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O Trem – Letícia Simões

Terça-feira, 31 de março

Despertei com essa pergunta: o que faremos com a casa agora que ela não é, mais,
casa?

Casa enquanto tapete da alma: aquele lugar onde se decai depois de um dia. Na casa
não há trabalho, nem discussões de relacionamento, nem ligações de chefes, sequer
academias, sequer colegas insossos, sequer preocupações. Casa é não ter medo: por
isso volto a ela todos os dias.

Eu morei em muitas casas; ou talvez, melhor dizendo, muitas casas estiveram em


mim ao longo desses anos. Casas de Inglaterra, casas de Rio de Janeiro, casas de
casamento, casas de passagem. Casas que existem somente para perceber que ir é
necessário para voltar.

Estou à espera de um trem.

Ele ainda não chegou. Sequer se pressente o apito.

De alguma forma, o exercício de queimar os dedos criando casas tornou-se uma


espécie de sobrevivência. Não é melhor nem pior: é uma estratégia. Minha casa
agora – enquanto o trem não chega – consiste de: um sitio perto da estação. Quinze,
cinqüenta, quinhentos metros: é uma distancia a se caminhar. A casa dos homens
está a dez metros da minha; lá há algazarra e pratos sujos. A minha casa é um quarto
de roupas organizadas, pois só consigo escrever quando há ordem no mundo
exterior. Cama feita, chão limpo e banheiro lavado. Algumas vezes eles adormecem
aqui: minha televisão carrega duas manchas à esquerda da tela, e faz com que os
atores pareçam (são) seres iluminados. Rimos (disso e de outras coisas).

Tenho constante saudade de casa mas não posso tê-la pois não sei quando a verei
novamente. Tenho saudade dos meus, que são, obviamente e tanto, a minha casa.

Para subir no trem, é preciso estar aqui por um tempo. Não se pode sair de casa e
comprar uma passagem diretamente à estação. É um momento de trânsito, de
preparação (assim dizem).

Se nos outros dias não havia ninguém ao mar, hoje o sol exerceu a sua dança do
livre-arbítrio: sangrou laranja por toda a manhã e tarde, com a água azulíssima e a
areia fina. Sequer as borboletas saíram diante tamanho desbunde. Deixaram o sol
brincar sozinho.

Sexta-feira. 03 de abril

Amo um poeta português chamado Manuel António Pina. Ele dedicou sua vida a esse
mistério chamado casa: com quantas pilastras se ergue, por onde o vento entra e

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qual língua é a língua da casa. Uma astróloga me disse certa vez que esta minha
obsessão pela casa vem da imensa concentração de casas 4 em lugares altamente
improváveis do meu céu, como Saturno, Urano e Netuno. Como se a casa estivesse
fincada em terrenos onde não se pudesse estar. Mais ou menos como a definição de
poesia: colocar algo que não cabe onde não se suporta. A frase é outra, mas…

Passei a encará-la como uma posição de glória: descobrir o tempo da invenção da


própria casa. Parece-me uma missão bonita na vida.

Hoje tampouco chegou o trem. Dizem no fim da semana.

Lembrei-me de quando o chefe de uma aldeia Huni Kuin, na fronteira do Acre com o
Peru, me ensinou a fazer chover.

Será que quando partilhamos segredos entre os nossos criamos uma casa? Uma casa
feita com as chuvas e as águas de cada um, não sendo necessariamente a mesma,
mas partilhando de um desejo?

Uma tentativa de poema (poemas sobre a espera):

partimos esperançosos rasgando horizontes e


veja só, estivemos a duas horas do futuro
onde sangue e amor se encontram
possibilidades nuanças entregas arrependidas
hora atrás de hora
vêm as faíscas de sonho
não estamos dormindo continuamos no mesmo lugar
onde o coração intranqüilo
se desdobra em navios e solidão
agora estamos pelo mínimo pavio
olhos ávidos
a noite despenca, quebrando três estrelas
suavizando a tragédia
tudo que se esconde sob o seu sorriso
(sob a imensidão do mar
do seu sorriso)
fatalmente aparecerá

Segunda-feira, 06 de abril

Estou bêbada novamente. Meus dias, essa semana, se dividiram entre sonhar com os
mundos que tive - quando morei na Inglaterra, quando morei em Fortaleza, quando
morei na Alemanha – e os que agora poderei ter, quando o trem chegar.

Aliás. acho que os momentos mais leves da minha semana foram quando estive
dormindo e estava em liberdade.

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A memória de uma fuga.

Tenho dois óculos: um fora escolhido por Hilton e o outro, por Pablo. O primeiro é
pequeno, de aro levemente dourado, circular. Sério. “Finalmente vemos seu rosto e
temos uma leve pista da sua verdadeira idade”, um diz.

O outro é enorme, azul, de lentes quadradas e cobre meu rosto das sobrancelhas ao
nariz. Pablo diz que o azul casa bem com minha pele, além das lentes me darem um
ar mais divertido. “A todo o tempo, você diz coisas sérias, trabalha de forma séria e
pensa na seriedade do mundo. Esses óculos escondem aquilo que realmente está
dentro de você”, o segundo aponta.

E, assim, oscilo entre as duas armações. Com qual delas subirem ao trem?

Que diário triste, meu deus. A verdade é que hoje está sendo um dia triste. O vizinho
de uma amiga morreu. O irmão de uma conhecida morreu. A atriz companheira de
peça do meu amigo morreu. Meu amigo perdeu dois amigos na semana passada. A
mãe do amigo do meu amigo morreu mas não podem contar a ninguém porque se
disser que morreu as pessoas entram em pânico e querem se afastar até de quem
sequer convivia com a pessoa mas está de alguma forma ligado a ela. Já vimos essa
história. A conhecemos.

Nós temos três passagens para o trem. Será que no próximo mundo ao qual o trem
nos levará as pessoas são menos apavoradas?

Há dias que são muitos dias e há outros em que falta dia; contudo, a lua imensa
sobre nós, lembrando da nossa existência ínfima, pode ser um conforto.

Meios de se mover no labirinto: areia movediça.

Uma vez me disseram que a palavra mais bonita da língua portuguesa era
TROPICAL

Creio ter me agarrado a ela com unhas e dentes.

Quarta-feira, 15 de abril

“Eles pensam que podem equilibrar o inferno.”

estou com esta frase na boca da garganta desde a madrugada de ontem. Ela
pertence ao livro da Olga Tokarczurk, um relato em primeira pessoa na fronteira da
República Tcheca sobre vida em comunidade, solidão e a sagacidade diante de tudo
isso para seguir exibindo os dentes.

(Adoro dentes. Acho-os fascinantes. A mim, revelam a idade, os caminhos, os


desejos. Pessoas de caninos prontificados gozam de palavras fortes. Pessoas
sorrateiras costumam fazer clareamento. As sedutoras também, mas elas vão em

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dentistas mais baratos. Gosto de quem tem dentes tortos, geralmente são
alcoólatras. Também gosto de quem usa aparelho tardiamente, parece uma
brincadeira com o tempo. Caber onde não pode. Ou poder onde não deveria.)

Pablo disse que eu não deveria ler livros tristes pois sou sensível demais e depois me
ponho a chorar pelos cantos pensando em todas as bezerras mortas pela literatura
ademais das assassinadas pela realidade. (Essa semana decidi não pensar sobre o
trem). O livro, porém, encontra sua beleza em seu quinhão de dor: ele começa com a
descrição de uma morte, a morte do vizinho, no meio de um inverno; um vizinho
solitário e, de certa forma, detestado pela comunidade.

A narradora, depois, se põe a nos situar na comunidade da mesma forma como em


um mapa astral: ela é astróloga e enxerga o mundo através da astrologia; mas uma
astrologia cínica e um tanto quanto pessimista. Porque assim são as pessoas, para
ela: cínicas e um tanto quanto pessimistas. Contudo, se há uma força maior nos
movendo - os astros, o cosmo, o destino - seríamos mesmo tão cínicos e
pessimistas? Há esperança na dor.

poemas são poemas são poemas são


poemas são escrotos. eles nascem no meio da madrugada e nunca vêm por inteiro.
eles vêm pela metade, rastejando pela cama, mordem as pernas e depois ficam
parados, na cama à frente, olhando para a sua cara, à espera.
à espera de quê? eu pergunto aos poemas.
eles dizem: que você nos complete.
vocês deveriam vir prontos, pequenas bestas.
eles gargalham e jogam água gelada na minha cara às quatro da manhã, sob o
argumento de que o trabalho do poeta é justamente terminá-los: poemas sem o
braço esquerdo ou sem uma orelha, ou com a sobrancelha mal desenhada. poemas
sem vagina.
queria dizer a eles que não sou médica. mas não adianta. enfim.

Tenho cozinhado muito, tanto, até as palavras deixarem de ter sentido e serem
reviradas pelas ondas. Cozinhar acalma a saudade. Estou aqui há um mês e parece
daqui nunca ter saído. O ser humano se acostuma a tudo, não?

(Nota mental: pesquisa se há pessoas cuja espera prolongou-se por mais de um ano.
O que faziam? O que comiam? Encurtaram de tamanho?).

Hoje sonhei que era carregada em uma briga de duas mulheres meio asiáticas, meio
brasileiras. Era um sonho de espionagem (sonho demasiadas vezes com agentes
secretos, espiões, missões a cumprir, pacotes enterrados a descobrir, enfim) e no fim
eu era seqüestrada pela mais nova e posta em um carro a 180 km/h, indo de
Botafogo à Gávea. A mocinha dirigia muito bem e provocava um acidente de carro
na outra, a mais velha, a de cabelos à la chanel. Eu ia visitá-la no hospital e lhe pedir
desculpas pois não sabia como tinha sido envolvida naquilo. Ela me respondeu: “uma

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vez que estamos dentro das situações, não nos cabe perguntar como chegamos aqui,
mas como sairemos ilesas”.

A vida, cheia de nós.

Sábado, 02 de maio

Sim. É verdade. Ele chegará. Em três semanas chegará: ao fim do mês.

Há algum tempo não escrevo. E não é exatamente por não querer: é por não saber.
Não saber o que escrever ou sobre o que escrever: estou reclamando ou estou
criando? Desabafo ou um lamento? Toda a situação é tão absurda que qualquer
dúvida parece incabível.

Estaríamos fugindo? Somos desertores?

Há perdão para quem deserta de uma guerra ou seremos encaminhados


diretamente ao inferno? O que há do outro lado do trem, seguramente, é melhor.

Caber onde não pode, poder onde não tem.

Estou aqui há 46 dias e parecem 46 meses. O que há de novo a contar? Hoje estava
um dia lindo, belíssimo. Desses dias onde há vontade de estar vivo. Fui à praia e
havia uma mulher grávida. Imediatamente meu pensamento foi: como essa moça vai
sobreviver a essa catástrofe? Como ela vai parir? Como ela pode se resguardar?

(Será que ela também tem uma passagem para subir ao trem? Mulheres grávidas
têm prioridade. Isso significa que estamos ameaçados.)

Ou seja: que horror.

Continuo, todas as noites, sonhando que sou uma espiã. Às vezes, é um sonho de
época: estou na segunda guerra mundial. Outras, é uma ficção científica: sou uma
espiã do estado de Pernambuco contra a China. Ontem, não havia exatamente uma
linha temporal: era um almoço de família, havia um segredo sobre a mesa e eu
deveria descobri-lo para entender como melhor proceder. Talvez alguém tivesse
uma segunda identidade. Enfim. Eu sei que meu sonho foi basicamente observar os
comportamentos durante um jantar para pensar quem estava inventando a si dentro
da mesa.

Dizem que a lua cheia de maio trará mudanças. Abrirá um vácuo cósmico. A primeira
lua cheia em escorpião, em maio e segundo os registros indianos, foi nesta lua que
Buda descobriu seu caminho.

Devo dizer: o acaso é divino mas não é deus. (não quero desistir dos astros. mas…)

Quinta-feira, 07 de maio

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Comecei a ler “A guerra não tem rosto de mulher”, de Svetlana Aleksiévitch. Ela
atravessa mortes e violência, mas me parece, até agora, um livro sobre sobreviver.
Estou circulando-o como um manual: como sobreviver mantendo-se inteira, esculpir
um cristal no recôndito mais espinhoso do fígado, para que nada alcance. O cristal, o
cristal: buscá-lo, poli-lo, cultivá-lo diariamente.

Ontem foi meu primeiro sonho onde abertamente vivi um mundo com o vírus. Dessa
vez, minha mãe era a espiã e eu era a infectada. Ela precisava me esconder, me
salvaguardar de exércitos determinados a me prenderem. E nisso, entravam perucas,
alucinógenos, roupas. Tudo para ultrapassarmos a fronteira do Brasil e conseguirmos
entrar no Paraguai, onde havia um país a nos receber com a vacina. Na verdade,
sequer sei se o país era nomeado Paraguai. Talvez fosse outro estado. talvez fosse
apenas um outro estado de consciência, na verdade. Engraçado que na nossa fuga
não se falava de um trem clandestino; ele sequer existia como possibilidade para
deixar o Brasil.

Depois, uma elipse: eu estava curada e minha mãe era uma espiã viajando pelo
mundo para salvar outras pessoas de outros estados. Eu precisava - ninguém dizia
nada, era um verso a martelar em minha cabeça - ser tão boa quanto ela em
resguardar a população. O vírus já tinha evoluído e se tornado a arma do Novo
Estado: agora, os infectados tinham se transformado em seres com extensões
robóticas, e eram recrutados para um serviço militar - mesmo que não
concordassem. Contudo, caso fossem levados para situações menos dificultosas,
mais humanas, essas próteses desapareciam, dando lugar a tecidos humanos. E os
robôs se pareciam mais e mais com pessoas normais: amigos, conhecidos, ex-
colegas. Mamãe me havia deixado no comando de nove gatos e sete pessoas, todas
muito mais novas do que eu. O Novo Estado as perseguia, pois elas eram soldados
sem o saberem, e uma delas era muito parecida fisicamente comigo. Havíamos
conseguido construir uma linda comunidade na casa de minha avó, que era muito
mais nova e efetivamente ativa e dona de um clube de dança de salão. Mas nos
descobriam e eu não os conseguia salvar. Daí, acordei.

“Dizem: ah, mas as memória não são nem histórias, nem literatura. É só a vida, cheia
de lixo e sem a limpeza feita pelas mãos do artista. nosso cotidiano está repleto de
matéria-prima da fala. Esses tijolos estão espalhados por todo lado. mas os tijolos
ainda não são o templo. Para mim, é diferente… Justo ali, na calidez da voz humana,
no reflexo vivo do passado, está escondida uma alegria primitiva, e se desvela a
instransponível tragicidade da vida. Seu caos e paixão. Seu caráter único e
insondável. Construo templos a partir de sentimentos. de nossos desejos,
decepções. Sonhos. Daquilo que aconteceu mas pode sumir.”

Me prometi parar de fazer perguntas por 72 horas.

Sempre tive problemas com a palavra jóia. Ou pelo significado mais imediato, da
herança, do salvo conduto caso algo dê errado, do tesouro de família, ou pelo
dialeto, de ser mero substituto para... legal. Contudo, conversando com Pablo sobre

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o quão importante está sendo ler os relatos sobre atravessar uma guerra, ele me
disse: aprender a sobrevivência é uma jóia.

Os dias têm me ensinado isso: reinventar palavras.

Afinal, foram os homens que criaram os nomes. Assim como criamos, podemos,
também, reorganizá-los.

(“A palavra cão não morde”).

Segunda-feira, 18 de maio

Essa noite tive um sonho em finlandês. Eu trabalhava como redatora de um


telejornal público apresentado por um casal loiro, alto e magro. Até o dia em que a
moça ficou subitamente resfriada e eu tive de substituí-la às pressas. No sonho, eu
usava um cabelo muito preto, liso, meio à la chanel. À medida em que as semanas
passavam - e ao longo do telejornal, eu acaba me envolvendo em uma reportagem
investigativa para desmantelar um grupo de fraude e clonagem de cartão onde ao
final eu descobria ser liderado por meu pai -, meu cabelo crescia e ficava mais e mais
ondulado. Todo o sonho transcorria na paisagem elegante e aquática de Helsinque, e
também havia pessoas dinamarqueses e noruegueses trabalhando na emissora de
TV.

Eu não falo nenhuma dessas línguas.

Talvez meu inconsciente esteja me preparando para a chegada do trem: em nenhum


lugar de nenhuma das três passagens há um indício de onde é a nossa parada. De
tudo o que eu li, quanto menos se sabe, mais seguro é diante do Novo Estado. E se o
trem nos deixar na Escandinávia? É preciso arriscar o básico: bom dia, com licença,
quanto custa, como chego a esse endereço, quero ir para minha casa.

Por outro lado, também podem nos deixar em alguma província latino-americana
cujo governo não reconheça o Novo Estado. Por isso, comecei a estudar quíchua e é
absolutamente belo como a noção de tempo infinito - e as conseqüências desse
infinito tempo - se revelam dentro de uma língua. No quíchua, os adjetivos
colocados ao lado dos substantivos não somente qualificam a palavra, mas lhe dão
um sentido de vida. Por exemplo: se eu digo criança alegre, isso significa que ela é
alegre, que ela foi alegre e que ela será alegre. Pode ser tanto uma constatação
quanto um desejo: eu desejo que essa criança seja alegre. Porque ela é alegre.
Porque ela foi alegre. Porque ela será alegre. Da mesma forma, quando constato ser
alguém de fora, essa condição torna-se da existência, e não somente de passagem:
você é alguém de fora, sempre será, sempre o foi. para ser alguém de dentro, você
precisa mudar a sua condição existencial, e não somente uma condição de
qualidade.

Ser estrangeiro é da ordem da existência, e não do momento.

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Aprendi semana passada que a expressão em aramaico (e se o trem me deixar em
Jerusalém?) equivalente para em boa hora ou na hora exata é: o osso do infinito.
Fulano de tal apareceu no osso do infinito: eu realmente precisava falar com ele.

Meu deus! a língua não é algo de sublime? Se o infinito fosse um corpo, raspar teus
ossos… É assim que se acomete a surpresa. Como cuidar de um tempo osteoporoso?
Como dar cálcio aos dias?

Isto é hora, de pensar em linguagem? Eu confesso: não sei mais direito sobre o que
pensar. Cansei os meus assuntos.

Pensar o osso do infinito, nesse tempo existente em uma dimensão da linguagem -


existe, está! - onde não há estados de doença, onde não há estados de exceção,
onde não há Novo Estado, mas uma alegria enfim, uma doçura íntima, uma
qualidade de existência de vida - ah. Isso ao menos é acalanto.

Raspar o osso do infinito.

Sábado, 23 de maio

Não há muito mais o que dizer: hoje é sábado, choveu por três dias seguidos, o trem
passou e ainda não era nossa hora de subir. As passagens foram validadas: são
verdadeiras, conseguiremos fugir, mas ainda não.

Talvez estejamos aqui há 70 dias, talvez há 68 - não menos -, busco ler, essa semana
pouco escrevi, e cozinhei de olhos fechados. Fiz uma salada de polvo com pimentão
na brasa e batata doce. Funcionou. Azeite, pimenta calabresa e açafrão. Pablo a
chamou de “Os três mosqueteiros”.

Busco olhar o amanhã. Busco olhar o amanhã. Busco olhar o amanhã. Se acreditar no
amanhã, o hoje passa a ser, assim, um trampolim. e nisso me agarro.

(um poema em processo)

a mãe de uma amiga


dizia saber da piada mais engraçada do mundo
- quer fazer deus rir?
- faça planos

minha amiga era criança


e o sorriso não veio
ela não conseguia entender quem diabos era deus
e por qual tamanha crueldade ele ria de suas vontades.

eu tenho planos:

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quero ir à praia no domingo
quero brincar com minha cachorra chamada brigitte bardot
no quintal da minha avó
quero fazer uma pizza de massa fina e borda crocante
quero ouvir do menino que gosto que ele gosta de mim também
quero passear de barco pelo rio são francisco com meu pai
e ver a girafa triste de salvador no zoológico com minha mãe.

a minha amiga se chama esther


e eu a conheci perto dos trinta anos
quando me mudei para o recife e descobri
que não se pode ir ao mar por causa dos tubarões

dois meses depois de me mudar para o recife


minha avó morreu
há muitos anos
moro em apartamentos
cujas vistas são também outros apartamentos
nunca um quintal
as pizzas do recife são ruins e custam caro
mas é preciso entendê-las: são a cura para as ressacas
(e em recife, todos os dias são dias de ressaca)
meu pai teve dois avcs e um câncer
e pouco a pouco esqueço do seu rosto
apesar de minha mãe dizer que o abraço do meu sorriso
vem dele
no recife, tentei levá-la para passear no capibaribe
ela tremeu de pavor quando o rio se chocou com as águas salgadas
nesse momento, minha mãe, tão atéia
chamou por deus para
não morrer em lugar tão fétido.
por quê, por que, minha filha
você decidiu viver em uma cidade com cheiro de esgoto?

- quer fazer deus rir?


- faça planos

“me levou trinta anos para entender essa piada”


esther é sábia.

ela também me disse


- mesmo sendo atéia -
que de vez em quando se pode avistar deus:
basta ir para perto do mar e buscar a estrela mais brilhante,
a morta.

se ela lá está,

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e nós cá estamos,
é porque ainda há alguma piada,
algum plano,
para se ter graça
de romper.

Quinta-feira, 04 de junho

Um dia não é tão distante: é esperar mais uma vez.

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