, citado por
Scholes);
6. o “texto da nossa vida” é “repertório” (Scholes)
[vide Borges e o “acesso à vida primeiro pelos livros];
7. o texto aberto abre “campos de possibilidade” de leitura (Eco, OA);
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— questões gerais:
1. como se compreende a existência e qual é o papel dos regramentos da leitura?
2. há limites para o leitor que se defronta com um texto qualquer ou a
interpretação é ilimitada?
[vide coletâneas de La bustina di Minerva, de Eco; por exemplo: Diário mínimo,
Segundo diário mínimo, Come viaggiare con un salmone, Pape Satan Allepe]
3. como se qualificam e se avaliam esses limites e como se verifica a pertinência/
adequação da interpretação proposta?
[vide início de Roth, Os fatos]
4. é possível ensinar a ler, como indaga Scholes?
5. a leitura contém em si algum tipo de organicidade ou assume sempre caráter
fragmentário?
6. em que termos se pode falar de história da leitura?
7. se tolerarmos todo tipo de interpretação, ainda assim é possível falar numa
“história da leitura” ou essa se transformaria num universo caótico e seria
impossível atribuir qualquer significado aos seus movimentos?
8. a “história da leitura” acaba por ser, na verdade, uma história dos protocolos?
9. como as leituras apropriam-se de nós e como nos apropriamos das leituras?

Da obra aberta
— comparação com a música: reposicionamento do autor e do intérprete, que assumem
novos papéis
— autor/obra tradicional: produção de uma forma definida e acabada, mensagem
pronta, previamente organizada e fixa em sua organização, que é oferecida ao
ouvinte/leitor, que absorve ou traduz convencionalmente
[contraponto: arte medieval, especialmente estatuária religiosa, voltada a
“leitores” em geral homogêneos/limitados numericamente e a leituras
convencionadas]
— nova obra (aberta): possibilidade de várias organizações, estabelecidas
conforme a iniciativa do intérprete, que prossegue a obra na hora da fruição (Eco,
OA, p. 39)

— como é a fruição de uma obra fechada? (lugar de encontro entre dois níveis da
elaboração da obra: autor/intérprete)
— tentativa de determinação, pelo autor, da forma de fruição: ele define a
compreensão do fruidor a partir do estímulo à sensibilidade e à racionalidade,
que correspondem à “intenção” presente no momento de elaboração (pelo autor)
[cabível numa circulação restrita das obras e/ou num universo de recepção
tendencialmente homogêneo]
— reação do fruidor-intérprete, determinada por uma situação concreta em que
está posicionado (em tese, previsível antecipadamente) e que contribui para seu
entendimento particular, mas regrado, dessa obra fechada (Eco, OA, p. 40)
— a partir dessa relação (de seu sucesso, de suas limitações, de descontrole do
processo), define-se a abertura relativa de uma obra fechada: variedade de
interpretações, permitindo execuções diferentes da obra e perspectivas distintas
de leitura (Eco, OA, p. 40, fim)

— marcas/características de uma obra aberta:


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— inacabamento: obra colocada numa situação lúdica entre autor e leitor; peças
são lançadas ao leitor, que as combina, relaciona, arma; não há necessidade de
organizar a leitura num sentido específico (Eco, OA, p. 41)
— inevitabilidade, atualmente, de que a obra seja aberta: não é mais
casualidade, mas programa produtivo, proposta a ser desenvolvida
interativamente com o leitor/fruidor (Eco, OA, p. 42)
— importância do uso do símbolo como estratégia de comunicação: ele assegura o
caráter sugestivo da obra, estabelece diálogo com um eu leitor/intérprete, que
filtra emocional, imaginativa ou racionalmente (provocando
reflexão/consciência); produz compreensões novas a partir de um conjunto
indefinido de sinais (Eco, OA, p. 46 e 49); cria instabilidade na compreensão
— infinitude, inesgotabilidade, dada a pluralidade interpretativa que oferece,
fruto de sua ambiguidade intencional e fertilizadora (Eco, OA, p. 47)
— variabilidade no uso: equivalente/derivação da inesgotabilidade interpretativa;
estrutura de uso múltiplo, de aplicação múltipla (inclusive por seu próprio autor)
(Eco, OA, p. 47)
[sentido de contexto cognitivo: conforme a situação em que a obra é colocada, a
compreensão pode variar bastante; exemplo: trio de exposições sobre o barroco
(FIESP, Antiquarius, Expo500)]
— mobilidade (característica ocasional): instabilidade na forma ou
imprevisibilidade estrutural (exemplo: Calder): fruidor elabora efetivamente a
forma que a obra pode adotar, não há sequer uma ordem necessária a ser seguida
(Eco, OA, p. 51-2) (exemplo: Rayuela, de Cortázar)

[exemplo: polêmica sobre performance no MAM, com nudez e criança]

— tempo da obra aberta:


— reflexo de um tempo em que o caos substitui o cosmo ordenado (declínio da
determinação/influência religiosa) como percepção do mundo e em que se perdeu
a noção de um logos criador como razão e origem de tudo (Eco, OA, p. 44)
[podemos equiparar a redução da crença num logos criador com o declínio da
figura do autor?; vide Foucault]
— prevalecimento da subjetividade: a perspectiva ou o ângulo de visão torna-se
mais importante do que a suposta essência do objeto (ver, no lugar de ser),
advento de uma era visual (Eco, OA, p. 55)
— abandono de uma concepção integralizada ou totalizadora do mundo, trocada
pela percepção da parte como elemento fundador: espécie de estética do
fragmento, que, na modernidade, não é exclusiva, mas é particularmente intensa
[vide Serge Gruzinski, A colonização do imaginário ou A guerra das imagens]
— radicalização de uma visão policêntrica do mundo e da realidade, não mais
figurada como fixamente ordenada ou determinada logicamente: papel da ciência
do XX (microbiologia, física quântica) na caracterização de um conjunto de
fenômenos relativos como expressivos (de forma sígnica) da natureza
— vitória de conceitos físico-químicos (exemplo: relatividade) que atestam a
indeterminação, o equilíbrio instável ou a reeleição contínua de afinidades
(Goethe já aplicara a físico-química à ficção: afinidades eletivas)
— percepção aguda do tempo e do espaço: consciência histórica impregna nossa
visão de mundo, facilitando o reconhecimento da variabilidade das construções
espaço-temporais (Eco, OA, p. 61): espaço como acumulação incerta ou desigual
de temporalidades; passado como constructo humano, perspectivista e relativista
[modernidade, diz Paz (Los hijos del limo), como experiência radical da
consciência histórica]
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— convivência conflagrada entre duas epistemes: uma racionalista, vitoriosa no


XV e desde então gradativamente tornada hegemônica, e uma irracionalista,
afirmada a contrapelo no XIX e arduamente combatida: a variação ou a dúvida
associada a todo conhecimento permite uma instabilidade do pensamento que
impede a persistência de obras fechadas

Dos protocolos de leitura


— leitura da obra aberta (resumida nos tópicos das p. 63-64, Eco, OA) e leitura como
tarefa construtiva (Scholes, p. 64)

— campo de possibilidades (Eco, OA, p. 56), significando interação e reacomodação de


forças, novidade de toda percepção, dinamismo da leitura
[o grande tema das vanguardas do início do XX reaparece, agora como estratégia
compositora da obra ou da forma de fruição/percepção]

— externalidade do leitor frente ao texto: o leitor circula o texto, procurando portas


de entrada; não entra jamais, a não ser quando a leitura é traduzida em outra
textualidade (de leitor, faz-se o escritor ou o tradutor), mas, mesmo assim, penetra no
círculo de outro texto, talvez concêntrico ao primeiro, mas nunca o mesmo (Scholes, p.
21)
— o dinamismo do texto implica o abandono de qualquer preocupação ou busca
ontológica: a avaliação de uma percepção é constituída na relação com as outras
percepções (todas geradoras de interpretações): o centro das atenções passa a ser
a forma de apresentação do fenômeno, somada à sua capacidade de impregnar o
olhar, e não sua suposta essência (Eco, OA, p. 59)
[ou seja, é possível “julgar”, qualificar ou desqualificar interpretações, o que
permite atestar o limite delas]
— falar em externalidade não significa que não haja influência do texto no leitor
(não há conforto, Scholes, p. 43) ou que aquele não exerça, sobre este, alguma
forma de poder: daí as discussões sobre motivações ou sentidos ideológicos
(Scholes, p. 43 e ss.), sobre provocação de reflexão ou de consciência (Eco, OA,
p. 49, sobre Brecht)
— intervenção ilimitada do leitor na obra, mas orientada (Eco, OA, p. 62): daí as
possibilidades de interpretação serem infinitas, mas situadas dentro de um
conjunto regrado e limitado de chaves interpretativas (volta-se à ideia de campo:
de possibilidades, de interpretações): é isso que torna possível falar em obra,
produção de caráter pessoal e orgânica, a despeito de sua abertura (Eco, OA, p.
62-63); é isso que reforça o caráter comunicativo da obra, sua capacidade de
articular autor e leitor
[se não ocorresse essa limitação do campo, a noção de autor perderia
(definitivamente) sentido]
— experiências de leitura são sempre subjetivas: não entramos no texto, mas ele
penetra em nós e sonda nossos mundos internos: memória e repertório de cada
leitor atuam e dialogam com o texto lido (Scholes, p. 22, alto)

— não custa lembrar que nem memória, nem repertório são necessária ou
exclusivamente individualizados, o que assegura um limite para a individualização de
cada leitura e de cada leitor, e uma possibilidade de configurar, relativamente à
experiência histórica vivida, leitores e leituras protocolares
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— compreensão da leitura: incorporação do texto lido ao nosso repertório


textual e (re)estabelecimento de ligações internas nesse repertório (Scholes, p.
25)
[pode-se pensar nesse movimento como reeleição de afinidades literárias, o
que implica, mais uma vez, retomar a discussão sobre os sentidos do clássico]
— ligação com repertório também ocorre mais especificamente: leituras que
leem outras leituras; não se trata de uma recombinação geral, mas de um diálogo
pontual entre dois textos (Scholes, p. 42)
— para além da associação do texto lido ao repertório, há também a relação que
ele estabelece com textos que deixaram vestígios na memória: foram
esquecidos, mas mantêm-se aptos a serem combinados com os novos textos
(Scholes, p. 37)
[papel fundador do esquecimento na determinação da subjetividade da leitura]
— temporalidades do texto vs. temporalidade da leitura: dois tempos em
diálogo, sugerindo outro possível mecanismo regulador da leitura (Scholes, p. 23)
— caráter definitivo e provisório de cada leitura: é a maneira como o leitor vê a
obra e frequentemente revisa sua opinião, bastando, para tanto, uma outra
leitura (Eco, OA, p. 64, fim)
[vide noção de clássico em Calvino ou de vertigem das listas em Eco]

— ensino e aprendizado das leituras (Scholes, p. 18): indagações dentro do campo


de possibilidades aberto por um texto e circulado pelo repertório crítico que se
construiu em torno dele
— crítica como proporcionadora do ensino de leituras
— variação dos protocolos (conforme experiências vividas/memória/repertório):
perspectiva de uma história das leituras que seja, ao mesmo tempo, mudança de
regramentos de uma temporalidade para outra e variação de possibilidades de
leitura numa mesma temporalidade

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